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O PAPEL DOS GRIOTS NA FUNDAÇÃO DO IMPÉRIO DO MALI

“Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, onde o
livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito tempo julgou-se
que os povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente esse conceito infundado
começou a desmoronar. [...] Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o
cérebro do homem”. (HAMPATÉ BÁ, 1982,181)

A fala possui papel de suma importância na história tradicional africana, possuindo por
vezes teor místico para esses povos, uma vez que possui o poder de mudar o destino
dos acontecimentos e influenciar na construção da história. A fala tem o poder ainda de
estimular a memória dos indivíduos. Desse modo, temos como objetivo do nosso
trabalho discorrer sobre o papel dos griots, considerados mestres da fala, na construção
de um império que mudaria os rumos da história da África e da história de um modo
geral.

Nesse contexto, temos como proposta de trabalho apresentar um panorama de modo


similar ao dos griots. Iniciaremos nosso seminário contando a lenda da fundação do
Império do Mali de modo como os griots fizeram e fazem ainda atualmente. É
importante, na história da tradição oral sobretudo, que os acontecimentos sejam
passados com emoção e com o calor humano que por vezes “livros mudos” não
conseguem fazer. Nos colocamos então no lugar desses mestres por um momento para
passar o conhecimento adiante de modo singular, interligando nossos corações e
mentes nessa bela história. Gostaríamos de iniciar nosso trabalho contando como tudo
começou com um ingênuo antílope.

Um mero andarilho, vindo do reino de Do, matara um jovem antílope nas redondezas
do Mande e como diz a tradição entrega parte da caça como taxa ao mansa.
Aproveitando a oportunidade e de bom grado ao homem que respeitara as tradições, o
mansa decide pedir ao andarilho que consulte os búzios e suas previsões para o reino.
O caçador por sua vez prevê a chegada de uma mulher feia e que a mansa deve se
casar com ela, pois ela gerará o herdeiro de Mande.

Simultaneamente, no reino de Do havia um búfalo furioso que aterrorizava o reino.


Destruía plantações e espalhava o caos, a cada dia matava 10 caçadores que tentavam
captura-lo, fome e medo dominavam o reino. Naquele mesmo dia, dois jovens irmãos
caçadores oriundos do Mande se encontram determinados a matar a fera que tanto
amedrontava a região. Andaram por vários dias sem sinal do búfalo ou de seus rastros.
Assim, resolvem descansar sobre a sombra de uma grande árvore. Em seguida, uma
pomba branca que sobrevoava o local diz aos caçadores para ir a beirada do rio, onde
havia só uma mulher que poderia ajuda-los. Os caçadores seguem os conselhos da
pomba e avistam uma mulher que fervorosamente lavava panos no rio. Os dois se
aproximam e perguntam a mulher se eles poderiam ajuda-la, ela por sua vez se mostra
arisca e os manda embora. Os homens decidem segui-la quando a mulher saí da beira
do rio em direção à mata. Se aproximam mais uma vez e lhe oferecem um pedaço de
carne seca, um pouco de bebida do Mande e fumo. A mulher então pergunta se eles
desejam matar o búfalo, os homens esperançosos respondem que sim, porém a mulher
lhes diz que ninguém pode matar o búfalo pois ela é o monstro. Os jovens assustados
recuam na defensiva, entretanto a mulher os acalma e diz que muitos caçadores
falharam ao caça-la e ela matou ao todo 77 deles. Porém, diz que a hora dela chegou e
que ela se entrega a eles, devido a bondade, o carisma e perseverança que
demonstraram. Todavia, com uma condição: “Quando tiverem matado o búfalo, meu
sobrinho rei de Do irá recompensá-los, levem minha cauda como prova, devem dizer a
ele que querem como recompensa uma mulher, ele lhes trará as mulheres mais
graciosas do reino mas devem escolher apenas uma, a mais feia entre todas as
mulheres. Minha irmã de alma, Sogolon, ela dará luz a um filho que dominará toda a
Savana. ”

A mulher búfalo pede então a um dos irmãos que pegue escondido em um grande
arbusto uma ROCA, uma PEDRA e um OVO e que junte todas essas coisas quando
estiverem frente a frente com a fera e a encarem três vezes. Ela lhes diz que seu corpo
tremerá e ela os perseguirá, e para derrota-la eles precisam jogar cada uma dessas
coisas para trás enquanto fogem de sua irá. Por fim, pede que os caçadores lhe deem a
palavra de que tudo será cumprido. Assim feito, o búfalo ataca violentamente e os
caçadores correm assustados. Quando o búfalo se aproxima, o mais jovem atira a roca
para trás, que instantaneamente se transforma numa plantação de coqueiros, o que dá
aos irmãos uma vantagem a frente do animal. O truque não dura muito tempo e o
monstro se aproxima novamente, o mais jovem novamente joga então a pedra, e ela
lhes da a oportunidade de se esconderem sobre as rochas que se formaram. O búfalo se
aproxima mais uma vez, furioso, o mais jovem joga então o ovo que se transforma
numa grande poça d’água que deixa o búfalo atolado. O grande animal vai se
transformando aos poucos em ser humano novamente, e o irmão mais velho lhe atira
uma flecha em direção ao coração e mata a fera.

Assim, os caçadores cumprem o trato e vão até o sobrinho da mulher búfalo, rei de Do
que lhes oferece o que quiserem. Os irmãos, sem pestanejar, pedem apenas uma filha
do reino de Do. O rei de prontidão reúne todas as mais belas jovens e solteiras do
reino. Após muito procurarem entre os belos rostos, os caçadores escolhem a jovem
corcunda Sogolon, que residia sozinha num canto entre as moças. O sobrinho da
mulher búfalo entre gargalhadas, como todos os presentes na ocasião, lhes oferece
mais coisas, porém os dois irmãos mantêm a promessa feita à mulher búfalo e recusam
retornando a Mande.

No longo caminho de volta, os caçadores discutem sobre quem engravidaria a moça,


receosos, não conseguiam chegar a um acordo. Até que o mais velho decide tomar a
inciativa e se aproximar da jovem, logo percebe a aversão e agressividade da moça. Ao
tentar se aproximar ainda mais, a moça logo se transforma num búfalo e espanta o
homem. Desse modo, o irmão mais novo, temeroso, tenta se aproximar da moça, mas
também é rejeitado. Os irmãos desacreditados decidem então entrega-la ao mansa de
Mande. Alguns dias de viagem depois, assim que os jovens chegam nas redondezas do
reino, o mansa se lembra da profecia dos búzios e decide realizar um grande casamento
com Sogolon.

Após a cerimônia, enquanto o casal se prepara para a noite de núpcias o mansa tenta se
aproximar de Sogolon o rejeita violentamente invocando seu totem, o búfalo, para
evitar que o mansa a possuísse, por sua vez o mansa também invoca seu totem, o leão,
e os dois se enfrentam até a manhã seguinte. O grande mansa usa todo o seu poder,
porém em vão. Assim, a luta se prolonga por mais sete meses, todas as noites, até o
desfalecimento do mansa. Desolado, o mansa busca sabedoria nos conselhos de seu
griot, que lhe apresenta a solução que iria decidir o destino do reino.

Naquela mesma noite, o mansa vai até Sogolon e lhe diz que o destino havia lhe
trazido até ele, mas ele havia interpretado mal o que deveria ser feito, ele lhe diz que o
sangue da virgem precisa ser derramado. Como uma oferenda ao reino, o mansa
precisa cortar sua cabeça. Aos prantos, Sogolon implora pela vida até que desmaia de
terror. Desse modo, o mansa finalmente pode enfraquecer o poderoso totem búfalo da
mulher, naquela noite Sogolon engravidou. Alguns dizem que a gravidez de Sogolon
durou dezoito meses, outros dizem que durou sete anos. O importante é que passando
por todos os obstáculos, como o ciúme da primeira mulher do mansa que por vezes
tentara sabotar a gravidez do novo herdeiro, em uma noite de tempestade a criança
gritou do ventre da mulher búfalo: “Mãe, chegou a minha hora! Vou sair.”

Durante um dia chuvoso, em plena estação de seca, o sol, enfim, cortou o céu. Foi assim
que o menino de Sogolon e Narê Maghan nasceu. O povo recebeu a notícia e respondeu
de imediato com comemorações e gritos de alegria. O palácio estava em festa. Enfim o
menino-leão-búfalo havia nascido. O rei demonstrava sua alegria distribuindo presentes
e encantando-se com os hinos de boas-vindas compostos pelos gritos.

Sundiata teve uma infância complicada, cheia de problemas de saúde relativos às suas
pernas. Era um menino muito quieto e que adorava comer. Todo o conhecimento sobre
magias da mãe e toda a influência social do pai, de nada serviram na hora de fazer o
menino andar. As esperanças de todos estavam praticamente extintas.

Aos sete anos, o pai de Sundiata sentiu que teria pouco tempo de vida e, com muita
seriedade, apresentou ao menino a tradição africana dos gritos. Neste momento,
explicou para seu filho que foi pela boca de seu griott que ele havia aprendido tudo que
já precisou. Portanto, Sundiata e Balla, o menino escolhido para ser seu griott, deveriam
se tornar melhores amigos. Pouco tempo após essa conversa, o rei faleceu.

Foi decidido pelo concelho que Sundiata não seria capaz de assumir o trono. Assim, o
primogênito do rei, filho de outra mulher, Sassuma Beretê, teria o poder. Sogolon e seus
filhos precisaram viver dos restos da corte e eram constantemente humilhados, devido à
condição física de Sundiata.

Certo dia, Sogolon sentiu-se desesperada e chorava muito. Sundiata percebeu o que
acontecia com sua mãe, por isso pediu que ela escolhesse algo. Ele afirmou que iria
caminhar e trazer-lhe qualquer coisa. Sogolon pediu apenas folhas de Baobá. O menino
solicitou que seu griott buscasse uma vara de ferro. Quando a vara estava em frente à
sua porta, Sundiata arrastou-se até ela e, com muita força, usou a barra para levantar-se.
Segundos depois o menino estava caminhando. Os gritos de alegria de sua família
chamaram a atenção de todos, inclusive de Sassuma, que vieram ver o que estava
acontecendo. Sundiata foi até o Baobá próximo à sua casa, onde as crianças colhiam
folhas para servir de tempero nas cozinhas de suas mães, e o arrancou do chão com
muita facilidade. Caminhou até a porta de sua casa e ofereceu a árvore à sua mãe.
Assim, o menino-leão andou e limpou a honra de sua família.
Sundiata ganhou popularidade instantaneamente. Os outros o seguiam, pois a cada dia
ele se tornava mais forte e mais inteligente. Passava as tardes caçando com seu arco e as
noites escutando as lições sobre a natureza, o passado e as guerras, contadas por Balla e
Sogolon. Todos o adoravam, o que despertou o ciúme de Sassuma. A mulher temia que
o povo escolhesse Sundiata como seu verdadeiro rei, destronando, seu filho
primogênito.

Então Sassuma decidiu que mataria Sundiata. Chamou as feiticeiras do Mandinga e


prometeu-lhes grande riqueza se conseguissem realizar o pedido. Contudo, para as
feiticeiras, Sundiata só podia ser assassinado se fosse uma pessoa má. A rainha ordenou
que as velhas testassem o menino e, ao fazê-lo, perceberam que Sundiata era um jovem
muito bondoso. Avisaram-lhe sobre o ódio de Sassuma e prometeram lhe proteger.

Sogolon pediu para o filho que partissem para o exílio, pois temia o que a rainha e seu
filho fizessem mal à sua família. E assim, foi feito, eles passaram nove longos anos
longe do Mandinga. Durante esses anos, passaram por muitos reinos, vagando em busca
de abrigo, que somente em Mema foi-lhes garantido. Em pouco tempo, Sundiata criou
um laço muito forte com o rei de Mema, que não podia ter. O povo, o exército e a corte
apoiaram prontamente a ideia do rei de fazer Sundiata seu sucessor.

Durante os anos em que a família esteve afastada do Mandinga, a área foi tomada por
um novo soberano, Sumaoro, o rei feiticeiro, conhecido pela crueldade e inflexibilidade
com que reinava. Sundiata decidiu então voltar à mandinga para salvar sua terra, depois
de descobrir a situação por meio do depoimento de comerciantes. Recebeu, como sinal
de apoio animais, soldados e armas, ofertados pelos reinos em que passou no caminho
de Mema ao Mandinga. Os outros soberanos temiam que Sumaoro roubasse seus
territórios, assim como já havia feito nas redondezas. Sundiata mostrava-se sempre
muito confiante e tranquilo, fazendo com que seu exército parecesse maior do que
realmente era, vencendo todas as batalhas.

No meio de uma das últimas batalhas, assim que Sundiata avistou seu inimigo principal,
Sumaoro, o jovem correu em sua direção. Tentou acertá-lo com seu ginete, suas flechas
e, até mesmo, com suas próprias mãos. Nada adiantou. Sumaoro bloqueava os golpes e
se transportava para outros lugares através de sua magia. Pouco tempo antes da vitória
ser, mais uma vez, atribuída ao exército de Sundiata, Sumaoro desapareceu
completamente, deixando o jovem confuso e chateado. Sundiata percebeu, enfim, que
precisaria de outras armas para ganhar a Guerra.

A meia-irmã de Sundiata, Nana, havia sido dada de presente a Sumaoro em uma


tentativa de evitar a dominação de sua terra natal pelo rei de Sosso. A tentativa foi
malsucedida, contudo, Nana aprendeu muito sobre a magia de Sumaoro e descobriu
como derrota-lo. Quando conseguiu fugir, ela se encontrou com Sundiata e contou para
o irmão que ele deveria acertar seu inimigo com uma flecha feita de um esporão de galo
branco.

Sundiata se preparou para a Grande Batalha, e quando o momento chegou, impôs sua
flecha especial e conseguiu acertar o inimigo de raspão nas costas. Mesmo não
causando nenhum ferimento grave, Sumaoro começou a se enfraquecer e acabou
definhando no meio do campo de batalha. Seus seguidores, desolados, desistiram no
exato momento que o chefe caiu do cavalo.

Assim nasceu o Império do Mali.

REFERÊNCIAS:

LY-TALL, Madina. História Geral da África - A África do século XII ao século XVI.
UNESCO. Ática,1985

NIANI, Djibril Tamsir. Sundjata ou a epopéia mandinga. São Paulo: Editora Ática,
1984; DIABATÉ, Massa Kakan. Le Lion à l’arc. Paris: Hatier, 1986.

FILME

Keita! L'héritage du griot - Dany Kouyaté (1996)

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