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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Maria Gabriela Balina do Amaral

Oficina de História I
Resenha do texto “ Saúde e enfermidades femininas nos escritos médicos (séculos
XIII e XIV) ”

Rio de Janeiro
2016
SANTOS, Dulce O. Amarante dos. “Saúde e enfermidades femininas nos
escritos médicos (Séculos XIII e XIV) ”, Territórios & Fronteiras, Volume 6,
Número 2, Páginas 7-20, 2013

A autora do artigo “Saúde e enfermidades femininas nos escritos médicos”, Dulce O.


Amarante dos Santos, atualmente é professora titular da Universidade Federal de
Goiás. Graduou-se em História pela Universidade de São Paulo, onde, também,
concluiu seu doutorado em História Social. Estudou durante o pós-doutorado na
Universidade Complutense de Madri e na Universidade de Navarra. Suas áreas de
conhecimento específico são História medieval ibérica, História das Mulheres,
Imaginário Social e História da Medicina. É líder do Programa de Estudos Medievais
da UFG, integra o Grupo Luso-brasileiro Raízes Medievais e é membro da
Academia Portuguesa de História.

Segundo ela, desde a Antiguidade Clássica existia um termo popular, conhecido


como gynaikeia, que significava “assunto de mulher” e era utilizado, principalmente,
em relação às questões da saúde feminina que poderia ser, anacronicamente,
comparado à ginecologia. A medicina medieval relativa à natureza feminina tinha
como papel principal atuar nas questões da menstruação, concepção, gravidez,
parto, amamentação, doenças relativas ao útero, esterilidade e o uso e produção de
cosméticos. Era baseada na doutrina médica criada na Antiguidade, principalmente
por Hipócrates e a escola de Cós (na Grécia), Galeno (no Império Romano) e
Avicena (no mundo árabe). Além disso, contava com mecanismos como o uso de
ilustrações, receituários, manuais, esquemas, calendários e quadros astrológicos.
Contudo, no dia a dia era praticada por mulheres mais velhas, conhecidas como
curandeiras e parteiras, que não tinham acesso à cultura letrada e haviam sido
treinadas, desde jovens por outras mulheres, a partir da tradição oral, da
observação e da própria experiência acumulada pelos anos. A única exceção
conhecida atualmente é a Sapiens Matrona, uma mulher de Salerno que chegou a
publicar obras para a transmissão de conhecimento prático sobre o assunto.

A produção do conhecimento letrado sobre o corpo feminino e suas peculiaridades


nasceu de um desejo dos homens de entender e controlar os processos de
concepção e formação do feto, determinação do sexo do bebê, esterilidade e
menstruação. Esta produção era feita por estudiosos conhecidos como físicos, que
detinham o conhecimento misto da medicina e da interação dos organismos com a
natureza, e era circulada na forma dos gêneros literários denominados literatura de
segredo (especulações sobre os mistérios da reprodução) e filosofia natural (estudo
sobre os corpos). Todas as obras eram produzidas no ambiente acadêmico,
principalmente nas Universidades de Paris, Montpellier e Bologna, sustentadas pelo
poder eclesiástico e régio, onde os alunos eram divididos em turmas de acordo com
suas regiões de origem.

Os escritos medievais foram ancorados na teoria humoral, que consistia na ideia


aristotélica que buscava explicar o funcionamento interno do corpo humano
saudável a partir do equilíbrio dos líquidos corporais. Estes eram conhecidos como
humores e consistiam no sangue, na fleuma, na bílis amarela e na bílis negra, que
eram interligados e, quando em desequilíbrio, causavam as doenças. O corpo da
mulher era considerado fisiologicamente imperfeito, pois seu líquido principal não
era o sangue, como no organismo masculino, o que as deixava mais suscetíveis às
enfermidades.

Depois do aparecimento do ambiente de estudo universitário sofisticado houve um


rompimento dentro da medicina, que foi dividida entre a prática (concretizada por
barbeiros, cirurgiões, boticários, parteiras e curandeiros) e a teoria (exercida por
mestres universitários e físicos). Com o tempo a desvalorização da prática em favor
da teoria se deu de forma extremamente evidente nas classes altas da época. O
domínio da teoria foi considerado como uma ciência, pois gerava conhecimento, e a
prática acabou se tornando algo artístico, na habilidade do manejo dos
instrumentos.

O conhecimento relativo ao corpo feminino possuía um caráter secreto, pois os


homens não deveriam tocar no corpo das mulheres, chegando a ser, até mesmo,
proibido por ser de caráter luxurioso e incluído no Index mais tarde. Os escritos
médicos foram divididos entre obras destinadas aos filósofos e teólogos,
principalmente ao público leitor de religiosos, e outras destinadas aos praticantes
religiosamente leigos e letrados. Portanto, o monopólio do conhecimento por parte
das mulheres em relação ao corpo feminino e às peculiaridades da reprodução,
gestação e nascimento acabou durante a Idade Média.

Por causa da falta de estudos anatômicos, pode-se perceber que a maior parte dos
saberes divulgados desde a antiguidade até o século XIV são baseados no
imaginário dos homens de como deveria ser o interior de seus corpos, já que a
religião proibia expressamente a dissecação de cadáveres humanos, mesmo que
fosse para o engrandecimento da ciência. Muitos dos preceitos inquestionáveis da
época medieval nasceram como concepções distintas e possuíam caráter
contraditório entre si, além de terem sido fortemente influenciados pela tradição
religiosa, pois a Igreja financiava os estudos, que circulavam principalmente nos
ambientes monásticos. Eram a explicação fictícia de sintomas reais.

Por exemplo, acreditava-se que o útero era um órgão móvel e que esse movimento
seria a causa de dores e enjoos nas mulheres, processo atualmente conhecido
como cólica. A menstruação era o fluido seminal feminino que possuía um caráter
impuro, sendo considerado a causa de inúmeras doenças exclusivas das mulheres,
e precisaria ser purgado pelo corpo uma vez por mês. Esse fluido poderia ser
transformado em alimento pelo organismo por meio do movimento do útero até as
mamas onde ocorreriam processos que alteram a temperatura deste líquido,
tornando-o próprio para o consumo de um recém-nascido, na forma de leite
materno.

A seleção e a reunião de receituários e textos médicos eram, muitas vezes,


concretizadas por religiosos importantes que pretendiam provar sua erudição, sendo
até mesmo, em certas ocasiões, dedicados ao próprio Papa. Caracterizavam-se por
uma mistura entre conhecimentos eruditos (como os contidos em enciclopédias) e
populares (como os resultados das experiências de curandeiros ao longo do tempo),
estruturados a partir de esquemas de classificação e, ao final, receitas diversas.

Datam desta época medieval as maiores tensões entre médicos laicos e religiosos
já vistas, pois a visão laica utilizava-se da perspectiva da natureza e destinava-se à
preservação da saúde sem as restrições atribuídas à visão religiosa, apesar de
ambas englobarem o mesmo assunto. Um grande exemplo é a recomendação de
práticas sexuais feita comumente por médicos não religiosos para tratar de dores
ligadas ao útero feminino. Essa recomendação era criticada e condenada pela
Igreja, que sugeria outras práticas terapêuticas ou, até mesmo, que as mulheres
simplesmente aguentassem o desconforto causado por seu próprio corpo.

A ética médica da Idade Média propunha que o papel social do profissional da área
da saúde deveria ser voltado completamente para a cura e a valorização cristã da
vida, condenando os que, em troca de dinheiro, provocavam a morte e a interrupção
da gravidez. Entretanto, era muito comum a circulação oral de receitas
contraceptivas atribuídas às parteiras ou às prostitutas (consideradas as detentoras
do conhecimento para impedir a concepção da vida).

A utilização de elementos mágicos ou simbólicos (como orações, amuletos ou


talismãs) nos processos relativos à saúde humana era frequente na Europa
medieval, mesmo dentro do meio universitário e religioso erudito, uma consequência
da grande eficácia psicológica desses objetos. Poucos eram os estudiosos que
colocavam em dúvida a eficácia destes elementos.

Assim, o homem se apropria do conhecimento feminino sobre o corpo das mulheres


e suas doenças, marcado pela oralidade, e passa a escreve-lo e atribuí-lo às
universidades. Portanto, as análises de documentos médicos medievais mostram
que o cruzamento entre os saberes popular e erudito, junto com elementos
considerados mágicos ou milagrosos, o desconhecimento anatômico e fisiológico do
corpo humano e o imaginário dos estudiosos, gerou a medicina da época.

O texto é construído sobre as imagens e o conhecimento limitado do homem em


relação ao organismo feminino durante a Idade Média, além do uso constante da
ideia de associação visual entre objetos e o corpo. Estas imagens são criadas a
partir do desconhecimento do ser humano sobre si mesmo e o controle da religião
em relação às questões da educação.

A linguagem utilizada pela autora é simples e dinâmica, entretanto em alguns


momentos se apresenta repetitiva, pois assuntos já tratados durante o texto ou nas
notas de rodapé são explorados novamente com a mesma abordagem e
vocabulário. Comentários atribuídos a pesquisadores medievais da área médica são
citados ao longo do discurso, o que confere ainda mais credibilidade às afirmações
e especulações apresentadas. O contexto histórico de onde se inserem as
informações não é explicitamente apresentado, contudo, com conhecimento básico
da área, é possível compreender o artigo.

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