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Uma história de Natal

ou
Duas meninas e um relógio

Um dia o reloginho vermelho amuou. Era um despertador com duas orelhas, redondo, e
encostava-se a outros relógios também vermelhos e de iguais orelhas, pacata coleção em diferentes
tamanhos. Seus tiquetaques eram desafios musicais que alegravam a cómoda do meu quarto. Mas,
quando resolveu amuar, nada o convenceu a mudar de ideias. Primeiro, tentei umas leves
palmadinhas, depois uns abanões fortes, depois ainda, com leves esperanças, pu-lo de rabo para o ar.
Mas ele, vá lá saber-se porquê, manteve-se firme. Que fazer? Aceitei a sua teima, ou a sua “doença”,
quem sabe? E guardei-o no fundo de um gavetão da cómoda sobre a qual conversava alegre com os
seus pares.

Ficou no meio do que quase não anda a uso e que por largos meses se esquece. Só às vezes, ao
remexer coisas, dava com ele.
— Olha o relógio vermelho!
E, como o remexer nunca é ordem, lá ficava ele tapado, de novo escondido.

Um dia, em novas remexidas, voltou o relógio a aparecer. Tirei-o para fora, tive-o nas mãos,
olhei-o com cuidado e desabafei:
— Não serves para nada… Para nada? Deixa-me olhar bem para ti.
Atenta, virei-o, revirei-o e aceitei a ideia:
— Calhas bem em moldura para retrato.
Vá de o desmanchar aos poucos, orelhas, parafusos, pernas. Umas tantas coisas saíram com
facilidade, mas as outras… Alicate, chaves de fenda, empurrões em jeito de alavanca… E pancada,
muita pancada. Lá consegui. Depois, escolher foto antes de voltar a armar tudo (difícil que foi),
procurando as peças espalhadas sobre a cama.
Claro que preferi para a exótica moldura uma foto das minhas Princesas-Cinderelas-Sereias
(títulos por elas escolhidos), Raposinhas por mim chamadas, embora que o nome lhes cause
estranheza (“Rapozeta, Pintalgreta, senhora de muita treta…”, não era assim, Mestre Aquilino?).
Com um lote de fotos espalhado à minha frente, ia escolhendo pelos tamanhos: esta não, que é
pequena, aquela não cabe no redondo do vidro, e por aí fora…. Difícil!

Até que apareceu a certa, e que mostra as meninas preparando o Presépio com muita
compostura. Nesse dia, nada de Cinderelas a contas com a madrasta e suspirando pelo príncipe, nada
de sereias a fugir do polvo gigante. Encantadas, atentas, entregues à sua tarefa. Angélicas mesmo!
Depois, quando elas já no centro do vidro e o relógio milagrosamente armado, ouvi um tímido
tiquetaque, brandinho, a medo.
Tique---------taque.

Que ouço? Devo estar enganada! Mas não. De tímido, passou ao antigo som alegre, fanfarrão
mesmo: tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque. E, ao som daquele trinar alegre e ritmado, as figurinhas
animaram-se como as de uma “cascata” à moda do Porto: Eleonor, com as mãos sapudinhas, ajeita o
musgo com mil carinhos, põe, dispõe, alisa. Rosa, com o burro entre as mãos, hesita em pô-lo antes ou
depois da vaquinha.
José, onde fica? Talvez aqui, para ver melhor o Jesus. A gruta, ainda por acabar, sem teto de
colmo, é um amontoado de seixos da praia. Nus, polidos, trazem ao Presépio o mar calmo e verde de
Galapos – onda vai, onda vem, misturadas ao musgo e aos pastores que carregam borregos aos
ombros. Contra a janela, as hastes enormes das bagas vermelhas como quando nascidas junto do
ribeiro. Mil azáfamas para que o Presépio seja coisa linda e ao jeito da sua criação.

— Avó, canta tu, nós ainda não sabemos bem. E a avó, dócil, entoa:

“Ó meu Menino Jesus


a tua mamã é bonita
e tu és lindo também
ó meu Menino Jesus”.
Lá no fundo, num longe sem distância, minha mãe assiste a mais um armar do Presépio, ritual
que passa entre os dedos e as gerações. Assiste e sorri com ternura. Estas não são bem as suas
meninas, antes as minhas. Talvez que sejam somente um florir longe dos seus braços — ou talvez não,
quem sabe destes prolongamentos para lá de presenças concretas?
Ela fala e só eu a ouço: “O musgo do pinhal do Zé Rebelo era muito mais fofo, lembras-te? Vocês
traziam uma canastra cheia, sempre o dobro do que era preciso”.
Este, colhido em terra barrenta, não é tão bonito, mas, como o outro, é a base da construção.
A mãe lembra também: “E porque não cantas a nossa toada antiga, e ao uso do povo? “

“Ó meu Menino Jesus


quem te deu esses calções?
foi a minha avó Santana
com casinhas e botões…”

— Não, mãe, essa fica para mais tarde. Calções no Menino, sempre de saias, não se ajusta; é tirá-
lo do berço e do colo da mãe. E avó Santana, é muita confusão.

Tiquetaque, tiquetaque, tiquetaque.


Reloginho canta, mais vivo do que nunca.
Ele já não marca o tempo — nem ponteiros tem sequer…
O tempo, que lhe importa?
Ficou num outro destino: ser o canto, o companheiro das meninas, ter o direito de estar agora
nessa festa passada há dois anos. Direito também de ser elemento ativo nessa outra festa a acontecer
em dezembro a vir.
E, no tempo da espera, que segredos que eu não ouço dirão estes três, ao som de um tiquetaque
alegre e fiel?
Mãos sapudinhas, olhar interrogador, cantar ritmado, combinam bem… se combinam!
O irreal entrou no nosso quotidiano de uma forma concreta e, quando estas coisas acontecem –
porque acontecem mesmo – só temos que alegrar-nos com elas.

Maria Cecília Correia

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