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NOTA DA AUTORA

Oi pessoa, antes de tudo, queria te agradecer por você ter aberto


este livro. Muito obrigada por querer ter essas histórias com você. É
muito importante para mim.
Juntas, essas histórias formam uma série de contos que
publiquei mensalmente em 2020. Por isso, escrevê-los foi um
processo tão complicado. E não apenas por conta do curto período
de tempo que eu tinha para escrever, publicar e organizar tudo para
a publicação mensal e independente deles, mas porque essa série
foi feita para preencher uma falta que eu senti durante toda a minha
vida.
Quando pensei em criar esses contos, eu queria fazer algo para
o máximo possível de bissexuais (e não apenas bis) se verem
representades. Queria ajudar a tampar um pouco a falta que
sentimos de histórias que sejam sobre a nossa maneira de ver o
mundo.
Por isso, fiz um conto sobre um bissexual tentando entender a
própria sexualidade e errando feio (As razões de Henrique) e fiz um
conto com adolescentes bissexuais com super poderes ouvindo
vozes vindas de uma parede (Emma, Cobra e a criatura da parede).
Eu queria mostrar que corpos além do padrão magro, branco e
cisgênero merecem amor. É por isso que uma das histórias se
preocupa em mostrar uma menina gorda ajudando a crush a
entender mais sobre pressão estética e sendo amada nesse
processo (Um corpo de verão) e que escrevi tantos personagens
trans (Amor de janela, Outra dimensão para nós dois, Emma e
Cobra, Bregafunk do amor e Um Papai Noel de outro planeta) e
negros (todos os contos).
Além disso, quis mostrar que não são apenas os jovens que
amam independente de gênero (Azeitonas) e que bissexualidade e
o amor entre pessoas do mesmo gênero não é algo novo, muito
pelo contrário (Espero que não perca).
Quis fazer coisas leves (Amor de janela e Bregafunk do amor) e
coisas mais reflexivas (Azeitonas, Henrique e Um Papai Noel de
outro planeta). E quis mostrar que todo tipo de amor é válido, seja
ele entre três pessoas (Mas… e se?), entre pessoas idosas
(Azeitonas e Espero que não perca), entre pessoas de gêneros
diferentes (Acho que eu fiz uma música, especialmente) e entre
pessoas do mesmo gênero (destaque para Estrela e a Flor).
Todos esses contos existem por uma razão. Existem porque
precisamos dessas histórias. Vamos continuar mostrando para o
mundo quem nós somos!

Com amor,
Maria!
Mas… e se?
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura sensível: Larissa Siriani
Para Thaís e Bia.
Está aqui o trisal que a gente tanto quis.
Esse momento é nosso!
Amo vocês.
Capítulo I
Voltar para casa.
Três palavras tão simples. Eu quis tanto estar exatamente onde
estou, sentado no banco do passageiro do meu carro, voltando para
casa com um único objetivo: maratonar todos os realities shows que
não vi nos últimos oito meses. Espero que a Cris não tenha me
traído e assistido a nenhum deles sem mim.
Ok, esse não é o meu único objetivo.
Mais do que tudo, quero estar com a Cris. Sinto falta de
conversar com a minha esposa, da maneira como ela mexe na
ponta das tranças quando está irritada ao me ouvir falar sobre a
idiotice dos filmes héteros que adora ver, mas não admite.
Sinto falta de tanta coisa.
Mas sei que tudo está diferente agora que minha esposa tem
um namorado novo.
Tecnicamente, um novo antigo namorado. Ex-melhor amigo. Ex-
namorado. Ex-pessoa-que-dividia-o-lanche-na-escola-com-ela. Sou
incapaz de definir.
Começa a tocar no rádio uma música nova da Marília
Mendonça que ainda não ouvi. As últimas semanas foram tão
corridas que não consigo citar duas das quarenta cidades em que
me apresentei só no último mês. Nunca mais deixo uma
capricorniana montar minha agenda. Pelo amor de Deus, estou
exausto.
Encosto a cabeça na janela do carro.
— Tá tudo bem aí, Henrique? — Milton desvia o olhar da
estrada por um breve segundo para me analisar.
— Tá, sim. Só estou cansado demais.
— Mas também, né?
Até meu motorista sabe que foi um exagero. Que essa vida é
um exagero. Não preciso mais disso, já estou rico. Decido que a
primeira coisa que vou falar para Cris, assim que nos vermos, se ela
ainda estiver acordada, é que nunca mais vou deixar que cuide da
minha agenda. Sei que estou mentindo para mim mesmo e que, na
hora que minha esposa me encarar com aqueles olhos castanhos,
eu vou deixar que ela faça qualquer coisa com a minha vida, como
tem sido nos últimos dez anos.
A música da Marília Mendonça acaba, dando vez a uma canção
de minha autoria. Reviro os olhos e solto um muxoxo. Sem falar
nada, Milton pula a faixa.
— Eu juro que ia matar alguém se tivesse que fazer mais um
show que fosse.
Ele solta uma risada e eu, um suspiro de alívio, assim que vejo
as primeiras e poucas luzes da cidade se aproximando.
— Finalmente chegamos nesse fim de mundo! — exclamo,
olhando para Milton. Meu celular começa a vibrar na porta do carro
com várias notificações assim que o aparelho capta o sinal da rede.
— Eu amo tanto esse fim de mundo! — quase grito. Mas minha
empolgação morre em uma velocidade absurda, quando pego o
objeto e dou uma olhada nas mensagens. — Não aguento mais
esse inferno! — digo, em uma voz grave, controlando a vontade de
abrir a janela e jogar longe esse celular.
Milton não comenta nada. Ele já deve estar cansado de me
ouvir reclamar da mesma coisa todo dia.
Eu sou apaixonado pelas músicas que canto, quanto mais
brega elas forem, melhor. E eu queria que a profissão “cantor
sertanejo” fosse só isso: cantar minhas músicas para as pessoas
que querem ouvi-las. No entanto, passa longe de ser assim.
Todo santo dia aparece uma fofoca nova sobre a minha vida,
alguma manchete tendenciosa, algum hater desocupado. Hoje,
aparentemente, os fofoqueiros estão divididos entre me chamar de
“corno manso” ou “gay”. Eles nunca se decidem.
Juro que fui inocente o suficiente para pensar que tudo isso
acabaria eventualmente, ou que pelo menos diminuiria com o
tempo. Mas acho que isso não vai acontecer nem mesmo quando
eu me aposentar. Estou muito longe de ser aquilo que esperam que
eu seja e de amar o tipo de pessoa que eles esperam que eu ame.
Não consigo parar de me perguntar se esses fofoqueiros ainda
inventariam boatos sobre mim se eu aparecesse por aí de mãos
dadas com uma mulher branca e magra.
— Henrique? — Milton me chama. — Chegamos.
Olho pela janela e vejo o portão branco iluminado por uma luz
azul chamativa. Isso foi ideia minha? Provavelmente. Da Cris é que
não foi. A finalização da construção dessa casa aconteceu no meio
de uma loucura e eu não gosto nem de me lembrar dessa época.
Foi a única vez, em dez anos, que eu e ela brigamos tão feio a
ponto de nos separarmos por dois dias. Foram os piores dois dias
da minha vida. Isso se eu não contar aquela época, lá na minha
adolescência, quando nós dois namoramos pela primeira vez e eu
fui burro o suficiente para perdê-la.
Dessa vez, a culpa não foi minha e, talvez, eu tenha mandado
colocar essas luzes azuis no portão por vingança.
Mando uma mensagem para Cris:
Chegay!
Ela não responde, mas o portão se abre. Cris sempre faz isso.
— Obrigado por me trazer, Milton. Tem certeza que não quer
dormir aqui hoje e ir amanhã para a casa?
— Tenho, sim. Prefiro viajar à noite, já me acostumei.
— É essa a nossa vida, né? — Suspiro e abro a porta do carro.
— Boas férias pra você, amigo.
— Pra você também, Henrique!
Milton abre o porta-malas e tiro minha bagagem de lá. Aceno
para ele e observo o carro se afastar. Essa foi mais a minha casa
nos últimos tempos do que qualquer outro lugar. Cansei de dormir
no banco de passageiro, cansei de chorar de saudade com a
cabeça encostada no vidro frio da janela.
Olho para o caminho de pedras que sobe o morro até a porta
da minha casa, lá no alto. Quem teve a ideia de calçar isso com
pedras não pensou em um pobre cantor sertanejo chegando em
casa cansado arrastando sua mala de rodinhas. No caso, isso
também foi ideia minha.
Estou me sentindo o próprio Roberto Carlos naquela música “O
Portão”, mas sem a parte do cachorro me sorrir latindo, porque a
Cris não gosta de cachorros. Não tem como ela ser perfeita, fazer o
quê?
Vejo que algumas luzes estão acesas. Subo devagar, apesar de
estar quase morrendo de saudade dela. Não sei se Cris está
sozinha, não sei o que vou encontrar quando entrar, só sei que não
quero lidar com isso agora.
Sorrio quando vejo que a porta está aberta.
O cheiro de Cris está em toda a parte e é a primeira coisa que
me atinge quando entro.
Quando a vejo, esqueço tudo. Esqueço os duzentos e quarenta
e nove dias em que estive fora. Os trinta e seis, desde a última vez
que a vi pessoalmente. Sim, eu conto. Tenho uma agenda onde
anoto tudo isso; ainda quero fazer uma música sobre isso, tipo
aquela “126 Cabides”.
— Oi — Cris me cumprimenta como se tivesse me visto hoje de
manhã, mas sorri como se não me visse há anos. Largo a mala
perto da porta e arranco a mochila das costas, soltando-a no chão.
Quase corro até minha esposa, que está parada perto do balcão da
cozinha, me esperando.
Abraço essa mulher como se nunca mais fosse abraçar alguém
na vida.
— Saudade de você, Cristiellen! — Eu a aperto com tanta força
que ela me empurra de leve.
— Precisa me matar? — A fofura dela é encantadora.
— Também te amo! — Eu a solto para olhar para ela. Cris é
bonita demais, com sua pele escura e seu olho claro. Sempre achei
lindo o fato de os olhos dela terem essa cor de uísque e madeira
nova, enquanto a pele é de um marrom profundo.
Ela tirou as tranças, mas o cabelo está grande e natural. Para
mim, ela é linda de qualquer jeito; prefiro Cris do jeito que ela
estiver. Quando nos casamos, ela usava o cabelo mais curto que o
meu, e eu também amava aquele cabelo. Lindo como sempre.
— Como cê tá? — Ela me puxa pela mão e eu a acompanho
até a parte de trás do balcão.
— Cansado pra caramba — reclamo, soltando um suspiro
pesado e escorando os cotovelos no balcão.
— Sou uma péssima empresária, né? — ela antecipa aquilo
que eu queria dizer. — Não vou fazer mais isso, prometo! É que
depois daquela confusão toda você estava tão em alta, não
podíamos perder todos os convites para shows. — Cris nunca se
justifica, raramente se desculpa.
— O que deu em você?
Ela me encara, um pouco surpresa.
— Fiquei longe do senhor meu marido por oito meses. Você
sabe quantos dias foram?
— Duzentos e quarenta e nove dias longe de casa.
— É claro que você contou! — Ela sorri e me dá um beijinho
rápido, depois passa a mão no meu topete. — Você tem que dar um
jeito nesse cabelo. — E se afasta. — Tá com fome? Eu estava
esperando você chegar para fritar uns pastéis.
Eu amo essa mulher.
— Tem de frango?
— Lógico. — O sorriso dela se alarga, então Cris se vira, abre a
geladeira e pega uma bandeja com vários pastéis ainda não fritos.
— Foi o Pedro que fez os de frango.
— Ah… — Não sei se quero entrar nesse assunto hoje. As
mensagens e as manchetes ainda estão grudadas na minha mente
e percebo que isso me afetou mais do que costumava afetar. Acho
que preciso tomar alguma coisa e tentar lidar com isso. Olho em
volta e não encontro o bar. No lugar dele, tem um vaso enorme com
uma planta bonita que nunca vi. — Cris, onde você guardou o
uísque?
— Então… — Ela está colocando uma panela cheia de gordura
no fogo e não me encara. — É que o Pedro, você sabe… — diz,
meio sem graça.
— Ah, claro! Nossa, lógico! — Dou um tapinha na minha testa,
nervoso. É óbvio que não vai ter mais álcool nessa casa. Eu fico
feliz que não tenha. — Mas você também parou? Quero dizer, de
beber?
— Uhum. — Cris deixa a panela no fogão e me olha. — Perdeu
o sentido pra mim, sabe? Depois do que a bebida fez com o Pedro.
— Acho que vou parar também!
— Não precisa, Henrique.
Sorrio.
— Precisa, sim. Não quero atrapalhar a recuperação do cara. E
eu sei como essas coisas são. Pelo menos enquanto eu estiver aqui
em casa... vai ser uma coisa boa.
Convivo com muita gente no meio sertanejo que bebe mais do
que deveria, como se beber fosse parte da profissão. Isso arruinou a
vida e a carreira do Pedro. Somos pessoas diferentes, mas não
quero que o mesmo aconteça comigo. E outra… eu quero que ele
fique bem.
Se a saúde dele é importante para a Cris, então também é para
mim.
Meu relacionamento com a Cris sempre foi aberto; a ideia inicial
veio dela, mas eu logo percebi que era um modelo de relação que
funcionava perfeitamente para nós dois. Alguns dizem que não nos
amamos de verdade, outros que somos "sem-vergonha", ou
evoluídos. Não me considero nenhuma dessas coisas, só acho que
não faz sentido para a pessoa que eu sou, nem para a pessoa que
Cris é, que nosso relacionamento seja diferente.
Mas com o Pedro, as coisas nunca foram tão simples.
Só que, quando ele voltou para a nossa vida, Cris mudou... e eu
também. Não fazia sentido que os dois não tentassem fazer dar
certo. As regras que criamos em relação a ele, e que pensamos que
nunca mudariam, acabaram caindo por terra para que Pedro se
encaixasse novamente na vida dela. Porque o amor muda tudo. E
um amor como o dos dois, que não morre nem depois de uma
década de afastamento, transforma até a pessoa mais insensível.
Eu não seria bobo de tentar impedir que ela fosse feliz. Mais
feliz. Nunca fui essa pessoa.
Cris separa alguns pastéis na bandeja, que presumo serem os
de frango. Fico analisando o rosto da minha esposa. Ela parece
ponderar se vai ou não dizer algo. Eu sei que temos que falar sobre
Pedro e eu convivendo nesta casa, mas acho que só devemos
deixar rolar e ver se nós dois vamos nos agredir como fizemos no
passado, ou se vamos nos dar bem.
Acho que não há mais motivos para a primeira opção. Pedro
me odiou quando eu traí a Cris, quando namoramos pela primeira
vez. Eu era um adolescente muito bobo. E eu o odiei por anos,
porque ele teve a chance de amá-la e jogou a oportunidade fora.
Nós dois a magoamos muito no passado, e acho que passou da
hora de deixarmos esse passado para trás.
Estou tão crente que ela vai começar a falar sobre o Pedro que
me assusto quando toca em outro assunto.
— A Regina me mandou algumas manchetes de sites de fofoca
hoje. As fotos… — começa.
Reviro os olhos, cansado, me aproximo dela e a abraço de
lado. Cris larga os pastéis e se ajeita no meu abraço. Sinto o cheiro
do cabelo dela e sei que nada mais importa, que nada do que digam
vai mudar o que nós temos, o que eu sinto.
— Tenho certeza que sua sócia vai dar um jeito de responder
esse povo da melhor forma possível. A Regina é muito boa nisso.
Melhor do que você era. Desculpa falar, mas é a verdade!
— Eu era uma excelente relações-públicas. — Ela fala no meu
ouvido, dando um tapinha nas minhas costas. Sinto um arrepio
percorrer meu corpo.
— Até afundar a carreira do Pedro.
— Afundei a carreira do Pedro porque eu quis. — Ela me
afasta, fingindo estar chateada, e volta a mexer nos pastéis.
— Pior ainda. — Sorrio e tento me aproximar de novo. Quero
abraçá-la, quero sentir o cheiro dela. Até esqueço que estou com
fome.
— Você é terrível, Praga. — Cris retribui meu sorriso e deixa
que eu encoste meu queixo em sua cabeça e coloque meus braços,
de um jeito meio desajeitado, em volta de seu corpo. — Não vai me
deixar esquecer isso nunca.
— E você esquece alguma coisa? — Eu a giro lentamente para
que fique de frente para mim.
— Não. — Ela coloca os braços em volta da minha cintura e me
dá um beijo rápido. — Não mesmo. — Então beija meu nariz.
Depois minhas bochechas. Depois mordisca a minha orelha. E eu
sei que esses pastéis vão ficar para outra hora.
Capítulo II
Estico os meus braços sobre o lençol e não encontro ninguém.
Demoro um pouco para me levantar e, quando faço isso, vou direto
para o banheiro. Estou criando coragem de sair, de encarar Pedro e
todas as mudanças que chegaram com ele. Sei que ele está aqui.
Dá para ouvir as vozes dos dois conversando. Cris parece nervosa.
Respiro fundo e saio para o quarto, depois para o corredor.
— Cris, quanto mais a gente esconde, mais eles falam — ouço
Pedro dizer, parecendo chateado.
Engraçado, a voz dele cantando é bem mais aguda que a
minha, mas, quando fala, seu tom é quase tão grave quanto o meu.
— A resposta é não. — Eles não percebem minha presença. Os
dois estão de frente para o outro, separados pelo balcão da cozinha.
— A Bela Adormecida acordou? — Cris pergunta, assim que
me vê, e vem até mim, me dando um beijinho no rosto. O clima na
sala parece suavizar. — A última vez que fui lá no quarto te ver,
você parecia estar morto.
— Mas eu estava!
Pedro ri, do outro lado do balcão da cozinha. Sei que ele
entende, melhor do que ninguém, o que passei nesses últimos
meses. Viagens, shows, carros, ônibus, shows, aviões, shows e
pessoas, muitas pessoas. Não tive tempo para nada, nem para
viver.
— Sua cara está toda amassada! — ela comenta, passando a
mão no meu rosto, do jeito mais carinhoso que consegue. Em outras
palavras, sou agredido. Eu me afasto um pouco dela e dou a volta
no balcão. Automaticamente, pego uma caneca e me sirvo um
pouco de café. Preciso beber algo quente, preciso da cafeína para
me situar, para entender todas as mudanças que aconteceram na
minha vida, quando eu não estava vivendo.
— Não! — Pedro tenta me avisar, mas é tarde. Já tomei o café.
O gosto horrível que sinto na boca faz meus olhos se encherem
de água. Evito cuspir e engulo a bebida a muito custo.
— Meu Deus! — reclamo, horrorizado. — Alguém impede essa
mulher de fazer café, em nome de Jesus?! — Eu me viro para
Pedro.
— Eu cheguei e ela já tinha feito essa porcaria aí. — Pedro ri.
— Espera um pouquinho que estou fazendo outro.
— Vocês são dois ridículos — Cris protesta.
— Seu café é ridículo! — Despejo o resto do conteúdo da
caneca na pia e só então vejo que há uma leiteira de inox no fogão.
— Nossa, minha boca vai amargar por meses!
— Para de ser exagerado.
— Bom, serviu pra me fazer acordar! Essa bomba.
Ela tenta me dar um tapa, mas não consegue me acertar do
outro lado do balcão.
— Eu deveria bater em vocês dois!
— Em mim? O que eu fiz… dessa vez? — Pedro leva as mãos
até o peito.
— Me irritou!
— Mas o que não te irrita, Cris?
Tento segurar uma risada. Ela fecha a cara e, por alguns
segundos, sinto pena do Pedro.
O silêncio recai sobre nós.
Olho em volta, me sentindo um pouco estranho em estar ali
entre os dois. Só agora, com os cômodos iluminados pela luz do dia,
é que reparo o quanto esta casa está diferente. Eu não sabia que
tinha ficado tanto tempo fora até notar que as plantas — de um
jardim que nem existia quando viajei — cresceram. Há flores por
todos os lados.
Nas minhas lembranças, essa era casa branca, clara e sem
vida. Uma casa sem cheiro algum. Agora, sinto o aroma de café no
ar. Nas minhas lembranças, essa casa era silenciosa, agora há uma
discussão sendo travada... e risos. Quem briga e ri ao mesmo
tempo?
Mas de repente percebo que o clima ficou pesado de novo,
como estava antes de eu chegar à sala.
— Gente, aconteceu alguma coisa? — questiono.
— Sim — Pedro diz.
— Não — Cris rebate.
Conheço Cris como a palma da minha mão, sei que ela é quem
está mentindo.
— O que foi? — Dirijo-me a ele.
— A Cris não quer ir no Prêmio da Música Sertaneja comigo.
Sorrio, com um pouco de compaixão.
— Ela nunca vai, Pedro — explico, como se ele fosse um
menino de seis anos que pede um iPhone de presente de
aniversário.
— Eu falei pra ele. — Cris batuca no balcão, desconfortável. —
Fora que você também vai, né, Henrique? Eu teria que ser duas
para acompanhar os dois.
— Claro que não teria… — Pedro começa a protestar, mas eu
me adianto:
— Não sei se quero ir.
— Como não sabe? — Cris se vira para mim.
— Na verdade, eu sei: não quero ir. — Desvio do olhar
assassino que ela me lança e finjo que estou conferindo se a água
do café ferveu.
— Henrique, você vai ser premiado! Está concorrendo em
quase todas as categorias.
Olho para Pedro, buscando algum apoio, mas ele apenas pega
a leiteira com a água e vai até o coador passar o café. Eu sei o que
ele está pensando, sei que ele não entraria em uma briga dessas
com a Cris. Pedro a conhece há mais tempo do que eu. Por um
instante, fico tentando calcular quantas brigas dessas ele já perdeu.
— Henrique… — ela me chama. Ainda não tenho coragem de
encará-la. Continuo observando o fogão, agora vazio.
— Ele acabou de acordar, Cris — Pedro tenta intervir, de um
jeito pacificador. Será que esse vai ser o papel dele no nosso
relacionamento?
Não. Eu sou o pacificador.
— Henrique… — ela chama de novo, já completamente irritada.
Eu me viro e a encaro. Os olhos amadeirados dela parecem sugar a
minha alma.
— Eu tô cansado.
— Mas você vai ganhar!
— O Pedro pode pegar os prêmios pra mim.
— Não posso, não.
— Traidor!
Ele dá de ombros.
— O que está acontecendo? Você é leonino! Você gosta de
aparecer, de ser reconhecido! — Cris me olha como se não me
conhecesse. — Gente, quem sequestrou meu marido e colocou
esse bonitinho aí no lugar?
— Só me cansei dessas coisas.
— De aparecer?
— Não, disso eu gosto. — Sorrio. — Eu não gosto de ficar lá
sozinho.
— Vai com a sua mãe ou com alguma das suasirmãs.
Sei que ela evita revirar os olhos com a própria sugestão. Cris
não gosta da minha mãe. Na verdade, minha mãe não gosta da
Cris, e minha esposa não é do tipo de pessoa que faz questão de
correr atrás de ninguém. Mas eu reviro os meus olhos. Não quero ir
com elas. Quero ir com a Cris.
— Tá, vou pensar. — Vejo que Pedro terminou de passar o
café, então tiro o coador de cima da garrafa e encho uma caneca
para mim. — Depois que eu acordar.
Capítulo III
Pedro está cuidando do jardim. Observo a árvore que fica no
centro do nosso quintal. Quando compramos o terreno, Cris recusou
todos os projetos dos engenheiros que queriam derrubar esta
árvore. Sei que é especial para ela e para Pedro, mas nunca
perguntei o motivo. Não perguntei muitas coisas sobre a antiga
amizade dos dois, porque sempre que ela falava dele havia algo de
diferente no seu tom, no olhar, nos gestos. Mesmo depois de tudo o
que eles fizeram um com o outro, mesmo depois de tantos anos,
Cris ainda amava aquele garoto branco e ridículo, que fazia eu me
sentir um menino bobo de dez anos de idade. Sempre senti um
ciúme imbecil de Pedro.
Até não sentir mais. Talvez tenha sido a maturidade, talvez eu
tenha me conformado com o fato de que ela sempre o amaria.
Talvez nunca tenha sido ciúme.
— Ô, cuidado aí! — ele me adverte. Só então percebo que
estou quase pisando em uma das plantinhas.
— Desculpa.
Procuro um lugar para me sentar e só encontro o chão. Então,
me sento ali mesmo e fico observando Pedro plantar.
Ele está vestindo uma camisa branca, o que eu acho
completamente sem noção para a atividade, e percebo o pouco
contraste entre a blusa e a pele dele. Engraçado, perto de Pedro, eu
sou escuro demais. Perto de Cris, sou claro demais.
Pedro me encara. Dessa vez, realmente me nota.
— Você quer alguma coisa? — pergunta, de um jeito simples e
direto.
— Quero… — hesito. — Conversar.
— Ok. — Ele para o que está fazendo e se vira para mim,
apoiando-se na pá. A maneira como Pedro me olha me deixa
incomodado, então desvio o olhar do rosto dele. Só percebo que
cometi um erro quando minha visão se perde no corpo do namorado
de Cris. Um erro, sim, porque agora não sei como vou parar de
olhar. A camiseta branca está colada no peito, os braços estão um
pouco sujos de terra, mais embaixo…
— Diga — ele fala de um jeito um pouco rude. Será que
percebeu meu olhar?
— Na verdade… — Algo parece se prender na minha garganta,
acho que é constrangimento, então pigarreio. Não sei o que dizer a
ele. Nunca tivemos uma conversa de verdade. Eu nem o conheço.
Nunca tinha parado para pensar nisso, mas só conheço esse
homem pelo que me contaram dele, pela visão da Cris, pelas coisas
que ele fez com ela. E essa é uma visão completamente imparcial e
afetada.
— Te incomoda que eu queira que a Cris vá comigo à
premiação? — pergunta, antes que eu consiga dizer alguma coisa.
— Não. É só que… Por que você quer que ela vá?
— Como assim? — Ele se mexe, desconfortável, então larga a
pá no chão e se senta de frente para mim.
— A Cris nunca vai nessas coisas, por que você acha que ela
mudaria de ideia agora? — Estou um pouco nervoso demais. Será
que essa história está me incomodando, afinal, e eu não quero
admitir nem para mim mesmo? Será que Pedro está me
incomodando? Por que estou sentindo essa pressão estranha no
meu diafragma?
— Eu não acho. Só queria que ela fosse comigo. — A
simplicidade da resposta me desarma.
— Por quê? — insisto.
— Porque ela merece estar lá mais do que qualquer pessoa.
— Ah… — Então é isso? A culpa? — Mas, Pedro, você não
acha que… isso é só uma tentativa de reparar o dano?
— Olha… — Ele se apruma e me encara de um jeito duro.
Torço para que não comece uma discussão. Não quero brigar. —
Tudo o que nós dois somos, não só eu, veio dela. As músicas, a
inspiração, tudo. Eu já escondi coisas demais por tempo demais. Já
fingi ser quem eu não era. Não quero essa vida pra mim.
— Eu sei… mas ela não vai, Pedro. Você acha que eu não
tentei? Foram anos tentando. A Cris tem as questões dela, e eu
respeito isso.
— E quais são essas questões?
— Aí você tem que perguntar pra ela — respondo, me sentindo
tão desconfortável que quase me levanto e saio dali. Ele já deveria
saber como os comentários de ódio afetam a Cris.
— Mas ela não diz.
— Vocês se conhecem há quanto tempo? Vinte anos?
— É.
— E você ainda não percebeu quanta coisa a Cris guarda
dentro dela?
Ele não responde. Ficamos nos encarando, em silêncio. Há
algo que nos liga. Então, percebo que quero conversar com ele
sobre a Cris. Quero conhecer a história dos dois. Quero conhecer a
história dele.
Olho para os lados, porque olhar para Pedro fica difícil demais.
Quanto tempo será que ele demorou para deixar este jardim do jeito
que está? Devem ter sido meses. Meses vindo aqui, plantando,
regando, cuidando. Volto a encarar o homem à minha frente, mas
agora é ele quem está com um olhar perdido, observando as
plantas. Quantas voltas a história dele e da Cris já deu para vir parar
aqui?
— Afinal, o que aconteceu entre vocês? — questiono. Pedro
franze o cenho. — Sei a história do ponto de vista da Cris, queria
saber do seu.
— Melhor ficar com o da Cris. — Ele sorri.
— Como assim?
— No ponto de vista dela, você só pode supor as coisas que se
passaram na minha cabeça. Do meu, você vai ter certeza.
— Então você é realmente um traidor, ladrão de música?
— Bom, tecnicamente…
— Viu? — Eu o interrompo. — Todo mundo acaba se
defendendo.
Pedro dá um sorrisinho de lado.
— É porque não roubei a música. Gravei sem autorização, sim,
mas eu achava que a Cris tinha autorizado, porque meu empresário
da época mentiu pra mim. Você conhece o Alexandre Royal, não
conhece?
— Ih… aquilo ali é furada.
— Pois é… Mas, no fim das contas, não fez muita diferença eu
saber ou não. Foi um roubo que favoreceu mais a mim do que
qualquer outra pessoa. E eu era o amigo dela, eu que deveria ter
conversado com a Cris. Só que tive medo, sabe? Medo de perder a
grande chance da minha vida. A oportunidade de ser alguém, sair
daquela pobreza. Eu era um menino sem perspectiva nenhuma. Eu
não tinha nada… — Ele para um instante. Não quero que ele pare,
gosto de ver Pedro falar. — Estou me justificando, né?
— Uai, mas era o que eu queria.
— O problema é que posso falar o que for; o que eu fiz não tem
justificativa. A Cris era minha melhor amiga, foi ela que me ensinou
a maioria das coisas que eu sei. Quando meu pai abandonou a
gente, minha família não passou fome porque a família da Cris
ajudou. Eu era a última pessoa que podia magoá-la. O pior sabe o
que é, Henrique?
Aprumo as costas e solto um “hum?” para que ele continue.
— Eu sabia que ela era tão fodida da cabeça quanto eu. Sabia,
no fundo da minha mente, do impacto que qualquer coisa que eu
fizesse teria sobre ela. Eu me lembrava perfeitamente de como a
Cris tinha ficado depois que você fez aquela cagada. Mesmo assim,
na hora de pegar a música dela, gravar e ficar famoso, nada disso
entrou na balança.
Pedro fala de um jeito culpado, mas, ao mesmo tempo
tranquilo.
— É por isso que você quer tanto que ela vá, Pedro? Pra se
redimir mais um pouco? Acho que a Cris já superou…
— Não é por isso, Henrique. — Agora ele parece cansado. —
Quero que ela vá porque eu quero dividir isso com a Cris. Estou
nessa carreira há mais de dez anos, muito mais tempo do que você.
Já perdi a conta das premiações em que fui acompanhado por
mulheres que meus produtores colocavam lá para que não me
chamassem de gay. Eu nem me lembro do rosto delas. Vejo fotos
desses eventos e fico me perguntando quem eram essas mulheres,
quem eu era. Eu ganhava um prêmio, e não tinha com quem
comemorar, quem abraçar, a quem agradecer, porque quem eu
queria do meu lado não estava lá.
— Então você entende por que eu não quero ir.
— Por que nós dois não vamos juntos? — sugere com um
sorrisinho. E, por um instante, cogito a possibilidade. Imagino Pedro
e eu de mãos dadas no tapete vermelho. Quase sorrio, mas percebo
que ele não fala sério. É claro que isso nunca poderia acontecer. —
A imprensa iria amar. O que será que diriam?
— Que finalmente assumimos nosso namoro. — Dou uma
risada discreta. Já Pedro solta uma gargalhada.
— Mas eles já dizem isso.
Desde que eu e a Cris voltamos para a vida do Pedro, é o que a
mídia mais gosta de presumir. Isso me irrita, porque é sempre
assim. Sempre que eu contava a alguém sobre ela, as pessoas
duvidavam que estávamos mesmo juntos.
Dois anos atrás, quando o primeiro comentário surgiu, assim
que Cris e Regina foram contratadas para tentar salvar a carreira do
Pedro — coisa que elas não fizeram —, eu pensei que as pessoas
estivessem ficando doidas. Quando a história da música roubada
veio à tona, logo em seguida, as pessoas se esforçaram muito para
desvendar a linha do tempo das nossas histórias e onde elas se
interligavam. E aí, porque para elas era impossível imaginar dois
homens famosos apaixonados por uma mulher negra e gorda,
deduziram que a Cris era a fachada do meu relacionamento com
Pedro.
Meu casamento, todas as brigas, as confidências, as horas que
passamos maratonando filmes de Natal, a quantidade de vezes que
bebi aquele café horroroso mentindo para mim mesmo e dizendo
que era bom... tudo isso foi lido como fachada para um
relacionamento gay. Eu nem sou gay, como vou ter um
relacionamento gay?
Acho que prefiro ser taxado como “corno”, porque rende boas
músicas e teorias engraçadas. Antes dessa história com Pedro, as
manchetes tendenciosas me acusavam de ser o infiel — o que
também não era verdade. Perdi a conta da quantidade de músicas
que fizemos zoando esse rótulo.
Penso, não pela primeira vez, que seria muito melhor se as
pessoas soubessem a verdade.
— É por isso que a Cris nunca vai, não é? — Pedro pergunta,
depois de um tempo. — Por causa dos comentários, da mídia, dos
fãs. Ela diz que não liga, mas a gente sabe que é mentira.
— Você sabe como ela é — é tudo o que digo.
Eu me levanto. Acho que essa história me deixou triste. Pensar
nas coisas que nós três temos que passar, nos preconceitos que
enfrentamos, cada um do seu modo, me deixa triste. Pensar nas
coisas que nós temos que esconder me destrói.
Antes de entrar na casa, dou mais uma olhada no jardim de
Pedro.
— Como foi que você convenceu a Cris a te deixar plantar
aqui?
Ele dá de ombros.
— Eu só fui plantando.
Capítulo IV
Cris está lendo no Kindle. Concentrada, ela nem nota a minha
presença quando entro no quarto e me deito ao lado dela.
— Eu sei que você vai brigar comigo por interromper sua
leitura, mas precisamos conversar.
Ela me olha de canto de olho e coloca o aparelho na mesinha
de cabeceira.
— Precisamos mesmo. Pra começar, não existe a menor
possibilidade de você faltar à premiação. — Cris me encara. — E
não estou falando isso como sua esposa, mas como sua chefe.
Você tem uma agenda, Henrique.
— Hum… — Reviro os olhos.
— Esse é o grande momento da sua carreira, e ele não vai
durar pra sempre.
— Ah… — Suspiro, em reclamação.
— Para com isso, Praga. Eu sei que você está cansado. Mas
você quis tanto isso, a gente trabalhou tanto para chegar aqui, não
vai se sabotar uma hora dessas. Você não é assim.
— Ok. Eu vou nessa merda. Mas você disse exatamente o
grande ponto aqui: nós trabalhamos! Juntos! — Não sei se é o
desejo quase inocente do Pedro em querer que a Cris vá com ele à
premiação que despertou algo em mim, ou se é o meu cansaço, só
sei que estou mais frustrado do que nunca por não ter minha mulher
do meu lado nos momentos mais importantes da minha carreira. —
Eu quero que você vá, Cris.
— Ih… Vai dar uma de Pedro agora?
— Não. Não vou. Eu só queria que a senhora minha esposa
estivesse do meu lado quando eu recebesse um prêmio. Ou que a
senhora compositora das minhas músicas estivesse no palco
comigo, pegando o prêmio que é dela.
— Eu sou uma mulher de bastidores.
— Não, você não é. — Escoro minhas costas na cabeceira da
cama. — Você é tudo, menos uma mulher de bastidores.
Ela revira os olhos, mas sorri.
— Não adianta ficar me bajulando que você não vai conseguir
me convencer.
— Não tô te bajulando, tô falando normal.
— Uhum, sei. — Ela me olha de um jeito tão engraçado que
não consigo mais ficar sério. Eu nunca consigo ficar chateado por
muito tempo quando estou com ela. — Lá vem você com essa cara
de bobo!
— Minha cara é de bobo quando estou perto de você.
— Aff, Henrique.
— Que foi? Não posso ser brega? — Eu a abraço de lado e ela
tenta se soltar.
— Não. Não pode. — Cris se debate, presa em meus braços,
rindo. — Para com isso!
— Eu tava com saudade, uai.
— E vai ficar com saudade por quanto tempo? — Ela para de
tentar escapar e se ajeita no meu corpo.
— Não sei se tem como não sentir saudade de você, Cris.
— Brega! — Ela me olha e faz questão de revirar os olhos.
— Que bom que você ama coisa brega…
— Pelo amor de Deus, esses homens que eu arrumo —
resmunga.
Então quer dizer que o Pedro também é brega? Isso não é
exatamente uma novidade para mim. As músicas dele conseguem
ser mais dramáticas e melosas que as minhas. Sorrio imaginando o
tipo de breguice que ele fala para a Cris.
— Que foi? — Ela se afasta um pouco para olhar para o meu
rosto.
— Eu estava pensando no Pedro — admito. Cris me solta e se
empertiga, soltando um muxoxo. — Ele não costuma dormir aqui?
— pergunto isso porque não sei como começar o assunto.
— Quase nunca — ela responde, sem dar muita importância.
— Uai?
— Ele não mora aqui, Henrique.
— Mas vive aqui, né? Tem até um quarto pra ele.
— Ai. — Ela curva os ombros, como se tivesse sido derrotada,
e me encara. — Ele encheu a minha casa de flores. De flores!!!
— Você reclama como se achasse ruim. Mas tá estampado na
sua cara o quanto está feliz.
Ela solta um muxoxo.
— Estou feliz porque você está aqui.
— Vamos fingir que isso é verdade e que você não está
mentindo para si mesma porque tem medo de admitir o quanto
perdoar o Pedro te fez bem.
— Virou Edward Cullen agora? Tá lendo mentes?
— Não. O Brilhoso não lia a mente da Bella. Eu leio a sua,
porque você é transparente, Cris. Porque eu te conheço e sei que
esse brilho no olhar aí não existia antes.
— E você não se incomoda?
— Pelo Pedro? Por vocês dois estarem juntos?
— É. Ok, sei que a gente conversou um milhão e meio de vezes
sobre isso. Mas, sei lá, agora com vocês dois convivendo, ou
melhor, com nós três convivendo, talvez as coisas mudem entre
nós. O Pedro está mudando tudo, Henrique, ele plantou coisas aqui.
— Você só está com medo, Cris.
— É que… é o Pedro…
— Por isso mesmo. Você nunca foi e nunca seria capaz de
amar só um de nós. E eu nunca faria você escolher.
— Não é isso. É que eu e o Pedro nos magoamos tanto. Quem
garante que não vai acontecer de novo?
— É só você registrar as suas músicas antes de mostrar pra
ele.
Ela ri.
— Nossa história é um desastre! — Cris se apoia de novo no
meu peito, ainda sorrindo, e eu desejo que o tempo pare um
pouquinho para que eu viva mais esse sorriso dela.
— Digno de novela mexicana, só que com um galã bissexual,
uma mocinha meio vingativa…
— Meio?
— Completamente vingativa, parece até escorpiana.
— E o Pedro… — ela continua.
— É, e o hétero branco para preencher a cota.
Cris solta uma risada tão alta que faz meu coração dar um pulo.
E fica lá rindo, sem me explicar a razão de tanta graça. Penso em
perguntar, mas a risada é tão gostosa que não consigo interrompê-
la. Quando Cris consegue parar de rir, a expressão dela se fecha de
repente.
— Henrique — ela me chama com cuidado, voltando a se
afastar de mim. Quase a puxo de volta. — Eu tenho medo.
— Do quê?
— De tudo! De ser magoada de novo, do que as pessoas vão
dizer. Você tem razão, eu estou feliz e tenho medo de perder isso.
Sempre vivi com tanto peso dentro de mim que, agora, sem ele, me
sinto leve demais. Tenho medo de voar e cair.
— Eu também tenho medo, Cris. De tudo. Tenho medo de isso
aqui dar errado, tenho medo de dar certo. Mas a gente precisa
aceitar essa felicidade, porque nós merecemos.
— É por isso que eu amo você, sabia? — Ela volta a deitar a
cabeça no meu peito e eu a aperto forte. Dessa vez, não vou deixar
que ela se afaste nem um pouco.
— Ah, por isso? Pensei que era por causa da minha beleza ou
da minha cara de bobo.
Ela dá um tapinha na minha barriga.
— Palhaço.
— Você me ama demais.
— Eu amo mesmo, Praga.
— Tá, mas agora a gente precisa conversar sobre o Pedro.
— Mas a gente já conversou um milhão de vezes, pelo amor de
Deus, homem! Vamos só ver no que dá. Se der tudo errado, pelo
menos o mais importante eu e ele já fizemos: nos perdoamos.
— Perdoar é diferente de beijar a pessoa. — Finjo indignação.
Ela revira os olhos. — E você, além de beijar, montou um quarto
para ele. Um quarto.
— Tá achando ruim?
— Não. Mas quero saber como vamos lidar com isso daqui pra
frente. Você já contou para a sua mãe sobre seu namoro?
— Não é um namoro.
— Ai, Cris, pelo amor de Deus! Assume logo.
— O Pedro é meu amigo e a gente se beija de vez em quando.
Passo as mãos pelo rosto.
— E você contou para as pessoas que anda beijando o seu
amigo?
— Não, mas todo mundo sabe — ela diz, como se não tivesse
tanta importância assim.
— A gente sempre combinou que não esconderia nada de
ninguém. Nosso relacionamento é nosso, mas eu não quero ter que
fingir que ele não existe.
— Não escondemos nosso relacionamento de ninguém. Nosso
casamento é de conhecimento público!
— Mas o nosso relacionamento envolve outra pessoa agora.
Cris fica me olhando por algum tempo com seus olhos claros, e
eu quase deixo essa conversa para amanhã. No entanto, sei que
precisamos falar sobre isso. Antes, nosso relacionamento aberto
consistia apenas em ficar com outras pessoas, sem compromisso.
Mas Pedro mudou tudo. Ela franze o cenho, estudando meu rosto,
tentando entender o que eu acabo de dizer.
— Espera… Você está colocando os dois relacionamentos
como um só?
— Dois? Olha bem para a nossa casa. Olha as paredes, as
plantas, os quadros, as flores. Olha o barzinho que a gente tinha e
não tem mais. Você mudou tudo à nossa volta para receber o Pedro
aqui. Para de mentir pra você mesma separando o Pedro de nós,
Cris.
Ela suspira.
— Eu tenho medo de ele estragar a nossa vida.
— O histórico dele não ajuda muito, mas, sinceramente, acho
que o Pedro veio para melhorar as coisas. Essa casa é outra, você
está feliz… é nítido.
— Mas e você?
Acho que essa é a grande pergunta. E eu? Como eu me sinto
com a presença de Pedro aqui? Hoje cedo, quando nós dois
conversamos, senti algo estranho. Não sei bem se estou pronto
para ter esse homem tão… perto. Os pelos dos meus braços se
arrepiam quando penso em me aproximar ainda mais dele.
— Eu acho que… preciso conhecer esse boy de verdade. Tirar
as minhas conclusões, aprender a conviver com ele. Preciso saber
quem o Pedro é, além do mal ou do bem que ele faz a você —
confesso, mais para mim do que para ela.
— Bom, isso aí é fácil de resolver. — O sorriso de Cris não
mente. Sei que um milhão de ideias diferentes voam pela sua
cabeça. Era sempre assim quando nos sentávamos no chão do
estúdio improvisado que a gente tinha no nosso primeiro
apartamento, se é que posso chamar aquilo de apartamento. Os
olhos dela sempre brilhavam de um jeito diferente quando ela
aparecia com alguma ideia nova. Não vejo esse olhar há muito
tempo, desde que Cris deixou de fazer músicas para gerenciar
carreiras. Gosto desse olhar, desse sorriso. Gosto dessa Cris.
— Então vamos resolver!
Capítulo V
O som das vozes exaltadas me acorda. Pedro e Cris estão
discutindo mais feio hoje do que ontem.
— Nós não vamos deixar de ir na ceia de Natal por causa disso!
— A voz de Pedro está quase tão aguda quanto nos CDs dele. A
coisa está feia mesmo.
— Minha família não tem senso nenhum… Vai estar cheio de
bebida naquela porcaria.
— Para de usar isso como desculpa pra fugir da sua família!
Eita.
— Pedro, pelo amor de Deus! — Quando Cris fala desse jeito
pausado…
— O quê? Vai me esconder dentro de uma caixa agora? Quer
me proteger do mundo ou não quer que o mundo saiba sobre mim?
Porque o mundo inteiro já sabe!
— Não tem nada a ver o c…
— Olha só, Cris. — A voz dele suaviza e fica tão baixa que
quase não ouço. — Eu preciso viver fora daqui. Preciso aprender a
lidar com meu vício em ambientes sociais. E as pessoas precisam
aprender a lidar com o nosso relacionamento. Não dá pra proteger a
gente desse mundo, Cris, nem correr dele. Ele sempre nos alcança.
Ela não fala nada. Fico de ouvidos apurados, tentando escutar
qualquer última rebatida da parte dela, mas Cris fica em silêncio. Eu
me sinto a minha avó Andressina, ouvindo as brigas dos meus pais
atrás da porta.
— Ai, credo! — sussurro, fazendo um gesto esbaforido com as
mãos. Desde quando me tornei futriqueiro? Eu me levanto depressa
e vou até o banheiro. Olho no espelho e vejo o rosto de uma pessoa
futriqueira. Chega uma idade em que a gente começa a admitir
nossos defeitos. Quando eu tinha lá meus vinte anos, mentia para
mim mesmo dizendo que eu era curioso. Agora estou aqui me
arrumando depressa, porque quero assuntar e descobrir o motivo da
briga.
Sempre me achei parecido com meu pai, mas daí a ser igual a
minha avó…
Vou até a sala e vejo Pedro deitado no colo da Cris, que está
sentada no chão em frente à TV. Ela está fazendo cafuné no cabelo
dele, como se não estivessem brigando há cinco minutos. Nas raras
vezes em que brigamos, Cris ia para um canto e eu para o outro, até
que um de nós se cansava daquela palhaçada e tentava resolver o
problema.
Eu me pego dando um sorriso bobo ao comparar os dois
relacionamentos e ver que eles parecem tão certos, cada um à sua
maneira. Eu e Pedro somos diferentes — pelo menos parecemos
ser —, não tem como nossa relação com a Cris ser igual.
Sem chamar a atenção para mim, vou até o balcão da cozinha.
Quase me sirvo com o café que está na garrafa térmica, mas a
lembrança de ontem faz meu estômago doer. Então, antes de me
servir, pergunto:
— Posso beber esse café aqui ou é uma bomba?
— Seu palhaço! — Cris grita lá da sala. — Meu café é ótimo,
vocês dois que não sabem lidar com a força dele.
— Ah tá… — respondo.
— Pode beber, Henrique. Eu que fiz — Pedro diz, antes de
levar um tapa no braço. — Ai, mulher, isso dói.
Eu me sirvo e vou até eles.
— Na hora de falar mal do meu café fala, mas comprar o pó
que é bom, não compra. Nenhum dos dois, seus folgados.
— Eu faço tudo dentro dessa casa! — Pedro se defende.
— E eu nem aqui estava! — Também me defendo.
— Dois folgados! — protesta e se levanta de repente, deixando
a cabeça de Pedro bater no chão.
— Ai.
— Eu tenho trabalho para vocês — ela começa.
— Eu tô de férias! — O que essa mulher está aprontando dessa
vez?
— Henrique… — Hoje, Cris está sem paciência, porque fala
com os dentes quase trincados. — O senhor tem uma apresentação
no Prêmio da Música…
— Ah, não! — Eu me jogo no sofá.
— Você é o maior nome da noite, lindo! Achou mesmo que eles
não iam te convidar para uma apresentação?
Não achei. No entanto, não respondo. Olho para Pedro, deitado
no chão, desolado.
— Você também, né? Pedro? — pergunto para ele.
— Inventaram um tal de Artista da Década pra mim. Gente,
artista da década é a Marília Mendonça!
Não posso discordar.
— Meu filho, você é homem e branco, é óbvio que eles iam
escolher você. — Sem paciência e ácida. Do jeito que eu gosto.
Tomo um gole do meu café olhando para minha esposa. — Eu vou
lá para aquele estúdio começar a montar os mash-ups que vocês
vão apresentar. — Ela coloca o dedo no meio da testa. — Acho bom
vocês virem atrás de mim.
— Vou só tomar meu café aqui…
— Que seja! — Ela sai andando pela porta que dá para o jardim
da parte de trás da casa. Mas para e se vira para mim. — Ah, a ceia
de Natal vai ser na casa da tia Sandra.
— Vou preparar um repertório bem caipira para tocar! — digo
para provocá-la.
— Desisto de vocês dois! — Cris sai andando porta afora.
— Você brinca com fogo, hein, Henrique? — Pedro começa a
se levantar, passando a mão na parte de trás da cabeça.
— Eu? — Bebo meu café. — Você que estava enfrentando a
fera.
Ele solta uma risada.
— Cheguei aqui hoje cedo e ela já estava acordada, ligada no
duzentos e vinte. Eu sabia que ela estava armando alguma coisa.
— É sempre assim? — pergunto para ele, enquanto levo minha
caneca até a pia da cozinha.
— O quê? — Pedro se espreguiça. — Ela brava logo cedo?
— Não. As brigas. — Que ela é brava o tempo inteiro eu já sei,
quase digo.
— Ih, é bem pior.
Volto para a sala e paro na frente dele, o encarando com o
cenho franzido.
— Ah é?
— Mas é bom, sabe? Eu e a Cris chegamos à conclusão de
que oitenta por cento dos nossos problemas teriam sido resolvidos
se a gente tivesse sentado e conversado. Então, definimos que
vamos sentar e conversar sempre. O problema é que… a gente
nunca aprendeu a conversar direito. Ela é teimosa que nem uma
mula, eu também. Ela costuma guardar vários pequenos incômodos
dentro dela e soltar tudo de uma vez. Eu sou um cara calado, mas
quando começo a falar não paro mais. Aí já viu, né?
Sorrio, achando fofo ver Pedro falando tanto. Ele para um
pouco e fica me olhando.
— Já vocês dois não brigam muito, né? — continua. — Acho
bonitinha a forma como vocês… — Ele pensa um instante, depois
faz um movimento com as duas mãos, como se estivesse montando
um cubo mágico. — Como vocês se encaixam.
— É que eu sou muito pacífico.
— É engraçado como nós somos diferentes. — Ele parece feliz
ao dizer isso. — Nunca imaginei que conseguiria conversar com
você sobre a Cris sem querer te dar um soco na cara. — Pedro
suspira um instante, acho que está se preparando para jogar uma
bomba em mim. — Sabe, Henrique, sempre odiei você, porque você
era tudo o que eu não era. Eu tinha uma caixa dentro de mim onde
jogava todos os meus sentimentos, tudo o que eu queria mostrar,
tudo o que eu precisava esconder, as coisas que eu não entendia.
Você não, você parecia transbordar, sempre sorrindo, sempre com
pressa. Você costumava acelerar o ritmo das músicas... aliás, faz
isso até hoje. Eu sempre pegava música animada e transformava
em fossa.
Dou uma risada, para tentar disfarçar um pouco o olhar
admirado que com certeza estou lançando na direção dele. Esse
homem está conseguindo a raridade de me desconcertar.
— É sério, pode reparar.
— Então você e a Cris são perfeitos. Ô mulher dramática… —
digo, quase dando um tapinha nas costas dele, como os bons
camaradas que nós nem somos. Ele se aproxima de mim.
— Sempre achei que você era muito melhor pra ela do que eu.
Acho que por isso que eu tinha tanta raiva de você — admite em
uma voz grave. Acho que deveria me afastar dele, mas não me
afasto.
— No fim das contas, nós dois estamos certos.
— É… — Pedro se aproxima um pouco mais. O que ele está
fazendo me olhando desse jeito? — Fico feliz por isso.
Abro um sorriso honesto, mas sem graça, e me afasto dele,
saindo pelo jardim em direção ao estúdio.
Por um momento, me sinto um adolescente inseguro, como
quando queria tanto beijar aquela menina de pele escura e olhos
claros, que quase caí do banco da igreja ao vê-la chegar com
aquele vestido amarelo. Ou antes disso, quando a vi entrar pelo
portão da escola, segurando um violão e falando sobre Guns n’
Roses. Ou depois, quando nos beijamos no ensaio da banda da
igreja ou quando ela passou a mão no meu cabelo, como faz até
hoje, e me disse que eu precisava descobrir quem eu era.
E eu me descobri… nela.
Não sei por que me lembrei desse sentimento. É como se eu
estivesse sentindo o cheiro de coco no cabelo dela agora, aqui. Ou
o sabor do pudim que o pai da Cris me serviu quando me sentei
pela primeira vez no sofá da casa dela, tremendo feito um
condenado.
Ao mesmo tempo em que é parecido, o sentimento é diferente.
Mas por que estou sentindo isso logo agora?
Pedro me segue até o estúdio, falando alguma coisa que não
ouço. Não consigo prestar atenção em nada, enquanto minha
memória me prega uma peça dessas. Eu me sinto um adolescente
de novo, vendo Cris e sua amiga Regina sentadas no coreto da
praça, ao lado dele.
— Eu te achei bonito! — solto sem pensar.
A porta do estúdio está fechada, então eu paro na entrada.
Pedro para do meu lado.
— O quê? — Ele se vira para mim como se esperasse uma
resposta.
— A primeira vez que te vi, bem que eu te notei… eu te achei
bonito.
— Mas eu era mesmo.
Mordo a língua, porque quase digo que ele continua bonito, até
mais hoje do que naquela época.
— Só muito branco, né? — disfarço com uma verdade inegável.
Ele sorri e começa a dizer alguma coisa, mas Cris abre a porta.
— Já estava indo lá chamar vocês. — Ela olha de Pedro para
mim e dá um sorrisinho. Não sei exatamente o que essa mulher está
armando, mas está dando certo.
Entramos. O estúdio tem cheiro forte de madeira e não se
parece nada com o estúdio amador que a Cris disse que iria
construir no nosso quintal. Eu ainda não tinha visto esse cômodo,
ele é novo. O plano dela era voltar a menor quantidade de vezes
possível para Goiânia, como se a cidade fosse culpada pelas coisas
que deram errado. Mas a verdade é que Cris é a culpada pelo que
aconteceu lá, foi ela que escolheu destruir a carreira do Pedro, em
vez de ajudá-lo a se reerguer. Foi ela quem colocou a mágoa e a
vingança em primeiro lugar, o que quase nos destruiu também.
Eu sempre soube que a Cris queria se vingar do Pedro, pelo
roubo da música. Quando ela e a Regina começaram a cuidar da
carreira dele, eu tinha a esperança de que minha esposa acabasse
desistindo da ideia. Não desistiu. Quando ela vazou na imprensa os
documentos que provavam a corrupção dos empresários de Pedro,
a gota que transbordou o mar de problemas que ele já tinha, nós
brigamos feio pela primeira e única vez. Eu pensei que a Cris daria
um jeito de resolver o problema que ela havia criado, mas não. No
fim das contas, o que Pedro precisava era ficar longe daquele
mundo.
Acho que foi por isso que a Cris quis tanto fazer esse estúdio
aqui, depois que ela e o Pedro se acertaram, para trazer a melhor
parte daquele mundo para cá, para perto dele. Talvez seja esse o
jeito dela de consertar as coisas.
— Henrique? — ele me chama, encostando a mão no meu
ombro. — Tá dormindo aí? Quer um café?
— Ah… não.
— Tem certeza? — A mão dele continua sobre o meu ombro,
pousada de um jeito leve.
— Só viajei aqui na beleza desse lugar!
— Ficou mesmo lindo. Vem cá. — Pedro me puxa. Eu nem vejo
quando ele desce a mão pelo meu braço e enrosca os dedos nos
meus. Quando dou por mim, já estou sendo puxado até a mesa de
som, que não é tão completa quanto a de um estúdio profissional,
mas ainda assim é enorme. — Incrível, né? — Os olhos dele brilham
ao olhar para todos aqueles controles e botões.
— Demais! — Sorrio.
— Bom, meninos! — Cris se coloca entre nós dois. — Vamos
fazer esses arranjos?
— A gente tem escolha? — questiono.
— Não.
Capítulo VI
Demoramos um dia inteiro só para definir quais músicas
entrariam no mash-up. No meu caso, estava até fácil. Minha carreira
só foi ter algum sucesso nos últimos anos. Já Pedro precisou
escolher entre as músicas que gosta e aquelas que tocaram mais.
Ele escolheu as que mais gosta. Cris não se opôs.
A música roubada não entrou no setlist.
Minha esposa se senta do meu lado no sofá. Ela está com um
olhar perdido, cansado. Não acho que é pelo dia que tivemos. Algo
está errado.
— O que foi?
— Ah… — Ela tenta se ajeitar no meu corpo. Passo o braço em
volta dos ombros dela e a puxo mais para perto. — É que eu tenho
que ir pra Goiânia.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa?
— É que esse prêmio reacendeu as conversas sobre a gente,
temos que evitar qualquer polêmica.
Estalo a língua.
— Cris… — Respiro bem fundo e a afasto um pouco para que
ela me olhe. — Eu quero que as pessoas saibam a verdade.
— Como é?
— Eu não sou gay e não sou corno. Quero que as pessoas
saibam sobre a gente.
— E o que isso vai mudar? As pessoas vão continuar achando
o que quiserem achar.
— Mas nós não vamos estar escondendo nada de ninguém. Tô
muito velho pra ficar dentro do armário.
— Ok…
— Como assim ok?
Pedro chega todo animado na sala.
— Avisei minha mãe que vou chegar mais tarde! — Mas então
ele fecha a cara quando nota o clima estranho. Fica nos encarando,
ponderando se deve perguntar algo. — Tá tudo bem?
— Tá, sim. — Cris se levanta e segue até ele. — Eu vou ligar
pra Regina e comprar minhas passagens. Você faz o jantar, Pedro?
— pergunta, colocando a mão gentilmente sobre o peito dele, que
fica olhando para mim com uma expressão de “o que está
acontecendo?”.
— Faço, uai — responde, meio atordoado.
— Tudo bem. Me chama quando estiver pronto. — Ela dá um
beijinho no rosto dele e sai, sem me explicar o que quis dizer com
aquele “ok”.
— Eu sempre cozinho nessa casa — Pedro resmunga, sorrindo
para mim.
— Amém! Alguém precisa avisar a Cris que ela não tem talento
nenhum para cozinhar.
— Urgentemente — ele completa.
Eu o sigo até a cozinha. Esse cômodo foi uma polêmica quando
construímos a casa. Eu queria uma cozinha fechada. A Cris queria
conceito aberto. É lógico que ela venceu.
— E a sua mãe? O que está achando de você com a Cris? —
Eu me arrependo assim que faço a pergunta. Ele olha para mim de
um jeito desconfiado e abre a boca para falar algo, porém desiste.
— Minha mãe sempre gostou da Cris. — É a única coisa que
diz por muito tempo. Não sei se ele se distrai pegando as coisas
para o jantar ou se está desconfortável demais com a pergunta, mas
demora a completar. — Você deve achar estranho, né? Um homem
da minha idade ficar prestando conta das coisas que faz?
— Não acho.
Ele me lança um olhar cético.
— Não acho mesmo! — reforço, colocando os cotovelos sobre
o balcão e inclinando um pouco o meu corpo para a frente. —
Entendo que ela deve ficar preocupada depois… — Eu me
arrependo na mesma hora. — Desculpa...
— Não tem problema, Henrique. O que aconteceu, aconteceu.
E eu não tenho vergonha, pelo contrário, fico feliz por ter tido a
oportunidade de cuidar de mim. Ficar aqueles seis meses na
reabilitação foi a melhor coisa que me aconteceu, depois da Cris,
claro. E, sim. — Ele para à minha frente e escora os cotovelos sobre
o balcão, me encarando. — Eu me arrependo por ter sumido, bebido
até quase morrer e ter ido parar no hospital. É por isso mesmo que
minha mãe sabe sempre onde estou. Então não, não precisa se
desculpar por falar sobre isso. — A honestidade de Pedro me deixa
sem palavras. Ele estica o braço sobre o balcão e alcança a minha
mão. — Eu me arrependo por ter feito as pessoas sofrerem, por ter
me feito sofrer, mas foi o caminho que me trouxe até aqui e sou
grato por ele.
Ficamos em silêncio, nos encarando, porque eu não sei o que
dizer para esse homem. Quero dizer que estou feliz que ele esteja
aqui, que também sou grato, mas não consigo. As palavras se
perdem dentro de mim.
Depois de um tempo em um silêncio tão profundo que devia dar
para ouvir as batidas do meu coração acelerado, Pedro solta a
minha mão. Eu quase o puxo de volta.
Quase.
Ele se afasta e mexe nos armários. Pedro sabe perfeitamente
onde fica tudo, coisa que eu mesmo não sei. Fico observando
enquanto ele prepara a comida. Às vezes cantarola “Por Um
Minuto”, do Bruno e Marrone, às vezes batuca com os talheres sem
perceber. Depois de algum tempo, acho que ele esquece
completamente que estou aqui.
— Quer ajuda com alguma coisa? — questiono e o vejo voltar a
se dar conta da minha presença. Noto como fica desconfortável.
— Não precisa. — Sorri.
— Você se incomoda? Quero dizer: comigo aqui?
— Ah, não, você não está me atrapalhando — responde,
fazendo um gesto despreocupado com a mão.
— Não. Estou falando sobre eu estar aqui, de volta, em casa.
— Ah… — Ele alonga a vogal. Porém, não responde. Pedro
começa a cortar as folhas de couve com o cenho franzido. — Não
— diz, por fim, e me olha. — Não me incomodo. Você se incomoda
comigo aqui?
— Não, eu acho. Deveria?
— Da minha parte, não. Confesso que, no começo, eu tinha
dificuldade em entender a dinâmica do relacionamento de vocês
dois, mas hoje não tenho mais.
— Agora é o relacionamento de nós três…
Estudo a reação dele. Pedro fica me olhando, com a mesma
testa franzida de antes. Então sorri.
— É. — E abre ainda mais o sorriso e volta a cortar a couve. —
Nós três.
Sorrio também, antes de me perder tentando encaixar a minha
história na história deles. A verdade é que eu sempre estive aqui,
mesmo quando estava longe. Estive aqui antes, quando insisti para
que Cris fosse atrás de Pedro, quando todas as coisas na vida dele
se desencaixaram. E ela foi. Demorou para que eles se
entendessem, para que se perdoassem, demorou para que ele
aceitasse que precisava cuidar de si e para que ela aceitasse que
tudo bem querer cuidar dele, desde que cuidasse de si mesma
primeiro.
— E aí, tá acabando? — Cris chega à sala, toda sorridente. Às
vezes até eu tenho dificuldade em acompanhar as alterações de
humor dela, mas já me acostumei.
— Uhum. — Pedro nem olha para ela, concentrado nas
panelas.
— E Regina, como está? — pergunto, assim que ela para do
meu lado.
— Puta com o mundo.
— Ah, normal, né?
— Sempre. — Ela batuca no balcão. — E aí? O que nós vamos
fazer?
Gente, o que aconteceu com ela?
— Cris, o que…
— Uai, a gente tem que terminar Doctor Who… — Pedro se vira
e a encara, apontando a faca, com pedaços de couve agarrados na
lâmina, na nossa direção.
— Ah, não… De novo com isso? — reclamo.
— Espera… Você está reclamando de Doctor Who? — Ele me
olha, indignado, e aponta a faca para mim, depois para Cris. — Cris,
como você foi capaz de se casar com uma pessoa que reclama de
Doctor Who?
— Eu também erro. — Ela sorri para mim.
— Olha a ousadia desse garoto, nem bem chegou e já me
critica?
— Pensei que você fosse uma pessoa melhor. — Ele está
inconformado.
— Eu só não tenho paciência, é muito longo. São muitas
temporadas — eu me defendo.
— E do que esse menino gosta, Cris? — Pedro se vira e
desliga o fogo de uma das panelas.
— Grey's Anatomy — ela responde devagar, falando cada
sílaba pausadamente.
— Ah, não! Cê tá de brincadeira, né? Essa série tem umas
trezentas e vinte temporadas. — Pedro protesta, voltando a me
encarar. Ele coloca a faca sobre o balcão, pega as couves cortadas
e as joga na panela. — Cris, a gente precisa dar um jeito nisso!
— Você acha que eu não tentei?
— Ah, não, peraí. — Ele limpa as mãos em um pano de prato,
dá a volta no balcão e me puxa pelas mãos. — Você vai ver agora!
— Pedro praticamente me arrasta até a sala e me joga no sofá. Cris
nos segue e pega o controle, disposta a colocar a série e embarcar
nessa brincadeira.
— Eu já comecei a ver o primeiro episódio, mas é muito trash.
Tudo bem, gente, eu respeito o amor de vocês… — Ainda tento
escapar, mas acho que é tarde. Enquanto falo, Pedro volta para a
cozinha.
— Não deixa ele sair daí, Cris!
— Esse menino é sempre assim, Cristiellen? — pergunto para
ela.
— Não. — Ela está rindo da minha cara. — Doctor Who deixa o
Pedro um pouco…
— Fora de si?
— Eu ouvi!
— Vamos jantar primeiro, depois vemos a série — sugiro.
— Pois nós vamos jantar e assistir a série! — Ouço o barulho
dos talheres sendo organizados em um prato e estico o pescoço
para espiar o que Pedro está fazendo.
— Mas a Cris odeia que a gente coma na sala… — tento.
— Odeio nada!
Ela odeia, sim! Eu a olho, sem acreditar.
— Isso é alguma armação de vocês?
Cris responde com um sorriso.
— Não era bem esse o meu plano, mas… dá pro gasto.
— Que…
Pedro me entrega um prato, com um sorrisinho de vitória, e se
senta do meu lado. Eu o analiso. De perto, ele parece ser ainda
mais branco. Ou talvez seja o cabelo escuro demais que dá
contraste à pele. Ou talvez… Então, ele se vira para mim e me
encara. Os olhos dele são tão escuros que eu poderia ficar perdido
neles. Sinto meu coração acelerar demais e desvio o olhar para a
TV.
— Ei… Não vai pegar pra mim, não? — Cris protesta e se
levanta. — Nossa, um cavalheiro desses, bicho!
— Gente, vamos fazer assim: eu arrumo a mesa lá de fora, a
gente se senta perto da piscina e jantamos. Depois, a gente volta
pra cá e assiste essa porc… série ótima.
Pedro estreita os olhos e me encara, daquele jeito estranho que
ele faz desde que cheguei aqui. Uma vez, a Cris me disse que olhar
nos olhos de Pedro era como ver o céu em uma noite escura.
Finalmente entendi o que ela quis dizer. Quando eu era
adolescente, costumava ter problemas para dormir. Eu pensava
demais. Então, sempre que ficava acordado, eu ia para a varanda e
ficava olhando o céu. A maioria das pessoas gosta de ver as
estrelas ou a lua, mas eu não. Sempre gostei de olhar para a
escuridão, de me perder procurando nuances no céu preto.
Assim como estou perdido agora no olhar desse homem.
Pedro corta o contato visual e se levanta. Minhas mãos estão
suando. Quase deixo o prato cair quando ele para na minha frente.
— Então, vamos?
Eu me levanto e o sigo, deixando uma distância segura entre
nós para que ele não ouça a bagunça que fez dentro de mim.
E, mesmo depois de termos terminado de jantar, ainda sinto
que meu coração está batendo forte demais.
Capítulo VII
No dia seguinte, Cris viaja para Goiânia. Eu me ofereço para ir
também, mas ela não aceita, diz que prefere ir sozinha. Então fico
em casa.
Pensei que, sem Cris aqui, Pedro não apareceria.
Mas pensei errado.
Acordo todos os dias com o cheiro do café. Vejo Pedro
cuidando do jardim, sempre com uma camisa branca, mas não o
atrapalho. É muito fácil me acostumar com ele aqui, como se sua
presença fosse natural. Já é parte da rotina. Nós dois conversamos
pouco; Pedro não é um sujeito de muitas palavras. Mas, quando
abre a boca, fala rápido, solta tudo de uma vez.
Ele passa o dia inteiro aqui; chega cedo e vai cuidar do jardim,
depois toma um banho e some para o quarto dele ou para o estúdio.
Sempre aparece antes do almoço, prepara a comida e almoçamos
juntos, vendo alguns episódios de Doctor Who (porque não tenho
escolha). Às vezes, enquanto prepara a comida, nós conversamos
(eu falando mais do que ele, quase sempre). Pedro me conta sobre
os mais de dez anos de carreira, falamos mal de alguns desafetos
em comum e sobre as manias da Cris, e ele me ensina coisas legais
sobre plantas.
Só percebo o quanto estou acostumado com sua presença
quando acordo no quinto dia sem Cris e não sinto o cheiro do café.
Eu me levanto, incomodado, sem entender por que estou me
sentindo tão vazio. Perambulo pela casa, procurando o que tem de
diferente. Vou até o jardim, Pedro não está lá. Olho no relógio, são
dez da manhã. Ele já deveria ter chegado. Será que aconteceu
alguma coisa? Penso em ligar para ele e perguntar, mas percebo
que não sei seu número.
Fiquei dias com um cara praticamente morando na minha casa
e não sei nada sobre ele.
Ligo para Cris, e ela me avisa que Pedro tinha outras coisas
para fazer e me pediu para regar as plantas. Ela encaminha para
mim uma lista de instruções, que eu sigo sem reclamar. Jogo água
no jardim, o estranho vazio ainda me acompanhando, como se
estivesse faltando uma peça no meu quebra-cabeças. Não consigo
compreender por que estou sentindo saudade de alguém que nem
conheço direito.
Mas eu o conheço, percebo de repente.
Posso não saber todas as curvas da história de Pedro, mas sei
quem ele é.
Sei que Pedro dorme em casa porque a mãe fica preocupada,
com medo de ele estar em algum lugar, bebendo de novo. Sei que
ele é alcoólatra e que está limpo há um ano. Sei que vai aos
alcoólicos anônimos todas as quintas. Sei que chega mais tarde nas
sextas e que, às vezes, não lembra se colocou açúcar no café,
então joga tudo fora e faz de novo, xingando baixinho e mordendo
os lábios, algumas vezes com força demais. Ele sempre faz isso
quando algo o chateia ou quando fica nervoso. Sei que ele repete
algumas frases de Doctor Who sem perceber e que canta alto
demais algumas músicas da Marília Mendonça. Sei que ele sabe de
cor a letra inteira de “Estranged” e que faz todos os solos famosos
do Guns n’ Roses no violão. Sei que sempre pula Bruno e Marrone
nas playlists, mas, de vez em quando, canta baixinho “Por Um
Minuto” enquanto mexe no jardim.
Está quase na hora do almoço quando Pedro aparece.
Ele abre o portão lá de fora e sobe, mas, quando chega à porta,
toca a campainha. Sei que ele tem a chave, mas não a usou desde
que Cris viajou. Vou até a porta, um pouco depressa demais e a
abro.
— Oi — eu o cumprimento.
Pedro está com as mãos cheias de sacolas.
— Demorei hoje porque fiz umas compras. — Ele as ergue no
ar. — Não tinha quase nada nessa casa.
— Ah... — Quase suspiro. Então era isso? Meu coração dá um
pulo tão desesperado que sinto meu rosto enrubescer. Não é
possível que eu esteja nesse nível de paixonite. Para evitar que meu
corpo entregue coisas que eu não quero que entregue, pego as
sacolas das mãos de Pedro e as levo até o balcão.
Ele sorri enquanto me mostra o que trouxe, e retribuo o sorriso
sem conseguir controlar.
É possível, sim.
— Eu trouxe muita pipoca pra gente terminar de ver Doctor
Who. — Ele está animado. — Mas, antes, vou fazer o almoço. Você
está com fome?
— Uhum — respondo, um pouco distraído. Na verdade, quero
perguntar o motivo de ele parecer tão eufórico. Em vez disso,
informo: — Eu reguei as plantas.
— Ah, a Cris te avisou? — Ele mexe nas sacolas, sem olhar
para mim.
— Seria mais fácil se eu tivesse o seu telefone, e você, o meu.
— Por que estou tão ansioso? É só um telefone.
Pedro me olha daquele jeito esquisito. Ainda não consigo lidar
com os olhos dele, não consigo lidar com essa testa franzida. Ele
parece me analisar, parece esperar algo de mim. Mas o quê?
— Verdade. — Ele tira o celular do bolso de trás da calça e me
entrega. — Coloca seu número aí.
Pego o aparelho e, antes de salvar meu contato, observo as
notificações que chegam. São mensagens da Cris. Não quero me
intrometer nas conversas deles, então devolvo o celular.
— Será que a Cris não vai voltar, não? — pergunta, assim que
olha as mensagens na tela.
— Tá demorando, né? Mas ela deve vir para a ceia de Natal.
Ou talvez ela esteja é fugindo dessa ceia de Natal…
— Ela deveria estar aqui. Você finalmente voltou pra casa.
Acredita que ela ficou meses reclamando? Às vezes, a Cris passava
o dia inteiro andando meio perdida pela casa.
— Ah, é? — Sorrio. — Não se preocupa, vou ficar de férias por
muito tempo ainda.
— Eu me acostumei com ela aqui, sei lá... — Pedro estala a
língua.
— E eu estou me reacostumando a estar de volta. Mas eu sinto
falta dela também, só não acho muito justo cobrar que ela fique aqui
o tempo todo, sendo que eu não fiquei. Nessa nossa vida, a gente
precisa se acostumar com a falta.
— Nossa, isso aí daria uma música bem triste.
— Vou anotar! — Pego meu celular e digito a frase no bloco de
notas. Fico um tempo lendo as coisas que anotei ali nos últimos
meses, ideias de músicas, trechos. Quase todos são sobre ela. —
Ai, quer saber? Vou falar pra essa mulher voltar logo!
Pedro ri, indo até a geladeira e guardando as compras. Mando
uma mensagem para Cris.
Volta logo, Cristiellen!
E acrescento:
Antes que eu me apaixone pelo seu namorado.
Ela responde na mesma hora, com uma palavra que me
desconcerta.
Mais?
Fico observando em silêncio enquanto Pedro separa e prepara
a comida, sem saber o que dizer. Quero conversar, falar alguma
coisa, qualquer coisa, só para ouvir sua voz.
Estou lascado!
Preciso puxar assunto, porque se ficar pensando demais, posso
acabar fazendo alguma besteira.
— Pedro... Como é ficar fora dos palcos por tanto tempo? —
pergunto a primeira coisa que vem à minha cabeça.
— Libertador... mas, ao mesmo tempo, sei lá, estranho. Sinto
um vazio. Eu sinto falta dos meus fãs, de gravar, de cantar.
— É por isso que você vai voltar?
— Não, não vou voltar. Só vou sinalizar minha volta lá no
Prêmio da Música Sertaneja. Pelo menos foi o que a Cris disse. Eu
devo ficar algum tempo longe desse mundo ainda. Ainda preciso me
recuperar, não estou pronto para lidar com tanta pressão, sabe? —
Ele morde os lábios com força.
— Por que você faz isso?
— Faço o quê?
— Morde os lábios.
Pedro arregala os olhos, surpreso. Acho que não estava
esperando por essa pergunta. Por um instante, ao perceber a
expressão que ele faz, eu me sinto mal, como se algo se revirasse
dentro de mim. Ele junta as sobrancelhas, antes de olhar para mim.
— Acho que é porque não posso beber. Aí eu mordo os lábios
como se isso fosse segurar a minha vontade.
— Ah… — Engulo em seco. Não deveria tocar nesse assunto,
mas sou muito curioso e estou ainda mais curioso para saber como
ele se sente. Quero entendê-lo. — É difícil demais, né?
Ele para, coloca as mãos sobre o balcão e me encara.
— É a coisa mais difícil que já tive que fazer.
Pego as mãos dele porque é a coisa certa a se fazer, porque
preciso tocar esse homem.
— Mas você consegue.
Os dedos dele respondem ao meu toque e se enlaçam nos
meus. Sinto meu coração parar por um segundo. Sinto vontade de
soltar as mãos de Pedro, dar a volta no balcão e…
— Ai, deixa eu terminar isso aqui. — Ele me solta, piscando
algumas vezes antes de se afastar.
Pego meu celular, que coloquei sobre o balcão, e respondo a
mensagem de Cris.
Eu tô MUITO lascado!

Depois do almoço, nos deitamos no chão da sala e assistimos à


temporada inteira de Doctor Who. Estamos quase no fim da décima
temporada, e eu que não quero que acabe. O que me conforta é
saber que não acaba mesmo.
Pedro se levanta e estica os braços, se espreguiçando. A
camisa se ergue um pouco, e eu tento não olhar para o pedaço de
pele que fica à mostra, mas não consigo. Fico observando os
pneuzinhos e as estrias em sua barriga. Meu Deus, esse homem é
perfeito! Mesmo fugindo completamente do padrão “homem sarado”.
Talvez seja justamente isso que mais me atrai nele.
— Você já tem que ir? — pergunto, sem conseguir me conter.
Não quero que ele vá embora. Mas quero. Quero que ele suma
daqui.
Nunca fui um cara confuso, mas Pedro está me
desestruturando de uma forma inexplicável. Eu não estava pronto
para me apaixonar de novo.
— Você quer que eu fique? — A voz dele abaixa alguns tons e
ele se senta no sofá. Eu me sento no chão e olho para ele.
Eu quero que ele fique.
Mas não quero.
Quero, sim.
Estou tremendo. Por que estou tremendo? É o Pedro. Ele nem
gosta de homens. Ou será que gosta? A forma como ele retribui
meu olhar me diz que Pedro é tão hétero quanto eu.
— Eu queria ver a nova Doutora. — Que mentira!
— A temporada é muito ruim. — Mesmo assim, Pedro se joga
do sofá e se senta de volta no chão perto de mim.
— Uai, você não é o superfã de Doctor Who?
— Mas eu tenho senso crítico — ele desembesta a falar,
gesticulando de um jeito leve e empolgado. — A temporada é chata,
tem só dois capítulos bons. — Fico reparando que a barba dele está
crescendo um pouco e que o lábio inferior de Pedro está ferido.
Sinto vontade de tocá-lo ali. Sinto vontade de… — O que é uma
pena, porque é a primeira Doutora mulher e a Jodie tá muito b…
Eu o beijo. Levo a minha mão até o pescoço dele, o puxo para
perto de mim e o beijo, sem esperar que retribua. E ele não retribui.
Meu coração está tão acelerado e partido que quase choro.
Acho que estou tentando beijar um hétero. Não é possível que
eu tenha me enganado tanto assim!
Mas Pedro também não reage. Ele parece não saber o que
fazer.
Eu me afasto. Quase saio correndo, porém me forço a
permanecer no lugar.
— Desculpa — peço, constrangido. Não tenho coragem de
encará-lo.
Pedro não diz nada, mal se move. Eu também não me movo.
Ficamos ali, sentados, quase de frente um para o outro, até que ele
diz:
— Henrique...
Mas o interrompo, nervoso demais para não sair falando sem
parar.
— Tudo bem, Pedro. Você é hétero, né? Eu devia ter
perguntado antes de supor coisas. E essa situação é toda
complicada, eu não devia ter beijado você, foi um impulso, sabe? Eu
preciso parar de fazer essas coisas, de sair por aí beijando pessoas,
não que eu beije todo mundo, só quando realmente estou com muita
vontade, não que eu esteja a fim de você, mas na verdade eu tô,
sim...
— Henrique — ele chama novamente.
Eu paro de falar e o encaro. Essa porcaria de olho preto me
deixa mais desestruturado, e tudo fica ainda pior com essa maldita
forma carinhosa como ele me olha. O olhar dele pede alguma coisa.
Só não sei o que é. De todas as pessoas do mundo, o Pedro é a
última que pensei que beijaria um dia. A gente já se bateu, já se
detestou, já rivalizou, mas isso? Quase sinto falta da época em que
nós dois não entendíamos que não existe disputa para um coração
como o da Cris.
Mas então ele pede:
— Você pode me beijar de novo?
E eu fico olhando para ele, um pouco chocado.
— O quê? — Por essa eu não esperava.
— Eu não gosto muito de beijar as pessoas. Raramente sinto
vontade de qualquer aproximação, só quando realmente sinto algo
por alguém. — Ele abaixa a cabeça, envergonhado. — E eu
raramente sinto algo por alguém...
O que ele quer dizer com isso? Que sente algo por mim?
— Você não precisa ter vergonha de sentir as coisas do seu
jeito, Pedro! — Levanto o queixo dele. — E não precisa ter medo de
sentir.
Eu me aproximo devagar, porque não quero assustá-lo.
Antes que meus lábios encostem nos dele, sinto a mão direita
de Pedro tocar o meu rosto. Seus dedos percorrem minha bochecha
até chegarem ao meu pescoço. É ele quem me beija, com doçura.
Há algo leve na forma como me toca. Fecho os olhos porque quero
sentir isso. Sentir as mãos e os lábios dele em mim. Sentir essa
vontade de ficar preso para sempre em um momento. Desço as
mãos por suas costas, querendo trazê-lo para mais perto. Quero
trazê-lo para a minha vida também, quero que me conheça. E ele
vem, se aproxima de mim e me beija um pouco mais depressa, com
mais vontade e menos medo.
Aí o meu telefone toca. Não quero soltar Pedro, mas ele me
solta. Vejo que está assustado e não acho que seja pelo barulho do
celular. Tento alcançar o aparelho, mas, como está mais perto de
Pedro do que de mim, ele o pega e me entrega. Sei que viu quem
está ligando.
— Oi — atendo, ofegante, sem conseguir tirar meus olhos de
Pedro. Ele parece apavorado. Se levanta de repente, como se
entendesse só agora o que estava acontecendo entre nós. — Oi,
Cris. — Ela está falando com alguém do outro lado da linha. — Só
um minuto.
— Eu tenho que ir — Pedro diz, já se dirigindo à porta.
— O Pedro tá aí ainda? — Cris pergunta no telefone.
— Tá — respondo a ela, mas estou indo atrás dele. Não quero
que ele vá embora. — Espera aí, Pedro.
— Não, eu realmente tenho que ir. — Ele sai de casa,
praticamente correndo. Da porta, o observo descer o morro sem
olhar para trás.
— Aconteceu alguma coisa? — Cris quer saber. Ainda estou
parado no mesmo lugar, observando Pedro abrir o portão, quando
respondo:
— Eu… beijei o seu namorado.
Capítulo VIII
No outro dia de manhã, Cris já está em casa. Era para isso que
ela estava ligando, para avisar que estava vindo embora.
Ela me acorda, sem gentileza alguma, como sempre.
— Que história é essa de você e o Pedro se beijando? —
questiona, parecendo se divertir com aquilo.
— Nós não nos beijamos. Eu beijei ele — respondo, sonolento.
— Tá, mas e ele?
— Eu achei que ele fosse hétero.
— Mas?
— Ele pediu que eu o beijasse de novo. E… — hesito, me
virando. — Eu beijei.
Ela bate com a mão no colchão.
— Eu sabia!
— Que isso, mulher? Sabia o quê?
— Que ele gosta de você!
Eu me levanto, passando a mão pelos olhos, tentando acordar
direito.
— Você foi pra Goiânia esperando que eu e o Pedro nos
aproximássemos, não foi?
— Você me conhece tão bem! — Ela sorri.
— E você é uma maldita! Podia ter me falado, Cristiellen!
— Falado o quê?
— Que ele não é hétero, uai!
— Mas eu não sabia. O Pedro não fala dessas coisas, eu acho
que nem pensa muito nessas coisas. A gente costuma conversar
sobre outros assuntos, Henrique.
— Ele é demi?
— É o que eu suspeito.
— Explica muita coisa. Mas você podia ter me falado antes que
estava planejando que nós dois nos “aproximássemos” — reclamo,
com ironia.
— Olha só, eu queria que vocês se conhecessem. Se você
gosta de sair por aí beijando todo mundo, aí o problema é seu. —
Ela nem disfarça a cara de sacana. — E vocês se conheceram?
— Não sei. Da minha parte, acho que sim. Mas da parte dele,
eu não sei. Isso é ridículo! Estou me sentindo com quinze anos.
Você me manipulou! — Aponto para o rosto dela, tentando parecer
sério.
— Eu? — Ela leva as mãos ao peito, com sarcasmo. — Ah, por
falar em quinze anos... — Cris se vira, pega a bolsa de mão que
levara na viagem e tira um papel de lá de dentro. — A Regina me
deu uma coisa. Ela disse que, finalmente, está na hora de eu ler
isso.
Pego o papel e o reconheço imediatamente.
— Nossa... — É como se eu voltasse no tempo. Rebobino
quinze anos na minha vida e me vejo de novo entregando essa
carta para a melhor amiga de Cris, esperando que chegasse até o
destinatário. E chegou. Demorou, mas chegou. — Isso é de quando
a gente terminou lá em 2005.
— Me dá aqui, deixa eu ler. — Cris toma a carta da minha mão
e abre. Eu não me lembro exatamente das palavras, mas sei que
elas permanecessem verdadeiras até hoje.
Cris,
Você sabe que eu te amo?
Que maneira horrível de começar essa carta. É essa ou
esta? Você me ensinou, mas eu esqueci… Enfim, eu amo
clichê, e queria tanto que a gente pudesse viver um.
Mas eu gosto de meninos, Cris. Eu sei que você também,
então é capaz de entender perfeitamente a minha agonia: por
quê? Por que gostar logo de meninos? Nunca entendi.
O ponto é que eu gosto de meninas também. Gosto de
pessoas. Confuso? Nem um pouco. Quem nos bagunça são os
outros. E me bagunçaram tanto que eu quase acreditei que
toda essa loucura que sinto dentro de mim, por você, fosse
apenas meu cérebro suplicando por uma cura gay. Eu não
preciso de cura, obrigado, muito menos te usaria como
remédio.
Eu quis namorar você, Cris, pelo simples fato de eu não ser
burro! Só mesmo sendo pouquíssimo inteligente para não
querer estar o mais perto possível da garota mais adorável,
graciosa e fofa… Mentira, é brincadeira. Você não é nada disso!
É observadora, mas fala até cansar; interrompe, não deixa as
pessoas falarem… É inteligente, mas isso é genético, nem é
mérito seu. Nem preciso dizer que não elogiarei sua beleza,
porque ela também não é um mérito, apesar de que… eu não
me cansaria de olhar para você. Nossa, não me cansaria
mesmo.
Essa é a coisa mais egoísta que fiz na vida. Essa (ou esta)
carta. Não tenho o direito nem de cogitar a possibilidade de
você ler isso um dia, mas, se ler, saiba que eu corri minha vida
inteira, tentando fazer tudo o que eu podia fazer, amar todo
mundo que eu podia amar, até encontrar você.
Com você, eu quis parar o tempo, quis alongar os nossos
segundos, quis me deitar e descansar de toda a correria que eu
sou.
Há essa rodovia veloz dentro de mim: todo mundo passa
depressa e com pressa; você ficou. A própria vida é também
uma rodovia; em passos velozes e apressados, corri por ela,
tentando aproveitá-la ao máximo, chegar o mais longe que
fosse possível. Escrevo para você, porque, por todo esse meu
caminho de dezessete anos, os melhores passos que caminhei
foram ao seu lado.
Tem também outra metáfora que pensei (é metáfora que
chama? Agora vai ser). Sempre tentei entender o que é o amor.
Não consigo ver o amor como uma prisão, como uma corrente,
muito menos como um campo aberto e livre; o vejo como uma
casa, onde você recebe quem deseja receber, sem prender
ninguém. A maioria das pessoas que entram são visitantes,
elas chegam, tomam um café, conversam e depois saem, vão
embora, algumas nunca mais voltam. Eu quero ser uma casa
aberta, Cris, e quero que você também seja.
Espero que um dia eu mereça te habitar e que você me
habite também.
Henrique

— Você escreveu isso aqui com dezessete anos? — Ela tenta


disfarçar, mas os olhos estão marejados.
— Eu era um garoto profundo.
Cris sorri e olha de novo para o fim da carta.
— O amor é como uma casa... — Ela ergue a cabeça e olha ao
redor. — Tipo a nossa casa. Quando eu e o Pedro conhecemos este
morro, a gente ainda andava de bicicleta e atropelava idosos.
Depois, você comprou o lote com a primeira grana alta que ganhou
na sua carreira, e construímos a casa devagar, colocando os
móveis, deixando tudo o lugar. Mas, pra mim, sempre faltou alguma
coisa. Então o Pedro chegou e, sem tirar nem pedir nada, foi
trazendo algumas plantinhas, alguns quadros e pôsteres. Eu fui
tirando o que não combinava, o que sobrava. E eu acho que a
nossa casa está completa agora, Henrique, pronta para nos abrigar.
Nós três.
Eu a observo se perder na própria filosofia, enquanto me
lembro dos últimos anos. Ela tem razão, sempre faltou alguma
coisa. Cris tentou preencher com ódio e vingança; eu tentei
preencher com trabalho e pessoas aleatórias. Mas, desde que
acordei nesta casa e senti o cheiro do café no ar pela primeira vez,
tenho a sensação de que não falta mais nada.
— Eu entendo agora. — Cris passa a mão no meu rosto e olha
para a carta mais uma vez. — Entendo o que me faz não querer dar
nome às coisas, não querer colocar meus pés nos eventos e o meu
rosto nas fotos do seu lado. Nunca foi só pelos comentários
maldosos de pessoas que não aceitam que uma mulher preta e
gorda esteja nesses lugares. Eu sempre senti que faltava algo.
— Quem é pior: o Henrique de dezessete anos ou a Cris de
vinte e oito? — Volto a me deitar. Não estou disposto a me levantar
daqui agora.
— Ai, cala a boca, Praga! — Ela me estapeia no braço, para
não perder o costume. — Tô aqui tentando falar um negócio bonito.
— Você está aí tentando justificar para você mesma o fato de
nós três sermos perfeitos juntos. — Eu me viro de lado. — Não
precisa de tanto trabalho, Cris, é só aceitar.
— Mas e se vocês dois não derem certo?
— A gente conserta.
— Mas se não tiver conserto — insiste.
— A gente muda.
— Por que você lida com as coisas como se elas fossem
fáceis?
— Porque a vida é uma só, não preciso tornar as coisas ainda
mais complicadas do que já são — respondo.
Cris fica me olhando por um tempo, ponderando. Então sorri, se
levanta e começa a sair do quarto. Ela para na porta e se vira para
mim.
— Você vem?
— Vou só dormir mais um pouquinho.
Ela sai do quarto, me deixando sozinho ali com a avalanche de
pensamentos que invade minha cabeça. Eu posso dizer que está
tudo bem, mas também tenho medo de as coisas darem errado.
Tenho medo do que estou sentindo e do que posso sentir.
“Não precisa ter medo de sentir.”
Eu disse isso para o Pedro ontem. Mas, agora, deitado ali,
percebo que não ter medo é quase impossível quando se está feliz.
Pego no sono pensando nisso, pensando na casa que
construímos juntos. E acordo com o cheiro do café no ar.
Demoro um pouco para me levantar. Estou criando coragem,
acho que finalmente chegou a hora de termos aquela conversa que
define tudo.
Quando saio pelo corredor, noto o silêncio que paira sobre esta
casa. Pego um pouco de café e procuro por Pedro e Cris pelos
cômodos. Não estão em lugar nenhum. Saio pelo jardim e vou até o
estúdio, torcendo para encontrá-los lá. Abro a porta devagar e a
música invade meus ouvidos.
Sinto minhas bochechas quase arderem com o sorriso bobo
que dou ao ver Cris e Pedro sentados, um do lado do outro, em
frente ao piano. Eu me aproximo da cabine acústica. O som do
instrumento e das vozes está saindo pelas caixas de som do
estúdio. Reconheço a música. É a mesma que Pedro sempre pula
nas playlists, mas que canta enquanto planta ou faz o almoço. Mas
é Cris quem está cantando agora.
“Seus passos de volta à minha porta pra dizer que me amava
quando estava longe.”
Eu me sento em uma das cadeiras e fico admirando, do lado de
cá do vidro. É um pecado que não seja ela a mais famosa entre nós.
Sinceramente, se juntar um Pedro e um Henrique não chega nem
perto de uma Cris.
É só no refrão que percebo que ela está tocando também. Eu
não sabia que tinha melhorado tanto assim no piano.
“Já não há razão pra não ser pra sempre. Dessa vez há de ser,
tem que ser diferente.”
Ele dá um beijinho no rosto dela, quando a música termina. Eu
me levanto e aplaudo, feito o fã que eu sou, apesar de saber que
eles não podem ouvir. Vou até a porta da cabine e a abro.
— Gente, mas o que foi isso? — Ainda estou aplaudindo.
— Para de ser palhaço, Henrique. — Ela ri.
— As aulas estão dando certo mesmo, hein?
— O Pedro até que ensina direitinho. — Cris se levanta e vem
me dar um beijinho no rosto.
— Ela me ensinou a tocar violão, agora eu ensino ela a tocar
piano. É o justo.
— Nossa, eu te ensinei isso tem vinte anos!
— Eu estava tentando ser fofo. Você não consegue ser fofa
nunca?
— Não! — Eu e Cris respondemos juntos.
— Henrique, eu tenho que ligar pra minha mãe pra ver o que
temos que levar pra ceia na tia Sandra.
— Não tá um pouco tarde pra isso? — interrompo. — Tem
alguma coisa aberta hoje?
— E ela pensou nisso? O Pedro que se vire fazendo algum
prato mirabolante do nada… — ele reclama.
— Todas as lojas estão abertas hoje, gente! Vocês dois são
muito chatos. Então, como eu estava falando... — Ela se vira de
novo para mim. — Eu e o Pedro fizemos algumas modificações no
arranjo da sua apresentação. Ele vai te mostrar enquanto falo com a
minha mãe.
— Tá bom.
— Vem cá, Henrique. — Pedro me chama para o piano depois
que Cris deixa o estúdio. Eu vou, meio apreensivo, mas vou. Eu me
sento ao seu lado e percebo que ele parece mais tranquilo agora.
Preciso falar alguma coisa antes de perder completamente a minha
coragem.
— Sobre ontem... — digo, de repente. Mas Pedro me
interrompe, pegando a minha mão e se virando um pouco para me
encarar. Os olhos dele não parecem mais tão indecifráveis assim.
Penso que vai dizer alguma coisa, pela maneira como me olha, mas
ele se inclina e me beija, de um jeito calmo e decidido. Eu o agarro
pelo pescoço e o beijo de volta, sem o medo ou o pudor de antes.
Não há desespero na maneira como meu corpo reage, mas, sim,
uma certeza silenciosa de que tudo está no lugar certo agora.
Quando nos soltamos, ele pergunta:
— Sobre ontem o quê? — Pedro brinca com as teclas, tocando
a melodia da música que ele roubou da Cris.
— Como a gente fica agora? — Nem sei direito o que estou
perguntando, considerando o que acabou de acontecer.
— Ontem eu entrei em desespero, não vou mentir pra você.
Fiquei com medo por tudo, por mim, pela Cris, por você, pelo que
diriam de nós. Desde criança, ouço que sou gay, o que eu sempre
soube que não era. Mas, por mais que eu já tenha cogitado a
possibilidade de realmente gostar de meninos também, nunca tinha
sentido por nenhum deles nada parecido com o que sinto por você.
— Ele me lança um sorriso bobo. — Fiquei a noite inteira acordado,
pensando em tudo isso e decidi que quero conhecer você, Henrique.
E quero que você me conheça também. Que tal só começarmos por
aí?
Estou mais caído por esse homem que o Neymar na Copa do
Mundo.
— Por mim tudo bem! Tudo ótimo! — Passo minha mão sobre a
dele, a que está tocando. Ele para por um instante e me olha,
pousando o cotovelo esquerdo na parte de cima do piano e
apoiando o rosto na mão.
— Também te achei bonito.
— O quê?
— Quando te vi pela primeira vez. Fiquei mentindo para mim
mesmo dizendo que você era feio, que era irritante. Sempre achei
que o ciúme que sentia por você era muito esquisito — confessa.
— Irritante eu sou até hoje.
— Não acho. — Pedro se empertiga e mexe nas partituras que
estão no suporte, puxando um papel para a frente. — Acho que a
Cris sempre esteve certa em amar você. Inclusive, tenho uma
notícia pra te dar. — Ele solta a minha mão e dá dois tapinhas na
folha.
— Não…
— Sim. A Cris achou uma péssima ideia.
— É uma péssima ideia.
— Por isso mesmo que faremos.
Começo a rir, porque não consigo fazer outra coisa além de me
desesperar e rir.
— Você conhece a letra, não conhece? — Pedro não espera a
minha resposta. — Lógico que conhece, a Cris fez a música pra
você.
— Eu não posso cantar a música que você roubou!
Ele recomeça a tocar a melodia no piano.
— Você não entendeu, Henrique. Nós vamos tocar juntos!
— É uma péssima ideia, Pedro! — Tento não sorrir, mas sorrio,
assim que ele começa a cantar. — Que seja, vai ficar ótimo! —
Então o acompanho.

Demoro um pouco mais no estúdio, porque preciso ensaiar as


outras duas músicas que apresentarei sozinho. Cris deixou os
arranjos pré-gravados aqui. Era isso que ela estava fazendo em
Goiânia?
Já está quase na hora do almoço quando saio. Sinto o cheiro
da comida de longe. Quando abro a porta da sala, vejo Cris e Pedro
abraçados do outro lado do balcão da cozinha. Ela passa as mãos
no cabelo dele, tentando ajeitar aquela bagunça. Eles são tão
bonitos juntos que eu poderia ficar aqui para sempre, observando os
dois. A pele deles tem cores quase opostas e, sem querer, me pego
analisando minha própria pele. Será que a minha cor desbotada
combina com a deles?
Eu me aproximo.
Chego devagar, mas Pedro estica o braço e me puxa para junto
dos dois. Cris apoia a cabeça sobre o meu peito, e eu sei que
pertenço a esse lugar. Sei que esta é a minha casa, com cheiro de
café e vontade de ficar.
— Comprei um vestido vermelho — Cris comenta. Fico olhando
as mãos dos dois enlaçadas. O outro braço de Pedro está em volta
da minha cintura, e me sinto bem demais com isso. — Para o
Prêmio da Música Sertaneja — completa.
Olho para ela e depois para Pedro.
— Então você se decidiu? — ele pergunta, se soltando do
nosso abraço e indo até o fogão conferir as panelas.
— Andei pensando... — Ela se solta de mim e dá a volta no
balcão. — Os sites de fofoca estão malucos para pegar vocês dois
juntos e divulgar o que eles acreditam ser o relacionamento gay da
década. — Cris para e nos olha, como se estivesse pronta para
explicar seu plano de dominação mundial. — Mas... e se eu fosse
com vocês dois? Nós três juntos?
— Juntos? — repito.
Ela faz que sim com a cabeça.
— Juntos. E sem esconder nada de ninguém.
— Vai ser um senhor escândalo! — observo, rindo, mas já
aceitei a ideia. Era tudo o que eu queria: não ter que me esconder.
— Eu topo! — Pedro diz, enquanto desliga o fogo. — Mas... e
se alguém perguntar sobre nós, eu digo o quê?
— A verdade. Que estamos juntos. — Cris estica a mão sobre o
balcão. — Vocês aceitam ir comigo?
— Sempre! — Pedro coloca sua mão sobre a dela.
As cores. O contraste.
Junto minha mão à deles. Não preciso falar mais nada.
Nossas cores ficam perfeitas juntas.
Nós três combinamos.
Um corpo de verão
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura sensível: Thaís Herculano
Para Thaís e para mim,
Que um dia nossos corpos de verão sejam livres.
Eu amo você.
Capítulo I
Puxei meu headphone dos ouvidos e o coloquei em torno do
pescoço. Ok, vai ser cansativo, mas tenho que fazer isso. Pela
minha mãe. Encarei os portões de madeira e, logo acima deles, uma
placa também de madeira trazia os dizeres “Recanto do verão”
entalhados.
Respirei fundo e soltei todo o ar dos pulmões. Eu estava
cansada. Será que ainda dá tempo de voltar? Olhei para a minha
carona — e também minha chance de desistir de tudo e ir embora
— já distante, levantando poeira na estrada de terra. É isso! Eu
estava definitivamente presa em um clube fechado, também
conhecido como “Recanto do Inferno”, e prestes a ter que conversar
com pessoas que eu não via havia anos.
Que maravilha!
Reuni minha coragem, ajeitei as alças da mochila e fui entrando
pelo caminho cercado por pequenos arbustos e flores. Tudo muito
bem-cuidado. Não demorou para que eu ouvisse o som de vozes
abafado por uma música sertaneja impossível de identificar.
— Nêssa! — alguém me gritou de longe. Semicerrei os olhos
para tentar enxergar melhor a mulher que vinha, com os braços
abertos, na minha direção. Suspeitei que fosse tia Janaína, o que se
confirmou quando ela se aproximou de mim e me deu um abraço
caloroso. Eu me senti ligeiramente mal por ser apertada por uma
pessoa que eu não via, sei lá, desde os meus treze anos. Na
verdade, acho que me sentiria mal se qualquer pessoa me
apertasse daquele jeito. — Menina, quanto tempo! — ela disse,
assim que me soltou, me olhando da cabeça aos pés. Esperei o
momento em que diria aquilo, porque todo mundo diz, mas tia
Janaína só sorriu e virou as costas, começando a me atualizar sobre
coisas que eu não havia perguntado.
Janaína, na verdade, não era minha tia. Ela era a melhor amiga
de infância da minha mãe. As duas se conheciam havia, sei lá, uns
trinta e cinco anos. Acho que desde que nasceram. Elas sempre
foram tão unidas que, quando minha mãe precisou ir embora para
os Estados Unidos para trabalhar (ilegalmente, diga-se de
passagem) porque o lindo do meu pai sumiu do mapa e a gente
ficou completamente sem grana, tia Janaína se ofereceu para cuidar
de mim até que eu fizesse dezoito anos. É claro que minha mãe não
aceitou, provocando toda uma transformação na minha vida ao me
fazer mudar para a casa da minha avó, na capital.
Não me opus quando ela foi embora, era a nossa última
alternativa, e eu sabia disso. O que minha mãe sempre quis foi me
dar a educação que não teve, mas não tínhamos nem como pagar
as contas de casa. Cansei de me esconder, quando o seu Wilson
vinha cobrar o aluguel, para que ela não me visse, para que não
soubesse que eu sabia como as coisas estavam feias. E aqui, no
leste de Minas Gerais, últimas alternativas de emprego se resumem
a: ir de forma ilegal para os Estados Unidos.
Nunca achei justo o sacrifício que ela teve que fazer. Nunca
achei justo não termos escolha. E não tínhamos mesmo escolha.
Acho que ninguém escolheria ficar semanas no deserto mexicano,
atravessando a fronteira dentro de uma van com outras vinte
pessoas, passando fome, frio, calor; sentindo dor e medo, se tivesse
chances melhores por aqui.
Mas, no fim, tudo deu certo.
Depois de um ano inteiro trabalhando praticamente para pagar
a conta da ida, ela começou a mandar dinheiro para mim e para a
minha avó. Agora, já fazia quatro anos que estava lá e só voltaria
quando eu me formasse na faculdade.
A época que morei com a minha avó foi muito difícil, tipo, muito
mesmo. Acho que não me adaptei à cidade grande até hoje. Barulho
demais, longe demais, carros demais. Gente demais. Talvez seja
por isso que escolhi fazer minha faculdade no interior, perto de onde
cresci. Sei lá, eu devo ser uma pessoa de raízes.
Mas a parte mais difícil, a coisa que mais me fez molhar as
fronhas do travesseiro quando tive que me mudar daqui, foi ela: a
menina ali parada atrás de tia Janaína, com a mão direita apoiada
no encosto de uma cadeira de plástico vermelha, me encarando.
Eita que eu não esperava que meu coração fosse acelerar tanto
assim quando a visse. Bem... talvez eu soubesse que ele ficaria
abalado. Mas, Jesus, precisava ser tanto?
O que eu falo? Será que devo cumprimentá-la como se nossa
amizade não tivesse sido esquecida no churrasco? Devo sorrir para
a minha ex-melhor amiga ou pedir desculpas por ter sumido? Será
que devo explicar por que sumi? Não, melhor não. Se eu falar para
ela que um dos motivos pelos quais desapareci de sua vida, por que
parei de responder suas mensagens e de atender suas ligações foi
porque eu estava completamente perturbada ao notar que, bem…
eu estava apaixonada por ela, acho que nem vou ter a oportunidade
de fugir daqui.
Decidi que era melhor não fazer nada. Então só fiquei fingindo
que estava ouvindo o que tia Janaína falava. Ela estava tão
empolgada com minha presença que nem notou que eu não
prestava atenção, que meu olhar estava fixo na filha dela, como se
Bia tivesse um ímã. Sempre achei aquela garota magnética. Meu
Deus, será que ela tem superpoderes? É a única explicação.
— Beatriz, vem cá, minha filha! — Tia Janaína, obviamente,
tinha que chamar a menina para me cumprimentar. Parte de mim
agradeceu por não ter sido eu a dar o primeiro passo. A outra parte
quis sair correndo como se não houvesse amanhã.
Bia veio caminhando, meio hesitante e desengonçada. Sempre
achei tão fofo o jeitinho torto como ela andava. Os ombros
continuavam perfeitamente curvados para a frente, em um eterno ar
de cansaço. Os óculos vermelhos escorregavam devagar pelo nariz
conforme ela pisava no chão, daquele jeito meio duro.
— Ei — cumprimentou, olhando para algum ponto atrás da
minha cabeça, envergonhada, com as mãos perdidas no ar, sem
decidir se me abraçaria ou apenas acenaria.
— Oi — respondi, me mantendo afastada o suficiente para que
ela compreendesse que estava tudo bem em não me abraçar. Eu
ainda me lembro, quis dizer para ela. Eu ainda me lembrava de que
Bia não gostava muito de abraços, nem de contatos físicos. Quase
falei isso em voz alta, mas os olhos dela me pegaram antes que eu
pudesse abrir a boca. Aquele olhar castanho sempre me intimidou.
— Como cê tá? — questionei, nervosa, querendo manter o contato
e, ao mesmo tempo, desejando que, sei lá, algo caísse sobre a
minha cabeça e me obrigasse a parar de sorrir feito uma boba. E eu
só sabia que estava sorrindo porque minhas bochechas, bem na
parte de cima, perto dos olhos, doíam.
— Bem… — Bia tinha um jeito meio cantado de dizer as coisas.
Principalmente os monossílabos.
— Vanessa — tia Janaína nos interrompeu. — Tenho que
ajudar a Rute com a comida. A Beatriz vai te mostrar o clube e onde
você vai dormir.
— Eu vou? — A menina franziu o cenho. — E onde ela vai
dormir? — gritou, porque a mãe já estava longe.
— Você não pensou que ficaria com um chalé só para você, né,
Beatriz? — Tia Janaína se virou um pouco, depois bateu os braços
contra as laterais do corpo. — Essa menina tem cada ideia. — E
saiu resmungando.
Bia estava com os olhos arregalados. Acho que eu também
estava. Sei lá, não me preparei para dormir uma noite inteira no
mesmo lugar que minha grande crush da adolescência.
Aquilo tinha tudo para ser um grande desastre.
Capítulo 2
Ok, eu preciso deixar claro o quanto silêncios me incomodam.
Sou aquele tipo de pessoa que liga a TV quando está sozinha em
casa, apenas para não se sentir sozinha. Faz sentido? Pra mim, faz!
O problema era que, aparentemente, um gato tinha comido a
língua da Bia. A garota não falou uma palavra sequer enquanto
caminhávamos até o chalé que iríamos compartilhar naqueles dois
dias e uma noite. Eu também não disse nada, pois ainda tentava
decidir exatamente o que estava fazendo ali.
A família dela sempre se reunia nas férias. Quando a gente era
criança, eu já vi essas mesmas pessoas organizarem encontros em
um terreiro cimentado, com uma churrasqueira feita de tijolos e uma
piscina de plástico. As coisas estavam bem melhores agora. Hoje
em dia, os eventos aconteciam em clubes fechados ou em algum
hotel-fazenda. Não duvido nada que, em um futuro próximo, as
reuniões sejam marcadas em uma das praias que o Espírito Santo
roubou de Minas Gerais.
Quis perguntar à Bia como os tios dela, que também estavam
nos Estados Unidos, tinham se dado tão bem a ponto de bancar
esses eventos caros para a família. Mas fiquei calada. Não queria
soar amargurada por minha mãe não ter conseguido a mesma
coisa. Ela ainda estava ilegal, enquanto os tios de Bia tinham os
documentos e dinheiro para vir ao Brasil quando bem entendiam.
Ok, eu estava com inveja e jamais admitiria isso. Eu e minha
mãe éramos sempre convidadas aos eventos que eles organizavam,
mesmo antes, nos churrascos com carne de segunda. Acho que
essas pessoas nos consideravam mesmo como da família.
Algo se revirou no meu estômago. Uma sensação ruim de
quem está sentindo coisas demais, coisas que não sabe como
decifrar.
O silêncio entre Bia e eu parecia pesar mais que os escombros
de um prédio inteiro sobre a minha cabeça. É sério, estava
começando a doer. Ficamos quatro anos sem nos ver, três sem nos
falarmos. Às vezes, raramente, eu respondia algum story dela, mas
o assunto nunca rendia. Então, o mesmo silêncio que nos afogava
ali, naquele momento, nos afogava também na rede social.
Parecia que a gente tinha se perdido uma da outra, se
desconhecido. E olha que eu nem mudei tanto assim — exceto
pelos quilos e muitos centímetros de cabelo a mais.
— Bom — ela começou a dizer, já com a mão na maçaneta de
uma porta que eu nem tinha visto. Não reparei em absolutamente
nada no nosso caminho até ali, para ser honesta. Não parecia tão
importante quanto olhar para os cabelos alisados dela caindo sobre
as costas brancas e cheias de marcas de espinhas. — É pequeno,
mas tem ventilador. — Ela se jogou na parte de baixo do beliche (de
qualidade duvidosa), que era o único móvel do cômodo. Achei
aquilo meio claustrofóbico.
É sério: era um quartinho pequeno, com um beliche de madeira,
uma janela de madeira, um chão de madeira e duas portas de
madeira. Se eu fosse um cupim, aquele, com certeza, seria meu
hábitat preferido.
— Aquela porta de lá é do banheiro. — Ela apontou na direção
dos próprios pés. Mas eu não estava preocupada com banheiro
(apesar de aquela ter sido uma das minhas primeiras preocupações:
será que vai ter um banheiro só para mim? Será que terei
privacidade? Será que vai ter papel higiênico? Por via das dúvidas,
eu trouxera um pacote, afinal é melhor prevenir).
— Ah, sim… — Eu não conseguia tirar os olhos da escada que
levava até a parte de cima do beliche. Não parecia seguro. Calculei
rapidamente na minha cabeça as possibilidades de aquilo cair
comigo, controlando o impulso de balançar a cama toda só para
confirmar sua segurança. — Então... é que eu não durmo na parte
de cima.
O olhar de Bia me atravessou de um jeito tão forte que pude
senti-lo passar pelo meu corpo e se alojar atrás de mim, checando
tudo, cada centímetro meu. Ela abriu a boca para dizer alguma
coisa, e eu torci para que não me perguntasse o motivo desse meu
"medo".
— É que eu tenho medo de altura — ela se justificou, como
quem pede desculpas (não que ela tivesse feito algo de errado).
— Tudo bem! — Sorri, mas por dentro eu estava tipo: ai, Jesus,
e agora? Onde eu vou dormir?
— A gente pode pegar o colchão aí de cima e colocar no chão,
o que acha? — sugeriu, erguendo um pouco a cabeça para me
olhar.
Abri de novo aquele sorriso que parecia rasgar meu rosto.
— Ótimo! — Comecei a puxar o colchão, para não perder
tempo. Bia desceu da cama (não sem antes bater com a cabeça na
parte de cima do beliche) e me ajudou.
Assim que terminamos, tirei minha mochila das costas e a
joguei na cama, depois fiz a mesma coisa com meu corpo, me
afundando completamente no colchão da cama de baixo do beliche.
— Ei, o que você está fazendo? — Bia mexeu no meu pé e eu o
afastei, por reflexo e algo mais. Um arrepio foi subindo pelo meu
corpo, do ponto em que ela tocou até o topo da minha cabeça.
Parecia um choque, um… sei lá, um trem estranho.
— Uai? Você não disse que tinha medo de altura? É bom que
agora não corre risco nenhum!
— Credo! — Ela deu um tapa (sim, um tapa) bem forte no pé.
— Como você é ruim!
Eu sou, sim, e você não viu nada!
— Não sou ruim, sou prática! — Tentei não sorrir ao perceber
como era fácil conversar com ela, mesmo depois de tanto tempo.
Por um momento, cheguei a pensar que ficaríamos o dia inteiro sem
falar nada uma para a outra.
— Não. — Ela se abaixou e parou bem perto do meu rosto. Eu
conseguia ver os pelinhos da sobrancelha não feita bem de
pertinho. Então Bia se ergueu, puxando uma mochila do chão. —
Você não é nada prática, nunca foi prática. Agora levanta daí e me
deixa pegar meu lençol.
— Ai… — resmunguei, antes de me levantar lentamente. — A
gente não precisa arrumar isso agora, Bia. Tenho que ir lá
cumprimentar seus tios e agradecer o convite. — fui dizendo, com
um sorriso desconfortável, enquanto ela puxava o lençol rosa, de
um jeito nem um pouco suave.
— Você tem certeza de que já quer ir lá cumprimentar os meus
tios? — Ela estreitou os olhos. Não sei se era o problema de visão
ou uma mania, mas Bia sempre apertava o olho quando não
acreditava no que estava vendo (ou, no caso, ouvindo).
— Querer eu não quero, mas tenho que ir, né?
— Tá. Então bora? — Ela jogou o lençol de qualquer jeito no
colchão que colocamos no chão e foi caminhando até a porta.
Respirei fundo e a segui. Por mais que eu tenha me preparado
psicologicamente a semana inteira para lidar com pessoas, era
sempre complicado. Eu começava a suar frio, o que era um inferno
— já me bastava ficar suada o tempo todo por causa do tempo
quente. Em menos de três passos, minhas mãos já estavam
escorregadias. Cogitei voltar e me enfiar no quarto.
— Olha só, ali fica a piscina-que-ninguém-quer. — Bia apontou
para um lugar cercado por muros altos.
— Como é que é?
— O burro do dono fez uma piscina reservada, mas acho que
ele não entendeu muito bem o esquema das piscinas, porque fez
muros tão altos que impedem o sol de entrar, sabe? Aí ninguém
quer ficar aqui. Afinal, qual o sentido de se ter uma piscina onde não
bate sol?
— Todo o sentido do mundo, uai, tem gente que não gosta de
sol — rebati.
— Lógico, por isso que você está tão sem cor.
— Amada? Você já se olhou no espelho?
Bia parou, colocando as mãos na cintura, igualzinho a tia
Janaína quando estava brava. Fiquei olhando para ela, achando a
coisa mais fofa do mundo a expressão em seu rosto. Ela estreitou
os olhos e a boca, apertando o nariz pequeno no meio do rosto,
como um bebê faz antes da pirraça.
— Minha querida, eu nasci sem cor. Se pegar dez minutos de
sol viro a própria bandeira do PT. Mesmo assim acho sem sentido
fazer uma piscina onde não bate sol. É prejuízo. Poucas pessoas
são como eu… — começou a resmungar, mas não finalizou a frase.
Tentei não rir.
— Eu gosto do sol, tá? — Eu me defendi. — Só não gosto do
calor.
— E quem é que gosta? — Ela voltou a andar.
— O que a gente está fazendo em um clube mesmo? — Fui
atrás dela, tentando acompanhar os passos rápidos daquela garota.
Qual a necessidade de andar tão depressa, meu Deus?
— Vai entender, né?
Andamos até a beira de um barranco e pude olhar como o
clube era grande. Estávamos na parte de cima, onde ficavam alguns
chalés pequenos, afastados uns dos outros, como o que eu e Bia
dividiríamos, e a piscina-que-ninguém-quer. Na parte de baixo, havia
um campo de futebol, com traves sem rede, uma quadra coberta e
um outro espaço, parcialmente coberto, onde dava para ver várias
pessoas sentadas em volta de mesas vermelhas. Acompanhei com
o olhar o caminho por onde eu seguira mais cedo, até a entrada
com aquele arco de madeira duvidoso.
Por um momento, desconfiei que até a piscina principal fosse
feita de madeira (o que seria bem burro), mas, olhando bem para o
ponto mais afastado de nós, atrás do espaço das mesas vermelhas,
dava para ver o azul da fibra. E, bem atrás dele, um prédio pequeno
de dois andares, cheio de portas e janelas (que, de onde eu estava,
pareciam minúsculas), que supus ser o alojamento principal.
Bia começou a descer uma escada feita de tijolos (por um
momento, olhei rápido e pensei que era madeira, acho que estou
um pouco traumatizada).
— Gente, como que eu não vi que a gente tinha subido essa
escada? — comentei, antes de começar a descer. Bia parou, virou o
corpo ligeiramente, e me encarou de um jeito estranho.
— A gente não veio por aqui. — Ela estava me julgando. Ela
realmente estava me julgando. — Veio por lá! — Apontou para uma
estradinha que ficava depois do nosso chalé.
— Ah…
— Onde você tava com a cabeça, pelo amor de Deus? — E
voltou a descer a escada.
Em você.
Mordi a língua e deixei que ela se afastasse um pouco. Estava
batendo um vento meio forte, que trazia o cheiro dela direto para o
meu nariz. Sério, Universo? Eu não queria ficar pensando no cheiro
dela, nem sentindo, então fiz igual o Edward Cullen e prendi a
respiração até não aguentar mais e precisar puxar o ar com a boca.
Nossa, puxei longe essa referência. Mas eu tenho gostos
peculiares…
O esforço por não respirar fez meu corpo esquentar mais, ou foi
a presença de Bia, ou o fato de eu estar andando em direção
àquelas pessoas. E, para piorar, esqueci a porcaria da minha
toalhinha na mochila. Em outras palavras, eu estava suando o
bastante para encher uma piscina e não conseguia nem me secar
para me sentir confortável (ou menos desconfortável). Eu odeio o
calor, assim como odeio me sentir tão ansiosa antes de me
aproximar das pessoas.
O problema é que eu sabia que alguém ia falar. Tentei não
sofrer por antecipação, mas eu sabia que ia acontecer, porque
sempre acontece. Tia Janaína sorriu para mim, de um jeito afetivo e
maternal. Respirei fundo, aquele sorriso me dando forças para me
aproximar.
Eu devia ter corrido atrás da minha carona quando tive a
chance, mesmo que precisasse comer toda a poeira de Minas
Gerais no caminho.
— Nossa, menina, mas você engordou muito, né?
Oi, bom dia, Rute, como vai você?
— Nossa, tia, que comentário babaca! — Bia respondeu no
mesmo tom. O jeitinho bravo e militante não era algo novo para
mim, eu já tinha visto na internet. Sempre achei fofa a forma como
Bia costumava gravar um story dizendo que não ia se irritar com
algum assunto e no story seguinte já estava completamente irritada.
— Que bom que você reparou, Rute! Eu já estava ficando
preocupada que ninguém fosse notar. — Tentei disfarçar minha
ironia.
E, assim, vestida de sarcasmo e fingindo que aqueles
comentários não me incomodavam, segui a manhã inteira. Eu queria
muito, sei lá, poder ter um fim de semana de paz, sem que ninguém
se incomodasse comigo ou com o meu corpo, mas não dava. Não
dava para falar sobre mim sem falar sobre o fato de eu ocupar
espaço e do quanto isso afeta as pessoas. Eu não tinha nem o
direito de ficar nervosa apenas por estar sentindo coisas muito
fortes pela minha crush do passado (que, pelo visto, continua sendo
minha crush no presente), tinha também que sentir aquele incômodo
e sorrir aquele sorriso falso para os olhares tortos que me lançavam.
Quer saber? Eles que lutem, não vou me esforçar para ser
agradável com ninguém.
E foi assim que me afastei de todo mundo e voltei ao chalé,
mentindo para todos (e para mim mesma) que iria apenas buscar
meu biquíni. Mentira que caiu por terra quando abri minha mochila e
peguei o único livro que eu trouxera para cá. Quando passei a mão
sobre a capa azulada, me arrependi de ter trazido só o livro que eu
já havia começado a ler.
Antes de me jogar na cama, pensei no quão errado era me
esconder das pessoas porque elas não aceitavam o meu corpo. Era
errado, sim, mas às vezes a gente só quer descansar e se privar de
bater de frente. Minha vida sempre foi bater de frente.
Não sei o que aconteceu, acho que eu estava muito cansada e
não tinha percebido, porque, assim que me deitei na cama, dormi.
Só fui acordar horas mais tarde, com Bia me chamando para comer.
— Ei, ei. — Ela me balançava de leve, com medo de me
incomodar (o que não fazia sentido, porque acordar alguém é
basicamente incomodar).
— Hm — resmunguei sonolenta, tentando abrir os olhos.
— O almoço já foi servido há um tempão. — Bia parou de me
sacudir.
— Que bom. — Eu me virei de lado, de costas para ela. — Não
vou precisar comer na frente das pessoas.
Pensei que Bia fosse perguntar um “quê” daquele jeito cantado
dela, o que me obrigaria a explicar um dos meus muitos
desconfortos. No entanto, acabei ouvindo outra coisa:
— Que livro é esse aqui?
Eu quase respondi que o nome estava escrito na capa. Quase.
Em vez disso, me virei para vê-la. Bia estava sentada no colchão
dela, agora com o lençol rosa forrado, analisando o livro.
— É sobre o quê? — Ela o observava com curiosidade.
— Hm… Ah. É sobre uma garota, a Raíssa, que costuma jogar
um jogo desses virtuais, sabe? Aí ela usa um avatar masculino,
porque sofria muito assédio antes, por ser menina e tudo o mais.
— Hmm… Legal — Ela ergueu as sobrancelhas, parecendo
interessada.
— Só que aí ela começa a conversar com uma outra garota e
tals, a Ayla. E acaba que, tipo… — Fiz uma pausa para estudar bem
a reação dela. — A gamer se apaixona por essa garota.
— Pela Ayla? — perguntou, com a boca aberta, passando a
mão pela capa.
— É. A capa é bem explicativa. A Raíssa é a que tá atrás do
computador.
— E aí, o que acontece?
— Não sei, ainda não li tudo. Mas se soubesse, não contaria.
Eu hein! — Eu me levantei devagar.
— Eu posso ler?
Ai, meu Deus, é o único livro que eu trouxe.
— Pode, claro!
— Não vai te atrapalhar?
Vai!
— Não. Não. Eu nem estava pensando em terminar de ler por
agora.
Logo agora que ia chegar a parte da convenção!
— Jura? — Bia abriu um sorriso tão grande, mas tão grande,
que eu me derreti completamente. Sério, eu conseguia sentir meu
corpo inteiro deslizando da cama até o chão.
— Eu… — Engasguei. — Eu não sabia que você gostava de…
ah… desse tipo de livro.
— Que nada! Eu adoro esse tipo de livro. — Ela me olhou de
um jeito esquisito e meu coração bateu tão forte que foi parar, sei lá,
fora de mim. — Sobre jovens.
— Ah… — Suspirei de um jeito meio desolado. Acho que minha
decepção ficou mais que estampada na minha cara. Eu realmente
achei que ela estava interessada no livro por ser um romance entre
meninas. Sei lá, a Bia sempre foi tão defensora dos LGBTQ+s e
outras minorias, sempre aparecia xingando pessoas no Twitter.
Cheguei a pensar, muitas vezes, que ela pudesse fazer parte da
Comunidade LGBTQ+ pelo tanto que defendia a causa. Só que
nunca ficou claro nada disso, o que me deixava meio desesperada.
Mas, tecnicamente, ela estava interessada no livro, que era um
romance entre meninas… O que poderia ser um sinal.
E eu precisava muito desse sinal.
— Bom… eu vou lá procurar alguma coisa para comer. — Eu
me levantei depressa, porque, de repente, lidar com trinta pessoas
gordofóbicas ficou mais fácil do que lidar com uma Beatriz no
mesmo quarto que eu, respirando o mesmo ar que eu, olhando para
mim com aqueles olhos castanhos… tortos e doces e perfeitos. Dos
fiscais de peso, eu podia fugir, podia dar uma resposta atravessada
e seguir o baile. Mas e de mim, eu fugiria como?
Abri minha mochila e resgatei o celular que eu tinha
abandonado lá dentro. Para a minha sorte, pelo menos o sinal da
operadora estava pegando, então habilitei meus dados móveis e fui
saindo do quarto, deixando Bia com o livro nas mãos e um sorriso
no rosto.
Ai, honestamente, essa garota quer me matar?
Capítulo 3
Bia parecia estar gostando mesmo do livro, porque eu saí do
quarto, almocei, voltei, peguei meu biquíni, fui até o banheiro,
coloquei meu biquíni, passei quase que por cima dela de biquíni, e
ela nem piscou. Saí do quarto me sentindo tão invisível quanto o B
na comunidade LGBT. Sei lá, eu sou grande, passei de biquíni com
um corpão desses bem na cara dela, quase ao som de Pabllo Vittar
e Anitta, e Bia nem me notou. Todo mundo me notou quando
cheguei à piscina. Tipo, todo mundo mesmo. As pessoas não
fizeram nem questão de disfarçar o desconforto; algumas, para o
meu sincero espanto, me olharam admiradas.
Gustavo, o filho de Rute, que estudou comigo e com Bia no
Fundamental II, foi a única pessoa a vir falar comigo. Eu, como
sempre espero o pior das pessoas, achei que ele fosse me ofender
de algum jeito, ou fazer alguma “piada”, mas ele foi legal, se sentou
perto de mim na piscina e imitou o movimento ritmado que meus
pés faziam na água.
— Amada, que cara de derrota é essa?
Gustavo disse “amada”, ele realmente disse.
— Nossa, tá tão óbvio assim? — Olhei para ele, querendo
muito perguntar se ele era gay. O que não seria nada legal da minha
parte, tipo, ficar deduzindo a sexualidade das pessoas por causa de
um “amada”. Mas o jeito como ele disse… Sei lá, senti uma energia
muito gay!
— A pessoa não coloca um corpão desses pra jogo e fica com
os ombros encurvados, como se tivesse sido a drag derrotada na
final de RuPaul's.
Gay, ou bi, ou não sei. Mas definitivamente não hétero. Homens
héteros (e cis) têm muitíssima dificuldade em demonstrar qualquer
tipo de afeto básico por medo de ferir sua pobre masculinidade
frágil; admitir que gosta de coisas não lidas como terrivelmente
masculinas? Fora de cogitação. Mesmo com a certeza (e uma
ligeira dose de empolgação por encontrar outro LGBTQ+ naquele
lugar), não comentei nada. Eu sempre prefiro que as pessoas ajam
com naturalidade diante de mim, então minha obrigação era fazer o
mesmo.
Só que, definitivamente, eu não estava agindo com
naturalidade, porque Gustavo apertou os olhos, tentando ler algo na
minha expressão.
— Corpão? — perguntei, meio rouca, prestes a engasgar com
os muitos estereótipos que eu estava engolindo.
— Mulher? — Ele me olhou de cima a baixo, como se
constatasse o óbvio. — Lógico!
Um homem gay que não estranha meu corpo gordo? O que
está acontecendo?
Foi aí que eu engasguei. Engasguei mesmo, com as minhas
próprias palavras, como se tivesse engolido água da piscina depois
de um mergulho mal feito.
— Cê tá bem?
— Desculpa — pedi, com a voz aguda, em meio às tosses. Meu
corpo estava todo quente, meu rosto e minha garganta, queimando.
Eu me desculpei como se Gustavo tivesse ouvido meus
pensamentos ligeiramente preconceituosos sobre ele.
— Que isso, menina? Você não está nada bem! Tá passando
mal? — Ele alisou minhas costas. Fiz que não com a cabeça.
Fiquei algum tempo tossindo, os olhos lacrimejando, até
conseguir respirar direito.
— Gente, o que aconteceu? — Gustavo perguntou com os
olhos arregalados, um pouco depois que eu parei de tossir.
— Menino… — Minha voz estava toda arranhada. Levei a mão
direita à garganta. — Nem eu sei.
— Vou buscar uma água pra você. — Ele foi se levantando sem
perguntar se eu queria a bendita água (eu queria), mas, sei lá,
quando fiquei sozinha ali, com meus pés dentro da piscina e todos
os olhares, até o das crianças que brincavam distraídas com suas
boias de bichinhos, voltados para mim, me senti estranha e solitária.
Senti que não pertencia àquele lugar, que meu corpo não deveria
estar ali, tão exposto, tão livre.
Ah, quer saber, problema deles!
Eu me joguei na piscina e mergulhei o mais fundo que
consegui, com os olhos fechados, imaginando por alguns segundos
que estava indo para outra dimensão; depois voltei à superfície,
para a realidade, e abri os olhos.
A primeira coisa que vi foram os pés esquisitos, com dedos
magros e espaçados. Eles pareciam, sei lá, gengibres. Eram a coisa
mais fofa do mundo, quis muito mordê-los, mas me contive.
Olhei para cima, tentando forçar meus olhos a ficarem abertos
contra a claridade e meu coração a parar de dar aqueles saltos
estranhos. Sinceramente, às vezes eu ficava na dúvida se estava
apaixonada ou tendo um ataque cardíaco.
— O livro é bom demais! — Bia gritou antes de se sentar, de
calça jeans, na beira da piscina. Escorei meus braços na borda e
fiquei olhando para ela, ainda esticando o pescoço para olhar em
seus olhos.
— É mesmo, é?
— É... — Ai, aquele “é” cantado dela me deixava meio, sei lá,
mole. — Eu tô muito empolgada. Não queria parar, mas meu olho
começou a doer. Isso acontece quando leio muito, ele começa a se
fechar sozinho. Aí eu tento ler só com o outro, daí ele começa a
doer também e não consigo mais ler nada. Um saco.
Suspirei antes de conseguir me conter. Os olhos dela (um
completamente diferente do outro) eram tão… doces, tão perfeitos.
— Aqui sua água! — Gustavo se sentou na beira da piscina e
colocou o copo na minha mão. Eu sinceramente nem estava
prestando atenção nele, nem na água. Se ele tivesse me entregado
um copo de café eu teria bebido sem perceber. — Garota? E essa
calça? Você tá maluca?
Eu sabia que Gustavo não estava falando (gritando) comigo,
era bem óbvio, mas me virei e olhei para ele mesmo assim.
— Ai, Gu, me deixa! — Bia respondeu, meio irritada.
— Querida, não, não! Um calor do inferno desses e você senta
na beira da piscina de calça? Pra começar, quem traz calça para um
fim de semana no clube?
Eu era obrigada a concordar com ele.
— Aff, já falei pra me deixar em paz! — Bia se levantou
depressa, visivelmente chateada.
Sentindo uma urgência inexplicável de falar com ela, fui até a
escada de metal que ficava na lateral esquerda da piscina e saí da
água. Enquanto a seguia devagar — porque eu não ia correr toda
molhada —, fiquei observando Bia subir com pressa a escada que
levava até o nosso chalé. Eu a perdi de vista apenas por alguns
minutos, mas foi o suficiente para que ela sumisse. Não estava no
nosso quarto, nem em lugar nenhum que eu pudesse ver.
Então, fui até a piscina-que-ninguém-quer, torcendo para que o
portão branco descascado estivesse aberto e para que Bia
estivesse lá. Eu estava começando a ficar preocupada com aquele
sumiço.
Acho que algum deus, ou entidade, ou o universo, ouviu minhas
preces.
Beatriz estava sentada à beira de uma piscina pequena, de uns
seis metros por dois. Tinha dobrado a barra da calça até a canela,
logo abaixo dos joelhos, e estava com os pés dentro da água.
Eu me sentei perto dela em silêncio. Só queria mostrar que
estava ali.
— O Gustavo pega demais no meu pé — reclamou. — Eu não
fui lá para dar um mergulho, sabe? Só queria falar sobre o livro. Não
ia colocar um short só pra isso.
Fiquei olhando para ela, tentando me lembrar se alguma vez na
minha vida já vi Bia vestindo qualquer coisa que não fosse uma
calça jeans. Mas, tudo bem, quem era eu para julgar?
— É que as pessoas se incomodam muito com o corpo do
outro, com o que o outro usa.
Ela me olhou de cima a baixo (que mania chata que as pessoas
têm de fazer isso, meu Deus!), parecendo finalmente ter me notado.
Por um segundo, quis me esconder, sair correndo dali, tapar meu
corpo com os braços, qualquer coisa. Mas Bia me encarou de um
jeito tão gentil que eu senti que poderia mostrar muito mais para ela.
Ok, isso talvez tenha pegado mal, mas se ela quisesse...
— Você é tão linda, Vanessa!
Meu Deus, do nada?
Calma, coração! Segura aí, meu filho, não pula assim!
Ai, eu tô entrando em desespero.
Sorri, completamente sem graça, sem saber o que responder.
Não sabia se deveria agradecer ou sair correndo. Ou, sei lá, dizer
que ela é que é linda, com esses olhos castanhos e essa boca
rosinha que…
— Eu queria ser assim, meio foda-se, que nem você. Não ligar
para o que os outros pensam. Mas eu ligo.
— Eu também ligo, só não deixo de correr atrás do meu
conforto por causa das pessoas. — Eu ligava, sim. Lógico que
ligava. Mas queria falar algo que confirmasse a visão que Bia tinha
de mim. Eu queria que ela me visse como uma garota inabalável e
incrível. — Já é tão difícil ter conforto sendo gorda. É tão difícil não
caber nos lugares, tão difícil não se sentir culpada por não caber
nesses lugares…
— Desculpa, eu não queria comparar nem nada.
— Eu sei, Bia, eu sei.
— É que é fácil pro Gustavo se incomodar com a minha calça
jeans, ele não entende. — Ela começou a chutar a água da piscina.
— O que ele não entende? — incentivei porque estava na cara
que Bia precisava desabafar.
— Ele é um garoto, né? Mesmo sendo gay, ele ainda é um
garoto branco e magro e padrão. Só acho que ele não deveria se
incomodar com as minhas roupas, sendo que é julgado pra caramba
pelas roupas que usa. Ah, nem sei mais o que tô falando.
— Bia, só a gente sabe a nossa dor. Só o Gustavo sabe a dele
e só você sabe a sua.
— Eu sei, cara. — Ela estava realmente chateada. — Tento
entender a dor de todo mundo, mas não consigo. Não acho justo.
Os caras podem tudo, entende? Eles podem rir alto, abrir as pernas
de um jeito embaraçoso, podem beber até ficar inconvenientes. Eles
podem ser medíocres e ninguém vai notar. Eles podem dançar
desengonçados que ninguém vai ligar. Sei lá, eu só queria ter a
autoestima do homem branco cishet.
— Amada? — Eu não queria brigar com ela, mas
honestamente? — Branca você já é… Quer mesmo começar uma
guerra para saber quem é mais oprimido? Comigo? — respondi,
quase sem notar. Eu não queria que ela me encarasse com aqueles
olhos tortos e ligeiramente chocados. Mas ela encarou.
— É… eu sei — cantou e voltou a olhar para o nada. — Mas eu
ainda não posso ser só feia, estranha e medíocre.
— É claro que pode! — A minha boca gigante, meu Deus! Bia
voltou a me olhar, parecendo muito arrasada. — Eu quero dizer, não
que você seja.
— Tudo bem, Vanessa. — Ai, o que eu fiz?
— Não. É sério, você não é nenhuma dessas coisas, mas pode
ser. É um direito seu, sabe? É um direito nosso ser do jeitinho que a
gente é.
— Eu entendo. — Ela colocou a palma das mãos no chão, ao
lado do corpo, e se ergueu. — Deve ser mó chato, né? Ficar
ouvindo uma menina magra reclamar do próprio corpo.
Ela estava reclamando do próprio corpo? Nossa, ela tem
questões com o próprio corpo. É isso! Eu sou muito burra!
— Não, não, Bia.
— É que você parece tão feliz com o seu, mesmo com as
minhas tias falando coisas horrorosas pra você. — Ela se virou de
um jeito meio dramático. — Como isso não te incomoda?
— Não é só sobre estar ou não feliz com o meu corpo. A
maneira como as pessoas reagem a ele é problema delas. Agora,
eu ter que deixar de ir nos lugares porque não sei se vou caber
neles, aí é problema meu. E não só meu. Algumas pessoas
simplesmente não cabem nos minúsculos espaços que reservam
pra nós, mas têm que se esmagar para entrar neles, porque elas
precisam estudar, trabalhar, porque elas têm que pegar ônibus,
enfrentar roletas, cadeiras desconfortáveis no trabalho, na
faculdade, na escola.
O olhar meio assustado, meio desolado dela me deixou de
coração partido. Não era para eu ter falado todas essas coisas. Não
estou no Twitter fazendo thread sobre a diferença entre pressão
estética e gordofobia. Estou falando com uma pessoa, na minha
frente, que está chorando porque se acha feia. Sendo que ela não é
feia, e eu só queria dizer isso para ela, mas não sei como dizer isso
sem passar pano para a quantidade absurda de bobagens que ela
está falando. E eu me sinto mal. E eu não queria me sentir mal.
— Desculpa, Vanessa. Eu não queria… — Ela saiu correndo e
eu fiquei me achando um monstro. Eu não deveria ficar tão mal
assim por dizer a verdade, mas fiquei. É difícil não se sentir um
incômodo quando você passou a vida inteira se sentindo
exatamente desse jeito.
Capítulo 4
Era meio lógico que Bia se esconderia no quarto o resto da
tarde. A primeira vez que passei no chalé, ela escondeu o rosto e
depois correu para o banheiro, sem nem olhar na minha cara.
Depois de uns vinte minutos, voltou para o colchão com os olhos
vermelhos e inchados. Eu queria saber por que ela estava
chorando, queria saber o motivo pelo qual me evitava tanto. Acho
justo? Não acho justo! Depois ela pegou o livro e fingiu que estava
lendo. Eu sei que ela estava fingindo. Pelo tempo que tinha passado
naquele quarto, dava tranquilamente para ler a história até o fim (se
ela não parasse). Acho que Bia só queria evitar o mundo.
Sei lá, às vezes me incomoda, sim, o fato de uma menina
magra se isolar e se esconder por causa do próprio corpo. Um corpo
que cabe nos lugares. Um corpo que até ganha olhares tortos, mas
não tão julgadores. E aí vem aquela voz dentro de mim e me diz que
eu deveria ficar com raiva de tudo o que faz essa menina se
envergonhar e se esconder, e não dela.
Mesmo assim, sinto raiva. Por tudo. Queria ter aproveitado o
resto da tarde com ela, conversado, qualquer coisa. Mas Bia ficou
no quarto. E eu fiquei completamente perdida e sem ter onde ficar, o
que me fez terminar ali, olhando para ela com aquele bendito livro
nas mãos.
— Beatriz, minha filha! — Tia Janaína entrou no quarto em um
rompante.
Eu dei um pulo na cama, meu coração acelerando, e comecei a
suar frio. Gente, não se faz uma coisa dessas!
— Mãe de Deus! — Bia também se sobressaltou.
— Você não vai sair da toca, não? — Janaína colocou a mão
direita na cintura.
— Tô lendo! — Ela ergueu o livro.
— E você veio aqui pra ler?
— Uhum.
— Ai, Beatriz, você não toma jeito mesmo! Vanessa, você
também, minha filha, sai desse quarto!
— Ô, tia Janaína, eu vou sair já, já!
— E traz a Beatriz, porque essa menina nunca sai desse
quarto. Garota antipática.
— A senhora quis dizer antissocial?
Eu tenho que admitir, Bia tem coragem. Se eu falasse assim
com a minha mãe, ela voltava a pé dos Estados Unidos para me
esfolar.
— Não importa o que eu quis dizer, Beatriz. Você vai sair desse
quarto.
Ela voltou a erguer o livro.
— Eu. Estou. Lendo.
— E o que esse Conectadas aí tem de melhor do que comer?
— Olha, mãe, muita coisa!
— Não falo mais nada com você! — Tia Janaína saiu, batendo
a porta do quarto.
— Nossa, sua mãe ficou brava, hein? — comentei, mas Bia
nem olhou para mim. Eu não sabia se ela estava com raiva, sendo
sonsa, ou só me evitando mesmo. Cheguei a perder a fome. Então
saí da cama, passando por cima dela, com o objetivo de ir até o
banheiro, sem saber direito se eu queria tomar um banho ou chorar,
ou chorar durante o banho fingindo estar em uma cena de novela
mexicana.
— Ei… — Ela se levantou e veio atrás de mim, segurando de
leve o meu braço. — Toma aqui o seu livro.
— Ah… — Peguei o livro, mas fiquei olhando para ela, tentando
entender o que aquela garota queria. Em um momento nem olha
para mim, no outro agarra o meu braço?
— É muito bom, eu… — Engoliu em seco. — Eu gostei muito.
Jura? Nem reparei.
— Pois é, deu pra notar — respondi de um jeito seco. Bia tinha
me ignorado a tarde inteira e agora vinha puxar assunto?
— Nossa! — A mão dela ainda estava no livro e senti um leve
puxão quando ela se afastou. — Eu só queria conversar —
resmungou, se jogando no colchão.
— Ah, agora você quer conversar? — Bati as mãos nas laterais
do corpo. — Agora? — Por que eu estava com tanta vontade de
gritar? De onde vinha toda aquela raiva?
Bia se sentou no colchão, escorando as costas no beliche, e
ficou me olhando.
— Qual é o seu problema?
— Qual é o seu problema? — rebati, apontando para ela. —
Você ficou aqui o dia inteiro, me ignorando e ignorando todo mundo.
Não dá para te entender, Bia!
— Disse a pessoa que sumiu por três anos!
— Eu sumi?
— Sumiu!
— E você não fez questão nenhuma de me procurar, né?
Ela franziu o cenho em uma expressão confusa.
— Foi você quem foi embora! — acusou, em um tom mais
baixo.
— E eu tive escolha? — Já eu estava gritando.
— Pensei que você não queria mais conversar com seus
amigos da roça!
— Ai, Bia, sério mesmo? — Eu me aproximei do beliche para
pegar roupas na minha mochila. Meu pijama, para ser mais
específica. Tudo o que eu queria era tomar um banho quente e me
deitar. Sem cobranças, sem ficar olhando para o passado e para os
erros.
— Eu pensei que essa viagem fosse fazer a gente voltar a
conversar como antes.
— Foi você quem ficou o dia inteiro no quarto, fingindo que
estava lendo. — Eu remexia na minha mochila de um jeito meio
aleatório; não sei se estava mesmo prestando atenção no que fazia.
Pensei que durante essa viagem eu e ela voltaríamos a conversar
de boa, como era antes, e quase fizemos isso. Só que tudo deu
errado.
— Ok, você tem razão.
Bia puxou meu braço e eu fiquei sem reação. Olhei para ela e
encontrei aqueles olhos tão perto de mim que quase caí durinha no
chão. Um coração acelerar desse jeito não é natural. Não consegui
nem disfarçar a vontade que me deu de, assim, de repente, puxar
essa menina pela nuca e…
— É lógico que eu tenho razão. — Tinha um bolo na minha
garganta. — Sempre tenho razão! — Peguei a mochila e fui até o
banheiro, praticamente correndo. Correndo dela.
Meu coração batendo forte demais, eu sentindo demais no
corpo inteiro, minha cabeça pensando coisas demais. Se eu tivesse
a certeza de que Bia sentia ao menos metade daquilo que eu estava
sentindo, eu já teria beijado essa menina há muito tempo.
Muito, muito tempo.
Fiquei pensando nela, de um jeito meio obcecado, durante o
banho inteiro. Eu já estava com os dedos enrugados quando saí do
boxe e coloquei meu pijama. Não estava com fome, não queria sair
do quarto. Talvez o vírus de desânimo da Bia tivesse me infectado.
O quarto estava vazio quando saí, o que me deixou ainda mais
chateada. Agora que eu havia decidido ficar ali, Bia resolveu sair da
toca? Que consideração!
Suspirei, deixando meus ombros pesarem e pendurei minha
toalha de qualquer maneira atrás da porta. Depois, me joguei no
beliche e fui checar meu celular. Tinha cinco mensagens da minha
mãe, cada palavra em uma linha (ela não consegue aprender a usar
o botão de espaço, não tem lógica), me perguntando se eu estava
me divertindo. Minha vontade era de responder a verdade, mas não
queria preocupá-la com minhas bobagens. Respondi que estava
tudo legal.
Ainda com o celular na mão, recebi outras duas mensagens,
dessa vez de Jhonatan.
Tô com saudade!
Onde você tá?
Juro que quase respondi um belo “na pqp”, mas me contive.
Não queria manter nenhum tipo de conversa com meu ex, nem
mesmo se eu decidisse aceitar a desculpa de que poderíamos ser
só amigos. Amigos? Nunca fui amiga de Jhonatan. Fiquei olhando a
mensagem, me sentindo culpada por ter aberto o chat, me sentindo
culpada ao ver aqueles checkizinhos azuis. Sempre me sinto mal
por coisas que não são culpa minha. Pedi para ele parar com
aquelas mensagens. Se não puder respeitar isso, não é digno da
minha resposta.
Fechei o aplicativo e bloqueei a tela do celular. Vi o livro que Bia
havia deixado sobre o colchão. Por vingança, peguei e comecei a
ler. E, por vingança, não parei de ler quando ela entrou no quarto e
disse alguma coisa aleatória. Nem quando ela se sentou e ficou me
encarando (eu podia sentir que ela estava me encarando). Muito
menos depois, quando Bia se levantou, tomou banho e voltou para o
colchão.
O livro era bom mesmo.
Briguei com os meus olhos e venci. Li até o final. Quando
finalizei, ligeiramente emocionada (chorando feito uma condenada),
Bia estava sentada no colchão, me encarando.
— Eu falei que era bom… — O tom de voz soava quase como
um “eu te avisei”.
— Olha só… preciso do meu momento aqui. — Apertei meus
olhos com as mãos, tentando inutilmente prender minhas lágrimas
ali dentro. — Eu sei que não é um livro desses que são feitos pra
fazer a gente chorar, mas… nossa! — eu disse em uma voz muito
mais fina que o normal. Parecia um gato miando, misericórdia.
— Quer ir lá comer alguma coisa? Você está aí há horas!
— Quero. — Sério, eu parecia um bebê depois de chorar por ter
batido a cabeça na mesa.
— Vem! — Bia tirou o livro das minhas mãos e me puxou. A
gente ficou tão pertinho que, se eu não estivesse completamente
desestruturada, eu a teria beijado ali mesmo. Mas aí me lembrei do
livro e voltei a chorar, e fui chorando, chorando, chorando.
— Meu Deus, o que está acontecendo?
— A menina… ela… — tentei explicar o quanto eu tinha me
visto na personagem, o quanto eu tinha medo. Tentei explicar coisas
que eu nem sabia que estava guardando dentro de mim. Quis dizer
que eu tinha me encontrado em um livro, o que nunca acontecia, o
que eu achava que nunca ia acontecer. Mas não consegui.
— Tudo bem, Nêssa! — Ela me abraçou e eu me senti encaixar
no abraço dela, como se nada pudesse me tirar dele, como se nada
fosse me abalar ali. — Eu também chorei muito.
Capítulo 5
Já estava muito tarde. Mesmo assim, um grupo de pessoas
desafinadas insistia em cantar músicas de mil novecentos e bolinha.
Bia e eu estávamos afastadas, próximas à mesa do jantar (a
gente devia ter vindo antes, só tinham restos agora!). Ela comia as
carnes meio frias em um pratinho de plástico, e eu, arroz e
vinagrete. Não quis me aproximar, pois ainda estava com meu
pijama. O máximo que fiz foi colocar o biquíni (que custou o olho da
cara) debaixo da roupa e vim. Tinha planos de aproveitar pelo
menos a noite na piscina. Eu não ia gastar uma das minhas poucas
roupas boas para vir comer, sinceramente.
— Coitado! — Bia comentou, colocando um pedaço de carne
na boca. — Olha lá, ele não aguenta mais.
Olhei na direção que ela olhava e vi o pobre coitado do músico
com cara de exausto. Ele já não aguentava mais tocar o violão, mas
tocava bravamente. Admirei o sujeito. Fiquei observando o olhar
desolado que ele lançava para a mesinha onde quatro pessoas
jogavam baralho e senti pena. Acho que o rapaz só queria jogar
uma bisca com os idosos.
— Aquilo ali já está decadente.
— Acho que ele já tocou essa música duas vezes só enquanto
a gente está aqui. — O olhar de pena dela era tão genuíno que me
fez rir. — É sério! Dou graças a Deus todo dia por não ter aprendido
a tocar violão direito, senão sobrava até pra mim.
Mas Bia tocava violão direito. Olhei para ela, pronta para dizer
isso. Não disse. Havia algo de muito triste nela, eu só não sabia o
quê.
— Eu gosto das festas da sua família! — comentei, de um jeito
meio defensivo.
— Você fala isso porque não ouviu o mesmo repertório duas
noites seguidas.
— Vocês estão aqui desde quinta? — perguntei, um pouco
assustada. Bia apenas confirmou com a cabeça.
— A primeira noite é sempre a melhor. Todo mundo empolgado,
o repertório de sempre não parece tão de sempre assim. A comida
tá melhor, ainda existe alguma saudade dos parentes que a gente
não vê tanto. Depois é só ladeira abaixo.
— Poxa, então eu vim no pior dia.
— É… — Ela olhou para baixo, o rosto cheio de remorso. —
Acho que você acabou não aproveitando quase nada, né?
— Não deu nem para pegar uma corzinha — lamentei. Eu
realmente queria pegar um bronzeado. — Mas acho que até o
horário do almoço amanhã consigo uma marca digna. — Olhei para
a minha clavícula. Havia uma marquinha bem fraca ali.
— Eu… devia ter te feito companhia.
— Devia mesmo — respondi na lata, observando duas pessoas
que eu não conhecia se levantarem da mesa dos “cantores” e se
despedirem com um aceno. O cara do violão olhou para os outros
de um jeito meio esperançoso, meio desesperado, só que ninguém
mais se levantou. Rute e o marido, que eu conhecia por ser uma
das (muitas) pessoas que bloqueei no Facebook em outubro de
2018, continuaram sentados no mesmo lugar.
— Toca “Boate Azul”, “Boate Azul”! — ela dizia, batendo na
mesa.
— Ah não! — Eu e Bia resmungamos na mesma hora.
E foi assim que eles obrigaram o cara a tocar mais três
músicas. O pessoal do baralho se levantou e foi embora durante a
segunda, o que deixou o rapaz ainda mais desolado.
— Tchau, Marcinho! — No fim da terceira música, Rute foi se
levantando e puxando o marido, que olhou na direção de onde eu e
Bia estávamos e fechou a cara.
— Miniaca! — soltei baixinho, quando ele virou as costas.
— O quê?
— Miniaca. Minion babaca.
— Você inventou isso agora?
— Não, foi o Jhon.
— Ah, seu namorado, né?
Olhei para Bia, estranhando a forma como ela havia dito aquilo.
Mas ela não retribuiu meu olhar, ficou apenas espetando minúsculos
pedaços de carne no pratinho com um palito.
— Meu ex. A gente terminou tem uns três meses.
— É. Eu vi. Mas você gostava muito dele, né? — Bia me
encarou por um momento, mas não conseguiu sustentar o olhar.
— É. Ele não é um miniaca.
— Mas é péssimo em inventar nomes!
— Ele é péssimo em muitas coisas.
Olhei para o cara do violão. O coitado ainda estava lá. Por um
momento, duvidei que ele poderia se levantar. Daria para tocar
“Boate Azul” três vezes se eu fosse contar o tempo que ficamos em
silêncio. Até que o rapaz se levantou e seguiu, cambaleando (não
sei se de sono, ou se bêbado, ou os dois) na direção do
acampamento.
— Por que só você ficou lá em cima, nos chalés?
— Metade de nós ia ficar lá. Na primeira noite, ninguém dormiu.
Na segunda, ninguém aguentou ficar lá em cima.
— Uai, por quê?
— Tava quente e aqui no alojamento tem ar condicionado.
— Ah…
— E é lógico que não sobrou quarto pra mim aqui embaixo.
— Por que você não pegou um colchão e dormiu com a sua
mãe?
— Sei lá… preferi ficar lá em cima sozinha.
— Mas você acabou não ficando sozinha.
— Pois é… Pelo menos isso — resmungou.
Olhei para ela, tentando entender o que queria dizer com
aquilo. Mais que isso, eu queria entender quem aquela garota tinha
se tornado. Eu me lembrava do jeito não usual como ela costumava
lidar com as pessoas, sempre distante e evitando contatos físicos.
Bia sempre detestou abraços, qualquer proximidade a deixava
desconfortável. Ela também evitava falar sobre essas coisas, sobre
suas inseguranças e medos. Era como se ela quisesse se fechar em
uma casca, onde ninguém pudesse atingi-la, onde ninguém pudesse
chegar até ela.
Mas ela falava comigo, se sentia à vontade o suficiente para
deitar no meu colo no sofá, quando víamos filmes baixados da
internet. Ali, naquele clube, eu senti que isso havia mudado, que ela
me via como uma estranha, uma pessoa na qual não podia confiar.
E eu queria que ela confiasse em mim de novo. Queria que a gente
se sentasse de biquíni à beira da piscina para falar mal dos pais que
ficam no celular enquanto os filhos brincam na água.
Enquanto eu a encarava, percebi que aquele desejo parecia
pertencer a outro universo agora. Bia estava pior do que antes,
ainda mais fechada e reclusa, ainda mais insegura. Aquilo me
preocupou muito pela primeira vez.
— Por que você se esconde tanto? — perguntei na lata, porque
cansei de meias-palavras.
— Sabe aquele ditado: o que é bonito tem que ser mostrado?
— Hm?
— Então o que é feio tem que ser escondido.
Eu vou matar essa menina!
Ou abraçar essa menina!
— É o quê?
— Ai, nada. Deixa! — Ela fez um gesto com a mão, como se
espantasse algo, e se levantou. — Vamos dormir.
Eu a segurei pelo braço, com firmeza.
— Não. Eu quero que você me diga com todas as letras: o que
quer dizer com isso?
— Que eu sou feia.
— Garota… — Soltei o braço dela e esfreguei minha testa. —
De onde você arranca essas coisas?
— Que coisas?
— Isso de dizer que você é feia. Pelo amor de Deus…
— Eu sou.
Eu juro que vou bater nela. Eu vou.
Eu me levantei e aproximei meu rosto do dela, com raiva. Sim,
raiva.
— O que tem de feio em você, Beatriz? — Muita raiva.
— Meu rosto cheio de espinhas… — respondeu, também com
raiva. Nós duas estávamos assim. Acho que nosso corpo não sabia
mais o que fazer com toda aquela energia esquisita que parecia nos
abraçar. — Minhas costas são mil vezes piores, cheias de marcas.
Minha… bunda… é horrível.
— Para, para! — Levantei a mão. — Não tem nada de horrível
em você! — Eu queria bater nela? Sei lá, dar um tapinha para ela
acordar? Queria. Mas também queria abraçá-la, porque eu entendia.
Eu sabia, ô como sabia, o que era se sentir assim.
— Você fala isso porque nunca me viu de biquíni.
— Então eu quero ver! — Agarrei Bia pela mão e fui puxando-a
até a escada. Mas eu não queria forçá-la a nada, nunca faria isso.
Achei que Bia fosse fugir de mim e correr para longe. Porém,
quando soltei sua mão, ela continuou me seguindo.
Paramos na frente no chalé e eu me virei para olhar para ela.
Pensei que Bia pudesse estar chorando, mas ela só me encarava
de um jeito curioso.
— Eu… — começou a falar, mas eu interrompi.
— Desculpa ter te puxado até aqui. Não quero te forçar a nada,
especialmente se você não se sentir confortável. Mas, se você
quiser ir pra piscina-que-ninguém-quer, podemos ir juntas, porque
eu quero muito. — Eu ainda tinha esperanças de me sentar com ela
e colocar nossos pés na água, ou de entrar na piscina com ela,
como fazíamos quando éramos crianças.
— Agora?
— É. Não aproveitei nada o dia inteiro. — Apontei para a porta.
— Será que tá fechado?
— Nunca fica fechado. Eu mesma… — Ela hesitou por um
instante. — Bem, eu mesma fiquei a noite de ontem quase inteira
ali.
— Ah é? Pensei que você não gostasse de piscina.
— Eu gosto de piscina. Não gosto de mostrar meu corpo. À
noite, não tem ninguém para ver.
O golpe que eu levei no peito quase me matou.
Engoli em seco.
— Ah…
— Mas eu não nadei ontem, não. Fiquei escrevendo.
— Escrevendo?
— É… eu… — Bia olhou para os lados, depois para mim. —
Estou escrevendo um livro. — E sorriu.
E eu morri.
Mas ainda queria bater nela.
— Um livro, é? Sobre o quê?
Ela abriu ainda mais o sorriso e começou a andar em direção à
piscina. Eu a segui.
— É sobre uma menina que quer se apagar da memória de
todo mundo que a conhece.
— Hein?
— Existe uma tecnologia que apaga a memória das pessoas,
igual naquele filme que a gente viu, lembra?
— O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças! — Eu dei
um pulo. — Nossa, como eu amei esse filme! Nunca mais vi.
— A gente tem que rever algum dia! — Ela parou em frente ao
portão e me olhou. Eu a encarei de volta, completamente
desesperada, sem ter ideia do que a gente estava prestes a fazer.
Até agora acho que não descobri.
Capítulo 6
A porta da piscina-que-agora-alguém-queria estava mesmo
aberta. Fui entrando, tímida, como se estivesse em uma sala cheia
de pessoas. O lugar estava vazio e lindo. A luz dos postes que
ficavam perto dos chalés chegava até ali, mas o que iluminava
mesmo era a lua, quase cheia. Eu nem tinha reparado nela até
então. Sei lá, acho que Bia desviava todas as minhas atenções.
Fui tirando o pijama devagar, sem olhar para minha crush. E,
ainda sem olhar para ela, me joguei na piscina. Sem medo de
julgamentos. Eu quase nunca pulava daquele jeito em piscinas, mas
ali, com Bia, eu me sentia segura. Apesar de estar quase tendo um
ataque cardíaco...
Molhei meu cabelo e fiquei olhando o tamanho dele, analisando
como estava grande — ainda maior molhado, sem os cachinhos que
formava quando estava seco.
Acho que olhei para todas as coisas possíveis naquele lugar,
antes de olhar para ela. Olhei para os muros altos, pensando no sol
que não bateria ali amanhã e na burrice do proprietário. Olhei para
as plantinhas que ficavam do lado de dentro no muro, em um
canteiro antes da extensa área calçada ao redor da piscina. Olhei
para a ducha e para a parede de pedra atrás dela. Olhei para os
meus dedos sobre a água, fazendo ziguezagues nervosos.
Até que não deu mais, tive que encará-la.
Bia estava sentada na beira da piscina, o celular na mão, me
perguntando algo que não ouvi.
— O quê?
— Perguntei se você quer ouvir alguma música específica.
— Ah, não. — Olhei para os lados, meio desconfiada. Eu sabia
que dificilmente alguém nos escutaria aqui. Mesmo assim…
— Vou colocar minha playlist de verão, tá bom?
— Tá. — O som de “Cool for the Summer” ecoou na noite. —
Você não vai entrar?
— Não.
Ô musiquinha sugestiva! Essa menina está fazendo um jogo
comigo?
Aparentemente, sim.
— Por que você terminou com seu namorado? Ele era babaca?
— Não. — Era, mas eu não queria falar sobre ele. — Nossos
planos de faculdade eram muito diferentes.
— Ah, é? — Ela não pareceu botar muita fé no que eu havia
falado.
— É, eu vou estudar aqui em Santa Clara.
— Ah… pertinho, então.
— Pois é, quase ali do lado.
— Não. Eu quis dizer pertinho de mim. Vou para lá também.
— Ah, é? — Dessa vez fui eu que disse. Depois nossa
conversa virou uma sequência gigantesca de “ah és” um pouco
constrangidos, um pouco… não sei. Era como se nossa conversa
quase casual escondesse algo.
Eu sabia o que eu queria esconder, mas não fazia ideia do que
Bia queria.
Até fazer.
Só me lembro de estar olhando para ela por um longo período,
sem prestar muita atenção nas coisas que contava sobre o tempo
que fiquei fora de Santa Maria Madalena. Algo sobre cantores
sertanejos famosos morando na cidade e uma biografia. Não
consegui gravar nada do monólogo, porque, sem conseguir
controlar, eu estava avaliando, com um pouco de tristeza, o que ela
vestia. Uma calça jeans, uma blusa de manga, que ia quase até o
pescoço.
Ela sempre se vestia assim. Sempre se escondia. Sempre.
Desde muito nova.
— É injusto! — eu disse alto, sem perceber.
— Eu também acho, sabe? As pessoas têm o direito de viver a
vida delas do jeito que quiserem!
Não faço ideia do que ela estava falando.
— Pois é. E de serem o que quiserem ser também — respondi
qualquer coisa genérica para disfarçar que não estava prestando
atenção.
— É, mas as pessoas são foda! — Ela deu um tapinha nas
próprias pernas dobradas.
— Você não deveria ouvir tanto o que elas dizem, não acha?
Bia me encarou de um jeito tão profundo. Acho que ela queria
chorar. Depois voltou a abaixar o olhar para as próprias pernas.
Para a calça jeans que vestia.
— Coça, sabe? A calça. Ficar sempre de calça, parece que,
não sei…
— Até sua perna está te dando sinal de que quer ser livre, Bia.
Por que se prender tanto?
— Eu não sou que nem você. Eu não aguento ouvir nem dez
por cento do que você ouve. Fico com tanta raiva. Eu odeio quando
falam aquelas coisas pra você.
Ironicamente, começou a tocar “Confident”. Ela olhou para o
celular por alguns segundos, um pouco chocada. Eu também olhei.
Depois comecei a rir.
— Mas, olha, às vezes eu me odeio, sabia? — Acho que, pela
primeira vez, não senti tanta vontade de falar a coisa certa para que
Bia pensasse que eu era inabalável. Acho que, pela primeira vez, eu
só queria ser eu, com as minhas inseguranças e minhas revoltas. —
Odeio ser gorda, penso que eu poderia emagrecer, penso nos
sacrifícios que eu poderia fazer. Mas depois eu penso: pra quê? Por
quem? Pelo outro? Não vale a pena, Bia. As pessoas sempre vão
encontrar algo para dizer. Sempre. Não importa o que você faça,
elas sempre vão estar lá para te julgar.
— Eu sei… Só. Desculpa.
— Para de pedir desculpa. Tá tudo bem se sentir mal de vez
em quando. — Coloquei as mãos nas pernas dela. — Só não dá
para se sentir mal assim sempre. Entende, Bia, as coisas não foram
feitas para incluir, foram feitas para que você se inclua. Eu demorei
muito para aprender isso. Sinceramente, digo isso mais para mim do
que para você. É um processo demorado demais.
— Eu sei, só que é difícil.
— É… muito. Começa encontrando maneiras de ser mais gentil
consigo mesma ou pelo menos se enxergar com menos violência.
Já é tão violento se esforçar tanto para caber nos espacinhos que
eles nos dão. Violento. Essa é a palavra. Querer mudar porque o
outro se incomoda? Porque o outro verbaliza esse incômodo? É
violento.
— Você tá passando tempo demais no Twitter, Nêssa! — Ela
riu.
Dei um tapinha leve nas pernas dela e me joguei para trás na
piscina. Era melhor me afastar e respirar um pouco longe dela. Sei
lá, essa garota estava mexendo comigo de um jeito que… Sério,
não dava.
— Você só precisa decidir o que quer fazer, então ir lá e fazer.
Pronto. Quem achar ruim ver a gente nos espaços que lute.
Fiquei um tempo ali, me refrescando.
— Nossa, eu realmente queria ter a sua coragem. Não tá frio aí,
não? — ela perguntou, olhando para a piscina. Estava tocando
“Coisa Boa", da Gloria Groove. Sei lá, amo a Gloria, mas a maneira
como Bia me olhou me fez desejar que estivesse tocando a música
mais melosa do Ed Sheeran.
— Não. Tá é quente, isso sim... Por que você não vem? —
Aquilo soou de um jeito meio não tão inocente como era minha
intenção. Talvez fosse melhor começar Lizzo… E ok, eu estava, sim,
com segundas intenções. Quem eu queria enganar?
Bia ficou me olhando, sem falar uma palavra (acho que nem
respirou), quando me aproximei devagar. Eu só queria trocar a
música, mas aí começou a tocar “Cruel Summer” e meu coração
parou por alguns segundos. Bia olhou de mim para o celular, depois
para mim de novo, e se levantou.
Os olhos perdidos dela pareciam oscilar entre a certeza e a
dúvida, entre o que ela queria fazer e medo das consequências. Abri
a boca para dizer que estava tudo bem, mas não estava. Eu não
conseguia mais sentir o meu corpo, não conseguia respirar.
Ela tirou a blusa primeiro, depois a bendita da calça, deixando
no corpo apenas uma calcinha roxa e um sutiã preto. E eu só fiquei
lá, me desfazendo aos poucos, com o ar preso dentro de mim, com
muitas coisas presas dentro de mim, implorando para sair. Acho que
havia muitas coisas dentro dela também, porque, quando se jogou
na piscina, bem na minha frente, tudo pareceu se libertar.
A maneira como ela me olhou fez meu coração pulsar no ritmo
da música. Tudo estava pulsando no ritmo daquela música. O jeito
lento como Bia se aproximou de mim, a forma como os dedos dela
tocaram as minhas costas, como aquelas mãos passaram devagar
pelas dobrinhas da minha cintura e o fato de eu não ter me sentido
mal por alguém me tocar. Porque esse alguém era ela.
Acho que, naqueles segundos, fui levada para outra dimensão,
onde não havia mais nada além de mim, Bia e “Cruel Summer”. Não
havia nada além dos lábios dela encostando nos meus, de leve,
sem pressa, como se o tempo não passasse naquele lugar.
Eu a envolvi nos meus braços com facilidade, porque ela era
tão pequena e parecia ainda menor ali, tremendo daquele jeito. Eu
sabia que não era pela água fria, nem pelo vento que batia nos
nossos cabelos. Bia estava tão nervosa quanto eu. Tanto que
aquele beijo desajeitado foi um tremendo desastre.
— É… não deu certo. — Ela se afastou de mim, frustrada, mas
eu a puxei de volta.
— Vem cá, a gente tenta de novo.
Ela sorriu e eu beijei seu sorriso. E continuei beijando até
encostar o corpo dela na parede da piscina. E beijei ainda mais
quando suas mãos me puxaram para mais perto. E quando minhas
próprias mãos começaram a se perder naquela pele tão diferente da
minha. Senti as espinhas e as imperfeições ali. E, naquele
momento, passei a amá-las. Eu já me esforçava para amar as
minhas próprias imperfeições. Não seria tão difícil assim amar as
dela também.
Quando Bia afastou o rosto e me olhou daquele jeito meigo, eu
me amei ainda mais. Estava muito escuro para que eu pudesse me
ver refletida naqueles olhos, mas tenho certeza de que amaria
enxergar minha imagem como ela enxergava. Foi tão bom ser
olhada daquele jeito, era tão raro. Mas não foi por isso que fiz o que
fiz em seguida, e sim porque nunca antes tinha sentido que poderia
voar — até que ali, naquela piscina, meus pés saíram do chão.
— Vamos lá para o quarto? — sugeri, querendo que ela
dissesse que sim e que dissesse que não. Não queria sair dali nem
quebrar aquele momento. Mas queria ir além dele e queria que ela
quisesse também.
Bia sorriu para mim.
— Vamos!
Pegamos nossas coisas, que estavam espalhadas na beirada
da piscina, e fomos em direção ao quarto, molhando o caminho
todo. Entrei com cuidado para não jogar a água do meu cabelo no
colchão (o que acabou não adiantando muito). Bia, que estava só
com as pontas molhadas, não teve a mesma preocupação. Ela foi
direto para o banheiro, antes que eu conseguisse encontrar o
interruptor de luz.
Quis dizer a ela que não precisava se esconder de mim, mas
preferi mostrar. Eu a segui até o banheiro sem esperar convite.
— Ei. — Sorri quando ela me encarou, meio constrangida, meio
assustada.
— É melhor a gente se secar, né? — sugeriu, pegando a toalha
que estava pendurada em um suporte na parede.
— Acho que vou tomar um banho, tirar esse cloro do meu
cabelo — fui falando, enquanto me aproximava dela. Bia pegou uma
mecha dos meus cachinhos molhados.
— Eu amo o seu cabelo. — Ela colocou a toalha de volta no
lugar e encurtou ainda mais a distância entre nós. Meu pescoço foi o
primeiro lugar que ela beijou, antes de mordiscar minha orelha. E eu
respondi, quase que por instinto, a empurrando lentamente até o
boxe.
Nós duas estávamos desesperadas, nós duas não sabíamos
direito o que fazer. Então só deixamos rolar e entramos numa
dimensão onde até as coisas erradas pareciam certas. Até quando
nossos dentes bateram uns nos outros. Ou quando o shampoo caiu
no meu pé e eu o deixei ali mesmo. Ou quando ela escorregou e
quase caiu no boxe, ao tentarmos sair de lá sem nos desgrudar. Ou
quando o meu biquíni, que estava no chão do banheiro, agarrou no
pé dela e não quis sair. Ou quando molhamos o colchão inteiro ao
deitarmos ali com os cabelos molhados.
São esses momentos imperfeitos que eu nunca vou esquecer.
Tenho certeza disso. Assim como nunca vou esquecer de me deitar
ao lado dela, que me olhava como se nada mais no mundo
importasse além de nós. Não vou me esquecer de sentir as mãos
dela, depois os lábios, conhecendo meu corpo, aqueles pedacinhos
de mim que ainda me deixavam insegura. Aqueles pedacinhos que
eu nunca havia deixado ninguém tocar. Depois as minhas mãos e os
meus lábios conheceram as partes que ela nunca mostrava, a pele
irritada das pernas, as estrias nos quadris, as espinhas nas costas.
Conheci os lugares que a faziam se contorcer, aqueles que quase a
fizeram gritar. E tudo virou uma coisa só.
Na nossa dimensão, nada poderia nos atingir.
Capítulo 7
A luz do dia entrava apenas pelas frestas da porta e da janela.
Eu me sentia sufocada ali dentro, mas não reclamaria. Nunca
reclamaria. O lençol rosa estava enrolado no meu pé direito, boa
parte do meu corpo estava no chão, e os fios do cabelo de Bia
entravam no meu olho, conforme o vento do ventilador rodopiava no
ar.
No primeiro sinal de que ela estava acordando, eu a apertei
com força contra o meu corpo.
— Ai — resmungou e sorriu ao abrir os olhos e me ver. — Seu
olho é tão bonito.
Dei um beijinho no rosto dela e me levantei devagar, ainda com
o lençol no pé.
— Levanta daí que o dia já amanheceu e eu quero sol!
— Nossa, você é muito insensível. — Ela se virou no colchão,
mas nem fez menção de levantar. — Eu acabei de acordar, cara.
— Sol! — Gritei, abrindo a janela.
— Nossa, assim você me expõe! — Bia tateou o colchão em
busca do lençol rosa para se cobrir.
— Ai, não tem ninguém olhando.
— Você está olhando.
Eu não estava, mas olhei quando ela disse aquilo.
O corpo de Bia era bem branco mesmo. Ela estava com um
conjuntinho de pijama preto com florzinhas roxas e verdes. Uma
gracinha. O short era pequeno e mostrava as pernas dela,
marcadas nas coxas por pontinhos avermelhados que ela insistia
em coçar. Meus olhos pararam nos pelinhos em volta do umbigo e,
antes que eu pudesse ver mais coisas, ela puxou o lençol e cobriu o
corpo.
— Você é tão bonita — falei, porque verdades precisavam ser
ditas.
— Ah, tá.
— Eu posso falar com propriedade.
Ela revirou os olhos e começou a se levantar devagar, deixando
o lençol no colchão. Bia desenrolou a blusa do pijama, que havia
subido e deixado a barriga dela de fora, e veio na minha direção.
— Obrigada. — Ela passou a mão no meu rosto, sorriu e foi até
o banheiro. Segui até minha mochila, peguei a escova de dente e
me apertei no pequeno espaço em frente à pia com ela. Eu poderia
fazer aquilo por todas as manhãs da minha vida.
— Lembra quando a gente brincava na piscina de plástico da
sua mãe? — perguntei a ela.
— Nossa, aquela piscina era luxo demais.
— A primeira vez que eu quis te beijar foi ali.
Ela sorriu, me olhando pelo espelho pendurado na parede.
Tinha pasta de dente na bochecha dela. Eu me abaixei para
enxaguar a boca.
— E por que não beijou?
Quase engasguei.
— Porque a gente tinha treze anos e eu achava que você era
hétero — respondi, com a voz mais fina que o normal. — Aliás, eu
nem pensava muito nessa possibilidade.
— Não pensava? Eu nunca nem dei sinal de que gostava de
garotos. — Os fatos. — Já você… — Ela se virou para me encarar e
eu me virei para ficar de frente para ela. Nossas barrigas se
encontraram. Achei aquilo tão fofo que quase derreti. — Você ainda
gosta de caubóis?
— Ai, pelo amor de Deus! — Eu me afastei dela e encarei o
espelho.
— Gosta, né? A sua cara! — Bia começou a rir, aquela ridícula.
Fiquei calada, porque não queria mentir. Observei quando ela
lavou o rosto e depois me olhou de um jeito curioso.
— Então você é bi, tipo a Ayla?
— E você é lésbica, tipo a Raíssa?
— Desculpa não ter contado. Eu não sabia como contar. Tentei
usar o livro, mas acho que não deu muito certo.
— Acho que deu certo, sim. — Eu sorri e passei meu braço em
torno do corpo dela, a apertando com força. — Você é tão
pequenininha!
— Não sou, não.
— Pra mim, você é, sim!
— E você é tão… desbotadinha.
— Ai, credo!
— Uai, é a verdade. Sua pele tá bem mais clara do que era.
— Naquela época, a gente ficava na piscina da sua mãe a tarde
inteira. Lá em BH eu fico dentro de casa a tarde inteira.
— Ouvindo Emicida e pensando em caubóis.
— Como você sabe? — Eu a empurrei de leve para fora do
banheiro. — Sobre o Emicida pois não penso mais em caubóis.
Mentira.
— Eu vejo você exaltando o trisal sertanejo no Twitter e
postando trechos aleatórios de músicas do Emicida… E também leio
mentes.
— Ah, é? Eu também leio mentes, sabia? Sei que você diz no
Twitter que gosta daquela menina do cabelo verde que canta
baixinho, mas gosta mesmo é da Marília Mendonça e do trisal
sertanejo, porque é impossível não gostar deles.
— Como você sabe disso? — Ela parou e se virou para mim,
com os olhos arregalados.
— Mentira que eu acertei! — Foi um chute bobo para irritá-la.
Aparentemente, aquela era uma das poucas coisas que mudaram
com o tempo.
— Nossa, sua ridícula! — Bia me deu um tapa forte no braço,
depois parou perto da janela e ficou olhando para o céu. Parei do
lado dela.
— E aí, o que a gente vai fazer? Ouvir Pedro Xavier na beira da
piscina, vendo seus priminhos brigando por uma boia?
— Eu prefiro o outro.
— O Henrique? Ah, não. Tá gostando do sertanejo errado.
Ela deu de ombros.
— Por que a gente não fica na piscina-que-ninguém-queria-
mas-a-gente-quis? — Bia perguntou.
— Meu objetivo é tomar sol, pegar uma cor, ficar perto da
comida…
— Mas… lá todo mundo vai ficar olhando pra gente!
— É só a gente fingir que é amiguinha, ninguém vai notar a
diferença. Provavelmente só o Gustavo, mas ele tem gaydar.
— Todo mundo sabe que eu sou lésbica, Nêssa.
— Quê?
— Você acha que meu tio estava olhando pra gente com aquela
cara de bosta ontem por quê? Ele deve achar que você é minha
namorada.
— Eu sou?
Ela ficou vermelha até nos ombros.
— Não… ainda.
Eu fiquei vermelha, na medida do possível.
— Então... — Pigarreei, pois estava envergonhada. — O que te
incomoda?
— A piscina, né, criatura? Meu corpo na piscina.
— Sua família aceitou de boa o fato de você ser lésbica? —
mudei de assunto, com um objetivo.
— Lógico que não. Mas eu não ia deixar de existir só porque
eles não aceitam aquilo que não entendem. E ninguém tem que
aceitar nada, não ofereci nada para ser aceito. Eu hein!
Encostei meu cotovelo na janela e a encarei. Estava ali, bem na
minha frente, a garota que xingava nos stories sempre que via
alguma injustiça.
— Você teve coragem de sair do armário aos dezessete anos…
— Dezesseis.
— Você teve coragem de sair do armário aos dezesseis anos —
corrigi. — Tem coragem de enfrentar os olhares das pessoas
julgando sua sexualidade. Mas acha que não tem coragem o
suficiente para botar um biquíni no corpo e aparecer perto das
mesmas pessoas cujos julgamentos você já está ignorando?
— Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa — tentou
justificar, de um jeito evasivo.
Pude notar quando ela se afastou um pouco de mim, pronta
para escapulir e se esconder dentro de si mesma, como costumava
fazer. Eu a puxei pela mão. Não permitiria que Bia voltasse a se
fechar, não para mim. Estava disposta a ser o lugar seguro onde ela
pudesse ser insegura e estranha, sem culpa nem medo. E onde eu
pudesse também ser menos forte, menos admirável, mais humana.
— Mas a força vem do mesmo lugar.
Bia me encarou, como se estivesse lendo no meu rosto a
legenda em inglês de um filme em alemão.
— Eu queria dançar, sabia? — Ela fazia isso, dizia coisas do
nada. Completamente avulsa essa garota.
— Uai, então dança...
— Pareço um boneco de posto.
— Você precisa parar de se autodepreciar.
— E preciso começar a fazer o que eu tenho vontade, sem
sentir tanta vergonha.
— Exatamente. Quanto mais a gente se esconder, mais tempo
vai levar pra eles se acostumarem com a gente. Nós temos o direito
de estar nos lugares. De dançar do jeito como sabemos dançar. E
de amar as pessoas que amamos.
— Até os caras que usam chapéus.
— Vamos, Bia! Você é linda. Acho que não tem noção do
quanto é linda. — Sorri e a puxei para perto de mim. — Linda
demais da conta. — Eu a beijei no rosto, depois no nariz, depois nos
lábios. — Muito.
— Ai… tá. Mas eu vou ficar de shortinho.
— Aff, Beatriz!
— Tudo é um processo. Um dia, talvez, eu coloque meu corpo
todo pra jogo. Mas, por enquanto… eu me sinto mais confortável
assim. Já está sendo um grande avanço, tudo bem?
— Tá bem.
— Um dia nós seremos o tipo de casal que compra biquínis
combinando e tomaremos todas as piscinas para nós. — Bia se
afastou de mim, pegou minha mão livre e a beijou.
— Para o azar das criancinhas e suas boias!
— E de todo mundo que ousar se incomodar com a gente.
Então, ela foi até o beliche, abriu a mala e pegou seu maiô e
um shortinho. Eu peguei meu biquíni, que estava secando na lateral
da cama, e a acompanhei até o banheiro.
De alguma forma, eu sabia que aquele dia chegaria, que
seríamos nós duas contra o padrão imposto pela sociedade.
Nós duas e nosso corpo sendo livre.
Nós duas e nosso corpo de verão.
Ponto final.
Espero que não perca
Edição e revisão: Clara Alves
Para Deko Lipe.
Obrigada por me encontrar.
Capítulo I
O cortejo

Há uma linha tênue que separa a vida da morte. Um suspiro. Um


último sorriso. Mas nem sempre a morte é o fim de uma história. Às
vezes, ela é o começo.
A história de Mercedes começou quando ela viu os olhos da
avó se fecharem pela última vez, alcançando, enfim, a paz que
merecia. A moça tocou o dorso da mão enrugada de Maria
Ernestina, um toque sereno em um quarto silencioso. A pele fina do
dorso fez Mercedes olhar para as próprias mãos, tão macias e tão
claras. A avó costumava dizer que a neta tinha mãos de princesa e
coração de guerreira, que a menina a lembrava de si mesma,
quando mais nova.
Mercedes achava que não.
Não era tão forte como a mulher que admirava, não aguentaria
todos aqueles meses de doença, deitada em uma cama, sendo
limpa, cuidada, amparada por outras pessoas. Um vento rebelde
balançou de leve as cortinas pesadas do quarto, e Mercedes se
permitiu aspirar a brisa que entrou pelas pequenas frestas da janela
entreaberta, esperando que o cheiro de morte parado no ar se
dissipasse.
Olhou de novo para a avó. O rosto de Ernestina nunca estivera
tão doce, um sorriso pequeno iluminava os lábios finos. Ela parecia
estar dormindo e sonhando com seus tempos de juventude e
rebeldia. Os últimos momentos de dona Maria Ernestina haviam
sido tão diferentes das histórias que a mulher costumava contar à
neta; tão divergentes eram a liberdade de outrora com a
dependência daqueles meses.
Mercedes desceu sua mão direita até a palma quase fechada
da avó e pegou dela a medalhinha de Santa Luzia que Ernestina
sempre carregava. Olhou o objeto com atenção; era feito de ouro,
delicado e único, e tinha um M gravado na parte de trás. Ali, naquele
instante, Mercedes jurou nunca depender de ninguém. Não queria
ser cuidada, amparada; não queria pena ou obrigação.
Desde nova, Mercedes era livre e independente. A avó havia
lhe ensinado a ser assim. Achava que era capaz de ter, até que a
morte a levasse, as rédeas da própria vida. Não imaginava, porém,
que as perderia tão cedo.
Foi nos olhos amadeirados de Alzira que as perdeu.
Tudo começou naquele mesmo dia. No cortejo da velha
Ernestina, Mercedes, chorando de dar dó, esbarrou sem querer em
uma jovenzinha de pele escura.
— Oh! Ocê me perdoe! — disse a voz doce que saía dos lábios
cheios da moça. Com os olhos ardendo e embaçados pelo choro,
Mercedes mal conseguiu reparar nela.
— Não tem problema — amenizou, fazendo um gesto com a
mão.
— Ah, mas tem, sim! A senhora é a neta de dona Ernestina?
Mercedes assentiu com a cabeça, mas seus olhos se fixaram
no chão, incapazes de olhar para a frente, incapazes de encarar as
pessoas que choravam, incapazes de detectar qualquer coisa além
da dor. Ela enxugou as lágrimas, mas não disse nada.
— Já lhe vi na saída da missa — a moça comentou.
— Ah! Me perdoe por não reconhecer você.
— Não, mas eu nem falei com a senhora.
— E como você se chama?
— Alzira — respondeu, abrindo o sorriso.
— E de onde conhecia minha avó, Alzira?
— Todo mundo conhece todo mundo aqui.
— Eu não conhecia você. — Mercedes se permitiu olhar um
pouco para a moça, mas algo no rosto de Alzira a incomodou.
Talvez fosse o jeito curioso como ela a encarava, como se tentasse
desvendá-la. Então Mercedes voltou a olhar para o chão.
— Conheço dona Ernestina desde pequena. Ela sempre
visitava a casa do senhor Astolfo para ver dona Aparecida, que
Deus a tenha!
— Ah, sim, elas eram muito amigas.
Mercedes se lembrou do cortejo de anos antes. O mesmo
trajeto entre a igreja e o cemitério. A mesma rua de terra
avermelhada. Os mesmos rostos. Só a dor era diferente. O pesar
que sentira naquela época era ameno e silencioso. A dor de agora
gritava dentro dela.
— Eu gostava muito dela, da sua avó. Ela me tratava como
gente.
Como se alguém tivesse lhe estapeado a cara, Mercedes
parou, até um pouco tonta. Alzira a acompanhou, deixando o cortejo
passar por elas.
— Ela costumava fazer isso mesmo. — As duas se encararam
por alguns segundos. — Minha avó nunca fez diferença entre as
pessoas.
— Sempre que me via na igreja, ela fazia questão de me
cumprimentar. As pessoas geralmente fingem que não estou lá ou
se incomodam muito com a minha presença.
— Então por que você continua indo à missa?
— Porque é um lugar onde eu posso entrar, mesmo que
algumas pessoas não gostem. — Ela deu de ombros, e a maneira
simples como falou fez Mercedes encarar o chão. Alzira parecia
conformada com aquela realidade, mesmo que não parecesse justa.
E como não estaria? O que ela poderia fazer?
Incomodada, Mercedes olhou para cima, enfrentando a
claridade do céu cheio de nuvens escuras. Sua avó lhe ensinara a
tratar todas as pessoas com educação e respeito. Lição que, até
aquele momento, achara que havia aprendido. No entanto, Alzira
sempre esteve presente durante as missas, a observando na saída.
Mas Mercedes nunca a notara. Será que ela era como os outros?
Como as pessoas que tratavam Alzira como se fosse invisível ou um
incômodo?
— Peço que me desculpe. — Olhou para os olhos castanhos da
moça e sentiu o chão lhe escapar dos pés.
— Pelo quê?
— Por eu não ser como a minha avó. Por não ter notado você
antes.
Alzira sorriu e olhou na direção das pessoas que seguiam,
quase em silêncio, pela rua. Poucas pessoas ainda não haviam
passado por elas.
— O que está fazendo ao conversar com essa negrinha?
Mercedes sentiu a mão do pai encostar em seu ombro. A voz
imponente de Augusto, porém, saiu baixa.
— Só estava me desculpando — respondeu, amedrontada.
— Ora! Deixe de bobagem e vamos! — disse, puxando a filha
pelo braço.
Mercedes só teve tempo de olhar para trás e ver Alzira sorrir,
acanhada, como se pedisse desculpas.
Capítulo II
A missa

Nos dias que seguiram, Mercedes não conseguiu tirar os olhos


castanhos de Alzira de sua mente. Não entendia que sentimento
estranho era aquele. Procurou pela moça por toda a vila, mas não a
encontrou. Como era possível, em um lugar tão pequeno, se perder
assim de alguém?
Mercedes queria conversar com Alzira, queria se redimir por
não tê-la notado antes, queria conhecer as histórias da moça, saber
sobre ela, sua vida, seus motivos.
Porém, nos domingos de missa, olhava por toda a igreja e não
a via. Na saída, sempre tentava buscar uma moça de pele escura
entre a multidão. Via algumas, meninas bonitas em seus vestidos
claros, mas nenhuma delas era Alzira. A procura virou tristeza; um
desalento quase inexplicável. Mercedes não sabia que podia ficar
pior.
Ela já estava pensando em desistir quando, ao sair da igreja
certo domingo, ouviu aquela voz, a única capaz de trazer alento e
luz de volta ao seu coração.
— Busca alguém?
— Busco — respondeu, sem pensar, e se virou na direção de
Alzira. A moça sorria, como se tivesse ganhado um prêmio.
— Espero que encontre.
— Já encontrei.
Alzira alargou o sorriso sincero, que parecia o sol nascendo de
manhãzinha.
— Espero, então, que não perca.
— Não perderei.
E tentou não perder.
As duas sorriram uma para a outra com cumplicidade, e
Mercedes sentiu um impulso estranho, uma vontade de tocar as
mãos de Alzira e a puxar para longe dali. Não o fez. Apenas olhou
em volta, encarando uma por uma as pessoas que as avaliavam e
cochichavam.
— Nós podemos conversar em outro lugar?
— Senhorita Mercedes… — Alzira começou.
— Então sabe meu nome?
— Todo mundo sabe seu nome.
Mercedes pôde ouvir o próprio coração bater alto nos ouvidos e
quis saber se o coração de Alzira estava acelerado também, ou se
aquele sorriso que ela carregava no rosto era apenas alguma
brincadeira.
— Eu tenho que ir.
— É melhor mesmo. Muitas pessoas não gostam de ver moças
como ocê conversando com moças como eu.
— Eu não me importo.
— Mas deveria.
— Então vamos conversar em outro lugar. — Mercedes deu um
passo à frente e quase segurou o braço de Alzira. Ela não
compreendia por que sentia tanto desespero crescer dentro de si,
por que precisava tanto conversar com ela. Só conversar. Só se
sentar ao lado dela e falar sobre qualquer coisa.
A moça olhou para a porta da igreja e além dela, para o altar lá
na frente, com um Jesus pendurado na cruz a encarando.
— Tudo bem, há um lugar — Alzira disse, baixinho. — É uma
casinha simples, às margens do rio; um pouco distante da vila. Lá
no fim das terras do senhor Astolfo.
— Creio que consigo encontrar.
— No próximo domingo, depois da missa?
Tão longe?
— Tudo bem. — Mercedes suspirou.
Alzira sorriu de um jeito simples e falou, um pouco mais alto:
— Meus pêsames por sua avó.
— Eu agradeço.
Mercedes ficou observando a moça descer a rampa da igreja e
cruzar a rua até a praça. Não conseguia se mover, não conseguia
sentir direito os pés. Estava sem sua base, e não saberia dizer se
era pela morte da avó, a pessoa que era seu norte, ou se era por
causa de Alzira e as coisas inexplicáveis que a moça trazia para
dentro dela.
— Cuidado com suas companhias, menina. — Uma mulher
passou por ela e sussurrou aquelas palavras em sua direção.
Mercedes nem se deu ao trabalho de olhar quem era, apenas virou-
se e seguiu rumo à rua. Não lhe interessava o que as pessoas
daquela cidade pensavam. Nisso, ela havia puxado a avó, só queria
seguir o próprio rumo em paz. Apenas uma pessoa lhe trazia
alguma preocupação.

— Ouvi dizer que estava de conversa com uma negrinha hoje


depois da missa, Mercedes. — Augusto pousou os talheres no prato
e encarou a filha, que comia de um jeito delicado e displicente, a
mente longe dali.
— Sim, era uma conhecida de vovó me dando os pêsames.
— Não gosto de você conversando com essa gente.
— Mas a vovó…
— Sua avó era uma… insubordinada. — Augusto olhou para a
esposa, que comia com a cabeça baixa. Mercedes sentia raiva da
maneira como a mulher parecia tão menor na presença do marido.
— E eu não criei filha para seguir esse tipo de exemplo. Seja como
a sua mãe, não como a mãe dela. — Apontou o garfo na direção
das duas, que permaneceram caladas.
Era sempre aquele silêncio quando Augusto estava por perto. O
tilintar dos talheres nos pratos falava por elas. Diziam aquilo que
elas não se atreviam a dizer. Mas, quando estavam juntas, sem ele,
havia conversa, havia espaço.
— Seu pai não é bobo! — No quarto de Mercedes, a mulher
dobrava toalhas, quase que à perfeição, e as colocava sobre a
cama, onde a filha estava sentada, com as pernas cruzadas.
— Eu sei, mãe.
— E eu também não sou.
— Eu sei, mãe.
— Então não minta para mim, Mercedes. — A mulher parou,
segurando uma toalha dobrada ao meio e encarou a filha. — Você
estava de conversa com aquela… senhorita. Que tipo de assunto
você tem com essa gente?
— Era sobre a vovó e a amizade dela com dona Aparecida.
Falamos brevemente apenas.
— Dona Ambrosina não achou a conversa breve.
— Dona Ambrosina é uma mexeriqueira!
— Quem não deve, não teme, minha filha.
— Eu não temo nada. Só estava conversando com uma
pessoa.
— Você é igualzinha à sua avó. — A mulher jogou as toalhas
sobre a cama. — Mas pelo menos finja que se parece comigo. — E
encarou a filha.
— Eu não preciso fingir nada, mãe.
— Eu acho que precisa, sim. — Ela começou a deixar o quarto.
— Termine de dobrar as toalhas.
Capítulo III
A casinha

O jeito alegre como Alzira encarava o mundo, a simplicidade


com a qual falava sobre as coisas, o brilho que trazia no olhar —
tudo isso desconcertava Mercedes, a deixava sem resposta, sem
reação.
Era um sentimento que, no começo, aquecia o coração, mas
em pouco tempo passou a abrasar todo o corpo.
Mercedes se encontrava com Alzira todos os fins de semana,
escondida. Às vezes, escapulia para uma visita rápida, em outras,
costumava ficar mais tempo, quando os pais viajavam para a cidade
grande para visitar o filho mais velho.
As moças conversavam sobre tudo; quanto mais falavam, mais
se davam conta das diferenças que existiam entre as duas, e menos
se importavam com isso.
— Meu pai está cada vez mais preocupado com o que ando
fazendo. — As duas caminhavam à beira do rio. — Esses dias me
perguntou por que nunca falto à missa. Veja só!
— Pensei que ele fosse católico. — Alzira passava a mão
direita no tronco das árvores enquanto andava.
— Ele diz que é, mas não faz nem o básico que todo cristão
deveria fazer.
— Amar ao próximo?
Mercedes riu e parou de andar para encarar Alzira.
— Eu ia dizer “ir à missa”.
— Pelo menos ele se preocupa co’cê. — A moça parou também
e apoiou as costas em uma árvore.
— Eu acho que meu pai se preocupa com o que as pessoas
falam sobre mim, que estou ficando velha, que preciso de marido…
— E precisa?
Todo o ar que Mercedes carregava nos pulmões paralisou
dentro dela.
— Não sei. Mas sei que eu não quero um.
Alzira sorriu.
— Uma moça bonita feito ocê, de boa família… Deve ter uma
fila de pretendentes. — Ela tentou dizer de um jeito descontraído,
olhando para Mercedes como se a estudasse. — O Zé Miguel voltou
para a cidade.
Mercedes revirou os olhos e voltou a andar, deixando Alzira
para trás.
— Não quero um marido — resmungou alto.
Ela saiu pisando duro na direção da casa simples à beira do rio.
Alzira a seguiu.
— Não entendo por que ficou tão chateada. Só sugeri que o Zé
Miguel seria um bom partido pr’ocê. Eu conheço ele.
Mercedes parou em frente à porta azul da casa e se virou,
encarando a moça.
— Por que você não arruma um marido?
— Porque não preciso de um e também não tenho um pai para
me obrigar a casar.
— Nossa! — Chateada, Mercedes deu um leve empurrão para
tirar Alzira de sua frente e passou pela moça.
— Espere, eu não queria ofender ocê!
— Não me ofendeu.
— Mas eu lhe chateei? — Alzira a segurou pelo braço.
— Alzira… — Mercedes se virou e poderia ter dito muitas
coisas, mas não conseguiu. O olhar de Alzira não deixou.
— Não queria lhe chatear.
— E o que é que você quer, Alzira?
A moça a soltou.
— Quero entender.
— O quê?
Alzira não respondeu, apenas largou o braço de Mercedes e se
virou. Antes que pudesse entrar em casa, tropeçou no elevado feito
de cimento, colocado na porta para evitar que a água da enchente
entrasse ali.
Mercedes a segurou e a puxou para cima.
— Até parece que você nunca entrou nesta casa.
O olhar de Alzira estava desfocado, distante. Era como se visse
Mercedes, mas não a enxergasse.
— Está tudo bem?
A moça fez que sim com a cabeça, se libertou do aperto da
outra e cruzou o único cômodo da casa, o chão batido com a
mesma terra vermelha que cobria as ruas da vila, em direção ao
fogão de lenha, que ficava do lado oposto à entrada. Mercedes já
estivera ali muitas vezes, mas sempre evitava avaliar o lugar.
Naquele dia, porém, havia algo diferente. Mercedes caminhou até a
cama pequena, que não estava ali antes, e passou as mãos pela
madeira.
— Quer um cafezinho? — Alzira não se virou.
— Você não me respondeu.
— Vou fazer.
— Alzira! — esperneou. Mas então desistiu e se sentou na
cama.
Mercedes observou a moça acender o fogo e começar a
preparar o café. Em silêncio, continuou passando a mão pela
madeira da cama, até Alzira terminar o que fazia e se virar,
carregando duas xícaras esmaltadas.
— O Zé Miguel que montou essa cama.
Mercedes olhou para Alzira, parada à sua frente, erguendo uma
xícara de café, e não soube de onde vinha toda a raiva que sentiu
naquele momento.
— Mas tudo para você é esse Zé Miguel. Por que você não se
casa com ele?
Alzira riu alto e se sentou ao lado de Mercedes.
— Ocê fala cada coisa!
— Uai, por que não?
— Olhe bem para mim, Cêdes. — Mercedes obedeceu. —
Seria mais fácil o seu Astolfo colocar fogo na fazenda inteira do que
deixar o filho se casar com alguém como eu.
A expressão serena no rosto de Alzira irritou Mercedes ainda
mais.
— Seu Astolfo, então, é um calhorda! Você é… você é. —
Engasgou. — Você é boa demais para esse Zé Miguel, eu aposto!
— Ela respirou fundo, tentando se conter. Algo doeu dentro dela. —
Mas você gostaria? De se casar com ele? — A voz saiu fina,
ligeiramente esganiçada.
Alzira se virou, olhou para Mercedes por um breve instante e,
antes de responder, deu um gole no café.
— Não. Não é do Zé que eu gosto. Ele é um bom moço, muito
bom mesmo, meu amigo desde criança. Somente isso.
Mercedes sentiu as bochechas esquentarem mais que a mão
que segurava a xícara. Deu um gole no café, porque não queria
perguntar aquilo que veio à sua mente, como um golpe na cara.
Então de quem você gosta?
Foi quando Mercedes percebeu que já não podia mais se
afastar de Alzira. As despedidas tinham ficado mais difíceis, e os
reencontros, mais aguardados. Um sentimento diferente de tudo o
que a moça havia sentido na vida começou a nascer ali, fez raiz e
não parava de crescer.
Foi crescendo, crescendo e crescendo.
Até que ficara grande demais.
Mercedes se levantou de repente.
— Vou embora. — Entregou a xícara a uma Alzira atônita.
— Por quê?
— Tenho que ir.
Ela saiu, sem olhar para trás, e também quase tropeçou na
saída.
— Cêdes, me espere!
Mercedes começou a andar depressa. Alzira correu e a segurou
pelo braço.
— Ocê vai ficar correndo de mim todas as vezes que vier me
ver?
Os olhos das duas se cruzaram, então. Mercedes até tentou
desviar, mas algo em Alzira a prendeu. Algo sempre a prendia, e ela
queria entender o porquê.
— Alzira, posso lhe perguntar uma coisa?
Elas haviam parado à beira do rio. A luz do sol batia na água e
reluzia nas folhas das árvores. Naquele momento, Mercedes pensou
estar no lugar mais bonito em que já estivera, e estava ali com a
única pessoa com quem gostaria de dividir essa sensação. Mas não
queria dividir apenas o som baixo do vento movimentando os galhos
acima de sua cabeça, ou o cheiro da água barrenta, mas também o
calor sobre sua pele.
— Ocê pode tudo.
Mercedes não conseguiu disfarçar a curva de um sorriso bobo
que se abriu em seu rosto, muito menos o rubor que lhe esquentou
as bochechas.
— Como gosta de mim?
— Não compreendi.
— O que sente por mim?
— Um grande apreço.
Mercedes sentiu um nó se formar na garganta, como se alguém
lhe desse um abraço indesejado, como se as nuvens sobre elas
tivessem tapado o sol, fazendo tudo escurecer.
— Ah. — A decepção era impossível de disfarçar.
— É bem verdade que… — Alzira começou a dizer, mas
interrompeu a si mesma, aproximando-se e pegando a medalhinha
de Santa Luzia que Mercedes sempre trazia em volta do pescoço.
Então levantou a cabeça e olhou naqueles olhos verdes, depois
subiu os dedos da mão direita até o rosto da outra, de um jeito tão
delicado, que foi impossível para Mercedes não fechar os olhos e
respirar fundo. O cheiro de barro no ar, como se fosse chuva, a
invadiu, junto com uma sensação de que tudo estava certo,
finalmente encaixado no lugar. E, quando os lábios de Alzira
tocaram os dela, com a mesma leveza de sua mão, nada mais
pareceu ter importância.
Até Mercedes perceber o quanto aquilo era errado.
— Desculpe — pediu Alzira quando Mercedes se afastou. —
Eu…
— Desculpe-me você… Eu… ah… estou tão confusa. — Ela se
sentou no chão. Alzira a acompanhou, colocando os pés descalços
na areia molhada, à beira do rio. — Gosto tanto de você — disse,
olhando para os olhos castanhos da moça. O olhar desceu para os
lábios dela e Mercedes emendou: — Tanto…
Sentadas à beira do rio, as duas se permitiram sentir um amor
tão forte quanto a luz que batia nas águas. E se deixaram reluzir.
Capítulo IV
O jardim

— Onde estava, Mercedes? — o pai da moça perguntou, tirando


os olhos do jornal que lia, assim que ela colocou os pés em casa.
— Estava caminhando, pai — respondeu ela, sem convicção.
Sentiu um medo terrível subir pelo corpo; um pressentimento.
— Sozinha? — Ele deixou o jornal de lado, sobre uma mesinha
de madeira escura, à frente da poltrona onde estava.
— Sim.
— Pois não quero saber de você andando sozinha por aí. O
que o povo da vila vai dizer se vir uma mocinha da sua idade
andando desacompanhada?
Ela não protestou e começou a ir para o quarto.
— Ah, Mercedes — ele a chamou, e a moça se virou para olhá-
lo. — O José Miguel virá na próxima sexta. Quer cortejá-la.
— José Miguel?
— É. O filho do Astolfo.
— Aquele moço que chegou da cidade grande? — ela quis
confirmar aquilo que já sabia.
Augusto assentiu com a cabeça, voltando a pegar o jornal.
— É um sujeito de boa aparência e ótima família.
— Eu nem o conheço.
— Mas irá conhecer, oras. Por isso que o chamei aqui.
A garota não sabia o que responder, então subiu as escadas,
com os olhos cheios de água.
— Não quero me casar — murmurou para si mesma, ao jogar-
se na cama. — E não vou.
Decidida, Mercedes criou todo um plano de fuga. Iria atrás de
Alzira e as duas fugiriam juntas para a cidade grande, onde
sumiriam e viveriam uma vida feliz juntas.
Na noite de sexta, ela e os pais receberam José Miguel para
um jantar. Para não levantar suspeitas, Mercedes decidiu se portar
como uma boa moça e prometeu a si mesma que o trataria como se
quisesse tê-lo para sempre como marido. Seu intento em passar a
impressão de que lhe agradava a ideia de casamento aparentou
enganar Augusto.
— Então, José Miguel, você estudou para advogado?
— Sim, senhor! — O rapaz respondeu a ele, mas sorriu na
direção de Mercedes. A moça não gostou nada daquilo. Não gostou
de ver como o sorriso de José Miguel era sincero, odiou notar que
ele era educado e simpático. Nada parecido com seu pai, nada
parecido com outros rapazes que conhecera antes. Incomodada, ela
se remexeu no sofá. — Inclusive, trouxe um livro para Mercedes. É
da biblioteca da universidade, mas acho que ninguém notará a falta.
— Livro? — Augusto e a filha perguntaram ao mesmo tempo.
— Mas eu não sei ler.
— Eu posso lhe ensinar. — O rapaz sorriu de novo. E Mercedes
desviou o olhar, analisando a reação do pai. Augusto soltou um
muxoxo, deixando claro que não gostava nem um pouco daquela
história. — Ou eu posso ler para a senhorita — emendou José
Miguel, desconfortável, ao notar a reação do homem.
— Em todo caso, fico feliz que esteja pensando em voltar para
a cidade quando terminar os estudos, meu rapaz. Gostei de você! —
Augusto se levantou, dando a conversa por encerrada. Mercedes
ficou olhando para o pai, querendo muito dizer a verdade que lhe
coçava a língua. Augusto havia gostado muito mesmo… das terras
que José Miguel herdaria. — Acompanhe o moço até a saída,
Mercedes.
— Sim, pai. — Obediente, ela acompanhou o pretendente até o
jardim.
— Espero que seu pai deixe-me continuar a vir aqui —
comentou, de um jeito casual. Mercedes quis dizer que não queria o
mesmo, mas soube, assim que pensou, que queria sim. Ela queria
que ele voltasse ali com o livro, que a ensinasse a ler, que a olhasse
com aqueles profundos olhos escuros. Ou que lesse para ela com
aquela voz grave e a levasse embora dali, nem que fosse através de
uma história.
— Também espero. — Inquieta, ela praticamente empurrou o
rapaz até o portão. Queria que ele fosse embora, pois sabia que não
voltaria a vê-lo, que fugiria, que seu plano daria certo.
— Soube que é amiga de Alzira. — Ele parou e encarou
Mercedes. Um nó se formou na garganta dela.
— Sim, sou — afirmou, de um jeito seco. Não tinha motivo para
negar.
— Entendo. — Ele se virou e saiu para a rua, mas, antes de ir
embora, voltou-se para Mercedes. — Não há motivos para que seja
hostil comigo, não pretendo lhe fazer nenhum mal. Não contarei a
ninguém sobre sua amizade com Alzira. Tenho muito apreço por ela,
e espero, um dia, sentir o mesmo por ti.
A moça ficou olhando o movimento que os lábios de José
Miguel faziam ao dizerem aquelas palavras. Depois, observou,
imóvel, quando ele se virou e foi embora. Ela ficou ali, parada no
portão, imaginando um mundo onde os dois pudessem ser amigos;
onde ele a ensinasse as palavras, e ela aprendesse a ser
independente; onde Alzira e ela pudessem se amar, sem que
ninguém se opusesse ou achasse estranho. Mas aquele mundo
estava distante demais, em um futuro que talvez nunca viesse a
existir.
Capítulo V
A ida

Naquele mesmo fim de semana, no verão de 1938, enquanto os


pais estavam na cidade grande, Mercedes arrumou as malas,
juntando poucas roupas, que serviriam para ela e para Alzira, e saiu
escondida de casa.
Estava disposta a lutar pelo mundo com o qual sonhara.
Mas, quando chegou à casinha na beira do rio, os sonhos foram
ao chão, como árvore em vendaval. José Miguel estava lá,
esperando por ela.
— Saia daqui, Mercedes — ele disse, caminhando em direção à
moça.
— O que está fazendo aqui?
— Seu pai sabe dos encontros.
— O quê?
— Por isso deseja tanto que me case contigo.
— Do que está falando? — Ela empurrou o rapaz para o lado e
entrou na casa. Alzira estava lá, sentada na cama que José Miguel
fizera para ela. — O que está acontecendo?
— Eu vou embora!
— É para isso que eu vim, para irmos embora juntas.
— Ocê não vai comigo, Cêdes.
— Por que não? — Ela desmoronou aos pés da cama,
deixando a mala que trazia no chão, e tentou pegar as mãos de
Alzira, mas a moça as afastou.
— Porque nunca dará certo, nem aqui nem em lugar algum.
Somos duas mulheres. É errado.
— Não sinto que seja errado.
— Ninguém se importa com o que sentimos.
— Eu me importo. — Dessa vez, ela foi direto nas mãos da
outra, as colocando contra o peito.
— Se ocê se importa tanto comigo, Mercedes, deixe-me ir.
— Não posso.
— Pode. Deve. Seu pai me matará se me encontrar aqui.
— Não, ele…
— Ocê sabe que sim.
— Podemos ir para bem longe daqui. Quero ir para bem longe
com você, Alzira.
— Como nós vamos sobreviver, Mercedes? O mundo é grande
demais, ruim demais. Ocê não sabe o que é ser pobre, ignorada e
rejeitada. O que uma preta e uma mocinha que nem ler sabe farão
bem longe daqui?
— Eu não sei.
— Deveria saber. — Alzira puxou as mãos para junto do corpo.
— Ocê não conhece nada do mundo, Cêdes. Nunca daria certo.
Não é correto.
— Pare de dizer isso! — Mercedes se levantou em um pulo.
— Mas não é. Ocê sabe que não.
— Pare de dizer o que eu sei e o que não sei — gritou, se
afastando ainda mais de Alzira. — Talvez seja melhor você ir
sozinha mesmo, já que sabe mais da vida do que eu.
— Exato. É melhor que eu vá.
— Então vá! Vá, Alzira, e não volte mais.
Mercedes pegou sua mala, sem olhar para a moça, e saiu,
tropeçando em José Miguel, que ouvia a conversa da porta.
— Foi você, não foi? Você contou ao meu pai! — ela acusou o
rapaz, socando-lhe o peito.
— Eu nunca faria isso com Alzira.
— E como espera que eu acredite? É muito conveniente…
— Acredite no que quiser, Mercedes! — Ele passou por ela. —
Mas eu preciso tirar Alzira daqui antes que seu pai apareça.
— Meu pai não fará nada!
— Eu jamais confiaria nisso. Acho melhor você sair daqui e não
ir pela estrada. Dê a volta no rio e vá para casa.
— Eu não confio em você. Se faz isso para que eu me case
com você, saiba que jamais me casarei.
— Isso não me importa. — Ele foi a empurrando na direção do
rio. — Saia daqui.
Com o coração partido, Mercedes foi embora. Tentou não olhar
para trás, mas foi impossível. Já ia longe quando se virou e viu
Alzira sair de casa acompanhada por José Miguel.
Algo quente subiu de seu estômago até sua cabeça. Um
ressentimento, uma dor. Ela decidiu não seguir o conselho do rapaz
e seguiu pelo caminho de sempre. E estava indo em paz, com suas
lágrimas e sua raiva, até ouvir os cascos de um cavalo virem em
sua direção. O medo a fez se esconder atrás de uma mangueira à
beira da estrada de terra.
De onde estava, viu as pernas de alguém sobre a cela de um
cavalo preto. E soube que era seu pai. Reunindo a pouca coragem
que ainda tinha, olhou para o rosto do homem, em fúria, vermelho,
queimando. Ele olhava fixamente para a estrada, na direção da casa
de Alzira.
— Augusto, você precisa se acalmar! — O velho Astolfo vinha
atrás, em seu cavalo castanho.
— Não farei nada com seu filho, Astolfo. Gosto do menino. Mas
aquela negrinha…
Mercedes não conseguiu ouvir mais nada. Um zumbido ecoou
em seus ouvidos e ela achou que pudesse desmaiar. José Miguel
não havia mentido. Por um instante, tudo o que a moça conseguiu
ouvir foi o barulho de seu próprio coração misturado ao som baixo
da água do rio batendo nas pedras.
Quando pôde sentir de novo as pernas, correu de volta para
casa, onde não encontrou ninguém. Então, ela se trancou no quarto
por toda a tarde, esperando que alguém aparecesse para lhe dizer
algo, mas nenhuma vivalma a procurou. Fechou os olhos e tentou
sonhar que aquilo tudo não passava de um engano, um sonho ruim.
Contudo, ao acordar, sentiu, mais do que nunca, que era tudo
verdade.
Alzira havia ido embora.
E ela fizera o certo em deixá-la ir. O mundo jamais as aceitaria.

Por muito tempo, esperou a reprimenda do pai; não a recebeu.


Augusto mal falou com a filha pelos dias que se seguiram. Ela
também aguardou por uma visita de José Miguel, porém, isso
tampouco aconteceu.
Meses depois, teve notícias do rapaz. Ele havia voltado para a
capital.
Mercedes sentiu um vazio enorme; ainda tinha esperança de
que Alzira retornasse, ou que, pelo menos, José Miguel a
procurasse com notícias de sua amiga. No entanto, por um longo
tempo, só recebeu o silêncio.
Durante meses... anos, voltou à casinha onde se encontravam,
na esperança tola de que a moça pudesse ter retornado. Um dia,
desistiu.
José Miguel voltou da capital parecendo outro homem. Mais
velho, mais abatido. Mercedes só soube das dores que enfrentara
por ser quem era muitos anos depois, quando já estavam casados e
ele decidiu mostrar a ela todas as nuances e cores que existiam em
seu coração.
Ao retornar à vila, ele trouxe notícias de Alzira junto com o livro
que prometera tempos antes. Enquanto ensinava Mercedes a ler,
contava as histórias de sua amiga. Alzira fora morar com parentes
na capital. Mantivera contato com o amigo por muitos meses, até
arrumar um noivo e ir embora com ele. José Miguel havia procurado
por ela, mas ninguém sabia ou queria lhe informar nada.
Mercedes já era capaz de ler um livro inteiro sozinha, sem
precisar perguntar o significado de palavra alguma, quando se
casaram. E, durante algum tempo, quase foi completamente feliz ao
lado dele. As partes quebradas dos dois se encaixavam. No entanto,
a lembrança de Alzira sempre a perseguiu.
Nos primeiros anos, ela pensou que o tempo levaria a
lembrança de Alzira, levaria seu cheiro, o formato de seu rosto, suas
mãos, seus olhos. E levou. Não demorou para que Mercedes
tivesse dificuldade em se lembrar da aparência de Alzira. Já a
essência dela, a maneira como falava da vida, seu jeito de olhar, o
cheiro de lama da beira do rio misturado com o café feito no fogão
de lenha, isso Mercedes nunca conseguiu esquecer.
Durante quarenta e cinco anos, viveu ao lado de José Miguel.
Até que, em 1987, ficou viúva. Nunca teve filhos, não tinha mais
ninguém que pudesse cuidar dela, exceto pelos sobrinhos, filhos de
seu irmão mais velho. Mas jamais gostou de incomodá-los —
continuava a odiar a ideia de ter que depender de alguém.
Naquele mesmo ano, vendeu a casa, juntou algumas poucas
coisas e foi morar em um lar de idosos. Ainda se considerava jovem,
mesmo com seus 64 anos, e costumava ajudar mais os colegas de
asilo do que ser ajudada por eles. Aquele lugar se tornou sua casa;
aquelas pessoas, seus amigos. O quarto de Mercedes era o mais
agitado, sempre tinha alguém ali, conversando, contando histórias,
ou as ouvindo. Alguns amigos partiam, deixando um silêncio, outros
chegavam, trazendo barulho.
Assim ela viveu por anos.
Até aquele quarto não ser mais tão barulhento como antes.
Capítulo VI
O lar

Em 1994, chegou ao lar uma senhora de pele escura. Os olhos


castanhos traziam marcas de uma vida inteira de saudade. Ela
entrou no quarto mais silencioso daquele lugar, carregando uma
malinha simples. Ao abrir o guarda-roupa para deixar suas coisas,
encontrou uma caixa com pertences que julgou ser da antiga
moradora. Curiosa, olhou rapidamente o conteúdo e se surpreendeu
ao encontrar ali uma medalhinha de Santa Luzia, com um M
gravado na parte de trás.
M de Madalena, o nome de sua única filha e da cidade para
onde fugira quando percebeu que jamais seria capaz de amar um
homem do jeito como amava uma mulher. O lugar onde montou toda
a sua vida, mas que deixara para trás, antes que fosse tarde, pois
nunca foi capaz de superar um arrependimento.
M de Mercedes.
— Busca alguém? — a voz de uma senhora perguntou. Alzira
conhecia aquele timbre, mesmo mudado pelos anos. Virou-se e
encarou a mulher parada na porta do quartinho daquele lar de
repouso.
Viu uma vida inteira marcada ali. As dores, os amores, os
sorrisos, as lágrimas, os aprendizados, os erros. Dizem que as
rugas são o preço cobrado pelos dias que passaram; na verdade,
elas são o presente dado pelo tempo. Um recado que diz: eu vivi,
estive aqui, amei, lutei e sobrevivi.
Estava diferente, sim. Mas ainda era ela. Mercedes!
— Busco — respondeu, permitindo que as lágrimas fizessem
jus ao sentimento forte que trazia no peito. Os olhos das duas se
encontraram e se reconheceram.
— Espero que encontre — a mulher disse, emocionada. A voz
tremia. Os olhos choravam.
— Já encontrei. — Deixou a caixa no lugar e aproximou-se
dela, lentamente. Entregou a medalhinha de Santa Luzia para
Mercedes, tocando-lhe as mãos que, mesmo depois de tantos anos,
ainda eram as mesmas; a mesma pele que fazia seu coração
disparar no peito antes e agora, os mesmos dedos pequenos que
agarraram a corrente fina da medalha e depois se entrelaçaram aos
das mãos de Alzira.
— Espero, então, que não perca. — Mercedes sorriu, daquele
jeito terno que dizia: finalmente eu encontrei você!
— Não perderei.
Amor de janela
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura Sensível: Koda Gabriel
Para você que está em casa, sonhando com abraços e lidando
com a solidão.
Nós vamos vencer isso!
Capítulo I
Dia 5

Estamos todos em casa quando acontece. O sol começa a se


expandir de repente, deixando tudo mais claro e mais quente.
Fechamos as cortinas, as janelas, ligamos o ar condicionado e nos
abraçamos na sala. Então tudo explode.
Os acordes da banda Braza invadem meus ouvidos quando
acordo. Aquela batida é a primeira coisa que ouço. Às vezes, meu
vizinho esquece que vive em sociedade e liga o som. Não é muito
alto, mas é o bastante para incomodar alguém que está querendo
dormir até o isolamento social acabar. Acho que nunca consegui
gostar dessa banda por causa dele.
Mas não é exatamente sua culpa. As paredes desse prédio são
finas demais, e qualquer barulhinho já pode ser ouvido pelo outro
lado. Algumas vezes, eu o ouço tocar violão. Só tocar, nunca ouvi
uma voz. Antes de ter que ficar presa em casa, cheguei a quase
bater na porta dele para pedir que, por favor, cantasse alguma coisa
— já que era para ficar me aporrinhando com aquele violão, podia
pelo menos fazer o show completo. Nesses dias em que estou
vivendo no meu quarto, fantasiei mais de uma vez como ele (ou ela,
ou elu) seria, se não tinha outra banda para ouvir. Pensei até em
perguntar o motivo de ouvir Braza de manhã e qualquer pagode de
tarde. Talvez eu ainda pergunte.
Abro os olhos, tentando esquecer meu vizinho e me lembrar do
sonho. É o terceiro consecutivo que tenho com o fim do mundo.
Sério, chega! As coisas estão difíceis demais para a minha cabeça.
É o quinto dia que estou presa em casa. Não só eu, aliás. Da sala,
minha mãe grita, perguntando sobre o café, e meu pai responde que
ela não lavou as vasilhas e que ele não faria nada naquela bagunça.
— Lava você! Estou ocupada.
— Fazendo o quê? — A voz dele fica mais próxima.
— Organizando as nossas finanças.
— E desde que dia você organiza finanças, Ana Carolina? —
Quase posso ver meu pai com a mão na cintura.
Eu me levanto da cama, sem fazer barulho, e vou até a porta
espiar pela gretinha. Na sala, vejo os cabelos longos pretos da
minha mãe esparramados pelas costas do sofá. Meu pai está
parado, encostado na porta que dá acesso à cozinha. Os cabelos
castanhos cacheados estão bagunçados. Ele parece não ter
dormido direito, pois tem olheiras bastante escuras debaixo dos
olhos.
— Desde hoje, uai. Eu não sei se vou ter emprego quando tudo
isso passar, não posso dar mole.
— Ok… — Ele olha direto para mim. Droga! Tento correr de
volta para a cama e fingir que nunca me levantei, mas é tarde. — Eu
vi você, Camila. Vem lavar as vasilhas.
Saco!
— Tô dormindo! — grito.
— Para de ser ridícula, garota! — minha mãe devolve, lá da
sala.
— Pede pro Marcelo, ele não tem mais nada pra fazer! —
choramingo. — Não é justo, só porque eu sou menina!
— Sai logo desse quarto ou eu vou aí te arrastar pelo cabelo.
— Nossa, mãe! Não sei pra que tanta violência. — Abro a porta
do quarto e saio para a sala. — Isso é uma injustiça sem tamanho.
Sem parar de resmungar nem por um segundo, vou até a
cozinha.
— Minha filha, você está com esse pijama há três dias! — Meu
pai me julga assim que passo por ele.
— Não vou me vestir pra ficar em casa! — Analiso as vasilhas
em cima da pia. — Eu nunca vi uma família sujar tanta panela. Até a
forma? — Pego o objeto, mostrando-o para o meu pai, sem me virar.
— Fiz torta ontem.
— Tem torta?
— Se o Marcelo não tiver comido tudo…
— Por que ninguém me chamou para comer? — Eu me viro,
indignada.
— Eu chamei mais de uma vez, garota, mas você coloca aquele
fone enorme nos ouvidos e não escuta ninguém.
— Era torta! — protesto, baixinho, me virando para a pia e
pegando a forma para lavar. — Torta!
— Lava primeiro as do café.
Reviro os olhos e pego a leiteira. O fundo está cheio de açúcar
agarrado.
— Já faz três anos que ninguém lava essa porcaria, pelo visto
— reclamo alto.
— Camila! — minha mãe grita da sala.
— Só pode que essa mulher tem o ouvido biônico, eu hein! —
Jogo detergente na bucha e começo a esfregar o fundo da leiteira.
Meu pai abre o armário e tira os potes com açúcar e pó de café de
lá de dentro, depois deixa a porta bater. — Vai! Quebra!
— Ai, garota! — Ele ri.
— O senhor pega meu fone e meu celular lá no quarto pra
mim?
Ele coloca os potes em cima do fogão.
— Sua orelha não amassou ainda?
— Pai! — protesto.
— Não vou pegar, você precisa interagir com a sua família.
Nada de fone.
— Ok. — Por pirraça, não digo mais nada. Lavo todas as
vasilhas em silêncio, enquanto ele prepara o café conversando aos
berros com minha mãe, que permanece na sala com seu notebook.
— Depois que você terminar aí, nada de ir se enfurnar naquele
quarto. Vamos tomar café na varanda hoje.
— Quê? A gente nunca usa aquela sacada pra nada!
— A gente nunca nem fica em casa. Não vamos perder a
chance de respirar um pouco de ar puro. Vou colocar as coisas do
café lá e você venha.
— Sim, senhor, né? Não que eu tenha escolha.
A verdade é que eu também estou cansada de ficar o dia inteiro
no quarto vendo lives no Instagram. Mas a grande questão é: do
que eu não estou cansada? Já estava acostumada a ficar em casa o
dia inteiro, mas a impossibilidade de sair deixa as coisas muito
piores. É essa falta de escolha que me incomoda, não a limitação de
opções de lazer.
E não é ruim sair um pouco, mesmo que seja para a sacada. A
vista do oitavo andar não é lá grandes coisas, porque dá para o
prédio da frente, mas é legal ficar observando meus vizinhos usando
suas varandas das mais diversas maneiras. Tem uma senhorinha
fazendo crochê, um rapaz bem gato correndo em uma esteira, uma
moça pintando um quadro florido horroroso (desculpa, moça) e um
senhorzinho regando vasos de planta.
Mas nossa sacada tem um ponto negativo, que sempre me faz
evitá-la: ela fica perto demais da sacada vizinha, a somente duas
janelas (uma é a do meu quarto) de distância. Então tudo o que a
gente conversa aqui pode ser facilmente ouvido por quem mora no
apartamento ao lado. E não, eu não conheço meus vizinhos,
nenhum deles.
Sou uma vergonha nacional.
Uma vergonha nacional antissocial e isolada.
— E sua faculdade, filha, já decidiu se vai fazer EAD?
— Ai, mãe… — Eu realmente não quero falar sobre a pior
decisão da minha vida e não sei como contar para ela que quero
desistir do curso no segundo mês. Minha mãe vai me matar. Então,
que mate outro dia. — Até agora o que foi definido é que segunda-
feira começam as aulas on-line, mas ninguém falou nada sobre
reduzir mensalidade e essas coisas.
— Reduzir mensalidade por quê? — Meu pai me encara
daquele jeito que ele faz antes de me dar bronca.
— Ué, por mudar de modalidade. EAD é mais barato, todos os
alunos estão protestando no grupo do WhatsApp.
— É uma mudança temporária.
— Sim, então tem que reduzir o valor temporariamente.
— Mas os professores vão continuar trabalhando, alguns deles
nem sabem como fazer uma transmissão ao vivo e vão ter que
aprender. E os outros funcionários? Você é a favor de reduzir o
salário deles?
Viu? Bronca.
— Mas, pai, não é justo com os alunos. Nós pagamos muito
mais caro pela modalidade presencial… Fora que não são os alunos
nem os professores que deveriam pagar por isso e, sim, nosso
governo inútil. São eles que estão permitindo que as empresas
cortem salário e jornada dos profissionais.
— Tudo bem, não vou discutir com você. — Ele dá o gole final
no café e se levanta.
Minha mãe também se levanta, mas vem para perto de mim e
coloca o braço no meu ombro.
— Deixa seu pai, filha. Ele está chateado demais com essa
situação. Você está vendo o tanto de trabalho que ele anda tendo,
preparando exercícios para mandar pros alunos…
Eu não estava vendo, para ser bem honesta.
— Ai, tudo bem, mãe. — Cruzo os braços, me perguntando se
essa não seria uma boa hora para dizer que estou inventando
qualquer motivo para justificar o fato de eu não querer mais fazer
essa faculdade. Decido que não. — Não toco mais no assunto.
Quando ela sai, fico alternando meu olhar entre a sacada ao
lado da nossa e minha caneca de café com uma ilustração do
Spock. Eu queria, na verdade, era uma caneca com um desenho da
Michael de Star Trek: Discovery, mas nunca encontrei uma dessa.
Vejo uma cortina se mexer na varanda vizinha e uma pessoa
sair. No susto, ou talvez por impulso, dou um pulo na cadeira e bato
o joelho na mesa, derrubando a garrafa de café que, felizmente,
está fechada. A pessoa do lado de lá me encara e a vontade que
sinto de me esconder só aumenta. Acho que nunca vi alguém tão
bonito em toda a minha existência. Deveria ser proibido. Se eu
continuar minha faculdade de Direito, vou criar uma lei que proíba
as pessoas de serem tão bonitas. Sinceramente, não dá. Chega a
ser humilhante.
— Ei. — A pessoa sorri para mim, passando a mão sobre a
cabeça raspada. — Eu sou o Erick.
Oi, Erick, como você é lindo!
— Ei, eu sou a Camila! — Aceno, com um sorriso
completamente sem graça no rosto. Meu coração está dando pulos
dentro do peito; não consigo controlar direito nenhum dos meus
gestos, então só fico parada, olhando para ele.
— Nunca vi você aí. — O sorriso dele ainda está no rosto. Um
sorriso cheio de dentes brancos e lábios grossos, pintados de roxo
escuro. Me bate uma vontade de correr e pular na sacada dele só
para ver aquele sorriso mais de perto. O problema é que, se eu
tentasse fazer isso, provavelmente cairia no vão entre as varandas e
despencaria por oito andares. Não é mesmo uma boa ideia.
Abaixo o olhar, pois não consigo evitar, e observo a blusa
amarela que ele veste. A cor combina perfeitamente com o tom
escuro da pele de Erick. Daqui não dá para ver o restante do corpo,
por causa da mureta da sacada, mas só posso imaginar que até os
pés dele devem ser perfeitos.
— O que a quarentena não faz, né?
Tento dar um sorriso mais sincero, torcendo para que Erick não
tenha reparado que eu o estava secando com o olhar, e acho que
sou bem-sucedida, porque ele alarga o sorriso.
Erick coloca os braços sobre o parapeito da janela, e é quando
reparo que ele traz algo na mão. Parece um tablet.
— Pois é. Estou até lendo mais! — Ele ergue o objeto.
— E o que você tá lendo?
— Ah, alguns contos que baixei de graça. Mas acho que nem
se essa quarentena durar quinze anos vou conseguir ler todos.
Peraí, ele tem a língua presa?
Ele tem, sim.
Acho que vou ter um treco. Não consigo respirar direito, o ar
está agarrado no meu peito, o apertando de dentro para fora.
— Baixou de graça como? — pergunto, com o que sobra da
minha voz.
— Alguns escritores e editoras liberaram e-books
gratuitamente. Eu tentei pegar só os LGBTQ, mesmo assim foram
muitos.
— Onde você achou? — Não que eu goste muito de ler. Mas
não ia falar isso para ele e ser julgada por toda a minha vida. E
outra: quero continuar conversando para ver se passa essa
sensação de morte iminente.
Ele tem a língua presa! É a coisa mais fofa do mundo.
— Tem um perfil no Twitter chamado Cadê LGBT que postou
vários livros LGBTQ de graça.
— Ah, que legal! Vou procurar agora.
Estou pedindo indicações porque quero impressionar meu
vizinho? Sim. Mas talvez esses livros de graça me tirem um pouco
do tédio.
Pego meu celular sobre a mesa e abro o aplicativo do Twitter,
dando goladas no meu café enquanto procuro as listas de livros de
graça.
— Nossa, realmente são muitos.
— Vê se esses que você tá olhando estão gratuitos hoje,
porque todo dia muda.
A voz dele, nem tão fina nem tão grossa, o sotaque chiado que
eu costumava detestar, a maneira como o som se perde um pouco
com o vento, faz algo dentro de mim chacoalhar, me faz querer ouvi-
lo mais. E isso me assusta. Ando sentindo tão pouco, que sentir
algo, mesmo que bobo, faz meu coração saltar.
Eu me levanto, de repente.
— Vou entrar. A gente se vê por… bem, por aqui! Vou
aproveitar para ler também.
— A gente se vê, Camila. — Erick passa a mão direita no braço
(e que braço!) esquerdo.
Lindo!
Ele parece um pouco decepcionado — ou talvez seja a minha
ilusão esperando que ele quisesse conversar mais comigo e
acreditando que minha fuga repentina o tenha frustrado.
Viro as costas, tentando não parecer desesperada, e entro em
casa.
Meu Deus, preciso arrumar alguma coisa concreta para fazer
antes que minha cabeça se perca completamente nesse mundo
fantasioso envolvendo vizinho gato, livros gratuitos e Braza (daqui a
pouco até começo a gostar da banda).
Será que é ele quem me acorda todos os dias?
Meu coração salta de novo no peito.
Será possível?
Minto para mim mesma, me dizendo baixinho que sou superior
a qualquer possibilidade de crush. Mas, quando chego ao meu
quarto, vou direto para a janela espiar Erick, escondida atrás da
cortina.
Capítulo II
Dia 7

Sonhei duas vezes que o mundo acabava em um tsunami. E, no


meio do sonho, Erick aparecia em um barco para me salvar, mas a
gente acabava sendo jogado no meio do mar por uma onda gigante.
E eu me molhava toda antes de acordar.
Acho que os sonhos foram diferentes em algum momento, mas
não consigo me lembrar.
Meu pai insiste para que tomemos café todos os dias na
sacada. Acho que ele está a um passo de surtar e sair correndo
desse apartamento, o que me deixa preocupada porque estamos
apenas no sétimo dia e eu sei que vamos ter que ficar em casa por
muito mais tempo.
Para a minha sorte (ou azar), não encontro Erick.
Mas eu o vejo, só que da janela do meu quarto. Sei que é
estranho, pena que não ligo. No dia anterior, eu havia ficado horas
na janela vendo Erick ficar horas na sacada olhando o prédio da
frente. Ele leu tanto quanto eu (ou seja, nada). Desconfio que meu
vizinho esteja a fim de alguém ou investigando um crime, essas são
as únicas explicações para alguém passar tanto tempo vigiando a
vida dos outros.
Ou talvez ele só esteja entediado.
— Você vai ficar o dia inteiro nesse quarto de novo, Camila? —
Meu pai entra sem pedir licença.
— Vou — digo, emburrada, me virando para encará-lo. —
Ninguém enche o saco do Marcelo.
— Seu irmão está na sala vendo filme com sua mãe.
— Vendo filme ruim com a minha mãe — corrijo.
— O que você quer ver?
— A terceira temporada de Star Trek: Discovery.
Ele coloca as mãos na cintura.
— E por acaso já estreou?
— Não. — Eu me viro de novo e volto a olhar para a sacada de
Erick da minha janela. Para a minha sorte, ele não está lá.
— Por que você é tão difícil?
Dou de ombros e ouço algo ranger.
— Você vai ficar aí? — pergunto ao ver meu pai sentado na
minha cama.
— Vou te fazer companhia hoje. Quero saber o que o seu
quarto tem de tão interessante.
— Para de ser chato!
— Vamos lá, Camila, é só um filme! Hoje é sábado!
— Todo dia é sábado agora, pai! — Vou até ele e me sento do
seu lado. — Eu só não quero ver nada. Nada parece ser legal o
bastante.
Ele mexe no meu cabelo.
— Eu entendo, também estou achando um saco ter que ficar
preso em casa. Mas não há o que fazer. Estamos em uma
pandemia global contra um vírus que a gente ainda não tem como
combater. Precisamos fazer esse sacrifício.
— Eu sei…
— Não é melhor ficar em casa junto com a sua família do que
aqui sozinha no quarto fazendo sei lá o quê?
Vendo meu vizinho gato fazer um total de zero coisas em sua
sacada.
Eu sei que estou sendo ridícula.
— Tá bom! Mas, por favor, um filme bom!
Ele se levanta.
— Vou deixar você escolher.
Capítulo III
Dia 8

Alienígenas invadem o planeta e destroem praticamente toda a


população humana. Estou fugindo deles com um vestido rosa e uma
flor na mão, meus cabelos batendo nas costas enquanto corro,
quando alguém agarra meu braço. Vejo os olhos escuros de Erick e
dou um passo para trás. Ele é um deles. Tento correr, mas sou
agarrada com força. Sinto o chão se desfazer sob os meus pés,
como se eu estivesse caindo, e uma pressão nos meus braços me
faz virar. Encaro Erick. Minhas mãos suadas ainda tentam afastá-lo
de mim, mas não conseguem. Não sei se quero me afastar dele.
Então acordo.
Ouço Marcelo conversar tão alto que parece que está dentro do
meu quarto. Meu irmão está nervoso porque o patrão decidiu abrir a
pizzaria, o obrigando a sair de casa para trabalhar ou a correr o
risco de ser demitido.
A primeira coisa que faço é ir até a janela. Estão os três
sentados na varanda, tomando café. Meu pai, nervoso, bate a
colherzinha de açúcar na borda da xícara. Não consigo ver o rosto
da minha mãe nem do Marcelo, pois estão de costas para a minha
janela.
Sinto algo estranho nos dedos, um nervoso, uma inquietação.
Não posso me estressar agora. Mas, pê-quê-pê, abrir uma pizzaria
em pleno surto de um vírus com alta possibilidade de contágio? Não
dá para defender. Acho que a vida não vale nada para esse povo.
Não vou me estressar. Fecho os olhos e coloco os dedos nas
têmporas.
Não vou.
— Ei! — Ouço a voz de Erick e quase respondo com um “oi”.
Porém, ao abrir os olhos, vejo que ele não está falando comigo.
Acho que nem me viu aqui, escondida atrás da minha cortina rosa.
— E aí, Erick?
Espera, o Marcelo conhece nosso vizinho?
— Como está a quarentena? — Pela maneira como meu pai
pergunta, acho que só eu não conhecia o Erick. Meu Deus, em que
mundo eu vivo?
— Tá indo bem, seu Patrício. Inovando no jeito de lidar com os
meus pais. — O sorriso dele é realmente um paraíso.
— O sargento está ficando em casa?
— Não, não. Ele está trabalhando normal. — Erick passa a mão
direita na nuca. — A polícia está toda na rua cumprindo o decreto do
governador. Só que essa situação está estressando todo mundo.
Sargento?
O pai do Erick é um sargento?
Meu vizinho é um sargento?
Puta merda! Como que eu nunca nem vi esse homem por aqui?
— Eu imagino! — Minha mãe se levanta. — Vou trabalhar,
pessoal. A direção aprovou o home office, então, vou aproveitar que
não tenho nada para fazer e me organizar porque vai ser uma
semana inteira sobrecarregada!
— Também vou, tenho trabalhos para corrigir.
A porta da sala range e demora alguns minutos para alguém
voltar a falar.
— Conheci sua irmã esses dias. A famosa Camila-que-
ninguém-vê.
O quê? Famosa?
Que tipo de fama é essa?
Meus dedos formigam ainda mais.
— Ela saiu da toca? — Marcelo solta uma risada, que ele logo
abafa. — Xiu, tem que falar baixo porque essa aí é a janela dela.
Eu me afasto, ainda ouvindo a conversa.
— Ah é? Eu não sabia!
— Se bem que... duvido que ela esteja ouvindo. Essa garota
fica o dia inteiro com fone no ouvido, só para evitar o mundo ao
redor dela.
— Não posso dizer que ela esteja errada!
— Quem não quer se alienar, né? Bom, amigo, vou nessa.
Tenho que me preparar psicologicamente para trabalhar hoje.
— Ué, a pizzaria vai abrir?
Marcelo solta um muxoxo.
— Se nem o presidente respeita a quarentena, quem vai
respeitar?
— Aquele… — Até o jeito como Erick xinga é lindo. Estou
apaixonada.
Ok, não estou apaixonada, vai! É só um crush bobo que vai
passar logo, porque na minha vida é sempre assim.
Meu pai me chama para tomar café, mas eu o ignoro e fico aqui
observando Erick puxar uma cadeira e se sentar, como faz todos os
dias. Pego meu fone de ouvido e escolho uma playlist do Imagine
Dragons.
Escuto cinco músicas, sem conseguir me concentrar em
nenhuma delas. Erick se movimenta na cadeira, erguendo-se um
pouco para ver melhor sobre o parapeito da sacada.
Que inferno, o que ele está fazendo?
Não dá para ficar a quarentena inteira vendo meu vizinho
observar sei lá o quê. Preciso descobrir o que ele tanto olha.
Saio do quarto e ando de fininho pela sala para não ser
abordada por ninguém. Vou até a varanda, com a desculpa pronta
de que estou indo tomar café. Mas ninguém me incomoda.
Erick olha na minha direção assim que abro a porta.
— Ei!
— E aí?
— Achei que não fosse ver você hoje!
Meus joelhos tremem. É só um crush, preciso insistir a mim
mesma, para que meu corpo não faça esse tipo de coisa e entregue
que estou caidinha pelo vizinho.
— Olha, se dependesse da minha disposição, ninguém me
veria dia nenhum!
Ele ri e se levanta da cadeira, indo parar no parapeito da
sacada. Pego minha caneca em cima da mesa.
— Acho fofa a fé do meu pai de que eu realmente sairia para o
café.
— Quê?
— Ah! — Ergo a caneca. — É que meu pai deve ter colocado a
mesa e trouxe minha caneca para cá, botando fé que eu viria tomar
café.
— O seu Patrício é muito foda! — Erick coloca os cotovelos
sobre a mureta e apoia o rosto nas mãos.
— Ué, não sabia que você conhecia meu pai. — Relaxo,
encostando as costas no espaldar da cadeira.
— Ele é meu vizinho.
— Você é meu vizinho e eu não conhecia você. Não que eu
seja parâmetro.
— É você que ninguém conhece, Camila. — Erick apruma as
costas, deixando as mãos livres sobre o parapeito. — Você é o
grande mistério do prédio. Há apostas para decifrar como é seu
rosto.
Solto uma risada.
— Para de bobagem!
— É sério…
Encho minha caneca com café e vou até a mureta, ficando de
frente para ele.
— Se é sério, como você achava que eu era?
— Agora cê me pegou!
Eu bem queria.
— Eu achava que você era a versão feminina do Marcelo.
— Você inventou isso agora!
— Verdade! Tô falando. Às vezes, eu ficava no meu quarto
pensando: como será que minha vizinha é?
— Besta!
— Aposto que você nem sabia que tinha um vizinho. Devia
achar que o apartamento estava vazio.
Levanto o braço que está livre.
— Ok, tá certo! Você venceu! — Bebo meu café de uma vez,
ponderando se devo citar que sempre ouço as músicas que meu
vizinho ouve. Decido que não. — Eu sou uma pessoa estranha.
— Eu entendo, já fui muito assim.
— Assim?
— É, de ficar no quarto, com o volume do fone de ouvido o mais
alto possível, só para não ter que lidar com minha família.
— Mas a minha família é ótima! Eu não estou lidando muito
bem é com essa coisa de isolamento.
— Nem eu. Pra mim está sendo péssimo, mas fico pior ainda
de imaginar como seria se a gente não tomasse todas as medidas
necessárias.
— Ficar em casa é mais difícil pra algumas pessoas que pra
outras, né?
Ele aperta os olhos e dá de ombros levemente. Será que falei
algo que não devia?
— É. Nem todos os pais fazem café da manhã na varanda.
Eu sei que Erick não diz por mal, mas me sinto péssima. Acho
que isso transparece na minha cara.
— Desculpa, eu não estava falando… tipo. — Ele tenta se
explicar, mas se embola.
— Tudo bem! É a verdade. — Sorrio e viro as costas para ele,
só para colocar a caneca sobre a mesa. — E eu entendo.
— Eu nem falo por ser difícil pra mim e tal. Tem amigos meus
perdendo completamente a cabeça, e o isolamento só começou. Eu
sou até de boa com minha família, já brigamos tudo o que tínhamos
pra brigar. Acho que você me entende. — E de novo o sorriso
bonito.
Eu não entendia, porém imaginava. Abro a boca para perguntar
mais sobre a relação dele com a família, mas me arrependo e
mordo o lábio.
— E como foi para a sua família? — É ele quem pergunta. —
Quando você contou que era lésbica…?
— Ah… Mas eu não sou lésbica, não.
— Uai, o Marcelo…
— O Marcelo é um linguarudo que fica jogando FIFA o dia
inteiro e nem participa das discussões de família. — Estou
acusando meu irmão de ser exatamente como eu. — Eu não sou
lésbica… sou bi. E beijaria fácil sua boca, por exemplo.
Eu pensei ou eu disse isso?
— Obrigado?
Eu disse. Meu Deus, eu disse! Como vou consertar isso?
— É que você é bem gato.
Piorei.
Eu devo estar vermelha igual um tomate, e olha que eu nem
fico muito vermelha.
— Ok, eu entendi. — Ele está rindo? Será que está rindo de
mim? — É que o Marcelo me disse que você era lésbica, falou até
que você tinha uma namorada.
— Namorada é uma palavra muito forte! Estava mais para um
crush platônico que foi correspondido e eu não soube lidar.
Erick coça o braço esquerdo, que está sobre o parapeito.
Reparo as tatuagens que ele tem ali. Pena que, de longe, não
consigo ver os detalhes. E eu quero ver os detalhes bem de
pertinho, tocar nos detalhes, depois beijar os detalhes.
— Por falar em crush platônico… — ele diz, tão baixinho que
quase não ouço, e dá uma olhada no prédio à frente. Eu o
acompanho.
— O que tanto te intere... ah! — A decepção faz minha voz
sumir. Um boy (um boy bem gato) está regando as mesmas plantas
que um senhorzinho regara dias antes. Ele está cantando alguma
coisa, que não consigo ouvir, vestido apenas com um shortinho
esportivo preto. Acho que deve ser um pouco mais claro que Erick
ou da mesma cor, e tenho certeza de que fariam um casal muito
bonito juntos.
Sinto meu estômago revirar.
— Por que você não coloca uma cartolina na sacada, tipo
naquele clipe da Taylor Swift?
Erick me olha com os olhos semicerrados, numa expressão que
diz: “jura?”
— Taylor Swift?
— É, uai. Funciona.
Ele ri.
— Não vou escrever numa cartolina pro meu vizinho. Vai que
ele é hétero!
— Pronto! Já temos o conteúdo do recado!
— Eu não vou escrever uma cartolina perguntando se o boy é
hétero! — Erick se vira para mim e, rindo, sugere: — Por que você
não escreve?
— Eu? — Coloco a mão no peito.
— Uai, você que sugeriu.
— Mas é você que é a fim dele!
— Poxa, Camila, colabora comigo, vai…
— Vou pensar no seu caso. — Eu me viro e jogo a mão para
cima com a palma aberta, dando o assunto por encerrado. —
Amanhã.
Capítulo IV
Dia 9

Pompons coloridos caem do céu, como meteoros. Pessoas


desesperadas correm para dentro dos prédios. Os gritos chegam
até onde estou, na varanda, aqui no alto, olhando para cima, para o
céu vermelho que nos cobre. Um pompom azul cai logo à minha
frente e acompanho sua descida com o olhar. Mas meus olhos
param ao chegar no prédio da frente, onde uma cartolina está
pregada entre dois vasos de planta.
“Não sou hétero, pode me beijar.”
Acordo aflita.
Será possível?
— Todo dia esse inferno de sonho!
Eu me levanto e vou até o guarda-roupa escolher algo para
vestir. Se ficar enrolando nesse quarto hoje, vou surtar. No banheiro,
vejo a bagunça que meu cabelo virou nos últimos dias. Esses fios
costumavam ser parecidos com os longos fios escorridos da minha
mãe, mas agora é tanto frizz que nem sei. Acho que só lavar o rosto
não vai ser capaz de tirar todo o tédio que estou sentindo, então
tomo um banho, escovo os dentes, visto algo bonito e penteio o
cabelo.
— Que milagre é esse? — Minha mãe até fecha o notebook
para dar total atenção a esse acontecimento histórico, assim que me
vê sair do quarto.
— Falo nada. — Reviro os olhos.
— Uai, irmãzinha, que bicho te mordeu? — Marcelo está saindo
da cozinha segurando um pedaço de torta. Eu o chamo com o dedo.
— Você! Vem aqui! — Vou para a sacada na esperança de que
ele me siga.
— O que foi?
Tomo a torta de sua mão e a enfio na boca, em seguida
indicando com um gesto para que ele me espere terminar de comer.
— Então — começo, ainda com a boca um pouco cheia. — Que
história é essa de você sair por aí contando para o prédio todo que
sou lésbica?
— Não contei pro prédio todo, só comentei com o pessoal que
joga bola comigo.
Dou um tapa no braço dele.
— Mas você é um fofoqueiro do caralho, hein?
— Uai, não falei nenhuma mentira, né? Você ficava pra lá e pra
cá com aquela tal de Júlia.
— O que não quer dizer que eu seja lésbica.
— Então você é hétero?
Uno as mãos e as levo à boca, como se fosse rezar. E chego a
pensar em fazer isso mesmo. Só Deus para me dar paciência.
— Criatura divina do Senhor, eu sou bi.
— Ah… igual o Erick.
— O Erick é bi? — Nem disfarço meu interesse. Meu irmão me
ignora completamente.
— Então você gosta de mulheres e de homens, é isso?
— Eu gosto de pessoas. Todos os tipos de pessoas, binárias ou
não.
— Ou… poxa. — Marcelo coça o pescoço, abaixando a cabeça
e encarando os pés, como se denunciasse “fiz merda”. Poxa o quê?
— Então você super de boa ficaria com, sei lá, uma pessoa não-
binária, tipo o Erick? — A voz dele está estranha.
— Por que você está me perguntando isso? — Desço as mãos
da oração para a altura do estômago.
— Por nada, não… — Ele tenta escapar, mas o impeço.
— Por que você está me perguntando isso? — repito.
— Já falei que por nada.
Meu irmão escapa e corre para a sala.
O que foi que ele fez?
— Marcelo… — Vou atrás dele. — Volta aqui.
— O que foi, minha filha? — meu pai pergunta, parado na porta
da cozinha, com um pano de prato no ombro.
— Nada! — Eu me jogo no sofá ao lado da minha mãe. No
entanto, antes que ele vire as costas e volte para lavar as vasilhas,
pergunto: — Pai, o senhor tem cartolina aí?
— Não sei, devo ter algumas coisas lá no escritório.
— Posso procurar?
— Lógico. Só não faz bagunça.
Minha mãe ri, debochada.
— Como se tivesse como bagunçar mais aquele lugar!
— Nem é tão ruim assim — ele protesta.
— É ruim o bastante para eu preferir trabalhar na sala.
Meu pai não fala mais nada.
— Tá vendo, mãe? Ele nem se defende! — Apoio as costas no
sofá e pego o controle remoto. Ligo a TV e começo a zapear os
canais, em busca de algo interessante para ver. No entanto, nada
me chama a atenção. Ando tão entediada que chega a ser um
incômodo físico, um cansaço sem fim, um desânimo, um peso no
corpo.
Eu me levanto e começo a andar pela sala, de um lado para o
outro. Depois, vou até meu quarto pegar o celular, mas as
mensagens nos grupos parecem não ter graça, assim como o
Twitter. Está todo mundo falando sobre um reality show que parei de
assistir no ano passado.
Vou até a cozinha, pego três pedaços de torta e coloco em um
pratinho. Penso em brincar com meu pai que, desde que ele
aprendeu a fazer torta de frango, agora essa é a única coisa que ele
faz, então nem é mais novidade. Mas, sei lá, até brincar parece
entediante. Quero sair de casa. Passear por aí. Fazer coisas que eu
não fazia antes, só porque agora percebi que não vou mais poder
fazê-las por um bom tempo.
Olho na direção da porta do escritório. Estou mesmo cogitando
essa possibilidade?

Quinze minutos depois, estou na sacada, sentada com os pés


apoiados na mesa, ao lado de três cartolinas e duas canetas de
ponta grossa. Já comi toda a minha torta e bebi duas canecas de
café. O que me resta agora é esperar. Mais quarenta minutos se
passam e Erick não aparece. Desisto. Toda essa história é uma
grande bobagem.
Decido fazer a mesma coisa que a maioria das pessoas está
fazendo para passar o tempo. Vou para o meu quarto, pego meu
celular e começo a votar para eliminar um participante do reality
show, apesar de nem saber quem é quem.
E nessa, pego no sono, perco o almoço, sonho de novo com o
fim do mundo e acordo com alguém tocando violão e cantando
Imagine Dragons. Certa de que estou passando por uma
experiência de sonho dentro de sonho, vou até a janela. Erick está
lá na varanda, sentado na mesma cadeira de todos os dias, tocando
um violão preto e cantando Demons.
Puxo a cadeira da minha penteadeira improvisada para debaixo
da janela e canto baixinho, porque essa é a minha música (essa e
pelo menos outras dez da mesma banda). Na sequência, ele canta
algumas músicas que não conheço e o som delas disputa com o do
meu estômago roncando.
Saio do quarto e estranho a sala vazia. Na cozinha, vejo um
bilhete na geladeira, apoiado por dois ímãs.
“Fomos ao supermercado, voltamos logo. Esquente a comida
que está no micro-ondas.”
Sigo a instrução e almoço ali mesmo, pois são duas da tarde e
estou morta de fome. Como, escovo meus dentes, ajeito o cabelo de
novo e só então saio para a sacada.
Erick ainda está na varanda tocando violão. Mas ele para
quando me vê.
— Estou incomodando?
— Não. Pode continuar! — Eu me sento, deixando o celular em
cima da mesa, do lado das cartolinas. — Vim aqui pra ouvir.
— Não sou tão bom assim…
— Ah, tá bom… O modesto! Me diga aí, modesto, qual o seu
twitter?
— Meu twitter? Uai, tá querendo me stalkear?
— Lógico!
— É só procurar nas últimas pessoas que seguiram você. —
Erick me lança aquele maldito sorriso e quase peço para ele parar.
Pego meu celular e abro o aplicativo, com certa inquietação. E, de
fato, está lá, a última pessoa que me seguiu. Dou uma olhada rápida
na descrição, checo os pronomes e vejo que o tweet fixado é uma
thread sobre a escolha do nome.
— Erick é o nome de um ranço meu do ensino fundamental —
comento, sem olhar para ele. — A mãe dele é eleitora daquele-que-
não-deve-ser-nomeado. Minha treta com ela foi a última coisa boa
que fiz no Facebook. Mas, apesar disso...— Olho para ele. — Acho
que combina com você, sabia?
— Obrigado! — Erick abre o maior sorriso que abrira até o
momento. Sorrio também, até meu rosto doer.
— Você deveria colocar seus pronomes na bio também. Todo
mundo deveria. Facilita a nossa vida.
Faço o que ele diz na mesma hora.
— Pronto! — Jogo o celular em cima da mesa. — Mais tarde
vou passear pelo seu perfil e ler todos os seus tweets para ver que
tipo de vizinho eu tenho. Já vi que você gosta de umas séries que
olha…
— Você tem algum problema com The Good Place?
— Não vi. Nem ela, nem Brooklyn Nine-Nine.
— O quê? Você não viu Brooklyn Nine-Nine?
— Eu gosto mais de sci-fi, sabe?
— Não quero mais conversar com você! — Ele ergue o braço,
como se tampasse a visão do meu rosto.
— Aposto que você nunca viu Star Trek: Discovery…
— Não vi, mas você está querendo comparar o incomparável.
Cruzo os braços e faço uma sugestão:
— Se você assistir a minha série, eu assisto a sua. E olha que a
minha tem muito menos temporadas.
— Fechado. Vou começar hoje!
— Ok, então temos um acordo.
Capítulo V
Dia 10

Gritos empolgados ecoam pela noite antes tensa. Os alienígenas


foram expulsos pela união das pessoas e agora todo mundo
comemora a partida das naves que cortavam o céu com suas luzes
coloridas.
É a primeira vez que o mundo não acaba no final do meu
sonho.
As cartolinas em branco estão na cadeira embaixo da janela e,
por cima delas, meu notebook descansa depois de doze horas de
maratona.
No começo, foi difícil me acostumar com um estilo tão diferente
de humor de Brooklyn Nine-Nine (e com alguns pontos
problemáticos da série), mas com o tempo os personagens me
pegaram e, quando percebi, estava tão apaixonada que não
conseguia parar de ver.
Erick conseguiu terminar a primeira temporada de Star Trek:
Discovery e me mandou tantas mensagens sobre o plot twist e o
final, que tive que ignorar e dormir, pois já estava caindo de sono.
Isso porque ele ainda não viu a segunda.
Ficamos tão empolgados com o acordo das séries que nem
tocamos no assunto “cartolinas para o vizinho gato”. Só lembrar
disso faz meu estômago dar voltas e mais voltas. Acho que a
sensação está piorando e tenho medo de que meu crush também.
Quero que Erick me note, que acorde e me mande mensagem,
que converse comigo através de figurinhas e GIFs e que curta as
bobagens que eu posto no Twitter. Quero que ele goste de mim, da
pessoa que eu sou, além da pessoa que quer chamar a atenção
dele na internet. E isso vai muito mais além do que apreciar a
beleza de alguém distante. Não sei quando foi que deixei apenas de
achar meu vizinho bonito e caí nesse looping de ficar olhando para o
celular esperando que ele me responda. Eu sinto quase como se eu
pudesse tocá-lo. E isso me assusta, me faz querer correr.
Eu me levanto, prestando atenção na batida que vem do quarto
ao lado. Conheço esse som, só preciso me concentrar para ouvir
que música é. Depois de um tempo, consigo decifrar os acordes de
Shots, do Imagine Dragons. Será possível que meu vizinho de
parede seja o Erick?
Pego meu celular no chão ao lado da cama e abro o aplicativo
de mensagens. Há treze ainda não lidas dele, mas as ignoro.

Não me diga que seu quarto é do outro lado da minha parede?

Mundos paralelos, jura?

Não muda de assunto.

Você que está mudando de assunto.


Sim.
Minha janela é do lado da sua.

É eita atrás de eita.

Os apartamentos devem ser espelhados.


Para a minha sorte, você tem um gosto musical até razoável.

Na verdade, estou ouvindo Imagine Dragons por sua causa.

Ah, é?

Quero aprender outra música deles para ver se chamo sua


atenção.

Ele está me deixando sonhar. E até aí tudo bem.


O problema é que pensei que nada disso passaria de um crush
platônico bobo, que eu ficaria observando meu vizinho pela janela e
não que a gente começaria a conversar pela janela, a falar sobre
séries e sobre nossos pais, sobre a vida e as coisas que a gente
gosta, que ele me perguntaria como eu estou em vez de me dizer o
que eu devo fazer ou não.
Com isso, eu não sei como lidar.
Preciso respirar.
Comecei uma faculdade e deu errado.
Respirar.
Minha vida inteira é uma sequência de planos nos quais não
mergulhei e, quando mergulhei, deram errado. Já é decepção
demais para uma pessoa só.
Por que eu tenho tanto medo?
A pergunta é lançada pelo meu próprio cérebro. E eu deveria
saber responder, mas não sei.

Consegui cartolinas.

Envio e me arrependo em seguida. Não dá nem tempo de


apagar.

Perfeito! Eu já sei o que quero que você escreva!

Diz aí que escrevo agora.

Me sinto um pouco decepcionada. Não sei o que estava


esperando. Sem querer me colocar para baixo — o que prometi que
não faria (mas sigo fazendo, pois sou humana e autoestima não cai
do céu) —, sei que eu não teria chances contra um boy daqueles,
que, além de gato, ainda rega as plantinhas do (eu imagino que
seja) avô. Enquanto isso, eu fico em casa, fazendo nada vezes nada
e reclamando dos meus pais que são ótimos.
Mas a julgar pelas nossas conversas e pelas indiretas dele, eu
cheguei a pensar que... Não sei.

Vamos fazer isso depois?


Quero terminar logo essa série.

Ok.
Também quero ver alguns episódios da sua série para confirmar
meu crush.

Crush em quem?
Em você!

Na Rosa, lógico!
Capítulo VI
Dia 11

Desaparecimentos estranhos em todo o mundo parecem estar


ligados a mim. Estou no prédio da frente, olhando para duas
pessoas segurando cartolinas brancas, ambas com as palavras “por
favor, me leve” rabiscadas em azul, cada uma em sua varanda. O
céu escuro é cortado por uma luz vermelha, que vai do chão até
onde sou capaz de olhar. Olho de novo para o prédio da frente e,
dessa vez, só vejo uma pessoa com um cartaz onde está escrito:
“Agora você tem a obrigação moral de me levar também.
Ninguém mandou sumir com meu crush primeiro.”
Eu deveria anotar esse sonho. É a primeira coisa que penso ao
abrir os olhos, contra a minha vontade. Pego meu celular, pronta
para fazer isso, e vejo que recebi uma mensagem de voz de Erick.
— Vamos resolver aquilo da cartolina hoje? Preciso saber logo
se tenho alguma chance com meu crush.
Um balde de água fria logo pela manhã que é para eu acordar
de uma vez.
Por falar em água fria, acho que é disso que preciso. Vou então
ao banheiro e tomo um banho bem gelado, e espero que assim eu
deixe de ser trouxa. Nem animo de me arrumar, só visto qualquer
coisa e desembaraço o cabelo.
Tomo café e como biscoito de água e sal com margarina,
esperando Erick aparecer para a última pá de terra no meu crush
(que quase deixou de ser) platônico.
— Camila, sua faculdade resolveu a questão do EAD? — Meu
pai coloca o rosto pela abertura da porta.
Eu demoro a responder, pois estou com a boca cheia de
biscoito e também porque ainda não decidi se devo falar logo a
verdade.
Ah, quer saber de uma coisa? Eu vou falar, sim. Chega de fugir
das coisas. Preciso encarar ao menos essa decepção de frente.
— Então, pai, eu decidi trancar o curso.
— Como é? — Ele caminha devagar e se senta do meu lado.
— É isso. Não dou certo com Direito. Acho que já sabia disso
antes mesmo de começar.
— Então por que começou? — O jeito paciente de professor
que ele tem às vezes me irrita mais do que me acalma.
— Porque eu pensava que precisava sair logo do ensino médio
com um objetivo de vida, com um futuro traçado e planejado ou
com, pelo menos, um plano. Mas a verdade é que não tenho nada
disso. Ainda nem sei o que quero fazer da vida.
Pronto, falei.
— Sua mãe vai te matar! — Ele dá um tapinha no meu ombro e
se levanta. — Já vou até me preparar pros gritos.
— Nossa, ajudou bastante — reclamo, com ironia. — É só isso
que o senhor vai dizer, bonito?
— Vou falar mais o quê, garota? Eu trabalho com jovens há
mais de quinze anos. É muito pesado querer que vocês definam
todo o futuro de vocês com dezesseis, dezessete anos. Tenho o
dobro disso e às vezes não sei o que quero da vida. — Ele sorri. —
Vai ficar tudo bem. Digo em relação a tudo. Fica tranquila. Você não
tem que definir nada agora.
— E se o mundo acabar amanhã e tudo o que eu tiver for o
agora?
— Então aproveita esse agora para ser feliz e não para se
preocupar com um futuro que você nem sabe se vai vir.
— Se minha mãe ouvir você falando isso, ela te mata.
— Eu sei. Então, xiu. — Ele coloca o indicador nos lábios. —
Fica quieta.
Solto uma risada baixa e o acompanho com o olhar até ele
entrar na sala e fechar a porta.
Talvez meus sonhos estejam querendo me mandar um recado.
O que aconteceria na minha vida se eu permitisse que as coisas
simplesmente acontecessem? Será que eu viveria mais e pensaria
menos? Será que meu coração aceleraria, minhas mãos suariam e
eu me sentiria viva mais vezes? Será que eu teria mais crushs reais
e menos horas perdidas no feed do Instagram?
— É uma hora ruim?
Eu me assusto um pouco ao ouvir a voz dele e bato o joelho na
mesa. Desse jeito, vou acabar ficando toda roxa até o final dessa
quarentena. Erick está parado com os cotovelos escorados no
parapeito da sacada.
— Não.
— Vi que você estava falando com seu pai. Parecia importante.
— Eu estava contando sobre a faculdade que vou trancar.
— Ah… — Ele abre a boca para continuar, mas interrompo.
— Vamos fazer alguma coisa legal? — Eu me levanto e vou
para o mais perto dele que consigo, presa aqui, na minha varanda.
— O quê?
Sei lá, eu te conto que estou querendo te beijar e você me
conta se beijaria.
— Esses dias eu estava vendo um pessoal brincar nos stories
com aqueles filtros de perguntas e respostas, sabe? Aí tinha um que
aparecia o nome de uma pessoa famosa e a pessoa respondia se
pegaria ou não.
— Ah, então você quer descobrir que tipo de pessoa me
interessa?
Sim!
— Na verdade, preciso saber que tipo de pessoa você é.
— E saber meus crushs ajudaria como?
— Em tudo, pensa um pouco! As pessoas que nos interessam
dizem muito sobre o tipo de pessoa que somos.
Erick contorce a cara de um jeito engraçado.
— Tá bom, vamos lá. — Ele coloca os cotovelos sobre o
parapeito, me desafiando.
— Selena Gomez?
— Faria. — Ele nem pensa, só responde de uma vez. — E
você?
— Talvez… Taylor Swift?
A maneira como Erick tranca os dentes responde antes mesmo
de ele dizer, como se fosse óbvio:
— Não.
— Também não. Rihanna?
— Porra, faria demais, lógico.
— Tá, Pabllo Vittar?
— Faria. Gloria Groove? — ele emenda a pergunta.
— Lógico que faria. Ela é completamente meu espírito
bissexual. Montada e desmontada. — Penso um pouco. — O
presidente?
— Ah, pelo amor de Deus, né?
— Eu?
Erick engasga.
Eu não deveria ter perguntado isso. A demora dele em
responder faz minhas mãos suarem. Não quero dar na cara que
estou nervosa, mas eu consigo controlar? Claro que não.
— Will Smith? — continuo, fingindo que nada aconteceu, e
sorrio para mostrar que estou bem.
Não estou bem.
— Lógico que faria. — Ele responde, mas de um jeito estranho,
com um sorriso forçado.
— O vizinho?
Erick cruza os braços, mas não fala nada.
— Então… — Encerro a brincadeira de vez, sem saber onde
enfiar minha cara. É lógico que ele me ouviu perguntar sobre mim
mesma e ficou com vergonha de dizer que não me pegaria.
— E o recado na cartolina? — Ele olha para a mesa atrás de
mim. — Nós não vamos fazer?
E eu que pensei que não podia piorar.
— Vamos! — Minha voz sai fraca, algo parece ter se congelado
por todo o caminho entre meu estômago e minha boca. Mas não me
importo mais em parecer ridícula. Quero terminar essa porcaria de
mensagem idiota e me enfiar dentro do meu quarto até a
quarentena passar. Vou até a mesa, pego o material e volto.
— Eu dito e você escreve? — O tom de desafio na voz dele me
incomoda. Qualquer coisa que ele dissesse me incomodaria. Eu me
sinto uma otária, uma boba, uma… aff!
Reviro os olhos.
— Para de enrolar e fala logo. — Destampo a caneta
hidrográfica azul com a mão, me lembrando do sonho estranho que
tive.
— Escreve aí: Crush…
Ele começa a ditar e vou anotando tudo, me concentrando para
caprichar e ser rápida ao mesmo tempo.
— Ontem eu terminei uma série muito doida que me fez
pensar…
— Sério? — interrompo. — Isso tudo? É para bater papo via
cartolina?
— Ok. Eu dito o cartaz primeiro.
— Quê?
— Escreve aí: quando essa quarentena acabar, a primeira coisa
que vou fazer vai ser beijar a sua boca. Muito rude?
Pego uma cartolina nova e jogo a outra no chão.
— Um pouco rude, sim. Sei lá, tem que falar com mais jeitinho
— sugiro, com um pouco de desprezo. Aqui estou eu, dando
conselhos para a pessoa que quero beijar sobre a melhor forma de
se comunicar com o crush dela. Veja bem a situação.
— Tá. Coloca aí: você sempre foi um mistério pra mim.
Escrevo as palavras com capricho. Já que é para perder, vou
perder com estilo.
— Que mais?
— Pensei que o maior desafio dessa quarentena seria lidar com
a sensação de prisão. Essa é a parte ruim, mas claro que
necessária porque a gente tá falando de uma pandemia. É algo
global…
— Dá pra ser conciso, em nome de Deus?
Erick solta uma risada.
— O que você colocaria?
— Você é gato pra caralho, eu sou gato pra caralho, vamos ser
gatos juntos?
E a risada fica mais alta ainda.
— Camila, como alguém te leva a sério?
— Ninguém me leva a sério. Você não tá me levando a sério.
Vamos escrever o recado ou não?
— Vamos. Já sei o que quero dizer. Vai escrevendo enquanto
eu falo. — Ele começa a dizer palavra por palavra. — Só quero que
essa quarentena acabe logo…
E eu escrevo.
— Pra gente deitar no chão do meu quarto…
— Esse trem vai ficar grande!
— Só escreve, Camila.
— Ai, tá. — Escrevo. — Continua.
— E assistir a terceira temporada de Star Trek: Discovery…
Paro de anotar e olho para ele, que continua falando.
— Enquanto eu roubo alguns beijos, te aperto um pouquinho e
vejo ainda mais de perto o quanto você é linda.
O chão sob os meus pés treme — ou são minhas pernas que
vacilaram? Sinto o ar ficar preso na garganta e, por um instante,
acho que vou passar mal.
— Escreveu? — Erick tem a cara de pau de perguntar, com
esse sorriso lindo e cínico no rosto.
— Não, escrevi não. Não sei se vai dar para ler esse tanto de
coisa lá do prédio da frente. — Cruzo os braços e ele joga a cabeça
para trás.
— Ok, você venceu. O boy da frente é só um boy bonito,
Camila. Você é mais. Eu estava planejando te dizer isso com a
cartolina, mas você quase estragou com a brincadeira de antes. —
Ele ainda está sorrindo. — É pra você que eu quero escrever
recadinhos em cartolinas, aprender músicas novas e ver séries que
bugam a minha mente. Eu quero saber se eu vou poder te beijar
assim que o Ministério da Saúde permitir.
Não falo nada. Pego a caneta e a cartolina que está em branco
e escrevo, bem grande, para não correr o risco de ele não ver.
“Vai.”
Viro a cartolina para Erick e, por cima dela, vejo que ele está
sorrindo.
— Você tá tão pertinho — ele lamenta.
— Tecnicamente, estou a três metros de você.
Olho para as minhas mãos. Tem tinta azul nelas, pequenos
pontinhos onde a caneta riscou sem que eu visse. Olho para Erick,
penso nas mãos dele tocando as minhas, as minhas manchinhas
azuis sendo dele também. Penso em ver de perto o desenho que
ele tem no braço e desenhar no meu próprio braço tentando uma
imitação malfeita. Penso em quantas coisas a gente poderia fazer
agora e em como seria mais fácil se tudo isso apenas passasse.
— Três metros! É muito mais do que eu gostaria que fosse.
— E quanto você gostaria que fosse?
— Nada.
Capítulo VI
Dia 14

Uma tosse ecoa pelo ar, depois tudo volta a ficar silencioso. As
pessoas lá embaixo andam pelas ruas como sempre andaram. Elas
se encontram, se abraçam, conversam, se beijam. Tudo está
normalmente caótico. Mas daqui não posso ouvir o caos. Estou
deitada com as costas no chão frio do quarto, Erick está do meu
lado, desenhando flores simples e infantis na minha mão com uma
caneta azul. Ele beija meu ombro e diz que tudo vai ficar bem. Eu
me viro de lado e encosto minha testa na dele, puxo seu lábio
inferior de leve com os meus dentes e… o som de algo caindo no
chão me acorda.
Puta que pariu.
A bissexual não tem um dia de paz nessa quarentena.
— Droga! — Erick xinga alto no quarto ao lado do meu.
— Tá tudo bem aí? — Coloco o rosto para fora da janela.
— Deixei o violão cair. Eu te acordei?
— Uhum, mas não tem problema. — Volto para dentro do
quarto e pego o celular, mandando um áudio para ele, enquanto
sento na minha cama: — O que nós vamos ver hoje?

Me indicaram uma série que dizem ser ótima.

Qual?

The Twilight Zone.

Poxa, quero muito ver essa série.

Vamos essa, então?

Vamos.

Deito na cama e olho para o teto.


Ah, meu pai disse que vai fazer torta hoje de novo. Esse
homem não cansa! Vou separar um pedaço pra você e colocar na
sua porta.

Vai deixar um bilhetinho hoje?

Vou pensar no seu caso. Mas só vou fazer isso depois que o
Marcelo sair pro trabalho. Ele me viu colocando torta na sua porta
antes de ontem e não para de me sacanear desde então. Ele quase
contou pros meus pais, aquele linguarudo!

Seu irmão é uma figura!

Falando nisso, quer dizer que você já tinha manifestado seu


interesse por mim pro meu irmão antes?

Mas o Marcelo é linguarudo mesmo, viu?!

Nenhum de nós manda mensagem alguma por um tempão.


Agoniada, eu me levanto e vou até a janela.
— Eu estava pensando em uma coisa — digo alto.
— O quê? — ele responde antes de aparecer na janela.
— Acho que o mundo não vai acabar.
— Por que você acha isso? — Erick escora os cotovelos e me
olha, em desafio. — Só porque parou de sonhar com o fim do
mundo?
— Não. Porque eu comecei a sonhar com coisas que eram
simples e reais antes, mas são difíceis demais agora, como beijar
meu vizinho, ir ao supermercado, ver algum filme cheio de
explosões e enriquecer ainda mais uma empresa bilionária, abraçar
pessoas. Lidar comigo mesma, com minha família, com meus
medos. — Apoio minhas mãos na janela e olho para a frente,
deixando o vento bater nos meus cabelos. Depois olho para Erick.
— Acho que o mundo não vai acabar. Ele só vai ser diferente daqui
em diante.
Erick sorri, quase como se estivesse me admirando.
— Eu espero mesmo que seja.
Eu me sinto tranquila, como não me sentia desde o começo da
pandemia e dos meus pesadelos com o fim do mundo. É como se,
apesar de tudo ainda estar caótico lá fora, algo aqui dentro tivesse
encontrado seu lugar.
Retribuo o sorriso.
— Eu também.
Outra dimensão para nós dois
Leitura sensível : Koda Gabriel
Para as pessoas que inspiraram este conto.
Vocês são lindas, vocês são válidas.
Capítulo I
A dimensão da casa mal-assombrada

As coisas tinham tudo para dar errado, eu sabia. Não conseguia


parar de tremer. Coloquei o binder, uma calça e a blusa preta larga
que Rafael havia me emprestado. Me olhei no espelho quinze vezes
checando se minha barba rala estava suficientemente visível e se
meu cachos castanhos estavam masculinos o bastante.
Eu estava masculino o bastante?
Os documentos na mochila, todas aquelas cópias e certidões,
eram apenas uma burocracia necessária. Eu era só… eu,
independente das minhas roupas, do meu cabelo, do meu nome. Só
precisava fazer com que o mundo respeitasse isso.
Mas não dava para me sentir completamente seguro, pisando
em espaços onde sempre me agrediram.
— Maycon! — Ouvi a voz de Rafael me chamar, distante. — O
que aconteceu? — Ele parecia preocupado. — Maycon?
— Oi! — gritei em resposta.
— Que foi? — Rafael apareceu pela porta do quarto. Os
cabelos extremamente lisos e pretos caíam pelo rosto, muito
branco, dele.
— Você estava me chamando?
— Eu? — Levou o dedo indicador esquerdo ao peito, e estreitou
ainda mais os olhos. — Não.
— Para de zoeira, cara, eu te ouvi agorinha me chamando.
— Juro pela Selena Gomez que não chamei. — Juntou as
mãos, segurando o celular entre elas. — Eu tava no whats com meu
contatinho.
— Para, velho, na moral!
Uma sensação gelada passou por mim.
— Cê tá bem, Mike? — Ele se aproximou, colocou o aparelho
no bolso, e pegou minha mão. O toque suave e quente fez meu
coração acelerar. Tentei respirar, porque algo pareceu se prender no
meu pulmão, e, lentamente, consegui controlar o desespero do meu
corpo. — Tá pálido.
— Não é nada. Acho só que tô nervoso com todo esse
processo.
— Vai dar tudo certo! — Rafael me abraçou.
— Obrigado. — Puxei o ar o mais forte que consegui para sentir
o perfume dele. A maneira como ele me envolvia nos braços,
mesmo sendo tão magrinho, pequeno e delicado, era quase
inexplicável. Como Rafael conseguia ser tão… confortável?
— Bom, tenho que ir me arrumar. — Ele me soltou.
— Não tá muito cedo?
— Tá nada, vamos fazer um esquenta na casa do Paulo à
tarde.
— Ah… — Quem é Paulo, meu Deus? — Bom, já vou. —
Peguei minha mochila em cima da cama, com todos os muitos
documentos que eu precisava, e saí, pronto para o que aquele dia
prometia ser. Tentei manter a calma e não pensar em todas as
inseguranças e medos que eu carregava. Não consegui. Só
esperava que desse tudo certo.

— E aí, como foi lá? — Rafael estava no escuro, sentado no


braço do sofá, parecendo uma alma penada.
— Ah, você tá aí ainda? — Busquei o interruptor perto da porta.
A luz bateu nas paredes quase brancas da sala.
— Não quis ir, fiquei preocupado. Acho que eu deveria ter ido
com você no cartório.
— Que nada, bobagem, deu tudo certo. — Não olhei nos olhos
dele. Não queria que ele visse o quanto eu estava quebrado
naquele momento.
— Você tá bem?
— Tô. Tô, sim — menti tão mal que nem uma criança de três
anos acreditaria.
— Tô vendo — respondeu, irônico. — Quer falar sobre?
— Não. Vai pra sua balada. Tô de boa, na moral.
Eu, obviamente, não “tava de boa”.
Rafael tentou dizer alguma coisa, mas desistiu.
— Tudo bem, então já vou. — Ele se levantou. — Fica bem, tá?
— Deu dois tapinhas no meu ombro.
Claro, vou ficar ótimo. Obrigado pelas palavras mágicas.
Evitei revirar os olhos.
— Valeu! — Fui para o quarto e fechei a porta.
Queria apenas me deitar e esquecer, então, me joguei na cama
de qualquer jeito, esperando que o tempo passasse.
O cheiro de madeira velha, de tudo velho, que a casa tinha me
incomodava desde o dia em que eu e Rafael estivemos aqui para
conferir se o anúncio da imobiliária não estava mentindo para nós. E
não estava. Era mesmo uma casa velha, com três quartos, e o lugar
mais barato que encontramos para montar nossa república.
Só a parte de arrumar outros moradores para a casa é que
estava dando errado. Eu não tinha cabeça para ir atrás disso e
Rafael acabava beijando todos os candidatos às vagas.
Imagina só uma casa onde todo mundo fosse apaixonado por
ele? Não, para isso já bastava eu, o trouxa, que ficava pensando
nele até pegar no sono e acordava ouvindo as vozes dele e de
qualquer contatinho chegando bêbados das baladas.
Era cansativo gostar do Rafael.
Quase insuportável.
Eu fingia que estava tudo bem, às vezes até fazia café para ele
e o garoto da noite.
Traduzindo: trouxa.
Sempre soube que nós dois não passaríamos de amigos. Mas
era difícil ter que lidar todos os dias com a realidade e, mesmo
assim, simplesmente não conseguir deixar de gostar dele.
— Maycon, eu gosto de você!
Ouvi Rafael falar baixinho, como se estivesse dizendo no meu
ouvido, e me levantei assustado, com o coração batendo forte no
peito.
— Quê? — Minha própria voz respondeu, mas eu não tinha
falado nada. Será que estava sonhando? Tentei puxar o ar devagar,
porque estava me sentindo sufocar.
— Rafa? — chamei. — Cê já chegou?
Andei devagar até o corredor. Ninguém.
Fui olhando de cômodo em cômodo, inclusive no quarto de
Rafael. Ninguém.
Era sonho. Só podia ser isso.
Não havia ninguém na sala também. Sentei no sofá e apertei
forte o peito com as mãos, como se eu pudesse fazer meu coração
parar de pular.
— Será que essa casa é mal-assombrada? — falei para mim
mesmo, estranhando minha voz ecoando pelos cômodos. — Ai,
não, tô é doido!
Respirei fundo uma, duas, três vezes.
— Fala alguma coisa, por favor! — A voz de Rafael me fez dar
um pulo. Olhei desesperado para os lados, mas não havia ninguém
ali. Eu estava sonhando e acordaria a qualquer momento, bastava
deixar o resto do sonho rolar. Era isso, essa era a explicação.
Mas o resto do sonho não veio. Continuei sentado no sofá, com
os olhos tão arregalados que minha cabeça começou a doer.
— Isso não é normal — concluí depois de um tempo olhando
para o nada.
Devo ter realmente pegado no sono, porque me sobressaltei
quando Rafael entrou pela porta, conversando alto, com um boy que
eu nunca tinha visto antes.
— O que cê tá fazendo aí, Mike?
— Ah… — Ouvi vozes e acho que estou perdendo a cabeça. —
Nada, só me sentei aqui pra pensar e acabei dormindo.
— Tudo bem… — A situação não poderia ficar mais
constrangedora. — Eu vou… — Ele apontou para o corredor.
Fiz um joinha e sorri para o rapaz que vinha com Rafael.
Naquela altura do campeonato, eu já deveria ter me
acostumado. Mas não me acostumei. Nem mesmo durante os dois
meses que vieram depois, com as saídas quase diárias dele, da
semana inteira de carnaval e as pessoas aleatórias que ele trouxe
para casa, nem quando comemorei sozinho que meu pedido de
mudança de nome havia sido aceito, ou mesmo nas noites infinitas
que eu passava sozinho, ouvindo vozes.
Aquela casa me assustava, então, eu tentava ficar nela o
mínimo possível. Quando as aulas começaram, eu passava o dia
inteiro na faculdade, mal via Rafael. E, por muito tempo, todas as
horas livres que eu tinha eram dedicadas a mudar meus
documentos, cartões de crédito, conta no banco, matrícula…
Até que tudo parou.
Não dava mais para fugir de casa quando ficar em casa era
tudo o que eu podia fazer.
Ficar em uma casa mal-assombrada, é preciso ressaltar.
Capítulo II
A dimensão do coração partido

Quebra-pedras cresciam entre as frestas do calçamento do


terreiro. Envolvi os galhinhos vermelhos e as minúsculas folhas
verde-escuras com a mão direita e puxei com firmeza.
— Droga!
A planta não se soltou completamente, deixando sua raiz
fincada debaixo do piso de cimento.
— O que cê tá fazendo aí? — Dei um pulo ao ouvir a voz de
Rafael. Ele estava em pé, com as costas curvadas, apertando os
olhos, já pequenos, tentando ver o que eu fazia.
— Tô limpando o terreiro. Nem vi você chegar.
— Cê fez café?
— Fiz. — Esfreguei as mãos, tentando tirar a terra que estava
agarrada nelas, e me levantei.
— Então não fez mais que a sua obrigação! — Ele aprumou as
costas.
— Palhaço! — Eu o empurrei, com a mão ainda suja de terra, e
fui para a cozinha.
Tirei uma caneca suja no meio da bagunça que estava na pia.
Rafael foi até o armário e pegou um copo limpo.
— Eu lavo uma pra você, imbecil. — Joguei água com sabão
nele, que abriu um sorriso, passou a mão direita no queixo sem
barba e devolveu o corpo ao armário.
Revirei os olhos e voltei a lavar minha caneca.
“Me and my head high and my tears dry”
Parei o que estava fazendo e tentei apurar os ouvidos. Dava
para escutar claramente o piano e a linha do baixo.
— Cê ouviu isso?
— Não. — Rafael se aproximou de mim. — O quê?
— Acho que alguém está ouvindo Back to Black. — Senti algo
gelado passar por mim conforme o som parecia se aproximar e se
afastar, como se estivesse sendo levado e trazido pelo vento.
— Deve ser um vizinho.
— É… — Peguei outra caneca na pia e abri a torneira. — Deve
ser.
Eu sabia que não era.
Rafael ficou calado, enquanto eu enchia as canecas com o
café. Ele andava estranho. Precisar ficar em casa, preso comigo e
minhas manias de limpeza, estava deixando o garoto inquieto. E,
talvez, ele também estivesse ouvindo vozes. Sou uma pessoa
cética, então, poucas coisas me abalam, sempre tento buscar
alguma explicação lógica para tudo o que acontece, e quando não
acho só tento ignorar.
Já Rafael…
— O que você acha de a gente procurar outra casa quando
essa quarentena acabar? — Ele pegou uma das canecas da minha
mão.
— Não vamos achar nada por esse preço… — Passei por ele,
que estava parado perto da porta, e fui para a sala. Peguei o
controle e liguei a TV, antes de me sentar no sofá.
— Pensei em um lugar menor, só pra nós dois mesmo. — Ele
se sentou do meu lado. — Uma casa nova. Ou um apartamento, sei
lá.
— Só pra nós dois? — Quase engasguei com meu café.
— É, essa casa é muito grande e… — Ele deixou no ar.
Mal-assombrada, completei na minha mente.
— Por mim tudo bem. — Olhei para a TV à nossa frente, sem
prestar atenção no que estava passando. — Quer ver alguma
coisa?
— Ai, sei lá, tô meio desanimado.
— Você nunca fica desanimado, o que tá acontecendo?
— Essa quarentena, esse vírus. Tô preocupado com os meus
pais.
Os pais que não estão nem aí para a sua existência?
Ai, credo, que pensamento horrível!
Reparei que tinha terra na camisa de Rafael e, por impulso,
passei a mão pelo peito dele, na tentativa de limpar sua blusa.
Ele me olhou com um sorriso tão sacana que me afastei
depressa, como se tivesse levado um choque.
— Ai, Rafael, você é um palhaço mesmo!
Terminei meu café e voltei para a cozinha, nervoso. Um vento
frio entrou pela porta, me fazendo desistir da ideia de lavar as
vasilhas que estavam acumuladas sobre a pia. Era dia do Rafael
cuidar daquela parte da casa, enquanto eu limparia os banheiros.
Fiz minha parte, já ele…
Eu não podia contar com Rafael para nada mesmo.
— Rafa, as vasilhas são suas hoje, né?! — Eu me virei. Ele não
estava mais sentado no sofá. Abracei meus próprios braços quando
algo gelado tocou minha pele. — Rafa?
O som de uma música atingiu meus ouvidos, aumentando de
volume gradualmente.
“I love you like a love song”, da Selena Gomez.
Reconheci a música favorita de Rafael. Ele quase não a ouvia
mais, mas quando éramos mais novos, ele costumava colocá-la na
caixa de som e dançava todo feliz pelo quarto, com o edredom
enrolado sobre os ombros, como se fosse o xale de uma madame.
Eu adorava me deitar na cama e ficar olhando para ele,
dançando como se não existissem problemas fora daquele quarto.
Não sei o que houve entre nós. Continuei sendo a mesma
pessoa calada de sempre e Rafael continuou sendo a estrela de
todos os lugares onde colocava os pés. Mas, mesmo morando
juntos, a faculdade nos afastou. Passávamos mais tempo juntos
antes, na época de escola. Eu não sentiria falta daquela época se
não fosse por isso.
— Rafa? — chamei de novo, tentando espiar pela porta
entreaberta. Rafael estava deitado na cama, virado de costas para
mim, com os braços debaixo da cabeça. Ele parecia estar chorando.
— Tá tudo bem? — Entrei devagar, ainda sem resposta. — Rafa?
Rafael se virou na cama, mas não olhou para mim. O rosto
vermelho, o inchaço que deixava os olhos dele ainda menores.
Aqueles olhos pequenos nunca choravam.
— O que aconteceu? — Eu me sentei na cama e tentei
alcançar os cabelos negros dele com as mãos. Quase dei um pulo
quando não consegui tocá-lo e acho que gritei.
— Maycon? — Ouvi a voz de Rafael gritar de algum lugar longe
demais, mas o Rafael que estava deitado na cama permanecia
imóvel, chorando em silêncio, ouvindo Selena Gomez. — Mike?
Cadê você?
Meu Deus do Céu, Jesus, Ave Maria!
Nunca fui muito religioso, mas estava a ponto de me tornar.
Jesus, que isso?
— Rafael?
Saí do quarto correndo e dei de cara com Rafael parado no
meio da sala, me olhando assustado.
— O que aconteceu, Mike?
— Fiquei doido! — Coloquei as mãos no meu rosto. — Não tem
outra explicação. Essa quarentena… essa casa!
Eu me joguei no sofá. Não estava conseguindo respirar direito.
Rafael se sentou no chão, de frente para mim, e colocou as
mãos sobre os meus joelhos.
— Você ouviu alguma coisa… estranha? — perguntou.
— Você ouviu alguma coisa estranha? — repeti a pergunta
dele, sem responder.
— Talvez… — Ele se afastou um pouco.
— Eita porra. — Sorri. — Não tô doido. Tem alguma coisa muito
errada nessa casa. Você está ouvindo?
— Selena Gomez?
Eu me levantei e o puxei pela mão.
— Respira fundo e mantenha a calma. — Abri a porta do quarto
devagar. O outro Rafael ainda estava deitado na cama, desolado. O
grito que o meu Rafael soltou do meu lado me deixou atordoado por
alguns instantes.
Ele obviamente não respirou fundo e não manteve a calma.
— É sonho! Só pode ser sonho! — Soltou minha mão e se
afastou de mim.
— Não é sonho não.
— É sim!
— É não.
— Então o que é?
— Não sei, acho que é essa casa.
— Deve ser alguma simulação, alguma pegadinha, alguma… —
Ele voltou até a porta do quarto e espiou lá dentro de novo. — Ai,
sou eu mesmo!
Rafael começou a gritar pela casa, completamente fora de si.
— Rafa, respira! — Tentei segurá-lo pelos punhos, mas não
consegui.
— Sou eu. É uma duplicata! É…
— Rafael, não está na hora de procurarmos uma explicação!
— O quê? — A voz dele, que já estava super aguda, ficou ainda
mais. — Não posso ficar em uma casa com um clone meu deitado
na minha cama, pelo amor de Deus!
Quase não consegui ouvir as últimas palavras.
— Não é real. Eu tentei tocar o… outro Rafael e não consegui.
Tive que me afastar e esperar que ele gritasse coisas
impossíveis de compreender por alguns minutos.
— A gente tem que chamar a polícia, não… a NASA! Devem
ser ETs metamorfos!
Não sei como consegui manter a calma.
— Como você vai chamar a NASA, Rafael? — Eu passava as
mãos pelos braços incontrolavelmente, tentando fazer aquela
sensação de frio passar.
— A gente grava um vídeo e posta no Instagram.
— Que ideia maravilhosa! — Revirei os olhos.
Ele pegou o celular sobre o braço do sofá e eu continuei no
mesmo lugar, tendo plena convicção que não daria certo.
— Não aparece nada! — Rafael ficou genuinamente chateado
quando tentou filmar a outra versão dele. — Não aparece nada no
celular. Como é possível?
— É porque essa pessoa, esse Rafael do além aí, não está
aqui.
— Como não está aqui?
— Você não sente? — Eu me levantei e me aproximei dele. —
Esse frio esquisito, essa impressão de que tem algo fora do lugar?
— Tipo uma peça desencaixada?
— Isso. Como se a gente estivesse no lugar errado.
E, de novo, Rafael (o meu) gritou, apontando para um lugar
atrás de mim. Senti um sopro frio acariciar os meus braços e minhas
orelhas.
— É você. É você. É você!
Não precisei me virar, o outro eu passou por mim e foi em
direção ao quarto de Rafael. Enquanto isso, meu amigo, o "original"
estava congelado, completamente aterrorizado a minha frente.
Segui o Maycon 2.0. e vi quando ele se sentou ao lado de
Rafael, onde eu mesmo havia sentado pouco tempo antes. Ele
passou as mãos nos cabelos do amigo e disse que ficaria tudo bem.
Sou previsível em qualquer versão.
— Quer me contar o que aconteceu? — perguntou baixinho.
— Foi o babaca do Paulo…
— Que Paulo? — Meu Rafael estava observando a cena por
cima dos meus ombros.
— Fica quieto, me deixa ouvir — repreendi.
— Ele terminou com você? — Maycon tinha aquele tom de
esperança na voz que eu conhecia tão bem. Apaixonadinho em
qualquer versão, o coitado.
— Ah… quem dera! Ele me traiu no meio da boate pra todo
mundo ver.
— Nossa!
— Tá, mas quem é Paulo?
— Xiu! — Dei um tapa para trás, sem a intenção de atingir
Rafael. — Cala a boca e me deixa ouvir.
A voz da Selena Gomez em Rare começou a sumir no ar. Os
pelos do meu braço se arrepiaram quando uma brisa fria contornou
meu corpo e sumiu.
O quarto estava vazio.
— Ok. Isso foi muito estranho. Não fico mais um segundo nessa
casa… — Rafael estava se desesperando de novo. Tive que agarrá-
lo pela camisa.
— Você não vai a lugar algum, tá doido? A gente tem que
entender o que está acontecendo aqui!
— Não quero entender mais nada, eu hein?
— Mas não era você quem queria até ligar pra NASA.
— Não quero mais. — Ele se soltou.
— Você vai me deixar aqui sozinho?
— Não. Você vem embora comigo! — Rafael me puxou pelo
pulso, mas permaneci no mesmo lugar.
— Não sem antes entender o que aconteceu aqui.
— Tá bom. — Ele soltou meu braço e se jogou no sofá. —
Quem é Paulo? E por que eu tava chorando por ele?
— Eu sei lá! Você que tem que responder isso.
— Mas não conheço nenhum Paulo… ah, será que é o menino
da Psicologia? Nossa, ele beija tão mal!
— Sério que essa é a informação mais relevante que a gente
precisa agora?
— Sim! — Ele me olhou de um jeito desafiador. — Quantas
vezes você já me viu chorar por qualquer boy?
— Nenhuma.
— Exatamente. Aquele Rafael… — Ele apontou para a porta do
quarto. — Não era eu.
Capítulo III
A dimensão da fenda

Nada fazia sentido. Nenhuma das nossas teorias explicava o que


estava acontecendo ali. A única certeza que tínhamos era que
aquilo não era um sonho.
Tentei focar nas informações que eu podia trabalhar e com as
referências de filmes de ficção científica do Rafael. E nada. Ficamos
horas andando de um lado para o outro na sala, jogando teorias ao
vento, até que senti de novo aquela sensação gelada.
Movi minha mão pelo ar, como se estivesse dando tchau para
alguém e os pelos do meu braço se arrepiaram conforme meu braço
ia de um lado para o outro. Depois andei pela casa, prestando
atenção a qualquer alteração de temperatura.
— Você sente isso? Vem cá! — chamei Rafael até o lugar onde
eu estava, entre o sofá, a abertura do corredor e a porta do quarto
dele. — Existe uma espécie de corrente de ar gelado, mas não é
bem um vento, é só um frio, não sei explicar. Essa corrente vem lá
da cozinha e vai até o seu quarto. Ela atravessa a sala inteira,
olha… — Fui puxando Rafael pela extensão da sala até a cozinha.
Você sente?
— Um calafrio.
— Quase isso.
— O que você acha que é?
— Se você rir, eu paro de falar.
— Não vou rir, cara.
— Promete?
— Vai, anda logo! — Ele me empurrou.
— Acho que é uma fenda. Uma abertura entre dois mundos ou
duas partes distintas do universo. Ou do tempo. Pode ser do tempo
também… — Eu não tinha pensado naquilo antes.
— E se for uma espécie de portal para outra dimensão?
— Viado, você viu She-Ra sem mim? — Coloquei a mão na
cintura, deduzindo de onde ele tinha tirado a ideia.
— Peraí, você viu She-Ra sem mim? A gente tinha combinado!
— Você nunca estava em casa, nunca tinha tempo. Eu vi só as
quatro primeiras temporadas…
— Traidor!
— Ah é? E você viu quantas?
Ele respondeu algo inaudível.
— Quê?
— Eu disse que vi… quatro temporadas. Todas que tinha pra
ver. Também vi Hollywood e Pose, pronto falei.
— Mas a gente tinha combinado! — Fiquei realmente chateado
com aquilo.
— E você nunca tinha tempo, parece que estava fugindo de
mim!
— Eu? Quem saía todas as noites era você! Quase nunca te
via, a gente quase nunca conversava, e eu ainda tinha que aturar os
boys chatos que você trazia.
— Maycon?
— Sinceramente, você não tá em posição de questionar…
— Maycon?
— Que é?
— Você não tá ouvindo?
Parei e olhei para a direção do corredor.
— É Amy Winehouse? — Rafael estava parado, quase
prendendo a respiração.
Tentei reconhecer a música que tocava pela casa.
— Não. É Duffy.
— Hilary Duff?
— Não, Rafael, Duffy… — corrigi enquanto caminhava até o
quarto do meu amigo. A porta estava aberta e a música tocava
baixinho em uma caixa de som na mesinha ao lado da cama. Duas
pessoas estavam deitadas. Uma totalmente coberta por um
edredom, a outra…
— Rafael, você não era gay? — Olhei para trás e observei o
choque no rosto dele ao se aproximar de onde eu estava.
— Eu sou.
— Então, por que tem uma mulher na sua cama? — Vi uma
expressão estranha, contorcida, no rosto dele.
— Por que essa não é a minha cama. — Ele apontou para um
Maycon que agora se levantava devagar, descobrindo o corpo e o
rosto. — É a sua.
— Eita! — Arregalei os olhos. — Pamela? — Reconheci minha
colega de curso. Levei a mão ao rosto, ligeiramente chocado, e
depois voltei para a sala. Já estava ficando acostumado com a pele
arrepiada ao passar pela tal fenda.
Eu me sentei no chão, depois me deitei sobre o tapete,
tentando compreender todos os elementos.
— Não faz sentido nenhum! — Eu ficava repetindo. Rafael não
falou nada, parecia incomodado. — Tenho zero atração pela
Pamela. Ela é tão chata! — concluí depois de um tempo. — Ela é
bonita, mas, tipo, não.
— Não parece ser zero atração praquele Maycon deitado lá.
— Pra esse Maycon aqui parece. — Bati no meu peito, quando
uma ideia surgiu. — É isso! — Eu me levantei de uma vez, sentindo
a cabeça tontear, mas permaneci sentado no tapete. — Entendi
tudo. São opções. Opções não, possibilidades.
— Não tô te acompanhando.
— Acho que são ecos. Como se cada escolha que a gente
fizesse abrisse uma nova possibilidade. Não. Uma nova dimensão.
Cada eco desses é uma dimensão. É por isso que a gente não se
encontra com nossos outros eus. Por isso que não pode tocar e
nem ser visto por eles. E é por isso que essas realidades são tão
diferentes.
— Ok, suponhamos que…
— É a única explicação que encaixa. Você disse que aquele
Rafael não era você. Esse Maycon ali não sou eu.
— É, faz sentido. Então, é isso? A gente vai ficar aqui tendo
vislumbres aleatórios de como nossa vida poderia ser.
Senti algo estranho.
— Não sei se quero ter vislumbres do que minha vida poderia
ser.
— Nem eu! — Ele suspirou e se sentou ao meu lado.
— Talvez a gente só esteja, sei lá, perdendo a cabeça com
esse isolamento social e acorde amanhã com tudo de volta no lugar.
— Coloquei a cabeça sobre o ombro dele.
— Ou talvez a gente acorde em Nárnia.
— É… talvez.
Capítulo IV
A dimensão da casa amarela

Obviamente não acordamos em Nárnia.


Resolvemos dormir no meu quarto, porque ficamos com medo
de sermos perturbados por nossas versões de mundos paralelos se
dormíssemos no de Rafael.
Não foi a primeira vez que dividimos a cama. Eu já estava
acostumado, o que não impedia meu corpo de sentir coisas como se
aquela situação fosse uma novidade.
Meu amigo dormia serenamente do meu lado, com a barriga
para baixo e o rosto virado para mim. Eu já não aguentava mais ser
tão bobo por Rafael, mas mexi naqueles cabelos escuros mesmo
assim, ainda que temesse acordá-lo.
Olhei para o meu quarto. Estava tudo como costumava ser.
Limpo, organizado. Minhas roupas dobradas sobre duas cadeiras,
duas malas no canto, minha bandeira bi servindo de cortina.
Normal.
Mas eu sentia que algo estava fora do lugar.
Vasculhei o quarto em busca de alguma imperfeição, e nada.
— Rafa? — Mexi no cabelo dele, agora na tentativa de acordá-
lo.
Ele se remexeu na cama, mas nem deu sinais de estar
despertando. Então, me levantei e fui direto para a cozinha,
pensando em fazer um café bem forte para espantar o sono e as
inseguranças, para tentar fazer a perna parar de tremer e afastar
aquela sensação de frio.
De um frio estranho.
Meu coração quase parou quando me dei conta de que as
paredes tinham mudado de cor. A casa inteira estava amarela.
— Rafael?! — gritei alto, muito, muito alto. — Rafael, deu ruim!
— Voltei correndo para o quarto.
— Que foi?
— A gente não tá em casa!
— O quê? — Ele ainda estava deitado, esfregando os olhos
com as mãos. — Como assim?
— Essa não é a nossa dimensão. Estamos no lugar errado.
— Do que você está falando?
— Vem aqui. — Eu o puxei pela mão e o arrastei até a sala. —
Olha isso! — Abri os braços.
— O que rolou aqui? Alguém pintou nossa sala?
— Ninguém pintou nossa sala. É óbvio que essa é outra
dimensão.
— Ai, não foi um sonho? — Esfregou os olhos com força.
— Não. Não foi. — Eu me joguei no sofá.
— E como viemos parar aqui?
— Você acha que eu sei? — Não queria me desesperar, mas
estava difícil. — Tô entendendo mais nada! Não sei se a gente vê
outras dimensões, se a gente está em outras dimensões, se isso é
um jogo, simulação, uma praga! Eu não sei.
Rafael se jogou no sofá do meu lado.
— O que a gente faz?
— Sei lá. Fica sentado aqui esperando o apocalipse.
— Ou a gente pode ir lá fora e ver o que tá rolando!
— Mas e a pandemia?
— A gente mora em uma casa, ir ali na rua dar uma olhada não
vai matar ninguém.
— Há controvérsias…
— É rapidinho, Mike, deixa de ser medroso! — Ele se levantou.
— Tem outras versões de nós mesmos invadindo nossa casa e você
está com medo de um vírus?
— Lógico! — Bati as mãos no sofá, dos dois lados do meu
corpo. — Óbvio! A gente tem que ficar em casa.
— Tudo bem, ok, beleza! — Rafael voltou a se jogar no sofá. —
Vamos ficar aqui dentro dessa sala amarela, super maravilhosa,
aliás, melhor do que aquele cinza sem graça.
— Gelo — corrigi. — E é a cor da imobiliária…
— Nós não vamos discutir de novo sobre a cor das paredes,
vamos? Pelo visto, nessa dimensão, a palavra final foi minha.
— Algo muito grave deve ter acontecido pra eu ter permitido
esse desastre! — Repousei a cabeça sobre o encosto do sofá.
Rafael pareceu intrigado, olhando para os lados.
— Pior que é… — Ele escorou o queixo com a mão e ficou me
olhando, daquele jeito estranho. Algo nele estava muito diferente
desde que começamos a ver nossas outras versões. Ele franzia de
leve o cenho, como se buscasse algo no meu rosto, como se não
tivesse prestado atenção antes e agora tentasse se lembrar o que
eu havia dito.
E talvez eu estivesse estranho também, porque cheguei a
cogitar a possibilidade de que Rafael pudesse corresponder ao que
eu sentia.
Mas que bobagem!
— Bom — pigarreei e me levantei depressa, indo na direção do
banheiro. — Será que a gente consegue escovar os dentes nessa
dimensão?
— Pergunta errada, Mike. A correta é: será que a gente
consegue fazer café nessa dimensão?
Não respondi, porque notei algo errado assim que entrei no
banheiro. Só a toalha roxa de Rafael estava pendurada na parede.
Eu me olhei no espelho, vi meu reflexo ali, do jeito que eu me
lembrava de ser. Hesitei antes de abrir a portinha do armário. Será
que vou conseguir? Olhei para a minha mão, estava tremendo. E,
mesmo tremendo, ela o abriu.
— Não moro aqui — constatei ao ver a bagunça dentro do
armário, três desodorantes, dois provavelmente vazios, frascos,
pinças, nenhuma organização e apenas uma escova de dente.
— Quê? Não ouvi! — Rafael gritou.
— Eu disse que não moro aqui. — Estiquei o pescoço e
coloquei a cabeça para fora do banheiro. Rafael apareceu pela porta
da cozinha.
— Uai, como assim?
— Olha em volta, está tudo bagunçado. Esse armário tá todo
desorganizado, tem roupas atrás da porta, só uma toalha e uma
escova. Eu não moro aqui.
— Isso explica a parede amarela. — Ele voltou para a cozinha,
coçando a nuca. — É que, sei lá, é estranho pensar que montei a
república sozinho, que você não veio junto.
— No caso, não montou. — Ri e o segui. Não deveria ter feito
isso. Todas as vasilhas do mundo estavam sobre a pia. Era
impossível que uma pessoa só conseguisse sujar tanta coisa e
acumular tanto lixo. — Pelo amor de Deus, Rafael, que imundice
toda é essa aqui? — Comecei a organizar as vasilhas na pia,
desesperado.
— Não pergunta pra mim, pergunta pro Rafael dessa dimensão.
— Como se você não fosse fazer absolutamente a mesma
coisa.
— Não sou porco, não, Maycon. — Ele me empurrou de lado,
para que eu saísse de perto da pia. — Sai, me deixa fazer meu café,
antes que eu surte.
— Tudo bem. — Fiz pouco caso, disposto a tentar entender o
que estava acontecendo. — Onde será que está o outro Rafael?
Será que ele tá por aqui? — Andei até o quarto que deveria ser
dele.
Rafael estava lá, dormindo com o edredom tampando a boca e
os pés descobertos. Suspirei feito um bobo apaixonado. Eu tinha
duas versões diferentes do meu amigo, duas chances diferentes de
me declarar e ser rejeitado.
Um som agudo passou por mim, parecia um grito, mas não
humano.
— Ai, meu Deus, são ETs — gritei. O Rafael deitado à minha
frente se remexeu, enquanto o outro deixou o que estava fazendo e
veio correndo até mim, com as mãos molhadas de sabão.
— O que aconteceu?
Eu me virei e vi um gato branco, com uma única mancha preta
no rabo, pular sobre o sofá, atrás de Rafael.
— Que susto, é só um gato! — Apontei para o animal que
lambia a própria pata, nos ignorando completamente.
— Que lindo! Eu tenho um gato?
— Você não tem nada! — Coloquei meu dedo sobre o peito
dele, depois indiquei na direção do quarto. — Aquele rapaz deitado
na cama que deve ter.
— Eu tô aqui, nessa dimensão?
Revirei os olhos.
— Ai, Rafael, difícil conversar com você. Vem, vamos pra
cozinha. Não quero acordar…bem, você.
— Tô achando muito estranho isso. — Ele me seguiu. Pensei
que estava se referindo ao fato de termos sido teletransportados
para um mundo paralelo ao nosso, mas não… — Em que universo a
gente se separaria assim? Não tem lógica! Sempre combinamos de
montarmos uma república. Por que você não viria junto?
— Não sei, Rafa, várias razões… — Talvez eu tenha me
declarado e ele decidido que era melhor ficarmos separados. Talvez
eu mesmo tenha escolhido me afastar. Ainda assim, Rafael era a
única certeza da minha vida. Antes mesmo de saber meu nome, eu
sabia que o queria para sempre comigo.
Coloquei minhas mãos sobre a pia.
Eu precisava falar para Rafael como me sentia. Não dava mais.
Aquelas palavras agarradas na garganta já estavam me sufocando.
Ele sempre soube que eu estaria aqui, isso era uma certeza. Mas eu
queria estar de um jeito diferente.
E Rafael precisava saber disso.
— Mike, perguntei quais razões… — Ele encostou a mão sobre
o meu ombro. — Cê tá bem? Tem alguma coisa que você não está
me contando? Tenho notado que você está esquisito…
— Nós estamos em outra dimensão…
— Não, foi antes disso.
— Eu tô de boa, só… — Passei as mãos pelos meus braços. —
Ficou mais frio?
— Já tava frio desde que a gente acordou.
— Ai, essa sensação. — Cocei a cabeça com força. — Esse
arrepio nos braços. Esse… não sei o que é isso… tá me deixando
fora de mim. Não sei o que está acontecendo ou por que a gente
está aqui. Não é algo que eu consigo controlar e…
— Respira! — Ele segurou meu braço e me puxou de leve para
mais perto. — A gente não pode surtar. — Disse a pessoa que
surtou primeiro.
Toda a firmeza que eu tinha debaixo dos pés sumiu de repente.
As paredes da cozinha começaram a girar, as mãos de Rafael não
me tocavam mais. Era tudo um borrão, distorcido e gelado.
Gradativamente, a luz foi morrendo. Quando dei por mim, não havia
mais nada no que segurar, então eu caí.
Capítulo V
A dimensão das escolhas

O som baixinho de Back to Black tocando ao longe me acordou.


Abri os olhos e a primeira coisa que vi foi uma aranha pequena
formando sua teia no vértice que ligava as paredes ao teto. Eu
estava deitado no sofá, coberto com um edredom azul, mas ainda
sentia frio. Tremia. Meu nariz gelado estava entupido e começava a
escorrer. Chamei por Rafael. Não tive resposta.
Olhei em volta enquanto eu me levantava. Tudo estava
diferente, no entanto, familiar. A TV e o rack foram substituídos por
uma enorme tela preta, grudada à parede, que não estava mais
amarela, mas também não estava naquele tom quase branco que
eu havia escolhido. Era uma cor cinza, que combinava com o painel
de plantas pequenas que descia do teto até a quase um metro do
chão.
Não parecia a minha casa, mas eu sentia como se fosse.
Segui o som, andando em direção ao meu quarto. Passei por
um corredor cheio de quadros e fotos emolduradas em madeira.
Quase caí para trás quando me reconheci em uma delas, e depois
em outra. Entretanto, antes que pudesse checar um por um dos
retratos, ouvi uma voz que eu não conhecia.
— Pai, o senhor tem que descansar um pouquinho. — O timbre
era calmo, preocupado. Senti uma brisa quente passar por mim.
Caminhei com mais cuidado até o quarto, que em outra dimensão
era meu, e a Amy Winehouse cantou ainda mais alto nos meus
ouvidos.
Espiei as três pessoas dentro do cômodo. Um homem de pele
clara, que deveria ter a idade do meu pai, estava de costas para
mim, parado, com as mãos sobre os ombros de um senhor de
cabelos brancos. Eu o reconheci sem precisar olhar duas vezes.
Rafael.
Tive medo de encarar a terceira pessoa presente ali, deitada,
em silêncio.
— Já disse que não, menino, vou ficar aqui com ele. — Por
mais que estivesse mais rouca, a voz ainda era a mesma.
— Mas, pai…
— Eu vou ficar! — Ele se soltou do filho e se aproximou da
cama, onde o outro senhor estava, e pegou as mãos enrugadas do
homem. — Estou aqui, Mike. — Engoli em seco e dei dois passos
para trás, sem conseguir respirar. Minha visão começou a escurecer
de novo. Então, me afastei dali, quase correndo.
— Maycon! — Rafael me segurou pelos braços e me fez parar.
Perdi a fala quando olhei para ele. Os cabelos ainda estavam muito
pretos, embora os olhos fossem os mesmos que eu havia visto
segundos antes. — O que aconteceu? — Ele estava preocupado,
tentando pescar alguma resposta no meu olhar. Não conseguiu
nada. — Maycon?
Olhei para trás, para o corredor. Os quadros e retratos não
estavam mais lá. A sala era como eu me lembrava, com a Smart TV
que nós dois mal havíamos começado a pagar e um rack turquesa.
— As paredes. — Foi a única coisa que consegui dizer. Nada
fazia sentido.
— Pois é… cinzas de novo.
— Estamos em casa? Digo, na nossa época?
— Época? Como assim época?
— Não sei. Tô meio grogue. — Eu deveria contar a ele sobre o
que eu tinha acabado de ver? — O que aconteceu?
— Você apagou! Literalmente caiu durinho no chão, que nem
uma pedra. — Ele me soltou. — Aí eu te trouxe, te deitei no sofá,
depois saí para fazer um café, porque não vou conseguir sobreviver
a esse dia sem dois litros e meio de cafeína. Quando voltei, a sala
estava assim e você tinha sumido.
— Isso tá ficando cada vez mais sem lógica. — Eu me sentei no
sofá. — Ai, meu sofazinho. Será que você é o meu mesmo? —
Passei as mãos no rosto, na esperança de me sentir mais real.
— Quer café?
— Uai, e temos café?
— Bom, espero que o aquele que fiz não tenha ficado lá pro
Rafael da dimensão amarela. — Ele foi até a cozinha.
Sorri e quase abri a boca para dizer que talvez estivéssemos
em casa quando um gato branco pulou no meu colo.
— Ah, inferno! — Olhei para a porta e vi Rafael soltar um
suspiro e deixar os ombros caírem. — Não estamos em casa.
— E nem temos café. — Ele pareceu envelhecer naqueles
segundos. — Vou preparar outro — disse, derrotado, antes de
completar seu caminho até a cozinha.

Sentamos no tapete, com as costas escoradas no sofá, e


bebemos nossos cafés nas canecas de outras versões de nós. O
gato se deitou no meu colo e nada o tirou dali.
— E se a gente desistir de tentar descobrir o que está rolando e
só, não sei, tentar viver? — sugeri, após beber minha terceira
caneca.
— Não seria uma má ideia. Cansei de pensar em teorias.
— Então é isso? Ficaremos aqui sentados esperando nossos
eus aparecerem e nos encontrarem aqui?
— Se eles nos encontrarem… — Ele deitou a cabeça sobre o
meu ombro e passei meu braço por trás de suas costas. O gato
ronronou um pouco, antes de soltar um miado baixinho e se afastar
de nós. Como se estivesse se despedindo, o bichinho se virou e nos
encarou, depois saiu pela porta da cozinha.
Ficamos só nós dois e, por muitos minutos, ensaiei me declarar,
mas nada saiu.
— Rafa… — Quando finalmente comecei, Selena Gomez
invadiu o ar. Rafael se afastou, levantando como um raio e correndo
até o quarto dele.
— Tem um eu aqui — ele cochichou pra mim. — Acho que não
dá pra ver a gente. Vem cá.
Eu não queria ir, mas fui mesmo assim.
Rafael estava se arrumando para sair, como fazia sempre,
antes da quarentena. Ele não seria irresponsável a ponto de ir para
a balada durante o isolamento social, então, eu só podia concluir
que minhas suspeitas estavam certas. As dimensões não eram tão
paralelas assim, nós também nos movíamos através do tempo. Mais
cedo, eu tinha visto o futuro. Será que…
— Engraçado, acho que isso já aconteceu. Talvez seja um
dejavu — Rafael revelou.
Agora estávamos no passado.
— Nada faz sentido! — Soltei, cansado. — Desisto de entender
isso.
Nos sentamos no chão do quarto e ficamos vendo o outro
Rafael se arrumar, só para que pudéssemos confirmar que aquela
cena havia mesmo acontecido antes.
Havia.
Vimos quando ele terminou de se arrumar e desmarcou o
esquenta da festa em que iria. Ele se sentou no braço sofá e
esperou, em silêncio, com o olhar distante. A luz da sala foi sumindo
aos poucos, até que a porta da casa se abriu.
— E aí, como foi lá? — perguntou, assim que Maycon entrou.
— Ah, você tá aí ainda? — O outro eu acendeu a luz. Ele
estava desconfortável. Conhecia muito bem aquele olhar perdido, eu
sabia o que tinha acontecido aquele dia.
— Não quis ir, fiquei preocupado. Acho que eu devia ter ido
com você no cartório.
— Que nada, bobagem, deu tudo certo. — Mentira. Dava para
ver na minha cara. Sempre fui um péssimo mentiroso.
— Você tá bem?
— Tô. Tô, sim. — Uhum, Cláudia, senta lá! Por que,
simplesmente, não desabei e chorei no colo do meu melhor amigo?
Por que eu complicava tanto as coisas?
— Tô vendo — respondeu com ironia. — Quer falar sobre?
— Não. Vai pra sua balada. Tô de boa, na moral.
Rafael tentou dizer alguma coisa e quase desistiu. No entanto…
— Não, Mike, você é meu amigo e claramente não tá bem. Só
saio daqui depois que você estiver melhor. Não precisa me contar
como foi, nem nada. — Rafael cruzou os braços. — Mas vou ficar
aqui.
Eu e o outro Maycon sorrimos. O Rafael que estava do meu
lado observava a cena atônito.
— Eu devia ter falado isso — confessou.
— Mas não falou. — As palavras saíram sem que eu pudesse
impedir. Estava cansado de prendê-las dentro de mim.
— Desculpa, Mike, eu…
— Não precisa se desculpar. Vamos só ver o que sua outra
versão vai fazer.
Ele pediu uma pizza de calabresa e aguardou até que Maycon
quisesse falar sobre o que tinha acontecido mais cedo naquele dia.
E continuou aguardando, porque Maycon nunca disse, só chorou
um pouquinho, comeu pizza e depois se deitou no colo de Rafael
até dormir.
Quase dormi também.
— E continuo sem saber o que aconteceu — reclamou,
apertando ainda mais os joelhos com os braços. Estávamos
sentados no chão da sala, observando os outros Maycon e Rafael
dormirem no sofá.
— Não aconteceu nada, esse que é o problema. — Estralei as
costas. — Nada de novidade, nada fora do esperado. Só fui até o
cartório levar meus documentos e fazer minha solicitação de
mudança de nome, e as pessoas são despreparadas para lidar com
esse tipo de situação. Fui chamado no feminino o tempo inteiro,
passei raiva, me senti humilhado, fiquei com medo de não parecer
masculino o suficiente, válido o suficiente. Fiquei com medo de,
simplesmente, recusarem. É difícil explicar, Rafa, você não vai
entender. Só cheguei em casa sentindo muitas coisas, não queria
falar nada, estava cansado, triste pra caralho por tudo o que tive que
passar, mas aliviado, como se todo aquele peso do dia tivesse
terminado de me esmagar e saído das minhas costas. Eu só
queria… — Apontei para os dois que dormiam apertados no sofá. —
Isso.
— Nossa, sou um péssimo amigo! — Ele se deitou no chão.
— Não é. — Eu me deitei ao lado dele. — Só fez uma escolha.
— Errada.
— A gente faz escolhas erradas todos os dias. Ainda estamos
aqui, não estamos? — Peguei a mão dele. — Juntos!
— Estamos. — Ele se virou um pouco e me encarou, sorrindo.
— Isso que importa.
Capítulo VI
A dimensão das estrelas

Acho que peguei no sono e acordei no Alaska. Meus braços


estavam gelados, mal conseguia sentir o nariz e as orelhas. Rafael
estava dormindo do meu lado, no chão da sala. Olhei para cima e
um vento absurdamente frio soprou no meu rosto.
A casa estava sem teto. Eu podia ver o céu escuro e estrelado.
Tudo ao meu redor era uma ruína, um nada, escombros de uma
construção completamente destruída. Os quebra-pedras que eu
havia demorado para tirar do quintal agora invadiam todos os cantos
do que restava da sala.
— Rafael, acorda em nome de Deus. — Balancei meu amigo,
de um lado para o outro, com medo de que ele tivesse morrido de
frio ou pior.
— Ai — resmungou e me senti tão feliz que quase o beijei. —
Que frio da porra! — Ele abraçou os próprios braços. — O que está
acontecendo?
— Não sei. Para de sempre me perguntar o que tá acontecendo
como seu eu soubesse!
— A gente tá em casa?
— Em algum ponto desastroso do tempo ou das nossas
escolhas — respondi.
— Será que é por isso que sempre está frio quando algo
estranho acontece?
Finalmente uma pergunta inteligente (que eu também não sabia
responder).
— Nós precisamos sair para tentar achar algo pra nos aquecer.
— Comecei a me levantar, mas Rafael segurou o meu braço.
— Não. A gente tem que ficar aqui. Juntos.
— Nós vamos congelar.
— E se a gente sair e ficar preso para sempre nesse tempo ou
dimensão ou fase do jogo? Não podemos correr o risco.
— Então a gente congela, que solução boa! — bufei.
— Vem! — Ele me puxou e me envolveu com os braços. — Eu
abraço você, você me abraça, e pronto.
— A gente morre abraçado. Que poético! — ironizei, mas
aceitei a sugestão. Rafael talvez tivesse razão. E se a gente saísse
da casa e ficasse preso no lugar errado? — Pelo menos o céu aqui
é bonito. — Eu batia os dentes enquanto falava.
— E nós estamos juntos.
— Com frio!
Tentei me apertar ainda mais nele, sentindo um cheiro doce
misturado com um odor de poeira, madeira velha e cimento. E
querendo entender como era possível que eu me sentisse tão
confortável estando no meio de uma casa em ruínas, no frio, à noite.
É que eu estava com Rafael. E ele tinha razão, nós estávamos
juntos.
— Maycon, eu gosto de você! — Rafael falou baixinho no meu
ouvido. Eu me virei para olhar para ele. — Sou apaixonado por você
desde quando a gente brincava que eu era a She-Ra e você o He-
Man. Lembra disso?
Sorri, mas não consegui responder.
— Eu não entendia o que era — continuou. — Acho que
sempre amei você. Desculpa falar isso só agora quando a gente
está congelando. É que vi todos esses pedaços estranhos da minha
vida, e todas essas possibilidades, e entendi que nada disso faz
sentido se você não está por perto. — Ele parou, olhou para o céu,
e depois voltou a olhar para mim. — Fala alguma coisa, por favor.
— Não acredito que você esperou a casa desabar. Ai, Rafael,
você é tão lento pra algumas coisas. — Movi meus braços devagar,
sentindo todos os meus ossos doerem, e coloquei minhas mãos
geladas sobre o rosto dele. — Eu também amo você.
Capítulo VII
A dimensão da sala com teto

Não morremos congelados, mas também não saímos ilesos.


Quando acordei, não fazia mais frio. Eu ainda estava deitado no
chão da sala. A minha sala, com minha TV, meu rack, meu sofá
velho e minhas paredes quase brancas, que talvez não ficassem tão
ruins assim se fossem amarelas.
Eu estava tão feliz que só não levantei em um pulo porque
ainda Rafael ainda me envolvia com seus braços.
— Rafa, acorda! Estamos em casa — afirmei, com uma certeza
eufórica. Ele resmungou alguma coisa e se virou, me soltando. Senti
um vazio desconfortável tomar conta de mim. Não queria que Rafael
me soltasse nunca mais.
E, de repente, bateu a dúvida.
Será que aquilo tudo havia acontecido mesmo? Era tão surreal!
As visões, nossos eus, o futuro, o passado. Tudo misturado dentro
daquela casa velha. Eu ainda podia sentir aquela brisa fria arrepiar
meus braços. Será que era só uma impressão?
E se tudo tivesse sido um sonho?
— Rafael? — Eu o cutuquei. — Levanta. Estamos em casa.
— Quê? — Ele me olhou, confuso.
Pronto, foi tudo um sonho. Como eu era trouxa! É claro que
nada daquilo poderia ser real. Rafael, apaixonado por mim? Em que
mundo?
— Bom dia! — Sorriu. — Não morremos! Eu falei que ia ficar
tudo bem, não falei?
— Não. Não falou. — Era real mesmo? Um sorriso nasceu no
meu rosto e não quis mais ir embora.
— O importante é que ficou tudo bem! — Ele se levantou
devagar e, erguendo os braços, disse: — Temos um teto, branco e
sem graça, mas temos! — Rafael me olhou e abaixou os braços, os
esticando em minha direção e me puxando para mais perto.
— Vamos conversar sobre ontem a noite? Se é que foi mesmo
ontem a noite!
— Precisamos? — Ele puxou de leve um dos meus cachinhos,
tentando o arrumar junto com o resto do cabelo. E eu puxei Rafael
para mais perto, tentando arrumar a bagunça que existia dentro de
mim naquele momento.
— A gente pode deixar pra depois.
Encostei minha boca na dele, devagar, como se pudesse perder
algum detalhe, algum segundo, algo muito importante sobre a
maneira que ele tinha de mexer devagar o lábio inferior. Delicado.
Até o beijo de Rafael era confortável, como se aquele vento frio e
incômodo nunca mais pudesse arrepiar meus braços.
Tudo estava no lugar.
Estrela e a Flor
Edição e revisão: Clara Alves
Para Ana Rosa
Não se apaixone por uma flor…
Esse foi o primeiro conselho amoroso que minha avó me deu.
Eu nem sabia direito o que significava “me apaixonar”, mas fui
marcada por um alerta que me perseguiu até agora. Sempre pensei
que ela estava sendo literal. Mas aqui e agora, olhando através da
fogueira de chamas roxas, sei que não. Aqui e agora, vendo Flor
com sua pele negra e seus olhos castanhos, com essa risada alta e
esses gestos expressivos, entendo que minha avó não falava de um
girassol qualquer do campo ali de baixo.
A pergunta que me atormenta é: como ela poderia saber?
Capítulo I
Os girassóis à noite

Está tudo escuro aqui fora. Às minhas costas, há apenas a luz


do candeeiro pendurado em uma das vigas da varanda. Ajeito o
casaco de lã, cruzando minhas mãos na barriga, quando um vento
mais frio que o normal tenta abraçar meu corpo. Sigo em frente.
Há uma escada que leva ao campo de girassóis lá embaixo.
Mesmo na escuridão, sei que sou capaz de encontrá-la. Queria me
apressar para me perder no breu antes que alguém note minha
saída. Mas, se correr, posso tropeçar e cair lá de uma altura de três
metros. E não quero sumir para sempre, só por alguns minutos. Só
para tentar me reconectar com minha paz interior, que anda tão
abalada como os últimos acontecimentos.
Esta noite, em especial, tudo parece grande demais para
suportar.
Ou talvez seja esse frio maldito que deixa as coisas muito
piores.
Puxo de novo o casaco, apertando forte minhas mãos sobre o
peito. Com os pés, tateio cuidadosamente o chão à minha frente até
encontrar o vão da escada. Mas antes que eu consiga pisar no
primeiro degrau, meu nome corta a noite como uma navalha.
— Estrela!
— Pelos quinze demônios — resmungo, devagar.
Tento manter o equilíbrio. O medo de descer rolando morro
abaixo me apavora desde criança. Sempre gostei de admirar o
campo de girassóis daqui de cima. Ver como as flores passeiam, se
movem, seguindo o sol, em busca de calor. Para alguém que sentiu
frio desde o dia em que nasceu, buscar o calor parece essencial.
Faz frio aqui em Alveiros, mesmo quando o sol está alto no céu.
Sempre fez. Desde que a estrela caiu.
Aquela maldita estrela.
Esfrego as mãos e me encolho. O frio aperta mais. Vejo minha
respiração se transformar em fumaça e tento esquentar meu nariz.
Sem sucesso.
— Estrela, minha filha. Os convidados já estão chegando!
Olho na direção da estrada. Pequenas luzes se movem ao
longe. Não vai dar para fugir. Não hoje. Solto o ar com força, me
sentindo derrotada.
Sinceramente não sei em que estava pensando quando saí, no
meio da noite, na esperança de chegar até o campo de girassóis.
No escuro. Sozinha. Eu deveria estar buscando soluções para
acender a fogueira da festa, ou outra maneira quase mágica de
aquecer as pessoas. Mas a especialidade da minha família sempre
foi o frio.
Nem sempre, na verdade.
A lenda diz que essas terras costumavam ser quentes e
festivas, pacíficas. O centro de um emaranhado de vilas
independentes. Até que um brilho forte surgiu no céu.
Quando caiu, trezentos anos atrás, a estrela era só um
fragmento gelado, em formato de triângulo. Cabia na palma da mão.
De tantos lugares para despencar, ela escolheu Alveiros. E de
tantos lugares em Alveiros, escolheu as terras da minha família.
Caiu, trazendo consigo um frio que nunca mais foi embora. E magia.
A estrela em si não foi o problema. As pessoas é que foram.
Assim que começaram a se espalhar os boatos de que aquela
pedrinha triangular era mágica e dava poderes a quem a possuísse,
minha família não teve mais paz. Minha avó conta que nosso
terreno foi atacado e invadido por praticamente todas as vilas
vizinhas. Até na época em que ela era criança, existiam vestígios
das disputas nas paredes da casa.
Minha família foi saqueada tantas vezes que nenhum registro é
capaz de precisar. Nossos vizinhos vinham, com suas tropas e
soldados, sempre pelo campo, que hoje é cheio de girassóis, mas
antes era uma vasta área onde não crescia vegetação. A lenda diz
que, depois da queda da estrela, nada mais nascia ali.
De guerra em guerra, de rendição em rendição, perdemos
quase toda a estrela.
Quando só restava um pedaço, do tamanho de uma unha, os
invasores vieram com suas chamas avermelhadas, magia vinda dos
outros pedaços roubados. Insatisfeitos, queriam mais poder. Mas,
naquela noite, a mais fria dos últimos mil anos, o vento era tão forte
que apagava todas as tentativas de fazer fogo. O chão do campo
ficou branco, com a nevasca que caía. A lenda diz que o vento
assoprava no ouvido dos soldados, os assombrando, os mandando
embora.
E enfim fomos deixados em paz. Mas o último pedaço de
estrela nunca mais foi visto.
— O que você está fazendo aí fora no escuro, menina? —
Minha mãe acena da varanda. Ela parece ainda mais branca com
esse cardigã azul-escuro, sob a luz do candeeiro.
— Estava pensando.
— Vem pra dentro, você vai congelar!
Encurvo os ombros e deixo a luz fria encontrar meu rosto.
— Precisamos de uma solução, mãe.
— Ficar aí no frio não vai resolver o problema, vai? — Ela
estica o braço e encosta a mão no meu ombro. Está gelada. —
Anda, vai ajudar a sua avó enquanto eu acendo as luzes no terreiro.
— Mãe, ninguém vai aguentar ficar aqui nesse frio. Nem pela
comida da vó!
Gentilmente, ela me puxa para dentro.
— Nós vamos dar um jeito. Sempre demos.
— Sem o meu pai…
— Estrela! — A cara fechada dela não abre espaço para
discussões. — Vai ajudar sua avó.
Nem tenho como rebater. Sou passada para dentro de casa
com um empurrão leve. Sei que minha mãe está preocupada, muito
mais que eu. Sei que ela não faz ideia de como vai acender a
fogueira sem meu pai aqui.
Fogo normal não adianta. Nunca adiantou. Desde o dia em que
o frio expulsou os invasores, o fogo vermelho não acende mais em
noites geladas como esta. A fogueira, e toda a festa, existe
justamente por isso, para comemorar o fim da guerra. Virou a nossa
tradição, sempre na noite mais fria do ano, para celebrar o fim das
disputas. Mas sem a magia dos fazedores de fogo não há festa.
Veja só que ironia.
Meu pai era um deles. O fogo que ele acendia com as mãos era
azulado. Nunca vi nada mais bonito. Foi a primeira (e até agora a
única) vez que alguém da família se relacionou com um fazedor de
fogo.
Mas meu pai não está mais aqui. Neste ano, temos que nos
virar sozinhas. Sem fogo azul, sem a magia que roubaram de nós,
sem ele.
— É só uma festa! — digo para mim mesma, enquanto ando
rumo à cozinha.
— Tá conversando sozinha de novo, Estrelinha?
— Estou pensando, vó!
— No fogo? — Ela para de mexer a panela, se vira e me
encara, com um sorriso no rosto cheio de marcas de expressão.
Acho todas elas lindas, mostram como minha avó já sorriu, já se
inquietou, já chorou. — Não precisa se preocupar com isso.
— Como não? — Eu me debruço sobre a mureta que ela usa
como balcão. — O pessoal das vilas já está chegando.
— Deixa chegarem. Vamos estar prontinhas para recebê-los.
— Mas, ô vó, como que a senhora espera fazer uma fogueira
sem fogo?
— Quem disse que não teremos fogo? — Ela brinca com as
chamas alaranjadas do fogão. Mesmo dentro de casa, livre do
vento, demoramos uma eternidade para conseguir colocar fogo nas
lenhas. — Não esquente sua cabeça com isso, Estrelinha. — Volta a
encarar as panelas. — E onde é que você estava indo?
Minha avó às vezes me assusta.
— Eu estava só dando uma volta — minto.
— Estrela, Estrela. — Ela me olha de soslaio. Os olhos escuros
me julgam. — Não se apaixone por uma flor, a não ser que…
— Ai, vó, não sou apaixonada por flor nenhuma — interrompo.
Como ela sabe que eu queria ir até o campo de girassóis? Vou até
ela e dou um beijinho em sua têmpora, marcada por cabelos
grisalhos.
— Acho que a vila inteira resolveu vir esse ano! — Minha mãe
aponta da porta, com o cenho franzido em uma expressão
preocupada.
Um vento gelado vem na minha direção, vindo de trás dela. As
chamas do fogão ficam inquietas e temo que apaguem, mas, assim
que a brisa passa, elas voltam ao normal.
— Não precisa se afobar, Elis, se aquiete.
— É que está frio demais, mãe. Nunca vi uma noite tão gelada.
— Pois eu já vi. — É um resmungo, quase imperceptível. O tom
da minha avó fica mais grave, nostálgico. Sei que ela se refere à
última noite em que a festa teve uma fogueira de chamas roxas,
mas eu queria entender por que essa lembrança a deixa triste. Em
momentos como esse, lamento profundamente que não tenhamos
conseguido manter um pedaço sequer daquela estrela. Talvez, com
ela, eu tivesse nascido com a habilidade de fazer fogo ou a de ler
mentes. Aqui e agora, vendo o olhar da minha avó se perder na
panela de canjicão, sei que escolheria saber do que ela está se
lembrando. Ou de quem.
Capítulo II
A flor

É um terreiro grande, onde eu costumava brincar com meu pai.


Ele corria atrás de mim quando eu disparava do quintal para a
estrada. Nas noites frias, acendíamos os candeeiros, e ele
manipulava seu fogo azul, criando formas de animais. Ainda posso
ouvir minha risada alta misturada com o riso rouco dele.
Agora, são as chamas vermelhas que dançam na estrada.
— Mãe, eles estão chegando! — grito. Ela aparece por trás de
mim com uma panela preta nas mãos.
— Corre lá e ajuda a sua avó a trazer o resto das comidas.
Coloca tudo ali. — Aponta com o queixo para a grande mesa de
madeira rente à parede da casa. — Vamos deixar as comidas na
varanda dessa vez, por causa da garoa. — Arruma a panela com
cuidado.
— Mas não vai esfriar?
— A gente esquenta! — Ela me empurra com a mão. — Vai,
anda logo!
— Ai, tô indo. — Saio resmungando e encontro minha avó no
meio do corredor. Ela não está trazendo nada. — Ué?
— Deixo essa tarefa para os jovens.
— Vó, só tem eu de jovem aqui.
— Exatamente.
Reviro os olhos.
— Não revira os olhos para a sua avó! — minha mãe grita lá da
varanda.
Como ela sabe?
Vou até a cozinha três vezes para buscar as comidas. Coloco
as vasilhas com cuidado sobre a mesa, com medo de entornar tudo
e fazer uma bagunça. Quando termino e olho para trás, o terreiro
está cheio de gente. Pessoas de todas as vilas da região. Vejo o
cabelo avermelhado dos Monteiros, e a pele negra escura do povo
de Cristais. Os mesmos de todos os anos.
Entre eles, imponentes no meio do terreiro, as toras grossas de
madeira aguardam ansiosas que alguém as incendeie. Pelo andar
da carruagem, elas vão ficar assim…
De repente, meu olhar é completamente roubado pela imagem
de uma garota negra, de cabelos roxos, volumosos e brilhantes.
Como uma flor. Uma flor que está vindo na minha direção. Ela está
sorrindo para mim. Mas eu nem conheço essa moça.
— Dona Ana! — Ela transforma o sorriso aberto em algo mais
cordial. Minha avó está parada feito um dois de paus atrás de mim,
congelada, como se estivesse vendo uma assombração.
— Vó, a senhora tá bem? — Cutuco-a na costela.
— Ai, menina! — Me dá um tapa. — Olá, eu conheço você? —
pergunta, toda fofa, para a garota que acabou de chegar.
— Não, senhora. Foi minha avó que me mandou.
— E ela não vem? — A maneira ansiosa como responde me faz
apertar os olhos e a encarar. Nunca vi a voz da minha avó tremer ao
falar sobre nada, nem com ninguém.
— Vem não. Ela tá… é frio demais aqui.
— Ah! — A decepção é tão grande que minha avó até suspira e
encurva os ombros.
— Nossa, o que rolou?
Ela me ignora.
— Mande meus cumprimentos para Lírio.
— Lírio? Ô vó, a senhora tá metida com fl…
Ela levanta a mão, em um gesto que me pede para parar.
— Mandarei sim, senhora! — a garota dos cabelos roxos
responde, também me ignorando completamente. Gente, será que
estou invisível?
— E como você se chama?
Eu quase desisto da conversa das duas e me retiro, mas…
— Flor.
— Como é? — eu e minha avó perguntamos na mesma hora.
— É Flor — fala mais alto, enfatizando a palavra.
Minha avó ri.
— Que nome lindo! — elogia, mas me joga um olhar de alerta.
Ela não precisa nem dizer o que está pensando, eu já sei.
Não se apaixone por uma flor.
Mas ela podia, pelo menos, ter avisado que as flores têm esse
sorriso bonito e esse cheiro de frutas. Esse cabelo, nossa… e essa
pele bonita. Ou será que ela avisou? Havia algo além desse
conselho, algo que eu nunca guardei. O que era mesmo?
— Estrela? Oi! — Minha avó estala o dedo bem em frente ao
meu rosto.
— Oi, oi. — Pisco.
— Leva a Flor até a fogueira.
— Pra quê?
— Garota, você não ouviu o que eu disse?
— Não.
Ela suspira.
— Vai com a Flor e ela te explica no caminho.
Nem concordo, só sou empurrada em direção à menina. Não
sei o que falar para ela. Devo me apresentar? Devo sair correndo?
— Então, Estrela… É Estrela, não é?
— É, sim.
— Sua avó disse pra você me ajudar com a fogueira, mas eu
não vou precisar…
— Duvido! — desdenho.
Ela para e me encara, arqueando a sobrancelha. Volta a andar
sem dizer nada. Eu a sigo. Flor começa a tagarelar sobre alguma
coisa, mas a voz dela se perde no vento frio, não me alcança. Tento
acompanhá-la, lado a lado, para ver se compreendo alguma coisa.
Não consigo.
Ela segue falando e falando.
E eu fico querendo ouvir.
Curiosa para saber mais sobre ela. De onde veio, o que faz da
vida. Por que nossas avós se conhecem…
Chegamos até as toras empilhadas no meio do terreiro. Flor
para.
— … ou seja, não preciso de ajuda. Afaste-se um pouquinho e
só olha.
Dou um passo para trás e fico olhando, conforme ela pediu. Em
um primeiro momento, nada acontece. Mas meu sorrisinho de “eu
avisei” morre assim que as primeiras chamas arroxeadas saem das
mãos dela.
Chamas. Arroxeadas.
As raras e poderosas chamas arroxeadas.
Eu quase caio para trás.
— É fogo roxo — constato o óbvio. Ela ri.
— O que você esperava?
Não respondo. Simplesmente não consigo responder. Fico
olhando para as chamas, maravilhada. Efeito que cai também sobre
as outras pessoas. Todo mundo se reúne em volta da fogueira. Os
murmúrios se transformam em exclamações conforme o fogo
aumenta de intensidade. O chão de terra batida fica arroxeado, as
pessoas ao meu redor ficam arroxeadas, até a casa fica arroxeada
— tudo iluminado por aquela luz.
Um sopro quente bate no meu rosto. Me sinto abraçada por
aquele calor. É tão bom que eu poderia me acostumar com ele, tão
confortável que eu gostaria de viver nessa sensação de abraço para
sempre.
Mas não posso me acostumar com isso.
— A última vez que a gente teve fogo roxo aqui foi há uns
quarenta anos. Minha avó sempre conta desse dia — comento com
ela, assim que termina de incendiar todas as toras. Ainda estou
encantada demais com o fogo para desviar o olhar dele.
— Eu sei — devolve, como uma naturalidade, um ar de
superioridade. Ela parece saber de tudo. Isso normalmente me irrita,
mas nela parece tão certo que fica encantador.
— E como é que você sabe? — Cruzo os braços. Flor para à
minha frente e me encara, estudando meu rosto com cuidado.
— História de família.
— História de família? — repito, obviamente querendo que ela
me explique. Mas Flor só passa por mim e sai andando em direção
à varanda. Volto a segui-la, porque parece que essa é a única coisa
que sou capaz de fazer.
Pego uma tigela com canjicão, ela pega uma de caldo de feijão
e nos sentamos em um banco largo de madeira. Comemos em
silêncio. Eu não tiro os olhos de Flor. Ela não tira os olhos da
fogueira. Entre uma colherada e outra, comenta:
— Acho que esse fogo deve durar umas duas horas nesse
tempo. Seu pai alimentava o fogo azul dele de quanto em quanto
tempo, você se lembra?
Quem é essa garota e como ela sabe essas coisas? Tudo bem
que não era segredo para ninguém o que meu pai fazia, mas eu
nunca a vi, nem ninguém sequer parecido com ela, em nossas
festas anteriores.
— De uma em uma hora mais ou menos — respondo, ainda
desconfiada. E desconfortável. Olho para minhas mãos, depois para
o chão. Sempre quis fazer fogo como meu pai fazia. Um dia, ele me
pegou esfregando uma mão na outra, na tentativa de esquentá-las o
bastante para que incendiassem. Ele me fez parar, me garantiu que
eu era mais especial do que imaginava.
Bobagem! Esfrego os braços com as mãos. Um ar frio parece
me cercar.
— Seu pai era bom mesmo… — Ela me olha de soslaio.
Conheço Flor há poucos minutos e já sei a expressão que o rosto
dela faz quando está estudando minhas reações. Ela franze um
pouco o cenho, aperta os olhos pequenos e dá uma mexida leve no
olho esquerdo. Sei também que ela quer saber se me incomoda
falar sobre o meu pai. Incomoda. Lógico que incomoda, mas gosto
da maneira como ela fala com naturalidade. Não se desculpa, não
faz cara de pena.
— Ele era. Tem que ser muito bom para aguentar o frio que faz
nesse lugar.
— Nossa, nem me fala. E olha que minha avó me avisou. Mas
eu não estava pronta. — E aí ela começa a tagarelar. — É
engraçado que, conforme vamos nos aproximando, vai ficando mais
e mais frio. Só que, quando a gente chega aqui pertinho... aliás, o
que tem ali embaixo? — Flor aponta a colher para um ponto atrás
de seu ombro esquerdo. — É uma plantação?
— É um campo de girassóis.
— Vem um vento gelado de lá.
— Sim. Foi onde a estrela caiu.
— Jura? — Ela olha para trás instintivamente. — Então é
verdade que o frio vem da estrela?
— Olha, eu acho que não. — Mando a real. — Primeiro que
nem temos mais nenhum fragmento da estrela aqui. Todos foram
levados. Até o último. Ninguém sabe pra onde, mas aqui ele não tá!
— E o segundo?
— Segundo o quê?
— Você disse “primeiro que”, qual outro motivo te leva a crer
que o frio não vem da estrela?
— Sua família tem um dos maiores fragmentos da estrela, não
tem? Faz frio na sua vila? Não. — Eu mesma pergunto e eu mesma
respondo.
Ela dá de ombros.
— Então por que faz tanto frio aqui? Não estamos no alto de
um morro, não estamos no extremo sul ou norte.
— Eu não acho que o frio venha da estrela. Acho que ele veio
dela e gostou de ficar por aqui.
— Isso não faz sentido nenhum.
— É lógico que faz!
Flor volta a comer seu caldo de feijão.
— Não esfriou?
Ela não responde. Só coloca a colher dentro da tigela e passa a
vasilha para a mão esquerda. Com a direita, ela faz uma chama
pequena. Reviro os olhos.
— Vocês são muitos amostrados!
— Quer que eu esquente o seu canjicão?
Quase digo que não por pura pirraça. Mas canjicão frio é a pior
comida já feita, então, entrego o meu para ela
É tão natural a forma como Flor controla as chamas, sem
esforço algum. Quase peço para que faça formas de animais com o
fogo, como meu pai fazia. O pensamento me corta em duas.
— Depois que a gente terminar, quer dar uma volta pela festa?
— Tento retribuir a gentileza, assim que ela me devolve a tigela.
— Quero sim!
— Não que tenha muita coisa pra ver…
— Aposto que, com você, vai ser legal! — Ela joga o corpo de
leve na direção do meu, e nossos ombros se encontram. O leve
balançar dos nossos corpos em choque faz com que meu coração
acelere de um jeito meio assustador. Em um impulso, olho para ela.
Quando nossos olhos se cruzam, sinto que perdi tudo.
Não se apaixone por uma flor parece até um convite. Um que
eu aceitaria sem reclamar.
Capítulo III
A noite mais fria

Minha avó está sentada em um toco de madeira, afastada das


outras pessoas que bebem quentão e dançam ao som de um
sanfoneiro. A alegria delas contrasta com o olhar distante de dona
Ana.
Eu me sento ao lado dela, em silêncio.
— Eu disse pra você que ia dar tudo certo, não disse? — Ela
nem me olha quando fala, está encantada com o fogo roxo. Não
posso julgá-la, mas eu não estou olhando para as chamas, estou
olhando para Flor. Os movimentos que faz com as mãos,
alimentando a fogueira, a maneira como se mexe de leve ao som da
música… — Ela é linda, não é?
Pisco algumas vezes.
— Ah, vó… — Não sei o que falar, não sei o que perguntar. —
Ela é.
— Flor… — Sorri ao dizer o nome. — É bonito. Ela se parece
com a avó, no jeitinho.
— E de onde a senhora conhece a avó da Flor?
— Daqui mesmo.
— Daqui de casa?
— É.
— Mas… E por que eu não conheço ela?
— Porque a Lírio já não vem mais há muito tempo.
— Por quê?
— Você faz muitas perguntas, hein?
— A senhora que não tá me respondendo direito!
— Você quer a história? — Ela se vira e me fuzila com os olhos.
Não me intimido.
— Quero. — Inclino o pescoço para o lado e cruzo os braços.
— A mãe da Lírio já foi nossa fazedora de fogo. Ela sempre
trazia a menina nas festas, às vezes até em outras datas. Tínhamos
a mesma idade, ficamos amigas, nos apaixonamos.
Eu me encolho inteira, já prevendo que a história não tenha
acabado bem.
— Meu pai achou aquilo tudo um absurdo. Me apaixonar por
alguém de uma família inimiga… Ele ainda via os fazedores de fogo
como inimigos, por achar que tinham roubado um pedaço da estrela.
— E roubaram, né?
Ela apruma o corpo e me julga com o olhar. Odeio quando me
julgam desse jeito.
— Algo lindo cai do céu, porque seria meu? Não tem como
roubar algo que não tem dono.
— Mas caiu nas nossas terras.
Minha avó revira os olhos.
— E quem disse que essas terras são nossas, Estrela? Essas
divisões são apenas linhas imaginárias que o homem um dia
delimitou, cercou e decidiu que tudo dentro daquilo era dele. A
natureza veio muito antes da gente, não faz sentido dizer que ela
tem dono. Além disso, somos o mesmo povo. Se algo mágico cai do
céu, deveria ser direito de todos ter acesso a essa magia. Mas
nossa família sempre quis mais poder. E ficou sem nada. — Ela
volta a olhar para a fogueira. — Bem feito! — fala baixinho, com um
sorrisinho no rosto.
Não sei o que dizer. Na minha cabeça, com tudo o que a
história conta, só consigo pensar que minha avó está errada.
Aprendi assim, é difícil desaprender. Sempre vi os outros como
vilões e minha família como a vítima. Mas algo dentro de mim me
diz que minha avó está certa. Não podemos exigir a posse de algo
que nunca nos pertenceu.
— Então o que aconteceu depois?
— Meu pai as expulsou daqui, ela e a mãe, dias antes da festa.
Ele disse para nunca mais pisarem nas nossas terras. Há quem diga
que ele até as amaldiçoou. Ficamos sem ninguém para acender a
fogueira, quase ficamos sem festa. Os homens da família pensaram
que conseguiriam resolver o problema sozinhos. Mas o frio, tão forte
como nunca mais senti, caiu sobre nós. Acho que nunca me senti
tão triste como naquele dia. Tão triste e tão gelada.
Minha avó para um instante e estica as pernas. Ouço os ossos
rangerem.
— E aí? — Mexo nos dedos, ansiosa.
— Lírio havia me prometido que nunca ficaríamos sem fogueira
nos dias de festa. Era uma promessa, Estrela. Então ela cumpriu. —
Minha avó olha para a frente, voltando a colocar os pés no chão. —
Até hoje segue cumprindo.
— Ela voltou?
— No ano seguinte, sim. Veio disfarçada entre as pessoas das
outras vilas, acendeu a fogueira tentando não chamar muita
atenção. Lógico que não deu certo. Meu pai fez um escândalo. Foi
horrível. Mas, no fim, as chamas arroxeadas estavam lá, acesas,
esquentando os convidados, mantendo a tradição.
— Seu pai aceitou de boa?
— Ele não tinha muita opção. Mas, nos anos vindouros, fez
questão de contratar acendedores de chamas azuis. Ele achava que
podia suportar conviver em paz com eles, desde que nossas
famílias nunca se envolvessem para além da cordialidade. Passei
anos achando que tinha estragado tudo me apaixonando por Lírio,
que nunca mais veria aquele fogo roxo de novo. Essa está sendo a
primeira vez que vejo essas chamas arroxeadas em muito tempo.
— Tá, mas e vocês duas?
— Ela foi embora, eu conheci seu avô um tempo depois e o
resto você já sabe.
— Mas, nossa! Vocês desistiram?
— Seguimos nossas vidas, é diferente!
— Não é justo…
— Nós duas vivemos vidas muito boas, Estrela. Tivemos
nossas famílias, vivemos nossas histórias.
— É que as coisas poderiam ter sido…
— Mas não foram.
Solto um muxoxo. Nunca pensei que minha avó pudesse ter
sido infeliz na vida e duvido muito que tenha sido. Mas deve ser tão
difícil deixar um amor de lado. Mesmo que viva outro, mesmo que
ame de novo, tem algumas coisas que não dá para esquecer. Ou
talvez dê.
— A senhora esqueceu ela, vó?
— Claro que não. Guardo com muito carinho dentro de mim,
num lugar especial, todas as coisas boas que vivemos. Nunca quis
esquecer nada.
— E se arrependeu de alguma coisa?
— Não.
— Então por que ficou triste por ela não ter vindo? — Jogo a
pergunta na cara dela, cruzando os braços.
— Por que eu tinha a certeza de que ela cumpriria a promessa.
— Mas essa promessa aí já tem tempo. E se ela tivesse
esquecido?
Minha avó se levanta devagar, estalando as juntas. Entendo o
recado que não é nada sutil. O assunto está encerrado. Há alguma
coisa aqui que eu não sei, que ela não quer me contar.
— Olha, Estrelinha. — Ela olha para Flor que está vindo na
nossa direção. — Aproveita que os jovens vivem paixões mais
intensas — sussurrou para mim, com um sorriso sacana no rosto.
— Paixão intensa, vó? Pelos quinze infernos, eu acabei de
conhecer a menina!
— As coisas não começam do meio, Estrela…
— Mas a senhora mesma me disse para não me apaixonar por
uma flor...
— E o que mais eu disse? — Ela vai saindo de fininho, sem
esperar uma resposta, e me deixa aqui com cara de tacho. Aperto
os olhos, tentando me lembrar. A segunda parte do conselho não
fazia sentido nenhum, mas eu não me recordava o que era…
— Por que a dona Ana se levantou? — Flor se aproxima e se
senta no lugar onde minha avó estava.
— Acho que ela foi esquentar o caldo de feijão — minto.
— Se ela quiser, posso fazer isso rapidinho! — Flor começa a
se levantar, mas eu a puxo de leve pelo braço, fazendo com que
permaneça sentada.
— Precisa não.
Um silêncio constrangedor paira no ar entre nós duas. Flor
balança os pés no ritmo da música que o sanfoneiro toca.
— Quer dançar? — ela pergunta, olhando para mim de repente.
— Ah… Não danço, eu…
— Vamos mesmo assim, vai ser legal, eu te guio.
— Tá bom! — Bato as mãos nas coxas e me levanto, então
estendo a mão para ajudá-la a fazer o mesmo. Não estou pronta
para o tanto que meu coração acelera quando Flor me toca. Quase
solto nossas mãos, mas, se fizer isso, vou derrubá-la no chão.
Respiro fundo e a puxo para perto de mim. Eu poderia beijá-la,
correndo o risco de que ela jogue fogo em mim, mas não faço isso.
Antes preciso saber se Flor gosta de meninas.
— Vamos dançar aqui mesmo? — pergunta.
— Você sabe dançar forró?
— Eu sei tudo! — Ela abre um sorriso tão largo, que os olhos se
fecham. Sorrio junto. Flor olha para nossas mãos, ainda
entrelaçadas. — Você é gelada!
Puxo a mão quase que por impulso, mas ela não me deixa
soltar.
— Eu gosto.
Sinto meu rosto esquentar.
Flor continua me puxando de leve para mais perto. E mais
perto. O calor do corpo dela me atinge antes que nossas peles se
unam. E quando nossas peles se unem… nossa!
Tento me mover ao som da sanfona, mas não consigo me
concentrar em nada direito. Minha mente está entorpecida pelo
cheiro de frutas que vem de Flor. Só me deixo levar por ela, pelo
ritmo, pelo movimento dos nossos corpos.
Ela tagarela sobre várias coisas enquanto dançamos e ri. Flor ri
tanto que não sei de onde tira tanto humor. E tanto assunto. Só
acompanho, tentando prestar atenção em tudo. Porque, de repente,
tudo o que vem dela é importante para mim. Quero ouvir sobre sua
vida, sua família, seus problemas. Quero ouvir coisas boas também
e coisas bobas. Quero saber o que ela faz quando acorda e o que
gosta de comer no jantar. Quero conhecer cada detalhe ridículo
sobre o dia em que ela colocou fogo — sem querer — nos
brinquedos de um garoto que a chamou de feia. E, do nada, sinto
tanta raiva por ele ter tido a audácia.
— Só pode que esse menino tem algum problema… —
resmungo.
— Você está bem? — Flor se afasta um pouco para me olhar.
Tudo fica tão frio. Por um momento, penso que é dentro de mim,
mas vejo quando ela passa as mãos nos braços tentando se
aquecer.
— Tô. — Olho em volta. Todo mundo começa a se aproximar
da fogueira. — Tá mais frio, né? — Também esfrego as mãos pelos
braços.
Flor franze a testa e olha para as chamas arroxeadas que estão
cada vez menores.
— Ih, acho que vai apagar! — Ela começa a ir na direção da
fogueira. Vou atrás dela. — Que tempo doido, né? — Sorri e me
olha, como se soubesse algo que eu não sei. — Esse frio é muito
estranho. Você nunca pensou sobre isso?
— Não. É que esse é o meu normal, sabe? Mesmo ele sendo
diferente para você.
— Entendi... — Flor volta a dar atenção para a fogueira. Ela
movimenta a mão direita, brincando com uma chama. — Você sabe
o que aconteceu com o último pedaço da estrela?
— Ninguém sabe.
— Alguém sabe. — Pisca para mim, abrindo espaço entre as
pessoas que tentam se aquecer. — Licença aqui, gente.
Vou atrás dela.
— O que você quer dizer com isso?
— Exatamente o que eu disse. Não se aproxima muito que eu
posso te queimar sem querer. Sou estabanada.
Me mantenho afastada, sentindo algo estranho. Não consigo
deixar de pensar no meu pai, acendendo a fogueira com suas
chamas azuis. Os cabelos muito escuros e lisos voando com o
vento gelado. Não tão frio como o de agora.
— Você disse que alguém sabe onde está o pedaço… — Não
chega a ser um grito, mas é alto o bastante para que ela me ouça
por cima das vozes que nos cercam.
— É lógico. Nada desaparece assim do nada.
— Então você não sabe quem roubou? — Tento respirar fundo,
mas algo está preso na minha garganta, como se alguém estivesse
me apertando, me sufocando. Sinto algo estranho no tom de voz
dela, parece que sabe mais do que está falando. Será que ela está
acusando minha família de mentir sobre a estrela?
Flor não responde. Fica lá, concentrada em manter a fogueira
acesa, enquanto eu sinto o frio ao meu redor aumentar. Penso no
meu pai, na falta que ele faz. Penso que ele deveria estar aqui.
Sinto vontade de correr e me esconder debaixo das minhas
cobertas.
Ela resmunga várias vezes e chega a amaldiçoar o vento
gelado que faz as chamas dela se rebelarem.
— Você precisa parar de fazer isso, Estrela! — grita, se irritando
e desistindo da fogueira.
— Parar de fazer o quê? — Não gosto do jeito como ela fala.
Não gosto que gritem comigo. Flor não me responde. Fica me
olhando, esperando algo de mim que não sei o que é. Vendo que
não terei uma resposta, saio empurrando as pessoas para que me
deixem passar. Uma mão quente tenta segurar meu braço, mas não
consegue.
O vento gelado que sopra em minha direção é tão forte que
sinto o rosto arder.
Não faço ideia do que está acontecendo.
Capítulo IV
Girassóis ao nascer do sol

Minha mãe está na cozinha, mexendo em algo sobre o balcão


improvisado, de costas para mim. Quero passar despercebida, mas,
sinceramente, nem sei por que tento.
— Aonde você pensa que está indo, Estrela? — Ela nem se vira
para me encarar.
— Ah… é… — Fungo, e tento inventar uma desculpa rápida.
Não consigo.
— Por que você está chorando, minha filha? — Só aí ela me
olha.
— Não sei.
— Ô, meu bebê. — Ela me abraça. — Eu também sinto muita
falta dele. — Não é isso, penso em dizer, mas seria mentira. — Fico
vendo aquele fogo roxo e só consigo pensar no seu pai brincando
de criar formas de bichinhos naquelas chamas azuis dele. — O tom
nostálgico da minha mãe não me ajuda a parar de chorar. Eu nem
sabia que estava sentindo tantas coisas até todas elas
transbordarem.
— Mãe. — Eu me solto dela. — Por que eu não tenho os
poderes do meu pai?
— Não sei, filha. — Ela vai para o fogão, sem olhar para o meu
rosto.
— A senhora sabe, sim.
— Para de importunar sua mãe, Estrelinha. — Minha avó
aparece pela porta da sala. Ela vem até mim e encosta a mão no
meu ombro. — Por que você não volta lá para a festa e faz
companhia para a Flor? Vocês estavam tão bonitinhas dançando
juntas!
— Elas estavam dançando, é?
— Estavam. Você precisava ver, Elis!
— Ah, mas a festa ainda está só começando, elas vão dançar
mais.
Reviro os olhos. Não quero dançar com ninguém. Eu não
deveria deixar que elas mudassem de assunto. Mas ando tão
cansada! Só queria ir até meu campo de girassóis e me deitar no
chão, olhando as nuvens mudarem de lugar.
— Estrela? — É a voz de Flor. Ela aparece no portal da
cozinha. — Cê tá legal?
Pronto, virou bagunça!
Quando estou me virando para olhar para ela, vejo minha avó
cutucar minha mãe. As duas me lançam sorrisinhos bobos. Passo
as mãos no rosto para secar as lágrimas que ainda estão ali.
— Tô.
— Eu consegui normalizar o fogo. — Sorri.
— Você é um anjo, menina! — Minha mãe ainda está com
aquela cara de boba. Reviro os olhos.
— Vamos conversar lá fora, Flor. — Puxo a garota pela mão.
— Ai, lá fora tá muito frio. — Ela solta a minha mão. — Eu
super ficaria aqui comendo um caldo de feijão…
— Ah, pois eu já esquento pra você! — Minha mãe oferece. —
Quer também, Estrela?
Meu orgulho diz que não.
Mas... sinceramente?
— Quero. — Eu me jogo em um banco de madeira e fico
olhando as três conversarem animadas. Conversando é bondade
minha. Flor fala e fala, quando penso que o assunto dela acabou,
ela fala mais. Quando percebo, estou sorrindo, com o queixo
escorado na mão, talvez para disfarçar minha cara de boba.
O assunto delas só acaba quando Flor traz duas tigelas com
caldo e se senta do meu lado. Minha mãe e minha avó saem,
levando panelas com comidas para os convidados. Eu como em
silêncio, então termino rapidinho. Ela começa um monólogo sobre
uma mulher chamada Angela, que conta histórias para crianças na
praça da Vila onde mora.
— Nunca vi alguém demorar tanto para comer um caldo de
feijão — comento, assim que ela termina. — Pelo menos eu sei que
nada nunca esfria quando está perto de você.
Isso parece uma cantada assim que sai da minha cabeça.
— Exceto você.
— O quê?
— Você não notou mesmo, né?
— Não notei o quê?
Ela pega a tigela da minha mão, coloca sobre a dela e as põe
em cima do banco de madeira.
— O frio é você, Estrela.
— Não entendi muito bem.
— Esse é o seu poder, entende? O seu e o da sua avó. Talvez
seja o da sua mãe, não sei. Eu crio o fogo; você, o frio.
Olho para ela. Meu cenho está franzido. Estudo o rosto de Flor,
tentando ver se ela está brincando comigo ou mentindo. Não parece
estar, mas começo a rir mesmo assim.
— Ai, você não está falando sério!
— É lógico que eu tô.
— Minha família não tem poder nenhum, só o meu pai tinha…
— O último pedaço da estrela não está perdido, nem foi
roubado. Ele está aqui, onde sempre esteve.
— No campo de girassóis… — completo. Olho para o nada e
respiro fundo. Encho e esvazio o peito mais de uma vez. — Eu não
entendo — confesso, depois de um tempo. — Não consigo
compreender.
— Talvez seja porque o frio é o seu normal, como você me
disse. Ele nunca foi estranho para você. Mas foi estranho pra mim.
É bem nítido, inclusive, como as suas emoções afetam a
temperatura.
— E como foi que você percebeu em cinco minutos algo que eu
não notei durante a vida inteira?
— É que… eu meio que já sabia! Desconfiava, na verdade. —
Ela se vira no banco, se sentando de frente para mim.
— Como assim? — Eu me viro também.
— É uma teoria antiga da minha avó. A única coisa que eu fiz
foi prestar atenção em você.
— E sobre o pedaço da estrela?
— Bom, de acordo com a história, ele nunca saiu daqui. Sua
família começou a dizer que havia sido roubada, mas acho que só
vocês acreditam mesmo nisso.
Fico algum tempo em silêncio, processando tudo. Vou precisar
de muito mais que uma noite para acreditar e aceitar as coisas que
Flor está me dizendo.
— Acho que amanhã eu vou conversar com minha avó sobre
tudo isso — digo, apoiando as costas na parede.
— Meninas, vamos lá ver a quadrilha? — minha mãe chama,
apontando da porta da sala.
— Já vamos, dona Elis. — Flor apoia as mãos nos joelhos,
depois se levanta devagar. — Vem, Estrela! — Estende a mão
direita na minha direção. Não sei se quero ir. Tem tanta coisa na
minha cabeça agora. — Vem! — insiste, agarrando minhas mãos e
me levantando com um puxão. Meu corpo esbarra no dela. Olho
para o lado, para conferir se minha mãe já foi. Enquanto ainda estou
pensando se vou roubar um beijo, Flor se antecipa.
Ela desce as mãos pelos meus braços até chegar à minha
cintura. Fecho os olhos e sinto o calor que vem dela abraçar meu
corpo. Levo minhas mãos até a parte de trás do pescoço de Flor,
tenho medo de que ela se afaste. Mas ela não se afasta, pelo
contrário, se aproxima mais e encosta os lábios nos meus.
É rápido. Nem dá para entender direito o que estou sentindo.
Quando abro os olhos, Flor está me encarando.
— Só para confirmar, antes de qualquer outra coisa, você gosta
de meninas, né?
Meu rosto esquenta.
— Você pergunta depois de me beijar? — Minha mão desce
devagar pelo braço dela até darmos as mãos.
— Foi só um selinho.
— Gosto… também — respondo a pergunta, me afastando
ainda mais de Flor. Observo com cuidado sua expressão para ver se
encontro algum vestígio de estranhamento por eu ter dito que não
gosto apenas de meninas, mas ela parece não se importar. Abro um
sorriso. — Vamos perder a quadrilha se ficarmos aqui. — Eu a puxo
pela mão. Acho que estou começando a me acostumar com o calor
dela.
Vamos de mãos dadas para o terreiro e continuamos de mãos
dadas quando os casais vestidos com roupas coloridas dançam em
sintonia. Depois da dança, nos sentamos em um banco. As mãos
ainda unidas. Fico à vontade para me deitar no ombro dela, está
mais quente aqui do que perto da fogueira.
— Acho que tenho que ir lá, as chamas estão diminuindo.
Resmungo, mas me afasto. Fico a observando enquanto ela
caminha.
Eu me lembro da primeira vez que minha avó me disse para
não me apaixonar por uma flor. Eu estava no campo de girassóis
depois de brigar feio com meu pai. Tinha ficado lá por horas,
deitada, como sempre fazia. Ela veio, se sentou do meu lado, disse
que todos estavam preocupados e me chamou para casa. Eu disse
que não iria, que gostava de ficar entre as flores. Então ela
aconselhou:
Não se apaixone por uma flor…
Esse foi o primeiro conselho amoroso que minha avó me deu.
Eu nem sabia direito o que significava “me apaixonar”, mas fui
marcada por um alerta que me perseguiu até agora. Sempre pensei
que ela estava sendo literal. Mas aqui e agora, olhando através da
fogueira de chamas roxas, sei que não. Aqui e agora, vendo Flor
com sua pele negra e seus olhos castanhos, com essa risada alta e
esses gestos expressivos, entendo que minha avó não falava de um
girassol qualquer do campo ali de baixo.
A pergunta que me atormenta é: como ela poderia saber?
Como minha avó sabia que Flor me faria sentir todas essas
coisas que estou sentindo?
Será que ela prevê o futuro?
Ela se aproxima de Flor, as duas conversam e sorriem. Pela
distância, não consigo escutar o que estão falando, mas não preciso
ouvir para saber. Minha avó está perguntando sobre Lírio.
Quando Flor volta a se sentar do meu lado, penso em
perguntar. Mas não faço isso. Eu me deito de novo em seu ombro e
ficamos assim, conversando — ela monologando —, enquanto
observamos os convidados da festa indo embora pouco a pouco.
Quando a fogueira está quase apagada e ninguém mais está sendo
aquecido por ela, eu me afasto um pouco no banco e pergunto:
— Quer conhecer o campo de girassóis? É bonito. Mais ainda
quando o sol nasce.
— Tá bom! — Ela se levanta em um pulo. — Vamos logo,
porque eu preciso ir embora.
Sei que não é uma despedida eterna, mas imaginar Flor indo
embora me deixa triste.
— A gente vai voltar a se ver, né?
— Lógico!
— Você vai ficar pelo menos para o café, né?
— Lógico!
Eu me levanto, seguro a mão dela e, com a outra, ela acende
uma chama roxa. Descemos até os girassóis.
O dia começa a clarear antes mesmo de chegarmos até o
campo. O céu acinzentado se encontra com um mar de flores
amarelas, e de caules e folhas verdes. Flor conversa, e eu sorrio,
durante todo o caminho. Será que um dia serei capaz de parar de rir
quando estou perto dela? Espero que não.
— Não está tão frio aqui. — Essa é a primeira coisa que diz
assim que pisa entre os girassóis. Eu não noto a diferença de
temperatura.
— Você esperava que estivesse mais frio?
— Acho que sim. — Ela passa a mão entre as pétalas de um
girassol. — É muito bonito aqui.
— É meu lugar preferido no mundo. Não que eu conheça
muitos lugares aqui em Alveiros…
— Está convidada a conhecer Castilhos. Sua avó está
planejando ir.
— Talvez eu vá… Se tiver um bom motivo pra isso!
— Ah… e já não tem? — Flor se vira para mim.
— Tenho nada, só um beijinho!
— Tá bom, deixa eu resolver isso.
O sol aponta tímido por detrás do morro. Devagar, eu me
aproximo de Flor. Ela envolve as mãos sobre minha cintura, me
abraçando, me trazendo para perto. Levo minhas mãos geladas ao
rosto dela, que sorri com o choque de temperatura. E a beijo com
urgência, porque nosso tempo é curto.
Se ela tiver razão e eu for o frio, que ironia seria amar tanto
assim o calor. Talvez nós duas nos complementemos. Ela, com suas
poderosas chamas roxas, com esse sorriso enorme e essa
tagarelice. E eu com minha calma, meu frio e meus girassóis.
Aqui, onde uma estrela caiu e girassóis nasceram, eu me
lembro do conselho completo:
Não se apaixone por uma flor… a não ser que você queira se
perder.
Azeitonas
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura sensível: Koda Gabriel
Para os meus amigos.
Os que sempre estão aqui.
Os que foram embora e voltaram.
E os que não vão ficar para sempre.
Capítulo 1
A pessoa quase atropelada

As sacolas deixam marcas vermelhas nos meus braços e mãos.


Estão pesadas. São muitas. Tento caminhar depressa, querendo
chegar logo ao prédio e entregar as compras aos donos. Meu peito
dói pela falta de ar, a respiração comprometida pela máscara. Por
um segundo, me sinto boba por ser praticamente a única a seguir as
recomendações da Organização Mundial da Saúde. A rua agitada,
mesmo em meio a uma pandemia, mostra que ninguém mais parece
se preocupar em se proteger e proteger os outros. Principalmente
os empresários, obrigando seus funcionários a voltarem a trabalhar
apesar de os bolsos estarem cheios de dinheiro o suficiente para
aguentar três pandemias. É como se um vírus que já matou mais de
setenta mil pessoas no país não fosse nada.
— Cecília? — O grito de alguém se sobressai ao barulho da rua
agitada. Uma buzina soa distante. Antes que eu possa me virar para
ver quem me chama, o som alto de um carro freando com violência
me faz derrubar uma das sacolas no chão. Mas não sou eu quem
está na mira. A pessoa, que vem correndo na minha direção no
meio da rua, grita de pavor. O carro não consegue parar a tempo. O
barulho da batida, misturado ao som de vidros, lataria e ossos se
quebrando, me faz gritar também, desejando que aquela pessoa
não seja quem estou pensando que é.
Não pode ser, pode?
Os cabelos loiros platinados voam no ar, e, então, eu
reconheço.
Meu Deus, eu reconheço.

Não sei por qual milagre, mas não acordo gritando. Levo as
mãos ao peito e aperto forte, na tentativa de fazer aquela angústia
esquisita passar.
Demoro a me levantar. Mas faço isso porque hoje é dia de fazer
compras para o meu avô e para os outros idosos do prédio. Às
vezes, como hoje, me pergunto onde eu estava com a cabeça
quando me voluntariei para essa tarefa.
Meu avô já está a todo vapor fazendo seus exercícios na sala,
sobre um tapete de ginástica. Faço meu caminho até o banheiro,
mas ele me nota antes que eu chegue lá.
— Bom dia! Dormiu comigo por um acaso?
Reviro os olhos e paro.
— Bom dia, vô. — Ignoro a piadinha. — A lista tá pronta?
— Tá, sim. Já coloquei em cima da mesa, junto com o cartão.
— Não esqueceu nada dessa vez, né? — Semana passada ele
não colocou leite na lista, e eu tive que sair de casa num dia não
planejado só para comprar o bendito. Meu avô não conseguia viver
sem seu café com leite.
— Conferi cinco vezes. — Ele para o movimento que está
fazendo e me encara com seus olhos escuros, franzindo o cenho
enrugado. — Cê tá bem?
— Tô… com sono só.
Ele continua me olhando por um tempo, desconfiado, depois
volta para o exercício. Penso em comentar sobre o pesadelo que
tive, mas desisto e vou caminhando em direção ao banheiro. Não
sei se ele vai entender.
Meu avô não me conhece muito bem. Fui criada em outra
cidade e, quando minha avó ainda era viva, costumávamos visitá-los
mais. Desde que ela morreu e meu avô se mudou para este
apartamento, vim muito pouco aqui. Eu sempre tinha uma desculpa:
um evento da igreja, uma viagem da escola, uma apresentação da
banda. E sei que, depois que tudo isso passar, essa pandemia e
esse isolamento, terei ainda menos tempo de vir.
Queria poder dizer que aceitei vir passar esse período aqui por
ser uma pessoa boa e querer ficar mais tempo com meu avô. Mas a
verdade é que vim porque não aguentaria ficar presa em casa com
a minha mãe. Eu conseguiria até suportar a gritaria dos meus
irmãos e o vício do meu pai por partidas de futebol antigas. Ela, no
entanto…
— Não vai colocar nada pra você na lista? — meu avô grita lá
da sala com sua voz grave.
— Vou não, vô! — Abro o armarinho do banheiro e pego minha
escova e a pasta de dentes. Toda vez é assim, meu avô sempre
pergunta se quero algo, eu sempre respondo que não. Às vezes,
trago uma balinha de hortelã que adoro, quando me lembro.
Termino de me arrumar (se é que posso dizer que ajeitar esse
cabelo de qualquer jeito e colocar essa máscara preta que não me
deixa respirar é me arrumar) e pego minha bolsa.
Meu avô continua fazendo os exercícios. Agora, ele está
sentado no tapete verde escuro, esticando os braços e deixando a
coluna ereta. Sinto meus ossos rangerem só de olhar. Eu deveria
fazer companhia para ele nos dias em que não vou ao
supermercado, mas sou sedentária demais para sequer cogitar isso.
— Come alguma coisa antes de sair, menina. Saco vazio não
para em pé.
— Ah, tô sem fome.
— Se você desmaiar na rua, sua mãe me mata.
Essa é a preocupação dele?
— Realmente tô de boa. — Pego a lista e o cartão que estão
sobre a mesa. — Vou e volto rapidinho.
Dobro o papel e o coloco em um compartimento específico
dentro da bolsa. Não gosto de misturar as listas. Minha organização
é confusa demais para qualquer um que tente me entender. Mas faz
sentido para mim, e isso me basta.
Passo em frente às portas dos outros dois idosos do prédio que
me prontifiquei a ajudar, pego as listas que deixam coladas ali toda
terça-feira de manhã, e vou ao supermercado.
Enquanto observo a moça do caixa passar as compras, que
separei na ordem certa, colo post-its de cores diferentes nas
sacolas: azul para o meu avô, laranja para a pessoa do 13b, e verde
para a pessoa do 21b.
A caixa tem dificuldade em passar um pote grande de vidro,
cheio de azeitonas. Parece que o código está errado. Respiro fundo,
encarando o vidro sobre o balcão metálico enquanto a moça chama
a supervisora para resolver o problema. Aquele pote maldito de
azeitonas e o sonho que tive fazem meus olhos encherem de água.
Puxo o celular do bolso e abro o aplicativo de mensagens. O
nome está lá, mas nada de foto, nada de respostas desde março de
2020. As últimas mensagens, enviadas por mim, meses atrás, não
são pedidos de desculpas.
Começo a digitar uma nova.

Sonhei com você hoje. Sei que é estúpido começar essa


mensagem (que você provavelmente nem vai ver) assim, mas foda-
se. Sonhei que você morria. Foi estranho porque a sensação foi
quase como aquela, na porta do hotel no Rio de Janeiro, quando
derrubei nossas sacolas no chão. O barulho que ouvi no sonho
parecia com o do pote de azeitonas daquela noite, caindo e se
quebrando. Lembra que eu disse que ainda dava para comer as
azeitonas, lá, misturadas entre água e cacos de vidro? Você olhou
pra mim e riu, pegou a sacola molhada das minhas mãos e jogou
fora. Sei lá, estou olhando pra um vidro de azeitonas agora, intacto,
recém-comprado. Algumas coisas são facilmente substituíveis,
outras não. Desculpa, é só… que lembrei daquela viagem, a gente
na grama enquanto o mercado literário inteiro passava por nós.
Seus livros não vendidos empilhados do seu lado, uma lata de
refrigerante cheia e quente do meu. Eu prometendo que aquele
seria só o primeiro dos muitos fracassos que enfrentaríamos. Não
fomos capazes de enfrentar nada, não é? Você era a minha pessoa,
como foi que a gente se perdeu?

— Moça? — a garota do caixa me chama. Pisco algumas vezes


tentando fazer minha visão entrar em foco. Estou chorando. — Você
está bem?
— Tô, sim. Deu certo aí? — Aponto para as azeitonas que ela
tem nas mãos.
— Deu, sim.
Abro um sorriso e volto minha atenção para as sacolas que
estou etiquetando por cores. Qual era mesmo a ordem? Ah, sim!
Laranja para o meu avô, azul para a pessoa do 13b, verde para a
pessoa do 21b.
Capítulo 2
Malditas azeitonas

E se aquele sonho fosse uma premonição?


Fico pensando nisso o caminho inteiro até em casa. Às vezes,
quando um carro ou outro passa por mim, olho para trás só para
checar que ninguém esteja correndo na rua em minha direção,
gritando meu nome. Espero que esse sonho não tenha me
traumatizado, como aquele que tive em que a tempestade inundava
a casa toda da minha mãe. Fiquei com medo de chuva por meses.
Até que choveu e as enchentes invadiram a casa.
Chego ao prédio e a única coisa em que consigo pensar é
entrar logo em casa e tirar essa máscara. É difícil demais respirar
com isso. Pouso no chão as duas sacolas de compras da pessoa do
13b, toco a campainha para avisar que cheguei e subo de escada
até o 21b. Deus me livre entrar em um elevador, mas também não
quero me cansar, ainda mais com a respiração comprometida por
essas camadas de pano sobre o meu nariz e boca, então percorro o
trajeto devagar.
Deixo as compras do 21b na porta e sigo até o apartamento do
meu avô. Está tudo tão silencioso que desconfio que ele tenha
desistido da quarentena e saído de casa. Mas, assim que limpo as
sacolas e as embalagens, completamente no automático, pensando
em uma época em que eu podia aglomerar com as pessoas que
gosto, meu avô aparece na porta da cozinha.
— Deixa aí que eu termino de limpar.
— Obrigada, bonitão, agora já terminei! — Jogo o pano que
usei para limpar os produtos dentro de um balde com água e o levo
até a área de serviço. — Mas o senhor pode guardar tudo no lugar.
— Pisco para ele e vou em sua direção, evitando passar muito
perto.
— Tá bom! — Ele se afasta para ficar longe de mim.
Vou direto para o banheiro, jogo as roupas no “cesto do corona”
e tomo um banho demorado. Demoro também a me arrumar. Meu
estômago está roncando de fome quando volto para a sala, mas,
antes que consiga seguir para a cozinha, vejo seu Mário em pé, com
a mão escorada no encosto do sofá, olhando diretamente para mim.
Ele não parece bravo, mas também não parece muito feliz. Nem o
cabelo branquinho, contrastando com a pele negra dele, o deixa
mais fofo naquele momento.
— O que houve?
— Você trocou as compras!
— Eu o quê?
— Trocou as compras — repete pausadamente.
— Não troquei, não! — Minha voz treme. A certeza de que eu
havia trazido as compras certas vai embora. — Troquei?
— Uhum. — Ele faz um bico horroroso. — Minhas azeitonas,
meus chás… Nada disso veio. Pode ser que você tenha
esquecido…
— Puts. — Coloco a mão na testa. — Não, eu troquei mesmo.
Tenho certeza que comprei essas malditas azeitonas! — Vou até a
cozinha. Meu avô deixou as compras todas no mesmo lugar onde
eu havia colocado. — Vou olhar nas listas para ver de quem é essa
compra. — Corro até a cadeira do corona, onde deixo minha bolsa,
ao lado de um vidro de álcool em gel, e pego as três listas de
compra de dentro de um dos bolsos. Confiro os itens, um por um.
— E aí?
— Troquei com as compras do 13b. — Eu me jogo no chão,
completamente derrotada. Não acredito que vou ter que fazer todo o
ritual anti-corona de novo. E ainda sair de casa com a máscara
reserva, que fica puxando minhas orelhas para a frente.
— Vai logo, Cecília, a pessoa pode estar dando falta da compra
dela.
— Tô indo, vô.
Coloco os produtos em sacolas que estavam expostas ao sol,
na área de serviço, há mais de três dias, visto a máscara branca e
apertada e saio de casa. Penso em como vou abordar a pessoa do
13b; sei que mora sozinha, mas só isso. Não sei quem é, não sei
como se chama. Meu coração acelera, crio mil e uma teorias sobre
a identidade da pessoa.
Mas nem é necessário sentir tanto medo. Quando viro o
corredor, vejo duas sacolas, diferentes das que eu trouxera mais
cedo, lado a lado na porta do 13b. Respiro aliviada. Já amo esse ser
humano com toda a minha força, mesmo sem fazer ideia de quem
seja.
Pego as sacolas e deixo as outras no lugar. Toco a campainha
e saio, como de praxe.
Chego em casa, já antecipando o ritual de sempre: limpar tudo
e deixar sobre o balcão. Mas duas coisas chamam minha atenção
assim que tiro os produtos de dentro das sacolas. Há um bilhete
escrito à mão, em uma letra bonita e caprichada.

Me desculpa, comi algumas das suas azeitonas. Ando me


distraindo muito e não percebi que havia esquecido de acrescentar
azeitonas na lista. Só percebi que estava errado quando notei as
outras coisas que eu não tinha pedido dentro das sacolas. Para me
redimir do meu equívoco, estou mandando um pedacinho de bolo de
cenoura. Me desculpa novamente.

Releio o bilhetinho, sem acreditar no nível de fofura daquela


pessoa. Depois, pego a vasilha de plástico onde o bolo está. Limpo
tudo com álcool em gel, até o bilhete, tomando o maior cuidado para
não manchar o recado.
— E aí, trocou?
— Sim, mas a pessoa do 13b comeu suas azeitonas!
— Ah! — Meu avô até encurva os ombros. Eu não sabia que
ele gostava tanto assim de azeitonas. Algo gelado desce pela minha
garganta até o estômago. Malditas azeitonas! Lembro de Gio.
Quase no automático, pego meu celular no bolso e jogo álcool sobre
ele com tanta força que o líquido escorre pela lateral. — Bom, não
tem problema… Já está terminando aí?
— Já. A mulher mandou um bolo.
— Mulher?
— É, a do 13b.
— É uma mulher?
— Uai, não sei.
— Uai?
— Ai, vô! — Pego o celular, ainda cheio de álcool. — Vou tomar
outro banho. — Bufo. Sinceramente, que dia bosta! — A pessoa
mandou um bolo de cenoura, tá no potinho. Eu já limpei tudo.
— Tá bom!
Passo o mais longe dele que consigo e vou (mais uma vez)
tomar um banho. Já estou de saco cheio. Essa pandemia tem que
acabar!
Capítulo 3
Garota de recados

— Preciso que você faça algo pra mim! — É a primeira coisa


que meu avô diz quando chego na cozinha, algumas horas depois.
Já são duas da tarde e só agora a comida ficou pronta. Ok, a culpa
é minha porque troquei as compras e ele atrasou a preparação do
almoço. Ok, eu nunca iria reclamar.
— Se eu tiver que sair de casa para isso, não vai dar. Deus me
livre passar por tudo isso de novo. — Parece que odeio tomar
banho, mas nesse contexto eu odeio, sim.
— Não, hoje não. — Ele se vira e pego os pratos no armário. —
Mas quando você for fazer as compras da semana que vem, quero
que leve um bilhete para e 13b.
— Pra quem? — Não entendo bem o que ele diz. Deve ser
porque ele está de costas para mim.
— E 13b. — Ele se vira e repete, com paciência.
— E? — Estranho.
— Linguagem neutra, minha filha.
Abro os braços, em choque. Eu devo estar em algum tipo de
sonho muito doido. Por que meu avô conhece (e usa) linguagem
neutra, coisa que eu mesma ainda não aprendi a fazer? Faço um
não com a mão aberta, mais parece que quero espantar uma
mosca, e volto para o banheiro. Lavo bem o rosto e tento ajeitar o
frizz do cabelo. Não, eu não estou sonhando, é o que constato.
Respiro fundo e retorno para a cozinha.
Meu avô está parado no mesmo lugar, sem disfarçar um
sorrisinho. O prato dele já está cheio.
— Ok. — Respiro fundo mais uma vez. — O senhor quer que
eu leve um recadinho pra pessoa do 13b, certo?
— Isso. Já até escrevi o bilhete. Vou colocar junto com a lista,
em cima da mesa, na semana que vem. Não esquece, tá? — Ele
me entrega um prato vazio.
— Sim, senhor. — Eu me sirvo lentamente, ainda confusa. — E
da onde o senhor conhece linguagem neutra, vô? — pergunto, sem
olhar para ele.
— Eu estava vendo uma mesa naquele evento… é… — Meu
avô parece confuso. Olho para ele e vejo que está passando a mão
direita sobre a testa algumas vezes. — Aquele que su amigue
compartilhou esses dias…
— Amigue? Que amigue?
— Gio.
O soco no estômago vem certeiro.
— Ah… Não vi. — Volto a olhar para as panelas sobre o fogão
e encho meu prato devagar.
— É Flipop o nome do evento — ele diz, depois de um tempo,
estalando os dedos.
— Ah… — Nunca ouvi falar. — Tem suco? — Desvio o assunto.
Não quero falar sobre nada que envolva Gio, mesmo estando me
coçando para saber por que meu avô se interessou por um evento
sobre linguagem neutra ou algo do tipo. Provavelmente era algo
sobre livros… Será que Gio conseguiu terminar aquele livro?
Não. Não é da minha conta.
— Cecília? — Meu avô está se abaixando um pouco, tentando
me olhar nos olhos.
— Oi, vô, eu?
— Você está bem? Estou te achando estranha desde cedo!
— Ai, vô… — Quase conto tudo para ele, mas desisto. — Acho
que tô só com fome. — Vou até a mesa de quatro lugares, que fica
no cantinho da cozinha, puxo uma cadeira e me sento. Meu avô me
faz companhia.
Comemos em silêncio. Eu, com meus pensamentos me
atormentando, controlo uma quantidade incontável de impulsos de
olhar a tela do celular e verificar se Gio respondeu minha
mensagem. Parte de mim sabe que não. Mas aquela outra parte, a
trouxa, tem esperança de que elu tenha enfim desistido de me
ignorar.
Obviamente não desistiu.
Checo isso depois do almoço. Logo depois do almoço.
E continuo não tendo resposta. Nos dias seguintes, meu celular
pipoca com mensagens de outras pessoas, comentários no último
vídeo que postei cantando “All the Good Girls Go to Hell”, da Billie
Eilish, marcações nos stories do Instagram de gente ouvindo minhas
músicas.
Fico a semana inteira tentando me convencer de que não
preciso de uma resposta. Mas eu preciso.
— O que é isso, vô? — Pego a vasilha de plástico que está
sobre a mesa, ao lado de dois papéis: a lista de compras do meu
avô e o bilhete para a pessoa do 13b.
— Pudim. — Ele nem para os exercícios matinais para
responder, mas tem algo diferente em sua voz. Um tom de
expectativa.
— O senhor fez pudim para uma pessoa desconhecida e não
fez pra mim? — O drama.
— Tem na geladeira. — Não olho para ele, mas tenho certeza
absoluta que meu avô revirou os olhos. Dá para saber pelo seu tom
de voz. Vou até ele e atrapalho seus movimentos, dando um
beijinho em seu rosto. — O que deu em você hoje?
— Nada!
— Tá estranha.
— Uai, vô! — Eu me afasto dele e começo a organizar minha
bolsa. Pior que eu devo estar parecendo estranha mesmo. Fico
praticamente o dia inteiro no quarto, só saio para assistir a novelas
antigas com ele na TV a cabo e para comer. Às vezes, nos
sentamos na varanda e eu o ouço contar alguma história antiga, de
quando ele era novo e conheceu a Dilma Rousseff (ele já contou
essa três vezes), ou algo novo que ele aprendeu na internet. Meu
avô parece gostar mais de ficar on-line que eu. Mas raramente me
aproximo muito dele. Nada de abraços ou beijos. — Ô, vô! — Algo
me ocorre de repente. — O senhor segue meus amigos nas redes
sociais, é?
— Alguns.
— E o senhor anda vendo as coisas que Gio tá postando?
— Acho que sim, por quê?
— Ah, nada. — Coloco a máscara no rosto e penduro a alça da
bolsa no ombro. Não sei por que comecei um assunto que eu não
queria terminar. — Já tô indo.
Deixo meu avô sem entender nada e saio, como um raio, porta
afora.
Pego a lista do 21b, depois desço e faço o mesmo na porta do
13b. Mas, em vez de ir embora, deixo o pudim que meu avô
mandou, junto com o bilhete, e toco a campainha. Saio antes que a
pessoa atenda.
Sei lá, acho que gosto do mistério de não saber quem é.
Quando volto, há um pote de plástico no tapete de entrada do
13b, diferente do que eu havia deixado antes, e, debaixo dele, um
papelzinho dobrado. Acho fofo. Pego os itens e deixo as sacolas de
compras no lugar.
A primeira coisa que faço quando chego em casa é falar para o
meu avô que ele tem um recado. O sorriso que abre ao ver o pote
de plástico nas minhas mãos não deixa dúvida: aquele não vai ser o
último recadinho que vou transportar pelos corredores desse prédio.
Capítulo 4
Pode alguém se apaixonar independente de gênero?

Estou há exatas três horas olhando para a tela do celular. Já


respondi todas as DMs e stories de amigos, já ri de vídeos do
TikTok. Mas meu olho sempre volta para a mensagem não
respondida. Quero conversar com Gio, quero contar sobre as trocas
de recadinhos entre meu avô e a pessoa do 13b. Quero contar que
desisti de ser uma pessoa honesta e ando lendo todos os bilhetes.
Quero falar que meu avô escreve poemas, assim como Gio. Quero
falar tanta coisa.
Mas os blocos e mais blocos de mensagens sem resposta, a
maioria enviada meses atrás, me faz desistir. Se Gio quisesse saber
da minha vida, responderia.
— Cecília? — Meu avô bate na porta.
— Oi, vô! — Bloqueio a tela do celular e o coloco sobre a cama.
— Vem tomar um cafezinho, você está o dia inteiro nesse
quarto!
Eu me levanto e abro a porta. Meu avô está com uma caneca
nas mãos, sorrindo para mim. Retribuo o sorriso e saio do quarto,
deixando meu celular para trás. Acho que preciso focar um pouco
mais no mundo que está aqui à minha frente.
Sentamos na varanda. Estou pronta para ouvir mais uma vez a
história sobre a Dilma, mas meu avô resolve mudar a pauta.
— Reparei que você anda muito calada nas últimas semanas.
Quer conversar sobre alguma coisa?
Não.
Meu primeiro instinto é negar.
Mas talvez eu queira, sim.
— Ah, vô, não sei… É que… Essa quarentena está me
deixando meio ruim das ideias.
— Acho que todo mundo está assim.
— É, pois é. E, também… — Hesito um instante, mas decido
falar. — Aconteceram muitas coisas na minha vida desde a última
vez em que estive aqui, no ano passado.
— Coisas tipo...?
— Lancei algumas músicas na internet, viralizei, ganhei vários
seguidores.
— Isso não parece ruim. — Ele sorri.
— E não é. — Hesito de novo. — Mas ao mesmo tempo é.
Meu avô me encara, confuso. Demoro um pouco para explicar,
tentando organizar meus pensamentos.
— É que eu não converso mais com Gio, vô. — E é tudo que
digo.
— Por quê? Super acompanhei a viagem de vocês ao Rio de
Janeiro ano passado. — Ele enche a própria caneca com café.
Então quer dizer que meu avô fica de butuca nos meus stories?
— A gente meio que brigou. Não lá no Rio, mas depois. E aí elu
nunca mais me respondeu.
— E você quer ser respondida? — ele pergunta com cuidado.
— Ah, vô. Sinto falta de Gio. — E isso dói, eu queria completar,
mas acho que não é preciso. Meu avô apruma o corpo na cadeira.
— Bom, se faz falta, continue tentando manter um contato. Mas
pra uma conversa existir é preciso que as duas partes queiram falar
e ouvir. Você quer falar com Gio, mas quer ouvir?
Sinceramente? Não faço ideia do que responder, então não falo
nada. Fico observando meu avô tomar seu café, calado. Às vezes,
ele me olha de soslaio, às vezes fica em silêncio ouvindo a conversa
dos nossos vizinhos de cima. Já tomei três canecas de café quando
meu avô volta a falar.
— Você prefere torta com recheio de frango ou carne moída?
Nossa, ele realmente mudou de assunto.
— Frango? — Minha voz é quase um miado. — Ai, não sei.
— Hmm, acho que vou colocar frango desfiado e carne moída
na lista. Depois decido qual fazer.
— Aposto que a torta não é pra mim! — Cruzo os braços.
— E não é mesmo! Talvez eu deixe um ou dois pedacinhos
para você.
— Credo, vô, que ruindade! Eu sou sua garota de recados, levo
e trago seus bilhetinhos totalmente de graça.
— E lê também, que eu sei.
— Nossa, que difamação!
Ele solta uma risada.
— Talvez eu deixe uns quatro pedacinhos…
— Aff, vô. Tudo bem, por quatro pedaços eu continuo levando
suas cartinhas de amor para uma pessoa desconhecida.
— Não são cartinhas de amor… São apenas conversas à
moda antiga.
— Pelo menos ela te responde. Ele — corrijo. — Elu — corrijo
de novo. Meu avô apenas ri da minha cara. — Não é estranho, vô?
Tipo, o senhor nem sabe quem é…
— Eu sei quem é. Só não sei o gênero, é diferente.
Às vezes me irrita um pouco ter um avô mais fora da casinha
que eu.
— Mas não é estranho? Tipo, o senhor já deveria saber, né? A
pessoa não fala o próprio gênero em momento nenhum? Eu sei que
o nome é Rosimar, o que não ajuda muito a saber se é homem,
mulher ou outro…
— Você realmente está lendo, né? — Ele me interrompe.
— Não… li todos. Só alguns.
— Que coisa feia, Cecília!
— Eu só queria descobrir.
— E por que isso é tão importante pra você?
— Curiosidade… — confesso.
Ele apenas revira os olhos, pega um papel do bolso da calça e
me entrega.
— Olha só… Veja o que está escrito.
Leio o bilhete.

Ah, sinto muito pela sua esposa. Saudade não dá para traduzir
e não dá para explicar, não é? Sinto uma gratidão enorme pelas
pessoas que passaram pela minha vida, mas elas já foram.
Infelizmente, hoje vivo só. E tenho meus momentos de me sentir
exatamente assim como você: alguém que viu todo mundo ir
embora. É difícil estar longe dos meus. E agora, nessa quarentena,
tem ficado insuportável. Foi muito bom encontrar você. Com esses
bilhetes, a solidão me deixa um pouquinho.
Rosimar.
— Pra mim é isso o que mais importa, Cecília. Ter alguém que
preencha, ao menos um pouquinho, o meu vazio. E que eu seja
alguém que preencha o vazio dessa pessoa também. Ter com quem
conversar, falar sobre coisas que só a gente entende. Vocês, jovens,
talvez não consigam entender a falta que isso faz, com esses
celulares que tocam toda hora com uma mensagem nova…
Eu suspiro, compreendendo como meu avô nem imagina.
Como dizer a ele que receber um milhão de mensagens não afasta
a solidão?
Talvez eu seja mais parecida com meu avô do que ele pensa.
E talvez eu devesse tentar conversar com Gio uma última vez.
— Sabe, vô, o senhor tem razão! Tem gente que se importa
com gênero, com tipos de corpo, com sei lá mais o quê, e tá tudo
bem, né? As pessoas são diferentes, veem o mundo de jeitos
diferentes. Mas, assim como o senhor, eu não ligo muito pra essas
coisas, não.
Ele sorri, meio de canto.
Eu me levanto, encerrando o assunto. Quero mandar logo a
mensagem para Gio antes que eu me arrependa e esse impulso
passe.
Deito na minha cama e vejo que tem tanta notificação no meu
celular que eu, sinceramente, penso em jogá-lo pela janela. No
entanto, abro direto o aplicativo de mensagens, ignoro todas as
outras vinte e três conversas pendentes (tudo isso em menos de
uma hora longe do celular) e clico na conversa com Gio. Penso em
mandar algo curto e eficaz, mas, quando vejo, já digitei um textão.

Ok, já que isso é um monólogo, vamos de monólogo.


Não sei o que você quer ouvir de mim, sério! Quer que eu
simplesmente aceite que a pessoa em que me tornei não se encaixa
mais na sua? Ok, aceito. Podemos superar isso e conversar como
duas pessoas civilizadas? Podemos fazer isso, sei que podemos!
Meu avô está aqui, conversando quase que semanalmente com
uma pessoa através de bilhetinhos, e parece feliz com isso. São os
termos que eles criaram. Nós podemos criar nossos termos, novos
termos. Você não precisa simplesmente sumir porque não consegue
lidar com as minhas mudanças.
Ai, nem sei mais o que tô falando. Só me responde, por favor.
Estamos grandinhes pra ficarmos de palhaçada.

Fico olhando para a tela, na esperança de que algo mude. Pela


meia hora seguinte, as notificações de outras conversas e de outras
redes sociais se acumulam. Talvez a melhor coisa que eu faça
nessa minha vida seja realmente seguir em frente.
Abro o Twitter e meus dedos começam a formigar quando vejo
a quantidade novas menções. Tento não ignorar nada, mas sinto um
desespero com esse tanto de mensagem não lida. Parece que não
vou acabar nunca!
Mesmo assim, sigo em frente e zero a caixa de entrada, depois
vou para as notificações normais.
Estou quase desistindo de olhar tudo quando uma thread de
reações, ilustradas com GIFs de memes, de alguém que está
maratonando todos os meus vídeos chama minha atenção. Eu,
honestamente, já amo essa pessoa. Respondo com um GIF
também, para ficar no mesmo tom. Praticamente no mesmo
segundo, recebo uma nova mensagem inbox. Olho, por curiosidade,
e é a pessoa da thread dizendo que terminou de ver todos os
vídeos, que se apaixonou pela minha voz e que não aguenta mais
esperar pelo lançamento do meu EP. Desvio o olhar para o meu
guarda-roupas, onde sempre gravo os vocais das minhas músicas
(sim, eu gravo dentro do armário por causa da acústica, é por isso
que meu nome de artista é Cecília e o armário), e penso que devo
finalizá-lo em breve, mas bate sempre uma preguiça de pensar que
tenho que produzir tudo sozinha em um notebook velho.
No entanto, receber esse tipo de mensagem me anima. Antes
de responder, dou uma olhada no perfil e, nossa, quase caio
mortinha no chão. Nunca vi um ser humano tão bonito em toda a
minha vida (de exatamente dezenove anos). Sério. Chega a dar
raiva.
Olho o pronome que usa, o nome (é Ciano) e as informações
mais relevantes sobre ele na bio. Só aí eu respondo. E continuo
respondendo. Quando vejo, estamos conversando há duas horas,
como se o tempo tivesse voado. Tinha tanto tempo que eu não
parava para falar com alguém de verdade. Ultimamente, vinha
respondendo todo mundo no automático, sem realmente me
conectar com ninguém. Acho que entendo meu avô. Não é a
quantidade nem a frequência das mensagens, é a conversa em si e
a atenção que você dá a ela. É isso o que faz toda a diferença.
Preciso parar um pouco o nosso papo para olhar o restante das
notificações ainda pendentes. São muitas. Nenhuma delas é de Gio.
Quer saber de uma coisa? Desisto.
Capítulo 5
Posso eu me apaixonar independente de gênero?

Aumento a frequência de saídas de casa justamente para levar e


trazer os recados do meu avô. E faço isso feliz. Estou me sentindo o
próprio WhatsApp, só que off-line. Pelo menos, recebi um
pagamento. Meu avô e Rosimar combinaram de destinar para mim
cinquenta por cento da comida que trocam. Achei justo.
Desconfio que seu Mário esteja completamente rendido. Ele
fala de Rosimar o dia inteiro e sorri feito um bobo, às vezes do nada.
Os olhos do meu avô brilham toda vez que ele está lendo (mesmo
que seja pela décima vez) ou escrevendo algum bilhetinho. E eu
acabo sorrindo também. Não dá para controlar.
Ando sorrindo muito ultimamente, inclusive. E não é por causa
do meu avô.
Toda vez que uma notificação apita no meu celular é como se
eu virasse do avesso. Meus dedos tremem, meu coração dá um
pulo, meu sorriso se abre. Eu não diria que estou apaixonadinha, é
só… uma cosquinha, uma necessidade de conversar o tempo todo
sobre tudo, como se o lugar mais seguro e confortável do mundo
fosse o chat da pessoa.
Será que é assim que meu avô se sente quando conversa com
Rosimar?
Engraçado que meu crush também tem um nome neutro, mas
eu sei que ele é um homem trans. Meu avô não sabe nada. Nem se
importa. Será que ele é pan, como eu, ou será que não? Será que
devo perguntar? Será que ele sabe o que é ser pan? Será que devo
explicar?
Ele está aqui, sentado no sofá ao meu lado, rindo sozinho
enquanto escreve alguma coisa no caderno. Os bilhetes estão cada
vez maiores. O último que mandei tinha duas folhas quase
completamente preenchidas. Sorrio, porque essa parece ser a única
coisa que sei fazer.
Então meu celular apita e o coração pula.
Duas sensações completamente opostas passam por mim: a
apreensão de ser uma resposta de Gio e a alegria de pensar que
pode ser uma mensagem de Ciano.
É Ciano.
Sorrio, colocando meu pé sobre o sofá. Apoio o braço direito
em cima de uma almofada e respondo. Fico olhando o chat,
esperando uma resposta. Quando ela demora mais que um minuto,
começo a sentir uma inquietação. Será que Ciano vai me esquecer
no churrasco, como Gio fez?
Conscientemente, sei que são duas situações muito diferentes,
mas meu corpo reage. Pisco sem parar, fecho o aplicativo, jogo o
celular de lado. Meu avô me olha de canto.
— O que foi?
— Ah, vô... Tô conversando com um menino.
— Hmm. — Ele deixa o caderno sobre o braço do sofá e se vira
para me olhar.
— Pois é, vô, eu gosto de meninos! — brinco, sorrindo meio de
lado.
— Bom, eu também! — Ele fica me olhando um tempo,
esperando minha reação. Como não digo nada, porque eu meio que
já sabia, continua: — Mas me conta desse garoto.
— Ah, é só alguém que conheci no Twitter e a gente começou a
conversar e tal. E é isso! Acho que gosto dele, mas só falamos
sobre bobagens, sobre sexualidade, séries e música. Então não sei
se ele me vê como amiga ou como crush.
— Por que você não pergunta?
— Tá doido, vô? Vai que eu estrago tudo! — O celular vibra no
sofá. Olho para ele, mas decido ignorar.
— Foi o que aconteceu com Gio?
Nossa, ele manda na lata. E dói. Parece que meu avô me jogou
um balde de água fria goela abaixo.
— Gio não era crush, vô. Era amizade.
— Era?
Não sei o que devo responder.
— Lembra quando aquele meu primeiro vídeo cantando
viralizou? Aquele que mandei no grupo do WhatsApp, no ano
passado?
— Você manda vídeo toda semana naquele grupo, Cecília.
Reviro os olhos.
— Enfim, depois desse vídeo, tudo o que eu postava passou a
receber muitos likes, muitos compartilhamentos, muitos
comentários. E Gio não soube lidar com isso. — Meu avô me olha
de um jeito esquisito. — Elu tem questões com essa coisa de fama
on-line — explico. Mas seu Mário segue sem entender muito bem o
motivo do afastamento. — Ok, vô, a gente brigou.
— Isso eu notei, mas brigaram por quê?
— Porque Gio ficava me enchendo o saco, tentando podar tudo
o que eu falava nas redes sociais. Parece bobo, mas é muito chato
ter alguém querendo controlar o que você deve ou não dizer. Eu
sempre reclamava dessa superproteção e a gente acabava
discutindo toda vez. E... — Hesito. — Sabe quando alguém
lentamente vai se afastando? As conversas começam a ficar
menores, mais monossilábicas. — Começo a aumentar o tom de
voz. — Gio não queria que eu me posicionasse, que eu levantasse
bandeiras, que eu falasse abertamente sobre gostar de meninas
nem que escrevesse músicas sobre isso. Entendo que era só medo
de que acontecesse comigo o que aconteceu com elu: ser
superativista e só me lascar. Mas vô... Isso é quem eu sou. Preciso
falar sobre esses temas, cantar sobre isso. Quero falar sobre sentir
dor, sobre estar triste, sobre… amar as pessoas… — Quando vejo
estou quase gritando.
— Eu entendo, Cecília. Mas é preciso estar vivo pra militar. E
sua vida não é só isso...
— Eu sei, vô. — Pego o celular, na tentativa de cortar o
assunto. — Eu só não quero que ninguém tire a minha voz.
— Vocês, jovens, têm muita energia pra gastar. Não julgo, eu
também gastava a minha assim, com as causas que eu defendia! —
Ele solta uma risada.
Desbloqueio a tela do celular e passo um olhar rápido pelas
notificações. Tem mensagem nova de Ciano.
— Ô, vô. — Penso que é o momento certo para questionar uma
coisa. Volto a olhar para seu Mário. — O senhor disse que também
gosta de homens...
— Sim, sou bissexual. — Ah, então ele é bi. — Gosto de
pessoas.
— E quando foi que o senhor descobriu que era bi? — Dou uma
espiada no celular, evitando sorrir feito boba com as notificações
que chegam.
— Eu sempre soube que me atraía por pessoas. Mas, na época
que eu era jovem, esses assuntos não eram discutidos assim. Então
eu simplesmente seguia minha vida. — Ele faz um gesto com a
mão, como se jogasse algo para trás. — Tínhamos outras questões
na época, era um movimento nascendo no meio da ditadura. E eu
realmente estava preocupado em me manter vivo. Imagina só: um
jovem preto resistindo aos militares. É difícil hoje, foi difícil ontem,
mas espero que não precise ser difícil amanhã. — Meu avô sorri de
um jeito nostálgico e triste. Os olhos dele, porém, têm um brilho
estranho. Talvez seja esperança. — Só fui me entender como
bissexual depois dos anos 1990, em uma conversa com sua avó.
Mas ela nunca gostou desse rótulo.
— Uai, por que não?
— Ela dizia que era algo que a limitava.
— E é?
— Não acho que minha sexualidade seja limitada por causa de
um rótulo. Rótulos são políticos. Você deve usá-los para se reunir
com pessoas iguais a você, para reivindicar direitos e debater sobre
dores em comum. Não para se diminuir.
— O senhor já fez parte de alguma comunidade assim, vô?
— No meio LGBT, especificamente, não. No meu tempo, era
tudo muito misturado. Eu fazia parte de um movimento que lutava
contra o silenciamento da população negra durante a ditadura. Mas
a luta pela liberdade não tinha apenas um rosto. Foi num encontro
de jovens ativistas que conheci sua avó. Ela namorava uma moça,
mas aí a moça arrumou outra moça. — Ele ri. — E a gente acabou
junto. Não sei o que aconteceu, não sei quando nos apaixonamos.
Naquela época acontecia tanta coisa, tanta gente ia e vinha, tantos
amigos nunca mais voltavam. — O olhar dele se perde no chão. —
Por isso que eu digo a você: una sua comunidade, ainda há muita
coisa a ser conquistada. Mas o mais importante é viver. — Ele dá
dois tapinhas no meu joelho e volta a escrever sua carta no
caderno.
Fico olhando para ele por um tempo. Sei o que quer dizer.
Pego o celular e resisto à vontade de apenas me perder no chat
com Ciano.
Mando uma última mensagem para Gio. Dessa vez é a última
de verdade, prometo para mim mesma.

Eu juro que consigo compreender por que você se afastou tanto


a ponto de não querer mais falar comigo. Demorei a entender, mas
entendo. Você quer viver, em paz de preferência. E quem sou eu
para julgar? Sei que você quer me proteger do mundo, sem precisar
me ver em discussões infinitas na internet sobre os direitos que a
gente nem conquistou e já querem tirar de nós. Sei que, se
pudesse, colocaria um pano florido sobre a grama e se sentaria
comigo, para me ouvir cantar pra meia dúzia de pessoas no parque.
Depois a gente comeria cachorros-quentes e voltaria pro hotel com
a mala cheia de livros, um ukulele e histórias pra contar e recontar.
Mas as coisas mudaram. Não somos mais duas pessoas anônimas
rodando pelos eventos literários e musicais do eixo Rio-São Paulo,
puxando leitores e ouvintes pelas mãos e oferecendo músicas e
poesias de graça. As pessoas me conhecem agora. Assim como já
te conheceram um dia. E eu sei que isso te assusta. Sei que você
não quer mais ter um rosto conhecido. Sei que tem medo de que
meu rosto se fira tanto quanto o seu. Mas, Gio, essa é a escolha
que eu fiz. E preciso de você aqui, só para estar do meu lado. Se
tudo der certo ou errado. Se depender de mim, não vou ser mais a
pessoa desconhecida, deitada na grama, invisível e indiferente. Mas
se eu for, que não seja sozinha. E se eu estiver em um palco,
cantando para um gramado com milhares de pessoas, que você
esteja lá, do meu lado, como sempre esteve.
Por favor, só fica.
Capítulo 6
Benditas azeitonas

Quando vim morar com meu avô, havia três coisas que eu não
sabia: que a quarentena duraria tanto, que seu Mário é bissexual e
que é possível virar a noite conversando com uma pessoa sobre
vários nadas.
Se eu soubesse que a conversa terminaria com Ciano dizendo
que está apaixonado por outra pessoa, talvez eu nem tivesse
respondido a DM dele em primeiro lugar. Foi um balde de água
gelada no meio da cara e não passo bem. Desde o meu último
namoro — que deu completamente errado —, jurei que não seria
trouxa. Fui trouxa.
Mas, ok, né? É só um crush de internet.
Durmo repetindo esse mantra. Parece até uma maldição, tenho
outro pesadelo. Dessa vez, estou em uma casa com três quartos.
Todos vazios. No maior, há uma garota, que nunca vi na vida, mas
que me parece estranhamente familiar, sentada em um canto. Ela
cobre o rosto com os braços e apoia o queixo nos joelhos. Acho que
está chorando, então me aproximo lentamente. Não quero assustá-
la. O que não adianta, porque alguém grita meu nome e a voz corta
o ar fazendo com que eu e moça nos sobressaltemos.
Acordo em um pulo.
— Cecília! — Meu avô está batendo na porta. — Cecília, você
esqueceu que hoje é dia de fazer as compras?
Resmungo e passo a mão pelo rosto.
— Que horas são? — Até quero me levantar, mas não tanto
assim.
— Já são onze.
— Nossa senhora, vô! — Eu pulo da cama, em um misto de
sonolência e alerta. Indisposta sim, mas pronta para sair correndo.
— Desculpa. Já tô indo.
— Tá bom. — A voz dele vai se afastando. — Fiz café.
Eu me arrumo depressa, visto qualquer coisa, escovo os dentes
de qualquer maneira e mal lavo o rosto.
— Come alguma coisa antes de sair, Cecília — meu avô alerta.
Sinto o cheiro de cebola no óleo e meu estômago ronca.
— Vou rapidão e já volto — digo, afobada, pegando a lista e a
carta sobre a mesa, colocando-as na bolsa e ajeitando a máscara
do jeito correto no rosto. Não consigo desacelerar. Pego as listas
dos vizinhos e deixo a carta que meu avô escreveu para Rosimar.
Vou praticamente correndo até o supermercado. Ainda estou
ligeiramente sobressaltada enquanto faço as compras, mas tento
me focar para não me confundir de novo. Vai que, sei lá, viro garota
de recados do prédio inteiro. Já estou desconfiada que meus
vizinhos de cima estão namorando, cada um da sua janela.
Aff, que coisa ridícula!
Reviro os olhos para o vidro de azeitonas que coloco no
carrinho.
Reviro os olhos para o leite. Para o café. Para o arroz. Para as
maçãs.
Quase puxo o celular para pesquisar: meu crush tem um crush
e não sou eu, o que fazer? Mas desisto. Não cheguei a esse ponto.
Tem treze mensagens não lidas de Ciano no meu celular. Queria ter
aquela força que a Cecília ideal teria para ignorá-las, apesar de
saber que não é culpa dele que eu tenha criado expectativas
completamente irreais durante nossas conversas. Como sou fraca,
paro ali mesmo, no meio do supermercado, e leio as mensagens.
Sorrio, lógico, mas deixo para responder só quando estiver em casa.
Termino de colocar as compras no carrinho, separando-as para
que eu não faça confusão. Antes de ir para o caixa, confiro lista por
lista, produto por produto. Presto o dobro de atenção enquanto
etiqueto as sacolas com meus post-its coloridos.
— Cê tá bem hoje, moça?
Noto que estou balançando a perna, inquieta.
— Tô sim. — Sorrio para ela, mas por trás da máscara. Não sei
se ela percebe meu sorriso, mas não insiste e volta a me ajudar a
embalar as compras.
Na última vez que me perguntou se eu estava bem, confundi as
sacolas. Então volto a conferir tudo, mais uma vez. A moça não fala
nada. Guardo os três comprovantes em suas respectivas bolsas e
vou embora.
Hoje, as sacolas estão um pouco mais pesadas que o costume.
Ou sou eu que estou mais fraca. Não deveria ter virado a noite
conversando na internet com o contatinho. Infelizmente, não dá para
voltar no tempo.
Ou dá?
Uma sensação estranha passa por mim. É como se eu já
tivesse vivido esse momento.
As sacolas deixam marcas vermelhas nos meus braços e mãos.
Tento caminhar mais rápido para chegar logo ao prédio. Meu peito
dói pela falta de ar, a respiração comprometida pela máscara e pelo
afobamento. Talvez minha pressão esteja caindo. Se eu desmaiar
na rua, minha mãe vai me matar. Olho em volta e me sinto boba por
ser praticamente a única a seguir as recomendações da
Organização Mundial da Saúde. A quarentena parece ter acabado
para todo mundo. O problema é que o vírus ainda está por aí, mais
disseminado que nunca. Tenho vontade de gritar com todo mundo
que vamos todos morrer.
O som agudo de uma buzina machuca meus ouvidos. Um carro
passa depressa por mim e freia de repente. No susto, dou um passo
para longe da rua. Uma das sacolas quase caí no chão, mas
consigo segurá-la bem no momento em que meu celular começa a
apitar descontroladamente no bolso. Meu coração martela dentro de
mim quando olho para trás, esperando ver aquele carro atropelar
alguém.
Mas não há ninguém ali para se atropelar.
Ninguém vem correndo no meio da rua, gritando meu nome.
Me vejo obrigada a escorar as costas na porta de uma das
poucas lojas fechadas da rua. Respiro fundo, coloco algumas
sacolas no chão e espero o caos dentro de mim se dissolver ou,
pelo menos, diminuir um pouco. Tenho medo de passar mal na
calçada. Seria um desastre.
Um senhor (que não deveria estar na rua) me oferece ajuda,
mas dispenso, com educação. Já estou melhor, então pego minhas
sacolas e sigo até o prédio.
Coloco as compras na frente da porta do 13b. A carta de três
folhas que meu avô escreveu (e eu nem tive tempo de ler) não está
mais lá. Em seu lugar, há uma folha solitária, dobrada com cuidado.
Eu a pego, toco a campainha e começo a me afastar, mas paro no
meio do caminho quando meu celular vibra de novo no bolso. Tenho
quase certeza de que é Ciano falando do crush. Reviro os olhos
antes de abrir o aplicativo e meu corpo pesa tanto que quase me
sento no chão. Tem várias mensagens de Ciano, sim. Mas é outra
que faz meu coração entrar em desespero.
Abro, sem pensar muito no que estou fazendo.

Penso naquelas azeitonas quase todos os dias. Lembro quando


bati minha cara na porta de vidro do hotel. Lembro de a ansiedade
por estar perto de tanta gente ter me apavorado e me feito desistir
de vender meu livro para as pessoas na Bienal. Lembro que você
ficou deitada do meu lado uma tarde inteira, enquanto eu só chorava
por ser um fracasso. Eu me lembro. Tudo era tão mais fácil, né?
Antes de o medo que eu sentia por mim ser transferido para você.
Eu me expus na internet desde os 12 anos, e ambos sabemos as
consequências que isso teve na minha vida. Então, você tem razão,
me apavorei por ter uma amiga famosa. Parte de mim ainda quer
fugir, não quer ter uma amiga que posta um “a” e tem milhares de
likes... Mas parte de mim acredita que podemos fazer alguma
diferença no mundo (o que não quer dizer que apoio suas
discussões de twitter). Ah, e ouvi a música que você me mandou.
Ouço todos os dias. Queria dizer que também fiz algo para você: um
livro de poemas. Eu quero ficar, Cecília, mesmo sabendo que vamos
brigar mais que qualquer outra coisa.
P.S.: Ficar longe do WhatsApp faz parte do meu processo de
recuperação. Não consegui deletar todas as redes, mas um dia vou
fazer isso. Por que você é tão apressada? Só sumi daqui por quatro
meses!

— Aff, que idiota! — Seco uma lágrima.


Ouço o barulho de chaves e me viro para trás. Droga! A pessoa
do 13b está abrindo a porta. O que faço? Me escondo? Ou eu posso
ficar aqui e dizer “oi”... mas aí acabaria todo o mistério. Não quero
atrapalhar o esquema do meu avô. É o que o deixa feliz nesse
período em que precisamos encontrar alegria nas coisas mais
bobas.
Com as sacolas balançando nos braços e o celular na mão, eu
corro e me escondo atrás da interseção entre o corredor e a área
dos elevadores. Sem querer, quando estou virando para me
esconder melhor, a pessoa do 13b abre a porta. Desvio rápido o
olhar e me escondo, mas é tarde. Agora eu sei quem é, o mistério
para mim acabou.
Olho para as sacolas nos meus braços. Uma delas guarda um
pote com azeitonas. Eu me lembro de quando quebrei um vidro
parecido com esse, lá na porta do hotel no Rio. Lembro o quanto
fiquei arrasada porque realmente queria comer aquelas benditas
azeitonas. O vidro quebrado tinha estragado tudo. Tomo um cuidado
extra agora para não quebrar o pote e estragar as azeitonas do meu
avô.
O celular vibra com as notificações do Twitter, mas as ignoro.
Olho de novo a mensagem de Gio. Nenhum de nós fala sobre o
motivo de eu ter saído completamente aérea do carro, tropeçado e
deixado a sacola cair.
Mas eu lembro.
— Não gosto só de meninas — eu dissera, segundos antes de o
carro parar e eu saltar dele, apavorada por ter saído do meu
segundo armário. Quem dera tivesse sido o último.
Então, enquanto eu corria meio desesperada, a sacola caiu.
Eu me abaixei para catar as azeitonas, repetindo que ainda tinha
salvação como se aquilo fosse um mantra.
— Tá tudo bem, Cecília. — Gio se agachou ao meu lado. — Tá
tudo bem gostar de pessoas. — Segurou meu braço, me impedindo
de continuar a tentar catar as azeitonas no meio de cacos de vidro e
me fazendo olhar para elu. — É só um pote.
É, penso.
É só um pote.
Ouça as músicas de Cecília e o armário.
As razões de Henrique
Edição e revisão: Clara Alves
Para Alan

Por três motivos:

1- Você foi a primeira pessoa a apontar problemas na construção


do Henrique como bissexual. Se esse personagem ganhou páginas
próprias, a culpa é sua.

2- Ao entender o Henrique, acabei compreendendo a mim


mesma, nomeando aquilo o que eu sou. Se esta autora hoje
escreve que é bissexual na biografia dela, a culpa é sua.

3- Foi você que, através de O amor está no ar (que nos


aproximou mais do que qualquer outra coisa), me fez enxergar que
meu caminho era na literatura LGBTQIA+. Se hoje escrevo o que
escrevo, se sou o que sou, a culpa é sua.

Você disse que o Henrique é a pessoa que você gostaria de ser.


Acho uma tremenda bobagem, porque eu te amo do jeitinho que
você é.

Todas as páginas do Henrique são suas


Capítulo 1
Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas

A luz do quarto se apagou de repente. Droga, o garoto pensou,


batendo no caderno onde escrevia uma canção.
— Miséria de luz! — praguejou baixinho, temendo acordar as
irmãs e a mãe.
Ele não podia parar de escrever, senão esqueceria a música
que veio à sua cabeça no exato momento em que se deitou na
cama. Era sempre assim, já estava até acostumado a ignorar as
melodias que nasciam sempre que aquietava um pouco a mente.
Mas aquela era boa demais para ser deixada ao esquecimento.
Ele pensou em se levantar e ir escrever na sala, onde,
provavelmente, a lâmpada estaria funcionando — a não ser que a
energia da cidade inteira tivesse acabado.
— Será possível?
O garoto correu para olhar pela janela. Para o seu azar, o breu
cobria toda a rua. Chuva, ele notou quando um relâmpago iluminou
a noite. Como não havia escutado os trovões? Estava tão imerso
naquela melodia que nem tinha se dado conta de que um temporal
havia se aproximado.
— A tempestade é da cor dos seus olhos… Não, alguém já
escreveu isso… Quem foi? — perguntou a si mesmo enquanto
caminhava até a cozinha, com o passo mais leve que conseguia dar.
Tinha que achar uma vela. — Ah, Legião. Droga, Renato, você já
teve todas as boas ideias.
Ele parou à entrada do cômodo e olhou ao redor. Lembrou-se
de que a mãe costumava guardar a caixa sobre a geladeira. Foi até
lá e encontrou a embalagem vazia.
Em meio àquela escuridão, um raio caiu, iluminando o
ambiente. Logo em seguida, o barulho do trovão, vindo lá de fora,
retumbou pelo cômodo. Depois, outro clarão e outro e outro.
— Ah, menino! Olha só… — sussurrou para si mesmo. Foi
correndo até o quarto, pegou o caderno sobre a cama e se sentou
no chão, embaixo da janela, com as cortinas abertas. Repassava a
melodia na cabeça enquanto o breu tomava conta e aproveitava a
luz do relâmpago para escrever as frases que compunha.
Escuridão, melodia. Luz, letra.
Uma não existe sem a outra.

— Henrique? — Ouviu a voz de uma garota chamá-lo baixinho.


Antes que tivesse forças para abrir os olhos, as mãos dela
sacudiram seus ombros.
— Ai, que foi, Vanessa?
— Cê dormiu aí, seu idiota?
— Hã?
— Cê dormiu no chão? Levanta daí, antes que a mãe veja.
Anda.
Ele obedeceu à irmã, ainda desnorteado, mas, ao ver a cama,
inclinou o corpo para cair sobre ela.
— Nem sonha em deitar nessa cama. Olha a hora que já é! —
Vanessa o puxou pelo braço. — Você tem que ir pra escola hoje.
— Mas a chuva…
— Não foi o fim do mundo, não, Henrique! — Ela o empurrou
até o banheiro. — Toma um banho, escova os dentes, porque hoje é
o seu primeiro dia de aula. Caso tenha esquecido.
— Vanessa! — Uma mulher gritou de outro cômodo. — A
energia ainda não voltou.
— Se fodeu! — A garota riu, antes de fechar a porta do
banheiro. — Vai ter que tomar banho gelado.
Henrique não respondeu, ainda nem havia acordado direito, mal
se recordava por que tinha dormido no chão do quarto. A água fria
seria boa para acordá-lo, para trazer de volta as memórias da noite
anterior. Enquanto as gotas caíam, ele se lembrou de sentar
embaixo da janela para escrever uma música, recordou alguns
trechos desconexos e partes da melodia e pediu aos céus que
tivesse anotado tudo.
Ao sair do banheiro, deu de cara com uma mulher de cabelos
castanhos e alisados e olhar impaciente. Ela o aguardava.
— Espero que não tenha problemas nessa escola também —
ameaçou com os braços cruzados. — É a única da cidade. Então
tenta, por favor, não pular o muro sem querer para namorar
escondido de novo.
Ele queria dizer a ela que nunca tinha feito aquilo. Queria dizer
que, na verdade, estava fugindo das perseguições dos colegas das
outras escolas onde havia estudado. Mas não disse. De qualquer
forma, dessa vez, Henrique desejava fazer diferente. Não aguentava
mais ser chamado de “viadinho”, “boiola”, “bicha”. Não iria dar
motivos para que ninguém o chamasse assim.
Como se isso estivesse mesmo em suas mãos.
— Vou tentar, mãe.
— Acho bom. — Ela ficou na ponta dos pés e deu um beijinho
na testa do filho. — Termina de se arrumar logo e vem almoçar. Não
quero atrasos — avisou, antes de se retirar para a cozinha.
Foi nesse momento que o garoto se deu conta de que havia
dormido mais do que a cama — ou que o chão, no caso. Odiava
quando isso acontecia. Detestava perder tempo. Sabia que o relógio
andava rápido demais. Sentia como se estivesse sendo levado pela
correnteza de um rio; cada vez mais veloz, nunca parando. Onde
será que sua enxurrada terminaria? Em que ponto estaria seu
oceano? Em que momento suas águas lamacentas encontrariam a
vastidão do mar? Em qual segundo, entre seus milhões de
segundos, desaguaria?
Henrique não queria perder ainda mais tempo pensando em
bobagens existenciais, então caminhou até o local onde havia
dormido, pegou o caderno no chão e analisou a canção, escrita com
uma letra desleixada. Mal conseguia compreender as próprias
palavras e acabou sendo forçado a buscá-las na memória. Era uma
música sobre mudanças. No começo, o garoto até tinha tentado
escrever sobre o amor, mas o recente divórcio dos pais e o fato de
ele nunca ter se apaixonado o fizeram mudar o foco.
A separação dos pais é um acontecimento traumático para a
maioria das pessoas. Para Henrique não. Sentia-se aliviado. Não
conseguia entender por que duas pessoas, infelizes juntas, fariam
tanto esforço para manter algo que já havia dado errado. Fracasso é
não saber a hora certa de desistir, o momento oportuno para
abandonar o barco e começar a nadar. Ninguém é obrigado a
afundar junto com um relacionamento.
Isso não significava, é claro, que essa mudança não tivesse
impacto sobre sua vida.
Examinou a letra da música mais uma vez, conseguindo
identificar melhor as palavras agora que se lembrava do tema.
Tentou avaliar se tinha valido mesmo a pena perder uma noite
inteira de sono por ela.
Não tinha.
Terminou de se arrumar, almoçou depressa, colocou a mochila
nas costas e saiu para a escola, com uma certa expectativa. Não
gostava muito do ambiente escolar — não tinha paciência para ouvir
professores muito lentos, mas lhe agradava aprender coisas novas.
Não que fosse inteligente para os padrões e cobranças escolares; é
que o negócio dele era a arte. Via na expressão artística a chance
de escapar um pouquinho, de atingir o outro, de mudar o mundo.
De transformar a si mesmo.
A fachada da escola foi sua primeira decepção. Que lugarzinho
caindo aos pedaços! O interior foi a decepção seguinte. Esperava
que, pelo menos, fizesse algum amigo ali. Não costumava ter
dificuldade de se aproximar dos outros alunos. O problema era que,
uma vez que as pessoas começavam a conhecê-lo melhor, seu jeito
livre e desbocado ia afastando, lentamente, cada uma delas.
Você é mau, Henrique, uma voz fina disse em sua cabeça. A
quem pertencia? Não sabia. Talvez fosse uma mistura das vozes
que já haviam lhe dito aquela mesma frase. Elas tinham razão? Não
importava mais. Era hora de recomeçar, de crescer, de deixar para
trás.
Estudou o pátio, que ficava bem no meio da escola, dividindo
todo o restante do prédio. Observou as portas, localizadas nos
pavimentos que cercavam a área, e até pensou em contá-las, mas
ficou com preguiça. Analisou os colegas, sentiu que dificilmente se
encaixaria ali, nem mesmo se usasse toda a sua alta capacidade de
comunicação.
— Oi — ele chamou uma garota de cabelos castanhos,
amarrados, vestida com o uniforme todo branco, exceto pelo brasão
azul, pintado na altura do peito esquerdo. Que coisa horrorosa!,
pensou, encarando o símbolo redondo que parecia ter sido
carimbado ali.
A garota, impaciente, olhou para ele, avaliando as roupas que o
garoto usava. Não era o uniforme da escola.
— Você sabe me dizer onde fica a sala do primeiro ano? —
perguntou, gentil e sorridente, como sempre.
— Fica lá, ó. — Ela apontou para a última porta, do lado direito.
— Obrigado. — Henrique nem tentou puxar assunto com a
garota. — Cara feia, pra mim, é fome! — resmungou baixinho, ao
passar por ela e seguir em direção à porta indicada.
Caminhou com a mesma pressa com que vivia, quase
tropeçando nas próprias pernas, longas e finas. Passou pela porta,
pintada com uma tinta cinza gasta e desbotada, e entrou na sala. Lá
dentro, havia apenas uma pessoa. A garota magra, de longos
cabelos cacheados e pele negra, estava em pé organizando seu
material sobre uma das mesas, quando olhou para ele com
curiosidade e sorriu.
— Você é o garoto novo?
Henrique se perguntou como ela poderia saber.
— Sou.
— Eu sou a Malu — ela se apresentou, caminhando na direção
do rapaz. — Bem que minha mãe me falou que a gente teria um
novato.
— Sua mãe?
— Sim, ela é a diretora — explicou, como se aquilo não fosse
importante.
— Ixi, então é melhor eu ficar bem longe de você — brincou, se
afastando da menina e escolhendo uma carteira no fundo da sala.
Colocou a mochila sobre a mesa e olhou de soslaio para a garota.
— Meu filho, a melhor coisa que você faz é ser meu amigo. Vai
por mim… — Com um sorriso, Malu pegou suas coisas e colocou
sobre a mesa ao lado da dele. — E você, por um acaso, tem nome?
Ele sorriu.
— Tenho. É Henrique.
— Então, Henrique, preparado para viver altas aventuras nessa
cidade badalada? — ela debochou.
— Preparadíssimo — ele respondeu com o mesmo tom,
sentando-se na cadeira. Nunca havia sido acolhido em escola
nenhuma antes, nem tinha passado por sua cabeça a possibilidade
de que ali ele pudesse se sentir bem. Mas ele se sentiu, assim que
Malu se sentou na cadeira do lado dele.
— E você, o que tem pra me contar sobre sua vida? — Malu
perguntou para ele, mas olhava para os colegas que entravam na
sala.
— Ah, nada de muito interessante. Canto, toco violão…
— Sério? Que legal, minha irmã também!
Henrique ficou curioso com a maneira como os olhos de Malu
brilharam ao falar da irmã.
— É mesmo? Como ela se chama? — Desviou o olhar para um
buraco enorme na parede sobre o quadro verde-escuro. O
murmurinho dos colegas chegando, rindo e conversando alto, cobriu
a resposta de Malu. — Como? — Ele aproximou o rosto do dela.
— Cris.
Capítulo 2
Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira

Durante as primeiras semanas em Santa Maria Madalena,


Henrique até havia tentado se aproximar de outras pessoas na
escola, mas elas não eram tão acolhedoras como Malu.
Foi na igreja onde conseguiu interagir com um grupo maior de
pessoas. Henrique gostava de falar sobre música, conhecer bandas
novas, aprender sobre os artistas dos quais gostava e até os que
não lhe agradavam muito. Havia crescido naquele ambiente, porque
seu pai sempre o levava às missas, e ele gostava de ir, gostava de
participar, gostava de ouvir os hinos sendo cantados.
Logo se juntou aos meninos do grupo de jovens e montaram
um ministério de música. Ainda que o padre exigisse que só
tocassem música cristã como as do Padre Zezinho (que ele gostava
bastante, apesar de não admitir), era ali onde Henrique se sentia
mais à vontade, onde podia ser e se conectar com algo maior do
que a própria existência.
A morte sempre foi um mistério que o garoto não queria
encarar. Não gostava de imaginar o quão pequeno era o tempo das
pessoas na Terra, nem de refletir sobre a pequenez de cada ser
perante o mundo. Ao mesmo tempo, julgava cada ser humano como
gigantesco, único e insubstituível. Via a si mesmo como infinito
demais para caber dentro de um tempo limitado.
Talvez por isso se agarrasse tanto à religião. Via em Cristo a
oportunidade de estender sua vida, sua importância. Encontrava na
igreja o remanso para sua pressa. Quando estava ali, não corria.
Sentia-se expandido, parte de algo maior do que o próprio infinito
individual que era, sentia-se completo.
Isso até conhecer Rodrigo no Retiro de Oração Jovem, o
primeiro encontro religioso do qual Henrique havia participado em
Santa Má. Depois daquele dia, nunca mais se sentiu
verdadeiramente em paz dentro da igreja.
Henrique tinha ficado tão ansioso porque aquela seria a
primeira vez que tocaria para mais pessoas. Antes, seu maior
público havia sido na festa de formatura de sua turma da oitava
série. Agora, se apresentaria para jovens católicos de toda a região.
Os clássicos louvores animados e as músicas dos Cantores de
Deus e Anjos de Resgate já estavam na ponta da língua quando ele
subiu no palco do ROJ. Escondido atrás da imitação de Les Paul
vermelha e laranja da igreja de Santa Maria Madalena, com as
mãos suando e o coração acelerado, o garoto podia ser quem era,
fazer o que amava.
No meio da multidão, de frente para o palco improvisado, os
olhos pretos de Rodrigo estudavam Henrique, presos nele,
incapazes de se perder em outra direção. Era impossível não notar
a fixação do rapaz. De cima do palco, Henrique o viu, um garoto
negro, de cabelos raspados e um sorriso tão aberto que parecia
iluminar ainda mais o ambiente. No meio da capela de “Iguais”, do
Cantores de Deus, notou que Rodrigo não cantava e se pegou
esquecendo de cantar também.
Tentou lutar contra a vontade repentina de se aproximar do
rapaz e perguntar se ele havia perdido algo ali, porém temeu que a
resposta fosse “sim”. Não estava pronto para lidar com aquilo que
tentava esconder.
Henrique sempre soube que gostava de meninos, mas, quando
era pré-adolescente, pensava ser normal gostar tanto do melhor
amigo. Era natural. Até que os colegas da escola começaram a
chamá-los de “bichas”. Foi quando Afonso se afastou, deixando
Henrique completamente perdido.
Foi a primeira escola da qual o garoto foi expulso. Não a última.
Sempre que alguém começava a implicar com seu jeito, com sua
tendência a fazer amizade com meninas, com sua impaciência para
ouvir os assuntos dos meninos, Henrique dava um jeito de infringir
as regras e ser punido. Para a sua sorte, a mãe sempre conseguia
um colégio novo e ele nunca repetiu um ano letivo sequer.
Quando soube que Débora havia conseguido um emprego no
interior, após a separação, Henrique teve medo de ser, mais uma
vez, perseguido pelos colegas de escola. Mas, no fundo de seu
coração, esperava que em Santa Má sua sorte fosse outra.
No fim da apresentação, desceu do palco e tentou se misturar à
multidão, mentindo para si ao dizer que seu instinto o traíra, que o
garoto não o estava encarando de forma estranha. Mas não tinha
certeza se acreditava na própria ilusão. Começou a se sentir
sufocado ali, então caminhou para longe das pessoas, até o local
onde ficavam os alojamentos dos jovens.
Para a sua sorte, todos estavam participando das atividades no
grande salão onde o show acabara de acontecer e não havia
ninguém ali, na calmaria dos colchões espalhados pelo chão do
alojamento dos meninos. Deitou-se no colchonete que tinha levado,
fechou os olhos e pensou em João 15:12.
Que vos ameis uns aos outros…
— Você deveria cantar mais — uma voz grave falou. Henrique
abriu os olhos e encarou o rapaz negro e alto, em pé perto da porta.
Os cabelos dele eram curtinhos, como se tivessem sido raspados e
começassem a crescer. — Seu tom é bonito, rouco. A melhor parte
do show foi quando você cantou.
— Obrigado — limitou-se a dizer. Não queria muito assunto
com aquele sujeito. Algumas portas não deveriam ser abertas.
— Meu nome é Rodrigo. — O outro tentou iniciar a conversa, se
aproximando do lugar onde Henrique estava, ao ver que sua
primeira tentativa não havia surtido efeito algum.
— Henrique. — Ele se sentou no colchão e estendeu a mão
para cumprimentar o rapaz. Em seguida, tornou a se deitar.
— Por que você veio pra cá? — Rodrigo se sentou no
colchonete ao lado do de Henrique.
— Pra ficar sozinho — respondeu, ríspido demais.
— Posso ficar sozinho com você?
Henrique não conseguiu segurar o sorriso.
— Uma coisa elimina a outra, Rodrigo.
— É claro que não. Nós estamos aqui e estamos sozinhos. —
Ele abriu um sorriso enorme. Henrique não disse nada, apenas ficou
observando o rapaz se deitar. — Espero que o dono do colchonete
não se incomode.
Eu também espero, respondeu aquela voz dentro de Henrique.
Aquela que ele não podia permitir que escapasse. Mas estava tão
cansado de reprimi-la. Às vezes, tudo que queria fazer era gritar até
que extravasasse toda a frustração que sentia.
Uma outra voz, que costumava controlá-lo, ecoou dentro dele:
Levante-se daí, Henrique. Volte para o louvor. Você sabe no que vai
dar se ficar aí deitado ao lado desse rapaz. Levante-se.
Era estranho como aquela voz aguda era familiar, como se
ouvisse a própria mãe falando, como se a ouvisse reproduzindo o
eco da sociedade.
— Eu também — ele deixou escapar, e viu um sorriso quase
minúsculo se abrir na boca de Rodrigo.
Capítulo 3
Acho que estou gostando de alguém

Henrique não conseguia tirar Rodrigo da cabeça, pensava no


garoto o tempo todo. Ouvia a voz rouca dele rindo e ficava
repassando na mente todos os detalhes do dia em que o conheceu.
E depois desses pensamentos, vinha a culpa. A culpa por sentir o
que sabia que não deveria estar sentindo.
— Ei, Henrique! — Ouviu a voz de Malu o chamar baixinho.
Olhou para o lado esquerdo e viu o olhar de desaprovação da
garota preso nele. — Você me ouviu?
— Não.
Malu revirou os olhos.
— Eu falei das músicas da nossa apresentação na semana que
vem. Você já aprendeu todas? — perguntou, sussurrando para não
chamar a atenção do professor. Não que ela precisasse, porque os
burburinhos dos colegas em conversas paralelas, sem dar atenção
ao que o homem dizia, fazia com que fosse quase impossível que
ele a ouvisse.
— Já — Henrique mentiu, esfregando uma mão na outra, em
um gesto impulsivo, e tentando se lembrar onde havia anotado os
nomes das músicas que ele, Malu e mais dois colegas tocariam na
festa da escola.
— Amanhã de manhã nós vamos ensaiar lá em casa.
— De manhã? Por que não à noite? — Ele bateu, de forma
nervosa, o lápis no caderno.
— Porque de manhã não tem ninguém em casa.
— Sua irmã não vai estar?
— Pra que você quer saber?
— Nossa! — O garoto fingiu indignação.
— Sério, Henrique! Minha irmã tem doze anos! — ela protestou,
nervosa, tentando manter a voz baixa.
— E eu tenho quinze! Não precisa dessa paranoia toda, só
quero trocar umas ideias com ela sobre música. Não sei se você
reparou, mas não tem muitos músicos de verdade da nossa idade
por aí…
— E eu e os meninos não somos músicos de verdade?
— Vocês só cantam… e bem mais ou menos. Tô falando de
gente que entende mesmo de música.
Ela revirou os olhos.
— A Cris não tem a nossa idade.
— Você entendeu o que eu quis dizer…
Malu o encarou por alguns segundos e se afastou um pouco,
olhando para o professor que escrevia no quadro um conteúdo que
poucos ali escreveriam no caderno. Depois se voltou para Henrique
novamente.
— Não. Ela não vai estar em casa. A Cris estuda de manhã.
— Ok, então. Que horas?
— Oito.
— Puta que pariu — protestou, voltando o olhar para o caderno,
onde ele mesmo não havia anotado nada. Vou ter que aprender
cinco músicas de hoje para amanhã. Tô lascado! — A Dona
Desgraça não vai estar, né?
Malu deu um tapa no ombro do amigo.
— É minha mãe!
— Todo mundo chama ela assim!
Ela revirou os olhos de novo.
— Não vai estar.
O garoto não sabia o que era pior: acordar cedo, tentar
aprender as canções de maneira convincente, ou ter que aturar a
cara de Marcelo e Renata, os melhores amigos de Malu, logo de
manhã. Mas aprendeu as músicas mesmo assim, acordou cedo,
aturou os garotos e não conheceu Cris.

— Já te disse que o Reginaldo não será capaz de me abalar,


Malu.
Henrique caminhava pelo pátio da escola, com a mochila
jogada no ombro. Despreocupado, como sempre. Era o dia da
apresentação na escola, durante o horário das aulas finais, e
Henrique já estava com as músicas na ponta da língua.
— Mas se você não socar a cara dele, ele vai continuar te
chamando de, você sabe… — Ela aproximou os lábios do ouvido do
garoto e sussurrou: — Boiola.
— Boiola é tão old fashion, Malu! — ele respondeu, ainda
despreocupado. — E eu não vou socar a cara de ninguém. Gente
como o Reginaldo apanha da vida, mais cedo ou mais tarde.
— Vai nessa… — Ela chegou até a porta da sala, parou, se
virou e encarou Henrique, com a testa franzida. — Cê não esqueceu
nada, não?
— Ai, droga, o violão!
— Só não perde a cabeça porque ela está agarrada no
pescoço, né? Por Deus…
— Ah, como eu sou burro! — Ele bateu a mão na testa. —
Burro!
— Vai na sua casa buscar. Não é tão longe! — Malu o
empurrou de leve. Mas ele ainda estava parado, olhando para ela.
— Vai.
Então ele foi caminhando pelo pátio, em direção à saída da
escola.
Na rua, correu.
Assim como a vida, Henrique também tinha pressa. Não
gostava de esperar por nada. Não achava que o tempo era amigo
de ninguém. De fato, não era. O garoto sabia que, assim como ele
naquele momento, a areia da ampulheta de sua vida também corria.
Para baixo. Cada vez mais veloz.
Em casa, encontrou Vanessa deitada no sofá, assistindo ao
SBT.
— Fugiu da escola? De novo, Henrique? — ela perguntou.
— Não, palhaça! Vim aqui pegar meu violão.
— Vai ficar tocando violão na aula outra vez? Se a sua
professora de inglês reclamar com a mãe de novo…
— Tem apresentação hoje, Nessa. Me deixa!
— Só quero o seu bem, Henrique! A mãe vem falar é na minha
cabeça.
— Se você arrumasse um serviço, ela não te encheria tanto…
— declarou, com um sorriso maldoso, e saiu correndo da sala.
— Eu vou dar na sua cara, moleque! Volta aqui! — Mas ela não
se levantou. Estava com preguiça demais para se dar ao trabalho.
— Me respeita que eu troquei suas fraldas! — reclamou quando o
garoto voltou a aparecer na sala, agora com o violão preto nas
mãos.
Não trocou, não.
— Cola lá, Nessa. Vai ser legal!
— Tá, vou pensar no seu caso.
Ele respondeu soltando um beijinho no ar e fechou a porta
metálica da casa simples, onde morava com a mãe e duas das três
irmãs mais velhas. Vanessa era sua preferida. A mais velha dos
quatro irmãos foi quem praticamente criou o garoto. Henrique
arriscaria dizer que foi a primeira pessoa que amou, antes mesmo
da mãe, tão ausente e tão trabalhadora.
Foi seguindo pela rua, em direção à escola. Quando chegou,
Malu já estava no pátio, esperando por ele perto da entrada.
— Me faz um favor?
— Faço, uai.
— Senta aí e espera minha irmã — pediu, apontando para a
escadinha de três degraus que dava acesso a algumas salas da
administração da escola. — Eu tenho uns trem pra resolver. O
pessoal já começou a chegar. — Ela estava afobada.
— Quer ajuda?
— Quero, uai. Estou pedindo pra você ficar aí esperando minha
irmã.
Henrique não entendeu o motivo daquela preocupação com
Cris. Por que razão alguém deveria esperar por ela? A garota podia
muito bem fazer como todos os outros convidados: se virar sozinha.
— Pra quê?
— Ela tem doze anos, Henrique! — disse, em um tom de alerta.
— Tem muitos meninos mais velhos aqui… — Ela o encarou,
apertando os olhos.
— E daí? Você fala como se ela fosse um bebê que precisa de
atenção o tempo inteiro… Para de ser tão superprotetora! — Ele
deu um chutinho no ar, pensando se aquele seria um bom momento
para confessar à amiga que achava que não gostava de meninas.
Não se preocupe, não sou um risco para a sua irmã três anos mais
nova que eu…
Não disse nada, apenas observou Malu revirar os olhos e sumir
pátio afora.
Ele se sentou no terceiro e último andar da escadinha.
Deixando-se levar pelos pensamentos, pegou o violão e dedilhou
uma melodia da Legião Urbana. Já há algum tempo queria entender
por que era diferente. Tinha certeza que a mãe não aceitaria muito
bem aquela ideia de ele gostar de meninos. Nem ele mesmo
aceitava. A igreja não aceitava. A sociedade não aceitava. Ninguém
aceitava.
Só Vanessa o apoiaria, ele tinha certeza. Talvez Malu também.
Ela era uma boa amiga, tinha a mente aberta, era até um pouco fora
da casinha demais. Mas não sabia se a aceitação delas seria o
suficiente.
A briga interna que tinha consigo mesmo não queria calar. Por
mais que negasse, sabia, tinha certeza, que a maneira como olhava
e como se sentia quando via alguns garotos era totalmente diferente
do normal. Não era para ele querer aquelas coisas.
Por que nenhuma garota mexia com ele daquele jeito?
Malu, por exemplo, era legal, bonita, mas faltava alguma coisa
nela. Já havia, sim, pensado em outras garotas como mais que
amigas, mas nada que mexesse com ele como alguns garotos
mexeram. Por outro lado, jamais gostou de ninguém de verdade.
Não daquele jeito.
Só Rodrigo. Naquele dia. Naquele encontro do grupo de jovens.
As vozes foram aumentando de intensidade, enquanto os
colegas passavam por ele indo se juntar a outras pessoas no pátio.
Já estava ficando tarde; Julinho, o porteiro, já havia fechado o
portão, quando alguém bateu quatro vezes e chamou por ele.
O homem abriu um sorriso para a garota que entrava e a
chamou pelo nome. Ela também sorria, não só com a boca, mas
com os olhos, com o corpo inteiro. O cabelo amarrado de qualquer
maneira, o uniforme branco de quem teve preguiça de trocar de
roupa ao chegar em casa. A menina não tinha feito questão
nenhuma de se arrumar para aquele evento. Henrique não sabia o
porquê, mas gostava daquilo.
Gostou dela.
Mas foi quando Cris levantou a cabeça e seus olhos castanhos
se encontraram com os dele que Henrique teve certeza: ela
brilhava.
Como aquilo era possível? Ele ficaria a vida inteira tentando
achar uma explicação e não teria sucesso.
A verdade é que, mesmo com aquela pele negra, muitos tons
acima da dele e da de Malu, Cris era luz.
Ele caminhou até ela.
— Você é a irmã da Malu?
— Sou.
Ele sorriu e a menina também. Um sorriso que iluminava tudo
ao redor: os olhos, o formato da bochecha. O rosto dela inteiro
sorria.
— Ela me pediu pra esperar você aqui. — Henrique começou a
andar, como quem pede para ser seguido. — Você toca também,
né? Malu me disse.
— Sim — respondeu, sem estender o assunto.
— Que legal! E você gosta de quê?
— Rock.
— Hum! Eu também. Na verdade, gosto de tudo. Tudo mesmo.
— Oi! — Malu gritou, correndo do outro lado do pátio ao avistá-
los. — Ah, Cris, esse é o Henrique — ela apresentou, ofegante.
— Nome legal — a menina comentou, sem emoção.
— Eu ainda tenho que ajeitar algumas coisas, então vou deixar
você com a Cris, Henrique. Mas, olha aqui, garoto. Você não
coloque seus olhos de hiena sobre a minha irmã, viu? Ou arranco
teu pescoço!
Henrique ficou sem reação. Sentiu uma vergonha praticamente
inédita.
— Não preciso da sua supervisão, Malu. — Cris revirou os
olhos e, por um breve segundo, ficou extremamente parecida com a
irmã. — E ele não precisa ficar me fazendo companhia, o Pedro
estuda à tarde. Vou me encontrar com ele…
— A mãe não gosta que você ande com esse menino.
— A mãe não gosta que eu saia de casa sozinha, e saí mesmo
assim para vir aqui ver essa sua apresentação…
Henrique sentiu vontade de rir com a resposta direta que a
menina deu à irmã.
— Ah, que seja! — a mais velha resmungou, antes de virar as
costas e sair com pressa pelo pátio.
Henrique observou a amiga se afastar, reparando em como ela
e Cris eram diferentes. A mais nova era mais escura, tinha os olhos
mais claros e era mais gorda que Malu. No entanto, para o garoto,
mesmo com poucas semelhanças, era como se já conhecesse
aquela menina. Sentiu-se à vontade ao lado dela. Não conseguia
compreender o motivo.
— Sua irmã fala tanto de você que pensei até que te conhecia.
Desculpa não ter me apresentado — o garoto disse, por fim.
— Ah, não tem problema. — Pela primeira vez, a voz da garota
soou suave.
— Você canta? Tem uma voz boa.
— Canto, mas não em público.
— A banda lá da igreja está precisando de uma menina que
cante bem…
— É aquele ministério novo?
— Sim! — ele respondeu, sorrindo orgulhoso.
— É… Está mesmo!
— Nossa, você é bem sincera! — Henrique soltou uma
gargalhada.
— Desculpa. — Cris sorriu, constrangida. — É que domingo
passado estava terrível…
— Eu sei — admitiu. — Mas você viu nossa apresentação no
ROJ?
— Ah, eu não fui. Sou muito nova. — Ela revirou os olhos.
— Lá estava legal…
Cris olhou para o garoto de soslaio, desconfiada.
— É sério! — ele continuou. — Mas eu sei que o grupo não
está lá muito bom…
— E você, não canta?
— Até canto. Mas prefiro tocar guitarra. — Henrique caminhou
até uma pilastra, se escorou ali, ajeitou o violão e tocou algumas
notas. — Vamos fazer um teste? Conhece Legião? — Nem esperou
a menina responder, já começou a tocar “Tempo Perdido”.
— Fá.
— Quê?
— Eu não canto essa música em dó, canto em fá.
— Ah! — Ele corrigiu, tocando a sequência das notas no tom da
menina.
— Todos os dias quando acordo — Cris cantou com a voz forte
e, ao mesmo tempo, suave. Henrique arregalou os olhos, em
surpresa. — Não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito
tempo…
— Temos todo o tempo do mundo… — O garoto fez a segunda
voz. E ela sorriu.
Em todos os seus quinze anos, Henrique nunca havia sentido o
coração bater tão forte no peito.
O que diabos estava acontecendo?
Capítulo 4
Será só imaginação?

Cris era a garota mais incrível do mundo! Inteligente, sincera,


bonita, talentosa, divertida. Era impossível conhecê-la e não se
encantar por ela. Henrique ficou horas acompanhando a garota
durante o evento na escola e não foi porque Malu havia dito para ele
fazer aquilo, foi porque ele quis, porque não conseguiu se
desprender dela.
A mente do garoto virou um nó. Nunca havia sentido nada
parecido por uma menina e agora estava ali, grudado em Cris o dia
inteiro, indo para onde ela ia, conversando com quem ela
conversava. Até a hora da apresentação de Henrique, ficaram
juntos.
Minha irmã tem doze anos!
— Eu sei! — disse para a Malu imaginária, enquanto a real
entregava o setlist da apresentação para os colegas.
Ele também era muito novo; jovem demais para compreender
aquele peso que carregava dentro de si. Só sabia sentir e sentia
demais.
Mas, afinal, o que ele estava sentindo? Era só uma vontade de
querer ficar perto de Cris, de conversar com ela, de cantarem juntos
algumas músicas da Legião Urbana… Só estar perto. É que a
maneira como ela falava fazia com que tudo parecesse mais
interessante.
Ele ficou olhando para ela, do outro lado do pátio; alguns fios de
cabelo, soltos do coque, caíam em seu rosto. Mas Cris estava
olhando em outra direção, para o ponto onde um grupo de garotos
da idade dela estava reunido. Henrique não conhecia nenhum deles,
nem queria conhecer. Só queria que ela olhasse para ele, que o
notasse ali em cima. Então ela olhou e sorriu, ajeitando os fios
soltos atrás das orelhas. E Henrique sorriu também, esticando as
costas e se preparando para começar a tocar.
Agora eram dois olhares através da multidão que não saíam da
cabeça de Henrique. Havia dias em que o garoto passava a noite
inteira acordado, fazendo uma música atrás da outra, desejando que
algum daqueles pensamentos e desejos fizesse sentido através das
palavras que escrevia. Naquela manhã, ainda não tinha pregado o
olho quando Alessandra, a irmã mais velha que ele, mas a mais
nova entre as irmãs, entrou no quarto e se sentou ao seu lado na
cama.
— Henrique, me fala uma coisa? — Ela parecia preocupada.
— Diga, Les.
— Você… — Hesitou. — Quem é Cris?
— Por que você quer saber? — Ele desviou o olhar da irmã
para a mala que arrumava para o encontro da igreja, tentando
entender de onde ela havia tirado aquela informação.
— Eu vi uma música no seu caderno…
— Você estava mexendo nas minhas coisas?
— Fui pegar um pedaço de papel e vi um trecho de uma
música. Era pequeno e eu li. Foi sem querer.
— Você leu sem querer? — Henrique tentou fazer a irmã se
sentir culpada, para escapar daquela pergunta, mas, ao ver o olhar
curioso que Alessandra ainda lhe lançava, desistiu: — Cris é a irmã
mais nova da Malu.
— Ah. — Ela suspirou, aliviada. — É uma menina!
— Você pensou que fosse um menino?
— Pensei.
— E se fosse? Qual seria o problema?
— Por mim, nenhum, né? Mas a mãe… Cê sabe como ela é!
— Sei… — respondeu, pensativo. O estômago embrulhou, e
ele não sabia direito o que lhe causava mais náuseas: esconder o
que sentia até para si mesmo, suportar a rejeição velada nos olhos
da irmã ou temer a rejeição explícita da mãe. Débora jamais
aceitaria um filho gay. Henrique admirava muito a força da mãe;
afinal, não era fácil recomeçar em uma cidade do interior, com seus
filhos adolescentes, após a separação de um casamento de vinte
anos. Mas isso não o impedia de se preocupar com algumas ideias
preconceituosas dela.
— Henrique… — Alessandra começou a falar, mas desistiu.
— Que foi, Les?
— Nada, nada. É bobagem! — Ela fez um gesto de descaso
com a mão e se levantou. Henrique a observou ir embora, deixando-
o sozinho no quarto novamente.
Mesmo sendo a mais nova das três meninas, Alessandra tinha
mais maturidade que as duas mais velhas, Vanessa e Carol, e uma
amizade muito grande com Henrique, o mais novo dos filhos.
Enquanto Nessa o protegia, Les era a amiga que o salvava nos
momentos de solidão. Era fácil conversar com ela.
Mas será que Alessandra o entenderia se ele tentasse explicar
o que sentia? Como contar para a sua irmã que você está
encantado por uma garota… e por um garoto também?

Henrique esperava de todo o coração que Rodrigo não fosse


àquele encontro da igreja. O turbilhão de emoções dentro de si já
era grande o suficiente; encontrar o rapaz não ajudaria em nada.
Torceu para que Cris fosse, mas, ao checar duas vezes o ônibus e
não ver a menina ali, suspirou em decepção. Malu também não
estava lá.
A verdade é que Henrique esperava que Cris pudesse ser sua
salvação, a luz que o tiraria das trevas que trazia em si. Ele se iludia
com o sentimento por ela, na esperança de que o devolvesse aos
caminhos da luz divina, o livrasse daqueles pensamentos sobre
Rodrigo, o curasse de sua própria natureza. Mal sabia ele que a
doença que o matava aos poucos era outra, autoimune: sua própria
defesa o estava matando.
Será que sua vida seria mais fácil se simplesmente acordasse e
percebesse que tudo não passara de uma peça sem graça pregada
por sua mente? Foi a pergunta que martelou sua cabeça durante
quase toda a viagem. Será que seria mais aceito caso se
relacionasse com Cris? Seria o que esperavam dele?
Meia hora de pensamentos foram dissolvidos no ar no momento
em que avistou os olhos pretos de Rodrigo. O rapaz estava parado
na calçada, analisando os rostos de cada pessoa que descia do
ônibus, como se quisesse recepcionar alguém. Henrique sentiu o
coração acelerar, a ponto de doer.
— Oi — Rodrigo o cumprimentou, com aquela voz profunda,
assim que o garoto desceu os degraus do ônibus.
Confuso, Henrique olhou para os lados, desesperado por
encontrar a pessoa que Rodrigo esperava, temendo que não
houvesse ninguém. E não havia mesmo.
— Oi — ele respondeu, por fim.
— Andei pensando em você… — Rodrigo confessou, assim
que todas as outras pessoas se afastaram. Abriu um sorriso tímido,
os lábios cheios se destacando de forma graciosa em seu rosto.
— Eu também — Henrique admitiu em um impulso.
O sorriso de Rodrigo se alargou.
— Quero tanto conversar com você! Vem. — Ele foi puxando
Henrique pela mão. Caminharam juntos pela calçada, em torno dos
muros da igreja de Central de Mantena, cidade vizinha à Santa
Maria Madalena, até chegarem a uma casa azul, com uma marca de
enchente de um metro de altura. Rodrigo foi pegando uma chave e
abrindo o portão, com a maior naturalidade do mundo.
— Você mora aqui?
— Moro.
— Ah! — Henrique se deixou ser arrastado para dentro da
casa. Na sala, observou a televisão de quatorze polegadas, num
suporte de metal, o tapete no chão, cheio de almofadas. E só.
— A gente perdeu quase tudo na enchente do começo do ano
— Rodrigo disse ao perceber o olhar do outro garoto.
— Caramba!
— Pois é, foi foda — falou, displicente, enquanto caminhava
pelo corredor até um cômodo. Henrique não o seguiu. Alguns
segundos depois, Rodrigo voltou com uma pasta e se sentou no
tapete da sala. — Tive algumas ideias, desde a última vez que a
gente se viu.
— Que tipo de ideias? — Henrique se acomodou ao lado do
rapaz.
— Gostei muito da sua voz. Muito mesmo! Eu e uma amiga
estamos pensando em montar um ministério de música, para tocar
nos eventos da região. E pensei que, talvez, você pudesse estar
interessado.
Ministério de música? Era nisso que ele estava pensando?
— Claro! — Henrique conseguiu responder, apesar da
sensação de soco no estômago ter afetado sua respiração. A voz
saiu abafada.
— Eu vou pegar o teclado para te mostrar algumas músicas.
Pode ser? — Rodrigo foi se levantando. — Ah, e desculpa eu ter
praticamente sequestrado você.
— Não devo estar perdendo muita coisa. Geralmente, começo
de encontro só tem aquelas apresentações chatas.
Lá fora, alguém chamou por Rodrigo.
— Entra, Clara! — o rapaz gritou de outro cômodo.
Uma moça branca, de cabelos castanho-claros e alisados,
surgiu tímida pela porta.
— Oi, você é o Henrique, né? O Rodrigo falou muito de você. —
Ela fez um gesto com a mão, cumprimentando-o sem jeito. — Eu
sou a Clara.
— Oi.
— E aí, Clara? — Rodrigo voltou, trazendo um teclado. Colocou
o instrumento no chão e ligou a fonte na energia antes de se sentar.
A menina se sentou ao lado dele.
— Então, você topou entrar para o projeto? — Clara perguntou,
olhando para Henrique de um jeito estranho.
— É… Bom, ainda não. Mas achei bem interessante. — Ele
percebeu o olhar de expectativa que os dois lhe lançavam. — O
problema é que vai ficar difícil para eu vir aqui ensaiar.
— Nós podemos dar um jeito nisso. — A voz grave de Rodrigo
fazia o estômago de Henrique revirar.
— Mas vamos mostrar para ele algumas das músicas que
queremos cantar — Clara sugeriu. — Aposto que está cansado de
Cantores de Deus.
Pior que não estou! Ele sorriu sem graça.
— Boa ideia — Rodrigo concordou.
Eles, então, começaram a cantar algumas canções que
Henrique nunca havia escutado antes. E, mesmo em um ambiente
musical, continuava a se sentir deslocado.
Ainda assim, por não saber dizer “não” e porque queria ficar
perto de Rodrigo, Henrique topou entrar para mais um ministério.
Capítulo 5
E eu gosto de meninos e meninas

— Malu, o que a gente faz quando está a fim de alguém, mas


sabe que não vai rolar, e uma amiga dessa pessoa começa a dar
em cima da gente? — perguntou Henrique, assim que viu a colega
na sala de aula, no retorno das férias do meio do ano. O garoto
tinha passado os meses antes do recesso indo e voltando para
Central de Mantena, uma vez por semana, para os ensaios da
banda. E acabou passando quase todas as férias na casa de Clara,
ensaiando e se aproximando dos colegas de banda. Mas não tanto
quanto gostaria. Pelo menos não de Rodrigo, que demonstrava não
querer nada com ele.
— Espera, não entendi direito.
— Suponhamos que eu esteja gostando de uma menina, mas
ela não me dá a mínima atenção. Aí, descubro que uma amiga dela
está gostando de mim. O que fazer? — Ele odiava ter que
heteronormatizar suas falas, mas não sabia como falar para Malu
que estava apaixonado por um garoto.
— Não faço ideia.
— Poxa, Malu. — Henrique abriu os braços, em protesto.
— Uai, mas eu não sei mesmo. Só acho, assim, se a pessoa
não te quer, ela que tá perdendo. Você deve seguir sua vida.
— É, né?
— Agora pensando seriamente na situação, você não está nem
um pouco a fim dessa amiga que gosta de você?
— Acho que não… Mas, sei lá, que mal tem? A garota vive me
olhando de um jeito estranho e me perguntando coisas sobre mim…
E ela é legal! Até os pais dela gostam de mim.
— Henrique, o irresistível — debochou.
— Fazer o quê, né?
— Bobo! — Ela estapeou o braço dele e voltou a atenção para
o professor que tinha acabado de entrar na sala.
Alguns minutos depois, Malu entregou para Henrique um
bilhetinho, escrito em uma folha de papel arrancada do caderno.
Beija todo mundo.
Ele apenas olhou para ela e sorriu. Não achava que seguiria
aquele conselho.
Mas seguiu.

A primeira vítima foi Clara.


Henrique achava estranho ensaiar com sua banda católica,
tendo vontade de beijar alguém do mesmo gênero que o dele. Por
meses, se sentiu mal, estranho e sujo. Era agonizante, como se
fosse errado. Ele só não entendia exatamente qual era seu
equívoco: ser ou se permitir.
E ele tentou muito não se permitir. Porém, por mais que
tentasse, chegou uma hora que cansou de lutar sozinho.
Henrique sempre ficava calado vendo os colegas discutirem
quais músicas tocariam. Sempre, em todos os ensaios, ele
observava os dois enquanto tentava se entender. Mas, naquele dia,
Clara havia se atrasado e Rodrigo estava tagarelando sozinho sobre
a próxima apresentação.
Era um sinal?
— Ela tá na sua! — Era a quarta vez que Rodrigo falava aquilo.
Mas Henrique não estava escutando. — Henrique?
— O quê? — O garoto piscou.
— Eu disse que a Clara está muito na sua.
Henrique sentiu aquele mar de água gelada tomar conta de
suas veias.
— Você acha? — No fundo, ele queria dizer: jura, Rodrigo? E
você só notou isso agora?
— Lógico. Ela sempre concorda com tudo o que você sugere,
vive falando de você para todo mundo… Eu, no seu lugar, pegaria.
A Clara é a menina mais gata da cidade.
Ah, é? Henrique não achava. Ela era bonita, mas, para ele, não
tinha nada de mais.
— Realmente — ele concordou, no entanto. Não queria que
Rodrigo desconfiasse que havia algo estranho nele. Não queria que
passasse, nem por um segundo, pela cabeça do rapaz que
Henrique não gostava de garotas, mesmo que gostasse… também.
Clara só não fazia seu tipo. Não é porque eu gosto de pessoas
que devo gostar de todas as pessoas.
Ele saiu do salão paroquial e foi para a rua, para respirar um
pouco do lado de fora. Viu Clara se aproximar com sacolas de
supermercado nas mãos. Ela era tão branca que olhar para ela sob
a luz do sol chegava a doer. Às vezes, Henrique olhava para a
garota, tão baixinha, pequena e delicada, e sentia que podia quebrá-
la com o primeiro toque.
Henrique odiava quebrar coisas.
— Pelo amor de Deus, me diz que isso é uma coxinha! — ele
disse, assim que ela se aproximou.
— Não só uma coxinha. São várias coxinhas! — Clara sorriu ao
lhe entregar uma das sacolas.
— Glória a Deus! — Ele abraçou o pacote de papel, assim que
o retirou da sacola. E sentiu, pela primeira vez, que poderia abraçar
Clara também. Não seria uma ideia tão ruim assim se aproximar
dela. — Você é um anjo do Senhor.
A menina sorriu, e o coração de Henrique apertou. Mas, no
fundo, sabia que deveria seguir o conselho de Malu. Se Rodrigo não
estava interessado, que mal faria dar uns beijos em Clara?
— Tá aí uma coisa que a gente poderia fazer depois do ensaio,
Clara… — ele começou a dizer.
— Oi? — A garota não entendeu.
— A gente podia sair e comer mais coxinhas… Você trouxe
poucas.
— Seu ingrato! — Ela colocou no rosto uma expressão de
indignação, mas parecia feliz com o convite. — Mas, tá legal, vamos
chamar o chato do Rodrigo…
— Não. — Henrique segurou o braço da menina. — Eu quero
dizer, a gente, tipo, eu e você.
— Você está me chamando pra sair, Henrique? — Ela se soltou
da mão dele e cruzou os braços.
— Talvez…
— Tá bom! — ela concordou, antes de se virar e entrar no salão
da igreja. Henrique ficou olhando enquanto ela se aproximava de
Rodrigo, sem nem perceber que estava com um sorriso no rosto.
Henrique ainda convidou Clara muitas outras vezes para saírem
sozinhos, antes de beijá-la pela primeira vez, no fim de uma missa
de Natal. E a beijou muitas outras antes de pedi-la em namoro. Com
o passar dos meses, Henrique até chegou a acreditar que poderia
dar certo.
A banda e o namoro tomaram todo o seu tempo livre, e ele
acabou deixando o ministério de Santa Má de lado.
Consequentemente, se afastou de Cris. E, por algum tempo, se
sentiu mais leve.
Com Clara, ele poderia caminhar na praça, ir à missa lado a
lado, abraçar em público. Ela, ele poderia apresentar à mãe e às
irmãs; poderia contar ao pai que estava namorando uma garota e
sentiria o orgulho na voz dele. Era mais conveniente.
O problema é que ter seu relacionamento aceito pelos outros
não fazia com que ele fosse aceito pelos outros. Henrique não
sentia que estava escondendo uma parte de si ao se relacionar com
Clara. Era outra coisa. Era aquela sensação de não ser aquilo que
os outros viam. De não ter um lugar naquela caixa em que o
colocavam sempre que ele estava com Clara.
A ideia de estar em um relacionamento com alguém de outro
gênero, que antes parecia a solução para seus problemas, acabou
se tornando um problema por si só.
Henrique se sentia apagado.
Ele não queria mais ter que controlar até a maneira como
gesticulava para não "parecer gay". Então, um dia, apenas se
cansou de lutar contra aquilo. Desde a época da escola, pensava
que não podia deixar transparecer que era sensível, que chorava e
sentia dor. Estava exausto.
Estava cansado de tentar se encaixar.
Henrique queria ser hétero, queria muito, mas não era. Ele
sabia que não era, mesmo que se relacionasse com Clara, mesmo
que gostasse dela de verdade. Mas também sabia que não era gay,
não podia ser. Gays não gostam de meninas…
Então, o que ele era?
Capítulo 6
Troco as pessoas, troco os pronomes

Henrique foi tentando, lentamente, soltar o que achava que


estava preso dentro se si. Quis muitas vezes contar para Clara que
gostava de meninos também e pensava seriamente em fazer isso.
Por mais incrível e encantadora que Clara fosse, com seu jeito
desgarrado, faltava aquela sensação de pertencimento, aquele calor
que abraça gentilmente a pele e vai aquecendo cada pedacinho do
corpo. Mas Henrique também não sentia que com Rodrigo ele teria
a liberdade de poder ser quem era. Aquela liberdade de estar com a
pessoa completamente, não apenas com o corpo dela, mas com ela
por inteiro; com as conversas, os defeitos, os olhares, os beijos, os
carinhos, as manias. E ser também por inteiro.
O namoro com Clara nasceu fadado ao fracasso, Henrique
sempre soube. Mas o manteve por mais de um ano, por pura
conveniência. As pessoas diziam que eles eram bonitos juntos, a
mãe dele estava feliz, o pai, orgulhoso; ninguém desconfiava de sua
sexualidade, ninguém o cobrava nada.
Seria perfeito, se Henrique não tivesse aquela sensação de que
estava perdendo seu tempo. E esse incômodo ficava cada dia pior.
Sempre que Clara falava, o garoto sentia vontade de apertar o botão
de acelerar, para que o tempo com ela passasse depressa. Era
maldoso pensar aquilo, Henrique sabia; fazia mal para a menina,
mas o principal é que estava fazendo mal para ele.
Tanto que o garoto acabou se afastando ainda mais da igreja,
dos amigos, das coisas que gostava de fazer.
Até que um dia ele disse "chega", se arrumou e foi à missa de
domingo. Com o objetivo nem tão oculto assim de ver Cris,
obviamente.
— Oi, Henrique! — O garoto se virou a tempo de vê-la entrar
por uma das portas laterais da igreja, junto com uma menina de
cabelos curtos.
— Oi, Cris! — Henrique sentiu o rosto enrubescer e agradeceu
aos céus por não ser tão branco a ponto de corar.
— Essa é minha amiga, Regina. A gente pode sentar aqui?
— Oi, Regina. — Ele a cumprimentou com um aceno, tentando
se lembrar se já havia visto a garota em algum lugar. — Pode,
lógico.
Elas se sentaram.
Cris e Regina deixaram a missa alguns minutos antes do
término. Na saída, Henrique procurou por elas na praça; queria
acompanhar Cris até em casa. Ele as viu, sentadas no coreto, e
chegou a dar um passo na direção delas, quando um garoto branco
feito papel e de cabelos pretos se sentou do lado delas. Ele não
devia ter mais de quinze anos. Henrique o achou lindo, mas algo
dentro de si começou a se revirar. Era aquele o tal amigo de Cris?
Henrique já havia reparado nele, na escola, mas não imaginou que
fosse aquele o tal Pedro.
Bonito esse amigo da Cris, pensou, um pouco amargurado, e
desistiu de se juntar a eles, mudando de direção e indo rumo à sua
casa.
— Henrique, peraí! — Cris gritou. Ele parou e se virou para vê-
la se aproximar. — Eu queria te perguntar uma coisa. Me
acompanha até a minha casa?
— Claro! — Eles recomeçaram a andar.
— Por que você está afastado da igreja? — Cris perguntou. —
Nem toca mais na banda…
— Andei focando no ministério lá de Central.
— Ah. É só por isso?
Não.
— É.
— Bom, eu senti sua falta… — ela confessou, mas logo
emendou: — O Rogerinho é muito ruim naquela guitarra, não
consegue acompanhar ninguém!
Ele soltou uma risada enquanto ziguezagueava pela rua.
— Cris, por que você anda tão devagar? — perguntou, depois
de um tempo. Ofegante, deu dois passos para a frente e um para
trás, na tentativa de acompanhar, do seu jeito particular e hiperativo,
o ritmo lento da garota. Ele odiava lentidão. Sentia-se cada vez mais
impaciente.
— Porque tenho preguiça. E o lugar para onde estou indo não
vai sair de lá. — Ela continuou a caminhar vagarosamente.
— O tempo está correndo…
— Deixa ele correr, uai. Eu correr também não vai fazer o
tempo passar mais devagar.
— Mas você vai poder aproveitar mais se chegar mais rápido.
— Eu vou? Aproveitar o quê, exatamente?
— Ah, não sei. Fazer algo legal, ver um desenho desses que
você gosta, produzir algo relevante para o mundo.
— Henrique, para de andar pra lá e pra cá. Tá me dando
nervoso. — Ela esticou a mão e agarrou o braço dele. — Vem aqui.
Ele a obedeceu, diminuindo a velocidade dos passos para
acompanhá-la lado a lado.
— Você olha em volta enquanto anda?
— Olho.
— Mas você vê as pessoas, ou está tão preocupado com o
lugar onde quer chegar que nem percebe o que está no caminho?
O garoto não soube o que responder, apenas a encarou por
trás dos óculos. Falando daquele jeito, ela parecia ser quatro vezes
mais velha. Por mais irônico que fosse, se sentiu novo demais perto
dela.
— Olha em volta, Henrique. — Ele não queria olhar em volta,
queria olhar para ela. Cris era tão linda. Quis tocá-la, podia ficar
horas parado, reparando nela. Por fim, olhou. — Você vê?
— O quê?
— Aquele senhor sentado em frente à barbearia.
Henrique observou o homem. No rosto, trazia uma expressão
cansada; todo o corpo parecia exausto, como se estivesse triste,
pensativo e distante.
— Ele foi dono dessa barbearia por décadas, depois a passou
para o filho — Cris começou a contar. — Mas o rapaz foi
assassinado há três anos, e a barbearia foi vendida para outra
pessoa. Mesmo assim, desde aquela época, esse senhor vem todos
os dias de manhã e se senta aí, onde fica até de tardinha. Acho que
espera o filho chegar para trabalhar, ou para buscá-lo.
Henrique olhou o homem novamente. Era profundamente
melancólico observar aquele senhor.
— Como você sabe disso, Cris?
— Eu sou fofoqueira, Henrique!
Ele caiu na gargalhada.
— Você ri, mas é sério. Eu sou muito curiosa. Um dia, vi esse
senhor parado aí. Vi como os olhos dele eram tristes, então
perguntei pra minha mãe quem ele era, daí ela me contou. Sei as
histórias da maioria das pessoas por quem passo todos os dias. Sei
por que aquele bêbado ali dorme e acorda diariamente na porta do
bar. O nome dele é Messias; é alcoólatra e foi expulso de casa pelos
irmãos, que não aguentavam mais as confusões que ele
arrumava… Viu? — Ela colocou as mãos no peito. — Fofoqueira!
— Eu diria que você é bem informada…
Ela sorriu.
— Mas, sabe, Henrique? É que… às vezes, a gente está com
tanta pressa, tão preso na nossa própria vida, que esquece de todas
as vidas que nos cercam. Elas também são importantes, mas
ninguém vê. E a pergunta mais difícil de responder, no fim das
contas, é: quem é que vai nos enxergar, se estamos todos com
pressa?
Sem notar, Henrique parou de andar e encarou Cris. Ele queria
dizer que gostaria que ela o visse, mas, ao mesmo tempo, tinha
medo. O que Cris veria se o olhasse com aqueles olhos tão
curiosos? Que história ela contaria sobre ele?
— Que foi, Henrique?
Foi somente nesse momento que ele percebeu que estava
parado no meio da calçada.
— Você é muito… doida. — O garoto voltou a andar, dessa vez,
devagar.
— Eu sei — ela disse baixinho, olhando para o chão,
constrangida.
— Mas isso é bom, porque essas suas maluquices fazem de
você a pessoa mais incrível que eu já conheci.
Cris abriu um sorriso gigantesco, e Henrique percebeu que
deixaria o tempo correr o quanto quisesse, que não havia problema
nenhum em passar todo o cair da areia de sua ampulheta
observando aquele sorriso, vendo aquela garota, a ouvindo,
aprendendo com ela, a conhecendo.
Pela primeira vez na vida, Henrique quis parar. E permanecer.
Capítulo 7
O amor é bom, não quer o mal

A conversa com Cris ficou agarrada na mente de Henrique como


uma sanguessuga. Ele pensava tanto nela, que chegou a sentir
raiva da garota. Será que ela não cogitava a possibilidade de
Henrique correr tanto justamente para que não fosse visto pelos
outros? Que talvez aquela pressa toda fosse a melhor maneira que
ele tinha de se esconder?
Mas Henrique não queria mais se esconder, nem esconder
nada. Nem correr de nada. Muito menos de si mesmo.
Mal notou o olhar que Clara lançava sobre ele até que ela
dissesse:
— Você anda meio estranho ultimamente. — Parecia não
querer falar sobre aquilo, mas, ao mesmo tempo, era como se
tivesse tirado um peso de dentro de si.
— Ando nada. — O garoto passou a mão na nuca, sentindo os
cabelos cortados pinicarem a pele. Ele sabia que deveria dizer a
verdade para ela. Mas não sabia como a namorada reagiria.
Ela parou no meio da rua entre a praça e a entrada do salão
paroquial.
— A gente pode conversar agora ou brigar depois. Você
escolhe.
— Não é nada de mais, Clara. Só ando pensando em algumas
coisas... — Ele olhou para a extensão da rua. E quase disse. —
Vamos entrar, ok?
Ela não respondeu, apenas continuou andando. Ele sabia que
tinha que conversar com a namorada, falar a verdade, dizer como
estava se sentindo. Mas tinha tanto medo. Pensou que seria melhor
que falassem em outro momento. O problema é que ele sempre
pensava que seria melhor dizer em outro momento, e nunca dizia
nada.
Então, quando entraram no salão, sozinhos, Henrique soltou a
bomba direto sobre a cabeça da menina, sem nenhum aviso prévio,
falando rápido e de uma vez, antes que pudesse mudar de ideia:
— Eu gosto de meninos. — A voz firme dele ecoou pelo hall.
Em sua imaginação, ele falava aquilo de um jeito baixo e calmo,
mas, na realidade, acabou sendo alto e ansioso.
— Você o quê? — A garota soltou um grito de surpresa, que
reverberou mais forte que a voz de Henrique.
— Eu disse que gosto de meninos — confessou, dessa vez
mais baixo. — Acho que você deveria saber. Mas...
— Você é gay? — Já Clara insistia em continuar gritando.
— Não. Eu não sou gay!
— Como não é gay, Henrique? Você acabou de dizer que gosta
de meninos!
— Eu gosto. Mas não sou gay.
A menina revirou os olhos.
— Depois desses meses todos, você ainda tem a cara de pau
de tentar me enrolar?
— Não é isso, Clara. É que eu gosto de meninas também.
— Ah, em nome de Deus! — Ela se afastou ainda mais dele,
indo para o outro lado do salão.
A conversa deles se tornou uma disputa de quem falava mais
alto. Henrique dizendo que não se atraía apenas por garotos e Clara
dizendo que isso não era possível.
— Você precisa se decidir! — ela gritou.
— Preciso? — ele gritou de volta.
— Precisa! Isso aí é só papo de gay que não quer se assumir!
— Clara… — Ele se aproximou e tentou pegar as mãos da
namorada, mas ela se afastou. Henrique queria explicar o que
sentia. O problema é que parecia complicado demais para as
pessoas, inclusive para ele, entender que era possível se apaixonar
por mais de um gênero.
— Não tenho vocação para palhaça, Henrique. Você é gay! Só
falta aceitar... E eu fui uma trouxa que você estava usando como
porta de armário!
Os passos de alguém entrando pela porta do salão fizeram os
dois se virarem.
— Você é gay, Henrique? — A expressão de Rodrigo era de
choque. Henrique olhou para ele, desolado, e só conseguiu ver a
decepção no olhar do menino antes de ele se virar e sair em direção
à praça.
Henrique saiu atrás de Rodrigo. Não suportaria que se
afastassem, não suportaria a rejeição do amigo.
— Rodrigo! — ele chamou o rapaz, que, nessa altura, já
atravessava a rua. — Vamos conversar!
— Não tenho nada para falar com você. — Rodrigo parou e se
virou. — Se você gosta de dar a bunda, problema seu!
Henrique sentiu o peso daquelas palavras, tão cheias de
preconceito, tão rudes, tão más.
— Eu não quero que você pense…
— Que eu pense o quê? Que você gosta de mim? Você gosta
de mim?
Henrique não negou.
— Sai fora, cara! — Rodrigo continuou a destilar toda a sua
incompreensão e intolerância.
— Poxa, Rodrigo! Que isso? A gente é amigo!
— Olha, Henrique, desculpa. Nunca me incomodei com esse
seu jeito, mas pensava que, sei lá, você fosse só mais… sensível.
É… que… não concordo com seu modo de vida. Não acho isso bom
para a banda e não quero ter que conviver com isso.
— Isso?
— Esse negócio de ser gay…
Henrique não tinha mais nada para falar. Não conseguiria. O
soco que sua alma havia levado o derrubara no chão e ele duvidava
ser capaz de se levantar dali. Rodrigo, alterado pelo próprio ódio e
por toda aquela ignorância, seguiu seu rumo e foi embora.
Sem saber o que fazer, Henrique apenas ficou parado, com
medo de andar e despencar.
— Bom, já sabemos de quem você gosta! — Clara passou por
ele na rua, pronta para jogá-lo de vez no chão. Sem olhar para trás,
completou: — Não volta aqui nunca mais. Tenha ao menos
dignidade! Não quero nunca mais olhar na sua cara!
E foi assim que Henrique viu seu ministério de música, sua
amizade e seu namoro ruírem.
E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará, diz em
João 8:32.
Mas, pela primeira vez, Henrique pensou que a bíblia havia
mentido para ele.
Capítulo 8
Quem inventou o amor? Me explica, por favor.

— Nessa, você já gostou de alguém?


— Já — ela respondeu. — Por quê? Achei que tivesse
terminado o namoro. Você está gostando de outra pessoa?
— Não sei.
— O que você sente pela menina?
Antes que o garoto pudesse raciocinar, seu estômago se
revirou. Por que as pessoas pensam de um jeito tão… hétero?, se
perguntou, insatisfeito. Porque é normal, respondeu aquela parte de
si que não deveria sequer existir. Uma ova! Eu estou aqui. Eu sou
normal.
— Fascinação.
— Fascinação? — Vanessa reagiu como quem não esperava
por uma resposta como aquela.
— É — ele explicou. — Sempre que alguém fala dela, eu me
interesso em saber mais. Quero conhecer tudo: saber do que gosta,
com o que sonha. Sempre que eu vejo ela, sinto vontade de
conversar, e, quando nos falamos, ficamos horas assim, nos
conhecendo. Mas ainda parece pouco. É como se ela me
encantasse, me trouxesse para perto dela e não me soltasse. Eu
quero que ela não me solte.
— Gente! Desde que dia você fala bonito desse jeito?
— Não sei. Eu falei bonito?
— Falou. Fascinação, sei lá mais o quê. Eu nem sabia que você
conhecia essa palavra.
— Eu vi numa música.
— Bom… — Vanessa balançou a cabeça.
— Que foi?
— A coisa tá séria!
— Você acha que eu gosto dela?
— Quem tem que saber é você, uai! Se até agora não sabe…
— É que pode ser só admiração, não pode?
— É… — Vanessa alongou tanto o é, que Henrique pensou que
ela fosse começar a cantar.
— Como saber se o que eu sinto é uma amizade forte, ou se é
aquela outra coisa?
— Você já sabe a resposta.
— Eu tenho medo de estragar tudo. Ela me faz tão bem. Estar
perto dela, nossas conversas…
— Henrique, me diz uma coisa. — Vanessa encarou o irmão.
— Hum?
— Em algum momento dessas conversas, você sente, sei lá,
uma vontade de beijar essa moça?
— Não sei — mentiu. Ele sabia muito bem. Já havia sentido
aquela vontade vezes o suficiente para que perdesse a conta.
— Bom, Henrique. Você só vai saber se tentar.
— É que eu acabei de sair de um namoro de mais de um ano…
— Você pode esperar mais uns meses, até se formar na escola.
Esperar… Henrique tinha pavor daquela palavra. A vida passa
rápido demais para ficar sentado na sala de espera, observando o
mundo. Só havia uma pessoa que o fazia desacelerar.
No entanto, ele queria desacelerar com ela.

Depois do desastre que foi a banda de Central de Mantena e


seus envolvidos, Henrique acabou voltando de vez para a igreja de
Santa Maria Madalena, tomando a guitarra de Rogerinho, para a
alegria de Cris.
Ele achava que não era possível se encantar tanto por ela.
Estava tão enganado. Mas seu grande desafio foi perceber que
estava mesmo apaixonado. Ele não viu como passou a gostar mais
de História, porque Cris já havia decorado todos os livros de todas
as turmas, inclusive o da dele. Não notou como aprendeu rápido a
tocar o solo de “November Rain”, só para mostrar a ela que sabia. E
não viu que estava cada vez mais interessado na vida de pessoas
que ele nem conhecia, porque ela parecia saber as histórias de toda
a cidade.
E quando percebeu, quando viu que queria muito mais do que
apenas estar perto dela como amigo, quando entendeu que queria
se aproximar mais e tocá-la e provocar nela aqueles sorrisos bonitos
que ela dava em toda piada boba que ele fazia, teve medo de pisar
na bola.
— Não sei o que fazer, Nessa… — Ele se deitou no colo da
irmã, esperando receber um cafuné, mas ganhou um tapinha na
testa.
— Henrique, se você gosta tanto dela, o melhor a fazer é ficar
com ela.
— Se ela me quiser, né? Talvez goste de outra pessoa… —
Henrique se levantou. — Ela tem um amigo, o Pedro…
— E daí? — Vanessa interrompeu. — Você mesmo disse: é um
amigo.
— E se ela gosta dele? Eles são bem amigos…
— Ela estaria com ele. E mesmo que goste, você só vai saber
se perguntar.
— Tentar não arranca pedaço, né…?
— Só tenta não se machucar. Você ficou muito tristinho com o
fim do seu namoro.
Como Henrique desejava dizer a ela que sua maior tristeza não
foi o término do relacionamento com Clara, mas, sim, o que Rodrigo
lhe dissera. Foi o fato de a amizade dos dois ter valido tão pouco.

Em um dia, depois do ensaio da banda de Santa Maria


Madalena, Henrique mudou o horário do ensaio para uma hora
depois do habitual, e avisou a todos, menos a Cris.
Quando chegou ao salão da igreja para ensaiar, Cris encontrou
somente Henrique ali, esperando por ela.
— Uai, cadê o pessoal? Eu sempre sou a atrasada. — Ela
chegou, com seus passos lentos; a luz que vinha dela iluminou todo
o cômodo.
— Não sei. — Ele se fez de desentendido. — Mas senta aqui e
vamos repassar alguns hinos — disse, batendo com a mão
esquerda no banco onde estava sentado; a direita apoiava o violão.
Ela se sentou, abriu a pasta de hinos que trazia e começou a
folhear.
— Não gosto deste. Nem deste. Muito menos deste. — Ela
batia os dedos no plástico que protegia cada folha.
— Você gosta de algum desses hinos?
— Gosto… dos tristes — a menina confidenciou.
— A gente pode mexer no arranjo.
— Nem a pau. Tristeza combina com tristeza. — Cris foi
enfática.
— Discordo.
— Ah, é?
— É. Às vezes, um arranjo feliz esconde a profundidade de
uma letra triste.
— Tipo “Last Kiss”.
— É… — Henrique concordou, mesmo sem fazer ideia do que
era aquilo.
— A gente pode tentar tocar esse hino aqui. — Ela procurou
entre as folhas até encontrar a música. Henrique sorriu.
— Nossa! Amo esse hino! É muito lindo…. Ah… Se deixar mais
feliz, vai estragar.
— Eu falei.
— A gente pode tentar aumentar o tempo, dar uma pesada na
bateria… — Ele parou de falar ao observar o olhar dela se perder na
letra da música.
A maneira como ela se distraía rápido quando estava fazendo
algo que amava a deixava ainda mais bonita. Henrique quis se
aproximar, então colocou a mão sobre o ombro esquerdo dela. Cris
olhou para ele com o cenho franzido, como se perguntasse o que
ele estava fazendo. E aqueles olhos castanho-claros eram tão
bonitos…
Em um impulso, lento, suave e delicado como o ar, ele a beijou.
Deixou que os lábios se encontrassem e sentiu algo que nunca
havia sentido antes: um desejo de se prender para sempre naquele
momento, de parar o tempo, de viver mais. Com ela. Para beijá-la
muitas outras vezes.
Um sorriso bobo se formou nos lábios dele quando se
afastaram.
— Isso foi bom, né? — ele disse. Cris sorriu.
— Foi. — Ela abriu ainda mais o sorriso.
— A gente podia fazer outras vezes? — Henrique fingiu timidez.
— Podia. Mas é melhor ensaiar primeiro, né?
— Pode ser nos intervalos dos hinos?
— Ai, Henrique! Você não tem jeito, garoto.
Naquele dia, os dois se beijaram vezes o suficiente para que
ele a pedisse em namoro. Henrique finalmente tinha certeza. Tentou
tanto se envolver com outra pessoa; quis, investiu, desperdiçou
suas horas em relacionamentos fadados ao fim. No fundo, ele
sempre soube que era ela; desde o dia em que Julinho abriu o
portão da escola e Henrique viu aquela menina negra, gorda e do
cabelo desarrumado, que irradiava, que aquecia, que preenchia
tudo ao redor.
Ele sabia que era ela a pessoa que mudaria tudo. Só não sabia
quando, como e onde. Só não sabia se seria agora, ou daqui a cinco
anos. Só não sabia por quais caminhos os pés de ambos iriam
passar, se seria lado a lado, ou se iriam se reencontrar um dia, anos
depois. Henrique apenas sabia, de um jeito estranho e inexplicável,
que era com Cris que passaria o resto dos seus dias.
Capítulo 9
A humanidade é desumana, mas ainda temos chance

Henrique mal podia acreditar que estava ali, sentado ao lado


dela, naquele sofá, onde o tempo voava e, ao mesmo tempo,
parecia passar em câmera lenta. Era como se Cris tivesse um poder
especial; com ela, todas as horas do mundo não seriam suficientes,
mas qualquer segundo era o bastante.
— Então o famoso Henrique resolveu namorar minha filha… —
A voz do senhor João fez as pernas do garoto tremerem ainda mais.
— Sempre achei que você namoraria minha outra filha.
— Sério, pai? — Malu gritou, da sala de TV, de onde conseguia
ouvir a conversa. Ela parecia estar se divertindo muito com todo
aquele constrangimento, mas, desde que Henrique lhe dissera que
estava namorando Cris, a garota havia ficado estranha.
— Bom, pois é — Henrique disse, tremendo. — Eu insisti em vir
aqui conversar com o senhor e com a dona Desgraça… — O garoto
mordeu a própria língua. Como podia ser tão burro? Um silêncio
constrangedor pairou pela sala.
Até que pai e filha, no meio de uma troca de olhares, não
resistiram e caíram na risada.
— Para a sua sorte, minha mãe não está aqui! — Cris disse,
ainda rindo.
— Não se preocupe, filho. Ninguém vai contar pra ela.
— O senhor me desculpe, é que eu me acostumei. Todo mundo
lá na escola chama ela assim. — Parecia que o garoto ia passar mal
de tanto que tremia.
— Não se preocupe, jovem! Se eu te contasse quem foi que
inventou esse apelido…
— Quem foi?
— Ah, um certo professor de história aí…
— Foi o senhor? — Henrique estava chocado.
— Não sei de nada. Só sei que com um nome desses e aquele
jeito autoritário… Algumas coisas são inevitáveis. Mas, olha — ele
disse, se levantando da poltrona onde estava —, cuidado quando for
conversar com a Graça, ela não é tão bem-humorada.
— Sim, senhor.
— Só não pisa na bola, viu, garoto? Minha filha não é nada
fácil…
— Pai! — Cris protestou, batendo nas próprias pernas.
Henrique observou o homem sair da sala, rindo. Em seu íntimo,
desejou que nunca precisasse trocar uma palavra sequer com a
mãe de Cris. Durante toda a sua passagem pela escola, havia
evitado ao máximo conversar com a mulher, morria de medo dela.
Agora sabia que seria inevitável, por isso prometeu a si mesmo que
não a chamaria de dona Desgraça nunca mais.
— Não vou falar nada com você, garoto! — Cris o repreendeu,
sorrindo. — Graças ao bom Deus essa reunião na escola tá
demorando mais que o… Na verdade, tá demorando o costume
mesmo. Nunca vi bicho que se lasca mais que o tal professor de
escola pública.
— E por que o seu pai não foi também? — Henrique perguntou,
baixinho.
— Porque ele não quis. Meu pai é doido, Henrique. — Depois
de algum tempo de silêncio, ela emendou, sussurrando: — Acho
que a Malu não gostou muito dessa ideia de namoro…
— Uai, por que será? Será que ela nutre alguma paixão
platônica por mim? — o garoto sugeriu, brincando.
— Ah, fica ativo[1]!
Por mais que estivesse brincando, Henrique também havia
notado o aborrecimento de Malu. E, pelo visto, o incômodo também
atingira o melhor amigo de Cris. Contudo, naquele caso, Henrique
entendia muito bem o motivo: o tal Pedro era apaixonado pela
amiga, qualquer um notaria isso; mas, se não tinha coragem de
assumir o sentimento, o problema era dele. Henrique conhecia
aquela sensação, pois tinha passado tempo demais gostando de
Rodrigo sem ter a mínima coragem de lhe falar uma palavra sequer.
O problema era que Cris gostava de incluir os amigos em tudo
o que fazia. Além de Pedro, ela sempre vivia cercada por Regina.
Entretanto, da garota de cabelos curtos, Henrique gostava.
E foi assim que eles começaram: sempre na companhia de
Malu ou dos amigos de Cris. Henrique se incomodava um pouco
com todo aquele público, mas, no fim das contas, o que importava
mesmo era estar perto de Cris.
Poucos dias depois da ida à casa dela, antes mesmo de
Henrique ter reunido coragem de contar à mãe que estava
namorando, o rumor do relacionamento com Cris se espalhou pela
cidade e chegou aos ouvidos de dona Débora.
— Então quer dizer que você está namorando? — ela
perguntou ao filho após o jantar, em um sábado à noite, no começo
de agosto.
— Pois é… — Henrique até tentou desconversar, mas a mãe
insistiu no assunto.
— Pensei que você fosse dar um tempo e curtir um pouco mais.
— Eu estou curtindo! E terminei com a Clara há meses…
— E quem é a moça?
— A Cris, filha da diretora.
— Ah, aquela sua amiga moreninha?
— Mãe… — Respirou fundo. — A Malu é negra. Mas não, eu
não estou namorando ela, estou namorando a irmã dela, a Cris.
— Aquela… fofinha?
Moreninha, fofinha … O que falta agora?
— É, mãe! — Ele revirou os olhos.
— Mas, meu filho…
— O quê?
— Por que você está namorando essa menina, Henrique? —
ela perguntou, em um tom de voz sério.
— Porque eu gosto dela, uai!
Vanessa e Alessandra, que acompanhavam a conversa
caladas, permaneceram no mais completo silêncio.
— Meu filho… — A mulher respirou fundo.
— O que foi, mãe? Qual é o problema?
— É que essa menina… é tão… Vocês não combinam.
— Quê?
— O que o seu pai acha disso?
— Não sei, ainda não falei com ele. — Henrique conversava
muito pouco com o pai, desde a separação. O homem havia se
casado de novo e tinha uma nova família; não parecia ter muito
tempo para lidar com os problemas dos filhos mais velhos.
— Bom, meu filho, você que sabe. — Débora beijou a testa de
Henrique e saiu para o quarto, deixando o garoto com a intuição de
que havia muito mais a ser dito.
— Às vezes, eu me pergunto como uma mulher dessas me
criou — murmurou antes de olhar para as irmãs. As duas o
encaravam com uma expressão esquisita.
— Henrique, eu preciso conversar com você. — Alessandra
costumava ser dramática, mas aquele tom de voz assustou o
garoto.
— Tô vazando… — Vanessa levantou os braços e foi se
retirando da sala. Alessandra e Henrique seguiram para o quarto
dele.
— Eu ouvi uma conversa…
— Que conversa? — Henrique sentiu o corpo inteiro congelar e
teve que se sentar na cama para não ficar ainda mais desnorteado.
O medo que sentia pelo rumo que aquele diálogo estava prestes a
tomar era algo que ele vinha alimentando havia anos.
— Henrique, você é gay? — Alessandra resolveu ser direta.
— O quê?
— Você é gay?
— Les, eu acabei de conversar com a mãe sobre a minha
namorada. — Resposta errada.
— E daí?
— Como assim, e daí? Eu tô namorando uma menina,
Alessandra!
— Eu sei, mas é que…
— É que o quê? — Ele começou a ficar nervoso.
— Essa menina, Henrique… Você gosta mesmo dela?
— Les, você mesma viu a letra de música que eu escrevi pra
ela há milênios!
— Eu sei, me lembro disso… é só que…
— Fala logo, Alessandra! — Se era para enfiar uma faca no
coração dele, que fosse de uma vez.
— Cê tem certeza que gosta mesmo dessa menina ou… sei
lá… está com ela porque é mais — hesitou —, mais fácil —
completou, antes de a voz sumir da garganta.
— Mais fácil? Como assim, mais fácil? Eu não tô te
entendendo. — Estava, sim.
— Eu só achei muito estranho, logo agora que estourou essa
conversa, você aparecer do nada namorando essa menina.
— Você acha que eu estou usando a Cris? — ele perguntou,
decepcionado.
— Você está?
— Que tipo de cara você pensa que eu sou?
— Henrique, não vou te julgar, nunca faria isso. Imagino o
quanto deve ser complicado ser gay…
— Você imagina? — ele disse, com asco.
— Mano…
Ele se levantou, afastando-se dela.
— Você ouviu uma conversa e agora tá duvidando de mim?
— Na verdade, eu sempre desconfiei.
— É, eu me lembro quando você encontrou a música para a
Cris e pensou que Cris fosse um garoto… Mas se você achava que
eu era gay, por que nunca teve essa conversa comigo quando eu
namorava a Clara? — Henrique começou a andar pelo quarto, a
compreensão da intenção por trás daquela conversa ameaçando
esmagá-lo.
— Eu não sei… Pensei que pudesse estar enganada. — O
olhar de Alessandra acompanhava o irmão.
— E agora não acha mais. Por quê?
— Talvez seja porque estão comentando.
— Alessandra, comentam que eu sou gay desde o dia que me
recusei a jogar bola no campeonato da escola, há oito anos. — Ele
parou e a encarou.
— É que agora é diferente.
— Diferente por quê?
— Eu não sei, Henrique… Esse seu desespero em arrumar
uma namorada.
— Desespero? Que desespero, Alessandra?
— Ah, pelo amor de Deus, você começou a “namorar” — fez as
aspas com as mãos — essa garota…
— Não. Não, não, não, não! Não pode ser. Você ouviu alguma
coisa que eu disse aqui, Alessandra? — O garoto se alterou. —
Você mesma encontrou uma música que eu fiz pra Cris dois anos
atrás e agora não acredita que eu esteja mesmo namorando ela?
— Eu não disse que não acredito que você esteja namorando
ela.
— Você disse que acha que eu estou usando ela… Eu não
posso acreditar nisso, não de você!
— O quê?
— Você acha que eu não gosto da Cris. É isso, não é?
— É — ela respondeu, hesitante.
— Não é porque desconfia que eu seja gay. Não! — Ele voltou
a andar de um lado para o outro. — É porque é a Cris, não é? Você
acha que eu não posso gostar dela! Por isso, prefere acreditar que
eu esteja usando a menina para me esconder num armário do que
acreditar que eu possa mesmo gostar dela. O problema é ela ser
negra ou ser gorda? Ou seriam as duas coisas?
— Henrique…
— Eu não sou gay, Alessandra! — Teve que se esforçar muito
para não gritar.
— Não?
— Não. — Ele preferiu omitir a parte que gostava de meninos.
— E acredite se quiser: namoro a Cris porque eu gosto dela.
— Ela parece ser legal. Já vi vocês tocando na igreja, parecem
ser bons amigos…
— Você realmente não está escutando o que eu estou dizendo,
muito menos o que você mesma está dizendo!
— Henrique, a única coisa que eu não quero é que você se
sinta obrigado a se esconder…
— Não, sério! Chega, Alessandra. — Ele a levantou da cama
pelo braço, sem nenhuma gentileza. — Eu não quero mais escutar
essa sequência horrorosa de besteiras que você está dizendo. —
Henrique foi expulsando a irmã do quarto. A cabeça do garoto
parecia que ia explodir.
Como Alessandra podia pensar aquilo? Só podia ser porque a
irmã não conhecia Cris, ela não a via. Foi aí que Henrique entendeu
o sentido de caminhar devagar pelas ruas. Cris observava as
pessoas, enxergava a beleza e as tragédias que cada uma trazia
em suas histórias, ela as via. Alguém cheio de pressa, feito ele,
Alessandra e o resto do mundo, ia preferir ver o superficial, ignorar
ou simplesmente não se importar; veria o que havia por fora,
assimilaria aquela visão a um padrão pré-estabelecido e a
consideraria feia, bonita, desagradável ou inútil. Henrique, por algum
motivo desconhecido por ele, viu Cris, assim que a olhou, e foi
capaz de ver nela toda a beleza que o resto do mundo ignorou.
Capítulo 10
O brilho das estrelas no chão

Agosto é um mês seco no leste de Minas. Época em que se


pode dar adeus às plantações verdes e às chuvas fortes. Henrique
não gostava de seca, preferia olhar a chuva. Não gostava de omitir
nada, preferia a verdade. E ali, quando, por um motivo
desconhecido, uma tempestade resolvera cair em agosto, ele quase
disse para Cris que gostava de meninos também. Quase. Não disse
porque teve medo de ela reagir como Clara havia reagido.
— Eu amo chuva — Cris revelou, com os olhos brilhando,
enquanto observava a água cair no terreiro de sua casa.
Sentado na varanda, com a namorada ao lado, Henrique
passou a observar também. Cris era assim: gostava de prestar
atenção até nas coisas mais simples, como o cair da chuva, um
velho sentado na rua, um garoto tocando Legião Urbana em um
violão preto.
— O que foi? — ele perguntou ao notar que ela tinha aberto um
sorriso.
— É bobagem!
— Aposto que não é.
Ela hesitou, antes de responder:
— É que eu sempre achei bonito aqueles beijos na chuva.
— Vem cá! — Ele se levantou, puxando-a pelo braço.
— O quê? — Rindo, ela se deixou levar para o quintal, onde a
chuva caía.
Sorrindo feito uma criança, ele a beijou.
— Isso é tão clichê! — ela disse, ao se soltarem.
— Que bom! — Henrique a abraçou forte. Ainda debaixo da
chuva, sussurrou no ouvido dela: — Eu amo clichê.
A forma como a frase soou fez o coração do garoto dar um
salto. No fundo, ele queria dizer aquela outra coisa, mas julgou ser
precipitado demais, como se amar alguém fosse algo determinado
pelo tempo.
Ela o beijou de novo.
— Feliz aniversário! — disse, quando se afastaram.
— Como você sabe?
— A Malu me contou.
— Vem. — Ele a puxou. — Vamos sair da chuva!
E voltaram para a varanda, sendo observados por Maria Luiza.
Nem mesmo a cena fofa parecia ter convencido a amiga de
Henrique. O tempo também não foi capaz de fazer isso.
Aliás, o namoro dos dois parecia não convencer e muito menos
agradar muitas pessoas. Alessandra, certa de que o irmão era gay,
não se conformava com o relacionamento. E o tal Pedro ficava cada
dia mais incomodado com o romance da amiga.
Um dia, enquanto Henrique esperava Cris se arrumar para a
missa, do lado de fora da casa dela, os dois rapazes tiveram uma
briga.
— Qual é a sua, hein? — Pedro perguntou, sentado na calçada
de sua casa, que ficava em frente à de Cris.
— Desculpe, não entendi.
Pedro se levantou e caminhou até onde Henrique estava.
— Eu quero saber qual é a sua, cara! Esse seu namoro com a
Cris…
— Queria que fosse com você, né?
— O quê?
— Você queria que ela estivesse namorando você. — Henrique
apontou o dedo para o peito do garoto.
— Eu não queria que ela estivesse namorando um babaca!
— E por que eu seria um idiota?
— Ah, cara! Você sabe muito bem.
— Sei não, me fala aí!
Pedro virou as costas, hesitando.
— A Cris é minha melhor amiga, ela é a garota mais incrível do
mundo. Me dá um ódio muito grande imaginar que um babaca
qualquer esteja usando ela.
Henrique se irritou. Com a irmã, ele até tinha paciência, mas
com aquele rapaz…
— Babaca é você! Babaca e invejoso.
— Como é que é? — Pedro, que já estava alterado, ficou ainda
mais nervoso. Quase que involuntariamente, deu dois passos em
direção ao namorado de Cris.
— Ei, ei. O que tá acontecendo aqui? — Cris apareceu
correndo e separou os dois.
— Nada. — Henrique foi o primeiro a se manifestar. Já Pedro
virou as costas, atravessou a rua e entrou em casa.
— Mas que diabos foi isso?
— Nada, Cris. Sério! Esse seu amigo é muito ciumento…
— Henrique…
— Não é nada, de verdade.
O assunto morreu ali. No entanto, Henrique soube que o
incômodo causado por aquela briga se fixaria em Cris. Depois
daquela discussão, o namoro dos dois não foi mais o mesmo. E
ainda tinha Malu e seu, cada vez mais constante, mau humor
quando estava na presença do casal.
Incomodado com o afastamento da amiga, Henrique decidiu
conversar com ela.
— Malu, o que está acontecendo? — perguntou a ela, em um
dia na escola.
— Me diga você.
— Eu sei que você me disse para não me aproximar da Cris…
— O problema não é esse, Henrique. É que…
— É que o quê?
Ela respirou fundo, tomando coragem de dizer:
— Estão comentando coisas.
— Ah! Sempre comentaram coisas.
— É minha irmã, Henrique. Eu vou ficar do lado dela sempre. E
se eu sonhar que você está usando ela pra… o que for…
— Eu gosto da Cris, Malu. Eu juro pra você.
— Não me jure nada. Prove que o que dizem pela cidade, pela
igreja, pela escola é mentira.
— Malu, são boatos. Sempre falaram isso de mim. O Reginaldo
nem me conhecia e já me chamava de…
— Boiola.
— Tão old fashion!
Ele viu quando Malu revirou os olhos.
— Só não machuque a minha irmã, Henrique. Caso contrário…
— Eu sei.
Mas aquela conversa não adiantou muito. Em uma noite, já em
outubro, enquanto os três assistiam a uma comédia romântica
dessas bem bregas, pelas quais Henrique sempre fora apaixonado,
Malu embirrou de vez. Quando o garoto brincou com ela,
perguntando sobre o ator que fazia o mocinho, a irmã de Cris não
respondeu. Em vez disso, se levantou e foi para o quarto.
— Gente, o que deu nela? — Cris perguntou, baixinho.
Henrique não respondeu. Não queria pensar que estava
perdendo a amizade de Malu, muito menos cogitar a possibilidade
de que aquilo pudesse afetar seu relacionamento com Cris.
Cris perguntou ao namorado o que havia acontecido entre ele e
Malu. Henrique deu de ombros.
— A gente foi parando de conversar — respondeu.
— Mas vocês sempre foram amigos.
— Até eu começar a namorar a irmã dela, né?
— É só esse o problema?
Henrique quis dizer que não, que havia algo, uma dúvida
plantada nele por todos que o cercavam.
— É — mentiu. Cris não pareceu satisfeita. Mesmo assim, não
disse nada. Depois de um tempo, ele a chamou: — Cris, a Malu só
está cismada que eu não gosto de você o tanto que você merece.
Talvez ela tenha razão.
A garota revirou os olhos como resposta. Ele continuou:
— Não que eu não goste, mas concordo que você merece
alguém muito mel…
— Ah, pelo amor de Deus, você não vai falar essa palhaçada,
né? — Ela se levantou e saiu.
Ele foi atrás dela.
— Olha, Henrique, eu não sei que besteira vocês dois andaram
conversando, mas não preciso de ninguém decidindo o que eu
mereço ou não.
— Eu sei. Só não quero te fazer mal.
— Então, não faça.
— Vem aqui. — Ele a puxou para um abraço desajeitado. O
corpo de Henrique desejava Cris cada vez mais intensamente, era
quase difícil de controlar; às vezes, tinha até que se afastar um
pouco dela para respirar. Como alguém podia duvidar? Como ele
mesmo ousava fazer isso? Quando estava com ela, tinha certeza: a
queria, pensava nela o tempo inteiro, imaginava coisas indizíveis.
Não era apenas o cérebro dele tentando convencê-lo de que amar
uma menina era mais fácil. Havia sentimento ali, havia.
Então por que ninguém enxergava?
Capítulo 11
Não quero lembrar, eu erro também

Henrique desistiu de olhar a letra da música, escrita no caderno,


e pegou o papel sobre a cama. Havia ficado horas tentando decidir
o que faria; escreveu canções, começou a rabiscar uma carta. No
fim, a conclusão que chegou foi a de que estava perdido. O que
nunca havia sido dúvida, agora era.
Será que todos tinham razão? Será que estava mesmo usando
Cris? Que não a merecia, já era um fato consolidado. Mas, como
explicar o que sentia quando estava com ela? Amar uma menina
não deveria ser tão complicado. Anormal era ele gostar de meninos,
isso que deveria incomodar.
E incomodava, o garoto sabia.
O problema era que gostar de alguém como Cris também
incomodava. Afinal, será que ele gostava mesmo dela ou apenas
lhe era conveniente? Henrique era encantado pela namorada, mas
será que aquilo era suficiente para que um garoto ficasse com uma
garota? O que era amar alguém, no fim das contas? O que era
desejar alguém? Henrique queria ficar com Cris, desejava beijá-la,
abraçá-la, tocá-la, estar com ela. Será que aquilo não era o
bastante? Será que não passava de uma amizade muito forte?
Será que todo mundo deseja tanto beijar os amigos? Deseja
tanto aquela outra coisa?
O que é o amor? O que é estar apaixonado senão aquele fogo
estranho que ele sentia quando estava com ela? Deveria ser
conveniente namorar uma menina. Deveria ser mais fácil não ter
que contar para a mãe que gostava de meninos. Namorar Cris
deveria simplificar a vida de Henrique. E talvez simplificasse. Seria
esse o motivo de tanto sentimento? Seria somente um truque da
mente do garoto?
Era o que todos diziam: ele não podia estar apaixonado por ela.
Agora ele havia recebido um recado que pirou tudo. Segurando
o bilhetinho enviado por Rodrigo, Henrique sentiu o coração apertar.
Me encontre na festa de sábado em Central de Mantena.
O rapaz queria dizer ao ex-colega de banda alguma coisa muito
importante, e Henrique sentiu que também havia algo a ser dito de
sua parte. Existia um nó preso na garganta.
Então decidiu aceitar o convite. Sem pensar nas
consequências, foi até aquela festa. Talvez, ver e estar com Rodrigo
fosse a certeza que buscava, ou a que temia. De um jeito ou de
outro, sairia de lá decidido.
— Você queria que eu viesse, eu vim. Agora diz o que quer,
Rodrigo — falou, assim que viu o rapaz se aproximar. Henrique
aguardava Rodrigo no estacionamento da festa da cidade, escorado
em uma picape branca.
— Quero me explicar.
— Explicar o fato de você ter me agredido verbalmente e me
humilhado?
— Eu não queria ter falado nada daquilo… — O rapaz chegou
mais perto.
— Ah, não queria? As palavras voaram da sua boca sem
querer?
— Não, Henrique. Não era o que eu queria dizer. É que… Eu
tinha medo, ok?
— Medo?
— É. Medo. Do que eu sentia. Do que eu era. Do que eu via em
você.
Henrique sentiu algo se desfazer dentro de si, como jogar água
quente sobre um cubo de gelo. Por quanto tempo esperou que
Rodrigo o notasse? Por quanto tempo desejou que Rodrigo o
quisesse, o sentisse, o visse? E agora… justo agora?
— Rodrigo… — Ele ainda não sabia bem o que dizer, mas não
podia admitir que alguém usasse os próprios sentimentos como
desculpa para ferir o outro.
O rapaz se aproximou dele e lhe tocou as mãos. Henrique se
afastou.
— Você não tem o direito de dizer que me agrediu porque
estava tentando esconder o que sentia por mim.
— Foi isso que aconteceu! — protestou.
— Não. — Henrique se afastou ainda mais.
— Eu estava com medo. Você nunca sentiu medo?
Sentia. Ali mesmo, naquele momento, naquele estacionamento
escuro, Henrique sentia medo. O pavor mais terrível que pode
existir: olhar para si mesmo e encarar uma verdade inaceitável.
Querer tocar Rodrigo ia contra tudo o que Henrique acreditava, mas
ele o desejava mesmo assim. Queria abraçá-lo e dizer que estava
tudo bem. Só que não estava. Nunca ficaria bem para os dois. Era
necessário aceitar aquela verdade de vez. Por que era tão difícil?
Henrique deixou que Rodrigo se aproximasse dele, por instinto,
por fraqueza, por curiosidade.
Depois de tudo o que ouvira nas últimas semanas, era
impossível não se sentir perdido, não duvidar que o sentimento por
Cris não passasse de uma tentativa tola de se esconder de si
próprio. E mesmo que existisse aquela voz dentro dele dizendo que
era tudo verdade, que o amor por Cris era real, forte, profundo e
inexplicável, era muito difícil ecoar mais forte que todas as outras
vozes.
— Eu gosto da minha namorada, Rodrigo. De verdade — disse,
tentando, em vão, afastar o rapaz.
— Se você gostasse dela, não estaria aqui comigo.

Henrique ainda tentava entender o que havia acontecido naquela


festa. Rodrigo o beijara. E ele tinha gostado. Não sabia o que sentir.
Foi até a igreja, pois era dia de tocar na missa; porém, Cris não
apareceu. Henrique sentiu que algo estava errado. Talvez fosse seu
medo pelo que havia acontecido na festa, ou quem sabe algum
instinto. Então, como se nada tivesse acontecido, foi até a casa da
namorada depois da missa; tocou a campainha e dona Graça
atendeu, dizendo que a garota estava na varanda dos fundos,
conversando com os amigos.
— Oi — ele disse, ao ver os três reunidos ali, mas logo
percebeu a expressão estranha que traziam nos rostos. — O que
foi? — perguntou à Cris.
— A festa estava boa ontem? — a namorada de Henrique
questionou, com a voz repleta de ironia.
Henrique olhou para Pedro e Regina, que pareciam estar
gostando da situação. O que eles estavam fazendo ali, afinal?
Percebendo onde a atenção de Henrique estava, Cris pediu aos
amigos que se retirassem com um único gesto; eles obedeceram.
Assim que ouviu o portão se fechar, Cris contou a Henrique que
Regina e Pedro o viram beijando um rapaz na festa do dia anterior.
O mundo do garoto pareceu desabar por um momento, como
se o chão que pisava tivesse sumido e ele agora estivesse
suspenso no ar. Ao mesmo tempo em que não havia nada, sentia
um peso gigantesco sobre os ombros. Então começou a chorar e a
tentar se explicar, mas as palavras que dizia não faziam sentido
algum.
Ele disse para ela, repetidamente, que gostava de meninos.
Que gostava dela.
Que era verdade.
Que gostava de meninas.
De pessoas.
Que tinha errado.
— Pode ficar tranquilo, Henrique. Eu não vou contar pra
ninguém. Nem o Pedro, muito menos a Regina. Ela nunca faria isso!
Henrique queria gritar e dizer que não se importava, que ela
podia contar para o mundo inteiro, que tinha o direito de fazer isso.
Desejava dizer que tudo o que queria era voltar no tempo e… Foi
quando Henrique percebeu que não sabia o que faria. A única
certeza que tinha era a de que Cris não merecia nada daquilo e que
ele não merecia Cris. E isso ficou ainda mais claro quando, depois
de um tempo de silêncio, ela disse:
— Henrique, não faça mais isso! Não engane outra menina.
Não machuque o coração de mais ninguém. Se pra se manter aí
dentro desse armário, você precisa usar e ferir alguém desse jeito, é
bem melhor você sair. Só existe uma coisa mais triste do que ser
usado: precisar usar alguém.
O coração do garoto doeu, como se alguém o apertasse com
força. O destruísse.
— Mas eu gosto de você, Cris. Não é mentira! — Ele estava
agoniado, sentia o corpo pesar, a cabeça tontear. Era como se
estivesse preso em seu pior pesadelo. Henrique quis acordar, se
beliscou incontáveis vezes, mas permaneceu parado, vendo Cris
sorrir para ele, com um olhar triste, como se alguém tivesse
apagado todas as suas luzes e a deixado no escuro, sozinha e
abandonada.
Os dois ficaram em silêncio por muito tempo, se estudando,
tentando entender qual seria o próximo passo, se haveria um
próximo passo. Foi Cris quem falou primeiro e cravou uma espada
no garoto.
— Olha, Henrique. Resolva seus problemas internos. Descubra
quem você é. Se depois disso, você ainda achar que gosta de mim,
talvez eu ainda esteja aqui. É bem provável que esteja, aliás…
Não estaria, Henrique sabia que não. Ele não merecia que ela
esperasse. Naquele momento, não passava de um poço de
confusão e culpa. Não podia desejar que Cris o compreendesse e o
aceitasse.
Então Henrique foi embora.
Capítulo 12
Comigo apenas e com o mundo

O ar de Santa Maria Madalena se inundou com o cheiro de terra


molhada. Tão puro, tão leve. Foi onde Henrique se sentiu em casa
pela primeira vez. Gostava do silêncio, das casinhas, das
montanhas. Agradava-lhe, até mesmo, olhar as pessoas passarem
nas ruas. Tranquilidade era tudo o que ele precisava. Quietude para
ouvir a si mesmo, para tentar distinguir o caos que existia ali dentro.
Espiou a água cair lá fora e, lentamente, ir molhando o chão. O
dia em que ele havia beijado Cris debaixo da chuva parecia ter
acontecido há uma eternidade, mas só tinham se passado quatro
meses. Quis sair, abrir os braços e sentir cada gota fina tocar sua
pele. Queria que aquela água apagasse ou pelo menos aliviasse a
sensação de chamas quentes e velozes beijando cada parte de seu
corpo.
A agonia queimava.
— Ainda não arrumou suas coisas, Henrique? — Ouviu a voz
da mãe enquanto a mulher se aproximava. Ela nunca batia na porta.
— Não, mãe.
— Não está esperando que eu arrume as malas pra você, né?
— Ela se escorou no batente da porta.
— Não, senhora. Não tô. Vou arrumar.
— Depois sai desse quarto um pouco. O mundo não vai acabar
porque você terminou com uma garota.
— A senhora deve estar feliz.
— Claro que não! Não queria que você fosse embora, meu
filho, mas vai ser melhor. — Ela se aproximou e tocou os ombros do
garoto, que ainda estava parado, em pé, observando a rua pela
janela. — Você vai morar com seu pai, estudar… Vai ser bom! É só
um fim de namoro adolescente. Já, já passa.
Henrique não respondeu. No fundo, não queria que passasse,
não achava que era capaz de fazer aquele sentimento ir embora. A
verdade é que não desejava se despedir dele, não suportava a ideia
de perder aquela última ligação que tinha com Cris. Não queria
perdê-la. Mas havia perdido. A deixara escapar pelas mãos por pura
burrice e não sabia como consertar. Não tinha como fazê-lo.
— Arrume logo suas coisas e vem tomar um café. — A mulher
foi saindo do quarto, deixando o garoto prostrado no mesmo lugar.
Descubra quem você é, as palavras de Cris retumbaram em
sua mente, como uma voz gritando na noite.
— Preciso mesmo fazer isso? — sussurrou para o vento que
soprava lá fora.

O dia da formatura no ensino médio chegara. Henrique nunca se


importou com a ocasião, sequer havia pensado no que faria da vida,
no que desejava ser. A única certeza que tinha era o que não era.
Mas, no fim das contas, isso não importava a ninguém. Todos
tinham certezas sobre ele, sobre o que gostava ou deixava de
gostar — ninguém nunca pediu sua opinião sobre nada. Nem
mesmo Cris. A garota simplesmente lhe disse para ir se encontrar.
Encontrar o que, se nunca havia se perdido?
Ou havia?
Ele precisava ir àquela formatura, mesmo sabendo que ainda
não tinha coragem de encarar Cris. Então não encarou. Levaria
consigo a carta que tinha escrito para ela, mesmo sabendo que
jamais teria coragem de entregá-la. Não era de seu feitio agir de
forma tão egoísta.
Mas o destino parecia querer algo diferente.
— Henrique, eu quero falar com você. — Regina, a melhor
amiga de Cris, chamou o garoto assim que a solenidade acabou,
pouco antes de a festa começar.
— Tudo bem. — Ele foi caminhando para fora da quadra
coberta, até chegar do lado de fora. Os dois atravessaram a rua e
se sentaram no muro baixo da casa em frente à escola.
— Eu só queria dizer que óbvio que não apoio o que você fez
com a minha amiga, mas eu… bem, meio que te entendo.
— O quê?
— Não sei se você sabe... Eu sou lésbica. Gosto de garotas e
tal.
— É, a Cris tinha comentado comigo.
— Pra mim, foi muito difícil decidir se eu contaria ou não para a
Cris que te vi beijando um garoto. Mas a minha amizade falou mais
alto do que qualquer empatia que eu pudesse ter.
— Cê tá certa.
— É que, poxa, cara! — Ela fez um gesto com as mãos. —
Queria muito que as coisas tivessem acontecido de um jeito
diferente.
— Eu também.
— Mas, bom, cê tá indo pra Belo Horizonte, né? — Regina
mudou de assunto.
— Sim, vou morar com o meu pai e tentar achar algo pra fazer
da vida.
— Vamos tentar manter contato pela internet.
— Vamos, sim, claro!
— É que eu não conheço nenhuma menina lésbica, ou outro
garoto gay.
— Mas eu não sou gay.
— Fala sério, Henrique…
— É sério. Não sou, não. — O garoto viu que Regina respirou
fundo, tentando manter a paciência, o que ela aparentemente perdia
rápido. Ele logo emendou: — Eu gosto de meninos, sim. Óbvio.
— Uai!
— Mas também gosto de meninas. Eu gosto de pessoas,
Regina!
— Ah! — Ela soltou todo o ar dos pulmões. — Então você é
mesmo bi!
— Bi?
— Bissexual…
— Bissexual… — ele repetiu. Ouvir Regina dizer aquela palavra
foi como iluminar uma caverna escura. — As pessoas sempre
esperaram que eu fosse gay, sabe? — ele começou a dizer. — Por
eu ser sensível, não gostar de futebol, preferir música, livros,
revistas. Acabou que, aos doze anos, já havia me conformado com
a ideia. Eu achava mesmo que era gay, eu tinha tudo de gay, até o
principal, né? O interesse por outros meninos. Então aceitei: sou
gay, e agora?
— Precisamente a minha reação.
— Mas aí comecei a pensar em todas as meninas que eu
achava bonitas, as que eu queria beijar. E eu ficava: será que gays
gostam de meninas? Quando vim pra Santa Má, ainda tinha isso na
cabeça. Eu pensava: será que esse interesse pelas garotas não é o
meu cérebro tentando me sabotar, me fazer ser hétero, me
encaixar? Teve uma vez, juro por Deus, que cheguei a pensar que
minha mãe estava botando algum remédio que curasse gays no
meu suco.
Regina caiu na risada.
— Isso não existe, Henrique!
— Eu sei! Mas tentava achar uma explicação. E segui tentando,
até que comecei a namorar a Cris. Então todo mundo passou a me
questionar o porquê de eu estar com ela, e o meu sentimento não
parecia suficiente para convencer ninguém. Não estou tentando
justificar, não tem justificativa. Mas eu realmente comecei a acreditar
no que me diziam, a duvidar do meu próprio sentimento. Até eu
beijar o Rodrigo e ter a certeza, a resposta para tudo.
Regina o olhou com um misto de curiosidade e compaixão.
— Eu amo a Cris, Regina.
— Ai, Henrique! — Ela bateu com as mãos nos joelhos.
— Só que eu também sentia algo forte pelo Rodrigo. Mas não
sinto mais.
Regina respirou fundo. Henrique percebeu o olhar impaciente
que ela lhe lançou.
— Sei que você não vai dizer nada disso pra ela, mas a Cris é a
coisa mais verdadeira que já aconteceu na minha vida. A parte mais
honesta de mim, a mais feliz, a mais sonhadora. Queria não ter
cometido um erro tão bobo…
— A vida é isso.
— É… Agora é seguir em frente. — O conformismo do garoto
durou pouco. — Mas sabe o que mais me incomoda?
— Hum?
— Ninguém questionou meu primeiro namoro com uma menina.
Ninguém! E ele não era sincero. Já meu namoro com a Cris… Nem
uma alma viva acreditou que eu pudesse estar apaixonado por ela.
E não era por acharem que eu sou gay. Quem dera fosse.
— O mundo é doente!
— Isso me irrita. Porque todo mundo fala sobre amor
verdadeiro, amar uma pessoa só pelo resto da vida e blá, blá, blá.
Todo mundo prega o amor… desde que você se apaixone por
alguém branco, magro ou de um gênero diferente do seu. Caso
contrário, algo, com certeza, vai estar errado.
— Mas não está errado.
— Não. Não está.
— Bissexualidade existe, Henrique.
Algo chamou a atenção da garota. Ela se levantou, e Henrique
viu Malu sair da quadra e se aproximar dos dois.
— Regina — ele a chamou, antes que ela se afastasse.
— Entrega isso aqui pra Cris. — Foi tirando um pedaço de
papel amassado do bolso. — Mas só quando você achar que deve.
— O que é isso?
— Uma carta. Pode ler, se quiser.
— Eu não vou entregar cartinha sua, meu filho. Você está
querendo demais. — Ela tentou devolver o papel a ele, que recusou.
— Leva. Leia. Se quiser jogar fora, joga.
— Ok. — Ela encerrou o assunto quando Malu chegou perto
dos dois. — Fui, mas não prometo nada.
Henrique observou Regina voltar para a quadra levando a carta
consigo. Ele duvidava que a garota fosse, de fato, entregá-la à
amiga, mas tinha um pouco de esperança de que a ex-namorada o
perdoasse… um dia.
— Oi — Malu disse, antes de se sentar ao lado dele.
— Achei que você não fosse mais falar comigo.
— Minha vontade era exatamente essa, Henrique. Depois do
que você fez com a minha irmã.
O garoto não respondeu, apenas abaixou ainda mais a cabeça.
O desejo dele era abrir um buraco no chão e sumir. Não aguentava
mais. Queria, de forma desesperada, pedir perdão à Malu, à Cris, ao
universo, a si mesmo.
— Eu te avisei. Eu disse para não se aproximar tanto dela. Mas
você usou a minha irmã como fachada. — A mágoa na voz de Maria
Luiza feria mais que as palavras que ela dizia.
— Não. Eu não fiz isso.
— Não fez? — Ela se mexeu, indignada.
— Não fiz. Eu amo a Cris, Malu. De verdade.
A garota revirou os olhos.
— Francamente, Henrique! — Ela começou a se levantar, mas
o garoto a segurou pelo braço.
— Eu tô falando sério. Sei que errei feio, mas meu sentimento
pela Cris é verdadeiro e sempre foi.
— Você gosta de meninos, Henrique. Vai negar isso até
quando?
— Gosto mesmo, não tô negando.
— Então?
— E gosto de meninas também. Demorei a aceitar que gostava
de meninos quando me apaixonei pelo Rodrigo. E custei a entender
que gostava de meninas quando me apaixonei pela Cris. Eu achava
que isso não era possível, que ou você gostava de um ou de outro.
Foi quando minha cabeça virou essa bagunça. — Ele começou a
chorar baixinho. — Eu não sabia o que fazer, o que pensar. Sei que
errei. Eu sei, Malu. Não devia ter feito aquilo com a Cris, mas estava
tão perdido dentro de mim mesmo. Não conseguia entender.
Malu também não era capaz de compreender o que o garoto
dizia, mas percebeu seu desespero. Sentiu o coração apertar. O
mundo era cheio de gente, umas completamente diferentes das
outras. Por que não poderiam existir pessoas que não amam
apenas pessoas de um gênero?
— Me perdoa, Malu. — Ele ainda chorava. — Queria que a Cris
me perdoasse também, mas não posso ir atrás dela. Não posso
machucar ela ainda mais. Ainda não sei quem sou. Só sei do que
não gosto.
— E destes dias tão estranhos — Malu cantou, completando a
música que ele mal havia percebido que tinha citado. — Fica a
poeira se escondendo pelos cantos.
— Esse é o nosso mundo. O que é demais nunca é o bastante
e a primeira vez é sempre a última chance.
— A Legião tem uma música que fala isso de gostar de
meninos, meninas, de São João e não sei mais o quê… — Malu se
lembrou.
— É… É verdade, tem mesmo! Bissexualidade existe. Regina
acabou de dizer isso. Inclusive, pedi para ela entregar uma coisa
para a Cris, mas acho que ela não vai entregar.
— Por quê?
— Porque a Regina é uma boa amiga.
— Ai, Henrique! O que é?
— Uma carta.
— Garoto…
— Eu pedi para ela entregar no momento que julgasse mais
apropriado. Sei lá… Acho que foi um erro bem egoísta da minha
parte. Mas eu amo sua irmã, mesmo! Que inferno! Por que sou tão
burro?
— Vai passar. Vocês são novos. Aliás, nós somos!
— Sei não, viu? Às vezes acho que a Cris é o amor da minha
vida.
Malu soltou uma gargalhada alta e sincera.
— Henrique, você tem dezessete anos! Pelo amor de Deus!
— Uai, o que que tem? Há pessoas que se apaixonam com
dezessete, com trinta ou com setenta. Tem gente que sequer vive o
suficiente para amar alguém. Eu tenho sorte, pensa só — ele disse,
sorrindo. Malu acabou retribuindo o sorriso.
— Vou sentir sua falta, Henrique. Espero que não suma lá em
Belo Horizonte.
— Vou sumir não. Já disse para a Regina que manterei o
contato.
— Então boa viagem! — Ela se levantou e abriu os braços. Ele
fez o mesmo, abraçando-a com força. — Espero que seja feliz.
Muito feliz.
— Te amo, Malu. Vou morrer de saudade! — Ele a soltou. —
Cuida da Cris.
— Eu vou cuidar, palhaço! Não precisa nem falar! — ela disse,
já virando as costas e indo embora.
Na mesma hora que a amiga entrou na quadra coberta,
Henrique sentiu uma gota cair em seu nariz. Olhou para o céu. A
chuva que havia dado trégua de manhã parecia que queria voltar.
Henrique se lembrou do beijo no quintal de Cris. Naquele instante,
sentindo outras gotas caírem sobre sua pele, pensou na sorte que
tinha por conhecê-la. Observou a escuridão do céu por um momento
e viu a si mesmo como um quarto escuro, sendo iluminado por ela e
seus olhos tão atentos, tão perspicazes. Cris o viu, no meio de toda
a urgência do mundo, ela o viu. E ele jamais seria a mesma pessoa
novamente. Depois dela, tentaria ver as pessoas, tentaria não ter
tanto medo, tanta pressa.
E enquanto a chuva ficava mais forte, Henrique caminhava,
lentamente, de volta para casa.
Emma, Cobra e a criatura da parede
Leitura sensível: Koda Gabriel
Para Koda Gabriel e todos os bissexuais superpoderosos!
Capítulo 1
Emma

Minha parede é doida!


Não tenho outra palavra para definir o que acontece nesse
conjunto de tijolos, cimento e tinta que fica atrás da cabeceira da
minha cama. É sério! A parede fala comigo. Não consigo entender
as palavras, é óbvio, mas dá para distinguir claramente uma voz
dentro dela. Quando contei para Nae que a parede falava, minha
amiga disse que aquilo provavelmente era meu vizinho conversando
com alguém ou falando sozinho.
O problema é que… eu não tenho vizinho.
Minha família mora no fim da cidade. Literalmente é a última
casa da rua, na última rua da cidade. E por mais que minha parede
seja externa, é impossível que alguém do lado de fora da casa
esteja falando comigo. Esse foi o meu primeiro pensamento, sempre
que ouvia qualquer ruído, saía correndo para tentar ver se
encontrava alguém ali, do lado de fora, brincando comigo. Mas
nunca havia ninguém. Porque não há ninguém.
Eu sei que é a parede.
Ou alguém preso dentro dela.
Não sei como, só sei que é assim!
E que tudo isso aconteceu depois do dia 8 de janeiro, quando
aquele maldito objeto estranho cruzou o céu, deixando uma marca
rosa no azul clarinho. Aquela marca demorou horas para sumir e,
quando sumiu… coisas aconteceram. A última delas foi que, dois
dias atrás, minha parede começou a falar.
Ok, ela não fala, fala! São apenas ruídos estranhos, como se
alguém estivesse muito distante, preso em algum lugar, gritando,
arranhando, querendo sair.
Pensar que talvez exista alguma entidade agarrada nos tijolos
da minha casa me apavorou no começo. Mas é tanta coisa estranha
acontecendo na minha vida ultimamente que quase nada mais é
capaz de me assustar. Se for um fantasma? Ótimo! Se eu estiver
perdendo o controle da minha mente? Ótimo também.
A professora grita o nome de um aluno e me retira do meu
transe. Às vezes, minha mente se perde completamente nessas
divagações. Já fui chamada na diretoria quatorze vezes desde que o
meteoro caiu. Eu acho um exagero! Sério. Tudo bem que as minhas
notas despencaram, mas as notas de qualquer um despencariam se
tivesse acontecido o que aconteceu comigo. Fora que continuo
sendo uma das melhores alunas dessa escola. Minhas notas baixas
são equivalentes às notas altas da grande maioria dos meus
colegas.
Mas você não é os seus colegas, minha mãe vive dizendo. E
todo mundo nessa escola parece concordar, porque qualquer
distração minha é pior do que as bombas que o pessoal do segundo
ano vive colocando no banheiro. Eles nunca foram parar quatorze
vezes na diretoria, né? Já eu…
Alguém solta uma risada de deboche. E o timing me faz
acreditar que a pessoa riu de mim. O que não faz sentido nenhum,
porque, até onde eu sei, ninguém aqui ouve pensamentos… Se bem
que…
Olho para a frente e vejo apenas as lentes espelhadas dos
óculos redondos e escuros de Cobra me encarando. Na verdade, eu
vejo o meu reflexo neles. Mesmo de longe, vejo meu cabelo rosa se
destacando. Eu sempre me destaco com esse cabelo rosa, por isso
que o pintei dessa cor.
Cobra está com um sorrisinho no rosto que me faz revirar os
olhos. Garoto estranho… Ah não, não é um garoto! Ah! Pessoa.
Pessoa estranha. Corrijo meus próprios pensamentos e vejo Cobra
rir e se virar.
Tenho que admitir que essa mini interação foi completamente
anormal. Mas o que é que está normal depois que aquele meteoro
caiu? Minha parede mesmo… Ela fala!
Capítulo 2
Cobra

Há algo muito errado com essa garota.


Os olhos dela estão sempre perdidos. Ela não consegue focar
no que a professora diz. Tudo o que pensa é em uma maldita
parede desbotada, rachada e cheia de marcas de infiltração. Aposto
que os ruídos que ouve são do encanamento velho daquela casa
caindo aos pedaços onde mora.
Mas até que é divertido ouvir as teorias malucas que Emma faz.
Muito mais divertido do que prestar atenção nessa aula chata.
— História do Brasil é o meu…
— O que você disse, *****? — Esse não é o meu nome, então
não é comigo que a professora está falando. O que está morto está
morto, não deveria ser tão difícil assim de entender e respeitar.
Ignoro completamente o que ela diz, cruzo os braços e me afundo
ainda mais na cadeira. Ela fica me olhando, esperando uma
resposta que nunca vai vir. — Cobra — corrige meu nome, agora
sim eu escuto, e repete a pergunta: — O que você disse?
— Que essa História aí não é a verdadeira… — Aprumo as
costas e a encaro, em desafio.
— Nós já conversamos sobre isso, não vamos conversar de
novo! — decreta.
— Ok. — Descruzo os braços e relaxo os ombros. Sei que não
é culpa dela que os livros que esse governo bosta enviou são um
lixo, mas mesmo assim…
A professora vira as costas para mim e começa a escrever algo
no quadro. Ninguém anota. Está todo mundo cochichando baixinho
sobre assuntos que não me interessam. Todo mundo menos Emma,
que continua completamente perdida em si mesma, tentando
encontrar uma justificativa para sua parede falante… Essa garota,
sinceramente! Sorrio e volto a cruzar meus braços, mas não consigo
deixar de ouvir o que ela está pensando.
Sei que, se me aproximar mais dela, posso conseguir entrar
melhor em sua mente. Só que é arriscado demais. Ainda não sei
lidar direito com esse… poder. Vai que ela percebe ou me acha mais
estranho do que já acha. Vai que ela passa a me detestar mais do
que detesta. Ok que a culpa é quase toda minha. Mas, é a Emma,
minha (ex) melhor amiga!
E eu tenho que admitir que achei bonitinho ela se esforçar para
não ser transfóbica nem em pensamento. Nenhuma outra pessoa
aqui faz a mesma coisa. Nem minha mãe. Nem os professores.
Ninguém. Nem mesmo as pessoas que dizem ser minhas amigas.
Ela respeitou meu pronome no íntimo de sua mente… E pensar
nisso faz com que eu me sinta culpado.
Eu não devia ficar ouvindo os pensamentos das pessoas, mas
como um bom não-binário fofoqueiro que sou, fico.
Então um pensamento “alto” dela me atinge como um raio.
E se a criatura não estiver necessariamente presa na parede e,
sim, em uma dimensão paralela?
— Ou entre dimensões paralelas! — ela fala alto. Olho para
trás. De onde ela arranca essas teorias?
Emma olha em volta constrangida, os dois coques de seu
cabelo rosa se movimentam de um lado para o outro,
acompanhando o gesto de sua cabeça. Acho bonito como essa cor
combina com o marrom escuro de sua pele. Tudo nela é tão
bonito…
Então Emma me encara brevemente e desvia o olhar. Nem ligo.
Ninguém consegue fixar os olhos em mim por muito tempo. Acho
que meus óculos escuros repelem as pessoas, fazem com que eu
pareça misterioso. Talvez eu seja uma grande incógnita para todos.
Deve ser estranho olhar para alguém e não conseguir concluir nada
sobre a pessoa. Não que a gente precise ficar concluindo coisas
sobre quem não conhece.
Ainda estou olhando para Emma quando ela diz, com sua voz
rouca e desaforada:
— O que foi? Perdeu alguma coisa aqui?
É minha chance de me aproximar e (ser antiético) ouvir melhor
os pensamentos dela. Então me levanto, arrasto a cadeira para
perto de Emma e me sento, colocando os cotovelos sobre sua
mesa.
— Quem deixou você colocar seus braços magrelos sobre a
minha mesa, Cobra?
Eu os retiro.
— Nossa! Você já foi mais simpática…
A professora faz um “xiu”, mas ninguém fica em silêncio. Eu
mesmo nem me abalo.
— E você já foi menos folgado — cochicha, se aproximando de
mim. Sinto o perfume doce que vem dela e sou atingido por aquela
sensação de vazio e nostalgia. — Cê quer alguma coisa?
Quero perguntar sobre a parede, mas não sei como fazer isso.
— Na verdade, achei que você estava falando comigo antes…
— minto, desviando o olhar dos olhos escuros de Emma. Por um
breve momento, tenho medo de que ela possa ler mentes também.
O que Emma descobriria sobre o que sinto quando estamos assim,
tão pertinho?
— Eu não estava — diz, seca.
Reviro os olhos. Não sei por que tento ser simpático. Mentira,
sei sim.
— Tudo bem, então! — Eu me levanto e começo a puxar minha
cadeira de volta para o lugar, mas o pensamento dela me faz parar.
Não sei por que ele está tentando puxar assunto comigo agora!
Volto a me sentar.
— Olha, sei que fui muito escroto no começo do ano…
— Ah, jura? — ela quase grita. A sala inteira olha para nós, mas
depois todos voltam às próprias fofocas, enquanto a professora
segue escrevendo no quadro.
— Me desculpa, ok? Eu só não sabia como lidar…
— Não precisava ter parado de falar comigo do nada, né? — É,
a Emma ainda está bolada.
— Foi há meses, Emma! Tanta coisa mudou…
— Mas só agora que seus amiguinhos te viraram as costas que
você vem puxar papo comigo, né?
— Isso não é justo! — Eu me levanto, chateado.
— Não?
Fico puto, então grito:
— Eu vim aqui pra te oferecer ajuda com essa sua bendita
parede, mas você é muito ingrata! — Ops…
— Você o quê? — Ela arregala os olhos. A sala inteira está
olhando para nós.
— Uh, as sapatões estão brigando… — algum garoto diz. Sinto
vontade de esfregar a cara dele no piso descascado do pátio.
— Cala a boca! — Grito sem saber com quem.
— Pessoal, o que é isso? — A professora anda até o meio da
sala, com os braços abertos. — Minha aula virou bagunça? Vamos
copiar a atividade. Ela vai valer cinco pontos.
— O quê? — Todo mundo grita.
— Eu, se fosse vocês, corria. Porque a aula só tem vinte
minutos.
Solto o ar e me sento de novo na cadeira. Meu joelho até doeu
de tanto me sentar e me levantar.
— Do que você estava falando? — Emma se inclina na minha
direção e pergunta baixinho. — Que parede?
Já estou no inferno, vou abraçar o capeta.
— A do seu quarto.
Ela continua me olhando, confusa.
— A que fala, Emma. A parede que fala!
Capítulo 3
Criatura da parede

A cidade é quase a mesma.


Reconheci os blocos da rua principal, a igreja, a farmácia do
seu Tico. Mas há muita coisa nova por aqui, muito mais casas e
casas com mais andares. Há fachadas de lojas por todas as partes,
três lugares, que parecem bares, mas têm placas de igrejas. Não
consigo afastar de mim a sensação de que conheço esse lugar com
a palma da minha mão e, ao mesmo tempo, me sinto uma
forasteira.
Mas até esse sentimento de estar deslocada seria aceitável
se… tivesse alguém nessa cidade. Qualquer pessoa. Qualquer uma.
No entanto, tudo o que vejo quando olho em volta são as ruas
vazias. E estou presa aqui, sem conseguir sair, sem ter como pedir
ajuda.
Faço, pela centésima vez, o caminho entre a praça e a última
casa da rua (e da cidade), onde eu costumava morar quase uma
década atrás, antes da minha tia se mudar e me levar junto. Entro
na casinha pequena. Para a minha sorte, ninguém tranca as portas
no interior. Não que isso fizesse alguma diferença, pois não há nada
aqui também. Nem móveis, nem gente. Só eu.
Passo pela sala, onde minha mãe costumava fazer as unhas
das mulheres da cidade, e olho para as minhas próprias unhas.
Quando a imagem estática das minhas mãos para um pouco e elas
não parecem uma mistura de versões de si mesmas, deslocadas,
cheias de ruído, vejo que o esmalte de duas delas já descascou na
ponta.
Passo pela porta que leva ao quarto que foi meu. As paredes
rachadas e com infiltração poderiam até ser de uma casa
abandonada, mas, quando morei aqui, elas também eram assim.
Arrasto as costas pela parede, até me sentar no chão.
Não era para ter dado tudo errado. Não era para eu ser um
ruído preso nesse não-lugar, que parece a minha casa, mas não me
pertence, e eu não pertenço a ele.
Eu só queria sair daqui.
Capítulo 4
Emma

Eu odeio esses malditos óculos espelhados que Cobra usa. É


como se algo me impedisse de entender o que ele está pensando,
como se estivesse se escondendo. O que é irônico, porque,
finalmente, ele pode ser ele mesmo.
— Então qual é o plano? — pergunta.
Estamos subindo a rua principal rumo à minha casa.
Precisamos andar na calçada, porque está bastante movimentado
hoje.
— Não tenho um plano. Você que disse que poderia me ajudar
com… meu problema. — Continuo mal-humorada por tudo o que
aconteceu no começo do ano e ainda por cima por Cobra se recusar
a me contar como é que ele sabe sobre minha parede. Estou
presumindo que ele pode ler mentes ou adivinhar coisas e vou
seguir achando isso até saber a verdade.
— Ok. — Ele para na minha frente e me encara, me obrigando
a parar também. Odeio quando faz isso. — Precisamos conversar
sobre o que rolou entre a gente antes de qualquer coisa…
— Discordo. — O empurro de leve e volto a andar.
— Qual é, Emma? Por que você é tão difícil? — Ele tenta me
acompanhar, então ando ainda mais rápido, sem esforço algum. Por
que eu sou difícil? Esse… ser humano deve ter uma memória muito
curta… — Calma aí, Emma. Me espera! — Ele praticamente corre
para andar do meu lado.
Eu paro quando já estamos perto da minha casa.
— Você quer falar sobre o que rolou? Tem certeza? — Duvido
que realmente queira. Cobra hesita por um momento, parece que
está me lendo. Eu queria saber se essa suposta fotossensibilidade
que ele desenvolveu misteriosamente no começo do ano é verdade,
ou se ele está escondendo algo por trás desses óculos.
— Eu quero… E também quero te mostrar uma coisa. — Ele
volta a andar rumo à minha casa e, depois, vai direto até o meu
quarto, que ele sabe muito bem onde fica. Quando passo pela porta,
Cobra já está deitando na minha cama.
— Mas você é folgado demais! — resmungo, me jogando na
cama ao lado dele.
— Desculpa, é o costume. — Ele se levanta e se senta, de
modo a conseguir me encarar.
— Sete meses que você não pisa aqui… E ainda está
acostumado?
— Você não faz nem ideia do que rolou comigo… — Cobra
começa a perder o tom sereno que sempre me irritou. Reviro os
olhos. Ele também não faz ideia do que rolou comigo.
É quando ele franze o cenho, em uma expressão de quem está
tentando entender o que acabou de ouvir, que eu entendo…
— O meteoro… — sussurro. Há quanto tempo você consegue
ler mentes, Cobra?, penso e me levanto, me sentando bem em
frente a ele.
— De uma forma limpa, em que consigo saber quem está
pensando o quê, há poucos dias. Já os ruídos, que foram ficando
cada vez mais fortes, eu ouço desde janeiro.
Dou um tapa no braço dele.
— Você anda ouvindo o que estou pensando? — pergunto o
óbvio, só porque não consigo conter a indignação.
— Não posso simplesmente reprimir. Eu tentei e ficou pior.
Lembra aquela semana em que faltei da aula? Mas espera aí…
Como você sabia?
— É você que lê mentes, adivinha aí… — digo, ressentida.
— Eu leio mentes, não adivinho coisas. — Ele é um idiota!
Reviro os olhos de novo. Não sei como tenho paciência. — Você
não me respondeu. Como você sabia?
— O meteoro me afetou também.
— Como?
Não respondo. Um ruído na minha parede prende a minha
atenção. E a de Cobra também.
— Você consegue ouvir isso? — Encosto as mãos sobre a tinta
branca descascada.
— Sim, mas… não consigo entender direito. — Ele coloca a
mão direita na parede, bem ao lado das minhas. — Parece que está
longe, não consigo…
Eu me afasto, frustrada, e me jogo de costas na cama. Cobra
se deita do meu lado.
— Ouvi você pensando que o ruído às vezes fica mais forte.
Talvez eu devesse esperar…
— Aqui?
— Você quer que eu espere do lado de fora? — Ele se vira de
lado, apoia a cabeça na mão e me olha.
— Por que você nunca tira esses óculos? — Coloco minha mão
sobre a lateral da armação. Parte da minha pele encosta na pele
dele. Cobra segura minha mão, pressionando-a de um jeito que não
consigo retirá-la. Estamos tão perto…
— Depois que o meteoro caiu, ouvir ruídos não foi a primeira
coisa que aconteceu comigo — ele diz, em uma voz fraca, e deixa
minha mão livre. Os sons na parede estão mais fortes, mas eu os
ignoro. Sinto o coração acelerar quando puxo os óculos do rosto de
Cobra devagar. — Por favor, não se assuste. — Ele está com os
olhos fechados, mas vejo algumas manchas amarelo-esverdeadas
logo abaixo deles. É por isso que ele usa óculos tão grandes.
— Pode abrir, não vou me assustar — falo baixinho, mas
minhas mãos suam.
Ele respira fundo antes de tomar coragem e abrir os olhos. A
parte que deveria ser branca está toda preta, e as íris estão da
mesma cor das manchas que ele tem nas olheiras: amarelo-
esverdeadas. As pupilas não são mais redondas, elas agora são
mais finas e esticadas.
— Parece…
— Olho de cobra — ele responde.
Prendo a respiração por um instante. Eu jamais acreditaria no
que estou vendo se não fosse pelas minhas pernas.
— O que tem as suas pernas?
Dou um tapa no ombro dele.
— Para de ler minha mente. — Eu me afasto e me levanto.
— Não dá para simplesmente não ouvir o que você pensa. —
Ele se levanta também, ficando do meu lado, sem deixar que eu me
afaste muito. — Você pensa muito alto!
— O quê? Você é um enxerido e a culpa é minha?
— Eu já disse que não consigo controlar… — Ele coloca as
mãos sobre as minhas bochechas e puxa meu rosto de modo a
encará-lo. — Mas para de fugir, o que tem as suas pernas?
— Elas estão mais fortes. Talvez não tenha dado para notar a
diferença, porque eu sempre fui gorda e…
— Sempre teve uns pernão…
Bato nele de novo.
— Ai. Você quer parar com isso? Dói, tá?
— Agradeça a Deus por eu não ter te dado um chute, vai por
mim…
— Então você tem superpernas?
— Nossa, só piora. — Reviro os olhos mais uma vez. — Mas o
que esperar de você, né?
— Está me julgando por ter escolhido meu nome por causa dos
meus olhos?
Estou.
— Não. — É uma meia verdade. — O nome combina com você.
— Está dizendo que eu sou venenoso ou algo assim?
Apenas sorrio e deixo o (quase) silêncio cair sobre nós. É
quando o ruído na parede fica ainda mais forte. Os olhos de Cobra
dilatam, então ele coloca os óculos de volta e sussurra:
— Tem alguém aqui.
Capítulo 5
Cobra

Realmente tem uma pessoa presa na parede de Emma. E eu


que pensei que tinha estourado toda a cota de coisas absurdas para
uma vida inteira.
Estou com a orelha esquerda colada à parede. Emma também,
mas já resmungou três vezes que não consegue ouvir nada.
— Não consigo ouvir nada! — Quatro. — O que você está
ouvindo?
— Tem uma voz distante, pode ser um pensamento, mas não
sei. Parece que a pessoa está se aproximando.
— A pessoa? — Ela se afasta um pouco. — Quem disse que é
uma pessoa?
— Pensa como uma pessoa.
— E tá pensando o quê?
— Não sei!
Emma revira os olhos pela centésima vez. Às vezes eu acho
que ela não me suporta.
— A gente vai falar sobre o que rolou lá na casa da árvore em
janeiro? — pergunto.
— Não.
— Emma…
— Você me beijou e nunca mais falou comigo. Não há nada
mais pra conversar.
— Há muita coisa pra conversar. Aconteceram coisas, tipo:
olhos de cobra, saída do armário, poderes especiais…
— Aconteceram coisas comigo também, Cobra.
— Eu não me afastei porque o beijo foi ruim.
— O beijo foi ruim.
— Ai, por que você é tão difícil? — Respiro fundo.
— Só estou dizendo a verdade, ok? Foi um beijo estranho e
cheio de medo.
Eu queria dizer que o beijo em si foi ruim, não o que o motivou.
Eu queria dizer para ela que a gente poderia tentar de novo até não
termos mais medo e o beijo ficar bom. Mas fico calado. Pelo visto,
Emma não sente o mesmo que eu.
— Eu fiquei com medo — começo a dizer, mas um barulho forte
me faz prestar atenção na parede novamente. — Ela está dizendo
alguma coisa…
— Ela?
— A parede.
— Ah.
Não era para ter dado tudo errado, ouço de uma forma bem
nítida.
— Acho que a pessoa está presa.
— Na parede?
— Não sei se exatamente na parede. Parece que ela, a pessoa,
conhece o lugar onde está, mas ao mesmo tempo não conhece, ou
não se sente… pertencente a ele.
— Quê?
— Não sei explicar, mas parece que a pessoa está em um não-
lugar.
— Uma dimensão diferente?
Olho para Emma. Sério, de onde ela tira essas ideias?
— Você continua assistindo muito sci-fi, né? — pergunto.
Eu só queria sair daqui.
— A pessoa está presa — constato, agora com certeza.
— Você consegue falar com ela?
— Como assim falar?
— Se comunicar, transferir seus pensamentos pra ela…
— Eu não sou o Professor Xavier, Emma! — Encurvo os
ombros, frustrado. — Queria muito, mas não faço ideia de como me
comunicar com essa pessoa. Se é que é mesmo uma pessoa.
— Você acabou de dizer que é uma pessoa.
— Mas não tenho certeza!
— Tenta, Cobra. Tenta falar com a criatura — ela pede com
jeitinho. Não sei se consigo negar alguma coisa para Emma quando
ela fala desse jeito (o que é raro).
— Criatura?
— O ser. Enfim…
Volto a colocar minhas mãos na parede, repetindo um mantra,
na esperança de que a voz da minha cabeça seja ouvida pela
criatura presa do outro lado. Depois de meia hora, me sinto um
bobo.
Um bobo cansado.
Minha barriga ronca alto e me derrota de vez. Eu me afasto e
me jogo na cama, completamente exausto.
— Já desistiu? — Emma está praticamente em cima de mim, o
que não me ajuda em nada a me concentrar.
— Tô com fome. Não tem daquelas tortas de frango que sua
mãe faz não?
— Você tem dinheiro pra pagar?
— Para de ser ruim, Emma. Tô aqui pra te ajudar. Uma
tortazinha não vai prejuízo pra sua mãe.
— Vai, sim. E você não me ajudou. — Ela se joga na cama do
meu lado e se vira para me encarar. — Se você tentar mais um
pouquinho, te dou um pedaço.
— Dois. E dos grandes.
— Ok.
— E outra coisa… A gente vai tentar de novo.
— Tenta de novo o quê?
Antes que eu possa responder, um ruído alto, que mais parece
um grito, atravessa o quarto. Não sei o que está acontecendo, mas,
definitivamente, a criatura do outro lado não está nada bem.
Eu me levanto depressa, pregando o ouvido contra a parede,
quando outro grito me atinge. Mas, dessa vez, consigo entender
perfeitamente o que está sendo dito.
Por favor, alguém me ajuda!
Capítulo 6
Criatura da parede

Eu ouvi algo. Sei que ouvi. Tem alguém do outro lado da parede.
Mas não tenho muito tempo, preciso tentar seguir a voz que parece
estar na minha cabeça. Tenho que sair daqui depressa. Eles estão
atrás de mim. Não tenho como me esconder nessa cidade
fantasma. Preciso de ajuda.
Por favor, alguém me ajuda!
Capítulo 7
Emma

Eu não acreditei quando a… criatura se materializou no meu


quarto.
Cobra sussurrou algo como “ouça a minha voz” ou “siga a
minha voz” e, em poucos segundos, uma menina de cabelos
ondulados e castanhos, e completamente desfocada, apareceu no
meio do meu quarto.
Foi tipo o Noturno de X-Men. Veio do nada.
Mas, diferente do Noturno que é azul, essa menina é só branca.
Não tem cauda nem nada do tipo. Se não fosse por essas manchas
arroxeadas no braço, eu diria até que não há nada de diferente nela.
Tirando, é claro, o fato de não conseguir ficar estável. Juro! Parece
que a alma dela fica saindo e voltando para o corpo. É bizarro!
Ela ainda está assustada e acuada no canto do quarto. Cobra
tenta se comunicar, mas, até agora, nada.
Demora, tipo, uma meia-hora, sem brincadeira, para alguém
realmente falar alguma coisa.
— Quem é você? — Cobra pergunta. A moça se retrai ainda
mais.
— Quem são vocês? — A criatura (que agora não está mais
presa dentro) da parede devolve.
— Eu sou o Cobra. Aquela lá é a Emma. — Ele aponta para
mim e eu dou um tchauzinho com a mão. A criatura não fala nada,
apenas respira de um jeito forte e descompassado, parecendo um
animal que estava sendo caçado. — Ela estava sendo caçada —
Cobra fala baixinho, olhando para mim.
— Eu odeio o seu superpoder — resmungo, e ele faz uma
careta. Ai, como odeio esse não-binário! Cobra dá um sorrisinho. —
Que é? — Por que ele me tira tanto do sério só de olhar para mim?
— Você me ama, admite!
Pego a primeira coisa que vejo pela frente (um travesseiro) e
jogo nele, que começa a rir da minha cara. E, por alguns segundos,
até esqueço que tem uma completa desconhecida no meu quarto.
A ex-criatura da parede está olhando para nós dois. Ela tomba
a cabeça de lado para nos observar melhor. E eu noto que o
espectro inconstante das muitas versões deslocadas dela mesma
está mais estável, tanto que consigo vê-la melhor. Ela tem os olhos,
todas as partes deles, arroxeados, um roxo fluorescente.
— De onde vocês vieram? — ela pergunta.
— Não viemos de lugar nenhum, foi você quem apareceu aqui.
Você estava presa na minha parede — digo, como se isso fosse a
coisa mais normal do mundo.
— Presa na... parede? — Ela arregala os olhos. Faço que sim
com a cabeça. A garota parece menos acuada. — Mas é o mesmo
lugar.
— Como assim? — Cobra se senta na cama, abraçado ao
travesseiro que joguei nele, pronto para receber uma explicação.
— É que eu estava nesse quarto, só que não tinha ninguém,
não tinha nada. Aliás, não tinha nada na cidade inteira.
— A gente sempre esteve aqui.
Eu hein! Não estou gostando dessa história…
— Não. Não tinha ninguém aqui. — Ela teima. — Eu estava
sozinha até eles aparecerem.
— Eles? — Cobra se mexe de um jeito desconfortável na cama.
Mas a menina o ignora e começa a andar pelo quarto.
— Nós estamos em que ano? — desconversa, olhando para
mim.
— 2020 — respondo, cruzando os braços. Mas o que quero
saber é quem são eles.
— Mês?
— Setembro.
— Dia?
— É entrevista com a Marília Gabriela por um acaso? — Perco
a paciência.
— Nossa, desculpa! — Ela suspira e olha para Cobra, tentando
buscar um apoio nele. — Eu só queria entender como vim parar
logo aqui, nessa cidade.
— Você já conhecia? — Ele pergunta, com paciência.
— Já, nasci aqui! — Ela se senta ao lado dele. A aparência da
menina parece estar estabilizando ainda mais, até as manchas
arroxeadas do braço clarearam.
— E você tem família morando aqui?
— Não, mas um amigo meu amigo tem.
— E ele é filho de quem? — Cruzo meus braços.
— Da Ana professora e do Fernando da marcenaria. — A
menina me lança um olhar ansioso. Acho que nem ela sabe direito o
que está acontecendo. Olho para Cobra. Cobra olha para mim. Eu
não conheço essa gente. E, pelo visto, ele também não. — Vocês
não conhecem? — Ela começa a ficar desesperada.
— Não. — É Cobra quem responde.
— Talvez vocês não conheçam, mas aposto que a mãe ou o pai
de vocês deve conhecer — insiste.
— Acho difícil. O Cobra é o maior futriqueiro da cidade, aposto
que conhece todos os cinco mil habitantes.
Ele joga o travesseiro em mim, e dou um sorriso. Mas a menina
parece ainda mais angustiada. Ela se levanta e começa a andar de
um lado para o outro.
— Estamos em Santa Má, certo? — Tenta. Eu confirmo com a
cabeça. — O trisal sertanejo mora aqui?
— Trisal? Que trisal?
— Pedro, Henrique e Cris.
— Amada, o Henrique morreu!
— Quando?
— Sei lá, há uns três anos…
— Morreu não, amor! — ela rebate. — Tá super vivo e fazendo
um monte de live na quarentena. A última foi em agosto.
— Quarentena? — Cobra se levanta da cama. — Que
quarentena?
— Do Coronavírus... — Ela estreita os olhos roxos-neon.
— Eu disse que ela vinha de outra dimensão… — Cobra se vira
para mim.
— Não, você não disse.
— Disse, sim — teima.
Mas, antes que a gente possa começar nossa disputa infinita
sobre quem está certo, a criatura solta um grande “ah” no ar.
— Agora faz sentido! — Volta a se sentar na cama. — Estou em
outra dimensão. Não é a minha e nem a que eu estava antes, é só
uma dimensão muito estranha sem corona e trisal sertanejo.
— Quando você diz trisal, você quer dizer envolvimento a três?
— Cobra parece estar muito interessado no assunto.
— Uhum!
— Meu Deus, eu sempre soube que tinha algo naquela
história…
— Ei, vocês dois. — Movimento minha mão de um lado para o
outro tentando chamar a atenção deles. — Acho que a gente tem
uma parada mais importante aqui para resolver.
— Tudo bem, Emma, mas a gente pode comer aquelas tortas
antes? Eu realmente estou com muita fome. Acho que a Patrícia
não vai sair daqui…
— Patrícia? Quem é Patrícia, gente?
A criatura da parede levanta a mão.
— Desculpa não ter me apresentado… verbalmente.
— Que seja! — Reviro os olhos e viro as costas. Estou
começando a sentir falta da minha parede falante, quando ela era
apenas uma parede falante. — Vou buscar as tortas!
Capítulo 8
Cobra

A Emma não está nada feliz.


Acho que ela realmente acreditava que o mistério da parede
seria algo mais complicado de resolver, ou algo sombrio que
envolvesse criaturas não-corpóreas de outros planetas. Mas, para o
azar da imaginação de Emma, é só uma garota que começou a se
teletransportar na mesma época em que os nossos poderes e os
dela começaram a aparecer.
E eu penso que está muito além da nossa compreensão
entender como aquele meteoro nos transformou na nova geração
dos X-Men, só que no interior de Minas Gerais.
— Então, Patrícia… — Emma finalmente toma coragem de
perguntar o que estava martelando na cabeça desde antes de sair
para buscar as tortas. Ela não está confortável sentada no chão ao
nosso lado e fica esticando as costas o tempo todo.
— Trix, pode me chamar de Trix. — A menina coloca um
pedaço de torta na boca assim que termina de falar.
— Trix… — Se Emma tivesse aberto esse sorriso sarcástico
para mim, acho que eu nunca mais voltava aqui. — Você disse algo
sobre eles… Quem são eles?
— Não sei — Patrícia responde com a boca cheia. Emma olha
para mim em busca de uma resposta melhor, mas Trix realmente
não sabe de nada.
— É que ela estava presa sozinha em uma dimensão onde não
tinha ninguém, e aí eles apareceram — explico, enquanto a moça
termina de mastigar.
Isso eu já sei!, o pensamento de Emma é tão alto que faz minha
cabeça doer.
— É um homem e uma mulher — Trix revela. — Eles
apareceram do nada, dizendo que podiam me levar pra casa. Mas
aí quando perguntei quem eram, eles não pareceram muito
amigáveis. Sei lá, você não sai para ajudar alguém com uma arma
esquisita na mão, né?
— Eles estavam armados? — Emma se encolhe um pouco.
— Os dois. É por isso que fiquei tão assustada.
— E o que você fez? — pergunto.
— Me teletransportei pra casa. Quer dizer, pra sua casa. — Ela
olha para Emma. — Só que na outra dimensão. E aí comecei a ouvir
essa voz na minha cabeça.
— O Cobra.
— Isso. E então, quando eles voltaram a se aproximar, eu só
fechei meus olhos, segui a voz e apareci aqui.
— Simples assim? — Emma está desconfiada.
— Sim.
— E por que a gente acreditaria em você?
— Porque é a verdade, Emma — intercedo.
— Que maravilha, então! — Minha amiga se joga na cama,
deitando com os braços abertos. — Agora tem duas pessoas
armadas atrás da nossa querida criatura da parede…
— Criatura da parede? — Trix estica o pescoço para tentar ver
Emma.
— É assim que ela chamava você — explico. — A Emma
pensava que você estava dentro da parede dela.
— Ah, que coisa mais sem sentido! — Trix não queria debochar,
mas é exatamente assim que Emma entende. Para a minha
surpresa, ela não fala nada.
O que é bom, porque o silêncio que fica no quarto é o que
permite que eu escute duas pessoas conversando.
— Tem duas pessoas na parede — constato.
— O quê? — As duas dizem na mesma hora.
Eu me levanto e vou até a parede, colocando minhas mãos
sobre ela. Dá para ouvir claramente o que as duas pessoas do outro
lado estão pensando, o que me assusta um pouco. Eu não tinha
ouvido os pensamentos de Trix com tanta precisão.
— O que eles estão dizen... pensando? — Patrícia se ajoelha
na cama e coloca as mãos na parede também. Emma continua
deitada exatamente onde estava.
— Estão tentando definir o que fazer agora… A mulher acha
que pode te rastrear.
— Me rastrear? — Trix arregala os olhos. Acho que eu deveria
mostrar a ela meus olhos de Cobra, talvez se sinta mais em casa.
Sei como essa sensação de deslocamento a deixa desconfortável,
por mais que agora ela esteja muito mais estável nessa dimensão
do que antes. Ela parece estar se estabilizando aqui… ao mesmo
tempo em que eles parecem estar perdendo o rastro dela.
Não, sua inútil, ela não voltou para casa. Acho que é o homem
que pensa isso.
— A moça acha que o aparelho que o homem usa está com
defeito. Mas ele tem certeza que você se deslocou para uma
dimensão que não é a sua. Ah…
— O quê? — Trix bate no meu braço, ansiosa. — O que foi?
— Eu acho que eles são tipo uma empresa… Não, uma
associação. Uma associação que controla as dimensões. Pensa
mais — sussurro o pedido para a parede.
Como ela chegou lá?, o sujeito está realmente chocado com a
habilidade de Trix se mover entre dimensões. O que não é nada
bom.
— Não sei se a intenção desse povo é realmente te levar para
casa. — Respiro fundo. — Eles não têm pensamentos de mocinhos.
— E como é que eles me rastreiam?
— Acho que seu deslocamento entre dimensões causa alguma
distorção no tempo/espaço. — Eu me afasto da parede e aponto
para a pequena aura arroxeada em volta de Trix. Minutos antes,
dava para ver duas versões dela mesma distorcidas, agora já não
dá mais. — E eles têm esse dispositivo que consegue detectar essa
distorção.
— Ou seja, não consigo nem fugir, porque eles sempre vão me
encontrar.
— Não sei… eu teria que me aproximar mais para ouvir melhor.
— Eu acho que essa parede por si só já é uma distorção no
tempo/espaço — Emma diz com uma voz grave. — Ela permite que
Cobra escute os pensamentos de quem está do outro lado. Até eu,
que nem leio mentes nem nada, conseguia ouvir os ruídos que a
sua presença lá causava.
— Faz sentido — concordo.
— Seria tipo um portal? — Trix se aproxima de Emma. Pela
primeira vez, acho que as duas não vão brigar.
— Mais ou menos. Talvez uma janela? — Ela se levanta e fica
sentada de frente para a outra.
Trix acha Emma muito bonita de perto. E está certa.
— Você já viu isso em algum lugar? — pergunto para Trix. Os
pensamentos da garota estão muito confusos, mas há algo sobre
um portal entre dimensões.
— Meu amigo de infância, Maycon, me ligou uns três meses
atrás, dizendo que teve um sonho muito doido onde ele e o
namorado viam várias versões de si mesmos em outras dimensões.
Não dei muita bola, porque queria mais era saber desse namorado
dele, porque esse relacionamento era uma novidade pra mim…
Mas, não sei.
— Ele deu algum detalhe desse sonho? — pergunto.
— Não lembro, só sei que tinha algo a ver com a casa onde
eles moram.
— Talvez não fosse um sonho — Emma diz exatamente o que
eu estava pensando.
— Eu devia ter falado para ele sobre o meu poder, mas achei
que ninguém acreditaria.
— Te entendo… — Emma volta a se deitar. Trix se deita do lado
dela.
— Você também tem poderes?
Me sinto um pouco intrometido por ficar observando a cena,
mas… sou futriqueiro mesmo, então fico olhando as duas
interagindo de um jeito sociável pela primeira vez.
Volto a colocar a mão sobre a parede quando um pensamento
alto me atinge. É da mulher.
Achei.
Capítulo 9
Trix

Estamos, eu e Cobra, correndo no meio do mato.


Ele fica dizendo que eu preciso me estabilizar. Porém, não faço
ideia de como fazer isso. Não sinto que pertenço a esse lugar, mas,
quanto mais tempo passo com ele e com Emma, mais me sinto em
casa.
Será que é isso? Será que preciso criar conexões?
— Eu acho que sim. — Cobra para um pouco e coloca as mãos
sobre os joelhos.
— Cadê a Emma?
— Ela disse que juntaria comida e nos encontraria lá na casa
da árvore.
Entendo que eles não querem ficar perto do lugar onde crêem
ser mais fácil de me rastrear: a parede de Emma. Mas não sei se
fugir de quem quer que esteja me perseguindo vá adiantar alguma
coisa.
— E se eles chegarem na casa dela antes? E se pegarem ela?
— Minha voz está tão aguda que incomoda até a mim mesma. Não
sei se é pelo desespero ou pelo pique da corrida.
— Então coitados deles… — Ele zomba, fazendo uma careta.
— Credo, Cobra, não fala assim! Ela é meio difícil, mas é…
— Bonita — ele completa meu pensamento. Bufo. — Você só
constatou o óbvio, Trix.
— Você… gosta dela?
Cobra não responde. E é como dizia a minha mãe: quem cala
consente.
Sei que não preciso falar nada, porque Cobra já ouviu meus
pensamentos.
— Acho que ela gosta de você também. — Começo a andar,
porque não consigo mais correr. Sou sedentária, usava meu poder
até para buscar água na cozinha.
Minha sala é conjugada, a cozinha ficava há exatos dois passos
do colchão que eu usava como sofá.
— Duvido. — Ele me acompanha. — Tudo o que ela pensa é
em como sou irritante e me culpa por ter sumido o semestre inteiro.
— Você sumiu?
— Não sumi de verdade, só me afastei dela. Tinha muita coisa
acontecendo comigo.
— Talvez a Emma esperasse que você, sei lá, contasse com
ela nos momentos difíceis. É o que amigos fazem.
— Ai, essa doeu.
— Eu menti?
— É mais complexo — ele hesita um instante. — Eu beijei ela e
corri.
— Você o quê? — Seguro para não rir. — Quem beija alguém e
sai correndo?
— Pode rir, sei que foi ridículo. É que eu sabia que não era uma
garota e tinha medo da Emma não gostar de mim se eu não fosse
uma garota.
— As pessoas dessa dimensão são todas assim?
— Não. Só eu que sou bobo e inseguro.
Bato com meu ombro no dele.
— Eu acho você uma gracinha.
— Estamos chegando. — Ele desconversa, envergonhado, e
passa na minha frente. Olho para trás em busca de algum sinal de
Emma, mas não vejo nada. Volto a olhar para o caminho que Cobra
abre na minha frente.
Ao longe, uma árvore alta, com um tronco grosso, se destaca
entre as demais. Diferente do que pensei, a casa da árvore não fica
no alto, mas sim no chão, usando o tronco como uma espécie de
parede.
— Por que vocês demoraram tanto? — Emma grita ao longe.
— Como ela chegou aqui tão depressa?
— A Emma tem… superpernas! — Cobra responde, levantando
os braços, completamente empolgado.
O que exatamente ele quis dizer com superpernas?
Capítulo 10
Emma

Patrícia está há exatas duas horas olhando para as minhas


pernas. Não estou brincando, eu contei.
— Além de correr rápido e pular alto, o que mais elas fazem?
Não sei se é uma curiosidade genuína ou se existe algum
pensamento impróprio por trás dessa pergunta. Pelo jeito como
Cobra ri, eu apostaria na segunda opção.
— É provável que, se eu chutar a sua cara, te mato.
Ela morde o lábio discretamente e Cobra cai na gargalhada de
novo.
— Desculpa, é que… estou há cinco meses isolada em casa
sem encostar em ninguém.
— Alossexuais… — debocho, sentindo uma pontada de
empatia. Não consigo imaginar o que é viver isolada.
Cobra olha na minha direção, depois abaixa a cabeça.
— Ah… — ele diz.
— Ah o quê? — Trix pergunta, curiosa.
— Nada não — Cobra desconversa. — Será que eles
conseguiram mesmo te achar, Trix?
— Espero que não.
— Já não dá para ver os seus vultos. E seu olho está quase
normal — avalio, me aproximando dela. A parte branca dos olhos
não está mais roxa, mas a íris ainda não voltou para a cor normal.
Eu queria ver como eles são de verdade.
— Acho melhor a gente dar um jeitinho de verificar se a
Associação está por aí, Emma. Melhor que eu vá — Cobra estica as
costas. — Bom que eu trago uns travesseiros lá de casa.
— Se alguém for sair daqui que seja eu, porque vou rápido.
— Peraí, vocês vão ficar aqui?
— Lógico que vamos!
— Por quê?
— E por que a gente não ficaria? — Também estico as minhas
costas. Realmente precisamos de alguns travesseiros. E algo para
nos cobrir, porque vai esfriar. Costuma ventar muito aqui.
Aquele dia estava ventando muito no seu cabelo, Cobra diz…
Não, espera. Cobra pensa.
Eita, não acho que ele tinha a intenção de que eu ouvisse isso.
— Cobra, eu acho que…
Ele coloca o indicador na boca.
— Estou ouvindo alguém.
Está um silêncio absurdo lá fora, só dá para ouvir o barulho do
vento batendo nas folhas das árvores. Ficamos em silêncio por
alguns minutos. Evito pensar em qualquer coisa, mas quanto mais
evito, mais penso.
Sinceramente não sei como alguém consegue não pensar em
nada. É impossível. Principalmente em um dia no qual uma pessoa
se materializou no seu quarto vinda de outra dimensão e agora está
sendo caçada por uma associação que não deve ter nada melhor
para fazer…
— Emma, xiu! — Cobra me dá uma bronca.
— São eles? — Trix se mexe do meu lado.
Cobra demora a responder.
— Não sei. Vou sair um pouco e tentar ver se consigo ouvir
melhor.
Não gosto da ideia, mas se Cobra acha que é o melhor a fazer,
confio nele.
Patrícia ainda está olhando para mim de um jeito fixo.
Normalmente eu me sentiria mal, mas há algo nela que me deixa
confortável. Talvez eu tenha me acostumado com a presença dela
na minha parede. Ok que só durou três dias e na maior parte do
tempo eu pensei que estava enlouquecendo…
— Desculpa estar causando todo esse incômodo.
— Relaxa, você já estava me incomodando antes… — Não era
exatamente o que eu queria dizer, mas é assim que sai. Abro a boca
para explicar, mas ela sorri para mim.
— Ainda não consigo entender como você podia me sentir,
mesmo eu estando presa em outra dimensão.
Devolvo o sorriso, apesar de nunca ter dito nada sobre sentir a
presença dela. Eu falei sobre ouvir ruídos que eu achava que eram
uma voz.
— E eu não entendo como você não saiu de lá antes. Tipo,
você disse que fechou os olhos e seguiu a voz do Cobra, por que
você não voltou para casa?
— Eu tentei. Tentei muito. Só que nunca deu certo. É que meu
poder funciona assim: penso para onde quero ir ou do que preciso e
simplesmente vou. Penso que quero uma água? Fecho os olhos e
apareço na cozinha.
— E no que foi que você pensou para ir parar em uma
dimensão vazia?
— Promete que não vai rir?
— Não.
Ela cruza os braços, mas fala mesmo assim.
— Eu pensei que queria ver meu crush.
Eu ri. É óbvio que ri.
— E foi parar em uma dimensão onde não tinha ninguém? — É
sério, não dá para não rir. — Pra mim, isso é mais que um sinal!
— Pensando bem, acho que a pessoa nem era tão crush assim.
Eu só estava muito carente. — Ela descruza os braços. — Pelo
menos vim parar aqui e conheci vocês.
— Não acho que me conhecer seja algo assim tão legal para
compensar os três dias que você ficou sozinha presa em uma
cidade fantasma, mas… se você está dizendo…
— Acredita em mim, a cidade fantasma não foi tão pior do que
ficar em casa sozinha por meses.
Olho para a entrada da cabana. Nem sinal de Cobra.
— Já está escurecendo…
— Dá para ver que vocês se gostam muito, né? Você e o
Cobra.
— Hum, bobagem! — Levanto os ombros. — Ele vacila demais!
— Sei…
— É sério! — Agora sou eu quem cruza os braços.
— Mas, tipo, existe essa possibilidade? De vocês terem algo a
mais? — Ela está bastante interessada no assunto para o meu
gosto…
— Bom, levando em conta que eu sou bi e ele também,
tecnicamente nada impede. — Quase conto o que rolou entre nós
dois. Mas Cobra aparece de repente e anuncia:
— Não são eles.
Suspiramos aliviados, e eu chego a encolher os ombros.
— Então vou lá em casa buscar as coisas pra gente passar a
noite. Vou dizer pra minha mãe que vou dormir na sua casa. — Eu
me levanto e me viro para Cobra. — Quer que eu passe lá na sua
casa e busque algo?
— Não precisa — Sorri.
Sorrio também. Sei que a situação é surreal, mas estou feliz de
ter voltado a me aproximar dele. Não aguentava mais ficar olhando
para a nuca de Cobra durante a aula, imaginando que minha mão
ficaria muito bem ali, ou pensando em como seria bom assistir
aquelas séries antigas de nerd que a gente gosta, deitados no chão
do quarto dele. E é óbvio que esse enxerido está ouvindo tudo o que
estou pensando. Que ódio!
— Seria ótimo, Emma.
Reviro os olhos.
— Você é um ridículo! — Saio batendo o pé forte no chão, o
que percebo ter sido uma péssima ideia quando tudo começa a
tremer ao meu redor.
— Vai com calma aí… — Ouço Cobra gritar, então começo a
correr rápido para poder pensar longe daquele fofoqueiro
intrometido.
Capítulo 11
Cobra

Emma está demorando demais.


Tipo, demais mesmo.
Trix anda de um lado para o outro na cabana. Ela já está quase
completamente estável aqui, ninguém notaria a diferença entre ela e
qualquer outra pessoa. Exceto pelas íris que continuam roxas-neon.
— Como é lá na sua dimensão? — Tento puxar papo para
descontrair.
— Uma bagunça. Elegemos um presidente que poderia
facilmente ser substituído por um pedaço de cocô.
— Aqui também.
— Mas vocês não têm coronavírus, quarentena e economia
quebrada.
— Lamento dizer que temos a economia quebrada. — Escoro
na árvore que serve de parede. — Mas eu quero saber da sua vida.
— Não tem nada muito interessante para saber. — Ela
finalmente aquieta e se senta. — Minha vida é super comum.
Comecei a fazer odonto esse ano, bolsa integral na faculdade. Moro
sozinha em uma quitinete ridícula de pequena. Meu único amigo
mora com o namorado em outra cidade. Eu e esse namorado dele
não conversamos desde que brigamos em 2017. Éramos três
amigos inseparáveis. E duvido que alguém realmente esteja
sentindo a minha falta.
— Nossa… Mas e os seus pais?
— Meu pai largou a gente e foi embora pros Estados Unidos
ilegalmente quinze anos atrás. Eu tinha quatro anos, mal me lembro
dele. Minha mãe morreu quando eu tinha nove. Aí eu passei a morar
com uma tia, irmã do meu pai, que não via a hora de se livrar de
mim.
Não sei o que responder. Trix fala de um jeito tão natural e
seco, como se não se importasse com nada disso, mas eu sei que
se importa.
— Falei demais, né?
— Não. Eu só não soube o que dizer.
— É que faz tempo que não converso de verdade com alguém.
Eu só postava coisas no Twitter e arrumava briga. Às vezes
encontrava um crush ou outro para passar o tempo. A quarentena
me deixou meio perdida. Era para eu estar aproveitando o primeiro
ano de faculdade para conhecer novas pessoas. Mas veio essa
porcaria de vírus e cancelou os planos de todo mundo. — Ela coça
a cabeça. — Desculpa, eu tô muito nervosa. Cadê a Emma?
— Não sei.
— Você não consegue ouvir ela?
— Não. Não tô ouvindo nada. Só você. E não, não foi um erro
você ter vindo pra cá. Nem começa a pensar nisso…
— E se vocês estiverem em perigo? E se essas pessoas forem
caçadores de jovens com superpoderes?
— Não que isso vá te consolar, mas acho que eles só estão
atrás de você…
— O que não impede de ferirem você e a Emma.
— Para com isso, Trix.
Ouço a mente barulhenta de Emma se aproximar. E respiro
aliviado por alguns segundos.
É só o tempo de me levantar e ouvir duas outras mentes
barulhentas surgirem do nada. Uma espécie de porta arredondada,
com um brilho amarelado e inconstante, aparece bem em frente à
cabana, do lado de fora.
Trix recua, se apertando contra a árvore.
— Eu falei para você que ela poderia estar acompanhada, não
falei, Naro? — a mulher, que surge de dentro do portal, comenta, e
recebe um olhar furioso do homem que a acompanha.
O tal Naro se aproxima da porta da cabana, mas antes que
possa entrar, Emma para em sua frente. Eu nem vi ela chegar.
— Quem são vocês? — pergunta.
— Não é da sua conta, garota. Agora sai da minha frente que
tenho um trabalho para fazer.
— Nossa, e você é muito mal-educado! — Ela reclama.
— Vocês dois. — Ele aponta para Emma e para mim. — Nosso
trabalho não envolve vocês, sigam para suas casas.
— E você é minha mãe para me dizer o que eu tenho que
fazer? Pois é, não. Então sai você. — Emma não se move nem por
um centímetro.
— Naro. — A mulher coloca a mão sobre o ombro do sujeito. —
É melhor que a gente converse com esses jovens. — O homem
recua a contragosto. — Não estamos aqui para ferir ninguém. Só
queremos levar a senhorita de volta para casa — diz, olhando para
Trix.
— E quem são vocês? — Patrícia refaz a pergunta que havia
feito antes, quando os encontrou pela primeira vez. A diferença é
que agora a mulher responde.
— Somos a Associação e trabalhamos para garantir que
nenhuma anomalia ocorra no tempo/espaço. E você sabe muito
bem, mocinha, que não pertence a este lugar! — Ela olha
diretamente para Trix. Não gosto do tom professoral na voz dessa
mulher, acho que prefiro o sujeito sem educação.
Há algo que não está sendo contado aqui, mas não consigo
saber o que é.
— Se eu aceitar ir com vocês, ninguém se machuca, certo?
— Mas é claro que não. Não há motivo para isso.
Eu não gosto desse tom de voz… Não gosto mesmo!
— Para com isso, Trix. Você não vai com esse pessoal
esquisito. — Emma intervém, se aproximando de Patrícia, na
tentativa de se colocar entre ela e os dois membros da Associação.
No entanto, é segurada pelo braço.
— Já demoramos tempo demais aqui, Roberta. — Naro joga
Emma para o lado e vai na direção de Trix. — Vamos acabar logo
com isso!
Nem Naro, nem eu, nem ninguém esperava que Emma fosse
pular sobre as costas dele, o impedindo de se mover.
— Tenho certeza que nós podemos resolver…
— Ai, moça, cala a boca! — Perco a minha paciência, enquanto
Emma continua pendurada sobre as costas do sujeito. E, quando
ele tenta puxá-la, leva uma mordida na mão.
Chego até a sentir pena do coitado, mas passa logo.
— Essa garota é uma selvagem! — ele reclama.
— O que foi que você disse? — Emma está furiosa, consigo
sentir daqui o calor que vem dela. Entre uma piscada e outra, minha
amiga chuta Naro de volta para o portal de onde ele veio.
— Jovens, se acalmem! — A mulher ajeita uma mecha de
cabelo, se afastando o máximo que consegue de Emma. — Nós
somos uma associação pacífica. Não queremos fazer o mal, apenas
controlar o distúrbio que você causou. — Aponta para Patrícia, que
ainda está encolhida no canto. — Você não quer voltar pra casa?
Não.
Meu coração se parte um pouquinho ao ouvir o pensamento de
Trix, porque sei que ele é honesto. Ela não quer voltar. Mas se
levanta e vai na direção da mulher.
— O que você está fazendo, Trix? Vai confiar nesse povo? —
Emma tenta impedi-la.
— A moça tem razão — Trix fala baixinho. — Não pertenço a
esse mundo aqui. Talvez exista uma versão minha perdida por aí.
Imagina se um dia eu me encontro comigo mesma? Seria uma
bagunça. — Ela para na frente de Emma. — Se ela diz que pode me
levar de volta para a minha dimensão, não tenho motivo para não ir.
— Trix está tão triste que meu coração se parte. — Gostei muito de
conhecer vocês. Se eu fosse desse mundo, quem sabe a gente
poderia ser amigo, ou você e suas pernas me dariam uma chance.
— Emma sorri. — Enfim, talvez um dia a gente se esbarre por aí…
— Ela vira as costas e se aproxima da mulher.
— Não faz isso, Trix — peço. Não quero que ela vá embora. —
Se você ficar, a gente pode fazer tanta coisa junto. Pode ver Star
Trek… ou um DVD desses sertanejos que você gosta.
Os olhos dela estão cheios de água. Me aproximo para secá-
los.
— Esse não é o meu lugar — insiste, e termina de partir meu
coração. Poxa, ela está tão triste que essa decisão não parece ser a
correta. Tenho quase certeza de que não é a correta.
— Ela quer ir, Cobra. — Emma me puxa para trás. Não, ela não
quer, quase grito. Só está fazendo isso porque acha que é o certo.
— Tchau, gente. Obrigada por tudo. — Ela vira as costas,
sendo guiada pela mulher. Mas, antes de entrar no portal, se vira
para nós e diz: — E pelo amor de Deus, parem de bobagem e se
beijem logo!
Sorrio, vendo Trix ir embora.
— Eram castanhos — digo, quando a luz do portal some no ar.
— O quê? — Emma pergunta baixinho. Eu me viro para ela
antes de responder:
— Os olhos da Trix. Eles eram castanhos.
Capítulo 12
Criatura da parede

Eles mentiram para mim.


Não estou de volta em casa, mas sim em um quarto todo
branco, com luzes fortes que não me deixam dormir. Naro me jogou
aqui com a brutalidade de sempre, e Roberta saiu sorrindo com
aquele ar falso. Descarada, mentirosa!
Eles são mesmo uma associação que tenta controlar o
tempo/espaço, não permitindo anomalias dimensionais, ou tentando
evitá-las. E meu poder é perigoso demais. Bom, foi isso o que me
disseram antes de me jogarem aqui.
É óbvio que nos primeiros dias eu tentei me teletransportar.
Para qualquer lugar, até mesmo para a dimensão da cidade
fantasma. Não tive sucesso. Acho que essa sala é feita com algum
material especial.
Em outras palavras: me lasquei.
E ninguém vai me resgatar, como nos filmes, porque ninguém
sabe que estou presa sei lá onde no tempo/espaço.
Parabéns pelas péssimas escolhas, Patrícia.
Tento, mais uma vez, mandar uma mensagem mental para
Cobra, apesar de não fazer ideia de como ele pode me ajudar dessa
vez. Mas só ouço o silêncio.
Bom, é isso. Tenho que aceitar que passarei o resto da vida no
quarto branco do BBB. Tá feliz, Manu Gavassi?
Penso nas pernas de Emma.
Penso nos olhos de Cobra, que eu nunca nem vi. Por que será
que ele não tirava aqueles óculos? Nem tive tempo para pensar
sobre isso. Infelizmente agora tenho tempo de sobra.
— Ei… — Olho para uma das câmeras que me vigia. — Tem
como você colocar ao menos uma musiquinha? Eu gosto de
sertanejo. Pode ser Henrique Carvalho…
Ou será que ele está morto nessa dimensão? Será que eu
estou morta em alguma dimensão?
Penso no meu amigo Maycon e no sonho que ele teve, vendo a
si mesmo em várias versões. Eu queria me ver em várias
dimensões. Na verdade, queria ter continuado lá na casa da árvore
com Emma e Cobra.
Eu me deito no chão, com a barriga para cima. Uma boa alma
liga uma música do Henrique no sistema de som. Se tivesse como,
eu beijaria essa pessoa.
Fecho os olhos com força e me imagino de volta em casa,
deitada vendo vídeos no TikTok. Mas minha mente não consegue
enxergar direito os detalhes. Tudo parece deslocado, com uma aura
roxa-neon em volta. Um vento frio bate no meu rosto, me obrigando
a abrir os olhos.
Não estou mais no quarto branco. Ao meu redor, espelhos de
tamanhos diferentes me mostram várias versões de mim. Me vejo
criança brincando com Maycon e Rafael na mata perto da minha
casa, perto de onde fica a casa da árvore de Emma e Cobra. Mas
não vejo só eu. Vejo Cobra beijar Emma e sair correndo. Vejo
Maycon e Rafael se beijarem deitados no chão em uma casa velha.
Vejo meu pai limpando a neve em frente a uma casa grande. Vejo
minha mãe andando de bicicleta com sua maleta de esmaltes na
cestinha.
— Onde estou? — pergunto para ninguém.
Todas as imagens estão desfocadas e arroxeadas, exceto uma.
É uma parede branca, já encardida e com a tinta descascando. Só
uma parede.
Aperto os olhos com bastante força, desejando, com todo o
meu coração, estar naquela imagem. Vejo as luzes neon roxas me
rodearem e me sinto completamente fora de mim.
Não preciso nem abrir os olhos para saber que estou no lugar
certo.
Emma, Cobra e a garota do freezer
Capítulo 1
Emma

Fico olhando para a porta da casa da árvore por um tempão.


Não acredito que Trix foi embora assim. Nem deu tempo de saber
mais sobre ela, conhecer quem ela é. Eu nem perguntei que tipo de
comida gosta ou o motivo de o apelido dela ser Trix e não Patty.
É possível sentir falta de alguém que você nem conhece
direito?
— É!
Eu me viro com tudo para dar um tapa bem forte no braço
desse não-binário enxerido, mas ele já se afastou. Está começando
a ficar esperto.
— Você para de ler minha mente, Cobra! Na boa!
— Eu não sei como parar! — Ele abre os braços, deixando as
palmas das mãos abertas.
— E você, por um acaso, tentou?
O silêncio é a resposta perfeita. Sei muito bem que Cobra fica
ouvindo nossos pensamentos porque gosta!
Tiro meus tênis e jogo de qualquer maneira no chão. Passo por
Cobra e me sento perto da árvore, com as costas apoiadas nela. Ele
se senta do meu lado direito. Continuo olhando para a porta, na
esperança de que Trix apareça por ali, do nada, como tinha feito
hoje mais cedo no meu quarto. Mas o aperto no meu peito me diz
que ela não vai aparecer.
— Tô sentindo falta dela também! — Cobra encurva os ombros
e joga a cabeça para trás, a encostando no tronco da árvore.
— É estranho, a gente mal conversou. — Estou desconfortável
com esse vazio que estou sentindo.
— Você também acha que… parece que conhece ela…
— A vida inteira! — completo.
— É! — Ele volta a ficar com a coluna reta e se aproxima mais
de mim. Meu instinto é me afastar, mas é o Cobra, sabe? Não quero
me afastar dele. Óbvio que ele ouve esse pensamento e aproveita
para me puxar para mais perto e me envolver nos braços. Eu acho
ruim? Não. Então deixo.
— Será que ela vai voltar um dia? — Meus olhos estão
começando a encher de lágrimas.
— Não sei, Emma! — Ele apoia o queixo no topo da minha
cabeça.
Eu bufo.
— Acho que meu quarto vai ficar silencioso demais!
Capítulo 2
Cobra

Quando voltamos para a casa de Emma, eu não entro. Parece


tão estranho entrar no quarto dela e não ouvir Trix. Ok, talvez não
faça muito sentido, mas é assim que me sinto. É como se ela
preenchesse um espaço que eu nem sabia que estava vazio. E só
percebi que estava vazio quando ela entrou naquele portal com
duas pessoas estranhas e desapareceu.
Assim como Emma, eu também tenho muitas perguntas a fazer,
quero saber mais sobre Trix, quero perguntar por que ela não se
incomodou por eu ter lido sua mente, quero entender por que ela se
sentia tão sozinha.
Mas agora talvez seja tarde, né? Eu não devia ter deixado
aquela Associação levar a Trix.
No fundo, sei que vai passar com o tempo, que, cedo ou tarde,
Trix vai virar uma lembrança de um dia muito doido que vivi com
Emma. Mais um dia para a lista de dias estranhos que venho
vivendo. E o pior é que nem posso dizer que eu gostaria que as
coisas voltassem a ser como eram antes. Estou muito mais feliz
agora, sendo eu mesmo, apesar dos olhos de cobra e de ouvir
pensamentos indesejados.
Pelo menos fico por dentro das fofocas.
Descendo a rua na direção da minha casa, me pego olhando
para trás mais vezes do que gostaria. Quero que Trix volte. Não
para a dimensão dela, mas para esta. E nem sei por que quero isso.
E também não sei por que volto à casa da árvore todos os dias
depois da aula. E nos fins de semana. Não converso com Emma na
escola, só fico quieto ouvindo seus pensamentos confusos,
desejando profundamente que ela volte a escutar ruídos na parede.
Mas ela não volta.
Um dia durante a aula, semanas depois, quando eu já havia
desistido de viver outro dia estranho com Emma, acontece algo
diferente. O professor de filosofia está sentado em sua cadeira,
quase dormindo, enquanto nós deveríamos estar escrevendo um
texto sobre Karl Marx. Não sei como ele consegue pegar no sono
com todo esse barulho. E mesmo no meio dessa confusão de
vozes, a de Emma sempre se destaca entre as demais.
— Será que a Trix voltou pra casa dela? — Acho que Emma
quer que eu ouça esse pensamento. Então, apenas me viro para
encará-la. Ela sorri e me chama para perto. Arrasto minha cadeira
fazendo um barulho agudo que deveria fazer a sala inteira olhar
para mim, mas está todo mundo tão concentrado nas próprias
conversas que nem nota.
Eu me sento ao lado de Emma e cochichamos hipóteses até o
fim da aula. E fico feliz por, finalmente, termos falado sobre Trix.
— Minha mãe vai fazer torta assada com carne moída e
batatinha hoje. Quer ir lá em casa? — Ela sabe que não precisa me
oferecer comida para me convencer. Mas finjo ter aceitado só pelas
tortas.
— Ok. — Dou de ombros.
— Tá bom!
Não falamos muito enquanto subimos a rua. Emma anda muito
calada. Não em pensamento, a mente dela não para nunca. Mas
nunca a vi tão quieta.
— O que foi, Emma? — Não aguento vê-la assim.
— Eu meio que… gostava da minha parede ser diferente. —
Hesita por alguns passos. — Ela me distraía, me fazia companhia.
Enquanto eu criava milhares de teorias que explicassem aquilo, não
me sentia sozinha.
Engulo em seco e fico calado, sem saber o que falar. Emma
encontra, na própria mente, os amigos que não tem aqui fora. Tudo
culpa minha, eu não devia ter me afastado.
— Emma… — Abro a boca para continuar, mas ela começa a
andar mais rápido. Não quer as minhas desculpas. Então não falo
nada.
O cheio das tortas chega até mim antes mesmo de Emma abrir
a porta de casa. Meu estômago ronca, deve estar feliz. Passo a
língua pelos lábios e puxo com força o cheiro para dentro dos meus
pulmões.
Quando entro, vejo tia Jana pela entrada da cozinha semi-
profissional onde faz suas tortas e outras comidas para vender. Jogo
um beijo para ela, que me devolve o cumprimento com uma
piscadela. Emma já está no quarto, se jogando na cama. Eu me
jogo do lado dela.
— Minha mãe está feliz que você voltou a ser meu amigo! —
comenta, de um jeito amargo. — Mas a gente não voltou a ser
amigo!
— Quem disse que não?
— Você mal conversou comigo na escola! — É óbvio que ela
jogaria isso na minha cara.
— Você que não conversou comigo na escola! — Eu me
defendo. — Pensei que não queria papo.
Ela revira os olhos, como sempre.
— Eu que tenho superpernas, mas é você quem vive correndo!
— Sei que ela está falando do beijo que demos no começo do ano.
Respiro fundo e me viro para encará-la, apoiando o rosto com a
mão, coloco meu cotovelo sobre a cama. Com a outra mão, tiro
meus óculos. Vejo um sorrisinho discreto nascer nos lábios dela. E
continuo olhando para os lábios de Emma enquanto me aproximo
mais e mais…
— E se eu não correr agora? — falo baixinho. Minha boca tão
perto da dela…
— Eu não sei. — Emma se afasta só um pouquinho. Tem medo.
Eu quero que ela converse comigo, e quero confessar os medos
que eu mesmo carrego. Ficamos nos encarando por um segundo.
No impulso, me aproximo mais. Nossos narizes se encontram e eu
fecho meus olhos. Mas Emma coloca os dedos da mão aberta nas
minhas bochechas e me empurra.
— Você ouviu isso? — diz, de um jeito meio oscilante.
— Não ouvi nada, Emma! — respondo, frustrado, sem nem
pensar. Ela se apóia nos joelhos e vai andando até a parede, onde
coloca as duas mãos espalmadas e o ouvido esquerdo.
— Emma, não tem nada aí, a Trix… — Cobra? Arregalo os
olhos. — Não pode ser! — Eu me aproximo da parede o mais
depressa que consigo.
— Ouviu agora? — Emma pergunta, desaforada. Colo meu
ouvido direito na superfície fria.
Cobra, você está aí?
Fecho os meus olhos e me concentro, usando toda a força que
tenho naquele pensamento, assim como eu havia feito dias antes.
— Trix — digo alto. — É só seguir minha voz, você sabe como
fazer.
Silêncio.
Trix?
Tento, apenas com o pensamento. Não ouço nada.
Aqueles segundos de silêncio são gelados.
— Será que ela foi parar no lugar errado de novo? — Emma
aperta os olhos, preocupada, e começa a tagarelar e tagarelar.
Então vem o grito.
— O que é isso, minha Nossa Senhora?! — É tia Jana.
— Mãe? — Emma sai correndo. Vou atrás.
Dona Jana está com as duas mãos sobre o peito, o freezer
onde guarda as comidas que vende está aberto. Tem várias tortas
espalhadas pelo chão da cozinha semi-profissional.
— O que foi, Mãe? — Emma está assustada. Mas não mais
que dona Jana, que nos olha atônita, aponta para o freezer e diz:
— Emma, por que tem uma garota no meu freezer?
Capítulo 3
Garota do freezer

— Por que a Frozi tá no meu freezer, Emma? — A voz da mulher


está mais aguda agora, e faz minha cabeça doer ainda mais. — O
que tá acontecendo?
— Frozi? — Outra pessoa diz.
— Mãe, calma! — Vejo uma garota se aproximar da abertura
acima de mim. — Meu deus! — Ela dá um pulo para trás e sai da
minha vista. Eu quero me levantar, mas parece que toda a força e
energia do mundo foram tiradas de mim.
As vozes de três pessoas começam a se misturar em uma
discussão sobre o que está acontecendo. Coisa que nem eu sei.
Fecho meus olhos, me sentindo fraca demais até para mantê-los
abertos. Uma mão bem quente encosta sobre a minha testa.
— Gente, a pessoa está congelando aqui. — Sinto duas mãos
me segurarem pelas axilas. — Me ajuda, Emma!
Outra pessoa pega minhas pernas e tentam me erguer. Ouço
uma reclamação, e duas mãos apoiam minhas costas enquanto sou
retirada de dentro do freezer e colocada no chão, que não está
quente, mas é bem mais agradável.
O cheiro de frango cozido me atinge quando puxo o ar para
respirar melhor.
— Que brincadeira é essa? — É a mulher.
— Mãe, não é brincadeira. A gente também não sabe o que tá
acontecendo?
— Vai mentir pra mim agora, Emma?
— Não é mentira, mãe, eu juro! Nunca vi essa menina na vida.
— A garota parece nervosa. Faço um esforço sobrehumano para
abrir os olhos e consigo observar, ainda que a visão esteja um
pouco embaçada, as três pessoas em pé acima de mim.
A mulher deve ter uns quarenta anos. É negra, mais escura que
a garota… são bem parecidas, inclusive. Devem ser mãe e filha. Ela
está vestida toda de branco, e usa touca e máscara. Não dá para
ver se o cabelo dela é rosa como o da menina, mas eu duvido muito
que seja. Acho que já as vi em algum lugar. Já a outra… pessoa… é
bem alta, acho. Também tem a pele negra, mas bem mais clara que
as outras duas.
Resmungo quando uma pontada de dor acima da minha
sobrancelha direita me incomoda. Faz meus olhos lacrimejarem,
então os fecho. Mas, antes, consigo ver de relance que os três
estão olhando para mim.
De repente, me sinto uma alienígena.
Capítulo 4
Emma

Não faço ideia de como a Elsa do Frozen veio parar na minha


cozinha e, sinceramente, estou pirando o suficiente para me
preocupar com outras coisas no momento. Tipo: foi a minha mãe
que achou a garota dentro do freezer.
Minha. Mãe.
Dona Jana é muito boa, a não ser que você mexa com duas
coisas: suas filhas e sua cozinha.
Acho que uma moça, que realmente parece alguém que veio de
um filme da Disney, até a trança embutida nos cabelos loiros, será
que é isso o que está acontecendo? Será que as histórias de
princesa são reais? Nossa, tomara que não… Só tem princesa
branca e magra. Se bem que a Tiana… Enfim, acho que uma moça
aparecer no freezer da minha mãe conta como a segunda coisa.
— A gente precisa levar a garota pro hospital! — sugere, num
tom que faz com que não pareça uma sugestão.
— Hospital? — Tenho certeza que Cobra arregalou os olhos ao
dizer isso.
— Sim, meu filho! — Meu coração amolece por meio segundo
ao ver que minha mãe chamou Cobra no masculino. É fofo. — Ou
você quer que a menina morra com hipertermia.
— Hipotermia, mãe!
Levo um tapinha no braço.
— Me dá um motivo para não quebrar sua cara, garota! — Ela
está com os dentes cerrados.
— A senhora nunca quebrou minha cara…
Ela bufa e se agacha, colocando a mão sobre a testa da
menina, que parece mais branca do que deveria ser normal.
— Uai… — Minha mãe volta a se levantar. — Ela não está tão
fria.
— Deve ser porque ela tá viva, né? — Por precaução, eu me
afasto de dona Jana antes mesmo de terminar a frase, e acabo
pisando em uma das tortas caídas no chão da cozinha. Acho que
minha mãe está tão preocupada que desiste de responder às
minhas gracinhas. E eu nem sei por qual motivo estou fazendo
gracinha com essa situação, talvez seja porque não sei lidar com
isso. Por que tem uma garota no chão da cozinha? Cadê a Trix?
— Emma… — Cobra segura meu braço de um jeito quase
carinhoso, e sinto meu coração pular ainda mais. Que situação
bizarra! Ok que tudo já estava bizarro, mas, pelo amor de Deus, a
garota estava no freezer. Tudo bem que tinha uma garota presa na
minha parede… — Emma — ele chama de novo. — Respira.
— Eu tô bem! — minto. E sei que ele sabe que é mentira.
— Me ajudem a levar a menina pro quarto da Emma, por favor!
— Cobra parece a única pessoa a manter a calma por aqui. Eu
queria muito ser o tipo de gente que mantem a calma, mas
claramente não sou.
Não reajo.
Cobra e minha mãe erguem a garota.
— Deixa comigo! — Dona Jana pede e meu amigo obedece,
colocando a menina nos braços dela. A coitada parece um rato
assustado e magrelo, se aninhando no colo da minha mãe como se
fosse um bebê em busca de calor.
E talvez ela realmente esteja em busca de calor.
Quando minha mãe se afasta, cochicho.
— Mas que diabos?
— Como essa garota veio parar aqui? — Cobra me pergunta,
apesar de saber que nenhum de nós tem a resposta. Acho que nem
mesmo a menina tem.
— Eu pensei que fosse a Trix — admito, sentindo o coração se
dividir em mais alguns pedacinhos.
— Eu também!
Estamos os dois desapontados. Mas há algo mais urgente para
resolvermos agora do que nossos corações trouxas e partidos.
— Precisamos descobrir quem é essa garota e o que ela está
fazendo aqui! — digo, nervosa.
— Por que você está dizendo que é uma garota? Quem disse
que é uma garota?
Aperto os punhos. Que ódio que eu sinto desse não-binário! Ele
está certo? Sim. Mas, ah!!! Tenho vontade de gritar e bater nele
até…
Ele vê a raiva nos meus olhos e dá um sorrisinho sacana.
— Relaxa, é uma garota mesmo — diz, já se afastando de mim.
É sério. Não sei por que ainda converso com essa pessoa!
Capítulo 5
Cobra

Emma está bem mais nervosa que o normal. Ou seja, um


recorde absoluto. Ela está sentada na cama, observando a garota
que está deitada ali, como se fosse um animal. Até cheirar a menina
Emma cheira…
— Parece frango congelado… — Torce o nariz.
— Lógico, né? A menina estava deitada em cima das tortas da
sua mãe. — Eu me sento no chão, ao lado da cômoda de Emma.
São os dois únicos móveis do quarto. A cama de solteiro, já velha, e
essa cômoda. Eu me lembro de quando tinha duas camas
espremidas, cada uma em um canto. Depois que a irmã de Emma
foi embora, o cômodo, que parecia pequeno demais, agora parece
grande demais. — Para de ficar em cima da garota, Emma, deixa
ela respirar!
Ela me responde estalando a língua.
— Quero saber quem ela é!
— Melhor esperar a menina acordar e perguntar… — Quase
me arrependo de dizer isso. Emma para e me encara. Se ela tivesse
uma arma de laser nos olhos, eu já teria virado pó. — Vem pra cá!
— peço, com a voz mais doce, estico o braço e a chamo com a
mão.
O que Emma faz?
Revira os olhos.
Mas vem.
Abro o braço esquerdo e ela se senta do meu lado, se
aconchegando no meu peito.
— Seu coração tá aceleradaço! — diz, com certo divertimento
na voz.
Não falo nada. Minha respiração está descompassada. Tento
focar nos pensamentos de Emma, mas a mente dela está
silenciosa, concentrada no som que ouve.
Respiro fundo e a aperto mais contra mim. Emma fecha os
olhos e passa a mão esquerda pela minha barriga até a lateral do
meu corpo, me abraçando de volta.
— Eu não vou fugir de novo, Emma… — Faço uma promessa
que acredito que poderei cumprir. Ela não fala nada. Mexo em seu
cabelo, faço carinho em seu rosto. E ficamos naquele silêncio
confortável.
Os pensamentos de tia Jana se aproximam do quarto. Eu me
sobressalto e Emma se afasta, no susto. Um buraco se abre dentro
de mim. Quase a puxo de volta.
— Pessoal! — Abre a porta do quarto e olha direto na direção
da cama. — Nada ainda?
— Ainda não, tia.
— Tô pensando em chamar a polícia, tenho certeza que…
— Não, mãe. — Emma se levanta e se espreguiça. — Vamos
esperar a menina acordar.
Ela teme o mesmo que eu: essa garota de freezer não pertence
à nossa dimensão. Temos que tentar lidar com isso sem envolver
mais ninguém.
Tia Jana pondera por um momento, depois declara:
— Preciso refazer as tortas que estragaram… Vou assar
algumas e trazer para vocês. — Com um sorriso, que tenta disfarçar
as rugas de preocupação, deixa o quarto.
Olho para Emma.
— O que a gente vai fazer?
Ela não sabe, então não responde, só volta para perto de mim e
me abraça de novo. E eu sei, ela não precisa dizer e nem pensar,
que esse é o jeito de Emma falar: o importante é que a gente está
junto.
Capítulo 6
Garota do freezer

Acordo e tem duas pessoas me encarando. Vejo um par de olhos


e as lentes escuras e redondas de um óculos.
— Quem são vocês? — Tento me afastar deles.
— Calma, moça! — a garota diz. — Não vamos te machucar
nem nada…
— Eu sou o Cobra, essa é a Emma — Cobra responde, de um
jeito calmo. Ou talvez esteja querendo me acalmar. — E você,
como se chama?
— Onde eu tô? — Ignoro a pergunta.
— Na minha casa. — A menina se mexe na cama ao meu lado.
Eu me levanto e me afasto dela.
Olho em volta. Não conheço esse quarto.
— Como…? — Sinto outra pontada de dor de cabeça. — O que
aconteceu?
— A gente também quer saber. — Emma parece meio
impaciente. Não sei se é o jeito dela ou a situação. — Você
simplesmente apareceu dentro do freezer da minha mãe.
— Isso não é possível! — rebato, colocando a mão na testa.
Estou tonta.
— Mas foi o que aconteceu. — Ela cruza os braços e se levanta
da cama, ficando de pé ao lado de Cobra.
— Eu estava no elevador do meu prédio e, do nada, acordei
dentro de um… de um lugar frio.
— O freezer da minha mãe. — Emma tem um tom de voz de
sabichona. Não gosto disso.
Então a resposta para tudo me ocorre. Cobra dá uma risadinha
antes mesmo que eu aponte para eles e diga:
— Vocês me sequestraram!
— Amada? — Emma segura o riso. — E quem é você na fila do
pão pra ser sequestrada?
— Ninguém, mas…
— Olha, a gente sabe que isso é uma loucura, vai por mim… —
Cobra começa, com uma calma irritante. — Mas a gente precisa
saber quem é você e o que aconteceu… A tia Jana quer chamar a
polícia.
— Polícia? — Coloco as mãos na cintura. Quem é tia Jana?
Será que é a mulher mais velha? — Talvez ela devesse mesmo.
Emma revira os olhos e respira fundo.
— Garota… — Põe os dedos sobre as têmporas. — Ninguém
vai chamar a polícia porcaria nenhuma. Você. — Ela vem na minha
direção e aponta o indicador na altura do meu rosto. — Vai nos dizer
exatamente o que aconteceu.
Não gosto de ser ameaçada. Mas eles realmente parecem mais
perdidos que eu.
Fecho os olhos e quase consigo ver a porta metálica do
elevador onde eu estava antes de perder a consciência. Quando ela
começa a se abrir na minha lembrança, algo me ocorre:
— Eu sei quem é você! — Aponto para a menina. — Você é a
irmã da Liliane!
Ela dá um passo para trás.
— Então você conhece a Lili? — Parece respirar mais aliviada.
— Sim, ué! Todo mundo conhece a Liliane!
Emma franze o cenho e me estuda com bastante atenção.
— Como assim?
Esse pessoal só pode estar de brincadeira. Essa garota quer se
fazer de desentendida? Já me cansei de encontrar com ela pelo
corredor. Tudo bem, nunca tive coragem de conversar com a irmã
de uma pessoa famosa, mas, nada justifica ela nem fazer ideia de
quem eu sou. Só pode ser alguma pegadinha para um canal no
Youtube. Procuro a câmera escondida com o olhar e só paro, me
sentindo meio ridícula, quando Cobra gargalha alto.
— Não é uma pegadinha, moça. — Como ele sabe que eu
estava pensando isso? — Por favor, tenta se lembrar do que
aconteceu antes de você vir parar aqui. É importante.
Acho que não tenho opção e não custa nada tentar me lembrar.
Puxo o ar com força pelos pulmões e sinto minha coluna estalar.
Meu corpo está um pouco dolorido por causa da estadia dentro do
freezer. Digo de uma vez:
— Eu estava dentro do elevador do prédio da pessoa que
namoro, aí a porta se abriu e eu vi uma garota… sei lá, uma pessoa.
Ela parecia estar passando mal, então… Não sei. Foi muito rápido.
Cobra se aproxima de mim.
— E como ela era? — Não sei bem o motivo, mas esses óculos
dele me dão aflição. Quero me afastar.
— Sei lá, cara… Roxa.
— Roxa? — Emma fala baixo e depois solta um grito. — É ela,
Cobra. É a Trix.
— Você disse que viu essa pessoa, e aí?
— Acho que tentei ajudá-la. Foi muito rápido. Ergui minha mão
e… acordei aqui.
Cobra bate uma mão na outra, depois ergue o braço na minha
direção. Com a cabeça virada para Emma, ele diz:
— Tenho uma teoria. — Depois, olhando para mim (eu acho):
— Você pode, por favor, me dar a mão?
Encaro os dedos finos e longos dele. Não faço ideia do que
está passando por sua cabeça, mas quero entender o que está
acontecendo. Ergo meu braço direito e entrelaço nossas mãos.
E, de repente, o mundo fica barulhento demais.
Capítulo 7
Trix

Minha vida está completamente descontrolada. E isso já tem


muito tempo. Mas nunca pensei que era possível acontecer tanta
coisa sem sentido igual está acontecendo nesse fim de ano.
Primeiro, descubro que posso me teletrasportar.
Segundo, fico presa em uma dimensão vazia.
Depois, sou sequestrada por uma associação que me prende
no quarto branco do BBB.
Em seguida, consigo escapar, mas vou parar em um prédio que
nunca vi na vida. Lá, encontro uma garota que me toca e
desaparece. Ah, e me desmaia. Quando acordo, uma versão de
Emma que nunca me viu na vida me socorre e me leva para o
Hospital.
Até aí tudo bem…
O problema mesmo começou quando um Papai Noel negro,
vestido em uma roupa magenta, apareceu na minha porta.
Sim, um Papai Noel.
Sério, eu nem sei como começar a explicar o que está
acontecendo. E, desculpa, mas preciso deixar para depois.
Agora, tenho uma mensagem para mandar.
Capítulo 8
Emma

Está tudo confuso aqui. Cobra está sentado no chão, de frente


para a moça. Foi muito estranho o que aconteceu. Ela encostou a
mão na dele, e foi como se tivesse dado um choque em Cobra. Ele
voou para trás, batendo as costas na parede. Corri para ajudá-lo,
mas ele estava rindo. Sério, rindo.
Eu não dou conta!
— Você só precisa focar. — O carinho com o qual ele diz isso
faz meu estômago revirar. Cruzo os braços.
A menina está com as duas mãos nas orelhas. Encolhida em
um canto.
— Cobra, o que tá rolando?
— Tenta não pensar em nada, Emma! — Como não vou pensar
em nada? — Emma!
— Tá bom!
Cobra volta a falar de um jeito doce com a menina.
— Você só precisa se concentrar, Alice.
Ah, o nome dela é Alice.
— Não consigo! — ela diz, de um jeito tão desolado que parte
meu coração. — O que tá acontecendo?
— Foca na minha voz. Você consegue!
Então os dois ficam calados por um tempão. Como não sei o
que fazer para não pensar em nada — porque só de querer pensar
em nada, eu penso —, vou para a cozinha ajudar minha mãe com
as tortas.
O que, definitivamente, não é uma boa ideia.
Dona Jana para com as duas mãos na cintura, me encarando,
quando entro no cômodo.
— Emma, eu quero uma explicação!
Curvo os ombros e deixo meus braços penderem para a frente.
— Ah, mãe, eu queria muito poder explicar. Mas também não
sei o que rolou!
— Não é só sobre a garota do freezer, minha filha. — Ela se
aproxima de mim, de um jeito até mais suave, e pega minhas mãos.
— Você está estranha há dias, semanas. Primeiro ficava falando
sozinha e depois ficou toda jururu pelos cantos. — Minha mãe para
e olha no fundo dos meus olhos. Espero, apreensiva, o que ela vai
dizer. — Você e o Cobra brigaram? Aconteceu alguma coisa entre
vocês?
Abro um sorriso. Mães…
— Não, mamis… Quer dizer, sim. Mas tem tempo. A gente tá…
— hesito. A gente tá o quê? Nem eu sei. — Acho que bem.
— Então, o que é tudo isso? — Ela abre os braços.
Não quero e nem vou mentir para minha mãe. Então, bom, eu
digo a verdade. Toda a verdade. Sobre o meteoro, minhas novas
habilidades, as novas habilidades de Cobra, minha parede falante,
Trix, e sobre o que sei dessa garota que apareceu no freezer — ou
seja, quase nada.
Por um momento, acho que matei dona Jana. Ela fica pálida. As
bochechas, sempre num tom escuro de vermelho por causa do calor
da cozinha, estão só marrom.
— Mãe. — Eu me aproximo dela. — A senhora tá bem?
— Peraí, Emma! — Levanta a mão, em um sinal de pare. Então
paro no lugar. E ficamos assim, as duas se encarando por um
tempo. Até que ela fala: — Você quer que eu acredite nessa
história?
— Quero sim, senhora!
Minha mãe só me lança um olhar de “tá bom, Emma”, vira as
costas e começa a mexer no fogão.
— Se você não quer me contar a verdade…
— Mãe, que dia eu menti pra senhora? — Cruzo os braços e
faço cara de séria. Porque é a verdade, nunca menti para minha
mãe. Tipo, nunca mesmo.
Ela para de mexer na panela de molho e me encara, com os
olhos estreitos.
— Isso é fantasia das bravas, minha filha.
— Posso provar! — digo, petulante. Pior que eu realmente
posso provar, mas não quero. Quero que ela acredite em mim!
Ficamos mais um tempão nos olhando, nos estudando. Somos
tão parecidas que olhar para ela é quase como me ver daqui a
alguns anos. E imagino que, para ela, seja ver uma versão de si
mesma mais nova.
Minha mãe conhece esse rosto bem demais para saber que
estou falando a verdade.
— Não é possível… — começa, mas Cobra nos interrompe,
chegando de supetão na cozinha.
— Emma, preciso que você venha aqui.
— Tô resolvendo um trem…
— É rapidão! — Ele está afobado. Cobra é sempre calmo… O
que está acontecendo?
Nem respondo, só o sigo até o quarto. O coração acelerando a
cada passo que dou. Há algo muito errado no clima desta casa. E
isso vira uma certeza quando vejo a luz arroxeada escapar por
debaixo da porta do meu quarto.
Luz que me atinge em cheio quando entro.
— Trix? — É tudo o que consigo dizer antes de sentir uma mão
gelada no meu braço e tudo ficar escuro.
Capítulo 9
Cobra

— Que merda?! — Tiro Alice de perto de Emma, que está caída


no chão.
— Desculpa! Eu não queria machucar ela! — A menina se
afasta ainda mais, assustada. Estamos todos assustados. Ela se
encolhe em um canto, longe de mim e longe do espectro arroxeado
que está pairando do outro lado do quarto.
Cobra… Ouço a voz de Trix na minha cabeça. Eu não tenho
tempo, me escuta!
Quero prestar atenção em Trix, mas Emma está fria. Não
consigo ouvir nada vindo dela. Nem uma sequência de
pensamentos desconexos, nem os xingamentos que ela sempre
destina a mim.
Estou com tanto medo. Tanto medo.
Cobra! Trix grita na minha cabeça, fazendo um zumbido alto me
desnortear.
— Quê? — grito de volta, sentindo lágrimas caírem pelas
minhas bochechas.
— Eu não posso ficar! — A voz de Trix está tão baixa, tão frágil.
Oscilando. — Eles podem me encontrar aqui se eu me materializar.
Estou segura, entre amigos. Estou bem, Cobra. E vou ficar bem. —
Ela vira a cabeça na direção de Emma. Os olhos completamente
roxos. — Fiquem bem! — A voz se quebra.
Emma solta um muxoxo. E eu respiro aliviado.
— Trix… — Emma fala, baixinho. Ou pensa. Nem sei. Não sei
se recuperei meus poderes completamente. Minha amiga tenta se
levantar, mas não consegue. — Que merda? Por que minhas pernas
não se movem?
Respiro fundo e a ajudo a se sentar, me sentando ao lado dela
em seguida. Puxo Emma para perto de mim e ficamos olhando para
Trix, ou parte de Trix.
— Não tentem me procurar aqui — diz, de um jeito triste. Sinto
meu coração virar pó. — Eu não existo mais nesta dimensão.
— Trix. — Seco as lágrimas e tento me manter calmo. — Onde
você está?
— A associação me prendeu. Eles mentiram. Mas eu fugi e
encontrei um lugar seguro pra ficar. Não posso dizer mais do que
isso, não tenho tempo de explicar. Só… — Ela olha na direção de
Alice, encolhida e completamente assustada. — Cuidem dela
enquanto tentamos dar um jeito de tirá-la daí.
— O quê? — A menina se encolhe ainda mais.
A imagem de Trix fica ainda mais translúcida.
— Que dia é hoje? — A voz dela está mais fraca, quase
inaudível. Trix está desaparecendo.
— Dois de dezembro — repondo.
Cuidem dela até a madrugada no dia 25. Alguém vai buscá-la!
Por favor, Cobra. O mundo está contando com vocês!, diz, apenas
na minha cabeça, antes de desaparecer completamente.
— Cobra… — Emma me chama baixinho. Acho que está quase
desmaiando. Peço ajuda de Alice para colocá-la na cama.
— Não encosta na pele. — Tento não soar grosso. Mas essa
garota é um perigo para a humanidade! A menina apenas assente e
toma o maior cuidado de tocar Emma apenas por cima da blusa.
Então, Alice começa a chorar de um jeito descontrolado,
enquanto passa as mãos nas próprias pernas. Sinto pena dela.
— Ei, senta aqui no cantinho! — Dou dois tapinhas na lateral da
cama de Emma. — Já já vai passar.
Continuo ignorando minha dor de cabeça, encolho as pernas e
escoro as costas na parede.
— O que aconteceu? — Emma me pergunta, ainda fraca.
Passo as mãos nos cabelos dela. O único pompom rosa está com
fios soltos.
— Sabe a Vampira? — Apelo para a melhor referência que
conheço. Não dá certo.
— Que vampira? A Bella?
— Não, Emma. A do X-men, a que rouba o poder dos outros
com o toque.
— Ah…
— É o que a Alice faz. — Olho furtivamente para a menina. A
coitada está chorando desesperada. — Mas dura só uns minutinhos.
Você vai ficar bem logo, logo. — Dou um beijinho na testa dela.
Emma fecha os olhos e os pensamentos dela viajam. Acho que
meus poderes estão voltando e as ideias malucas dela também.
O gelo que estava no meu estômago começa a diminuir. Eu me
volto para Alice.
— Você vai ficar bem?
— Tá doendo muito! — Ela passa as mãos nas pernas.
— Acho que você precisa descansar um pouquinho. — Eu me
levanto devagar. — Vou pedir a tia Jana para me arrumar um
colchão.
Deixo a menina chorando no quarto. Sei que estou andando
encurvado, mas sinto o peso de um mundo inteiro nas minhas
costas. Se ao menos minha cabeça parasse de doer…
É só eu pensar que outra pontada de dor me atinge.
Cobra. É Trix de novo, mas só na minha mente. Estive aí há
poucos minutos, não estive? Não tenho tempo de manter essa
conexão. Olha, só…, o pensamento dela vacila. Só cuida da Emma,
ok? Não a deixe, não corra de novo. Tá me ouvindo?
— Tô — respondo em voz alta. Não entendo o motivo do alerta
e ele só me deixa mais nervoso. Não sei se Trix me ouviu, mas tudo
volta a ficar silencioso.
— Falou comigo, filho? — Dona Jana aponta pela porta da
cozinha.
— Não, senhora… Na verdade, sim. — Faço muito esforço para
sorrir para ela. — A Emma e a… outra menina estão meio passando
mal.
Ela coloca as duas mãos na cintura e solta o ar pelo nariz.
— Hum… Não sei o que vocês estão aprontando, mas… Ah,
deixa pra lá! — Parece espantar uma mosca com as mãos. — Já
vou levar umas tortas para vocês. Esse vai ser o almoço atrasado.
— Dona Jana se aproxima de mim e coloca as duas mãos nos meus
ombros. Cara, ela é igualzinha a Emma. — Aí depois, outra hora,
vocês me explicam tudo e me mostram que história é essa de
poderes…
É lógico que Emma contou para a mãe dela. Ela conta tudo
para dona Jana.
— Sim, senhora! — Sorrio, assentindo com a cabeça. — Ah, e
eu preciso de um colchão também.
Ela revira os olhos. E não consigo conter uma risadinha. A
genética dessa família é inexplicável.
— Pega lá no cômodo onde ficam as coisas da Liliane.
— Tá bom!
Eu me viro e volto por onde vim, passando em frente ao quarto
de Emma. Fico ali por um minuto, olhando minha amiga dormir.
Espero que fique tudo bem.
Tem que ficar bem.
Acho que eu fiz uma música
Para você que se relaciona com alguém de outro gênero.
E não deixa de ser bi por isso.
Você é valide!
Faixa 1 - Inalcanzable
Juan
Qué ganas de decirte que no hay nadie más
Que te ame sin medida
- RBD

Eu amo um garoto desde os meus quatorze anos. Quando


ninguém o conhecia, quando ele gravava vídeos caseiros com a
melhor amiga, postava no Youtube, e divulgava em comunidades do
Orkut. Ele tinha um BuddyPoke todo cowboy, o meu era emo.
Foi com ele que descobri que meninos faziam meu coração
acelerar, a ponto de doer no peito. Foi por ele que aprendi a tocar
violão e sonhei que poderia substituir a garota esquisita que era sua
dupla. E, quando ele estourou em todo o Brasil, eu me mudei para a
cidade onde ele morava, na esperança de encontrá-lo casualmente
pelas ruas, ou pelos barzinhos em que eu tocava.
Mas quanto mais famoso ficava, para mais longe de mim ele ia.
Até ficar distante demais.
Inalcançável.
Larguei a música e entrei na faculdade de publicidade. Ele
largou a dupla e estourou no Brasil inteiro. O meu caderno de
composições deu lugar a blocos e mais blocos de ideias de
propaganda. O estilo cowboy dele deu lugar a roupas rasgadas e
apertadas. O corpo gordo emagreceu. O cabelo ficou mais claro. E o
poster que eu tinha na parede do quarto parecia de outra pessoa.
Mas eu continuei o amando, como o garoto bobo de dez anos atrás.
Porque algumas coisas não mudam nunca.
Faixa 2 - Surfando Karmas & DNA
Lili
Se eu soubesse antes o que sei agora
Iria embora antes do final
- Engenheiros do Hawaii

As coisas mudam sempre.


Cinco anos atrás eu estava no auge, sonhando com o sucesso,
fazendo shows, sustentando minha família. Sonhei que poderia
comprar uma casa para a minha mãe e que um dia eu compraria
uma fazenda bem grande para compensar os anos que a gente
passou sem nada.
Hoje mal pago meu próprio aluguel.
O sucesso tem seus preferidos. E eles nunca são como eu.
Para quem já cantou em áreas de festa lotadas, quem já rodou
o Brasil vendo a poeira da estrada subir, indo tocar nos lugares mais
remotos, esse bar com seis pessoas parece uma humilhação. Mas
já estive pior.
— Toca João Vinícius!
Reviro os olhos. Parece que alguém me reconheceu.
Finjo que não ouvi e continuo a música da Marília Mendonça
que estou cantando. É óbvio que, no fim do show, vou cantar as
minhas músicas, que, inclusive, são o que me sustenta até hoje. Os
direitos autorais delas, de mais de cinco anos atrás, no caso.
É meio deprimente pensar nisso, então foco na música.
No fim do show, quando estou guardando meu violão dentro da
bolsa, noto que um rapaz branco ainda está me encarando. Meu
coração acelera. Minha consciência grita que ele não deve me fazer
nenhum mal. Mas sentir medo faz parte de ser mulher na minha
profissão. A gente tem que estar alerta sempre, principalmente, às
duas da manhã em um bar.
Agora tem só três pessoas aqui. Um casal, que ficou a
apresentação inteira alheio à minha presença, e esse rapaz. Vou até
o balcão, sem manter o contato visual com o sujeito, e converso
com o dono do bar. Ele me paga (e eu sinto vontade de chorar
quando vejo a quantidade ridícula de dinheiro) e, tenho certeza que
por pena, me oferece uma cerveja por conta da casa. Agradeço e
me sento no banco alto.
Penso, por um segundo, que vou terminar minha bebida em paz
e ir para casa descansar depois de mais um fiasco. Mas o rapaz,
que estava me encarando antes, se aproxima de mim e se senta do
meu lado.
Sorrio, porque não posso simplesmente ser grossa. Mas eu
queria ser.
— Liliane, certo?
Seguro uma revirada de olhos e respiro fundo. Acho que peguei
essa mania de revirar os olhos para tudo com a minha irmã.
Péssimo hábito.
— Lili — corrijo, forçando um sorriso.
— Ah… Posso te perguntar uma coisa?
Não.
— Claro! — Tento não encarar o rapaz, mas acabo me virando
de leve para olhar para ele. Está com um sorrisinho presunçoso no
canto dos lábios. Ele tem os cabelos pretos com alguns fios
brancos. Um charme, tenho que admitir. Não imagino que tenha
mais de vinte e cinco anos, mas a genética faz essas coisas.
— Você ainda tem algum contato com o João Vinícius?
Puta que pariu! É sério? Mais um fã da minha ex-dupla. Eu não
mereço, sabe?
— Não. Infelizmente não nos falamos desde que ele me
golpeou pelas costas e ficou famoso sozinho. — Não consigo
segurar a ironia.
— Ah… — É tudo o que ele diz.
Bebo minha cerveja em um gole e me levanto.
— Desculpa, eu não queria te aborrecer! — Ele tem a audácia
de vir atrás de mim. — Eu não sabia que tinha sido assim.
— Claro que não sabia! Quem de vocês, os fãs, realmente se
importou quando a dupla virou um cantor solo, bonito e branco? —
Reviro os olhos.
— Calma, moça!
Eu me viro de repente e aponto o dedo para o rosto dele.
— Olha, você não me pede calma! — Meu violão está pesando
nas costas e tudo o que eu queria era ir embora e deitar na minha
cama.
— Desculpa! — Ele levanta os braços, como se estivesse em
rendição. — Eu realmente não queria te chatear. Posso te levar para
casa, como um pedido de desculpas?
Esse cara só pode estar de brincadeira.
— Querido, você nem me disse seu nome. É óbvio que não
pode me levar pra casa! — Eu me viro e começo a andar. Fico
aliviada ao perceber que ele não vem atrás.
— É Juan! — Ele grita quando já estou longe.
Reviro os olhos.
Faixa 3 - Don't Stop Believin'
Juan
A singer in a smoky room
The smell of wine and cheap perfume
- Journey

Eu sei que, muitas vezes, artistas escondem coisas, mas nunca


imaginei que a briga entre João Vinícius e Lili tinha sido tão feia. Eu
deveria imaginar? Sim. Mas a verdade é que nunca liguei muito para
ela. Até comemorei quando ele decidiu ir para a carreira solo. Lili me
parecia atrapalhar a imagem dele… Nossa, que pensamento
escroto!
Sinto um gosto ruim subir pela garganta. Tudo bem, eu era um
jovem meio fútil, mas nunca pensei que fosse preconceituoso.
Pensar sobre isso não muda absolutamente nada. Preciso de
Lili, essa é a verdade. Por mais que esteja brigada com sua ex-
dupla, ela é o mais perto que cheguei de João Vinícius nesses
últimos dez anos (isso sem contar aquela vez que fiquei
completamente pressionado na grande do show dele na Expoagro,
foi horrível!).
Encontrá-la no bar aquele dia foi uma coincidência. Dessa vez
não vai ser. Eu a procurei no Google e em todas as redes sociais
possíveis. E não é de se espantar que a garota não consiga nem
encher um bar com dez mesas. É tudo tão amador que foi difícil
encontrar algo recente sobre ela em seu perfil no Instagram.
Mas encontrei.
Agora estou aqui, em um bar relativamente cheio, esperando
pela apresentação. Eu a vejo chegar ao bar, mas me mantenho no
lugar. Seus longos cabelos escuros e alisados batem nas costas. Lili
fica muito bonita com o cabelo solto assim. E eu desconfio que ela
ficaria bonita com qualquer cabelo.
A pele negra dela brilha quando a luz do palco a atinge, e Lili
abre um sorrisinho ao ver que muita gente veio hoje. Desconfio que
seja pela grana do couvert artístico e não pelo público em si. As
pessoas já estão conversando alto, animadas. Duvido muito que
alguém, além de mim, vai realmente prestar atenção no que ela tem
pra cantar.
Depois de se ajeitar no palquinho, ela puxa o violão e começa a
dedilhar uma melodia. Diz um "boa noite", que é respondido por
ninguém. E, ao perceber que a atenção de vinte segundos que
havia ganhado já tinha sido perdida, ela começa a cantar Don't Stop
Believin', do Journey.
Ouço todo o show bastante admirado, tenho que assumir. Não
só pela voz e pela maneira como Lili canta, mas pela escolha de
músicas. Nada óbvio e ao mesmo tempo tão certeiro. Fico tão
chateado que ninguém mais está apreciando essa reunião de
músicas tão incrível que começo a sentir um formigamento nas
mãos. Um formigamento tão forte que me faz aplaudir a última
música como se minha vida dependesse disso. E, indo na minha
onda, o bar inteiro também aplaude. Vejo um rápido olhar de
surpresa no rosto de Lili, que logo é substituído por um sorriso.
Imagino que ela tenha me visto, então, espero que venha até
onde estou, assim que recolhe seus equipamentos no palco. Mas
ela não vem. Ao contrário, nem olha na minha direção. Apenas
segue até o balcão onde conversa com a dona do bar, ou o que eu
imagino que seja a dona, e pega uma cerveja.
Vou até ela.
— Showzão hoje! — Prefiro começar com um elogio antes que
ela me enxote daqui, como da outra vez. A expressão de Lili ao virar
o rosto e me ver faz meu corpo involuntariamente se afastar.
— Pensei que estava vendo coisas quando te vi puxando os
aplausos do show. — Ela não vai me agradecer? — Você deve ter
gostado muito da primeira vez já que voltou! — diz, de um jeito
seco.
Respiro fundo.
— Realmente gostei… — hesito. Ela abre um sorriso. O
primeiro realmente verdadeiro que vejo.
— Eu não vou te ajudar, meu filho, pode esquecer! — Lili volta a
olhar para as garrafas na estante atrás do balcão.
— Não vai nem ouvir minha proposta? — Eu me sento no
banco alto ao lado dela.
— Não.
— É algo que beneficia você.
— Não estou interessada.
— Você nem sabe o que é! — insisto, me virando de lado. Ela
não se vira para me olhar.
— E nem quero saber.
— Por que você é tão orgulhosa? — Perco a paciência.
Ela se vira de uma vez. Está com um olhar furioso.
— Não é orgulho! — diz com os dentes trincados.
— Então é o quê?
— Dignidade. — Lili volta a virar o rosto e a beber sua cerveja.
— E você, pelo visto, não faz ideia do que isso significa!
— Talvez eu não saiba mesmo, afinal sou um marmanjo
privilegiado que pode se dar ao luxo de stalkear alguém só para
conhecer o ídolo da adolescência…
— Amado? Não presumi nada sobre você. Eu hein? — Lili
coloca a long neck de cerveja sobre o balcão e me encara, como
uma professora encara um aluno que não sabe a matéria. — Eu
disse que você não faz ideia do que é dignidade porque está me
pedindo para procurar alguém que era meu melhor amigo, mas
deixou a fama subir à cabeça a ponto de esquecer que eu existia.
Alguém que fodeu o que eu poderia ter de carreira… — Ela revira os
olhos e volta se virar. — Você não vai entender.
— Olha, entendo que deu ruim entre vocês, mas não estou
falando de um favor, estou falando de uma troca de favores. —
Pauso para observar a reação dela. Lili não parece ter ouvido o que
falei, mas continuo mesmo assim. — Você me ajuda com isso e eu
te ajudo com algo.
— Ok, bonitão! — Ela bate a long neck de leve, junta as mãos
sobre o colo, e me encara. — Vamos ouvir sua proposta.
— Vamos? — Olho rápido em volta.
— Eu e minha paciência.
Sorrio e explico para ela que sou um estudante de publicidade e
que tenho que fazer um trabalho onde crio todo o projeto de
marketing de uma marca. E que eu poderia fazer o projeto de
marketing dela.
— Me parece que são dois favores da minha parte!
— Olha… — Tento respirar fundo. — Eu poderia escolher ou
criar qualquer marca…
— Então escolha e crie qualquer marca. — Ela se levanta. —
Boa noite!
— Ei… — Eu a seguro pelo braço. — Por favor! — Lili está
fuzilando minha mão com o olhar. Até sinto meus dedos ao redor do
braço dela queimarem. Mas não solto. — Suas redes sociais são
péssimas, você sabe!
Ela mesma se solta.
— Primeiro, você não encosta mais em mim se eu não permitir.
— Então terei outra oportunidade?
— É brincadeira? — Indignada, ela começa a se virar. Me
seguro para não puxá-la pelo braço de novo.
— Se você melhorar seu marketing, tenho certeza que vai lotar
shows como esse! — Grito, enquanto Lili se afasta. Vou atrás dela.
— Você tem talento, mais do que a grande maioria das pessoas que
estão na mídia… Se melhorar sua marca, tenho certeza que…
— O problema não é esse, Juan. Não de verdade. — Ela para e
se vira. — O problema é que eu tenho que ser dez vezes melhor
que qualquer pessoa branca, e ainda assim as oportunidades não
vão vir.
— Então vamos fazer um gerenciamento de redes sociais não
dez, mas quinze vezes melhor! — insisto.
— Eu realmente não tenho paciência pra fazer o que um cara
desconhecido me falar pra fazer!
— Lili — Esfrego as têmporas. — Eu preciso de você. Você
precisa de mim. É uma parceria. Lado a lado. Eu não vou te mandar
fazer nada. E, ok, você nem me conhece, mas sério, me deixa fazer
isso! É você quem está me fazendo um favor… Dois favores! — Não
digo isso para que ela me sinta melhor, digo porque é a verdade.
Ela não fala nada, só fica parada me encarando, tentando
entender se falo sério, tentando calcular se realmente vale a pena.
— Tá. — Ela revira os olhos. E eu grito.
— Vai ser tudo!
Faixa 4 - What’s up
Lili
I realized quickly when I knew I should
That the world was made up for this
Brotherhood of man
- 4 Non Blondes

Não consigo negar que toda essa situação me deixa


profundamente irritada. E tenho que admitir que aceitei muito mais
essa parceria para ver de camarote a decepção nos olhos de Juan
quando conhecer o encosto do João Vinícius, do que pela ajuda
dele em si.
A questão é que, enquanto estou aqui conferindo no aplicativo
do banco os preciosos trezentos e vinte reais que ganhei de couvert
e tentando decidir se completo o aluguel ou se pago a conta de
energia (os dois não dá), sujeitos como João Vinícius têm fãs
devotos que fazem de tudo para conhecê-los. Enquanto estou no
perrengue porque sou incapaz de lotar um bar pequeno, ele esgota
ingressos para quase todos os shows.
É desanimador.
E mais desanimador ainda é perceber que esse discurso soa
tão negativo aos ouvidos das pessoas. Se digo qualquer coisa
dessas em voz alta, sou vista como invejosa.
E eu gostaria muito de dizer: inveja eu tenho da Rihanna que é
linda e bilionária. Mas não posso. Tem dias que acordo e odeio
profundamente ser como sou. Dias em que eu gostaria de ser como
João Vinícius. Não de estar no lugar dele, mas de ser vista pelo
mundo como ele é visto. Ter a confiança de saber que tudo está a
meu favor, que posso me deitar que a correnteza vai me levar para
onde eu quiser.
Mas, para mim, o caminho sempre foi outro, tem muito mais
barreiras e começa quilômetros atrás. Eu nado contra a corrente. E,
sinceramente, estou cansada de nadar. O problema é que se paro,
mesmo que por um minuto, volto para trás, todo o meu esforço de
antes é desperdiçado.
Talvez eu devesse só desistir e tentar fazer outra coisa. Mas aí
me lembro que vai ser difícil de todo jeito. Ou seja, nem o luxo de
desistir e recomeçar eu tenho.
Estou exausta. Nadando contra a corrente. E vendo pessoas
passarem por mim em suas lanchas caríssimas.
Juan tem cara de ser o tipo de gente que tem uma lancha
caríssima no rio da injustiça social. Então, se ele quiser me dar uma
carona, vou topar! Até o dia em que eu puder comprar a minha
própria.
Marquei de ir a casa dele (que ele usa como home office) hoje à
tarde para conversarmos sobre a minha carreira. Juan disse que já
tem um plano para mim. E eu sei que vou discordar de tudo e fazer
as coisas do meu jeito. Admito que estou dando pouco crédito ao
rapaz, mas o conheci há dois dias em um bar e ele veio atrás de
mim em outro, parecendo muito desesperado para conhecer um
ídolo da adolescência… Os fatos dizem mais do que as promessas.
E ele até agora só me prometeu coisas.
Muita gente já me prometeu coisas. Minha vida é uma coleção
de decepções.
Fecho o aplicativo do banco e coloco o celular sobre o braço do
sofá.
Quem dera minha falta de confiança em Juan fosse o único
problema. Tem também o fato de eu não fazer ideia de como entrar
em contato com João Vinícius. A última vez que nos falamos
(brigamos) foi há três anos. E ele não está mais com a mesma
equipe de antes. Mudou tudo depois que decidiu fazer a Anitta e
tentar uma carreira internacional, que flopou, para a minha mais
sincera alegria.
Ah, se as pessoas soubessem o tipo de gente que ele é.
Mas não cabe a mim contar. É como diz a minha mãe: fruta
podre cai do pé sozinha.
Puxo o violão e começo a tocar uma sequência de notas, do
tipo que todo mundo usa para fazer músicas populares, na
esperança de, quem sabe, compor um grande hit. Ou eu deveria
parar de me preocupar com isso e fazer uma música seguindo
apenas a inspiração, aquilo que carrego dentro de mim. Ou eu não
deveria fazer música nenhuma, porque Juan não sai da minha
cabeça e não consigo pensar em mais nada.
Droga!
Abro o Whatsapp e olho o grupo da família. Minha irmã está
aprontando alguma coisa porque minha mãe já mandou quinze
mensagens perguntando onde ela está. Me sinto irritada com a
irresponsabilidade dela, mas me lembro que Emma é só uma
adolescente. Ela ainda não faz ideia do quanto é foda para minha
mãe não ter notícias da gente.
Ai, depois brigo com ela. Juan acaba de me mandar uma
mensagem.

E aí, tudo em cima pra hoje?

Mando uma figurinha da Gretchen, seguido por um “tudo”.


E aí ele começa a falar várias coisas sobre minhas redes
sociais, especialmente meu Instagram e manda uma apresentação
em PDF com sugestões de ações detalhadas. Tudo isso para
adiantar o serviço, segundo ele.
Sorrio. Quanto mais rápido me livrar dele, melhor!
Faixa 5 - Personal
Juan
On a night like this
Just don't know what I'm trying to prove
- Jessie J

Quatro horas. Ficamos discutindo por quatro horas, para Lili


decidir que tudo o que sugeri não vai dar certo. Aí ela riscou toda a
minha apresentação com ideias que teve e… realmente ficou bem
melhor.
Vamos seguir o plano dela, que inclui a gravação de um vídeo
(única sugestão dada por mim que foi aprovada).
E depois de outras três horas pensando em tudo, imaginando
os cenários, os teasers e a identidade visual, Lili se levanta do meu
sofá branco, estica as costas e declara, como se isso não tivesse
importância nenhuma:
— Não tenho o contato do João Vinícius!
— Quê? — Estico minhas pernas, sentado no chão, antes de
me levantar também.
— Mas… — Ela faz uma pausa, só para me irritar. — Já falei
com alguém que pode conseguir esse contato. Mas a pessoa ainda
não me respondeu. — Então ela começa a rir. — A cara de
desespero que você fez foi muito engraçada! Caralho, quase matei
um fanboy!
Reviro os olhos, acho que estou roubando essa mania dela.
— Não achei engraçado, ok?
— Mas não era pra ser engraçado! A sua reação fez ficar
engraçado… — Ela para na minha frente e coloca a mão sobre o
meu ombro. Eu não havia reparado tanto nela antes, mas Lili é
muito bonita. Do tipo de beleza que parece um tapa na cara, você
só percebe quando bate. E te tira do eixo. Me sinto desestabilizado,
mas disfarço. — Eu não vou dar para trás na minha parte do acordo,
cara. Não sou esse tipo de gente.
Então Lili me dá dois tapinhas no ombro e passa por mim, indo
em direção à porta.
— Ah… — começo a falar, mas ainda estou meio fora de mim.
Nossa, que coisa estranha!
Ela se vira e sou golpeado mais uma vez.
Não sei o que está acontecendo. E não gosto. Estou me
sentindo bobo. Não gosto de me sentir bobo.
— Já terminamos por hoje?
— Já. — Pisco algumas vezes. — Já, sim! Mas, ah…
Ela cruza os braços, impaciente como sempre. Sorrio. Lili fica
bonita irritada.
— Eu queria te chamar para comer algo. Tem uma pizzaria
muito boa aqui perto.
— Olha… não sei…
— É que a gente ficou aqui por horas e eu nem pensei em
comprar nada pra gente comer. Era algo que eu devia ter feito…
Vamos, por favor?
— Tá. É comida de graça, né? Óbvio que vou aceitar! — Lili
abre um sorriso e eu desvio o olhar, fingindo que estou procurando
pela minha carteira, que já sei onde está. Não sei por que, do nada,
estou me sentindo tão inseguro. Ok que a presença dela é muito
forte e mexe com qualquer um, senti isso desde que a vi no palco,
ao vivo, pela primeira vez. Mas… sei lá, isso é… diferente. Pego a
carteira.
— Então, bora?
— Bora!
Faixa 6 - Mensagem pra ela
Lili
Vou te ligar
Vou deixar recado
Vou mandar mensagem
- César Menotti e Fabiano

— Então, é isso! — Solto todo o ar que estava preso nos meus


pulmões. Nem respirei enquanto a pessoa digitava a resposta. —
Problema resolvido! — digo para mim mesma e me permito deitar
no chão. Minhas costas já estavam doendo pela maneira como
estava sentada sem apoio em cima do tapete da sala. Encosto a
mão sem querer no violão e o som das cordas vibrando me assusta
um pouco.
Não sei se devo contar para Juan o que consegui. Será que,
com isso, ele vai desistir do nosso acordo e não cumprir sua parte?
Duvido muito. Ele não é desonesto. Mando uma mensagem,
contando a novidade. Não quero dizer pessoalmente, porque não
quero ver a cara de felicidade dele ao saber que vai conhecer o
ídolo.
Eu esperava que Juan fosse mandar várias figurinhas surtando.
Mas não. Ele me liga. Felizmente não é uma chamada de vídeo.
Penso seriamente em não atender, mas vai que aconteceu
alguma coisa.
— O que foi? — pergunto, impaciente.
— Como você conseguiu tão rápido?
O conceito de “rápido” dele é um pouco irônico. Demorei duas
semanas para ter essa confirmação.
— Ainda conheço algumas pessoas que conhecem algumas
pessoas.
— Não, sério! Como você conseguiu?
Ele está duvidando do meu networking? Que seja!
Eu me levanto e respiro fundo antes de responder.
— Sabe a Cris?
— A produtora/empresária? Ah… — Ele faz uma pausa. — Ela
é da sua cidade, né?
— Sim, na verdade não… Minha mãe se mudou para lá com a
gente, depois daquele boato de que a cidade era o novo berço do
sertanejo. Foi logo depois que a minha dupla se separou. Ela
pensou que, sei lá, a cidade tinha alguma coisa especial — digo, um
pouco constrangida. Ele solta um risinho baixo. — Minha mãe é
cheia dessas ideias.
— Achei fofo… — Juan volta a soltar uma risadinha. — Ela
continua lá na cidade?
— Sim. Mora lá com a minha irmã. Acho que ela gostou. É um
lugar pequeno e todo mundo ama as tortas dela.
— Tortas?
— É, ela faz tortas para vender. Antes, sempre vendia nas
apresentações que eu fazia de graça na praça. Lotava. Tenho
certeza que era pelas tortas.
— Duvido que fosse só pelas tortas…
Não respondo. Estou começando a me sentir desconfortável
com essa conversa, ou com o celular ou com a maneira como estou
sentada. Não sei bem.
— Bom, eu tenho que…
— Calma, calma. Não desliga! Eu nem te contei a minha
novidade…
— Que novidade?
— A que me fez te ligar. — Ele espera que eu pergunte de
novo, mas não pergunto. — Tá sentada?
— Tô.
— O pessoal da TV universitária, que vai gravar o seu vídeo,
tinha alguns contatos… E…
— Fala logo.
— O Robertinho, cinegrafista… Aquele careca.
— Tá, o que tem?
— Ele toca com alguns amigos de vez em quando, e conseguiu
alguns músicos também…
— Músicos pra quê? A gente não tinha decidido que seria só
voz e violão, porque não temos verba? — Eu me levanto de vez.
Estou nervosa com essa hesitação de Juan. Por que ele não fala
tudo de uma vez?
— Sim. Mas… Além disso, nós conseguimos o estúdio do
Paulo, o dono do Mendonça’s Bar, para gravar, áudio e vídeo, tudo
junto.
— Vocês o quê?
— E… — Ele me interrompe. — Depois da gravação, o Paulo
nos convidou para fazer uma apresentação no bar em si.
Acho que estou ouvindo mal. Não é possível.
— Peraí, quê? Como?
— Eu, sinceramente, não fiz nada. O Robertinho conseguiu
tudo. Acho que ele gostou de você… — Ele pigarreia. Não entendo
por que ficou nervoso. — Digo, no sentido de achar você uma boa
cantora.
— Ah…
— E eu soube também que o Paulo gosta muito de… de você.
No caso, ele gostava da dupla.
— Ah… — Respiro fundo. Eu me lembro do Paulo, tocamos no
Mendonça’s algumas vezes quando o bar era pequeno. Mas fomos
ficando mais famosos, e paramos de tocar lá depois de um tempo.
Nunca entendi bem o motivo. Porém tenho quase certeza que foram
os constantes shows de estrelismo de João Vinícius. — Que dia?
— No dia 26.
— Não temos muito tempo…
— A gente tem três semanas para ensaiar com a banda… Vai
dar tudo certo!
Faixa 7 - Dormi na praça
Juan
Adormeci e sonhei com você
- Bruno e Marrone

Estou aqui há meia hora olhando para o nada. É muita


informação. Primeiro, vou conhecer o João Vinícius. Eu realmente
vou conhecê-lo! Segundo, temos um vídeo e um show para
organizar. Além de precisarmos dar um gás no Instagram de Lili.
Estou completamente dividido entre ser um adolescente
deslumbrado e um adulto responsável.
Coloco o último DVD de João Vinícius para tocar no Youtube e
vou trabalhar. Acho que é a melhor maneira de conciliar essas duas
partes de mim. De vez em quando, nos momentos de
procrastinação, dou uma olhadinha no vídeo. Ele é tão lindo, com
aquele cabelo castanho claro. Sempre achei charmoso. A pele
branca, a barba feita, os olhos esverdeados. É óbvio que aquela
empolgação de antes diminuiu com o tempo, mas ainda me pego
aqui, parado por longos minutos, admirando meu ídolo.
Mas, de repente, estou indo atrás dos vídeos antigos. De
quando ele e Lili cantavam juntos.
Nunca achei que a voz dos dois combinava, e continuo não
achando. É inegável que Lili deveria ter uma carreira solo. A voz
dela não precisa de acompanhamento nenhum.
Vejo alguns vídeos dos dois juntos, depois volto a assistir aos
DVDs de João. Lili não quer que citemos a dupla em nenhum
momento. E sei que vai ser difícil não associar a imagem dela à
dele; sendo que ninguém mais associa a dele a ela.
Quando percebo, são duas da manhã. Já adiantei vários
conteúdos para as redes sociais e montei o planejamento para dois
meses, mas ainda falta muita coisa. Praticamente desmaio em cima
do computador e não vejo as mensagens que tinha recebido.
Sonho com um palco enorme, desses de festival de música,
todo iluminado. No centro dele, há uma pessoa. Todas as luzes
estão sobre ela. Meu coração vai parar na garganta. Estou nervoso.
Finalmente vou conhecê-la. A pessoa dos meus pôsteres e recortes
de revista.
Mas não é João Vinícius que está em cima do palco.
É ela.
Acordo no outro dia com Lili me ligando.
Chamada de vídeo.
— Nossa, você está péssimo!
É a primeira coisa que ela diz. Estou completamente grogue.
— Que foi? — pergunto, desnorteado.
— Você não viu suas mensagens, não? — Ela parece estar um
pouco nervosa. Resmungo. — Ai, Juan, vou desligar e você olha
agora!
Pisco algumas vezes e fico olhando para a tela do celular,
mesmo depois de Lili ter desligado.
Preciso de cinquenta canecas de café para ficar minimamente
apresentável.
Tenho muitas notificações no celular, então, não faço ideia
sobre qual delas Lili está falando. Olho a hora, são quase uma da
tarde.
— Droga! — Minha cabeça vai doer o dia inteiro.
Abro o aplicativo de mensagens e vou ignorando os chats. Lili
me mandou vinte e sete mensagens. Sorrio.
Três mensagens abaixo da dela, um número desconhecido.
Meu coração acelera. Prendo a respiração antes de abrir.

Oi, Juan, boa noite. Aqui é a Cris. Sua amiga Liliane me pediu
ajuda para organizar um encontro entre você e o João Vinícius.
Você está disponível no dia 26/10? Aguardo sua resposta o mais
rápido possível para agilizar isso.

E, de novo, eu me sinto um adolescente.


Respondo, até sem ver, que estou super disponível no dia 26.
Só horas depois, quando tomo meu café e acordo, é que me
lembro que não estou disponível, muito menos super disponível, na
porcaria do dia 26.
Faixa 8 - Pensa em mim
Lili
Em vez de você viver chorando por ele
Pensa em mim
- Leandro e Leonardo

Juan não me disse quase nada sobre o encontro com João


Vinícius no sábado, muito menos sobre a data do encontro. Nos
vimos quase todos os dias nas últimas semanas. Acho que ele
pensa que eu não sei que está marcado para o mesmo dia da
gravação do meu vídeo e da apresentação no Mendonça’s.
Ele não disse nada. Eu não disse nada. E ficamos por isso
mesmo.
E eu não sei por que estou tão chateada com isso.
O cara de pau está aqui, me olhando com essa expressão de
cachorro que achou o dono, enquanto eu faço uma das coisas que
mais detesto: fotos. Felizmente, mesmo com ódio, levo jeito para a
coisa.
— E aí, já decidiu qual dos dois logos? — ele me pergunta,
quando a fotógrafa me libera para uma pausa.
E aí, já decidiu quando vai me contar que vai me deixar na mão
na gravação do vídeo?
— Ainda não. — Eu me sento ao lado dele no banquinho alto.
Juan está com um notebook branco no colo. Evito olhar para a tela
para não ser enxerida, mas sei que já está fazendo a apresentação
do trabalho que vai mostrar na aula. — Qual você gostou mais?
— Você quer a minha opinião? — Ele está com um sorrisinho
no rosto.
— Ridículo! Estamos com pressa, não estamos? Sua
apresentação é segunda, eu preciso escolher. Então, sim, quero sua
opinião!
— O roxo — diz, sem nem pensar.
Bufo. No fundo, acho que gostei mais do logo roxo também.
— Então tá. — Cruzo os braços.
— Sério? — Ele chega a fechar a tampa do notebook. — Você
vai aceitar minha opinião?
— Se você continuar me irritando… não.
O olhar dele fica vago de repente. Acho que vai falar sobre o
encontro com João. Mas ele não fala.
— Quer uma pizza?
— Na verdade, eu quero um caldo de feijão! — confesso.
— Nesse calor? — Nem me dou ao trabalho de responder. —
Você conhece algum lugar que vende? — pergunta, pegando o
celular.
— Não. Eu faço o meu. Receita da minha mãe.
— Ah… — Ele fica me olhando. Acho que está esperando um
convite. O encaro de volta. E ficamos assim, nos encarando, sem
falar nada, um esperando algo do outro, até a fotógrafa voltar e me
chamar para continuarmos.
Assim que me levanto, olho para trás, e me rendo.
— Se você quiser… fica o convite.
Juan abre um sorriso. É óbvio que ele quer.
Na segunda parte da sessão, estou mais solta, logo a fotógrafa
fica satisfeita mais rápido e me libera, prometendo urgência no
tratamento das fotos. Juan agradece umas dez vezes a ela.
Ele fica mexendo nas mãos enquanto andamos na calçada.
Está mais tenso que eu com tudo isso. Acho que é nervosismo
porque a apresentação do trabalho já está em cima. Ou porque vai
conhecer o ídolo.
Passamos no supermercado, e eu compro bacon e torresmos.
Lá em casa tem o resto dos ingredientes. Juan fica calado durante
todo o trajeto. É estranho e até um pouco desconfortável.
— E aí, cara, tá nervoso com o que vai rolar sábado? — Paro
em frente à portaria do meu prédio. Ele me estuda com os olhos
apertados.
— Vai ser um dia e tanto! — desconversa e não cai na
armadilha que deixei. É só agora que percebo que ele não vai
mesmo falar sobre o encontro com João Vinícius. Tudo bem, Juan
não tem que me falar nada, não sou a mãe dele, mas… por que
estou irritada?
— É! — digo, brava, e abro o portão.
Não falamos mais nada enquanto subimos. Mas quando
entramos e começo a preparar o caldo de feijão, Juan resolve me
perguntar sobre minha casa, sobre como aprendi a cozinhar e até
me ajuda cortando a cebolinha e o bacon, sem parar de falar nem
por um segundo.
Quero perguntar por que ele estava tão calado antes, mas
deixo para lá.
Comemos nosso feijão, no sofá, porque não tenho mesa.
Juan repete duas vezes.
— Você nunca tinha comido caldo de feijão, não? — Eu me
levanto, pego a tigela da mão dele e junto com a minha.
— Desse jeito? Não.
Assovio, indo até a cozinha, enquanto coloco as vasilhas dentro
da pia.
— Caramba! Onde você vivia? — pergunto quando volto.
Ele responde com um sorriso.
— No meu mundinho particular, como diz a minha mãe.
— E o que tem nesse mundinho? Pizza! — Aponto o indicador
para ele. — Aposto que pizza. — Eu me jogo no sofá ao lado dele.
Juan abre o sorriso ainda mais.
— Lógico. Bem apimentada! — Ele se ajeita no sofá. — E você,
se tivesse seu mundinho, o que teria nele?
— Cachorro quente — respondo sem nem pensar. — A torta da
minha mãe...
— E caldo de feijão? Isso definitivamente teria no meu
mundinho!
— E João Vinícius de trilha sonora — digo, em tom de
brincadeira, mas Juan fica sério. — Que foi? Você prefere ele como
travesseiro? — Juan faz uma careta. — Qual é? Vai dizer que nunca
pensou nisso? — Sorrio. — Meu sonho era a Demi Lovato gostar de
meninas e me notar.
— A Demi Lovato gosta de meninas…
— E o João de meninos… — Me arrependo assim que falo.
Essa não é uma informação pública. — Ai, não devia ter falado isso.
— Não é bem um segredo no fandom. — Ele sorri. — Fica
tranquila.
— E você… gosta de meninos? — Mudo um pouco o rumo da
conversa.
Juan faz um bico e se mexe no sofá.
— Mais ou menos… — Acho que faço uma cara muito
estranha, porque ele logo emenda. — É que eu sou assexual, mas
me interesso por meninos, sim… de um jeito romântico.
— Ah… — Será que é só por meninos? Não que eu esteja
interessada, mas... Começo a falar sobre o assunto, porque estou
ficando nervosa demais. — É meio difícil ver pessoas falando sobre
isso, né? Eu fiquei semanas na internet pesquisando sobre
assexualidade quando minha irmã estava tentando entender porque
se atraía de um jeito tão diferente do que ela via nos filmes.
Ele começa a rir.
— Comigo foi assim também. Por isso que minha mãe sempre
dizia que eu vivia no meu mundinho. Ela falava que eu só me
apaixonava pelas pessoas inalcançáveis dos meus pôsteres.
— E estava errada?
— Não! — responde entre risadas. — Mas, e você, Lili?
— Eu? — Paro de olhar para ele por um instante e digo, em um
tom de brincadeira: — Eu gosto de tudo e não pego nada! — Então
começo a rir, porque já chorei muito por isso.
— Você é bi?
— Sou. Apesar de só ter me relacionado com homens.
— E com a Demi lovato em sonho…
Solto uma gargalhada alta.
— Não só com a Demi.
— Viu? Só Deus pode me julgar por querer conhecer meu ídolo.
Se você pudesse conhecer a D...
— Eu já sei que seu encontro está marcado para sábado. Não
precisava dar toda essa volta para me contar. — Tento não falar de
um jeito seco.
— É que a gente tinha um combinado.
— Não precisa tentar explicar, Juan. Nosso combinado sempre
foi eu te ajudar a conhecer o João Vinicius. Você esperou dez anos
por esse momento, cara! — Ele não parecia estar mais tranquilo. —
E, tipo, não vou precisar de você lá pra nada. — Era mentira.
— Mas, de todo jeito, acho que vou conseguir ajudar na
gravação do vídeo. — Ele se ajeita no sofá, um pouco mais
animado. Parece que ficou os últimos dias pensando em um milhão
de maneiras de não falhar em nenhuma das duas tarefas. — Tenho
certeza que consigo acompanhar e depois ir para Belo Horizonte ver
o show e depois ver o João.
— Vai dar tudo certo! — Sorrio para ele. E percebo que não
sinto tanta raiva, nem estou chateada. Pelo contrário, estou feliz por
Juan. O sentimento que tenho é diferente, parece... Ai, deixa quieto!
— E eu vou, finalmente, me livrar de você!
Juan ri e eu sou obrigada a admitir uma coisa bem assustadora
para mim mesma: não quero me livrar dele.
Faixa 9 - Estou apaixonado
Juan
Dois adolescentes pela madrugada
Pra viver a vida, sem pensar em nada
- João Paulo e Daniel

Eu amei um garoto desde os meus quatorze anos. E sempre


soube, bem no fundo, que meu jeito de amar era diferente dos
outros. Eu pensava que era só uma admiração muito grande. Não
tinha outro parâmetro além daquilo que eu sentia, que divergia
completamente de tudo o que me ensinaram sobre o que era amar
alguém.
Tive muita dificuldade em entender que aquela admiração era
mais do que isso. Que o que eu sentia pela menina mais inteligente
da sala, com suas longas tranças e sua dificuldade em ficar quieta
durante a aula, era amor.
É mais fácil quando a pessoa é famosa, quando é inalcançável,
quando o sentimento existe só como um grande sonho de
adolescente.
Mas a coisa muda quando a pessoa que faz seu coração
acelerar está bem na sua frente, sorrindo para você. E você quer
convidá-la para chegar mais perto, para conversarem a noite inteira
sobre como 2019 está sendo um péssimo ano, e então pensarem
em algo para fazerem juntos no café da manhã. Ela, na outra ponta
do sofá, com os olhos brilhando ao falar sobre a irmã mais nova, e
você sem piscar, imaginando como é possível alguém ser tão
bonito.
— Juan? — Lili se aproxima e encosta a mão fria no meu braço.
— Tá viajando aí?
Pisco algumas vezes.
— Acho que estou com sono. — Eu me levanto de repente. —
Tá super tarde, tenho que ir!
— Já tá quase amanhecendo, cara. Fica aí pro café!
Tem um nó na minha garganta.
— Eu tenho um monte de coisa pra fazer ainda!
Lili segura minha mão direita.
— Cê tá bem? Ficou pálido de repente.
— Tô… — digo sem certeza. E depois mais firme: — Tô. Eu
sou pálido, né? — Abro um sorriso, para que ela veja que estou
bem. O que, claramente, é uma mentira.
Lili está tão perto.
— Você ficou calado de repente. — A mão dela ainda está
segurando a minha. — É meio assustador quando você fica
calado… — Sorri, de um jeito meio sem graça, quando a puxo de
leve para mais perto. Passo a mão que está livre pelo rosto dela, e a
deslizo devagar até atrás do pescoço de Lili. Ela fecha os olhos
quando colo nossas testas. Fecho os olhos também. Minha
respiração está pesada, meu coração acelerado a ponto de doer.
Então, me afasto. Nada disso parece justo. Depois que
conhecer João Vinícius e apresentar meu trabalho, seguirei meu
rumo e Lili o dela. Foi o que combinamos.
Talvez, na verdade, eu só esteja surtando, porque não sei lidar
com esse sentimento.
— Tenho que ir — anuncio, me afastando em direção à saída.
Ela não fala nada, só me acompanha e abre a porta.
Não sei muito bem como chego em casa, fiquei o caminho
inteiro pensando sobre o que tinha acabado de acontecer. Pior,
sobre o motivo de aquela aproximação ter acontecido. Aquilo me
assusta mais do que eu gostaria de admitir.
Eu me jogo na cama quando chego e só acordo à tarde, com
mensagens da fotógrafa, me dizendo que havia editado algumas
das fotos e estava me enviando para adiantar meu trabalho.
Um anjo.
Tento me concentrar no trabalho durante o resto do dia. Mas é
difícil demais quando o trabalho tem esse sorriso, e esse rosto, e
esses olhos…
Ficar horas olhando essas fotos de Lili é a certeza que eu não
queria ter:
Estou apaixonado e este amor é tão grande…
Ao som de João Paulo e Daniel.
É nesse ponto que cheguei!
Não falo com Lili, só converso com a equipe da TV e com
Paulo. Está tudo pronto. Vai dar tudo certo.
Respondo a mensagem que Cris me mandou, perguntando
como estou e se está tudo ok com o encontro. E avisando que a
equipe de João Vinícius vai entrar em contato comigo amanhã de
manhã.
Termino minha apresentação mais rápido do que deveria,
mesmo assim são três da manhã. Domingo à tarde, eu me preocupo
em anexar fotos da gravação do vídeo e revisar tudo. Não hoje.
Checo o celular antes de dormir. Há uma mensagem de Lili. Só
uma.

Trocamos a música. Espero que não tenha problema.

Não sei o que ela pensa que está fazendo, mas não tenho mais
energia nem cabeça para ficar nervoso com isso. Vou tomar meu
banho e dormir, porque amanhã o dia vai ser longo.
Acordo vinte minutos antes da equipe de João Vinícius entrar
em contato e dizer que está mandando meu ingresso por e-mail.
Área VIP. Depois do show, que está marcado para as 22h, vou me
encontrar com ele. Tento não ficar mais ansioso do que já estou.
Checo a passagem para Belo Horizonte pela décima vez. O ônibus
sai às 15h. A gravação do vídeo está marcada para logo depois do
almoço. Se tudo der certo, consigo acompanhar ao menos o
começo.
Quando chego ao estúdio de Paulo, a equipe da TV e os
músicos já organizaram quase tudo. Paulo está sentado em um sofá
vermelho, com um violão preto sobre o colo. Lili está sentada no
chão, na frente dele, com um caderno na mão. O resto da banda
está arrumando os instrumentos, enquanto o pessoal da TV
organiza os ângulos das câmeras e a iluminação.
Eu os cumprimento, tentando não fixar meu olhar em Lili. O que
é bem difícil. Desvio o olhar para o resto do estúdio, tudo é muito
bem organizado, com paredes chumbo, piso de madeira e tapetes
vermelhos com detalhes em dourado no chão.
Ela olha para mim e desvia o olhar rápido.
— Estamos revendo alguns detalhes da letra! — Está toda
sorridente. Dá para ver de longe o quanto ama isso.
— Posso ajudar com alguma coisa? — ofereço.
— Não — diz, ainda sem olhar para mim. — Você vai acabar se
atrasando.
— Vou nada! — Eu me sento no sofá ao lado de Paulo, que me
dá dois tapinhas na perna. — Tudo certo por aqui então? —
pergunto para ele.
— Essa menina é ótima, Juan! Não teremos problema nenhum.
Pode ficar tranquilo! — Ele está encantado.
— Eu te falei que ela era!
Lili fecha o caderno e me olha.
— Pensei que você não tivesse nada com isso… Que tinha sido
coisa do Robertinho.
— Bem…
— O Robertinho nos apresentou, mas o Juan ficou horas me
falando o quanto você é maravilhosa. — Paulo interfere. — No final
das contas, nem precisava! — Ele solta uma gargalhada.
Eu até riria junto, mas estou muito nervoso.
— Viu? Não menti. Não tive absolutamente nenhuma
interferência…
— Mesmo que tivesse, eu jamais te daria esse crédito! — Ela ri
também.
— Lili? — Um dos músicos chama por ela, que se levanta em
seguida e vai até onde eles estão.
— Vamos passar a música? — ela pergunta. — Tudo certinho?
— Acho que sim!
Paulo se levanta e vai até um painel enorme, cheio de botões e
luzes. Já vi vários desses em clipes e vídeos. Mas nunca tinha visto
pessoalmente.
— Vamos passar o som, ok? Com a música do vídeo mesmo,
pode ser?
— Pode! — Lili olha para mim por um instante, mas desvia o
olhar depressa para o caderno que está segurando.
Então eles começam a música.
E eu percebo que estou sobrando aqui. Por isso, vou embora.
Faixa 10 - Me apaixonei
Lili
Quando vi os teus lindos olhos brilhando
Em outra direção olhando
E eu não existia pra você
- César Menotti e Fabiano

Juan sai praticamente correndo, não chega a escutar a música


inteira. Tento controlar o nó na garganta e o bendito sentimento de
frustração que nascem dentro de mim. É óbvio que interpretei
errado o que aconteceu na outra noite. A única coisa que Juan
pensa é em encontrar o ídolo da adolescência. Perdi mais uma vez
para João Vinícius.
Passamos o som até ficar tudo ok e ensaiamos por algumas
horas, antes de gravarmos de fato. E por um segundinho, bem
pequeno, paro de pensar em Juan. Olho no relógio mais vezes do
que gostaria. O ônibus dele já deve ter saído da cidade.
Depois de gravarmos o vídeo, ensaiamos algumas das outras
músicas que tocaremos. Quando acabamos, organizamos os
instrumentos no palco do bar. O que é fácil, porque o estúdio fica
nos fundos.
— Certeza que hoje vai lotar! — Paulo olha para as mesas
vazias com os olhos brilhando. Minhas mãos suam. Não falo nada.
Ele me dá um tapinha nas costas e diz que vai ficar tudo bem.
E Paulo tem razão. Ainda é cedo e as pessoas começam a
chegar e ocupar as mesas. Olho para a tela do celular mais vezes
do que deveria. Quero ver a hora, sim, mas quero ver se Juan me
mandou alguma mensagem. Não tem nada. Só o grupo da família
bombando com pedidos para que eu grave tudo e mande para elas.
Mato o resto do tempo até a hora do show conversando com
elas e respondendo que vou registrar tudo o que puder. É quando
recebo uma mensagem de um número desconhecido:

Parabéns pelo show no Mendonça’s


- JV.
Reviro os olhos. Só pode ser brincadeira!
Não vou mandar uma resposta. Quero que João Vinícius vá
para o quinto dos infernos. E, para piorar, vejo o status de Juan.
Uma foto dele, apenas de rosto, com a legenda: pronto para o
show.
Que ódio!
Coloco o celular no modo silencioso, e o jogo dentro da bolsa.
— Lili, já está quase na hora. — É Paulo que vem até o canto
onde estou, ligeiramente escondida, para avisar.
— Obrigada! — Vou andando na direção do palco, dando uma
espiadinha no bar. Está lotado.
Respiro bem fundo e olho para os meninos da banda. Eles já
estão esperando.
Subo no palco, mais nervosa do que nunca. Nem quando eu
tocava para cinquenta vezes esse público, tremia tanto.
Eu queria que Juan estivesse aqui.
Nunca vou admitir isso em voz alta. Mas queria.
Olho para a banda mais uma vez, e depois me apresento. Ao
contrário dos públicos de outros bares onde toquei, aqui no
Mendonça’s as pessoas vêm para ver o show. É a tradição da casa.
Então, todo mundo responde meu “boa noite”.
Fico mais nervosa ainda.
Para a minha sorte, a música começa e eu disfarço meu
nervosismo cantando.
E não deixo de estar nervosa nem por um segundo, mas me
acostumo com a sensação. No final de todas as músicas, as
pessoas me aplaudem. E eu me sinto importante, como não me
sentia há tempos.
O show acaba e eu simplesmente não quero sair do palco.
Ainda tocamos mais umas três músicas a pedido do público antes
de acabar de vez.
Somos aplaudidos com tanta força que quase choro.
Então o quase choro vira um sorriso quando noto alguém
aplaudindo mais do que os outros. Meus olhos marejam e preciso
respirar fundo. É como se algo explodisse dentro de mim.
Sinto vontade de correr até onde ele está, mas vou devagar,
agradecendo as pessoas que me parabenizam pelo caminho,
inclusive Paulo, que diz que vai me chamar para cantar aqui mais
vezes. Agradeço, com um sorriso, e sigo, passando por entre as
mesas até os fundos do bar.
— O que você está fazendo aqui?
— Das milhares de coisas que você poderia dizer, é isso que
você fala?
Reviro os olhos.
— Ai, meu Deus, como você é insuportável! — Me aproximo
dele para dar um tapinha em seu ombro, mas Juan pega minha mão
e me puxa para perto. — Você não respondeu minha pergunta —
digo baixinho. — Perdeu o ônibus?
— Não. — Ele me puxa ainda mais. Meu coração acelera. —
Mas desci na cidade vizinha. Só que demorei horas para conseguir
voltar.
— Sério?
— É. Juro. Percebi que era nesse show que eu queria estar.
Acho fofo o que ele diz, mas vou fingir que não.
— E você chegou que horas?
— Desde antes de começar!
— E por que não foi lá pra frente?
— Achei melhor ver daqui, no meio do povo. — Ele sorri. Eu
sorrio também.
— Você é muito bobo!
— Eu queria fazer uma surpresa… — Juan me puxa mais.
Nossas testas se encostam.
Eu me afasto um pouco.
— Não vou conseguir outro encontro com o João, não. Minha
parte do acordo eu cumpri!
— Meu Deus! Um dia eu conheço o João Vinícius, Lili. Hoje
tenho uma coisa mais importante pra fazer!
— Ah é? O quê?
Juan coloca a mão atrás do meu pescoço. Eu sei o que ele está
fazendo, mas honestamente? Estou apavorada. Na minha cabeça,
estava fixa a ideia de que Juan só tinha olhos para João Vinícius.
Nunca imaginei que ele ficaria para ver o meu show. Que ficaria por
mim!
— Beijar você. Posso?
Sorrio. E não respondo. Só o abraço e puxo para perto. Parte
de mim ainda acha que deveria lutar contra isso. Só que tenho lutas
demais na vida, não preciso de mais uma.
— Pode — digo baixinho. Mas eu mesma o beijo. Acho que a
gente já perdeu tempo demais!
Bregafunk do amor
com Fabrício Fonseca e Alan Silva

Edição e revisão: Clara Alves


Leitura sensível: Koda Gabriel
Para Thati e Clara
e todas as pessoas LGBTQIA+ que escrevem e nos inspiram!
Capítulo 1
Felipe

Se me perguntarem qual a coisa que mais gosto na minha vida,


meu primeiro pensamento será dramas gays asiáticos. Posso
passar horas vendo os romances dos chopuchais, me apaixonando
por P's e Nongs e surtando quando um vilão qualquer tenta separar
meus casais favoritos — participo de um grupo bem grande de ódio
ao Lhong! Infelizmente, eu também sei que nunca me verei
representado nos Boys Love: nunca encontrarei algum romance
com um protagonista negro, gordo ou abertamente bissexual —
alguém precisa ensinar sobre sexualidade para os produtores de
conteúdo da Tailândia —, e isso é muito decepcionante.
Há um lugar, porém, onde sempre posso encontrar um refúgio,
onde sei que irei me identificar com os personagens vivendo suas
vidas de forma extremamente mágica… ou não. E esse lugar são os
livros do Mariano Madeira, com seus personagens fantásticos se
aventurando e se apaixonando em cenários nacionais, familiares e
encantadores. Faço coleção de todos os livros do autor e o
acompanho através de seus stories divertidos e tweets importantes.
Mas nunca tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
Até agora.
Agora, nesse período mágico de fim de ano, acabo de descobrir
que uma cidade a algumas horas da minha casa será uma das
paradas da turnê de lançamento de seu nono livro, As verdades
sempre ditas.
Estou na biblioteca da escola quando vejo o anúncio — a ideia
inicial era fazer uma pesquisa sobre Émile Durkheim, mas eu
sempre perco o foco na internet —, um folder colorido avisando
sobre o encontro de leitores do Mariano em Santa Clara. Quase
tenho uma síncope. Solto um gritinho animado e recebo um sonoro
“shiu” da bibliotecária.
— Desculpa, Marilene! — digo, tentando me segurar.
Quais são as chances de um dos meus maiores sonhos
estarem se realizando? E, ai meu Deus, como vou fazer para ir
encontrá-lo?
Me levanto apressado e, assim que me viro, acabo esbarrando
em alguém. Eu a vejo cair de bunda no chão e fico boquiaberto, sem
reação. Ela não é o tipo de garota que se vê na TV, talvez porque
seja bonita demais para uma tela tão pequena — não que seja alta.
Pequena como Manu Gavassi, aparência de Urias e jeito de Gaby
Amarantos, Mirela é tão linda que deve sofrer para escolher as
melhores fotos para as redes sociais. Com seu cabelo liso curtinho,
que hoje está solto, ela é uma das únicas cinco pessoas dessa
escola que conseguem ficar bonitas de uniforme.
Se existe algum famoso nessa grande escola de cidade
pequena, esse alguém é Mirela. Sozinha, ela conseguiu reunir mais
de dez mil inscritos em seu canal do YouTube, onde posta vídeos
cantando músicas daquele casal estranho do sertanejo e, às vezes,
algumas músicas autorais. Eu nunca me lembro de olhar o número
de visualizações nos vídeos porque me perco total em sua voz
macia e no som do violão rosa afinado.
Sinceramente, sempre pensei que, se um dia ela voltasse a me
notar (depois daquele dia que não gosto de lembrar), eu seria o cara
mais feliz da Terra, mas nunca imaginei que seria assim.
— Você não olha por onde anda? — ela pergunta, e eu estico a
mão para ajudá-la a se levantar.
— Desculpa, eu geralmente não sou tão desastrado. —
Mentira! — Costumo prestar mais atenção nas coisas. — Pura
mentira. — Juro que foi um caso isolado. Total! — Mentira, mentira,
mentira. Não acredito que a primeira coisa que digo para Mirela em
anos é uma mentira enorme sobre mim.
Mirela se levanta e passa a mão na calça, para espanar a
sujeira.
— Tudo bem, acontece… — Ela se inclina para o lado, olhando
para algo atrás de mim. — Aquele é o Mariano Madeira?
— Você conhece o Mariano Madeira?
— Vocês estão falando do Mariano Madeira? — Uma garota
aparece detrás de uma estante, olhando para mim e Mirela.
Que fofoqueira!
— Sim, ele vai fazer um encontro lá em Santa Clara — explico,
meio impaciente.
Fala sério! É a minha primeira chance de voltar a falar com a
Mirela e do nada aparece alguém para atrapalhar?
Mais um dia sem sorte, Felipe!
Capítulo 2
Ana Cecília

Se alguém tirasse os fones do meu ouvido nesse exato


momento, se surpreenderia com a música que está tocando.
Enquanto leio a nova obra do meu autor favorito, o bregafunk come
solto.
Começo a balançar meu quadril involuntariamente com o livro
na mão. Algumas pessoas me olham torto, mas não ligo. Já sofri
demais com olhares desse tipo por ser negra, gorda e bissexual, e
hoje em dia tento seguir o baile da melhor forma possível. É
impressionante o quanto amadureci nos últimos anos e depois das
inúmeras sessões de terapia. Enquanto espero a próxima música
começar — sim, eu não tenho Spotify e o tempo de uma música
para outra no player do celular parece uma eternidade —, escuto as
duas palavras mágicas que ativam meu lado fofoqueiro.
Mariano Madeira.
E pronto, sinto uma comichão me despertar totalmente e
levanto para me intrometer na conversa.
— Vocês estão falando do Mariano Madeira? — pergunto,
surgindo entre as estantes.
O menino não consegue disfarçar a revirada de olhos. Fico bem
atrás de Mirela, a famosinha da escola, todo mundo aqui sabe quem
ela é.
— Sim, ele vai fazer um encontro lá em Santa Clara. — É bem
óbvio que o menino não gostou da minha intromissão, mas eu
ignoro sua reação, porque o que ele disse é muito mais importante.
— O quê? — cochicho, tomando cuidado para não fazer muito
barulho na biblioteca.
— Pela deusa! Eu preciso ir. — É a primeira vez que Mirela fala
desde que apareci, e eu fico meio desconcertada. Se a Marília
Mendonça e o Jão fizessem uma música, essa canção seria a voz
da Mirela. Só de ouvi-la sinto vontade de chorar.
Bem, não disse por onde.
— Precisamos! — Eu e o menino suspiramos e falamos juntos.
— Então vocês também gostam do Madeira? — Mirela
pergunta baixinho. Parece até que estamos planejando derrubar o
presidente.
O que não seria uma má ideia.
— Eu amo! — grito.
O garoto me olha feio, e sussurra em resposta:
— Ele é o melhor!
Ele sabe muito bem como corrigir alguém. E acabo me sentindo
mal por ter gritado dentro da biblioteca.
Mirela se senta no chão, bem no meio do corredor — essa
menina é meio fora da casinha —, e bate de leve com as duas mãos
no carpete vermelho, um óbvio convite para nos sentarmos também.
E é claro que eu me sento.
O garoto fecha a meia lua. Cansado de imaginá-lo como “o
garoto", resolvo perguntar o seu nome. É Felipe… o nome do meu
ex.
Suspiro.
Qual é, destino? Tá de sacanagem?
— E você? Qual é o seu nome e quais são seus pronomes?
Amo o fato de ele ter perguntado meus pronomes, mas vou
fingir que estou acostumada com toda essa desconstrução no meu
dia a dia. Não estou.
— Ana Cecília. Ela, dela — respondo e me viro para Mirela. —
E você, como prefere que te chamem?
Capítulo 3
Mirela

— De Mirela mesmo, obrigada! — digo o final da palavra com


bastante ênfase. — Meus pronomes são sempre femininos. — Sei
que soo meio rude, mas é necessário ser firme quando o assunto é
a maneira como as pessoas vão me tratar.
A menina sorri, sem graça. O brilhinho em seu olhar por causa
do Mariano Madeira começa a desaparecer. Meu coração aperta um
pouco. Ela foi simpática comigo. Ninguém, absolutamente ninguém,
nunca tinha perguntado meus pronomes, assim, presencialmente (e
eu sei que devo dar o crédito ao ingrato do Felipe, mas não vou dar
por pura birra). Todo mundo erra, muitas vezes na maldade, e eu
tenho que corrigir. Mas ela não.
Eles não.
Sorrio e fico olhando para Ana, esperando que ela ou Felipe
digam alguma coisa.
— E se a gente fosse junto? — É ele quem sugere, animado.
Detesto a ideia, mas não tenho outra. Ana sorri, meio sem jeito, e
faz uma cara de “mas eu nem conheço vocês”.
— Ah… — Penso mais um pouco e chego a um total de zero
sugestões. Quero muito conhecer o Mariano. Poxa, os livros dele
mudaram a minha vida. Ok que são quase sempre romances gays e
só alguns têm personagens bissexuais, mas ele traz mais
diversidade do que jamais vi em outros livros. A primeira vez que vi
um protagonista indígena foi em O caminho. Vale a pena passar
algum tempo com Felipe e essa desconhecida se for para conhecer
o Mariano. — Eu acho uma boa.
Ana franze o cenho e pondera, até abrir um sorriso pequeno e
declarar, deslumbrada:
— É o Mariano! Logo ali. — Não fosse o sotaque paulista, eu
poderia jurar que ela é mineira. Para mineiros até o Japão é logo ali.
— Acho que se a gente combinar direitinho… — Deixa a frase no ar
por um segundo.
Então os dois começam a tagarelar, bem baixinho, sobre como
faremos para ir até Santa Clara ver o nosso escritor favorito. Meu
pescoço dói só de ficar acompanhando esse bate e rebate de
sugestões rechaçadas — o fato de eles serem maiores do que eu
não ajuda. Desse jeito, nunca vão decidir nada.
Ana Cecília parece ter mania de ficar mexendo na ponta das
tranças box braids. Sempre que Felipe sugere algo, ela abre bem os
lábios cheios em um sorriso cínico e olha para o chão, negando
levemente com a cabeça. O que deixa o garoto nervoso. Ele mexe
nos cabelos crespos, impaciente, e estala a língua. E lá vão eles
discordar de novo.
— Meu irmão tem um cara de confiança que sempre leva a
gente pra SC quando precisamos — sugiro, e os dois olham na
minha direção. É engraçado ver o pescoço deles se curvar
levemente para baixo. — É transporte ilegal.
— Não ando de transporte ilegal. — Felipe cruza os braços e
encurva ainda mais as costas. — Essas coisas são perigosas.
— Mas é a opção mais rápida. E eles deixam a gente no lugar
certo.
— É ilegal. — Ele se inclina, se aproximando de mim. — E, tipo,
a empresa de ônibus ainda está fazendo aquela promoção de
cinquenta por cento de desconto.
— Ah, não, de ônibus não dá! Os horários são péssimos… Olha
só, o lançamento é três da tarde. O ônibus sai daqui uma e meia. A
gente não vai chegar a tempo.
— Deve ter outro horário. — Ele faz um bico sutil com a boca.
Acho bonitinho.
— Não tem. Minha mãe faz tratamento em Santa Clara toda
semana. Eu conheço os horários.
Ana me olha com curiosidade, mas Felipe só fica quieto. Todo
mundo da cidade sabe sobre o tratamento da minha mãe.
— Eu conheço alguém que talvez possa levar a gente — ela
comenta de um jeito tão casual, que nem parece que ficou longos
minutos discutindo alternativas. Se já tinha uma solução, por que
não disse antes? — Mas é um favor que eu não queria pedir…
— É o Mariano, véi! — Felipe fala em súplica, juntando as mãos
na frente do peito.
A menina revira os olhos para ele.
— Aff, você não vai entender! — E se levanta, saindo da
biblioteca sem falar mais nada.
Encaro Felipe, que retribui meu olhar. Será que ele se lembra
do que rolou três anos atrás? A julgar por esse sorrisinho bobo que
está dando para mim, acho muito difícil.
Sinto meu coração apertar de decepção. Não sei por que ainda
espero que ele me agradeça pelo que aconteceu.
O ar fica pesado demais, o clima se perdeu completamente,
então me levanto e saio da biblioteca sem me despedir.
Capítulo 4
Felipe

Eu estou caindo.
Retórica e literalmente falando.
Vou parar no chão como uma manga madura, assim que saio
da biblioteca atrás de Mirela, e no caminho levo um garoto estranho
comigo. Meu coração, que já estava acelerado, acelera ainda mais.
Se esse fosse um livro do H. B. Sobrinho, esse seria o início de
uma linda história de amor, mas infelizmente é a vida real.
— Ei, você não olha por onde anda? — grita em meu ouvido.
— Essa frase meio que vai ser minha bio da lápide —
resmungo. — Desculpa aí!
Eu me levanto e saio apressado antes que ele diga mais
alguma coisa.
Passo rapidamente na sala para pegar minha mochila e saio da
escola pensando em três coisas: o encontro do Mariano Madeira; o
fato de que fiquei mais de cinco minutos em uma roda de conversa
com Mirela; e que, naquele momento, eu não consegui pensar em
outra coisa além do ocorrido que a tornou famosa na escola antes
mesmo de seu canal ser criado no YouTube.
Mas não quero focar no terceiro pensamento agora, então o
empurro para debaixo do tapete e sigo para casa, refletindo sobre o
encontro e sobre o quão maravilhoso pode ser se conseguirmos ir
juntos. Tudo bem que isso significaria ter que passar um tempinho
com a fofoqueira da Ana Cecília, mas não pode ser tão ruim. Se ela
gosta dos livros do Mariano, é porque tem bom caráter, não é?

Ontem eu caí, hoje é o meu mundo que cai.


— Mãe, só preciso do suficiente pra ir até Santa Clara —
argumento, passando o café enquanto ela corta o bolo. — Nem
precisa dar o dinheiro da volta, eu venho andando.
— Deixa de ser doido, Felipe. — Ela ri. — E eu não posso te
dar dinheiro por agora, tive que ajudar seu irmão com a inscrição
para o torneio.
Nesse momento, o meu arqui-inimigo entra na cozinha, com
seu cabelo crespo como o meu, a pele escura como a minha e os
olhos castanhos idênticos aos meus.
— Sinceramente, não acredito que somos gêmeos! — Daniel
resmunga, se sentando na mesa e esperando que minha mãe sirva
o café para ele. Que bebezão!
Se deixarmos a aparência de lado, não há nada em comum
entre mim e meu irmão: eu amo ler, mas acho que ele nunca nem
aprendeu; eu amo música nacional, e ele só ouve banda de rock
com nomes profanos; eu só corro em situação de perigo (todas as
situações) e ele ama correr no campo de futebol.
Sinceramente, não sei como minha mãe o suporta. Eu, pelo
menos, não consigo. Sempre evito ficar no mesmo ambiente que
ele, para não gerar alguma confusão no nível dos livros do Enilton
Martins.
— Vou sair mais cedo pra aula hoje — digo, antes de encher a
boca com um pedaço de bolo que minha mãe só fez porque o
Daniel gosta.
Que droga, eu queria odiar esse bolo de fubá, mas tá perfeito!

Ana Cecília está parada na entrada da escola, usando um gorro


preto sobre os cabelos trançados e óculos escuros com armação de
aviador. Está com uma pose misteriosa, os braços cruzados sobre o
peito e uma perna apoiada na parede.
— Chega aqui — ela finge um sussurro (que de sussurro não
tem nada) quando vê que estou me aproximando do portão.
Ando até ela, olhando para os lados, de repente me sentindo
preocupado que alguém esteja nos vigiando. Mas não tem ninguém
aqui, eu realmente vim muito cedo para a escola.
— O que aconteceu? — pergunto, confuso. — Por que você tá
vestida como se fosse uma zero-zero-sete negra que deixaria os
nerds da internet revoltados?
— Tive uma ideia de como podemos conseguir um carro para ir
ao encontro do MM! — Agora ela está sussurrando de verdade.
— MM? — Sorrio. Com certeza, o Mariano é um chocolate que
eu gostaria de provar. — Tanto faz! Qual é a ideia?
— Eu ia esperar a Mirela aparecer, mas...
Ela olha para os lados e se afasta da parede. Eu sinto um
arrepio quando ela se aproxima da minha orelha.
— Vamos roubar um carro!
Capítulo 5
Ana Cecília

Ainda não me acostumei com o calor dessa cidade. Em São


Paulo, era tudo frio. As cores eram frias, as bebidas eram frias, os
dias eram frios e eu estava rodeada por pessoas… frias.
A solidão era uma constante na minha vida. Primeiro, a família
inteira do meu pai me excluiu quando descobriu que eu também
gosto de meninas, como se eu ser bissexual apagasse tudo que já
vivemos juntos. Os feriados, os aniversários, os enterros, todos os
momentos de felicidade e de tristeza foram reduzidos ao fato de eu
ser uma menina bi. Depois, foram meus diversos namoros falhos.
Três na verdade, o último rendeu altas conversas com meu
psicólogo, muito sorvete e uma ressaca literária danada.
A carência se tornou minha melhor amiga, e eu me sentia
congelada em minha solidão.
Desde que me mudei, a convite de uma prima da minha mãe
(que eu chamo de tia), nunca mais me senti sozinha. Sou muito
grata a ela e a todo o restante da família aqui de Santa Má por
quererem me tirar da lama.
Mesmo sendo nova na cidade, dá para perceber que, ainda que
também haja conflitos e diferenças, as pessoas daqui são mais
acolhedoras.
Ou talvez as casas sejam pequenas demais, quem sabe?
Não me sinto mais vivendo na minha própria bolha gelada, com
as mãos tremendo e o peito apertando a cada crise. Talvez a
mudança, a adaptação e essa coisa toda de ser nova em uma
cidade ajude a desviar o foco do frio que ainda existe dentro de mim
— ou talvez as pessoas que morem aqui se sintam tão perdidas e
isoladas como eu me sentia quando morava em São Paulo.
Estou agora deitada na cama do antigo quarto da minha prima
— se é que posso chamá-la de prima —, pensando em alguma
forma de ir para Santa Clara encontrar Mariano com Felipe e Mirela,
sem pedir ainda mais favores a ninguém. Já fazem muito por mim
aqui.
A porta do quarto se abre e minha tia entra com café e algumas
bolachas.
— Obrigada — agradeço, com sinceridade. Sou extremamente
grata por tudo que ela fez desde que eu cheguei aqui, aliás de
antes. Minha vida andava muito vazia até que ela me acolheu e me
trouxe para cá. Me sinto abraçada todo dia.
— Que isso, minha filha. — Graça dá um passo para entrar no
quarto, mas, logo em seguida, dá dois passos para trás. — Você já
é de casa. Boa noite e dorme bem.
Antes de ela fechar a porta, consigo ver seu olhar cansado.
Sinto vontade de abraçá-la.
Quando minha tia sai, volto a encarar o teto rosa, mastigando e
pensando nas possibilidades.
1- poderia pegar a bicicleta da minha prima emprestada. Apesar
de não fazer ideia de até onde conseguiria ir com ela. Acho
que Santa Clara é perto, mas… Quão perto?
2- poderíamos pedir para alguém nos levar, mas não quero e
não vou pedir ainda mais favores.
3- poderíamos…
É quando uma ideia muito arriscada surge em minha cabeça: o
primo da minha tia tem um carro que nunca usa. Eu sei dirigir…
poderia dar certo.
Permaneço no quarto rosa, na cama de solteiro, ouvindo os
barulhos que vêm lá de fora. As janelas oferecem tantas histórias,
queria eu viver um amor de janela, ou fugir da realidade e ir para
outra dimensão.
Mas não vai rolar. Então, fico a noite inteira acordada pensando
em um plano para estar frente a frente com Mariano Madeira.

— Vamos roubar um carro! — sugiro, apreensiva, com medo do


que ele vai pensar. Parece que meu muro de "opiniões alheias" está
sendo destruído por esse garoto, porque eu realmente me importo
com o que ele possa pensar de mim.
Ao perceber a cara de assustado de Felipe, me corrijo.
— Bom, tecnicamente vamos pegar emprestado e depois
devolver sem que o dono saiba, sacou?
Felipe me olha desconfiado, colocando as mãos em volta da
cintura, e percebo que, em breve, teremos uma nova discussão.
— Beleza — diz, de um jeito irônico. Eu sei que ele jamais
aceitaria. — Mas você só esqueceu de um detalhe: quem vai dirigir?
— Eu, oras.
E, antes que ele possa retrucar, vejo Mirela chegando e aceno
para ela, da maneira mais discreta que consigo.
— Mirela, corre aqui — chamo.
— Seu disfarce é péssimo. — Felipe dá uma risadinha,
quebrando um pouco a expressão dura que trazia no rosto.
— Não estou disfarçada, só não quero que todos saibam dos
nossos planos.
— É, as paredes daqui têm ouvidos.
Ele ri baixinho.
Mirela chega com um livro na mão. Pelo visto, ela não lê
somente Mariano Madeira. Tento ver a capa e consigo ler o nome de
Rian Rulian, o autor de Bendito ex. Esse livro me fez chorar
horrores! Só quem passa por um relacionamento abusivo, em que a
pessoa sai como o anjo da história, com auréola e tudo mais, pode
entender o quanto esse livro foi significativo para mim. Me senti
usada, como um escudo para que meu ex desfilasse por aí com seu
ar de desconstruído. Um branco namorando uma mina preta e
bissexual, nossa, como ele é a melhor pessoa do mundo.
Ah, me poupe!
Mirela fica parada, esperando que alguém fale algo. Como
Felipe parece ter perdido a voz, conto a novidade:
— Então, eu tenho um primo… Na verdade, ele é primo de
segundo grau, porque é sobrinho da prima da minha mãe, mas tanto
faz — digo sem pausas. — E ele deixa a chave do carro dando sopa
na estante da casa da minha tia, já que aparentemente ela é a única
da família que tem garagem. O bom é que ele quase nunca vai lá
buscar o carro e foi para Belo Horizonte visitar o namorado. Eu
posso dirigir, mas só vou precisar que alguém arrume dinheiro para
a gasolina e uma boa desculpa — eu realmente queria dizer
advogado — caso alguém pare a gente.
— Vai dar certo! — Mirela comemora, dando um pulinho e se
aproximando de mim com os olhos brilhando.
Felipe faz uma cara feia, cruza os braços e bate o pé no chão.
Mas o ignoro e começo a cantar, animada:
— Mariano, eu vou te conhecer! — Dou pulinhos e Mirela me
acompanha na cantoria. — Mariano, eu vou te conhecer! Mariano,
eu vou te conhecer!
Por algum motivo que desconheço, Felipe suaviza a expressão
e se aproxima de nós. Na mesma hora, Mirela se afasta. O clima
fica tenso.
Algo aconteceu entre os dois, dá para ver.
E eu vou descobrir o que foi.
Capítulo 6
Mirela

Sei que Ana é parente, em algum grau, da pessoa que mais


quero impressionar na vida. Sério, tento fazer com que a pessoa
mais importante dessa cidade me note há uns três anos. Mas ela é
inalcançável.
Já Ana está aqui e parece ser uma pessoa tão legal. Não seria
ruim ser amiga dela. Uma oportunidade como essas não cai todos
os dias no meu colo.
— Então o plano é a gente roubar um carro — reafirmo, só para
ter certeza que minha mente não está inventando coisas, assim que
me afasto um pouco ao notar a aproximação de Felipe. — No caso,
vocês, porque eu não posso nem sonhar em ser presa.
— Ana Cecília, toma que o roubo é seu! — Felipe meio que
aceita essa ideia, sem deixar de tirar o corpo fora. Típico! Faço uma
careta sem disfarçar, e a garota me olha de um jeito estranho. Às
vezes, tenho vontade de fazer um barraco com Felipe, apontar o
dedo bem na cara dele e dizer o quanto ele é um ingrato!
Mas não vou fazer isso. Não antes de conhecer o Mariano. E
olha que ele nem é o meu autor favorito. Há outros de que gosto
mais, como a Branca Alves e o Rian. Acho que, no dia em que eu
conhecer a Branca, caio durinha no chão.
— Já vi que vou ter que fazer tudo pra essa viagem rolar! — ela
reclama, com humor. Não está falando sério. Meu coração aperta
quando vejo o sorriso que se forma em seu rosto e a maneira como
os olhos dela estão brilhando para nós. Eu conheço tão bem a
solidão nos olhos de uma pessoa. Tenho espelho em casa.
Começamos a andar pelo pátio da escola, planejando baixinho
as desculpas: vou dizer para minha mãe que vou passar à tarde de
sábado na casa do Felipe; ele vai dizer que tem dever de casa com
a Ana (o que eu achei uma péssima mentira, porque eles nem são
da mesma turma); e a Ana vai falar que precisa me ajudar num
projeto de ciências. Tenho certeza que as palavras “projeto de
ciências” vão convencê-la. Professores sempre ficam comovidos
com bons alunos.
Ainda não decidi como explicar para a minha mãe os cinquenta
reais em gasolina no cartão, mas dou meu jeito. Posso dizer que fiz
novos amigos e comprei comida para um piquenique na lanchonete
do posto. É, essa é uma boa ideia.
Felipe ainda não parece nada feliz com essa ideia e não
conseguiu pensar em como vai fazer para reunir a grana para os
lanches. Respiro fundo e tento manter a calma. Esse garoto não
pode estragar tudo.
Não acredito que vou passar três horas em um carro com ele.
Paro em frente à minha sala e a de Felipe. A de Ana fica do
outro lado do pátio.
— Bom, não quero ser estraga-prazeres nem nada, mas temos
que pensar com muito cuidado. — Junto os dedos e gesticulo para
dar ênfase nas palavras: muito e cuidado. — É sério, não pode dar
nada errado.

Mas é óbvio que dá tudo errado. Muito errado. Erradíssimo.


Estamos os três parados igual estátuas gregas, mais
congelados que o Olaf, encarando o rapaz à nossa frente. Ele está
rodando as chaves do carro com os dedos perto da porta da
garagem, nos fuzilando com o olhar. Os cabelos crespos e cheios
estão meio desalinhados. Se o rapaz se visse no espelho agora,
tenho certeza que puxaria um pente garfo e ajeitaria os fios,
colocando tudo no lugar.
Meu coração acelera tanto que quero fugir, mas não consigo.
Acho que meu órgão vital não está conseguindo bombear sangue
nem para o meu cérebro processar que preciso mandar minhas
pernas correrem.
Não que vá adiantar alguma coisa, basta Alex ligar para
qualquer uma das nossas mães e a gente está lascado.
Eternamente lascado. Consigo me mover um pouco para trás e
encosto a mão na lataria do carro.
O carro-que-a-gente-ia-roubar.
Não acredito que fomos pegos antes de entrarmos no Gol 2008
e sairmos da garagem. Se Ana não tivesse demorado tanto para
escolher qual camisa de Brooklyn Nine-Nine (das muitas que tem)
iria vestir, talvez a gente tivesse conseguido vazar para Santa Clara.
Mas não. Na saída da casa de dona Graça, demos de cara com
Alex. Literalmente. Felipe e ele chegaram a esbarrar de leve, numa
cena que parecia saída de Gays quase atropelados, do Vinícius
Fino.
— Eu já fui adolescente, sabe? — Alex começa com o papo de
velho. — Mas nunca, nunca mesmo, quis ROUBAR UM CARRO!
— Não era roubo, a gente só ia pegar emprestado.
— Emprestado? — Ele coloca uma das mãos na cintura.
— É, a chave tava lá, e eu peguei emprestada.
Alex respira fundo, apertando as chaves que havia tirado de
Ana pouco antes.
— Olha, Ana, você chegou aqui há pouco tempo. A tia Graça tá
sendo muito boa com você… — Ele diz de um jeito até suave, mas
Ana abaixa a cabeça, culpada. — Mas não te conheço, então não
posso dizer que não esperava. Já você, Mirela…
Olho para ele, assustada.
— Eu? O que tem eu?
— Eu te conheço desde que você era uma pirralha que ficava
cantando no meu ouvido o dia inteiro.
Dou um sorriso culpado. Alex me ajuda a gravar minhas demos
desde que eu tinha nove anos. Eu não deveria ter apoiado o roubo
do carro, mas apoiei justamente porque o conheço e sei que é uma
boa pessoa. Minha única esperança de não terminar presa para
sempre no meu quarto é que ele não dedure a gente.
— É que a gente tá meio desesperado! — Exagero um pouco.
— Pra quê? — Agora ele coloca as duas mãos na cintura.
— É que tem esse escritor, o Mariano…
— Uhum, sei quem é. — Ele me olha com ainda mais
impaciência.
— E vai ter um lançamento dele em Santa Clara daqui a pouco.
— Exagero ainda mais. Faltam horas para o evento. — A gente é
muito fã. — Faço cara de cachorro que caiu da mudança e espero
que Ana e Felipe estejam com a expressão tão desolada quanto a
minha.
— E vocês não sabem pedir, não?
Nos entreolhamos. Alguém cogitou a possibilidade de pedir o
carro emprestado? Ou pedir que alguém nos levasse? Acho que
Ana não quis nenhuma das duas coisas.
Faço minha melhor cara de culpada e digo:
— A gente tá muito desesperado.
Alex puxa todo o ar do mundo para os pulmões e solta devagar,
balançando de leve a cabeça.
— Eu realmente não acredito que vou fazer isso… — resmunga
e faz uma pausa longa, nos estudando com bastante atenção. O
olhar dele para um tempo no rosto de Felipe; talvez Alex tenha se
visto no garoto, visto seu eu do passado ou só ficado com pena da
gente, porque, após uma leve revirada de olhos, ele estala a língua
e se rende. — Ok, eu levo vocês!
Gritamos. Não sei se de alegria, empolgação ou alívio.
— Mas… — Por que adultos sempre têm um “mas”? — Vocês
vão pedir autorização para os responsáveis. Não vou andar com um
bando de menores de idade sem autorização.
Ana dá um sorrisinho.
— Eu tenho dezoito anos.
Alex olha para ela, cético.
— E vai pedir pra tia Graça deixar você ir mesmo assim. — É
sua palavra final. — Vou comer algo e vocês voltem autorizados,
ok?
A garota dá um chutinho no ar e vai andando na direção da
casa. Encaro Felipe, o ingrato, por um momento rápido. Estou me
sentindo esmagada pelas palavras que ele não me disse e as que
eu não gritei por todo esse tempo. Em silêncio, cada um segue seu
rumo.
Bom, poderia ter sido pior.
Capítulo 7
Felipe

Minha mãe tem duas regras supremas para mim e meu irmão:
nunca brigar com ninguém sem motivo e nunca pedir qualquer tipo
de ajuda para qualquer pessoa da família do meu pai.
Agora já posso dizer que quebrei as duas — embora a primeira
não tenha sido tão intencional e, bem, não foi eu quem brigou, mas
eu estava lá e era o motivo da briga. Eu, porém, tinha plena
consciência da regra que estava quebrando quando resolvi falar
com meus avós paternos. O fato é que, quando concordamos com o
plano do empréstimo forçado do carro, tive que dar um jeito de
arrumar dinheiro. E, como minha mãe não pôde ajudar, eu tive que ir
baixar no único outro grupo de pessoas ligadas a mim pelo DNA.
— Você fez o quê? — mamãe pergunta quando eu conto que
estou indo para Santa Clara e onde arrumei o dinheiro para pagar
os lanches da viagem.
A história dos meus pais é simples: minha mãe engravidou e
meu pai disse que não queria ter filhos, aí ela decidiu que não iria
brigar e nos criou sozinha. Mas a família do meu pai às vezes finge
que se importa conosco e aparece raramente para tentar opinar na
educação que nossa mãe nos dá.
— Desculpa, eu estava desesperado. — Tento usar a tática de
Mirela.
— Garoto, você vai ficar desesperado depois que eu te deixar
com as costas quentes — ela grita.
Eu me seguro para não soltar um risinho; imaginar minha mãe
me batendo me faz pensar que ela está prestes a deixar “as marcas
de dona Joana em mim”, mas me seguro para não deixá-la mais
estressada.
Ela está sentada em nosso sofá velho. Na TV, está passando
uma propaganda do Me Ajuda, Lucimar, que minha mãe sempre
assiste aos sábados. Eu me ajoelho à sua frente e seguro suas
mãos.
— Mãezinha, me perdoa, sério mesmo. — Forço tanto para
fazer meus olhos lacrimejarem que minha visão fica meio
embaçada. — Mas deixa pra me colocar de castigo depois. É o
Mariano Madeira! A senhora sabe que sou doido pelos livros dele.
— Você não tá merecendo nenhum acordo. — Ela faz um bico
com os lábios.
— Eu sei, sério mesmo, sei muito. Sei tanto que pareço até um
homem branco explicando as coisas. Mas eu nunca mais terei uma
oportunidade dessas… — Faço uma pausa. — Ainda mais com a
Mirela.
Ela me encara e um sorrisinho se abre em seus lábios.
— Então não era mentira que você ia se encontrar com ela?
Minha mãe ama a Mirela, principalmente por causa do que
aconteceu — e eu também já posso ter deixado escapar que tenho
uma paixonite por ela. Dona Joana é a maior shipper de Mirelipe!
— Não era… a gente só não ia fazer trabalho.
Ela se mexe no sofá, fingindo estar com raiva, mas não
consegue segurar o sorriso.
— Tudo bem, mas depois eu vou te dar um castigo que vai
durar até você se casar com a Mirela!
Dou um pulo, animado.
— Muito obrigado mesmo, dona Joana, mas não precisa
exagerar!
E saio correndo sem explicar se estou falando que ela exagerou
sobre o castigo ou sobre eu me casar com a Mirela.

Quando chego na casa da tia de Ana Cecília, encontro Mirela


esperando no portão. Ela está usando uma blusa amarela que
combina com sua pele marrom clara e o cabelo escuro. Mirela é
descendente de indígenas e, embora o pai seja branco, ela carrega
todos os traços da mãe — juro que não sou stalker, é que a cidade é
pequena demais e todo mundo conhece todo mundo; na semana
passada, furei a fila na padaria e a avó paterna dela me chamou de
“serrote furão”.
— Deu tudo certo na sua casa? — pergunto, para acabar com o
silêncio constrangedor.
— Ah, deu sim, minha mãe conhece o Alex! — ela responde. —
E na sua?
— Também, só demorou um pouco porque tive que implorar e
minha mãe meio que já sabe que meu choro é falso — brinco. —
Ela sabe que o filho é quase um ator premiado.
Mirela solta um risinho e coloca a mão na boca, o que me deixa
feliz. Fico pensando se ela ainda se lembra do que aconteceu e por
isso parece tão mais distante de mim do que de Ana Cecília, mas
torço para que isso seja só coisa da minha cabeça.
Estou prestes a inventar alguma outra piadinha quando Ana
Cecília aparece como um raio, saindo toda animada pelo portão. Ela
está com um sorriso enorme, olhando de Mirela para mim. E, pela
primeira vez, enquanto seus lábios se mexem minimamente, no
instante que seus cílios se balançam com uma brisa fresca, noto o
incontestável: Ana Cecília é linda! Fico feito um bobo admirando sua
beleza e sinto um arrepio descer pelas minhas costas, meu coração
acelera um pouquinho quando ela puxa uma das tranças para trás
das orelhas e seus olhos castanhos brilhantes me encaram.
— Queridos ex-futuros-ladrões, hora de zarpar — diz.
— Você não tinha dito que não era um roubo, mas sim um
empréstimo? — questiono, finalmente saindo do transe que ela me
causou.
— Eu só estava justificando o injustificável. Estão prontos?
— Claro! — Mirela se vira e pega o violão escorado no muro,
que eu nem tinha notado. É o mesmo violão que ela usa nos vídeos:
grande, rosa e chamativo.
— Vamos de “Million Reasons”? — pergunto.
De novo, ela solta um risinho. Fico me sentindo um bobão.
— Prefiro ir de apenas “Uma Razão”!
Essa é a música do casalzinho do sertanejo e, embora eu saiba
que ela é fã dos dois, ainda acho que a canção é um pouco
melancólica demais para Mirela.
Seguimos Ana Cecília até o portão de ferro grande por onde
Alex tira o caro.
— Entra aí, cambada! — ele grita.
Ana Cecília abre a porta e deixa Mirela entrar primeiro. Vou logo
depois, e Ana vem por último.
— Os três vão aí atrás? — Alex pergunta, em tom de
brincadeira. — Vocês acham que estão pegando carona ou indo de
Uber?
Olho de Mirela para Ana Cecília e dizemos juntos:
— De Uber!
Alex ri, se enchendo com nossa animação; me sentindo
completamente feliz, bato minhas mãos em palmas silenciosas, e
então pegamos nosso caminho em direção a Mariano Madeira.
Capítulo 8
Ana Cecília

Sinceramente, não sei quem achou que isso, em algum


momento da vida, daria certo.
Estou numa posição nada confortável, com o ombro do Felipe
sempre batendo no meu, enquanto tento segurar o celular e o livro,
e me esquivar dos tapas que a mão do violão está me dando desde
que a viagem começou.
Me falta ar.
Definitivamente. Péssima ideia.
Olho para o banco vazio na frente e decido que, na primeira
oportunidade, vou deixar Mirela e Felipe lutando com o violão no
banco de trás.
Começo a ficar apreensiva. A felicidade, assim como eu, vai
perdendo espaço para pensamentos tristes.
E se der tudo errado?
E se eu sabotar tudo?
Minhas mãos começam a suar e sinto que o livro ficará todo
molhado em segundos.
Me sinto dentro de um jogo, numa disputa.
E, nesse jogo de War, não quero que a tristeza conquiste todos
os meus territórios.
— Mirela, canta uma para as gays — peço brincando, tentando
me livrar dos pensamentos pessimistas.
E ela começa a cantar um bregafunk que nunca ouvi na vida.
A letra destoa muito das já conhecidas. Fico perdida na voz de
Mirela, se eu tivesse um espelho na minha frente, veria com certeza
meus olhos brilhando. Felipe me olha, boquiaberto, esperando que
eu entenda o que está acontecendo ali. Demoro alguns segundos
até perceber que tem várias referências aos livros do Mariano na
música.
— Que lindo — sussurro, bem baixinho, não ousaria atrapalhar
Mirela e sua composição.
É incrível a nossa capacidade de deixar passar algo que
sempre esteve ali, bem na nossa cara. Como não percebi todas as
referências da música antes, sem que Felipe precisasse chamar
minha atenção?
Minha mão esbarra com a mão livre dele. Sinto meu coração
acelerar muito.
Alex olha rápido para trás, bem no momento do toque. Meu
corpo inteiro queima.
O garoto sorri bobo e disfarça.
Quando Mirela termina de cantar, Felipe larga o celular e
começamos a aplaudi-la. Até mesmo Alex solta uns gritinhos de
aprovação.
— Qual o nome dessa música? — O garoto pergunta,
visivelmente emocionado com um bregafunk.
Mirela sorri, tímida e reflexiva.
— Ainda não decidi, tava pensando em algo como "Vamos dizer
que te amamos". O que vocês acham?
— Eu gosto! — Felipe exclama.
Mirela sorri ainda mais abertamente e, pela deusa, minha mão
começa a suar. Pisco algumas vezes e tenho certeza que meus
olhos estão brilhando, sem contar a festa no meu estômago. São
tantos os sinais que gritam em letras neon: eu estou apaixonada por
esse sorriso!
Ela gira a cabeça na minha direção.
— E você, Ana, o que achou? — Mirela realmente quer saber
minha opinião. Por alguns segundos, congelo completamente.
Estamos próximas, mas não o bastante para sentir o seu hálito.
Me pergunto, por alguns segundos, se escovei os dentes antes de
sair de casa, na esperança de que a resposta seja positiva. Será
que Felipe gosta do meu hálito? Será que Mirela gosta do dele?
Bem no meio do caos que meus pensamentos viraram, escuto
Felipe me chamando.
— Ana? — Acena com gestos rápidos e estala os dedos umas
vinte vezes. — Qual é? Está em outra dimensão?
— Quê? Oi? Ah… sim! — Tento me lembrar da pergunta. —
Parece um bregafunk do amor.
Mirela e Felipe se entreolham e soltam uma gargalhada.
— Agora eu sei por que você repetiu o ano — brinca Alex.
— Quem disse que repeti o ano? — digo, mas sinto o estômago
se contrair. Menti para eles antes e só agora percebo que essa
mentira pode estragar toda a nossa amizade. Com um nó na
garganta, tento disfarçar: — E ninguém pode me culpar por preferir
a biblioteca à sala de aula.
— Olha pelo lado bom... — pondera Felipe entre risadinhas. Ele
não percebeu minha contradição. Não consigo ver o rosto de Mirela
para saber que ela também não. — Pelo menos você nos conheceu
e nós vamos conhecer o Mariano!
— Real! — concordo. — Isso merece até uma Beyoncé, né?
— Ah, não — Mirela interrompe, antes que Alex colocasse
Party no último volume. — Todo mundo sabe que diva pop só
funciona em versão forró.
— Não tem como discordar — Felipe, como sempre, concorda
com ela, todo boiolinha.
E eu começo a entendê-lo.
A companhia dos dois está me fazendo muito bem.
Mirela não demora a pegar seu celular e imediatamente coloca
sua playlist de divas pop versão forró, pagode, axé e bregafunk. Por
alguns minutos, o clima fica tão gostoso que esqueço que estou
apertada no banco traseiro desse carro, entalada pela mentira que
contei. Nossa sintonia é tão palpável que eu poderia morar nesse
espaço que estamos construindo.
A playlist continua tocando e fico surpresa ao perceber que,
além dos gostos literários, temos os mesmos gostos musicais. Fico
ouvindo as músicas que eles escolhem, imaginando o momento em
que vou abraçar o Mariano. Traço estratégias para vencer no
joquempô e conquistar o primeiro lugar na fila, já que chegaremos
ao mesmo tempo.
Torço para que não haja nenhum atraso, nenhum imprevisto.
Depois do que parece uma eternidade, troco para o banco da
frente. No som, começa a tocar uma versão bregafunk de “Bad
Blood”, da Taylor Swift, e, quando a música está quase chegando no
refrão, um barulho estranho sai do carro.
Ah, pronto, para que diachos eu fui falar de Joquempô? Tá feliz,
Morta Vaconloscielos?
— O que aconteceu? — pergunto, apreensiva.
— Parece que o pneu furou, galera — Alex anuncia,
preocupado.
— Pela deusa! — grito, saindo do carro. — Já estou exausta,
estamos muito longe?
Os três riem, e eu não entendo.
Alex aponta para uma placa, e eu leio as palavras que aquecem
meu coração: Bem-vindos a Santa Clara.
Capítulo 9
Mirela

Eu odeio andar.
Sério! Eu poderia dançar por seis horas seguidas ou ficar de pé
por vinte horas em uma prova de resistência do BBB. Mas andar
não é para mim.
Não sei como entrei nessa furada. Mas, já que estou aqui,
vamos seguir em frente. Não estamos longe da cidade em si e logo
chegaremos a algum ponto de ônibus que nos leve até o centro.
Não sei direito como estou me sentindo na companhia de uma
mentirosa e um ingrato. E não aguento mais não colocar para fora o
que está me incomodando. Ana e, principalmente, Felipe têm que
me ouvir. O problema é que me falta a coragem de falar e correr o
risco de perder as primeiras pessoas com as quais me encaixo
desde que escolhi Mirela como nome. Isso, claro, com exceção da
minha mãe.
Ah, e sobre ela, há duas coisas que é preciso saber. Sim, sobre
a minha mãe:
1- Ela é uma das maiores futriqueiras da cidade. Sem mentira!
Dessas exageradas, mas que nunca inventam coisas. Para ter uma
ideia, segundo ela, a menina que mora no fim da cidade tem
superpoderes. E, por mais incrível que isso possa parecer, eu
acredito nela.
2- Minha mãe é a manicure da dona Graça, tia da Ana.
Ou seja, sabe tudo da vida da mulher. Não vou mentir, uso as
informações de bom grado para bolar meu plano de me aproximar
da filha dela, a maior produtora e empresária musical do Brasil (na
minha opinião). Mas, quando eu disse para dona Izabel que viajaria
com Ana, minha mãe torceu o rosto em uma expressão bem feia.
— Essa garota é estranha — declarou. — A tia dela me contou
que ela só dava dor de cabeça lá em São Paulo e por isso trouxe a
menina para cá.
— A Ana é legal, mãe! — Fiz pouco caso da observação,
porque minha mãe sempre exagera muito. — Até se ofereceu de
levar a gente, antes do Alex topar. — Obviamente escondi a parte
do roubo do carro.
E eis que minha mãe disse:
— Levar como, se ela é menor de idade?
Agora estou aqui, caminhando lado a lado com Ana no canteiro
central dessa rodovia, esperando o momento em que ela vai contar
que mentiu.
Já de Felipe, não espero nada.
Não vou confrontar nenhum dos dois. Só posso me
responsabilizar por aquilo que eu faço. As atitudes, mentiras e
silêncios deles, são responsabilidades deles.
Minha psicóloga ficaria feliz de ouvir esse meu pensamento.
Mas eu só uso minhas sessões para reclamar, chorar e falar mal
dos transfóbicos que olham torto para mim na rua.
O violão pesa, e estou completamente sem jeito de carregá-lo
nas mãos. Que ideia boa não trazer a bolsa dele…
Com uma expressão bem chateada e mal-humorada, olho para
Ana, mas ela me devolve um sorriso tão bonito que me desarma.
Que saco! Esse jeitinho animado, mas esse olhar que esconde
alguma coisa. Algo muito mais profundo que uma idade alterada. De
alguma forma, esse olhar me reflete e me completa. Acho que nós
três sabemos o que é não ter amigos. Mas Ana parece ainda mais
solitária. Parece um pontinho no meio de uma folha branca, longe
de tudo, afastada.
Esse olhar… me incomoda.
Então desvio dele, sentindo a mão que segura a caixa do violão
suar e o instrumento escorregar um pouco. Olho para Felipe. Eu me
lembro de quando nós dois tínhamos o mesmo tamanho, lá na
quarta série. Acho que nunca mais cresci. Já ele, ficou alto.
Eu odiava as amigas dele. Ele detestava as minhas. Mas nós,
secretamente, dividíamos o lanche durante as aulas de educação
física, das quais sempre fugimos. Os meninos jogavam a bola de
futebol em nós e nos chamavam de "viados", o que eu odiava, e
"namorados", o que fazia meu coração de criança acelerar.
E meu coração acelerou por Felipe por muito, muito tempo.
Até o dia em que ele o feriu.
— Aquilo lá é um ônibus? — Ana aponta para um ponto
amarelo distante na via.
— Não faço ideia! — respondo, tentando enxergar mais do que
sou capaz.
— Acho que não é — Felipe responde, desanimado. — É bem
capaz de o Alex conseguir trocar o pneu antes de a gente achar um
ônibus nessa cid…
Ele para, porque fica mais que óbvio que o pontinho amarelo é
mesmo um ônibus.
— Ai, meu deus, onde será que é o ponto? — Ele começa a
correr, com os braços balançando desengonçados nas laterais do
corpo.
— Não corre, Felipe! — Ana grita, de um jeito sério e alto. —
Para. Você é preto!
Olho para ela, assustada. O olhar de Ana é puro terror. Parece
que já viu mais coisas do que deveria ser aceito uma adolescente
ver. Acho que o menino também se assusta um pouco, pois para e
se vira para nos encarar. Eu demoro mais que ele para perceber o
que ela quer dizer.
— Eu não entendo… — solto, quase sem querer. Eu não queria
confrontar ninguém, só queria chegar em paz ao lançamento. Mas
não aguento mais ficar calada. Essa é que é a verdade. — Você
está preocupada com um garoto negro correndo em plena luz do dia
no meio da rua, mas não estava preocupada em uma menor de
idade, negra, sem carteira de motorista, dirigindo um carro
roubado… Qual a sua lógica?
— Emprestado. A gente ia pegar emprestado.
— Menor. De. Idade. — Aponto o braço do violão na direção
dela, de um jeito ameaçador, frisando o que é realmente importante.
Felipe se aproxima de nós. Não está entendendo nada.
Ana se rende.
— Eu tenho dezessete anos. Mas é quase dezoito.
— Você não tem carteira? — Felipe está em choque.
— Ai, gente, eu nunca pensei que vocês realmente se
empolgariam, ok? Depois não pensei que a gente chegaria ao ponto
de roub… pegar o carro emprestado. Eu só… — Hesita e olha para
o chão. — Só estava empolgada com... bem, vocês.
Sinto como se um alienígena me rasgasse por dentro.
— Bom, pelo menos deu certo. — Não fico tão irritada com sua
confissão quanto achei que ficaria. Sei lá, quem sou eu para julgar?
Ainda precisamos conversar sobre muita coisa. Mas foi graças às
ideias erradas de Ana que a gente chegou até aq… O ônibus!
Gesticulo forte com uma das mãos, no canteiro central mesmo. —
Moço, pelo amor de deus! — O motorista obviamente não para. Mas
passa por nós, dá uma volta e para a cerca de duzentos metros de
onde estamos. Deve ser o ponto final.
Algumas pessoas vão descendo enquanto corremos até lá.
— Moça, passa ônibus pro centro aqui? — Felipe pergunta para
uma senhora de uns setenta anos.
— Esse aqui volta pro Centro, meu filho! — Dá dois tapinhas no
braço dele e segue o caminho, meio encurvada.
— Bom, então a gente só tem que esperar! — Ana diz, ainda
sem graça com toda a situação.
— Não. — Paro onde estou para demonstrar minha firmeza no
que vou declarar: Finalmente criei coragem para deixar sair as
palavras que estavam entaladas há tempos. — O que a gente
precisa é conversar.
Capítulo 10
Felipe

— Não. O que a gente precisa é conversar — Mirela fala,


olhando de Ana Cecília para mim.

Fico perdido por alguns segundos. Por que ela precisa


conversar? Só porque Ana Cecília mentiu a idade? Isso parece
meio…

Droga! Ai, não! Droga, droga, droga!

Ela quer conversar sobre o que aconteceu, sobre o motivo de


existir um “nós” de antes e um “nós” de agora.

— Então, Ana Cecília — digo, tentando mudar o foco da


conversa —, por que você mentiu sobre sua idade?

De repente me lembro que ela tocou na minha mão. Foi só um


momentinho, coisa rápida, mas meu corpo reagiu como se fosse um
selinho: com um arrepio e o suor nervoso descendo pelo meu rosto.
Para Felipe, esse não é o momento!

Ana Cecília solta um suspiro e enfia as mãos no bolso da calça.

— Tecnicamente eu omiti. E eu só queria parecer mais legal.


Mais velha, viajada, com carteira de motorista. Se eu conseguisse
impressionar vocês, bem... achei que seria mais fácil para sermos
amigos.

Fico boquiaberto. Uma garota nova na escola inventa mentiras


para conseguir mais amigos e depois fica refém das próprias
mentiras. A Disney já fez algo assim antes, mas fico realmente
surpreso que isso também aconteça na vida real. Além disso, nunca
achei que alguém fosse sentir tanto interesse em se aproximar de
mim.

— Agora é com vocês dois! — Ana Cecília retruca, apontando


para Mirela e depois para mim. — O que aconteceu? Por que às
vezes vocês agem tão estranhos perto um do outro?

Passo a mão pelo cabelo, desviando o olhar das duas, e me


deparo com dois macacos brigando por uma manga minúscula do
outro lado da pista — tem tipo um milhão de pés de manga nessa
região do estado, esses macaquinhos só estão procurando motivo
para brigar.

— Fala, Felipe, cadê tua voz? — Mirela esbraveja, chamando


minha atenção com um tapinha no ombro.

Eu a encaro com os olhos arregalados.

— Achei que você nem se lembrava disso. — Mentira, eu sabia


que ela se lembrava, mas torcia para que não.

— O que aconteceu? — Ana Cecília pergunta, toda impaciente.


— Meus pais amados, vão ficar de mistério agora?

Bem que eu queria que a história entre mim e a Mirela fosse


escrita pelo Quico Lipe!

— Conta, Felipe — Mirela insiste. — Conta que eu te defendi


quando todos aqueles garotos te atacaram e você saiu sem
agradecer e nunca mais conversou comigo!

— O quê? — Ana fica chocada. — Que ingrato!

— Ei, não me julga que você é a mentirosa!

— Como se o que eu fiz estivesse no mesmo nível do que você


fez!
— Toda mentira ainda é uma mentira, Ana Cecília! — Mirela
encara Ana com as sobrancelhas arqueadas.

Eu me viro para ela, com as mãos levantadas.

— Muito obrigado!

— Não estou te defendendo! — Mirela levanta a mão livre como


se tentasse me afastar. — Só falei a verdade, você ainda errou feio!

De repente, estamos os três gritando. Nem sei se entendo o


que elas falam, apenas fico tentando me defender. O que
basicamente significa que fico lembrando que Ana Cecília mentiu e
nos enganou.

O barulho do ônibus dando a partida desvia nossa atenção e


nos faz parar a briga, e corremos até a porta antes que ele vá
embora sem nós. Mirela sobe primeiro, depois Ana Cecília e eu vou
por último. Tenho plena noção de que estamos com expressões
fechadas, refletindo o embate que acabamos de viver.

— Aonde vocês vão tão animados assim? — A cobradora nos


encara, toda enxerida.

— Nem sei mais! — respondo, depois de passar pela catraca.

Ficamos perto um do outro, mas ninguém conversa com


ninguém. Mirela se senta em um banco do lado direito e Ana
Cecília, no lado esquerdo, enquanto eu fico em pé no corredor,
escorado no ferro com o botão de parada.

Como essa viagem passou de uma road trip divertida para um


episódio de Barracos em Família?

Para passar o tempo, tiro o celular do bolso e entro no grupo do


Facebook dos fãs do Mariano Madeira. A primeira publicação é um
vídeo de uma garota; abaixo o volume e dou play no vídeo.
— Gente que loucura! — fala a menina no vídeo. — Eu tô em
frente à Livraria Saravá, em Santa Clara, Minas Gerais. Vai ter um
encontro com o Mariano Madeira hoje e veio muito mais gente do
que era esperado. — Ela levanta o telefone, mostrando que há uma
fila enorme atrás dela. — Os funcionários da livraria tiveram que
distribuir senha e, pelo que ouvi, só tem mais dez para serem
distribuídas. Ainda bem que cheguei cedo!

O vídeo termina, mas meu desespero começa.

— Meninas! — grito, e provavelmente Ana Cecília e Mirela


sentem o desespero em minha voz porque se viram e me encaram,
preocupadas. Explico toda a situação e, no mesmo instante, Mirela
se levanta, toda atrapalhada com seu violão.

— Nunca que eu vim até aqui pra não ver a cara desse escritor
ao vivo! — ela diz, determinada.

Ana Cecília se levanta também, colocando a mão no meu


ombro para se segurar — não foca nisso, Felipe. Não foca no
arrepio nas costas, não nesse momento!

— Vai dar tudo certo, tenho certeza!

Ficamos em pé, completamente nervosos, até que o ônibus


finalmente chega na Praça Rosa, no Centro. Descemos correndo, e
Ana Cecília arranca o violão dos braços de Mirela e o entrega para
mim.

— Mirela, você é baixinha, vai conseguir correr mais rápido —


Ana diz. — Chega na fila e guarda nosso lugar, nós chegamos em
seguida.

Ela sai correndo como se tivesse superpernas, e Ana Cecília e


eu vamos atrás, o mais rápido que conseguimos. Corro tanto que
minha visão chega a ficar turva e, com esse violão em meus braços,
parece até que estou vivendo uma vida em cor-de-rosa.
— Vamos, Felipe, já estamos chegando. — Ana Cecília tenta
me animar. — Foco no Mariano Madeira, foco no MM!

— Nem se eu pudesse beijar o Shoph e a Saphira eu


conseguiria correr mais rápido — retruco, me lembrando dos irmãos
gêmeos de Roma, o último livro do Mariano.

Viramos a esquina e tomo um susto com o monte de gente que


tem na calçada. A maioria da galera está fantasiada, com roupas
coloridas e cabelos malucos, todo mundo querendo representar seu
personagem favorito do MM.

— Cadê... a... Mirela? — pergunto, ofegante.

— Ali! — Ana Cecília grita, apontando mais à frente.

Passamos por um grupo de dez pessoas até chegar a Mirela,


que quase some no meio de toda essa gente.

— Acho que conseguimos — ela diz, animada. — Parece que


um funcionário da livraria já vai passar entregando o restante das
senhas!

Respiro, aliviado, e paro ao lado dela. Tudo parece muito bem,


até que alguém cutuca meu ombro.

— Ei, vocês dois estão furando fila! — um cara alto com uma
peruca vermelha fala, apontando de mim para Ana Cecília.

— A nossa amiga tava guardando nosso lugar — Ana Cecília


explica.

— Não existe isso de guardar lugar! — A garota de trás para ao


lado dele. — Podem ir saindo os dois!

A menina estica o braço e dá um empurrão em meu ombro.

— Ei! — Mirela dá um grito, dando um passo para ficar na


minha frente. — Por que você não briga com alguém do seu
tamanho?

Olho para o topo da cabeça de Mirela e depois para Ana


Cecília. Sério que essa menina de meio metro quer brigar com uma
garota de quase dois? Parece que Mirela nunca perde essa pompa
de X-Men mineira.

— Como é? — A menina dá um passo para a frente, peitando


Mirela.

Penso em puxá-la pelo braço, mas ela encara a menina


(olhando para cima) e declara, batendo no peito:

— Travesti não deita, não, meu amor!

— Melhor a gente sair. — Ana Cecília se intromete entre as


duas, claramente querendo evitar confusão.

— Eu vou com vocês — Mirela diz. — Melhor que ficar perto


dessa galera tóxica!

Descemos da calçada e saímos andando. Mirela se vira de


repente, apontando os dedos indicador e médio para os próprios
olhos e depois para a garota alta na fila.

— Você teve sorte! — ela diz, baixinho, antes de atravessarmos


a rua até um banco de cimento.
Capítulo 11
Ana Cecília

Fico visivelmente abalada e tento segurar o choro. Não sei o que


acontece, mas toda vez que me decepciono com algo uma dor
crescente invade meu peito, causando um calafrio horrível. Uma
vontade de levantar e ir embora. Fugir.

Sei que decepcionei Mirela e Felipe. E sinto que a vida, em


troca, me decepcionou. Lembro da frase que minha psicóloga
sempre usa: “Estar vivo é decepcionar e ser decepcionada.” A
decepção faz parte do processo da vida, mas mesmo assim sinto
que devo um pedido de desculpas.

— Ei — começo, meu estômago embrulhando de nervosismo.


Espero realmente que seja de nervosismo e não qualquer outra
coisa relacionada às sensações estranhas que esses dois causam
em mim. — Desculpa, tá? Por tudo. Pela mentira, principalmente.
Por não ser eu, de verdade, sinto tanto.

Minha voz começa baixa e contida; tento desatar os nós que


estão se formando na minha garganta para refazer os nós que
criamos nessa viagem. Mas as lágrimas invadem meu rosto e não
consigo mais falar.

— Fica tranquila. — O tom de Felipe é calmo, mais calmo que o


normal; ele nunca havia usado esse tom comigo antes. Sinto o
embrulho começar a dar um nó.

Droga, estou me apaixonando!

Mirela se aproxima e pousa a mão em meu rosto. Fico estática,


sentindo o cheiro de menta bem de perto. Umedeço meus lábios e
na mesma hora me arrependo.
Qual é, destino? Dois? De uma só vez?

— Calma, tá? — Mirela pede com carinho, então se abaixa,


pega um galho e começa a fazer círculos imperfeitos no chão. —
Todo mundo erra, estamos bem agora — diz, sem olhar para mim.

Felipe aproveita a oportunidade.

— Desculpa também, tá? — Ele olha para Mirela, claramente


envergonhado. — Por não ter agradecido, desculpa mesmo.

Ela analisa Felipe com o olhar, então larga o galho e pega na


mão do garoto, deixando um círculo incompleto no chão.

— Não vou te julgar, Felipe. — Mirela força um sorriso. — Mas


machuca fazer algo por alguém e não receber nem um "obrigado"
em retribuição. Me coloquei numa situação por você, bati em
pessoas por você. Você sabia que minha mãe me deixou de castigo,
mesmo eu estando certa em te defender? Ainda assim, você me
ignorou. Pensei que a gente fosse amigo. — Ela ainda está
chateada. — Mas é passado, né? Ficou para trás.

— Eu queria poder explicar o inexplicável, mas não consigo


Mirela! — Felipe está com a voz carregada de dor, não o conheço
muito bem, mas sinto que, a qualquer momento, ele vai cair no
choro. — Fui covarde e egoísta! Me perdoa, Mirela. Eu não queria
que você me visse daquele jeito, sendo agredido, queria ter sido
forte e enfrentado as pessoas. Eu te admirava… eu… gostava de
você. — Ele olha para baixo, constrangido, tentando esconder as
lágrimas. — Não queria ser um garoto que precisava ser defendido,
não queria ser a vítima, queria ser o herói. Depois, prometi para mim
mesmo que te procuraria para agradecer, mas nunca consegui. Não
sou herói de nada!

Mirela não responde, apenas o abraça.

Sinto inveja. Eu queria estar naquele abraço. Queria fazer parte


daquele momento. Me sinto invisível na reconciliação dos dois. Mas,
afinal, é o momento deles.

Involuntariamente, vou indo um pouco para o lado. Não tem


motivos para eu atrapalhar. Mesmo assim, me sinto decepcionada.
Com tudo. O pneu furado, a demora do ônibus, o evento lotado, a
briga na fila. Com o fato de que não veremos o Mariano.

Estou ainda mais decepcionada comigo mesma, por querer


tanto algo e não ter a capacidade de expressar em palavras meus
desejos.

— Eu quero vocês — deixo escapar, e me arrependo na mesma


hora da escolha de palavras.

Os dois saem do abraço, que para mim durou uma eternidade,


e me olham, assustados.

— Digo, eu queria entrar no evento com vocês. Quero ser


amiga de vocês dois, queria que esse fosse o começo da nossa
amizade — tento corrigir, mas Felipe diz:

— Querer tipo quando a gente quer batata com queijo? — Ele


dá um sorriso e estende os braços, me convidando para um abraço.

— Vem cá — Mirela me chama, com um olhar convidativo e os


braços se abrindo também.

Sinto que vou começar a chorar a qualquer minuto quando me


aconchego nos braços deles. Quero viver para sempre dentro desse
abraço, que me aquece, me conforta, me alegra e faz com que eu
me sinta acolhida.

A dor de perder a sessão de autógrafos com o Mariano vai se


dissipando enquanto ficamos batendo papo e fofocando ali mesmo,
até que o pessoal começa a sair da livraria e se juntar na frente do
local. Talvez ainda haja uma chance de ver o Mariano.
É como se aquele fosse um sinal do destino, dizendo que
estamos exatamente onde devemos estar.

E é quando o vejo.

Mariano sai da livraria com um monte de fãs gritando e


seguranças ao seu redor. Reconheço, entre a equipe dele, um rosto
familiar.

— Cris? — grito para a minha prima. Elevo a voz antes de dar o


próximo berro. — Ei, Cris, aqui!

Mas ela não me escuta.

O grito dos fãs invade toda a rua. Vai ser impossível chegar até
lá.

Olho para Mirela e Felipe, completamente desesperada. Mais


que por mim, quero fazer isso por eles.

— Cris! — Meu grito se mistura com o barulho da multidão


novamente. Me sinto invisível, mas não paro de gritar. Enquanto
todos gritam pelo Mariano, tento chamar a atenção da minha prima.
— Ô, mulher, olha pra cá! — Bufo, já sem esperanças.

Essa ajuda foi péssima, destino.


Capítulo 12
Mirela

Descubro duas coisas sobre Mariano em três minutos:

1 - Ele tem um bom ouvido.

2- E gosta de bregafunk acústico.

Vejo o desespero de Ana em chamar a atenção de Mariano e


das pessoas que estão com ele. Quase não acredito quando vejo
Cris aqui. Em um pensamento rápido, pego o violão e começo a
tocar a música que fiz sobre os livros dele.

A princípio, ninguém presta atenção. Mas, quando o próprio


Mariano para e olha na nossa direção, tentando entender o que está
acontecendo, eu gelo. Cris também olha para nós.

Nem acredito quando ela estreita os olhos, nos observando.


Uma luz parece se acender em seu rosto ao notar Ana, e ela vem
até nós.

Ela. Vem. Até. Nós.

Junto com o Mariano (e os seguranças).

Sério, que tipo de autor brasileiro precisa de seguranças?


Geralmente, eles estão todos no Twitter, superacessíveis (alguns
não). Esse cara é uma estrela. E fico imaginando que massa seria
se muitos outros autores que eu gosto também chegassem ao ponto
de precisarem de seguranças.

Quem sabe um dia?


Viajo tanto que erro a letra e pulo para o refrão só para
disfarçar. Nunca fiquei tão nervosa na vida. Quando termino,
tremendo e quase chorando, é Mariano quem puxa os aplausos,
encantado.

Ele vem até mim, abre um sorrisão e me agradece pela música.

— Quero ver a letra depois para pegar todas as referências! —


declara, todo animado.

Fofo!

Cris ainda está com a mesma expressão enigmática de antes:


os olhos estreitos, a testa franzida (sem uma ruga sequer). O cabelo
dela está diferente da última vez que a vi: em uma foto de revista
on-line, vestida toda de branco para uma matéria sobre os dois anos
da morte do marido. Em vez das usuais tranças longas e escuras,
ela está com o cabelo bem curtinho, os cachinhos minúsculos
descoloridos.

E, quando abre um sorriso, subo aos céus e me sento à direita


de deus pai todo poderoso. Sério, eu morro!

Então descubro quatro coisas sobre Cris em menos de cinco


minutos:

1- Ela não é a viúva triste que a mídia e a cidade pintaram por


anos.

2- O olho dela é muito bonito, castanho-claro, bem mais claro


que sua pele negra escura.

3- Ela tem uma voz forte que faz a gente sentir um misto de
respeito e admiração.

4- Ela é a responsável pela trilha sonora da adaptação do


sétimo livro do Mariano.
Justo o livro que não li, porque vi no Twitter que tinha uma frase
transfóbica (apesar de o autor ter arrumado na segunda edição e no
e-book, ter se desculpado publicamente e feito várias ações em prol
de pessoas trans, inclusive doando vários livros para a Casa Nem*).
Eu achei suficiente, porque Mariano realmente é preocupado em
retratar personagens diversos, apesar de focar tanto em gays cis.
Mas peguei ranço do livro, fazer o quê?

Enfim, a Cris.

Ela finalmente me notou.

Mariano, Cris e toda a equipe do escritor são supersimpáticos e


nos chamam para comer algo. Óbvio que foi depois de Felipe
praticamente desfalecer, babar Mariano inteiro e explicar todos os
infortúnios (o pneu furado, a corrida, a confusão na fila) que tinham
nos impedido de conhecê-lo, de uma maneira um tanto exagerada.

Não sei como senti raiva de Felipe por tanto tempo. Ele é
assim. Esse menino fofo, engraçado e bobo, que chora para morrer
ao conhecer o autor preferido. Quando o defendi dos gordofóbicos
da escola, ele me viu como a Shuri sendo genial em Wakanda. Uma
heroína. Alguém para admirar, assim como Mariano.

Ele foi meu fã, quando tudo o que eu queria era um amigo.

Mas quem vive de passado é museu, né?

É óbvio que aceitamos o convite, e eu vou o caminho inteiro


conversando com Cris sobre mim. Ela pergunta há quanto tempo
canto, e em determinado momento eu falo de Alex e ela abre um
sorriso.

— Meu primo vive dizendo pra minha mãe que eu deveria dar
mais atenção à família e aos artistas da cidade. Tem muita gente
boa, segundo ele — diz, quando já estamos longe da multidão. —
Mas eu trabalho demais!
Tenho vontade de perguntar se é verdade que ela está
trabalhando na carreira de um rapper americano e se é verdade que
os dois estão de trelelê, mas ainda não estamos nesse nível de
amizade.

Um dia, minha futura amiga Cris ainda vai me contar essa


fofoca. E, nesse mesmo dia, descobrirei se ela namora o rapper e o
cantor sertanejo, ou se largou o sertanejo pelo rapper.

Enquanto fico rodeando Cris, Ana e Felipe estão quase


sufocando MM. Os dois são tão lindinhos juntos. Sei que rola um
clima entre eles, o que me deixa meio triste, porque eu queria que
rolasse um clima comigo também.

Ignoro a sensação ruim no estômago. Nada pode estragar esse


fim de tarde.

Não acredito que Alex estragou completamente nosso fim de


tarde!

— Não vou ficar andando de noite com três adolescentes


capazes de roubar um carro! — avisou pelo telefone, minutos antes
de aparecer na sorveteria e nos buscar. Tivemos pouco tempo para
tietar nossos ídolos. Mas o bonito ficou vários minutos conversando
com Cris enquanto a gente esperava no carro.

Espero que tenha falado de mim.

Agora estamos no caminho de volta. Ele é o único empolgado


com essa zoeira cheia de guitarras e gente gritando que toca no
som do carro. E eu, a única incomodada.

Felipe e Ana estão, há meia hora, conversando sobre as


maravilhas de conhecer Mariano. E eu me sinto deslocada. Nem dei
bola para o escritor, coitado. Fiquei o tempo todo conversando com
minha futura produtora e empresária (eu tenho fé).
Mas agora ficar fora do assunto me deixa com… sono? Que
ódio! Esse barulhinho rouco da guitarra misturada com a gritaria do
cantor está me deixando grogue.

Então acabo deitando no ombro de Felipe e apago.

Quando acordo, os braços de Felipe estão ao meu redor, e ele


havia me puxado para perto. Lógico que babei na camisa dele, mas
a cena não deixa de ser fofa.

Sinto minhas mãos suarem e a garganta seca faz um nó. Olho


para ele, a pele escura cheia de espinhas e um ou outro pelinho no
pescoço e no queixo. Lindo. Ele está tão quietinho. Acho que está
dormindo, mas não arrisco passar a mão pelo seu rosto, apesar de
querer muito. Muito mesmo.

Desvio o olhar e vejo meu violão em pé, na frente dos meus


joelhos. São muitas as vantagens de ser pequena. Não me lembro
de tê-lo colocado ali. Em algum momento da viagem, alguém deve
ter tido a brilhante ideia que não tivemos na ida.

Alex desistiu do metal e agora está ouvindo baixinho o Acústico


MTV do Engenheiros do Hawaii. Aquela música, Refrão de Bolero.

Seus olhos são labirintos...

Volto a olhar para Felipe. Por que perdemos tanto tempo? Bom,
pelo menos agora nós ainda podemos ser amigos (ou mais que
isso). Ainda posso dividir meu lanche com ele no intervalo e nas
aulas de educação física. E aí a gente chama a Ana e dá para fazer
um piquenique. Ela, lanches e muito sobre nós. E aposto que
ninguém mexeria com a gente.

Seríamos incríveis!

Olho por cima do peito de Felipe e vejo que ele e Ana estão de
mãos dadas. Não sinto ciúme. Sinto que tudo está certo. No lugar.
Como o prólogo de um livro bom: apenas começando uma nova
história.
Um Papai Noel de outro planeta
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura sensível: Koda Gabriel
Para Maria.
Nós conseguimos.
Capítulo 1
Papai Noel na carroça

— Você era tão bonita!


Essas foram as últimas palavras de minha mãe quando eu saí
de casa, dois anos atrás, batendo o portão de ferro da varanda com
força.
Eu queria ter dito para ela que era mais que um corte de
cabelo, que eram mais que roupas largas de bandas do demônio.
Queria ter dito muitas coisas enquanto arrastava minha mala de
rodinhas pelos paralelepípedos da rua, fazendo um barulho alto .
Mas não disse nada.
Até hoje ela ainda não sabe direito como lidar comigo, então
prefere não lidar. Não sabe como me chamar, apesar de eu ter dito
que tudo bem continuar me tratando no feminino, então quase não
me chama. Não sabe o que me dar de presente no amigo oculto da
família, então me avisa que posso escolher qualquer coisa que ela
vai pagar depois.
O vazio que eu sinto ao perceber que minha mãe não me
conhece mais — que ela nunca me conheceu — foi até suportável
em outros natais, mas não neste. Neste, qualquer balanço, qualquer
sopro de vento, é capaz de me tirar do lugar.
Então pego meu pacote vazio (pelo menos ela fez um embrulho
bonito, preto com um laço roxo — não sei se ela sabe que essa é
minha cor preferida ou se foi coincidência) e agradeço, abrindo o
melhor sorriso que consigo. Posamos para a foto que minha
cunhada tira com seu iPhone sei lá de qual geração. Deixo minha
caixa sobre o sofá, pego o presente que comprei com a grana do
auxílio emergencial e começo a revelar minha amiga oculta. Todo
mundo ri quando minha irmã se levanta, logo na primeira
característica que revelo, movendo as tranças box-braid de um lado
para o outro.
— Você é boba demais, Betânia! — digo, entre o riso dos
outros. Só abro um sorriso tímido e confesso que, sim, tirei a melhor
irmã do mundo.
Ela se aproxima, pega a caixinha minúscula da minha mão e
me abraça devagar.
— Vai ficar tudo bem, Gal. É uma promessa.
E Betânia nunca falhou com nenhuma promessa, então acredito
nela.
E acreditando nela, não os acompanho à missa depois do
jantar. Não me ajoelho no chão em frente ao banco de madeira e
não peço a nenhuma Nossa Senhora para interceder por mim.
Acreditando em Betânia, sigo para o meu apartamento para terminar
a noite mais triste do ano sozinho.

Sei que estou chegando porque dá para ver pequenos cartazes


brancos espalhados pelo bairro. A primeira coisa que vejo ao descer
do ônibus é outro cartaz, perto da placa do ponto. O rosto dela ali,
sereno. Ela sorrindo, meio tímida, abaixo de um “Você viu essa
moça?”. Fui eu quem tirou essa foto. Também fui eu quem colou
esse cartaz e todos os outros.
Mas ninguém a viu, em lugar nenhum.
"Vai ficar tudo bem", eu me lembro da promessa de Betânia. E
quando duvido da minha irmã pela primeira vez na vida, ouço os
cascos da sola de um cavalo se aproximarem. Antes que eu me
vire, uma voz grossa e rouca diz, com uma alegria forçada:
— Ô, humano! Acho que estou um pouco perdido… Você pode
me ajudar?
Meus olhos não acreditam no que veem. Tenho certeza de que,
em algum momento entre a ceia de Natal e a revelação de amigo
oculto, eu dormi e estou sonhando com esse Papai Noel negro,
vestido com uma roupa vermelha meio… rosa demais, em cima de
uma carroça puxada por um cavalo marrom.
— Você me ouviu, humano?
Começo a rir. Rio como há muito tempo não conseguia.
— Desculpa. — Tento controlar minha risada. — O senhor disse
que está perdido?
— Isso. — Faz um gesto brusco com a cabeça, que balança
toda a estrutura velha da carroça.
— E pra onde o senhor está indo? — Meus olhos lacrimejam.
— Esse que é o problema… — Ele desce depressa e para na
minha frente, colocando as mãos na frente da barriga. — Eu. Não.
Sei — revela pausadamente, com o mesmo sorriso que traz no rosto
desde que o olhei pela primeira vez. Não parece natural, mas
também não é estranho. É só… diferente.
Fico esperando que diga alguma coisa além disso. Nada.
— Bom, moço, não tem nenhuma festinha rolando por aqui.
Nem evento. Nem nada. — Tento estudar a expressão vazia que ele
traz no rosto. — Então eu realmente não sei pra onde o senhor pode
estar indo.
O Papai Noel da carroça parece não ter ouvido nada do que
falei, porque pega um aparelho do bolso lateral da roupa magenta,
logo abaixo do cinto azul, e o ergue na altura do meu peito. Parece
um smartphone, desses ultrafinos. Deve ser mais caro que minha
mão de obra anual (que anda bem desvalorizada). O dispositivo
acende uma tela verde-limão, meio neon.
— Hum! — Ele estuda a tela do aparelho e depois olha para
mim. — Energia residual.
— Quê? — pergunto, meio confuso. Mas o homem só passa
por mim e começa a se afastar, me deixando para trás, junto com a
carroça e o cavalo. — Moço? — chamo, sem intenção nenhuma de
segui-lo. O problema é que ele está indo na mesma direção que eu
deveria tomar.
Começo a andar devagar, apreensivo, como se cada passo
fosse uma chance de pisar em uma mina e explodir pelos ares. Sem
querer, continuo seguindo o homem até a portaria de um prédio de
nove andares, que eu conheço com a palma da mão. É o meu
prédio.
Não meu, meu, pois não sou um burguês detentor de bens e
meios de produção. Mas onde eu moro (de aluguel).
— Preciso entrar aí. — Ele se vira para mim e depois aponta
para o prédio.
— Sem chance, meu amigo! — Cruzo os braços.
— Humano… — O Papai Noel se aproxima, lentamente, tirando
um papel amassado e dobrado do bolso. Ele o desdobra e ergue na
minha direção. — Eu tenho respostas.
Puxo o papel da mão dele, prometendo a mim mesmo que
passarei álcool em gel depois, e olho para a folha em branco, com a
foto de uma menina branca, loira e que costumava me chamar de "a
pessoa que eu amo", antes de desaparecer do nada, sem deixar
rastro algum.
— Ela deixou rastro. — O Papai Noel me encara com os olhos
semicerrados, como se tivesse lido minha mente. Então me mostra
o aparelho de tela verde. — Mas só eu posso farejar.
Capítulo 2
Nada faz sentido

Minha mãe sempre disse que eu era uma criança diferente.


Aberta demais para o mundo. Ela morria de medo que eu confiasse
nas pessoas erradas, que aceitasse balas de um sujeito
desconhecido e fosse sequestrado. Era tanta preocupação, que me
tornei um adolescente medroso.
Na perfeita união entre as duas coisas, estou aqui, no corredor
do meu andar, parado em frente à porta do elevador, tremendo feito
vara verde enquanto observo o Papai Noel perscrutar o espaço. O
aparelho em suas mãos faz bipes incômodos. Ele não parece
intencionado em me sequestrar, mas de repente me ocorre que
esse Papai Noel pode ter algo a ver com o sumiço de Alice e, se for
esse o caso, agora estou me entregando facinho.
A caixa vazia que minha mãe me deu ainda está em minhas
mãos. Nem sei direito por que trouxe isso para casa se não há nada
dentro.
— É que você espera que tenha algo dentro. — O Papai Noel
para o que está fazendo, se vira e olha no fundo dos meus olhos. —
Você sempre espera.
Dou um passo para trás, assustado. O que ele diz faz vir à tona
algo que não me permito dizer nem para mim mesmo: sinto falta da
minha mãe. Das mãos dela no meu cabelo, brincando com os fios
longos, enquanto fofocávamos sobre a vida dos parentes. Ainda sou
eu. Por que ela não pode fazer carinho no meu cabelo curto?
Meu nariz coça, minha garganta fecha, meus olhos ardem. Não
posso quebrar agora.
— Olha, moço. — Dou o meu melhor para não ser rude e
coloco a caixa de presente embaixo do braço direito. — Acho
melhor o senhor ir embora. Não sei que brincadeira é essa, mas não
estou gostando.
— Não é brincadeira. — Ele coloca o aparelho na minha mão
livre. — Tem muita energia residual aqui. Sua namorada não foi
sequestrada, ela foi — ele faz uma pausa, parecendo escolher bem
a palavra — transportada.
Tenho que me controlar para não dar um soco na cara desse
sujeito. Não é possível que alguém brinque assim com o desespero
dos outros.
Ouvimos um barulho de risadas altas. Algum dos meus vizinhos
está dando uma festa de Natal. Sinto meu estômago embrulhar de
raiva. Como podem comemorar depois de tudo o que aconteceu
esse ano? Depois do desaparecimento de Alice bem aqui neste
corredor? Será que ninguém além de mim se importa?
— Não estou mentindo. Veja. — O Papai Noel toca a tela do
dispositivo na minha mão e, de repente, a projeção de várias linhas
azuladas aparece. Nela, é possível ver pequenos pontinhos verdes
e alguns círculos maiores. Um deles bem maior que os outros. —
Nós estamos aqui. — Aponta para um círculo de tamanho médio.
Ainda estou chocado com a qualidade da projeção. Sinto o aparelho
vibrar. — O que você entende de física? — O olhar dele me estuda
por trás das linhas e círculos neon.
— Nada.
Ele pega o aparelho, se afasta um pouco e coça a barba.
— Nosso universo tem várias camadas. A mente humana
enxerga o tempo de uma forma linear; e o espaço, tridimensional.
Mas não é assim.
Franzo o cenho a ponto de doer entre minhas sobrancelhas.
Por que estou perdendo meu tempo com esse cara?
— Amigo, eu realmente tenho mais o que fazer. — Viro as
costas, mas ele não desiste. Continua falando e me seguindo
enquanto vou na direção da minha porta. Eu deveria mandá-lo
embora do prédio. Não faço isso.
— Tudo já aconteceu. Tudo está acontecendo. Tudo vai
acontecer. De jeitos diferentes, em muitos lugares.
O aparelho dele solta um apito alto. Parece um aviso.
Eu me viro para encará-lo pela última vez.
— Acho melhor o senhor ir embora com seu smartphone caro.
— Olho dele para o dispositivo.
Ele segue meu olhar.
— Ah, isso? — Ergue-o com um pouco de desdém. — É só o
meu rastreador de distorções espaço-temporais.
Mais um bipe alto.
Ignoro-o e me atrapalho tirando a chave do bolso. A caixa
embaixo do braço faz com que todos os meus movimentos fiquem
desengonçados. Quando coloco a chave na fechadura, o Papai Noel
diz:
— Eu sei o que aconteceu com a sua namorada. Bem, sei mais
ou menos. E acho que podemos trazê-la de volta. Mas preciso de
ajuda. — Outro bipe. — Não tenho muito tempo.
Paro o que estou fazendo e solto uma risada cínica.
— Agora você vai dizer que tem apenas essa noite, caso
contrário ela vai desaparecer. — Já vi essa história em muitos filmes
natalinos.
— Exato — responde, com a maior simplicidade do mundo.
Puxo o ar com força e olho para ele, impaciente.
— Olha, moço. — Outro bipe ecoa no ar, tão alto que faz meu
ouvido zunir. — Desliga isso, em nome de Deus!
— Não posso. É meu aviso de anomalia. — Observa o aparelho
e sua expressão se esvazia um pouco. — Não vai dar tempo, você
vem comigo! — Ele agarra a minha mão, o que me faz derrubar a
caixa no chão.
— O quê?
Antes que eu possa entender o que está acontecendo, tudo fica
extremamente lilás ao meu redor e um vento gelado e seco sopra na
minha nuca.
Então eu apago.
Capítulo 3
A viúva

Todas as luzes de dentro da casa estavam apagadas. Ela estava


sozinha.
Lá fora, uma cigarra não dava trégua com seu canto agudo e
atormentador. A moça tentou se concentrar no barulhinho chato de
insetos voando e batendo na única luz acesa do lado de fora, no
primeiro poste dos cinco que iluminavam a descida até o portão de
entrada.
Mas a verdade era que ela mal conseguia ouvir qualquer
barulho além do canto da cigarra, que já lhe dava dor de cabeça. Os
insetos eram algo no que se apegar. E em noites como aquela, a
viúva sabia bem que precisava se agarrar em algo para não afundar.
Sentiu o chão ficar ainda mais frio sob seus pés descalços
enquanto caminhava lentamente pelo corredor de volta ao quarto.
Estava cansada de ficar na sala, sentada no chão com o corpo
encolhido, o queixo apoiado nos joelhos. Tentou se enrolar ainda
mais no edredom grosso que trazia em volta dos ombros, lhe
cobrindo quase que por completo. Mas o frio tinha ficado mais forte.
E parecia piorar a cada passo. Era como se, de repente, alguém
tivesse aberto uma janela para deixar a brisa da noite entrar.
Pensou ter ouvido alguém chamar seu nome baixinho, quando
o silêncio caiu sobre a casa. A cigarra havia desistido de atrair uma
parceira. De repente, sentindo a respiração ficar mais difícil com o
nariz gelado, sentiu pena da cigarra solitária.
Eram iguais.
Ela também se sentia só. Não insuportavelmente só, como
havia estado dois anos antes. Mas só. Como um sussurro parado do
ar, em volta de sua respiração, espreitando.
Tateou na escuridão em busca da parede para se guiar até o
quarto. Estava perdendo a consciência. Os olhos se fechavam,
pesados, exaustos da insônia.
Parou quando ouviu alguém chamar seu nome de novo. Não
era um chamado baixo, sussurrado perto da orelha, mas uma
provocação entre risadas. A voz rouca fez a moça parada no
corredor escuro sentir um nó se formar na garganta.
Era sonho.
Com certeza havia dormido no sofá mesmo e agora estava em
um estado entre a realidade e aquelas ilusões que haviam sido
enterradas junto com seu desejo mais profundo: ver Henrique mais
uma vez.
Estremeceu.
— Cris, vem cá! — A voz rouca sorria. — O Pedro tá futricando
os presentes!
Ninguém respondeu.
A viúva cambaleou até a porta do quarto. Os olhos arderam
quando, de repente, tudo no cômodo ficou iluminado.
Havia uma moça abrindo uma mala de rodinhas azul em cima
da cama king size e tirando dois presentes de dentro dela. Um
pacote quadrado e grande, e uma caixinha bem pequena. De joia.
Longos dedos, calejados nas pontas, mexiam no laço rosa da
caixa maior. As palmas das mãos mais claras que o dorso, de um
marrom-escuro. Não precisou chegar perto para reconhecer aquelas
mãos. Nem aqueles olhos castanho-amadeirados, mais claros que a
pele. Só o cabelo estava diferente, com longas tranças nagô bem
finas. Ela jamais teria tempo para trançar o cabelo daquele jeito.
Mas a moça com um sorriso enorme no rosto, parada do outro lado
da cama, parecia ter.
Como era possível?
Eram a mesma pessoa?
— Cris… — tentou chamar a outra, na expectativa de que algo
acontecesse. Nada aconteceu. A moça abraçou a caixa maior com o
braço esquerdo e segurou firme a caixinha com a mão direita,
seguindo na direção da porta. Passou bem perto da observadora,
sem sequer notar sua presença ali.
A viúva ficou chocada com a cena, observando os cômodos se
iluminarem conforme a moça dos presentes caminhava, até o lugar
de onde vinham as risadas. Eram dois homens, vozes que
reconhecia com facilidade.
A voz rouca de Henrique ecoava pelos cômodos, num riso fácil.
Pedro, com seu timbre mais fino e contido, soltava resmungos.
Então a viúva ouviu a própria voz, feliz, acompanhar o marido nas
risadas.
— Vai, palhaço! Bisbilhota mesmo as caixas vazias!
Mais risos.
— O Pedro é muito burro!
Desejou profundamente acordar, pois sabia que, quanto mais
ficasse naquele sonho, pior seria quando abrisse os olhos. Pior seria
aquela sensação de vazio, de "podia ser verdade".
No entanto, parte dela sentiu algo novo, uma felicidade
genuína. Algo quente envolveu-lhe o peito, apesar de todo o frio que
fazia.
A viúva se aproximou da sala. Luzes de Natal estavam em volta
de uma dezena de flores espalhadas pela casa.
— Quem encheu minha casa de flor, meu deus? — perguntou
para si mesma, mas no fundo já sabia a resposta.
Continuou andando pelo corredor até ver os três sentados no
chão da sala, iluminada apenas pelas luzinhas e pela TV ligada com
o CD natalino da Kelly Clarkson na tela.
Ironicamente, tocava "Blue Christmas", mas os três não
estavam prestando atenção. Eles não a viram parada ali. Não
podiam vê-la.
Por um tempo, a viúva não conseguiu olhar para mais nada que
não fosse Henrique, abrindo sua caixa com uma coleção de DVDs
de Grey's Anatomy. Ela não conseguiu se impedir de sorrir, muito
menos de derramar as lágrimas que começavam a queimar os
olhos. Sempre quis dar aquele presente para Henrique. Nunca deu.
A atenção dela foi desviada para Pedro quando ele gritou
empolgado, com três saquinhos transparentes do que pareciam
sementes que havia tirado de seu pacote.
— Isso é um sim? — Ele olhou para a Cris de tranças com um
olhar esperançoso e brilhante. Ela fez que sim com a cabeça. — O
jardim lá da frente vai ficar lindo!
Jardim da frente? Do morro em frente à casa, ele quer dizer?
A viúva nunca nem tinha cogitado a possibilidade de
transformar a descida do morro em frente à sua casa em um jardim.
Mas era lógico que Pedro pensaria naquilo.
O olhar dela se voltou para Henrique de novo. Ele não estava
mais tão magro e parecia feliz. Todos eles pareciam felizes. Então,
sem perceber, tinha ficado feliz também.
Ela se sentou no sofá e ficou observando os três, sorrindo junto
com eles, até "Silent Night" começar a tocar.
O latido alto de Mila fez a mulher dar um salto. Os três sentados
no chão à sua frente não pareceram se abalar. A grande vira-lata
marrom pulou em cima do sofá e se deitou no colo na dona.
O ar ao seu redor começava a esquentar, e ela sentiu um
aperto no coração ao constatar que estava acordando, voltando
para sua realidade. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se aliviada.
Apesar de tudo, gostava de sua vida, do que havia conquistado.
Gostava de sua amizade com Pedro restaurada, de se sentar com
ele no pomar da fazenda e compor músicas em seu mais recém
aprendido francês. Mila deitada perto dos pés, lambendo as patas. E
o cheiro de café moído ao longe.
Apesar da saudade, daquele vazio que nunca ia embora, ela
era feliz.
Não podia ficar presa a fantasmas para sempre.
— Tecnicamente, eles não são fantasmas… — uma voz grossa
disse.
Ela se virou para o lado, em um sobressalto. Um Papai Noel
estava sentado no sofá, coçando a barriga. De onde ele havia
surgido? Cris relaxou ao se lembrar que sonhos eram mesmo
assim.
— Também não é um sonho! Mas eu já explico… Antes, você
poderia me dar um café? — ele pediu e apontou para uma pessoa,
que não devia ter mais de vinte anos, desmaiada em seu ombro. —
Meu amigo aqui vai precisar de uma caneca bem grande quando
acordar.
Capítulo 4
Tudo está conectado

— Desmaiar é normal na primeira viagem — Papai Noel diz, de


um jeito calmo, assim que recobro a consciência. Sua voz soa
distante.
Sinto um cheiro forte de café e meu corpo reage, salivando.
Não gosto de café, mas sinto que preciso de uma garrafa.
Ainda tonto, me levanto devagar, tentando observar o ambiente
ao meu redor. Minha visão está embaçada, então tudo o que vejo é
uma sala grande, sem luzes de Natal, sem muita coisa além dos
móveis pretos e brancos. Há uma televisão grande, ligada no show
de um cantor sertanejo. Eu sei que é, porque dá para ouvir o som
familiar da música, apesar de eu não conseguir me lembrar que
música é. Sei que conheço essa canção, sei que já a ouvi muitas
vezes. Mas minha mente não se lembra. Ela simplesmente não
lembra.
Não faço ideia de onde estou.
Não faço ideia do que aconteceu e acho que estou começando
a ficar muito desesperado, porque sinto meu corpo inteiro formigar.
Tenho vontade de sair daqui, de correr para casa. Mas não sei onde
fica minha casa.
Será que foi isso o que aconteceu com Alice? Será que um
sujeito estranho, vestido de Papai Noel, a fez desmaiar e a levou
para sabe-se lá onde?
Minha Nossa Senhora, o que estou fazendo aqui? Como
cheguei aqui?
Sinto meu corpo tontear. Minha mente parece que está ligada a
mil estações de rádio. Um zumbido constante me desnorteia.
Preciso respirar fundo. Estou em pânico.
É lógico que estou em pânico. O Papai Noel me sequestrou!
— Eu não te sequestrei. — Não o vejo se aproximar de mim.
Acho que perdi minha capacidade de processar direito as
informações ao meu redor. — Eu só te trouxe comigo.
— Contra a minha vontade — digo de um jeito fraco. Preciso
puxar o ar para dentro dos pulmões, mas acho que não consigo.
Ele se aproxima de mim e coloca uma das mãos sobre o meu
peito. A outra, coloca nas minhas costas.
— Respira, Gal!
— Onde a gente tá? — Consigo voltar a focar um pouco, depois
de um tempo.
— Em outra dimensão.
— O quê? — Volto a perder o ar. Minha cabeça vai explodir.
— Fica tranquilo, essa é uma reação normal para humanos.
Você perdeu seu senso de direção. Em breve, vai conseguir
entender o mundo ao seu redor. — Ele pressiona minhas costas
ainda mais. — Respira.
— Onde a gente tá? — pergunto de novo.
— Na casa dessa moça. — Ele tira a mão que está sobre o
meu peito e aponta para a frente. Por um momento, tudo o que vejo
é o balcão vazio e sem cor de uma cozinha americana. Mas,
conforme foco minha visão, sou capaz de ver a pessoa olhando na
nossa direção, ainda que ainda não consiga registrar a aparência
dela.
— Não entendo...
— Como eu disse, você ainda está desorientado.
— Eu não estou desorientado — protesto, antes de desmaiar
de novo.

Quando acordo pela segunda vez, o ambiente ao meu redor


parece mais palpável, mais familiar. Ainda está tocando uma música
sertaneja na TV, mas, agora, sei qual é.
Ouço as vozes de duas pessoas conversando, mas não ouso
abrir os olhos para ver quem são. Reconheço a voz grossa do Papai
Noel:
— O que você teve foi um vislumbre de outra dimensão. Uma
das muitas possibilidades de vida que você poderia ter, de escolhas
e consequências diferentes.
— Então não são fantasmas? — A moça parece bem-
humorada. — Não sei o que é pior...
A risada alta do Papai Noel me assusta um pouco.
— Definitivamente os fantasmas — ele responde com o mesmo
bom-humor. — Mas fica tranquila, dificilmente vai acontecer de
novo. Essa distorção tempo-espacial foi causada por mim e meu
amigo ali.
— Distorção tempo-espacial — ela repete as palavras. — Isso
parece coisa de Doctor Who.
Acho que Noel não entende a referência, porque fica calado por
um tempo.
— Então vocês não pertencem a essa dimensão, assim como
as pessoas que eu vi hoje mais cedo? — Ela volta a falar.
— Não. É provável que a gente tenha vindo dessa dimensão
que você viu.
— Uma dimensão onde meu marido está vivo. — Não é uma
pergunta, mas o Papai Noel responde:
— Creio que sim. Uma das muitas, talvez.
— Hm... — O resmungo é seguido pelo barulho de talheres
sendo colocados em uma pia de aço. — Então aquela Cris tem mais
sorte que eu.
Meu peito afunda. Essa conversa me deixa triste, nem sei
direito o motivo. Acho que é por causa de Alice. Não sei o que faria
em um mundo onde ela não existisse. Foi quase impossível viver
nessas últimas semanas. Eu me agarrei à possibilidade de
encontrá-la. Me agarrei ao que restava dela. Às roupas no meu
armário. À escova de dente ao lado da minha dentro do copo sobre
a pia. À caneca daquela série horrorosa sobre seis amigos brancos
que ela ama e que, agora, está junto com a minha de Um Maluco
No Pedaço.
Tudo o que eu queria era ver, pela milésima vez, aquele
episódio bobo onde o Ross se veste como um tatu de Natal, o que
fazia Alice rir, ainda que ela tivesse decorado as falas.
Essas três semanas já foram doloridas demais com seu sumiço.
Meu estômago embrulha só de pensar na possibilidade de perdê-la
para sempre.
Eu me levanto. Ficar aqui deitado está me deixando mal.
Preciso estar em movimento, sempre, senão minha tristeza me
engole. Tenho que focar em encontrar Alice. Nem que seja a última
coisa que eu faça.
— Noel… — chamo baixinho, e ele se vira para olhar para mim.
Estou meio fraco e minha cabeça ainda está girando um pouco. Mas
nada que se compare ao estado em que eu estava antes. —
Caralho, como é o seu nome? — Não aguento mais chamá-lo
mentalmente de Papai Noel. É ridículo.
— Você seria incapaz de entender o meu nome, imagina de
pronunciar… — Ele diz em um tom de superioridade que me irrita.
— Mas pode me chamar de Noel. — Faz uma cara feia. — Não.
Noa. Me chama de Noa — ele divaga. — Na minha língua, o que
soa o mais próximo de Noa significa “parem de perguntar sobre o
conto de novembro”. Não faz sentido, mas nem tudo precisa fazer
sentido, né? — Abre um sorriso.
Não entendo nada do que ele diz. Talvez seja porque ainda
estou tonto ou porque, sei lá… Na minha língua? Que língua?
Eu me viro para observar o lugar e finalmente consigo ver
direito a moça. Ela é negra e tem os cabelos supercurtos,
descoloridos em um loiro quase branco. O contraste é tão bonito
que penso em descolorir meu próprio cabelo. Se bem que meu tom
de pele negro claro talvez não combine tanto quanto o dela.
— Eu acho que combina — Noa fala, vindo na minha direção
para me ajudar.
— Ok, já entendi que você lê mentes. — Estou sem paciência
para esse joguinho, mas deixo que ele me apoie e me leve para
perto do balcão, onde me sento sobre um banco alto.
A moça olha para mim. Sinto que o olhar dela me avalia.
Se estamos mesmo em uma dimensão paralela, onde está a
versão dela no meu mundo? Onde a minha versão estaria nesse
mundo? Será que existo aqui?
— Humanos... — Noa ironiza. Mas eu o ignoro. Ainda não
decidi se acredito nesse circo para onde fui arrastado.
Só não começo a discutir e a questionar as quinhentas dúvidas
que tenho, porque a moça sorri para mim e diz, de um jeito bem-
humorado:
— Fiz um café para você, Gal! Que bom que acordou. — E seu
sorriso se alarga. Noa deve ter dito meu nome para ela. Deve ter
explicado como aparecemos do nada, no meio da noite, em sua
sala.
— Oi, moça… — Tenho certeza que estou olhando para ela
com cara de bobo.
— Eu sou a Cris. — Ela me entrega uma caneca com o trecho
de uma música da Lizzo. Fico encarando a letra por um instante. —
Ganhei do meu ex, ele achou que eu fosse gostar.
— E você gostou? — pergunto, com um sorriso, ainda
encantado pela caneca. Bebo meu café de uma vez, queimando um
pouco a língua.
— Eu amei!
Ela pega outra caneca, com uma bandeira bi estampada. Abro
um meio sorriso, mas logo a realidade me atinge mais uma vez. Eu
sei que Alice planejava me dar uma caneca com as cores da
bandeira não-binária. Sinto um pouco de raiva de mim mesmo por
não ter comprado nada para ela. Uma caneca com a bandeira pan,
então as nossas combinariam. Qualquer coisa. Pisco algumas
vezes, tentando evitar que as lágrimas caiam pelo meu rosto.
— E você, moço, quer café?
— Ah, não bebo essas coisas humanas! — Coloca as mãos
sobre o cinto. — E a âncora já está começando a nos puxar de
volta!
— Eu vou mesmo achar que isso tudo foi um sonho? — Cris
escora os cotovelos sobre o balcão da cozinha americana, e eu
pouso minha caneca ao lado dela.
— A mente humana não conseguiria interpretar de outra
maneira.
Ela dá de ombros e se levanta, olhando para o celular que
começa a vibrar sobre o balcão.
— Que pena! — diz, sem tirar os olhos da tela. — Desculpa,
preciso atender. — Sorri para nós e deixa a caneca ali, vazia. Rosa,
roxo e azul parecem saltar à minha frente. As cores da primeira
bandeira que levantei. Eu deveria ter uma bandeira pendurada em
algum lugar da minha casa. Mas não tenho nada, além de uma
eterna sensação de não pertencimento.
Minha visão volta a embaçar, virando tudo uma cor só. Não
estou entendendo mais nada.
Noa coloca uma mão sobre o meu ombro.
— Vou te explicar tudo com calma.
— Não vejo problema nenhum em passar o Natal sozinha,
Pedro. — Ouço Cris dizer quando se afasta. Olho para ela, depois
para Noa, me sentindo completamente perdido e confuso. — Não,
pra quê? Não… Tá, que seja!
Ela desliga e volta para onde estava antes, apoiando as mãos
no balcão e nos encarando como se tivesse um milhão de perguntas
para fazer e não soubesse por onde começar. Me sinto da mesma
maneira.
Em um gesto gentil, Noa coloca as mãos sobre as dela.
— Não fica sozinha aqui hoje. Mesmo que você esqueça o que
viu, essas coisas são muito difíceis de processar.
Cris responde apenas com um sorriso. Noa ajeita a roupa e me
encara. Um bipe chato e alto me desnorteia ainda mais. Eu odeio
esse aparelho.
— Bom, jovem, agora a gente precisa ir.
Então ele segura a minha mão e, de repente, tudo volta a ficar
instável.

Dessa vez, vejo as luzes arroxeadas me envolverem e me


levarem para outro lugar. É estranho. Meu corpo parece se desfazer
e se refazer; é como se eu oscilasse. A sensação é quase familiar.
Não desmaio, mas meu estômago vira um nó.
Então começo a chorar. Descontroladamente. Dou uma crise de
choro.
A dor que me rasga por dentro me deixa sem ar, e tento me
escorar na primeira superfície que minhas mãos encontram. O braço
de Noa.
Fico um bom tempo abraçado a ele, tentando me acalmar.
Quando finalmente paro, antes que a situação fique constrangedora,
Noa diz:
— Vocês, humanos, são a espécie mais emocional que já
conheci. Tudo para vocês é profundo e complicado.
— Vocês? — Limpo as bochechas molhadas com o dorso da
mão.
— Eu não sou humano, Gal! — Ele se afasta de mim,
estreitando os olhos ao sair da sombra onde nos materializamos e ir
para o sol. Noa ainda está com uma aura arroxeada em torno de si,
bem fraca, e fico na dúvida se aquilo sempre esteve ali e eu ignorei.
Só então percebo que está de dia.
É tanta informação que parece que minha mente vai explodir.
Como assim não é humano?
Como assim está esse sol e esse calor infernal se eram onze
da noite há poucos segundos?
Quando dou por mim, Noa já se afastou. Corro atrás dele, até
chegar perto de uma área aberta, com várias mesas e cadeiras de
plástico, cheias de pessoas.
E Noa vestido de Papai Noel.
Todo mundo. Absolutamente todo mundo para e olha para ele.
Continuo seguindo-o até chegarmos à beira de uma piscina,
onde duas garotas estão sentadas, com os pés na água.
Ele inclina o corpo para se aproximar delas, mas o seguro pelo
braço e o puxo para um canto, longe dos olhares de estranhamento
das pessoas.
— Antes de qualquer coisa, você vai me explicar tudo.
— O problema é que também estou tentando entender...
— O quê? — Me imagino como o próprio meme da Gretchen
chocada.
— Não entendo por que a âncora nos trouxe pra cá.
Que âncora, meu deus? Sinto um nó se formar na minha
garganta, acho que vou chorar de novo.
Noa fica me olhando. Às vezes, parece que ele esquece que
não consigo entrar em sua cabeça. Não consigo lidar direito nem
com a minha própria mente, quem dirá com a dos outros.
— Eu não sou humano, sou de um planeta chamado… Bem,
não sei como pronunciar na sua língua. Mas o nome não importa. O
importante é que meu planeta não existe mais. — Ele olha para as
próprias mãos. — Nós o destruímos sem querer. — Noa olha,
inquieto, para as moças à beira da piscina. — Meu povo há muito,
muito tempo, descobriu uma maneira de viajar entre dimensões. E
essas viagens nos custaram o planeta inteiro. Não podemos permitir
que isso aconteça em outros lugares.
Ele arregaça as mangas, parece incomodado.
Tenho muitas perguntas entaladas na garganta, mas nem sei
por onde começar. Volto então à minha grande preocupação, o
motivo de eu ter aceitado conversar com esse sujeito em primeiro
lugar.
— E o que o desaparecimento da minha namorada tem a ver
com isso? — Coloco as mãos ao redor da cintura, igualzinho minha
mãe faz quando vê que estamos mentindo para ela.
— Tudo. Ela está no centro de tudo — fala para mim, mas está
olhando para as moças. — Eu não entendo… — Ele divaga. — A
âncora deveria ter nos puxado de volta para o tempo e a dimensão
de onde partimos, mas nos trouxe para cá. Fevereiro de 2021.
Estico o pescoço para olhar o clube cheio de gente.
— A vacina funcionou? — pergunto para ninguém. E não sou
respondido por ninguém.
Meus receios sobre a pandemia de coronavírus não parecem
ter importância para Noa. Ou ele não faz ideia do que estou falando.
Concentrado nas garotas, ele se senta ao lado delas.
E a roupa pesada e magenta que Noa veste me incomoda
ainda mais, perto do biquíni que elas usam. Sinto calor por ele. A
moça do meio, gorda e negra de pele marrom-clara, balança os
longos cabelos cacheados quando Noa pergunta se pode conversar
com elas. A outra menina, branca e magra, coça os pelinhos
semicortados da nuca. Nenhuma delas parece muito à vontade.
— Desculpa incomodar, senhoritas, mas acabei ouvindo vocês
falarem sobre uma república. Eu sou o Noa e esse é meu filho, Gal.
— Filho? Ele se vira para mim. — Vem cá, Gal.
Vou na onda porque não tenho muita opção. A moça que está
ao lado dele me encara, estreitando os olhos. Depois abre um
sorriso pequeno.
— Ele está em busca de uma casa para morar — Noa continua.
— Vai começar a estudar esse ano na faculdade. — Que história é
essa? — E está sendo muito difícil encontrar uma casa ou
apartamento.
— A gente sabe como é! — a do cabelo curto resmunga, se
virando para me estudar. — Está sendo difícil pra gente achar um
lugar também.
O sol começa a me incomodar.
— No… pai — chamo, indo na onda. — Tá muito quente pro
senhor ficar no sol com essa roupa. — Coloco a mão sobre o ombro
dele e olho na direção das meninas. — Ele veio direto do trabalho —
explico, mentindo.
A expressão delas brilha em entendimento. Mesmo que as
moças não saibam exatamente a que tipo de trabalho estou me
referindo.
— Realmente, esse sol… — ele concorda, se levantando, mas
tenho a impressão de que não se incomoda de verdade com o calor.
— Enfim, se vocês tiverem alguma dica de lugar, que seja inclusivo
a pessoas LGBTQIA+... — Ele toca no meu braço e eu finjo um
sorriso.
— A gente viu uma casa ontem, né, Bia? — A moça do cabelo
cacheado dá um tapinha no braço da outra. — Parece ser um bom
lugar. Os meninos estavam procurando mais gente e tals.
— E onde é essa casa? — Até eu estou interessado.
— É só procurar "casa mal-assombrada de Santa Clara" no
Google. — Bia solta uma risadinha e nos olha. — É sério! São
histórias sinistras.
— Mas o aluguel é barato. — A outra se levanta e alterna o
olhar entre mim e Noa. — E os meninos são um casal superfofinho.
Se passar lá, diz que foi a Vanessa que indicou. Vai que eu consigo
um desconto no aluguel, né? Economizar nunca é demais!
Noa agarra minha mão com força. Ouço o bipe do aparelho,
abafado pela roupa dele.
— Obrigado, meninas, temos que ir agora, mas com certeza
visitaremos essa casa mal-assombrada.
Mal tenho tempo de agradecer direito, porque Noa me puxa
com urgência.
O ambiente começa a se distorcer ao meu redor.
Sei o que está acontecendo.
Capítulo 5
Alzira

Quando o mundo para de girar à minha volta, ainda estou me


sentindo como massa de bolo em uma batedeira. O ambiente está
claro e, por um segundo, não sei dizer se é dia ou noite. Até que
meus olhos encontram uma janela semiaberta. Noite.
Estamos em um quarto de hospital. Há uma pessoa deitada,
dormindo, na única maca do cômodo. E eu sei, sem nem precisar
olhar para Noa, que viemos parar no lugar errado de novo.
— Eu não entendo…
Estou começando a achar que essa é a única coisa que ele
sabe dizer.
Noa checa duas vezes o dispositivo que traz em mãos.
Ele aponta o aparelho na direção da pessoa que está deitada,
depois para mim e depois para si mesmo.
— Época errada. Dimensão certa.
Sinto o sangue congelar. Se eu passar mal, pelo menos estou
em um hospital. De que época? Como vou saber?
Um pouco letárgico, pela notícia ou pelo mal-estar das
constantes viagens, me aproximo da maca. E, quando estou
próximo de me sentar em uma poltrona de visitantes, a pessoa se
mexe.
— Ela vai acordar! — sussurro para Noa. Mas ele permanece
estático, perdido nos próprios pensamentos. Vou até onde ele está e
o balanço um pouco, na esperança de que acorde.
— Preciso me trocar. — É tudo o que diz após sair de seu
transe. — Pensei que essa aparência fosse a ideal para se passar
por um humano respeitado nessa época do ano. É a figura que está
em todos os lugares… Mas parece que não é bem assim.
— É que chama muito a atenção… — confesso, enquanto Noa
se concentra em seu dispositivo. Segundos depois, ele já está com
outra roupa. Uma toda branca, como a de um médico.
Não sei por que me impressiono com isso.
— Doutor? — a mulher chama baixinho ao acordar. Eu me
afasto ainda mais da cama e vou na direção da janela. Há um
vasinho de planta embaixo dela. Olho lá para fora e vejo algumas
luzes, o céu, mas nada que me situe. — Veio me dar alta?
— Não — Noa responde com uma voz suave. — Só vim checar
como a senhora está.
— E o senhor é novo aqui, doutor? — Ouço o rangido suave da
cama e olho para os dois. — Nunca vi médico preto nesse hospital.
Que coisa boa! — Ela abre um sorriso. — Que coisa boa — repete,
feliz.
Noa olha para ela e depois para mim, discreto. Acho que não
entende por que a mulher disse aquilo. Se é difícil até para humanos
brancos entenderem, imagina para um alienígena.
— Gal é meu assistente, está… aprendendo — ele explica, com
uma mentira, antes que ela pergunte.
— O mundo está indo pra frente mesmo, graças a Deus! — E
alarga ainda mais o sorriso para mim. E como essa senhora é
bonita! Com as rugas perto dos olhos e na testa, o cabelo crespo
branquinho e essa pele negra, escura. Parece que existe uma
mágica em volta dela, e talvez exista mesmo. — Então, doutor... —
Ela começa a questionar quando vai ter alta e outras coisas, mas
paro de prestar atenção.
Ando pelo quarto devagar, absorvendo os detalhes, tentando
capturar alguma informação sobre o tempo em que estamos.
Tentando não pensar em Alice e seu sonho em ser médica. Aquele
vazio parece me engolir. Onde será que ela está? Como será que
está? Com frio? Sozinha? Com medo? A falta que sinto dela é bem
menor do que essa agonia por não saber se está bem, comendo,
dormindo… Se está viva.
Afasto os pensamentos focando minha visão em três folhetos
sobre uma mesinha, perto da janela. São materiais de divulgação de
três casas de repouso. Curioso, eu os folheio por um instante.
— Pensei que a Madalena tinha até jogado isso fora! — Ouço a
senhora falar alto e me viro para encará-la. — Minha filha não quer
que eu vá para uma casa de repouso, doutor — comenta, indignada,
voltando a olhar para Noa. — Mas eu não quero ficar atrapalhando
ninguém. A casa dela já está cheia de menino.
— Duvido que a senhora atrapalhe alguém, dona Alzira.
Alzira… Quando foi que eu perdi a apresentação?
Ela estala a língua.
— Minha filha tem os filhos dela pra cuidar, os netos… E essas
casas aí têm até piscina chique de hidromassagem. Apesar que não
gostei muito dessa da piscina, achei muito cheia de coisa.
Estou me aproximando dela, com os folhetos na mão, quando o
aparelho de Noa apita. Será que já está na hora de irmos embora?
— Posso ver isso, Gal? — Ele ergue a mão para que eu lhe
entregue os folhetos. É o que faço.
Noa tem o cuidado de se virar de costas para Alzira antes de
começar a analisar o material com seu dispositivo. É interessante
como a luz verde fica mais forte quando o aparelho se aproxima de
um dos folhetos. É o anúncio de uma das casas de repouso que não
têm a tal piscina chique.
— Uma conexão — ele fala, baixinho. Não entendo nada. — A
senhora já decidiu para qual prefere ir? — Se vira para ela com o
folheto nas mãos. Nada sutil.
— Ainda não. Tem uma que parece ser mais arrumada. Mas a
outra… não sei. Chamou mais minha atenção. Não sei por quê.
Qual o senhor escolheria?
Noa pensa um pouco, coçando a barba. Acho que está
tentando captar alguma coisa da mente de Alzira que ajude em sua
resposta, mas parece não conseguir nada. Por fim, deixa os braços
caírem na lateral do corpo e responde, com honestidade:
— Eu seguiria a minha intuição.
A mulher abre um sorriso, alisando com as mãos a coberta que
a cobre.
— É, essa é uma boa ideia.

Ainda ficamos conversando por um bom tempo — com Alzira e,


depois que ela adormece, só eu e Noa. Nem sinal da âncora nos
puxar de volta.
— Será que a gente ficou preso aqui? — questiono, começando
a me sentir (mais) ansioso.
— Cedo ou tarde a âncora nos puxa. Essa lei não falha.
— Não quero ficar pra sempre em 1994. Meu, eu nem tinha
nascido em 1994.
— Viajar no tempo é conviver com sua própria inexistência.
Bufo.
— Nunca imaginei que minha primeira viagem no tempo seria
para ficar preso no quarto de hospital de uma senhora simpática.
— E você imaginava viagens no tempo? — Noa se diverte.
— Mais ou menos.
— Então talvez te console saber que essa não é sua primeira
viagem no tempo. Nós acabamos de vir de fevereiro de 2021, três
meses à frente da sua linha natural.
Eu me encosto na parede e olho para o céu lá fora.
— Tem tanta coisa que eu ainda não entendi… Tipo, de onde
você veio? Por que está aqui?
Ele descruza os braços.
— Eu vim impedir que vocês cometam os mesmos erros que
nós cometemos. — Noa se aproxima de mim e coloca a mão no
meu ombro. — Vocês são uma espécie muito jovem ainda!
— O que aconteceu com seu povo, exatamente?
Noa se afasta um pouco.
— Há muito tempo, minha espécie descobriu como viajar entre
dimensões e tempos. No começo, usamos como pesquisa, em
nome da ciência. Mas, conforme o tempo foi passando,
transformamos aquela descoberta na base da nossa cultura.
Ficamos conhecidos como um povo capaz de controlar o tempo e o
espaço. Desenvolvemos técnicas e teorias. Até nossa genética foi
modificada. Fomos nos diluindo, nos adaptando, para que as
viagens fossem possíveis. Até que nos tornamos seres metamorfos,
sem uma aparência única, adaptáveis.
Então é por isso que ele, do nada e em um piscar de olhos, saiu
de Papai Noel para médico.
— Sim, exatamente por isso. — Sorri para mim. — O grande
problema nisso tudo é que viajar entre dimensões abre feridas no
espaço-tempo. E essas feridas nunca curam de todo, apenas
cicatrizam. O uso indiscriminado delas, por empresas, países e
cidades, foi fazendo pequenas feridas se unirem, até se tornarem
uma ferida que engoliu o planeta inteiro.
Olho para ele, em completo choque. Noa continua, sem um
pingo de tristeza na voz. Acho que essa história está tão longe dele
que nem o fere mais.
— Não foi de uma vez, Gal. Foram séculos explorando uma
fonte de energia e poder. Vocês, humanos, já fazem isso com seus
combustíveis fósseis. E chegou um tempo que a gente sabia que
estava caminhando para a própria destruição, mas continuamos
mesmo assim. — Ele respira fundo e solta o ar algumas vezes. Vejo
uma expressão de frustração dominar seu rosto por um breve
segundo. Então volta a falar: — Quando o planeta implodiu,
algumas partes dele se perderam pelo Vazio, que é como se chama
o espaço que fica entre os espaços. E alguns desses pedaços
vieram parar aqui na Terra, em tempos e dimensões diferentes. A
questão é que esses pedaços carregam doses absurdas dessa
energia que nem meu povo, com milênios de experiência, soube
manipular.
— Então você veio aqui para nos salvar? — Quase sorrio com a
minha conclusão. O Papai Noel veio salvar a noite de Natal.
Mas, para a minha surpresa...
— Não. Não há muito o que eu possa fazer além de observar e
tentar conter os danos. E eu não sou o único fazendo isso.
O dispositivo solta o bipe já conhecido, e Noa para de falar. Sua
mão direita encontra a minha, e abrimos um sorriso juntos. Pela
primeira vez, sinto aquela força, que nasce como uma comichão na
altura do peito, me puxar suavemente. Só agora presto atenção
nela. A âncora. A força absurda que vai me levar de volta para casa.
Capítulo 6
Amor de Discovery

A TV estava congelada na mesma cena havia exatos vinte


minutos. E o jovem sentado no chão do próprio quarto ainda não
conseguira parar de chorar.
Nem ele mesmo entendia o porquê.
E nem o ranger da porta se abrindo o tirou de seu transe.
Ouviu o barulho seco dos passos e sentiu quando alguém
sentou e se ajeitou, se enrolando de um jeito desengonçado na
lateral do corpo dele.
O cheiro da namorada o fez levantar um pouco a cabeça e ver
que ela lhe oferecia um copo de água. Por um tempo, o jovem
apenas ficou olhando para o nada, tentando processar o momento
de fragilidade e de dor entalado na garganta.
— Essa série me matou — revelou, com a voz ainda cortada, e
pegou o copo da mão da namorada.
— Me matou também.
Finalmente ele se virou para olhá-la. O rosto estava inchado, a
pele negra, ligeiramente avermelhada ao redor das sobrancelhas
grossas. Ele sorriu ao pensar que a pele dele, um pouco mais
escura que a dela, certamente não estava tão avermelhada, ainda
que tivesse chorado três vezes mais. Os longos cabelos da moça,
lisos e escuros, estavam bagunçados e cheios de frizz. Ele teve que
segurar o impulso de declarar o quanto ela era linda.
— Nossa… eles não tinham o direito de fazer isso! — Bebeu
um pouco da água.
A moça passou a mão direita sobre a cabeça dele; o toque dela
nos cabelos curtos, raspados há mais tempo do que ele gostaria, o
fez sentir um arrepio.
— Se quiser, a gente continua amanhã — ela sugeriu de um
jeito carinhoso, ainda com as mãos fazendo aquele cafuné leve.
— Melhor não, Camila. Meu pai volta a trabalhar depois do
Natal. Vai ficar impossível de a gente se ver. Não vou arriscar
continuar vindo aqui enquanto meu pai estiver saindo todos os dias.
Ela soltou um muxoxo e fez um bico insatisfeito. Mas não havia
o que fazer.
— A gente perdeu o tempo quase todo da folga do seu pai,
Erick.
— A gente não perdeu. Foi o tempo necessário para garantir a
nossa segurança.
— Ninguém tá nem aí pra segurança de ninguém mais! Tinha
gente até fazendo festa de Natal aqui no prédio hoje. Minha mãe
está indignada. — Ela se afastou um pouco, cruzando os braços.
Erick terminou de beber a água devagar e colocou o copo no
chão, longe o suficiente para não esbarrar nele sem querer.
— Isso não nos dá aval para fazer a mesma coisa. Vou
continuar com minha quarentena rígida, sim. Nem que eu seja o
último não-binário na Terra a seguir as recomendações da OMS. A
segunda onda tá aí.
— Ai, eu sei… — Ela se ergueu de uma vez, se levantando do
chão.
— Ei, não fica bolada! — Erick ainda tinha lágrimas nas
bochechas, então as secou com as mãos antes de se levantar.
— Não tô bolada. — Camila cruzou os braços, claramente
bolada. — Eu só queria que essa vacina saísse logo e que esse
vírus maldito acabasse!
— Então por que a gente não aproveita enquanto pode, hein?
— As mãos dele tentaram desfazer o nó de proteção que os braços
de Camila formaram diante do peito, e conseguiram. Por um
segundo, Erick gostaria de ser mais alto para colocar o queixo sobre
a cabeça da namorada, mas afastou o pensamento para bem longe.
Já estava mal pela série, mal pelo binder, que parecia ter encolhido
durante a quarentena, e ele não usava mais. Mal por nunca
realmente se achar o suficiente, mas agir como se achasse.
Ainda assim, com todos os incômodos, com aquele frio
estranho que surgiu de repente, ele a abraçou. Seu queixo deslizou
pela lateral do pescoço dela, do jeito que tinha que ser.
Os braços finos da menina o envolveram e ele sentiu vontade
de chorar de novo. Mais do que pelo episódio bonito e triste que
tinham acabado de ver, mas chorar por finalmente terem conseguido
assistir à série que prometeram ver juntos, por finalmente poder
abraçá-la e sentir aquela vontade de nunca mais desgrudar dela.
Primeiro, Erick beijou o pescoço da namorada, logo abaixo da
orelha, depois se moveu para beijá-la na bochecha uma, duas, três
vezes.
— Nós estamos aqui para assistir Star Trek: Discovery. — A voz
amolecida não conseguiu ser dura o bastante para afastá-lo de
primeira.
— Uhum.
Como resposta, ele ganhou um tapinha no braço e um
empurrão de leve.
— É sério, Erick.
Quando uma rajada de ar frio fez a pele dele se arrepiar, ele
olhou para a janela, apenas para ter a certeza de que estava
fechada. Estava.
— Que estranho!
— Será que esse vento veio do buraco do ar-condicionado? —
A menina esfregava os braços com as mãos.
— Não sei… — Erick hesitou por um instante, olhando para
cima, para onde deveria haver um ar-condicionado, mas não tinha
nada. — Não parece vento.
Ele até quis completar que a sensação era mais próxima de um
vazio gelado, mas algo o interrompeu.
— Tem algo errado… — Uma voz rouca, vindo do mais
absoluto nada, ecoou no ar.
Camila deu um pulo para trás enquanto Erick ficou olhando,
incrédulo, para o distúrbio à sua frente. Parecia o vulto de duas
pessoas, misturados, com uma aura roxa-neon. Parecia algo de
outro mundo. De sci-fi. Tudo, menos real.
— Mô, você tá vendo isso? — Camila agarrou a mão do
namorado. Erick não respondeu. Não sabia o que responder. —
Parece as coisas que eu sonho…
Do nada, assim como havia surgido, aquela imagem
desapareceu, levando a sensação de frio junto consigo.
— O que foi isso? — Erick perguntou para o nada, apertando
forte a mão de Camila.
— Acho que a gente viu série demais.
Os dois ficaram ali, encarando a parede por muito tempo, sem
saber direito como reagir.
Erick foi o primeiro a voltar para a realidade.
— É a quarentena, Camila. — Ele pestanejou algumas vezes,
antes de trazê-la de volta para os braços. — Acho que nossa mente
não aguenta mais essa merda…
Capítulo 7
Os girassóis da estrela

Algo deu muito errado. Muito mesmo!


Eu senti um puxão e cheguei a visualizar duas pessoas nos
olhando assustadas, mas, de repente, não vi mais nada.
Agora, estamos em um campo de girassóis. Frustrado, Noa se
jogou no chão, sujando toda a roupa branca de terra. Ele parece
muito mais chateado que eu. Sinto uma pontada de pena.
O Papai Noel alienígena — agora já sei o que ele é — está
largado há uns quinze minutos, como se tivesse desistido. Fico na
dúvida se o deixo aqui e tento entender onde fomos parar, correndo
o risco de não estarmos juntos quando a âncora nos puxar de volta
— não sei quais seriam as consequências disso, nem quero saber
—, ou se continuo ali, parado, sem entender nada.
Decido por me sentar ao lado dele. Com certeza a terra vai
sujar minha calça jeans, mas já é velha.
Ficamos os dois em silêncio, ouvindo nossas respirações. E eu
me perco nos meus próprios pensamentos.
Tudo o que eu queria era encontrar minha namorada, não me
meter nessa confusão. Cheguei a um nível em que eu respiraria
aliviado só de saber que ela está bem, que está livre. Às vezes,
acho que essa sensação de que alguém está apertando minha
garganta, impedindo o ar e as palavras de saírem, nunca mais vai
embora.
Eu me lembro da primeira vez que vi aquela garota andando
pelo campus da faculdade, perdida, com um papel na mão, tentando
encontrar sua sala. A primeira impressão que tive foi a de como ela
era estranha, encurvada e com os óculos deslizando pelo nariz. Mas
algo no meu coração se agitou e me fez ir até ela para ajudá-la.
É que eu era estranho também. Me vi nela, refletido. Mesmo
que ela não fugisse da norma, que fosse magra, branca, cis. Algo na
maneira como me olhou, na voz fina, repleta de vergonha ao dizer
"obrigada pela ajuda". Algo nela fez com que eu encontrasse a mim
mesmo, encontrasse algumas partes de mim que eu não sabia que
existiam.
Sinto tanta falta dessas partes.
Só percebo que estou chorando quando uma lágrima cai no
meu queixo.
— Ela tá bem, Gal.
— E como você pode ter certeza? — Eu não queria gritar, mas
grito. — Você nem parece saber aonde está indo!
— Exatamente por isso que eu sei que ela está bem. — Ele se
levanta, espalmando a poeira da roupa branca. — Sua namorada
está presa em um lugar onde não deveria estar. É como se ela
tivesse perdido a âncora, mas a corrente estivesse indo de um lado
para o outro, causando estragos por onde passa.
— Isso não me tranquiliza em nada. — Eu me levanto também.
— Não é um problema tão grande assim. Acontecia com até
certa frequência no meu planeta.
— Isso continua não me tranquilizando em nada. — Cruzo os
braços e paro bem em frente a ele. Noa pousa as mãos nos meus
ombros.
— A gente vai achar a garota. Só vai demorar.
— Como assim?
Ele começa a andar, rumo a uma parte alta, logo na saída do
campo de girassóis.
Vou atrás.
— O tempo e o espaço em volta dela estão uma bagunça,
cheios de feridas. Nós temos que encontrar um jeito de… fazer um
desvio para chegar até sua namorada.
Não gosto nada disso, mas, de um jeito estranho, me tira um
pouco do peso do peito.
— E como você tem tanta certeza que é ela?
Noa se vira para me encarar.
— Simples: encontrei a âncora dela.
— Ah é? Mas o que diabos é essa âncora? É uma força? Uma
energia?
— É, vocês humanos entenderiam assim. — Ele se vira
novamente e caminha em direção a uma escada feita de tijolos
vermelhos. — É uma força que dá para sentir, portanto, dá para
rastrear.
— Então por que você não volta para onde está a âncora da
Alice e não tenta, sei lá, encontrá-la a partir disso? — Subo os
degraus atrás dele.
— Foi exatamente o que eu fiz. E é por isso eu trouxe a âncora
dela comigo.
Paro no meio da escada. Noa sobe até o topo.
— É o quê? — grito, e subo depressa para acompanhá-lo.
— Você é a âncora da sua namorada, Gal. — Ele olha bem no
fundo dos meus olhos.
— A âncora é uma pessoa?
— Tecnicamente, o próprio tempo-espaço encontra maneiras de
colocar tudo no lugar e de curar a si mesmo. A natureza é perfeita.
A âncora acaba sendo todas as forças que ligam uma pessoa a sua
própria vida: um amor, um sonho, um medo, uma crença, a união de
tudo isso…
Meu estômago se contrai com um pensamento: qual seria a
minha âncora? Sei que Noa ouve esse pensamento, mas não diz
nada, só fica me estudando por um tempo.
Estou prestes a perguntar, quando ouvimos passos apressados
e a voz de uma mulher gritar:
— Quem são vocês?
Uma senhora, de uns sessenta anos, sai de trás de uma casa,
vindo na nossa direção. Ela parece meio brava, porque está com o
rosto franzido, marcando ainda mais as rugas de expressão.
Olho para Noa, mas ele permanece completamente calado, os
olhos semicerrados, encarando a mulher. E é exatamente o que eles
fazem por longos segundos: ficam se estudando em uma conversa
silenciosa — pelo menos para mim.
Como ninguém fala nada, eu digo:
— Ô, dona. A gente está meio perdido.
A senhora me encara pela primeira vez. Os olhos dela me
intimidam.
— Não é muito comum aparecerem viajantes por aqui — diz,
um pouco desconfiada, mas abre um sorriso pequeno. — Bom, não
sou mal-educada. Vamos entrar para comer uma broa e tomar um
café — convida, já se virando e voltando para a casa. — Vamos,
vamos! — Gesticula com as mãos. Acho que não temos escolha.
Seguimos a mulher até uma varanda, que funciona também
como cozinha. É tudo simples, lembra a casa da minha avó. O
cheiro de café é tão familiar que meu coração aperta um pouco.
Questões familiares só me causam angústia e nostalgia.
A senhora aponta para uma mesa de madeira e segue até o
fogão de lenha.
— Eu tava terminando de passar um cafezinho.
Ignoro a indicação e me sento em um banco azul-claro, de onde
consigo ver melhor o que ela está fazendo. Noa se senta em volta
da mesa.
Sorridente, ela serve duas xícaras. Primeiro, traz uma para
mim, depois coloca a outra na mesa, em frente a Noa.
A mulher olha no fundo dos olhos dele antes de dizer:
— O senhor deveria saber que é proibido ler mentes nessa
região.
Ele arregala os olhos. Eu também.
— Eu não sabia… — Noa relaxa um pouco na cadeira,
pegando sua xícara. — Nem sabia que essas habilidades eram
naturalizadas por aqui.
— Para alguém que tem um poder tão raro e tão nocivo, o
senhor deveria estar mais a par das leis dos lugares onde visita. —
Ela volta a se aproximar do fogão.
— Eu realmente sou de muito longe. — Dá um gole no café. —
Alguma outra habilidade é proibida?
— Não.
— E como a senhora soube que eu lia mentes? — Noa parece
estar se divertindo com a situação. Meu café esfria na xícara; estou
tão nervoso que nem toquei nele ainda.
A mulher abre um sorriso.
— Vi nos seus olhos, lógico. Meu marido também podia ler
mentes, e era um péssimo mentiroso, que nem você.
Um bipe agudo interrompe a conversa. Noa olha para mim,
preocupado. É um barulho diferente do que eu ouvira antes.
— A senhora sabe há quanto tempo caiu o meteoro aqui? —
ele pergunta, ansioso.
— O quê?
— Nos registros históricos, existe algo que fale sobre um objeto
que caiu do céu? Um objeto mágico, talvez?
— A estrela…
— Estrela?
Continuo calado, perdido.
— Quatrocentos anos atrás, uma estrela caiu aí onde é o nosso
campo de girassóis. — Ela olha para ele e depois para mim,
desconfiada. — Mas todo mundo aqui conhecesse essa história.
— Nós realmente viemos de longe, minha senhora. — Outro
bipe. — E precisamos ir.
— Mas já? Eu gostaria muito de ouvir as histórias desse lugar
distante, onde ler mentes é aceito e não se sabe nada sobre a
estrela que caiu.
— Talvez outra hora. — Ele se levanta, arrastando a cadeira no
chão e fazendo um barulho irritante. Faço a mesma coisa, indo em
direção à mulher, com o objetivo de levar minha caneca até a pia.
Sinto vontade de agradecê-la e só então percebo que nem
perguntei seu nome.
Mas Noa agarra minha mão com pressa. Só dá tempo de largar
meu café em cima da mesa mesmo e ir embora, agradecendo
daquele jeito universal:
— Obrigado pelo café, estava muito bom!
— De nada. — Eu a ouço dizer, mas não consigo vê-la. — E
cuidado por onde andam. Nem todo mundo por aqui sabe lidar com
viajantes…
Noa segue me puxando, e descemos as escadas depressa.
— Quero ver o lugar onde essa estrela caiu.
— Você acha que é uma parte do seu planeta? — pergunto,
alto e depressa.
— Tenho certeza. Essas habilidades que a senhora mencionou
não são humanas. Elas vêm da energia espaço-temporal! — diz, já
entrando no campo de girassóis. Mas a sensação no meu estômago
começa a ficar forte demais. Estamos sendo puxados. — Não! —
ele grita, assim que a aura arroxeada começa a nos cercar. —
Tenho que encontrar as respostas!
Mas, de repente, tudo se desfaz ao nosso redor.
E eu torço de coração para que, dessa vez, a gente vá parar no
lugar certo.
Capítulo 8
Bifurcações

Quando me materializo sozinho, quase de madrugada, no quarto de


uma criança de uns quatro anos de idade, percebo que não adianta
correr, sempre vamos parar no lugar mais improvável possível.
Estamos perdidos, completamente à deriva nessa viagem entre
dimensões.
Meu coração está acelerado, dividido entre o desespero e o
medo. Assim que caí aqui (e eu realmente caí), ouvi um barulho
alto. E agora, olhando pela janelinha do quarto, vejo que está tudo
escuro fora dessa casa. Eu poderia me forçar a acreditar que é pela
tempestade que começa a cair, mas sei que não é.
Onde quer que Noa esteja, foi ele que causou essa confusão.
Sei que foi.
E o barulho, pelo visto, acordou a garotinha. Os cabelos dela
estão bagunçados, o rostinho amassado pelo travesseiro. Em
silêncio, espero pelo grito que não vem.
— Você é o Papai Noel? — pergunta, na maior inocência do
mundo. Sinto meu peito afundar.
Ela se levanta, se aproximando de mim. Eu me agacho para
ficar na sua altura.
— Não. Eu diria que ajudo o Papai Noel. — Não é uma mentira
tão grande assim.
A menininha olha para as minhas mãos, na esperança de
encontrar seu presente ali. Meu coração aperta mais uma vez. Só
agora me dou conta de que a caixa vazia que minha mãe me deu
está caída em frente à minha porta, na minha dimensão. Mas isso
parece ter sido em outra vida, em outro tempo.
Dou uma olhada rápida à minha volta. O quarto é pequeno, a
casa parece simples. Sinto um aperto leve no meu dedo indicador. A
criança envolveu a mãozinha ali.
Preciso me levantar ou me sentar, pois meus joelhos doem.
Escolho me sentar.
— Os presentes estão com o Noel. — Dou o meu melhor para
não decepcioná-la. Mas ela parece triste. — O que você gostaria de
ganhar?
— Peças… — A língua dela é meio presa, então soa como
"pexaish".
— Peças pra quê?
— Pra minha nave.
— Sua nave?
Ela me puxa com as duas mãos e tenho que me levantar,
desengonçado, para segui-la.
Ao lado da cama tem uma caixa de papelão, cheia de
brinquedos velhos. E, ao lado da caixa, alguns objetos estão
alinhados. Ela vai me mostrando os ursinhos antigos e as
panelinhas cor-de-rosa de uma cozinha de brinquedo, enquanto me
explica o que cada uma daquelas peças vai fazer quando a nave
estiver pronta.
— E aí eu vou pro espaço sideral! — Abre os bracinhos.
— E o que você quer encontrar lá no espaço?
— As estrelas!
Não tenho tempo para sentir direito aquele misto de tristeza e
ternura, pois o barulho de pedrinhas sendo jogadas na janela chama
a minha atenção. Vou até ela e vejo Noa parado no meio da rua
escura, vestido com uma capa amarela e um chapéu marrom que
faz com que ele pareça o Axl Rose no Rock in Rio de 2011.
— Você consegue sair por aí? — Aponta para a janela.
— É claro que não!
Ele bufa, impaciente.
— É o Papai Noel? — a menina pergunta, dando pulinhos para
olhar pela janela. A chuva está começando a ficar mais forte e a
entrar pela abertura.
Volto a me agachar e olho para a garotinha.
— Como você se chama?
— Patrícia.
— Então, Patrícia, eu preciso que você me ajude a chegar até o
Noel.
— Então ele tá mesmo aqui? — O rostinho dela se ilumina.
— Tá, mas a gente não pode ficar por muito tempo. Eu preciso
que você me ajude a sair da casa, porque… Porque aqui não tem
chaminé.
Um trovão alto faz nós dois darmos um pulo.
Olho para Noa, ele está debaixo da chuva, vidrado em seu
aparelho (que só nos deu dor de cabeça).
— Noa — chamo, e ele me encara. — Vou dar um jeito de sair
daqui.
— Não! — Ele dá dois passos e fica bem próximo de mim. —
Nós viemos para o lugar certo.
— O quê? — Olho para o quarto, depois coloco as mãos na
grade da janela e olho para a rua (no caso, para o fim da rua) atrás
de Noa. — Como assim? Então cadê a Alice?
— O lugar está certo. Só erramos o tempo.
Respiro fundo.
— Só o tempo?
— Estamos em 2005. Em uma dimensão que vai se bifurcar na
dimensão em que você existe e também na dimensão onde sua
namorada está.
— Ah, que maravilha! — Reviro os olhos.
— Ei, e meu presente? — Patrícia dá um chutinho na minha
canela.
— Tem muita energia espaço-temporal aqui. Estamos no olho
da tempestade — Noa divaga. — Talvez daqui a gente consiga
chegar no lugar certo.
Patrícia me dá outro chutinho.
Não sei por que faço o que faço, mas me viro para Noa e
pergunto:
— Você consegue colocar de novo a roupa de Papai Noel?
— Consigo, por quê? — Ele não espera que eu responda. —
Ah, a criança! Espera.
E assim, como se a fada madrinha da Cinderela tivesse
aparecido, Noa volta a usar sua roupa magenta.
Uma caixa, muito parecida com a que minha mãe tinha me
dado, só que pequena, surge em suas mãos, com uma faixa roxa e
tudo.
Pego Patrícia no colo e mostro o Papai Noel para ela. A menina
abre um sorriso enorme, completamente encantada com o sonho
que virou realidade. Noa passa o presente pela grade, entregando a
caixa para ela.
— Espero que isso ajude você a construir sua nave! — E solta
uma risada grave e contida.
Um clarão, seguido por um barulho alto, nos assusta. E ouço a
voz baixa de uma mulher resmungar. Deve ser a mãe de Patrícia.
— Temos que ir, Noa! — digo, colocando a garota no chão.
— Eu queria ver uma coisa antes. Há outro distúrbio, bem perto
daqui. É um rapaz…
A luz de um cômodo se acende.
— Não vai dar tempo.
— Gal, nós não podemos dar um salto no escuro. Não sei onde
podemos parar. Nem o tempo, nem o espaço estão a nosso favor.
E não estão mesmo. Assim que Noa termina de dizer, seu
aparelho bipa e a tela fica vermelha. Mesmo que ele quisesse, não
conseguiríamos ficar aqui por muito mais tempo. Estamos sendo
puxados de volta (ou para um lugar completamente aleatório e
desconhecido).
Patrícia está dividida entre tentar nos entender e olhar para o
embrulho que acaba de ganhar.
— Ei, Trix! — Bagunço ainda mais o cabelo dela. — Vai
acontecer algo muito esquisito agora, mas é Natal… no Natal coisas
mágicas acontecem!
Ela sorri.
— Eu sei.
— Gal…
Começo a sentir aquela pressão no estômago. Me levanto
depressa e enfio a mão pela abertura da janela. Meu braço se
molha com a chuva. É só o tempo de Noa encostar na minha mão
para tudo ficar arroxeado e girar ao meu redor.
A âncora está nos puxando de novo.
Capítulo 9
A garota do quarto vazio

No começo do mês, uma garota desapareceu em um dos


corredores do prédio. E Cecília pensou que ninguém mais teria
clima para celebrar o Natal ou o Ano-Novo. Mas os gritos animados
de seus vizinhos diziam o contrário, o que a deixava ainda mais
chateada. Para ela, não havia clima, nem mesmo para uma
comemoração pequena, só entre ela e o avô, já que a quarentena
ainda não tinha acabado.
Mesmo sem conhecer a menina, Cecília se sentia vazia. E
culpada. Ainda que soubesse que não tinha nada a ver com o que
aconteceu.
Ela se sentia culpada por nunca ter falado sobre o que viu
naquela manhã com a polícia. Nem também com a pessoa que mais
se interessava por aquele assunto.
Nas duas vezes em que encontrou Gal, o vizinho do 43b, pelas
escadas do prédio, quando saiu para fazer compras para o avô, ela
quis contar o que sabia, mesmo tendo certeza de que aquela
informação não ajudaria em nada.
Mas e se ajudasse?
— Cecília. — O avô estava parado à sua frente, tapando sua
visão da TV. Eles deveriam estar assistindo a um filme bobo de
Natal e comendo rabanadas, mas a cabeça de Cecília estava em
outro lugar. — Você está bem, minha filha? Parece distante.
— Eu tô sim, vô. Só… pensando no que aconteceu com a
namorada de Gal.
— É… — O homem pareceu ainda mais cansado ao se jogar
no sofá ao lado da neta.
— Vô. — Ela hesitou um instante, calculando as consequências
de contar o que pensava ter visto. Já não tinha mais tanta certeza
como antes. E ainda achava que contar pioraria tudo. — Acho que
vou me deitar.
— Tá cedo ainda.
Não estava.
— Ah, vou me deitar. Esses vizinhos estão me irritando. Feliz
Natal pro senhor. — Ela foi até o avô e deu um beijinho em seu
rosto.
No caminho para o quarto, prometeu a si mesma que tentaria
dormir sem ficar pensando no assunto. Mas não conseguiu. Toda
vez que fechava os olhos, via perfeitamente o momento em que
estava andando pelo corredor do quarto andar e notou a porta de
um dos apartamentos aberta.
Curiosa, entrou na sala vazia. Verificou os cômodos, um por
um. E estava quase achando que alguém só havia esquecido a
porta aberta quando ouviu um choro baixinho. No último dos
quartos, o maior de todos, uma garota tapava o rosto com os
braços, encolhida em um dos cantos e apoiando o queixo nos
joelhos. O choro vinha dela.
Ainda que estivesse com medo, Cecília sentia que precisava
ajudá-la. Sentia que a conhecia de algum lugar. Talvez de vista dos
corredores do prédio. Talvez de um de seus sonhos estranhos.
Devagar, se aproximou dela, chamando baixinho:
— Ei. — A voz de Cecília estava meio abafada pela máscara.
A garota não levantou os olhos, mas se moveu um pouco. Um
óbvio sinal de que havia notado sua presença.
— Posso te ajudar com alguma coisa? — Tentou mais uma vez,
se abaixando e se agachando de frente para a outra.
— Acho que ninguém pode me ajudar. — Finalmente a garota
ergueu o rosto. Não, Cecília nunca tinha visto aquela pessoa antes.
Nunca tinha visto aqueles cabelos castanho-escuros e aqueles
olhos… estranhos. A jovem não devia ter mais que vinte anos.
— Como você se chama?
— Patrícia.
— Essa casa é sua, Patrícia?
— Não… — Olhou para baixo.
Cecília se sentou, ficando mais confortável, e colocou as mãos
sobre as pernas.
— E onde é a sua casa? — Ainda não conseguia entender por
que aquela sensação de familiaridade não passava.
— Eu preciso sair daqui! — Patrícia se levantou de repente. —
Vim parar no lugar errado. — Começou a andar em direção à porta,
mas Cecília a impediu, a segurando pelo braço. — Obrigada por
tudo, moça, mas realmente não preciso mais de ajuda. — Tentou se
soltar, mas não conseguiu. Cecília não deixaria que ela fosse
embora assim. Não sem entender o que estava acontecendo ali. E
se a garota fosse uma criminosa, uma fugitiva… ou a vítima de
algum crime? — Moça, pela máscara na sua cara, eu imagino que
ainda estejamos em quarentena, certo? Isso significa que, talvez, eu
esteja perto de casa. Tenho que ir.
Patrícia tentou se soltar mais uma vez.
E, do nada, um vento gelado pareceu abraçar Cecília, a
fazendo se afastar com tudo. Entre uma piscada de olhos e outra,
Patrícia não estava mais ali. Em seu lugar, havia apenas uma névoa
roxo-neon.
Cecília ficou dias remoendo o que havia acontecido, tentando
conectar as peças, mas não conseguiu. Era como se a garota nunca
tivesse existido, como se nunca tivesse passado por aquele prédio.
Ninguém, com exceção de Cecília, a tinha visto.
Patrícia simplesmente sumiu.
E se o mesmo tivesse acontecido com a namorada de Gal?
Cecília se virou para o lado, fechando os olhos e tentando
afastar aqueles pensamentos. Puxou a coberta para cima quando
um vento gelado entrou pela janela.
Mas ela não tinha aberto a janela, tinha?
Incomodada com a dúvida, se levantou. Bem a tempo de ver o
ar ficar distorcido e arroxeado à sua frente.
Em um estrondo seco, duas pessoas apareceram no quarto.
Capítulo 10
De volta ao prédio

Assim que caio no chão do quarto, sei que estou no lugar e no


tempo certos.
Noa parece saber também, porque solta um som impossível de
entender e quase joga seu dispositivo na parede, em um misto de
raiva e alívio por termos voltado para o lugar de onde começamos.
A moça parada à nossa frente está com os olhos arregalados.
Coitada. Eu já a vi algumas vezes pelas escadas. É a garota que faz
compras para alguns idosos do prédio. Como é mesmo o nome
dela?
— Gal? — Ela me reconhece. — O que tá acontecendo?
É Camila? Não, Camila é a irmã do Marcelo. Cecília, a neta do
seu Mário.
— Cecília, menina… Nem sei como te explicar!
— Vocês apareceram do nada! — Ela está em completo
choque.
— Nós não temos tempo pra isso, Gal. — Noa estala os dedos.
— Minha jovem humana, tudo isso aqui foi um sonho de Natal.
Não sei o que rolou, mas Cecília fica parada por um instante,
olhando para o nada, então se deita de costas para nós.
— O que você fez?
Ele não me responde, só vai até a porta e espia pela fresta.
— Vamos logo — me chama, então sai, sem esperar que eu
responda. Como não tenho escolha, o sigo. A sala está vazia. Dá
para ouvir alguém mexendo em alguns pratos em um cômodo
vizinho. Tentando ser o mais discreto possível, saio do apartamento
atrás de Noa.
Os corredores do prédio são quase iguais, então sei
exatamente onde fica a saída para as escadas. Subimos por elas
até o meu andar.
A caixa que minha mãe me deu está exatamente no mesmo
lugar, caída em frente à minha porta. A chave do apartamento está
na fechadura. E minhas vizinhas, Emma e Liliane, estão paradas,
olhando essas duas coisas com estranhamento.
— Gal! — Emma suspira de alívio ao me ver. — Nossa, eu já
tava super preocupada. — Ela vem até mim e me abraça.
Minha vizinha de parede acabou sendo uma das pessoas que
mais me ajudaram depois que Alice desapareceu. Ainda que a
gente nunca tivesse conversado antes.
— Nossa, a gente viu essas coisas aqui e já estava pensando…
— Lili deixa a frase no ar.
Assim que Emma me solta, olho para ela. Os olhos castanhos
me estudam.
— Quer ir lá em casa comer alguma coisa?
Olho para trás. Noa não está aqui.
— Ah, já comi lá na minha mãe, meninas. Obrigado.
Lili pega meu presente caído no chão e vem me entregar.
Aproveito para procurar por Noa mais uma vez.
Era só o que me faltava! Perder o Papai Noel em plena noite de
Natal.
— Obrigado, Lili, mas agora tenho que ir.
Começo a andar de volta para as escadas, mas Emma me
grita:
— Suas chaves, Gal. — Ela vem até mim e coloca o chaveiro
na minha mão.
— Emma. — Hesito, não sei se devo perguntar ou não. Opto
por perguntar. — Aconteceu alguma coisa estranha aqui no prédio
hoje?
— Que eu saiba não.
Agradeço com um sorriso e sigo meu caminho. Eu tinha
esperança de que as pessoas que eu e Noa vimos de relance em
uma das nossas viagens fossem do prédio. Havia algo familiar na
sensação que tive ao vê-las. Mas talvez eu esteja enganado.
Subo as escadas porque acredito que Noa tenha continuado a
subir. O que se prova como certo, assim que ouço um bipe ao
passar perto da porta do oitavo andar.
Paro, ofegante, e coloco as mãos nos joelhos. Que ideia
péssima subir tantos andares.
Noa está no corredor, parado em frente à porta de um
apartamento.
— Ei — chamo baixinho.
Ele olha para mim.
— Há uma distorção aqui, uma energia residual. — Aponta para
a porta antes de vir na minha direção. — Acho que sei o que
aconteceu.
— Hm? — Cruzo os braços.
— Sua âncora tentou nos trazer de volta, mas o tempo-espaço
que te cerca também está frágil. Então uma anomalia nos levou
para um lugar longe dessa tempestade. É como se tivesse feito um
voo com escalas, mas conseguido chegar ao destino final.
— Ou seja, rodamos, rodamos e viemos parar no mesmo lugar!
Ele levanta o indicador.
— Na verdade, não. Todas essas voltas me fizeram entender
uma coisa: não adianta tentar contornar, nós precisamos entrar na
tempestade. Com tudo.
— Mas você disse que todas essas viagens causam feridas no
espaço-tempo. Não seria muito arriscado?
Passo a mão pela nuca. Eu aceitaria qualquer risco para
encontrar Alice. Não sei se Noa aceitaria.
— Sua namorada estar no lugar errado é o maior risco. O ponto
é… — Ele volta a andar, indo para as escadas. Também vou. Não
quero perder a explicação. — Eu tentei seguir por uma distorção já
existente, usando o fluxo para ir aonde eu queria. Usando você
como âncora e partindo do lugar onde sua namorada estava quando
desapareceu, ou seja, o corredor em frente à sua porta. Pensei que,
assim, iríamos para o mesmo lugar que ela. Mas isso não deu certo.
Ainda nem me recuperei da subida e já estou descendo as
escadas.
— Então o que fazemos agora?
Ele para, puxa o aparelho inútil e liga de novo aquele mapa
estranho. Com o mindinho, aponta para um grande círculo na lateral
esquerda da imagem.
— Esse lugar é o que o meu povo chamava de Barakjat, O
Labirinto. É uma distorção no tempo e no espaço, onde nada e tudo
acontecem ao mesmo tempo. Humanos normais podem ouvir vozes
e até ter vislumbres de outros tempos e dimensões. Meu povo era
capaz de ver e estudar linhas do tempo através dessas distorções,
como uma grande casa dos espelhos, com vários reflexos de
possibilidades.
— Ah! — A compreensão me atinge. — A casa mal-
assombrada que as moças da piscina nos falaram.
— Isso! — Ele pisca para mim, desliga o aparelho, e continua a
descer. — Acho que não viajamos aleatoriamente, Gal. Mesmo que
eu não consiga compreender, creio que tudo isso está conectado de
alguma maneira. É como eu disse. — Noa para e me olha de lado.
— A natureza é perfeita.
Terminamos de descer em silêncio. Minha mente ainda
tentando processar tudo. No fim, desisto. Nunca vou conseguir
entender essa confusão. E acho melhor nem tentar.
— Olha só — Noa diz, assim que saímos do prédio. — As
meninas que nos falaram sobre a casa estão no futuro. Então essa
casa ainda existe em fevereiro de 2021. E isso é uma boa notícia.
— A gente vai andando? — pergunto, depois que andamos por
alguns minutos.
— Não, vamos no meu transporte.
— Que transporte?
Eu me arrependo profundamente da pergunta assim que Noa
aponta para a carroça que havia deixado perto do ponto de ônibus
quando nos conhecemos.
— Cê tá brincando, né?
Ele me ignora e se ajeita no assento, dando dois tapinhas do
lado, me convidando a me juntar a ele. Não tenho lá muita escolha.
Então vou. Me sento ao lado dele e coloco a caixa que minha mãe
me deu sobre o colo.
No caminho, ele me conta mais sobre seu povo, que se
espalhou pelo espaço depois que o planeta foi destruído. Noa diz
tudo de um jeito tão tranquilo, que faz meu peito doer. Não consigo
nem imaginar o que seria viver em um universo onde meu povo não
tivesse mais um lar.
— Eu acho que você consegue imaginar, sim — responde aos
meus pensamentos. — Você sente constantemente que não
pertence a lugar nenhum. É um sentimento parecido.
Não digo nada. Evito até pensar durante o restante do trajeto.
Enquanto andamos, alguns carros buzinam para nós, outros nos
ignoram. É engraçado como naturalizamos o que não deveria ser
naturalizado.
Então a sensação gelada e familiar nos atinge antes mesmo de
vermos a casa. É um imóvel simples, bem diferente do que eu havia
imaginado. Por maior que seja, não é muito diferente das outras
casas da região.
Noa para a carroça bem em frente. Há uma luz acesa.
— Alguém ainda não dormiu! — Ele vai até a porta e bate de
um jeito suave a princípio. Depois as batidas ficam mais fortes.
Eu grito:
— Ô de casa! — me sentindo mal por estar incomodando
alguém às duas da manhã.
Em vez dos dois rapazes que eu esperava encontrar, é uma
moça que nos atende. Ela é branca e tem longos cabelos castanhos
e ondulados. A jovem cai na risada ao ver Noa parado ali.
Que engraçado… acho que a conheço de algum lugar.
Tento puxar na memória, mas não consigo. Será que foi da
faculdade? Ou da escola? Talvez do supermercado?
Não, foi de antes… quando ela era pequena.
Não. Foi de agora.
— Patrícia — murmuro.
Realmente, é bem possível que tudo esteja conectado.
Capítulo 11
Casa de espelhos

Noa tem razão quando diz que existem coisas que o cérebro
humano não é capaz de processar. Estou há vinte minutos sentado
no sofá de uma sala onde nunca estive antes, olhando para essa
moça, e ainda não consigo compreender como a conheci, uma hora
atrás, quando ainda era uma criança de cabelos bagunçados.
Ela está parada à minha frente, em pé e com os braços
cruzados, enquanto Noa perscruta todos os cômodos da casa com
aquela porcaria de dispositivo. Os dois rapazes que moram aqui o
acompanham. Eles parecem muito mais receptivos com toda essa
ideia absurda do que Patrícia.
— Então, tem algum risco se a gente continuar morando na
casa? — Ouço um deles perguntar. Patrícia estica o pescoço para
conseguir olhar pelo corredor.
— Hm… — Noa demora a responder. — Acredito que vocês já
tenham sido expostos a todo o tipo possível e processável de
energia espaço-temporal, Rafael. Se isso não destruiu a mente de
vocês no primeiro momento, não vai destruir mais.
Nossa, é realmente um alívio, penso, com ironia.
Fico imaginando tudo o que esses jovens devem ter visto nessa
casa mal-assombrada para terem acreditado assim tão fácil na
história que eu e Noa contamos. Ok que falamos a verdade. Mas
uma verdade muito difícil de processar.
Eu é que não moraria num lugar desses.
— Você também não gosta nada dessa história, né? —
pergunto para Patrícia, que parece tão incomodada quanto eu. Mas
ela apenas me ignora. Continua observando Noa e os meninos.
Depois que termina sua análise, meu companheiro de viagem
se joga no sofá ao meu lado e apoia o cotovelo no espaldar. Ele
parece aliviado e satisfeito. Feliz por estar nesse ambiente.
Sinto uma irritação subir pela minha garganta. O principal ainda
não foi resolvido.
Acho que Noa entende o recado, porque olha para Patrícia e a
estuda por um momento. Os dois meninos ficam tagarelando, mas
nenhum de nós está prestando atenção.
— O que você sabe sobre a menina que desapareceu aqui na
cidade? — Noa não sabe ser sutil.
— Eu? — Patrícia engole em seco.
— Sim! — Ele aponta o aparelho para ela. Nunca vi o bipe ficar
tão insistente. — É realmente incrível! — Noa parece encantado. —
Você é rara! — diz, e então se vira para mim. — Essa garota pode
se transportar entre dimensões. E eu tenho uma teoria de que sua
namorada também tem essa habilidade…
— Não. Ela não tem — Patrícia retruca, de um jeito firme. — O
que aconteceu com ela é culpa minha. — Para de falar e fica me
encarando. Um silêncio frio cai sobre nós e todo mundo a encara,
esperando uma explicação. — Eu me transportava sempre, fazia
pequenos saltos e tal. Mas um dia quis tentar algo diferente. Só que
deu tudo errado, e eu fui parar em uma dimensão onde não tinha
ninguém. Era…
— O vazio. A dimensão entre dimensões — Noa completa,
olhando para mim, como se aquilo explicasse tudo.
— Eu fiquei presa nesse lugar, não sabia como sair — ela
continua. — Mas aí, uma pessoa me ajudou. Aliás, duas. E eu
estava tentando justamente voltar para essas pessoas quando
apareci no corredor daquele prédio. Foi muito repentino, eu não
estava me sentindo bem. — Patrícia coloca a mão na têmpora
esquerda. — A minha cabeça estava me matando. Eu estava a
ponto de desmaiar quando a porta do elevador se abriu e a menina
saiu de lá. Ela me olhou de um jeito estranho, perguntou se eu
estava bem e veio na minha direção, acho que para me ajudar. Eu
só me lembro que ela pegou minha mão e, de repente, tudo ficou
escuro. Quando acordei depois disso, ainda passando mal e sem
entender o que tinha acontecido, entrei em um apartamento vazio,
até que outra moça me encontrou. Só dias depois é que fiquei
sabendo que a menina do elevador tinha desaparecido, quando vi a
foto no jornal.
Tenho muitas coisas para falar, mas não digo nada.
— Você tem alguma ideia do que aconteceu com ela? — um
dos meninos pergunta para Patrícia.
— Não. Mas eu acho que, de alguma maneira, ela se
transportou para outro lugar, usando meu poder. Não sei por que
não fui junto. Eu deveria ter ido junto? — Ela olha para Noa, que se
levanta e começa a andar pela sala.
— Não sei... — Ele parece estar fazendo milhares de contas ao
mesmo tempo. — Você disse que estava tentando voltar para as
pessoas que te ajudaram. Onde eles estão?
— Em outra dimensão!
Noa dá um soco com a mão direita na mão esquerda.
— É pra essa dimensão que temos que ir.
— Não dá. Essa casa… nos protege. Aqui, no meio de tanta
distorção, é o único lugar onde estou segura — diz Patrícia, olhando
para Noa e depois para mim. — E eu, sinceramente, já tentei voltar,
mas não tenho nem ideia de como fazer isso.
— Mas eu tenho. — Noa vai para trás do sofá. — Essa casa
tem várias janelas, e elas oscilam. Consigo estabelecer um padrão e
rastrear a Alice. Mas a gente só consegue passar pela janela se ela
estiver aberta.
— E como faz pra abrir essa janela? — Estou disposto a fazer
de tudo para buscar minha namorada.
— A Alice precisa estar esperando por nós.
— Como assim, esperando?
— Sabendo que nós vamos resgatá-la.
— E como vamos fazer isso?
Noa aponta para Patrícia.
— A Patrícia consegue. Acho que é possível fazer um
transporte parcial, seguro e calculado. Mas só ela tem a genética
capaz de resistir a essa fragmentação. A gente encontra uma janela
que esteja ligeiramente no passado, faz a Patrícia passar, ela dá o
recado rápido e volta.
— E quais são os riscos? — um dos meninos, o Rafael,
pergunta.
— Na pior das hipóteses, essa casa implode e é engolida pela
fenda. Na melhor, a janela certa é aberta e nós conseguimos
resgatar a Alice.
— É muito arriscado! — digo, vendo os olhos arregalados de
todo mundo.
— Sim — ele sussurra. — Mas lembre-se, Gal: existe um futuro
para esta casa nesta dimensão. Então eu apostaria todas as minhas
fichas de que vai dar certo.
— Ainda assim…
— A natureza é perfeita, Gal. Confie.
Capítulo 12
Âncora

Quando eu era criança, confiava demais em todo mundo. Mas aí


me tornei um adolescente solitário, com tantas questões internas,
tantas coisas guardadas dentro de mim, flutuando entre mil “eus”,
que me fechei.
Eu simplesmente me fechei.
Não é que mudei, que me tornei outra pessoa. Não. Eu me
deixei de lado, por muito tempo, tentando ser aquilo que esperavam
de mim.
Mas Alice me viu e me amou pelo que eu era desde o começo.
Me amou quando inventou dezenas de apelidinhos fofos para mim,
em gêneros diferentes, para acompanhar minha fluidez. Me amou
quando cortei o cabelo, quando comprei um binder e até quando fui
embora porque achava que não merecia amor.
Se trazê-la de volta vai fazer com que corra qualquer risco, eu
prefiro que fique onde está. Pensei que estava disposto a arriscar
tudo. Mas jamais arriscaria o bem-estar de Alice.
— Não vai ter risco nenhum. Meu povo fazia isso o tempo todo
— Noa tenta me tranquilizar. O que não surte efeito. O planeta de
Noa implodiu, meu deus, como isso pode ser considerado dar certo?
Ele só me olha com uma cara feia e continua a mexer no
aparelho.
— Vai dar bom! — Um dos garotos, acho que se chama
Maycon, coloca a mão no meu ombro. Estou tão nervoso e exausto
que não consigo registrar mais nada na minha mente.
Patrícia está encostada na parede, atrás do sofá, com os
braços cruzados.
— Ei, Noa — ela o chama. — E como funciona esse lance de
poderes?
— É a genética de vocês, humanos, reagindo à energia espaço-
temporal.
— Sim, mas por que eu posso me transportar e outras pessoas
apresentam habilidades diferentes? E por que algumas pessoas são
expostas a essa energia e não têm poderes? — Ela pergunta isso
olhando para Rafael e Maycon.
— É algo que já estava com você, um desejo profundo. Talvez
você quisesse estar em outro lugar. Mas não tenho explicação para
todas essas perguntas, infelizmente. — Ele se aproxima dela e
coloca o dispositivo na altura do peito de Patrícia. — Você vai
aparecer, na outra dimensão, no dia 2 de dezembro, 2020, às 15:12.
É a janela que temos para isso.
Então Patrícia olha na minha direção. Não sei como ela vai
fazer para ir ao lugar certo, no tempo certo, se nem Noa (que se diz
especialista) conseguiu.
Mas ela vai.
Ao contrário do que eu tinha pensado, a garota não some
completamente. Ela se transforma em um espectro arroxeado. Dá
para ver que está falando com alguém, mas não conseguimos ouvir
o que está sendo dito.
O aparelho de Noa bipa uma, duas, três, quatro vezes. E, com
um clarão verde-limão, Patrícia volta a ficar inteiramente nesta
dimensão.
Ela está ofegante, mas tenta passar o recado.
— Avisei que alguém vai buscá-la hoje. No caso, na madrugada
de hoje. Será que é o suficiente?
Noa abre um sorriso.
— É, sim. — Então começa a mexer naquela porcaria. — Vem,
Gal! — Estica a mão na minha direção.
E eu vou, me tremendo todo, mas vou. Agarro a mão de Noa
com força, bem a tempo de me sentir desfazer.
Vamos parar no meio de uma rua. Por sorte, estamos em uma
cidade pequena, de madrugada. Ou seja, não há ninguém aqui.
Assim que penso nisso, três pessoas saem, animadas, pelo
portão de ferro de uma casa. Um menino e duas meninas ficam nos
olhando, intrigados. Por um segundo, me pergunto o motivo. Então
me lembro que Noa ainda está vestido de Papai Noel. Uma das
meninas, a mais baixa, sorri para nós.
— E aí, Noel? O que trouxe de presente pra gente? —
pergunta, na brincadeira. Acho que ela não nos leva a sério. Eu não
levaria.
Para o meu mais honesto susto, Noa faz três embrulhos
aparecerem do nada.
Os três arregalam os olhos.
— Mas é segredo, viu? — Entrega os pacotes para eles. — Ho,
ho, ho. — Ele tá de sacanagem? — Vem, Gal, temos mais
presentes para entregar. — E sai me puxando, deixando os três
jovens parados, em completo choque, no meio da rua.
— O que eram os presentes?
— O próximo lançamento do escritor favorito deles.
Reviro os olhos e continuo a subir pela rua, em silêncio. Estou
com as costas encurvadas, me sentindo completamente exausto.
Um formigamento no estômago me incomoda. Não quero criar a
expectativa de que encontrarei Alice, só que meu corpo insiste em
reagir a esse sentimento.
Já estamos quase no fim da rua. Noa não precisou usar seu
dispositivo para encontrar a casa que estamos procurando. Ele já a
conhece. E eu também. É a última casa da cidade, onde a Patrícia
morava quando ainda era criança. Noa tinha razão, nós estivemos
no lugar certo, mas no tempo errado.
Estou bolando um plano para explicar toda essa situação para
quem quer que esteja morando na casa, quando ouço o bipe já
conhecido.
— Ah, não! — reclamo.
— Sua âncora está nos puxando, Gal. Vamos depressa.
Começamos a correr e chegamos completamente ofegantes.
Outro bipe. O mal-estar no estômago intensifica.
— Não, não! — falo baixinho, indo em direção à porta, com a
intenção de derrubá-la se for preciso. Mas, antes que eu chegue até
lá, alguém a abre.
— Gal! — A voz é mais aguda do que eu me lembrava, mais
urgente. Mas tem o mesmo tom doce de sempre.
Eu realmente achei que nunca mais fosse ouvir essa voz. Não
consigo nem olhar para Alice, porque meus olhos já estão
embaçados. Minha namorada me abraça, e eu a aperto forte contra
o meu corpo. Os cabelos dela estão soltos, mais curtos, mas o
cheiro ainda é o mesmo.
— Humanos… — Noa encosta a mão no meu braço. Não quero
soltar minha namorada. — Temos que ir.
— A Trix não veio? — Ouço alguém perguntar, mas ignoro.
— Não — Noa responde.
— Ah. — A pessoa parece decepcionada.
— Como você tá? — Eu afasto o rosto um pouco para olhar
para Alice.
— Bem — diz, baixinho.
Sinto meu corpo começar a ficar instável. Olho de relance para
as três pessoas paradas à porta.
— Emma? — Reconheço uma delas. Emma e dona Jana, sua
mãe, estão acompanhadas de uma pessoa que nunca vi antes.
Então me ocorre que essa Emma não me conhece. — Noa, o que a
gente faz agora? — pergunto, ao sentir meu corpo doer.
— Torce! — Ele agarra minha mão e a de Alice, que só tem
tempo de olhar para as três pessoas e agradecer por tudo, antes de
desaparecermos.
Estamos de volta à casa de Patrícia.
Nós três.
Abraço minha namorada de novo. Tudo isso ainda parece um
sonho.
— Bom, acho que salvei o Natal, né? — Noa solta uma risada
alta, colocando a mão na barriga. — Ho, ho, ho.
Alice segura meu rosto e enxuga as minhas lágrimas, antes que
eu olhe para Noa.
— E agora, o que você ainda precisa fazer?
— Nada.
— Você não precisa conferir se o tempo e o espaço voltaram ao
normal?
Ele ri de novo.
— Não há normal. O que preciso conferir, de fato, é se sua
namorada e todos os humanos estão no lugar e no tempo certos. —
Ele me dá um tapinha no ombro. — Uma vez que as feridas no
espaço-tempo começam a ser abertas, não dá mais para fechá-las,
Gal.
— Ei, moça. — Patrícia se aproxima de Alice. — Quero me
desculpar com você por… bem, por ter te mandado para outra
dimensão.
— Não foi culpa sua. Eu não sabia que eu era a Vampira do X-
Men — fala de um jeito simples. Mas eu olho para ela, um pouco
assustado. Alice continua: — Não sabia que eu não podia tocar
pessoas superpoderosas, pois roubo o poder delas. Eu nem sabia
que existiam pessoas superpoderosas. — Abre um sorriso.
— Meus amigos estão bem… lá na outra dimensão?
Alice hesita um instante, antes de responder.
— Estão.
Eu sei que ela não está contando toda a verdade.
Os meninos nos oferecem comida. E percebo que estou com
fome. Nos sentamos todos na sala mesmo, na ceia de Natal mais
estranha da minha vida (com direito a um Papai Noel de outro
planeta e tudo mais).
Eu e Alice nos sentamos no chão, encostados em uma parede,
e ela se aconchega no meu peito, enquanto conversa com Patrícia
sobre os dias que havia passado na outra dimensão. Noa e os
meninos estão sentados no sofá, conversando sobre fendas no
espaço-tempo e possibilidades.
Estranhamente, me sinto mais em casa aqui do que na ceia da
minha família de sangue.
Sinto o choro preso na garganta, querendo sair. E ele quase sai
quando vejo o presente vazio que minha mãe me deu sobre o rack
da TV. Eu nem me lembrava mais do momento em que o havia
colocado ali. Acho que vivi mais do que sou capaz de entender no
dia de hoje.
Estico o braço para pegá-lo e preciso me afastar um pouco de
Alice para conseguir. Sinto um vazio estranho por esse afastamento
temporário.
Não aguento mais sentir esse vazio.
Pego a caixa e abro de um jeito desajeitado, apenas com uma
mão. Tiro a faixa roxa e rasgo o papelão.
Dentro, há vários papéis picados. A princípio, imagino que eu
estava certo e que o embrulho é apenas simbólico. Mas não é.
Eu mal noto que todo mundo ficou em silêncio, observando o
que estou fazendo. Alice se afasta um pouco, se ajeitando de modo
a olhar para mim. Pego um papel dentro da caixa, destacado de um
caderno pequeno, onde há um bilhete escrito à mão.
Reconheço a letra da minha mãe.

Gal,
Antes da Betânia me entregar o papelzinho do amigo oculto,
eu sabia que tiraria você. É que mãe sempre sabe. No fundo, a
gente sempre sabe.
E eu soube que você era diferente do que eu esperava
ainda cedo, quando você era uma criança faladeira e fugia para
a casa da vizinha.
Sei que você acha que me decepcionou, mas não, Gal, eu é
que te decepcionei. Sempre pensei que eu fosse uma mãe,
dessas amigas, mas não sou. Eu tenho os meus processos, e
você tem os seus. Mas sinto que falhei em te entender.
Por favor, me deixe te conhecer melhor.
Talvez eu nunca consiga ser sua amiga, mas quem sabe eu
consiga ser sua mãe.
Rose

Termino de ler o bilhete, chorando feito um coitado. Alice passa


a mão nas minhas costas, me confortando. A namorada que acabei
de reencontrar. Minha mãe não sabe dela. Da minha família inteira,
só Betânia sabe tudo o que passei nessas semanas.
Noa disse que eu era a âncora de Alice, e eu tinha induzido que
ela também seria a minha. Mas agora entendo que não é. Acho que,
depois desse bilhete, eu finalmente descobri a resposta.
Agradecimentos
Agradeço a princesa da minha vida, Thaisinha, que é perfeita,
bonitinha e que prepara o melhor leite com Totoddy que eu e
Anthony amamos (ela me disse para colocar isso, e eu coloquei). Já
fiz todos os agradecimentos bonitos para você, Thaís. Dessa vez,
não vou dizer que escrevi sobre amor porque você me ensinou. Mas
escrevi sobre um corpo como o seu, e que esse corpo merece amor,
porque eu te amo. Escrevi sobre um corpo como o meu, e que esse
corpo merece amor, porque você me ama. Escrevi sobre pessoas
no interior de Minas Gerais por mim e por você. Pra nós duas
vermos gente como a gente, para que você leia e seu olho brilhe ao
se lembrar da sua própria história e da história que vivemos juntas
há quase nove anos. E eu poderia escrever uma dezena de livros
para que seus olhos continuem brilhando assim. E talvez eu
realmente escreva. Por nós.

Clara, você sabe que dificilmente eu teria conseguido terminar


esse projeto se você não tivesse me ajudado, não sabe? E ele ficou
muito melhor com a sua edição. A forma como você olhou com
carinho para essas histórias e para a minha escrita me fez melhorar
demais como pessoa e como escritora. Eu não tenho vocabulário o
suficiente para te agradecer.

Meus amigos, todos vocês, se eu fosse escrever todos os


nomes e tudo o que vocês fizeram por mim e, consequentemente,
por esse projeto ao longo desse ano eu seria capaz de escrever
uma saga de dez livros.

Vou citar um nome que representa muito bem todos vocês:


Koda. Eu não sei, realmente não sei, o que faria sem você durante a
escrita desses contos. Você foi minhas duas mãos. Ouviu as
histórias quando eram ideias, leu os contos antes de estarem
prontos, e me segurou em muitos dos meus incontáveis surtos. Não
dá para agradecer o suficiente aqui. Sério, não dá.
As pessoas que ilustraram as capas, vocês foram responsáveis
por boa parte do que esse projeto alcançou. Vocês deram vida aos
meus personagens. Deram rosto e corpo a eles. Serei sempre grata.

Thati, obrigada por confiar em mim sempre e confiar nesse


projeto a ponto de querer imortalizá-lo em uma versão física. O Se
Liga Editorial é um marco para a Literatura LGBTQIA+. Espero que
você saiba disso.

Alan e Fabrício, eu confio em vocês, no trabalho de vocês, na


mente de vocês. Minha admiração é gigantesca, acho que vocês
não fazem ideia. Penso que, assim como a Thati confia em mim
mais do que eu mesma, eu confio em vocês. Meus bregafunkers,
meus amigos, meus companheiros de escrita. Amo vocês.

Para todas as pessoas que inspiraram, ainda que não saibam,


alguns desses personagens, toda a minha gratidão por vocês
existirem.

Para os meus leitores, especialmente os bissexuais, eu fiz isso


para vocês. Grande parte desses contos existem porque nós
precisamos dessas histórias. E aos escritores bissexuais que leram
esses contos, continuem contando as histórias que só nós podemos
contar. Só nós.

Essa série foi feita para a Maria de 16 anos. Eu devia isso a ela.
Devia os aliens, devia as paredes que falam, as dimensões
paralelas, os não-binários, os superpoderes, o amor por pessoas
fora do padrão. O interior de Minas Gerais. Agora está pago (mas
ainda faltam os fantasmas).

Para a Maria do futuro, nunca duvide que você consegue


realizar até os projetos que parecem impossíveis. Eu sei que você
vai se cansar, vai chorar, vai querer desistir. Mas quando olhar para
trás, que seja capaz de se orgulhar do que nós fizemos hoje. Nós
conseguimos.

Caralho, eu acabei!
SOBRE A AUTORA

MARIA FREITAS nasceu em 1994, é mineira do interior, bi e


assexual. É autora de Cartas para Luísa (Se Liga Editorial, 2020),
livro vencedor do prêmio Mix Literário em 2020, e seus livros já
foram baixados 80 mil vezes na Amazon. Também é criadora de um
dos maiores perfis de divulgação de Literatura LGBTQIAP+ do
Brasil, o Cadê LGBT. Atualmente mora em São João do Manteninha
com sua noiva e está escrevendo sobre alienígenas, viajantes no
tempo, robôs e cantores sertanejos.

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Créditos:

Mas… e se?

Edição e revisão: Clara Alves


Leitura Sensível: Larissa Siriani

Um corpo de verão

Edição e revisão: Clara Alves


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Azeitonas

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As razões de Henrique
Edição e revisão: Clara Alves

Emma, Cobra e a criatura da parede

Leitura Sensível: Koda Gabriel

Bregafunk do amor

Edição e revisão: Clara Alves


Leitura Sensível: Koda Gabriel

Um Papai Noel de outro planeta

Edição e revisão: Clara Alves


Leitura Sensível: Koda Gabriel
www.mariafreitas.com.br

[1] Expressão típica da região Leste de Minas Gerais, que quer dizer “fica esperto”.

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