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Com amor,
Maria!
Mas… e se?
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura sensível: Larissa Siriani
Para Thaís e Bia.
Está aqui o trisal que a gente tanto quis.
Esse momento é nosso!
Amo vocês.
Capítulo I
Voltar para casa.
Três palavras tão simples. Eu quis tanto estar exatamente onde
estou, sentado no banco do passageiro do meu carro, voltando para
casa com um único objetivo: maratonar todos os realities shows que
não vi nos últimos oito meses. Espero que a Cris não tenha me
traído e assistido a nenhum deles sem mim.
Ok, esse não é o meu único objetivo.
Mais do que tudo, quero estar com a Cris. Sinto falta de
conversar com a minha esposa, da maneira como ela mexe na
ponta das tranças quando está irritada ao me ouvir falar sobre a
idiotice dos filmes héteros que adora ver, mas não admite.
Sinto falta de tanta coisa.
Mas sei que tudo está diferente agora que minha esposa tem
um namorado novo.
Tecnicamente, um novo antigo namorado. Ex-melhor amigo. Ex-
namorado. Ex-pessoa-que-dividia-o-lanche-na-escola-com-ela. Sou
incapaz de definir.
Começa a tocar no rádio uma música nova da Marília
Mendonça que ainda não ouvi. As últimas semanas foram tão
corridas que não consigo citar duas das quarenta cidades em que
me apresentei só no último mês. Nunca mais deixo uma
capricorniana montar minha agenda. Pelo amor de Deus, estou
exausto.
Encosto a cabeça na janela do carro.
— Tá tudo bem aí, Henrique? — Milton desvia o olhar da
estrada por um breve segundo para me analisar.
— Tá, sim. Só estou cansado demais.
— Mas também, né?
Até meu motorista sabe que foi um exagero. Que essa vida é
um exagero. Não preciso mais disso, já estou rico. Decido que a
primeira coisa que vou falar para Cris, assim que nos vermos, se ela
ainda estiver acordada, é que nunca mais vou deixar que cuide da
minha agenda. Sei que estou mentindo para mim mesmo e que, na
hora que minha esposa me encarar com aqueles olhos castanhos,
eu vou deixar que ela faça qualquer coisa com a minha vida, como
tem sido nos últimos dez anos.
A música da Marília Mendonça acaba, dando vez a uma canção
de minha autoria. Reviro os olhos e solto um muxoxo. Sem falar
nada, Milton pula a faixa.
— Eu juro que ia matar alguém se tivesse que fazer mais um
show que fosse.
Ele solta uma risada e eu, um suspiro de alívio, assim que vejo
as primeiras e poucas luzes da cidade se aproximando.
— Finalmente chegamos nesse fim de mundo! — exclamo,
olhando para Milton. Meu celular começa a vibrar na porta do carro
com várias notificações assim que o aparelho capta o sinal da rede.
— Eu amo tanto esse fim de mundo! — quase grito. Mas minha
empolgação morre em uma velocidade absurda, quando pego o
objeto e dou uma olhada nas mensagens. — Não aguento mais
esse inferno! — digo, em uma voz grave, controlando a vontade de
abrir a janela e jogar longe esse celular.
Milton não comenta nada. Ele já deve estar cansado de me
ouvir reclamar da mesma coisa todo dia.
Eu sou apaixonado pelas músicas que canto, quanto mais
brega elas forem, melhor. E eu queria que a profissão “cantor
sertanejo” fosse só isso: cantar minhas músicas para as pessoas
que querem ouvi-las. No entanto, passa longe de ser assim.
Todo santo dia aparece uma fofoca nova sobre a minha vida,
alguma manchete tendenciosa, algum hater desocupado. Hoje,
aparentemente, os fofoqueiros estão divididos entre me chamar de
“corno manso” ou “gay”. Eles nunca se decidem.
Juro que fui inocente o suficiente para pensar que tudo isso
acabaria eventualmente, ou que pelo menos diminuiria com o
tempo. Mas acho que isso não vai acontecer nem mesmo quando
eu me aposentar. Estou muito longe de ser aquilo que esperam que
eu seja e de amar o tipo de pessoa que eles esperam que eu ame.
Não consigo parar de me perguntar se esses fofoqueiros ainda
inventariam boatos sobre mim se eu aparecesse por aí de mãos
dadas com uma mulher branca e magra.
— Henrique? — Milton me chama. — Chegamos.
Olho pela janela e vejo o portão branco iluminado por uma luz
azul chamativa. Isso foi ideia minha? Provavelmente. Da Cris é que
não foi. A finalização da construção dessa casa aconteceu no meio
de uma loucura e eu não gosto nem de me lembrar dessa época.
Foi a única vez, em dez anos, que eu e ela brigamos tão feio a
ponto de nos separarmos por dois dias. Foram os piores dois dias
da minha vida. Isso se eu não contar aquela época, lá na minha
adolescência, quando nós dois namoramos pela primeira vez e eu
fui burro o suficiente para perdê-la.
Dessa vez, a culpa não foi minha e, talvez, eu tenha mandado
colocar essas luzes azuis no portão por vingança.
Mando uma mensagem para Cris:
Chegay!
Ela não responde, mas o portão se abre. Cris sempre faz isso.
— Obrigado por me trazer, Milton. Tem certeza que não quer
dormir aqui hoje e ir amanhã para a casa?
— Tenho, sim. Prefiro viajar à noite, já me acostumei.
— É essa a nossa vida, né? — Suspiro e abro a porta do carro.
— Boas férias pra você, amigo.
— Pra você também, Henrique!
Milton abre o porta-malas e tiro minha bagagem de lá. Aceno
para ele e observo o carro se afastar. Essa foi mais a minha casa
nos últimos tempos do que qualquer outro lugar. Cansei de dormir
no banco de passageiro, cansei de chorar de saudade com a
cabeça encostada no vidro frio da janela.
Olho para o caminho de pedras que sobe o morro até a porta
da minha casa, lá no alto. Quem teve a ideia de calçar isso com
pedras não pensou em um pobre cantor sertanejo chegando em
casa cansado arrastando sua mala de rodinhas. No caso, isso
também foi ideia minha.
Estou me sentindo o próprio Roberto Carlos naquela música “O
Portão”, mas sem a parte do cachorro me sorrir latindo, porque a
Cris não gosta de cachorros. Não tem como ela ser perfeita, fazer o
quê?
Vejo que algumas luzes estão acesas. Subo devagar, apesar de
estar quase morrendo de saudade dela. Não sei se Cris está
sozinha, não sei o que vou encontrar quando entrar, só sei que não
quero lidar com isso agora.
Sorrio quando vejo que a porta está aberta.
O cheiro de Cris está em toda a parte e é a primeira coisa que
me atinge quando entro.
Quando a vejo, esqueço tudo. Esqueço os duzentos e quarenta
e nove dias em que estive fora. Os trinta e seis, desde a última vez
que a vi pessoalmente. Sim, eu conto. Tenho uma agenda onde
anoto tudo isso; ainda quero fazer uma música sobre isso, tipo
aquela “126 Cabides”.
— Oi — Cris me cumprimenta como se tivesse me visto hoje de
manhã, mas sorri como se não me visse há anos. Largo a mala
perto da porta e arranco a mochila das costas, soltando-a no chão.
Quase corro até minha esposa, que está parada perto do balcão da
cozinha, me esperando.
Abraço essa mulher como se nunca mais fosse abraçar alguém
na vida.
— Saudade de você, Cristiellen! — Eu a aperto com tanta força
que ela me empurra de leve.
— Precisa me matar? — A fofura dela é encantadora.
— Também te amo! — Eu a solto para olhar para ela. Cris é
bonita demais, com sua pele escura e seu olho claro. Sempre achei
lindo o fato de os olhos dela terem essa cor de uísque e madeira
nova, enquanto a pele é de um marrom profundo.
Ela tirou as tranças, mas o cabelo está grande e natural. Para
mim, ela é linda de qualquer jeito; prefiro Cris do jeito que ela
estiver. Quando nos casamos, ela usava o cabelo mais curto que o
meu, e eu também amava aquele cabelo. Lindo como sempre.
— Como cê tá? — Ela me puxa pela mão e eu a acompanho
até a parte de trás do balcão.
— Cansado pra caramba — reclamo, soltando um suspiro
pesado e escorando os cotovelos no balcão.
— Sou uma péssima empresária, né? — ela antecipa aquilo
que eu queria dizer. — Não vou fazer mais isso, prometo! É que
depois daquela confusão toda você estava tão em alta, não
podíamos perder todos os convites para shows. — Cris nunca se
justifica, raramente se desculpa.
— O que deu em você?
Ela me encara, um pouco surpresa.
— Fiquei longe do senhor meu marido por oito meses. Você
sabe quantos dias foram?
— Duzentos e quarenta e nove dias longe de casa.
— É claro que você contou! — Ela sorri e me dá um beijinho
rápido, depois passa a mão no meu topete. — Você tem que dar um
jeito nesse cabelo. — E se afasta. — Tá com fome? Eu estava
esperando você chegar para fritar uns pastéis.
Eu amo essa mulher.
— Tem de frango?
— Lógico. — O sorriso dela se alarga, então Cris se vira, abre a
geladeira e pega uma bandeja com vários pastéis ainda não fritos.
— Foi o Pedro que fez os de frango.
— Ah… — Não sei se quero entrar nesse assunto hoje. As
mensagens e as manchetes ainda estão grudadas na minha mente
e percebo que isso me afetou mais do que costumava afetar. Acho
que preciso tomar alguma coisa e tentar lidar com isso. Olho em
volta e não encontro o bar. No lugar dele, tem um vaso enorme com
uma planta bonita que nunca vi. — Cris, onde você guardou o
uísque?
— Então… — Ela está colocando uma panela cheia de gordura
no fogo e não me encara. — É que o Pedro, você sabe… — diz,
meio sem graça.
— Ah, claro! Nossa, lógico! — Dou um tapinha na minha testa,
nervoso. É óbvio que não vai ter mais álcool nessa casa. Eu fico
feliz que não tenha. — Mas você também parou? Quero dizer, de
beber?
— Uhum. — Cris deixa a panela no fogão e me olha. — Perdeu
o sentido pra mim, sabe? Depois do que a bebida fez com o Pedro.
— Acho que vou parar também!
— Não precisa, Henrique.
Sorrio.
— Precisa, sim. Não quero atrapalhar a recuperação do cara. E
eu sei como essas coisas são. Pelo menos enquanto eu estiver aqui
em casa... vai ser uma coisa boa.
Convivo com muita gente no meio sertanejo que bebe mais do
que deveria, como se beber fosse parte da profissão. Isso arruinou a
vida e a carreira do Pedro. Somos pessoas diferentes, mas não
quero que o mesmo aconteça comigo. E outra… eu quero que ele
fique bem.
Se a saúde dele é importante para a Cris, então também é para
mim.
Meu relacionamento com a Cris sempre foi aberto; a ideia inicial
veio dela, mas eu logo percebi que era um modelo de relação que
funcionava perfeitamente para nós dois. Alguns dizem que não nos
amamos de verdade, outros que somos "sem-vergonha", ou
evoluídos. Não me considero nenhuma dessas coisas, só acho que
não faz sentido para a pessoa que eu sou, nem para a pessoa que
Cris é, que nosso relacionamento seja diferente.
Mas com o Pedro, as coisas nunca foram tão simples.
Só que, quando ele voltou para a nossa vida, Cris mudou... e eu
também. Não fazia sentido que os dois não tentassem fazer dar
certo. As regras que criamos em relação a ele, e que pensamos que
nunca mudariam, acabaram caindo por terra para que Pedro se
encaixasse novamente na vida dela. Porque o amor muda tudo. E
um amor como o dos dois, que não morre nem depois de uma
década de afastamento, transforma até a pessoa mais insensível.
Eu não seria bobo de tentar impedir que ela fosse feliz. Mais
feliz. Nunca fui essa pessoa.
Cris separa alguns pastéis na bandeja, que presumo serem os
de frango. Fico analisando o rosto da minha esposa. Ela parece
ponderar se vai ou não dizer algo. Eu sei que temos que falar sobre
Pedro e eu convivendo nesta casa, mas acho que só devemos
deixar rolar e ver se nós dois vamos nos agredir como fizemos no
passado, ou se vamos nos dar bem.
Acho que não há mais motivos para a primeira opção. Pedro
me odiou quando eu traí a Cris, quando namoramos pela primeira
vez. Eu era um adolescente muito bobo. E eu o odiei por anos,
porque ele teve a chance de amá-la e jogou a oportunidade fora.
Nós dois a magoamos muito no passado, e acho que passou da
hora de deixarmos esse passado para trás.
Estou tão crente que ela vai começar a falar sobre o Pedro que
me assusto quando toca em outro assunto.
— A Regina me mandou algumas manchetes de sites de fofoca
hoje. As fotos… — começa.
Reviro os olhos, cansado, me aproximo dela e a abraço de
lado. Cris larga os pastéis e se ajeita no meu abraço. Sinto o cheiro
do cabelo dela e sei que nada mais importa, que nada do que digam
vai mudar o que nós temos, o que eu sinto.
— Tenho certeza que sua sócia vai dar um jeito de responder
esse povo da melhor forma possível. A Regina é muito boa nisso.
Melhor do que você era. Desculpa falar, mas é a verdade!
— Eu era uma excelente relações-públicas. — Ela fala no meu
ouvido, dando um tapinha nas minhas costas. Sinto um arrepio
percorrer meu corpo.
— Até afundar a carreira do Pedro.
— Afundei a carreira do Pedro porque eu quis. — Ela me
afasta, fingindo estar chateada, e volta a mexer nos pastéis.
— Pior ainda. — Sorrio e tento me aproximar de novo. Quero
abraçá-la, quero sentir o cheiro dela. Até esqueço que estou com
fome.
— Você é terrível, Praga. — Cris retribui meu sorriso e deixa
que eu encoste meu queixo em sua cabeça e coloque meus braços,
de um jeito meio desajeitado, em volta de seu corpo. — Não vai me
deixar esquecer isso nunca.
— E você esquece alguma coisa? — Eu a giro lentamente para
que fique de frente para mim.
— Não. — Ela coloca os braços em volta da minha cintura e me
dá um beijo rápido. — Não mesmo. — Então beija meu nariz.
Depois minhas bochechas. Depois mordisca a minha orelha. E eu
sei que esses pastéis vão ficar para outra hora.
Capítulo II
Estico os meus braços sobre o lençol e não encontro ninguém.
Demoro um pouco para me levantar e, quando faço isso, vou direto
para o banheiro. Estou criando coragem de sair, de encarar Pedro e
todas as mudanças que chegaram com ele. Sei que ele está aqui.
Dá para ouvir as vozes dos dois conversando. Cris parece nervosa.
Respiro fundo e saio para o quarto, depois para o corredor.
— Cris, quanto mais a gente esconde, mais eles falam — ouço
Pedro dizer, parecendo chateado.
Engraçado, a voz dele cantando é bem mais aguda que a
minha, mas, quando fala, seu tom é quase tão grave quanto o meu.
— A resposta é não. — Eles não percebem minha presença. Os
dois estão de frente para o outro, separados pelo balcão da cozinha.
— A Bela Adormecida acordou? — Cris pergunta, assim que
me vê, e vem até mim, me dando um beijinho no rosto. O clima na
sala parece suavizar. — A última vez que fui lá no quarto te ver,
você parecia estar morto.
— Mas eu estava!
Pedro ri, do outro lado do balcão da cozinha. Sei que ele
entende, melhor do que ninguém, o que passei nesses últimos
meses. Viagens, shows, carros, ônibus, shows, aviões, shows e
pessoas, muitas pessoas. Não tive tempo para nada, nem para
viver.
— Sua cara está toda amassada! — ela comenta, passando a
mão no meu rosto, do jeito mais carinhoso que consegue. Em outras
palavras, sou agredido. Eu me afasto um pouco dela e dou a volta
no balcão. Automaticamente, pego uma caneca e me sirvo um
pouco de café. Preciso beber algo quente, preciso da cafeína para
me situar, para entender todas as mudanças que aconteceram na
minha vida, quando eu não estava vivendo.
— Não! — Pedro tenta me avisar, mas é tarde. Já tomei o café.
O gosto horrível que sinto na boca faz meus olhos se encherem
de água. Evito cuspir e engulo a bebida a muito custo.
— Meu Deus! — reclamo, horrorizado. — Alguém impede essa
mulher de fazer café, em nome de Jesus?! — Eu me viro para
Pedro.
— Eu cheguei e ela já tinha feito essa porcaria aí. — Pedro ri.
— Espera um pouquinho que estou fazendo outro.
— Vocês são dois ridículos — Cris protesta.
— Seu café é ridículo! — Despejo o resto do conteúdo da
caneca na pia e só então vejo que há uma leiteira de inox no fogão.
— Nossa, minha boca vai amargar por meses!
— Para de ser exagerado.
— Bom, serviu pra me fazer acordar! Essa bomba.
Ela tenta me dar um tapa, mas não consegue me acertar do
outro lado do balcão.
— Eu deveria bater em vocês dois!
— Em mim? O que eu fiz… dessa vez? — Pedro leva as mãos
até o peito.
— Me irritou!
— Mas o que não te irrita, Cris?
Tento segurar uma risada. Ela fecha a cara e, por alguns
segundos, sinto pena do Pedro.
O silêncio recai sobre nós.
Olho em volta, me sentindo um pouco estranho em estar ali
entre os dois. Só agora, com os cômodos iluminados pela luz do dia,
é que reparo o quanto esta casa está diferente. Eu não sabia que
tinha ficado tanto tempo fora até notar que as plantas — de um
jardim que nem existia quando viajei — cresceram. Há flores por
todos os lados.
Nas minhas lembranças, essa era casa branca, clara e sem
vida. Uma casa sem cheiro algum. Agora, sinto o aroma de café no
ar. Nas minhas lembranças, essa casa era silenciosa, agora há uma
discussão sendo travada... e risos. Quem briga e ri ao mesmo
tempo?
Mas de repente percebo que o clima ficou pesado de novo,
como estava antes de eu chegar à sala.
— Gente, aconteceu alguma coisa? — questiono.
— Sim — Pedro diz.
— Não — Cris rebate.
Conheço Cris como a palma da minha mão, sei que ela é quem
está mentindo.
— O que foi? — Dirijo-me a ele.
— A Cris não quer ir no Prêmio da Música Sertaneja comigo.
Sorrio, com um pouco de compaixão.
— Ela nunca vai, Pedro — explico, como se ele fosse um
menino de seis anos que pede um iPhone de presente de
aniversário.
— Eu falei pra ele. — Cris batuca no balcão, desconfortável. —
Fora que você também vai, né, Henrique? Eu teria que ser duas
para acompanhar os dois.
— Claro que não teria… — Pedro começa a protestar, mas eu
me adianto:
— Não sei se quero ir.
— Como não sabe? — Cris se vira para mim.
— Na verdade, eu sei: não quero ir. — Desvio do olhar
assassino que ela me lança e finjo que estou conferindo se a água
do café ferveu.
— Henrique, você vai ser premiado! Está concorrendo em
quase todas as categorias.
Olho para Pedro, buscando algum apoio, mas ele apenas pega
a leiteira com a água e vai até o coador passar o café. Eu sei o que
ele está pensando, sei que ele não entraria em uma briga dessas
com a Cris. Pedro a conhece há mais tempo do que eu. Por um
instante, fico tentando calcular quantas brigas dessas ele já perdeu.
— Henrique… — ela me chama. Ainda não tenho coragem de
encará-la. Continuo observando o fogão, agora vazio.
— Ele acabou de acordar, Cris — Pedro tenta intervir, de um
jeito pacificador. Será que esse vai ser o papel dele no nosso
relacionamento?
Não. Eu sou o pacificador.
— Henrique… — ela chama de novo, já completamente irritada.
Eu me viro e a encaro. Os olhos amadeirados dela parecem sugar a
minha alma.
— Eu tô cansado.
— Mas você vai ganhar!
— O Pedro pode pegar os prêmios pra mim.
— Não posso, não.
— Traidor!
Ele dá de ombros.
— O que está acontecendo? Você é leonino! Você gosta de
aparecer, de ser reconhecido! — Cris me olha como se não me
conhecesse. — Gente, quem sequestrou meu marido e colocou
esse bonitinho aí no lugar?
— Só me cansei dessas coisas.
— De aparecer?
— Não, disso eu gosto. — Sorrio. — Eu não gosto de ficar lá
sozinho.
— Vai com a sua mãe ou com alguma das suasirmãs.
Sei que ela evita revirar os olhos com a própria sugestão. Cris
não gosta da minha mãe. Na verdade, minha mãe não gosta da
Cris, e minha esposa não é do tipo de pessoa que faz questão de
correr atrás de ninguém. Mas eu reviro os meus olhos. Não quero ir
com elas. Quero ir com a Cris.
— Tá, vou pensar. — Vejo que Pedro terminou de passar o
café, então tiro o coador de cima da garrafa e encho uma caneca
para mim. — Depois que eu acordar.
Capítulo III
Pedro está cuidando do jardim. Observo a árvore que fica no
centro do nosso quintal. Quando compramos o terreno, Cris recusou
todos os projetos dos engenheiros que queriam derrubar esta
árvore. Sei que é especial para ela e para Pedro, mas nunca
perguntei o motivo. Não perguntei muitas coisas sobre a antiga
amizade dos dois, porque sempre que ela falava dele havia algo de
diferente no seu tom, no olhar, nos gestos. Mesmo depois de tudo o
que eles fizeram um com o outro, mesmo depois de tantos anos,
Cris ainda amava aquele garoto branco e ridículo, que fazia eu me
sentir um menino bobo de dez anos de idade. Sempre senti um
ciúme imbecil de Pedro.
Até não sentir mais. Talvez tenha sido a maturidade, talvez eu
tenha me conformado com o fato de que ela sempre o amaria.
Talvez nunca tenha sido ciúme.
— Ô, cuidado aí! — ele me adverte. Só então percebo que
estou quase pisando em uma das plantinhas.
— Desculpa.
Procuro um lugar para me sentar e só encontro o chão. Então,
me sento ali mesmo e fico observando Pedro plantar.
Ele está vestindo uma camisa branca, o que eu acho
completamente sem noção para a atividade, e percebo o pouco
contraste entre a blusa e a pele dele. Engraçado, perto de Pedro, eu
sou escuro demais. Perto de Cris, sou claro demais.
Pedro me encara. Dessa vez, realmente me nota.
— Você quer alguma coisa? — pergunta, de um jeito simples e
direto.
— Quero… — hesito. — Conversar.
— Ok. — Ele para o que está fazendo e se vira para mim,
apoiando-se na pá. A maneira como Pedro me olha me deixa
incomodado, então desvio o olhar do rosto dele. Só percebo que
cometi um erro quando minha visão se perde no corpo do namorado
de Cris. Um erro, sim, porque agora não sei como vou parar de
olhar. A camiseta branca está colada no peito, os braços estão um
pouco sujos de terra, mais embaixo…
— Diga — ele fala de um jeito um pouco rude. Será que
percebeu meu olhar?
— Na verdade… — Algo parece se prender na minha garganta,
acho que é constrangimento, então pigarreio. Não sei o que dizer a
ele. Nunca tivemos uma conversa de verdade. Eu nem o conheço.
Nunca tinha parado para pensar nisso, mas só conheço esse
homem pelo que me contaram dele, pela visão da Cris, pelas coisas
que ele fez com ela. E essa é uma visão completamente imparcial e
afetada.
— Te incomoda que eu queira que a Cris vá comigo à
premiação? — pergunta, antes que eu consiga dizer alguma coisa.
— Não. É só que… Por que você quer que ela vá?
— Como assim? — Ele se mexe, desconfortável, então larga a
pá no chão e se senta de frente para mim.
— A Cris nunca vai nessas coisas, por que você acha que ela
mudaria de ideia agora? — Estou um pouco nervoso demais. Será
que essa história está me incomodando, afinal, e eu não quero
admitir nem para mim mesmo? Será que Pedro está me
incomodando? Por que estou sentindo essa pressão estranha no
meu diafragma?
— Eu não acho. Só queria que ela fosse comigo. — A
simplicidade da resposta me desarma.
— Por quê? — insisto.
— Porque ela merece estar lá mais do que qualquer pessoa.
— Ah… — Então é isso? A culpa? — Mas, Pedro, você não
acha que… isso é só uma tentativa de reparar o dano?
— Olha… — Ele se apruma e me encara de um jeito duro.
Torço para que não comece uma discussão. Não quero brigar. —
Tudo o que nós dois somos, não só eu, veio dela. As músicas, a
inspiração, tudo. Eu já escondi coisas demais por tempo demais. Já
fingi ser quem eu não era. Não quero essa vida pra mim.
— Eu sei… mas ela não vai, Pedro. Você acha que eu não
tentei? Foram anos tentando. A Cris tem as questões dela, e eu
respeito isso.
— E quais são essas questões?
— Aí você tem que perguntar pra ela — respondo, me sentindo
tão desconfortável que quase me levanto e saio dali. Ele já deveria
saber como os comentários de ódio afetam a Cris.
— Mas ela não diz.
— Vocês se conhecem há quanto tempo? Vinte anos?
— É.
— E você ainda não percebeu quanta coisa a Cris guarda
dentro dela?
Ele não responde. Ficamos nos encarando, em silêncio. Há
algo que nos liga. Então, percebo que quero conversar com ele
sobre a Cris. Quero conhecer a história dos dois. Quero conhecer a
história dele.
Olho para os lados, porque olhar para Pedro fica difícil demais.
Quanto tempo será que ele demorou para deixar este jardim do jeito
que está? Devem ter sido meses. Meses vindo aqui, plantando,
regando, cuidando. Volto a encarar o homem à minha frente, mas
agora é ele quem está com um olhar perdido, observando as
plantas. Quantas voltas a história dele e da Cris já deu para vir parar
aqui?
— Afinal, o que aconteceu entre vocês? — questiono. Pedro
franze o cenho. — Sei a história do ponto de vista da Cris, queria
saber do seu.
— Melhor ficar com o da Cris. — Ele sorri.
— Como assim?
— No ponto de vista dela, você só pode supor as coisas que se
passaram na minha cabeça. Do meu, você vai ter certeza.
— Então você é realmente um traidor, ladrão de música?
— Bom, tecnicamente…
— Viu? — Eu o interrompo. — Todo mundo acaba se
defendendo.
Pedro dá um sorrisinho de lado.
— É porque não roubei a música. Gravei sem autorização, sim,
mas eu achava que a Cris tinha autorizado, porque meu empresário
da época mentiu pra mim. Você conhece o Alexandre Royal, não
conhece?
— Ih… aquilo ali é furada.
— Pois é… Mas, no fim das contas, não fez muita diferença eu
saber ou não. Foi um roubo que favoreceu mais a mim do que
qualquer outra pessoa. E eu era o amigo dela, eu que deveria ter
conversado com a Cris. Só que tive medo, sabe? Medo de perder a
grande chance da minha vida. A oportunidade de ser alguém, sair
daquela pobreza. Eu era um menino sem perspectiva nenhuma. Eu
não tinha nada… — Ele para um instante. Não quero que ele pare,
gosto de ver Pedro falar. — Estou me justificando, né?
— Uai, mas era o que eu queria.
— O problema é que posso falar o que for; o que eu fiz não tem
justificativa. A Cris era minha melhor amiga, foi ela que me ensinou
a maioria das coisas que eu sei. Quando meu pai abandonou a
gente, minha família não passou fome porque a família da Cris
ajudou. Eu era a última pessoa que podia magoá-la. O pior sabe o
que é, Henrique?
Aprumo as costas e solto um “hum?” para que ele continue.
— Eu sabia que ela era tão fodida da cabeça quanto eu. Sabia,
no fundo da minha mente, do impacto que qualquer coisa que eu
fizesse teria sobre ela. Eu me lembrava perfeitamente de como a
Cris tinha ficado depois que você fez aquela cagada. Mesmo assim,
na hora de pegar a música dela, gravar e ficar famoso, nada disso
entrou na balança.
Pedro fala de um jeito culpado, mas, ao mesmo tempo
tranquilo.
— É por isso que você quer tanto que ela vá, Pedro? Pra se
redimir mais um pouco? Acho que a Cris já superou…
— Não é por isso, Henrique. — Agora ele parece cansado. —
Quero que ela vá porque eu quero dividir isso com a Cris. Estou
nessa carreira há mais de dez anos, muito mais tempo do que você.
Já perdi a conta das premiações em que fui acompanhado por
mulheres que meus produtores colocavam lá para que não me
chamassem de gay. Eu nem me lembro do rosto delas. Vejo fotos
desses eventos e fico me perguntando quem eram essas mulheres,
quem eu era. Eu ganhava um prêmio, e não tinha com quem
comemorar, quem abraçar, a quem agradecer, porque quem eu
queria do meu lado não estava lá.
— Então você entende por que eu não quero ir.
— Por que nós dois não vamos juntos? — sugere com um
sorrisinho. E, por um instante, cogito a possibilidade. Imagino Pedro
e eu de mãos dadas no tapete vermelho. Quase sorrio, mas percebo
que ele não fala sério. É claro que isso nunca poderia acontecer. —
A imprensa iria amar. O que será que diriam?
— Que finalmente assumimos nosso namoro. — Dou uma
risada discreta. Já Pedro solta uma gargalhada.
— Mas eles já dizem isso.
Desde que eu e a Cris voltamos para a vida do Pedro, é o que a
mídia mais gosta de presumir. Isso me irrita, porque é sempre
assim. Sempre que eu contava a alguém sobre ela, as pessoas
duvidavam que estávamos mesmo juntos.
Dois anos atrás, quando o primeiro comentário surgiu, assim
que Cris e Regina foram contratadas para tentar salvar a carreira do
Pedro — coisa que elas não fizeram —, eu pensei que as pessoas
estivessem ficando doidas. Quando a história da música roubada
veio à tona, logo em seguida, as pessoas se esforçaram muito para
desvendar a linha do tempo das nossas histórias e onde elas se
interligavam. E aí, porque para elas era impossível imaginar dois
homens famosos apaixonados por uma mulher negra e gorda,
deduziram que a Cris era a fachada do meu relacionamento com
Pedro.
Meu casamento, todas as brigas, as confidências, as horas que
passamos maratonando filmes de Natal, a quantidade de vezes que
bebi aquele café horroroso mentindo para mim mesmo e dizendo
que era bom... tudo isso foi lido como fachada para um
relacionamento gay. Eu nem sou gay, como vou ter um
relacionamento gay?
Acho que prefiro ser taxado como “corno”, porque rende boas
músicas e teorias engraçadas. Antes dessa história com Pedro, as
manchetes tendenciosas me acusavam de ser o infiel — o que
também não era verdade. Perdi a conta da quantidade de músicas
que fizemos zoando esse rótulo.
Penso, não pela primeira vez, que seria muito melhor se as
pessoas soubessem a verdade.
— É por isso que a Cris nunca vai, não é? — Pedro pergunta,
depois de um tempo. — Por causa dos comentários, da mídia, dos
fãs. Ela diz que não liga, mas a gente sabe que é mentira.
— Você sabe como ela é — é tudo o que digo.
Eu me levanto. Acho que essa história me deixou triste. Pensar
nas coisas que nós três temos que passar, nos preconceitos que
enfrentamos, cada um do seu modo, me deixa triste. Pensar nas
coisas que nós temos que esconder me destrói.
Antes de entrar na casa, dou mais uma olhada no jardim de
Pedro.
— Como foi que você convenceu a Cris a te deixar plantar
aqui?
Ele dá de ombros.
— Eu só fui plantando.
Capítulo IV
Cris está lendo no Kindle. Concentrada, ela nem nota a minha
presença quando entro no quarto e me deito ao lado dela.
— Eu sei que você vai brigar comigo por interromper sua
leitura, mas precisamos conversar.
Ela me olha de canto de olho e coloca o aparelho na mesinha
de cabeceira.
— Precisamos mesmo. Pra começar, não existe a menor
possibilidade de você faltar à premiação. — Cris me encara. — E
não estou falando isso como sua esposa, mas como sua chefe.
Você tem uma agenda, Henrique.
— Hum… — Reviro os olhos.
— Esse é o grande momento da sua carreira, e ele não vai
durar pra sempre.
— Ah… — Suspiro, em reclamação.
— Para com isso, Praga. Eu sei que você está cansado. Mas
você quis tanto isso, a gente trabalhou tanto para chegar aqui, não
vai se sabotar uma hora dessas. Você não é assim.
— Ok. Eu vou nessa merda. Mas você disse exatamente o
grande ponto aqui: nós trabalhamos! Juntos! — Não sei se é o
desejo quase inocente do Pedro em querer que a Cris vá com ele à
premiação que despertou algo em mim, ou se é o meu cansaço, só
sei que estou mais frustrado do que nunca por não ter minha mulher
do meu lado nos momentos mais importantes da minha carreira. —
Eu quero que você vá, Cris.
— Ih… Vai dar uma de Pedro agora?
— Não. Não vou. Eu só queria que a senhora minha esposa
estivesse do meu lado quando eu recebesse um prêmio. Ou que a
senhora compositora das minhas músicas estivesse no palco
comigo, pegando o prêmio que é dela.
— Eu sou uma mulher de bastidores.
— Não, você não é. — Escoro minhas costas na cabeceira da
cama. — Você é tudo, menos uma mulher de bastidores.
Ela revira os olhos, mas sorri.
— Não adianta ficar me bajulando que você não vai conseguir
me convencer.
— Não tô te bajulando, tô falando normal.
— Uhum, sei. — Ela me olha de um jeito tão engraçado que
não consigo mais ficar sério. Eu nunca consigo ficar chateado por
muito tempo quando estou com ela. — Lá vem você com essa cara
de bobo!
— Minha cara é de bobo quando estou perto de você.
— Aff, Henrique.
— Que foi? Não posso ser brega? — Eu a abraço de lado e ela
tenta se soltar.
— Não. Não pode. — Cris se debate, presa em meus braços,
rindo. — Para com isso!
— Eu tava com saudade, uai.
— E vai ficar com saudade por quanto tempo? — Ela para de
tentar escapar e se ajeita no meu corpo.
— Não sei se tem como não sentir saudade de você, Cris.
— Brega! — Ela me olha e faz questão de revirar os olhos.
— Que bom que você ama coisa brega…
— Pelo amor de Deus, esses homens que eu arrumo —
resmunga.
Então quer dizer que o Pedro também é brega? Isso não é
exatamente uma novidade para mim. As músicas dele conseguem
ser mais dramáticas e melosas que as minhas. Sorrio imaginando o
tipo de breguice que ele fala para a Cris.
— Que foi? — Ela se afasta um pouco para olhar para o meu
rosto.
— Eu estava pensando no Pedro — admito. Cris me solta e se
empertiga, soltando um muxoxo. — Ele não costuma dormir aqui?
— pergunto isso porque não sei como começar o assunto.
— Quase nunca — ela responde, sem dar muita importância.
— Uai?
— Ele não mora aqui, Henrique.
— Mas vive aqui, né? Tem até um quarto pra ele.
— Ai. — Ela curva os ombros, como se tivesse sido derrotada,
e me encara. — Ele encheu a minha casa de flores. De flores!!!
— Você reclama como se achasse ruim. Mas tá estampado na
sua cara o quanto está feliz.
Ela solta um muxoxo.
— Estou feliz porque você está aqui.
— Vamos fingir que isso é verdade e que você não está
mentindo para si mesma porque tem medo de admitir o quanto
perdoar o Pedro te fez bem.
— Virou Edward Cullen agora? Tá lendo mentes?
— Não. O Brilhoso não lia a mente da Bella. Eu leio a sua,
porque você é transparente, Cris. Porque eu te conheço e sei que
esse brilho no olhar aí não existia antes.
— E você não se incomoda?
— Pelo Pedro? Por vocês dois estarem juntos?
— É. Ok, sei que a gente conversou um milhão e meio de vezes
sobre isso. Mas, sei lá, agora com vocês dois convivendo, ou
melhor, com nós três convivendo, talvez as coisas mudem entre
nós. O Pedro está mudando tudo, Henrique, ele plantou coisas aqui.
— Você só está com medo, Cris.
— É que… é o Pedro…
— Por isso mesmo. Você nunca foi e nunca seria capaz de
amar só um de nós. E eu nunca faria você escolher.
— Não é isso. É que eu e o Pedro nos magoamos tanto. Quem
garante que não vai acontecer de novo?
— É só você registrar as suas músicas antes de mostrar pra
ele.
Ela ri.
— Nossa história é um desastre! — Cris se apoia de novo no
meu peito, ainda sorrindo, e eu desejo que o tempo pare um
pouquinho para que eu viva mais esse sorriso dela.
— Digno de novela mexicana, só que com um galã bissexual,
uma mocinha meio vingativa…
— Meio?
— Completamente vingativa, parece até escorpiana.
— E o Pedro… — ela continua.
— É, e o hétero branco para preencher a cota.
Cris solta uma risada tão alta que faz meu coração dar um pulo.
E fica lá rindo, sem me explicar a razão de tanta graça. Penso em
perguntar, mas a risada é tão gostosa que não consigo interrompê-
la. Quando Cris consegue parar de rir, a expressão dela se fecha de
repente.
— Henrique — ela me chama com cuidado, voltando a se
afastar de mim. Quase a puxo de volta. — Eu tenho medo.
— Do quê?
— De tudo! De ser magoada de novo, do que as pessoas vão
dizer. Você tem razão, eu estou feliz e tenho medo de perder isso.
Sempre vivi com tanto peso dentro de mim que, agora, sem ele, me
sinto leve demais. Tenho medo de voar e cair.
— Eu também tenho medo, Cris. De tudo. Tenho medo de isso
aqui dar errado, tenho medo de dar certo. Mas a gente precisa
aceitar essa felicidade, porque nós merecemos.
— É por isso que eu amo você, sabia? — Ela volta a deitar a
cabeça no meu peito e eu a aperto forte. Dessa vez, não vou deixar
que ela se afaste nem um pouco.
— Ah, por isso? Pensei que era por causa da minha beleza ou
da minha cara de bobo.
Ela dá um tapinha na minha barriga.
— Palhaço.
— Você me ama demais.
— Eu amo mesmo, Praga.
— Tá, mas agora a gente precisa conversar sobre o Pedro.
— Mas a gente já conversou um milhão de vezes, pelo amor de
Deus, homem! Vamos só ver no que dá. Se der tudo errado, pelo
menos o mais importante eu e ele já fizemos: nos perdoamos.
— Perdoar é diferente de beijar a pessoa. — Finjo indignação.
Ela revira os olhos. — E você, além de beijar, montou um quarto
para ele. Um quarto.
— Tá achando ruim?
— Não. Mas quero saber como vamos lidar com isso daqui pra
frente. Você já contou para a sua mãe sobre seu namoro?
— Não é um namoro.
— Ai, Cris, pelo amor de Deus! Assume logo.
— O Pedro é meu amigo e a gente se beija de vez em quando.
Passo as mãos pelo rosto.
— E você contou para as pessoas que anda beijando o seu
amigo?
— Não, mas todo mundo sabe — ela diz, como se não tivesse
tanta importância assim.
— A gente sempre combinou que não esconderia nada de
ninguém. Nosso relacionamento é nosso, mas eu não quero ter que
fingir que ele não existe.
— Não escondemos nosso relacionamento de ninguém. Nosso
casamento é de conhecimento público!
— Mas o nosso relacionamento envolve outra pessoa agora.
Cris fica me olhando por algum tempo com seus olhos claros, e
eu quase deixo essa conversa para amanhã. No entanto, sei que
precisamos falar sobre isso. Antes, nosso relacionamento aberto
consistia apenas em ficar com outras pessoas, sem compromisso.
Mas Pedro mudou tudo. Ela franze o cenho, estudando meu rosto,
tentando entender o que eu acabo de dizer.
— Espera… Você está colocando os dois relacionamentos
como um só?
— Dois? Olha bem para a nossa casa. Olha as paredes, as
plantas, os quadros, as flores. Olha o barzinho que a gente tinha e
não tem mais. Você mudou tudo à nossa volta para receber o Pedro
aqui. Para de mentir pra você mesma separando o Pedro de nós,
Cris.
Ela suspira.
— Eu tenho medo de ele estragar a nossa vida.
— O histórico dele não ajuda muito, mas, sinceramente, acho
que o Pedro veio para melhorar as coisas. Essa casa é outra, você
está feliz… é nítido.
— Mas e você?
Acho que essa é a grande pergunta. E eu? Como eu me sinto
com a presença de Pedro aqui? Hoje cedo, quando nós dois
conversamos, senti algo estranho. Não sei bem se estou pronto
para ter esse homem tão… perto. Os pelos dos meus braços se
arrepiam quando penso em me aproximar ainda mais dele.
— Eu acho que… preciso conhecer esse boy de verdade. Tirar
as minhas conclusões, aprender a conviver com ele. Preciso saber
quem o Pedro é, além do mal ou do bem que ele faz a você —
confesso, mais para mim do que para ela.
— Bom, isso aí é fácil de resolver. — O sorriso de Cris não
mente. Sei que um milhão de ideias diferentes voam pela sua
cabeça. Era sempre assim quando nos sentávamos no chão do
estúdio improvisado que a gente tinha no nosso primeiro
apartamento, se é que posso chamar aquilo de apartamento. Os
olhos dela sempre brilhavam de um jeito diferente quando ela
aparecia com alguma ideia nova. Não vejo esse olhar há muito
tempo, desde que Cris deixou de fazer músicas para gerenciar
carreiras. Gosto desse olhar, desse sorriso. Gosto dessa Cris.
— Então vamos resolver!
Capítulo V
O som das vozes exaltadas me acorda. Pedro e Cris estão
discutindo mais feio hoje do que ontem.
— Nós não vamos deixar de ir na ceia de Natal por causa disso!
— A voz de Pedro está quase tão aguda quanto nos CDs dele. A
coisa está feia mesmo.
— Minha família não tem senso nenhum… Vai estar cheio de
bebida naquela porcaria.
— Para de usar isso como desculpa pra fugir da sua família!
Eita.
— Pedro, pelo amor de Deus! — Quando Cris fala desse jeito
pausado…
— O quê? Vai me esconder dentro de uma caixa agora? Quer
me proteger do mundo ou não quer que o mundo saiba sobre mim?
Porque o mundo inteiro já sabe!
— Não tem nada a ver o c…
— Olha só, Cris. — A voz dele suaviza e fica tão baixa que
quase não ouço. — Eu preciso viver fora daqui. Preciso aprender a
lidar com meu vício em ambientes sociais. E as pessoas precisam
aprender a lidar com o nosso relacionamento. Não dá pra proteger a
gente desse mundo, Cris, nem correr dele. Ele sempre nos alcança.
Ela não fala nada. Fico de ouvidos apurados, tentando escutar
qualquer última rebatida da parte dela, mas Cris fica em silêncio. Eu
me sinto a minha avó Andressina, ouvindo as brigas dos meus pais
atrás da porta.
— Ai, credo! — sussurro, fazendo um gesto esbaforido com as
mãos. Desde quando me tornei futriqueiro? Eu me levanto depressa
e vou até o banheiro. Olho no espelho e vejo o rosto de uma pessoa
futriqueira. Chega uma idade em que a gente começa a admitir
nossos defeitos. Quando eu tinha lá meus vinte anos, mentia para
mim mesmo dizendo que eu era curioso. Agora estou aqui me
arrumando depressa, porque quero assuntar e descobrir o motivo da
briga.
Sempre me achei parecido com meu pai, mas daí a ser igual a
minha avó…
Vou até a sala e vejo Pedro deitado no colo da Cris, que está
sentada no chão em frente à TV. Ela está fazendo cafuné no cabelo
dele, como se não estivessem brigando há cinco minutos. Nas raras
vezes em que brigamos, Cris ia para um canto e eu para o outro, até
que um de nós se cansava daquela palhaçada e tentava resolver o
problema.
Eu me pego dando um sorriso bobo ao comparar os dois
relacionamentos e ver que eles parecem tão certos, cada um à sua
maneira. Eu e Pedro somos diferentes — pelo menos parecemos
ser —, não tem como nossa relação com a Cris ser igual.
Sem chamar a atenção para mim, vou até o balcão da cozinha.
Quase me sirvo com o café que está na garrafa térmica, mas a
lembrança de ontem faz meu estômago doer. Então, antes de me
servir, pergunto:
— Posso beber esse café aqui ou é uma bomba?
— Seu palhaço! — Cris grita lá da sala. — Meu café é ótimo,
vocês dois que não sabem lidar com a força dele.
— Ah tá… — respondo.
— Pode beber, Henrique. Eu que fiz — Pedro diz, antes de
levar um tapa no braço. — Ai, mulher, isso dói.
Eu me sirvo e vou até eles.
— Na hora de falar mal do meu café fala, mas comprar o pó
que é bom, não compra. Nenhum dos dois, seus folgados.
— Eu faço tudo dentro dessa casa! — Pedro se defende.
— E eu nem aqui estava! — Também me defendo.
— Dois folgados! — protesta e se levanta de repente, deixando
a cabeça de Pedro bater no chão.
— Ai.
— Eu tenho trabalho para vocês — ela começa.
— Eu tô de férias! — O que essa mulher está aprontando dessa
vez?
— Henrique… — Hoje, Cris está sem paciência, porque fala
com os dentes quase trincados. — O senhor tem uma apresentação
no Prêmio da Música…
— Ah, não! — Eu me jogo no sofá.
— Você é o maior nome da noite, lindo! Achou mesmo que eles
não iam te convidar para uma apresentação?
Não achei. No entanto, não respondo. Olho para Pedro, deitado
no chão, desolado.
— Você também, né? Pedro? — pergunto para ele.
— Inventaram um tal de Artista da Década pra mim. Gente,
artista da década é a Marília Mendonça!
Não posso discordar.
— Meu filho, você é homem e branco, é óbvio que eles iam
escolher você. — Sem paciência e ácida. Do jeito que eu gosto.
Tomo um gole do meu café olhando para minha esposa. — Eu vou
lá para aquele estúdio começar a montar os mash-ups que vocês
vão apresentar. — Ela coloca o dedo no meio da testa. — Acho bom
vocês virem atrás de mim.
— Vou só tomar meu café aqui…
— Que seja! — Ela sai andando pela porta que dá para o jardim
da parte de trás da casa. Mas para e se vira para mim. — Ah, a ceia
de Natal vai ser na casa da tia Sandra.
— Vou preparar um repertório bem caipira para tocar! — digo
para provocá-la.
— Desisto de vocês dois! — Cris sai andando porta afora.
— Você brinca com fogo, hein, Henrique? — Pedro começa a
se levantar, passando a mão na parte de trás da cabeça.
— Eu? — Bebo meu café. — Você que estava enfrentando a
fera.
Ele solta uma risada.
— Cheguei aqui hoje cedo e ela já estava acordada, ligada no
duzentos e vinte. Eu sabia que ela estava armando alguma coisa.
— É sempre assim? — pergunto para ele, enquanto levo minha
caneca até a pia da cozinha.
— O quê? — Pedro se espreguiça. — Ela brava logo cedo?
— Não. As brigas. — Que ela é brava o tempo inteiro eu já sei,
quase digo.
— Ih, é bem pior.
Volto para a sala e paro na frente dele, o encarando com o
cenho franzido.
— Ah é?
— Mas é bom, sabe? Eu e a Cris chegamos à conclusão de
que oitenta por cento dos nossos problemas teriam sido resolvidos
se a gente tivesse sentado e conversado. Então, definimos que
vamos sentar e conversar sempre. O problema é que… a gente
nunca aprendeu a conversar direito. Ela é teimosa que nem uma
mula, eu também. Ela costuma guardar vários pequenos incômodos
dentro dela e soltar tudo de uma vez. Eu sou um cara calado, mas
quando começo a falar não paro mais. Aí já viu, né?
Sorrio, achando fofo ver Pedro falando tanto. Ele para um
pouco e fica me olhando.
— Já vocês dois não brigam muito, né? — continua. — Acho
bonitinha a forma como vocês… — Ele pensa um instante, depois
faz um movimento com as duas mãos, como se estivesse montando
um cubo mágico. — Como vocês se encaixam.
— É que eu sou muito pacífico.
— É engraçado como nós somos diferentes. — Ele parece feliz
ao dizer isso. — Nunca imaginei que conseguiria conversar com
você sobre a Cris sem querer te dar um soco na cara. — Pedro
suspira um instante, acho que está se preparando para jogar uma
bomba em mim. — Sabe, Henrique, sempre odiei você, porque você
era tudo o que eu não era. Eu tinha uma caixa dentro de mim onde
jogava todos os meus sentimentos, tudo o que eu queria mostrar,
tudo o que eu precisava esconder, as coisas que eu não entendia.
Você não, você parecia transbordar, sempre sorrindo, sempre com
pressa. Você costumava acelerar o ritmo das músicas... aliás, faz
isso até hoje. Eu sempre pegava música animada e transformava
em fossa.
Dou uma risada, para tentar disfarçar um pouco o olhar
admirado que com certeza estou lançando na direção dele. Esse
homem está conseguindo a raridade de me desconcertar.
— É sério, pode reparar.
— Então você e a Cris são perfeitos. Ô mulher dramática… —
digo, quase dando um tapinha nas costas dele, como os bons
camaradas que nós nem somos. Ele se aproxima de mim.
— Sempre achei que você era muito melhor pra ela do que eu.
Acho que por isso que eu tinha tanta raiva de você — admite em
uma voz grave. Acho que deveria me afastar dele, mas não me
afasto.
— No fim das contas, nós dois estamos certos.
— É… — Pedro se aproxima um pouco mais. O que ele está
fazendo me olhando desse jeito? — Fico feliz por isso.
Abro um sorriso honesto, mas sem graça, e me afasto dele,
saindo pelo jardim em direção ao estúdio.
Por um momento, me sinto um adolescente inseguro, como
quando queria tanto beijar aquela menina de pele escura e olhos
claros, que quase caí do banco da igreja ao vê-la chegar com
aquele vestido amarelo. Ou antes disso, quando a vi entrar pelo
portão da escola, segurando um violão e falando sobre Guns n’
Roses. Ou depois, quando nos beijamos no ensaio da banda da
igreja ou quando ela passou a mão no meu cabelo, como faz até
hoje, e me disse que eu precisava descobrir quem eu era.
E eu me descobri… nela.
Não sei por que me lembrei desse sentimento. É como se eu
estivesse sentindo o cheiro de coco no cabelo dela agora, aqui. Ou
o sabor do pudim que o pai da Cris me serviu quando me sentei
pela primeira vez no sofá da casa dela, tremendo feito um
condenado.
Ao mesmo tempo em que é parecido, o sentimento é diferente.
Mas por que estou sentindo isso logo agora?
Pedro me segue até o estúdio, falando alguma coisa que não
ouço. Não consigo prestar atenção em nada, enquanto minha
memória me prega uma peça dessas. Eu me sinto um adolescente
de novo, vendo Cris e sua amiga Regina sentadas no coreto da
praça, ao lado dele.
— Eu te achei bonito! — solto sem pensar.
A porta do estúdio está fechada, então eu paro na entrada.
Pedro para do meu lado.
— O quê? — Ele se vira para mim como se esperasse uma
resposta.
— A primeira vez que te vi, bem que eu te notei… eu te achei
bonito.
— Mas eu era mesmo.
Mordo a língua, porque quase digo que ele continua bonito, até
mais hoje do que naquela época.
— Só muito branco, né? — disfarço com uma verdade inegável.
Ele sorri e começa a dizer alguma coisa, mas Cris abre a porta.
— Já estava indo lá chamar vocês. — Ela olha de Pedro para
mim e dá um sorrisinho. Não sei exatamente o que essa mulher está
armando, mas está dando certo.
Entramos. O estúdio tem cheiro forte de madeira e não se
parece nada com o estúdio amador que a Cris disse que iria
construir no nosso quintal. Eu ainda não tinha visto esse cômodo,
ele é novo. O plano dela era voltar a menor quantidade de vezes
possível para Goiânia, como se a cidade fosse culpada pelas coisas
que deram errado. Mas a verdade é que Cris é a culpada pelo que
aconteceu lá, foi ela que escolheu destruir a carreira do Pedro, em
vez de ajudá-lo a se reerguer. Foi ela quem colocou a mágoa e a
vingança em primeiro lugar, o que quase nos destruiu também.
Eu sempre soube que a Cris queria se vingar do Pedro, pelo
roubo da música. Quando ela e a Regina começaram a cuidar da
carreira dele, eu tinha a esperança de que minha esposa acabasse
desistindo da ideia. Não desistiu. Quando ela vazou na imprensa os
documentos que provavam a corrupção dos empresários de Pedro,
a gota que transbordou o mar de problemas que ele já tinha, nós
brigamos feio pela primeira e única vez. Eu pensei que a Cris daria
um jeito de resolver o problema que ela havia criado, mas não. No
fim das contas, o que Pedro precisava era ficar longe daquele
mundo.
Acho que foi por isso que a Cris quis tanto fazer esse estúdio
aqui, depois que ela e o Pedro se acertaram, para trazer a melhor
parte daquele mundo para cá, para perto dele. Talvez seja esse o
jeito dela de consertar as coisas.
— Henrique? — ele me chama, encostando a mão no meu
ombro. — Tá dormindo aí? Quer um café?
— Ah… não.
— Tem certeza? — A mão dele continua sobre o meu ombro,
pousada de um jeito leve.
— Só viajei aqui na beleza desse lugar!
— Ficou mesmo lindo. Vem cá. — Pedro me puxa. Eu nem vejo
quando ele desce a mão pelo meu braço e enrosca os dedos nos
meus. Quando dou por mim, já estou sendo puxado até a mesa de
som, que não é tão completa quanto a de um estúdio profissional,
mas ainda assim é enorme. — Incrível, né? — Os olhos dele brilham
ao olhar para todos aqueles controles e botões.
— Demais! — Sorrio.
— Bom, meninos! — Cris se coloca entre nós dois. — Vamos
fazer esses arranjos?
— A gente tem escolha? — questiono.
— Não.
Capítulo VI
Demoramos um dia inteiro só para definir quais músicas
entrariam no mash-up. No meu caso, estava até fácil. Minha carreira
só foi ter algum sucesso nos últimos anos. Já Pedro precisou
escolher entre as músicas que gosta e aquelas que tocaram mais.
Ele escolheu as que mais gosta. Cris não se opôs.
A música roubada não entrou no setlist.
Minha esposa se senta do meu lado no sofá. Ela está com um
olhar perdido, cansado. Não acho que é pelo dia que tivemos. Algo
está errado.
— O que foi?
— Ah… — Ela tenta se ajeitar no meu corpo. Passo o braço em
volta dos ombros dela e a puxo mais para perto. — É que eu tenho
que ir pra Goiânia.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa?
— É que esse prêmio reacendeu as conversas sobre a gente,
temos que evitar qualquer polêmica.
Estalo a língua.
— Cris… — Respiro bem fundo e a afasto um pouco para que
ela me olhe. — Eu quero que as pessoas saibam a verdade.
— Como é?
— Eu não sou gay e não sou corno. Quero que as pessoas
saibam sobre a gente.
— E o que isso vai mudar? As pessoas vão continuar achando
o que quiserem achar.
— Mas nós não vamos estar escondendo nada de ninguém. Tô
muito velho pra ficar dentro do armário.
— Ok…
— Como assim ok?
Pedro chega todo animado na sala.
— Avisei minha mãe que vou chegar mais tarde! — Mas então
ele fecha a cara quando nota o clima estranho. Fica nos encarando,
ponderando se deve perguntar algo. — Tá tudo bem?
— Tá, sim. — Cris se levanta e segue até ele. — Eu vou ligar
pra Regina e comprar minhas passagens. Você faz o jantar, Pedro?
— pergunta, colocando a mão gentilmente sobre o peito dele, que
fica olhando para mim com uma expressão de “o que está
acontecendo?”.
— Faço, uai — responde, meio atordoado.
— Tudo bem. Me chama quando estiver pronto. — Ela dá um
beijinho no rosto dele e sai, sem me explicar o que quis dizer com
aquele “ok”.
— Eu sempre cozinho nessa casa — Pedro resmunga, sorrindo
para mim.
— Amém! Alguém precisa avisar a Cris que ela não tem talento
nenhum para cozinhar.
— Urgentemente — ele completa.
Eu o sigo até a cozinha. Esse cômodo foi uma polêmica quando
construímos a casa. Eu queria uma cozinha fechada. A Cris queria
conceito aberto. É lógico que ela venceu.
— E a sua mãe? O que está achando de você com a Cris? —
Eu me arrependo assim que faço a pergunta. Ele olha para mim de
um jeito desconfiado e abre a boca para falar algo, porém desiste.
— Minha mãe sempre gostou da Cris. — É a única coisa que
diz por muito tempo. Não sei se ele se distrai pegando as coisas
para o jantar ou se está desconfortável demais com a pergunta, mas
demora a completar. — Você deve achar estranho, né? Um homem
da minha idade ficar prestando conta das coisas que faz?
— Não acho.
Ele me lança um olhar cético.
— Não acho mesmo! — reforço, colocando os cotovelos sobre
o balcão e inclinando um pouco o meu corpo para a frente. —
Entendo que ela deve ficar preocupada depois… — Eu me
arrependo na mesma hora. — Desculpa...
— Não tem problema, Henrique. O que aconteceu, aconteceu.
E eu não tenho vergonha, pelo contrário, fico feliz por ter tido a
oportunidade de cuidar de mim. Ficar aqueles seis meses na
reabilitação foi a melhor coisa que me aconteceu, depois da Cris,
claro. E, sim. — Ele para à minha frente e escora os cotovelos sobre
o balcão, me encarando. — Eu me arrependo por ter sumido, bebido
até quase morrer e ter ido parar no hospital. É por isso mesmo que
minha mãe sabe sempre onde estou. Então não, não precisa se
desculpar por falar sobre isso. — A honestidade de Pedro me deixa
sem palavras. Ele estica o braço sobre o balcão e alcança a minha
mão. — Eu me arrependo por ter feito as pessoas sofrerem, por ter
me feito sofrer, mas foi o caminho que me trouxe até aqui e sou
grato por ele.
Ficamos em silêncio, nos encarando, porque eu não sei o que
dizer para esse homem. Quero dizer que estou feliz que ele esteja
aqui, que também sou grato, mas não consigo. As palavras se
perdem dentro de mim.
Depois de um tempo em um silêncio tão profundo que devia dar
para ouvir as batidas do meu coração acelerado, Pedro solta a
minha mão. Eu quase o puxo de volta.
Quase.
Ele se afasta e mexe nos armários. Pedro sabe perfeitamente
onde fica tudo, coisa que eu mesmo não sei. Fico observando
enquanto ele prepara a comida. Às vezes cantarola “Por Um
Minuto”, do Bruno e Marrone, às vezes batuca com os talheres sem
perceber. Depois de algum tempo, acho que ele esquece
completamente que estou aqui.
— Quer ajuda com alguma coisa? — questiono e o vejo voltar a
se dar conta da minha presença. Noto como fica desconfortável.
— Não precisa. — Sorri.
— Você se incomoda? Quero dizer: comigo aqui?
— Ah, não, você não está me atrapalhando — responde,
fazendo um gesto despreocupado com a mão.
— Não. Estou falando sobre eu estar aqui, de volta, em casa.
— Ah… — Ele alonga a vogal. Porém, não responde. Pedro
começa a cortar as folhas de couve com o cenho franzido. — Não
— diz, por fim, e me olha. — Não me incomodo. Você se incomoda
comigo aqui?
— Não, eu acho. Deveria?
— Da minha parte, não. Confesso que, no começo, eu tinha
dificuldade em entender a dinâmica do relacionamento de vocês
dois, mas hoje não tenho mais.
— Agora é o relacionamento de nós três…
Estudo a reação dele. Pedro fica me olhando, com a mesma
testa franzida de antes. Então sorri.
— É. — E abre ainda mais o sorriso e volta a cortar a couve. —
Nós três.
Sorrio também, antes de me perder tentando encaixar a minha
história na história deles. A verdade é que eu sempre estive aqui,
mesmo quando estava longe. Estive aqui antes, quando insisti para
que Cris fosse atrás de Pedro, quando todas as coisas na vida dele
se desencaixaram. E ela foi. Demorou para que eles se
entendessem, para que se perdoassem, demorou para que ele
aceitasse que precisava cuidar de si e para que ela aceitasse que
tudo bem querer cuidar dele, desde que cuidasse de si mesma
primeiro.
— E aí, tá acabando? — Cris chega à sala, toda sorridente. Às
vezes até eu tenho dificuldade em acompanhar as alterações de
humor dela, mas já me acostumei.
— Uhum. — Pedro nem olha para ela, concentrado nas
panelas.
— E Regina, como está? — pergunto, assim que ela para do
meu lado.
— Puta com o mundo.
— Ah, normal, né?
— Sempre. — Ela batuca no balcão. — E aí? O que nós vamos
fazer?
Gente, o que aconteceu com ela?
— Cris, o que…
— Uai, a gente tem que terminar Doctor Who… — Pedro se vira
e a encara, apontando a faca, com pedaços de couve agarrados na
lâmina, na nossa direção.
— Ah, não… De novo com isso? — reclamo.
— Espera… Você está reclamando de Doctor Who? — Ele me
olha, indignado, e aponta a faca para mim, depois para Cris. — Cris,
como você foi capaz de se casar com uma pessoa que reclama de
Doctor Who?
— Eu também erro. — Ela sorri para mim.
— Olha a ousadia desse garoto, nem bem chegou e já me
critica?
— Pensei que você fosse uma pessoa melhor. — Ele está
inconformado.
— Eu só não tenho paciência, é muito longo. São muitas
temporadas — eu me defendo.
— E do que esse menino gosta, Cris? — Pedro se vira e
desliga o fogo de uma das panelas.
— Grey's Anatomy — ela responde devagar, falando cada
sílaba pausadamente.
— Ah, não! Cê tá de brincadeira, né? Essa série tem umas
trezentas e vinte temporadas. — Pedro protesta, voltando a me
encarar. Ele coloca a faca sobre o balcão, pega as couves cortadas
e as joga na panela. — Cris, a gente precisa dar um jeito nisso!
— Você acha que eu não tentei?
— Ah, não, peraí. — Ele limpa as mãos em um pano de prato,
dá a volta no balcão e me puxa pelas mãos. — Você vai ver agora!
— Pedro praticamente me arrasta até a sala e me joga no sofá. Cris
nos segue e pega o controle, disposta a colocar a série e embarcar
nessa brincadeira.
— Eu já comecei a ver o primeiro episódio, mas é muito trash.
Tudo bem, gente, eu respeito o amor de vocês… — Ainda tento
escapar, mas acho que é tarde. Enquanto falo, Pedro volta para a
cozinha.
— Não deixa ele sair daí, Cris!
— Esse menino é sempre assim, Cristiellen? — pergunto para
ela.
— Não. — Ela está rindo da minha cara. — Doctor Who deixa o
Pedro um pouco…
— Fora de si?
— Eu ouvi!
— Vamos jantar primeiro, depois vemos a série — sugiro.
— Pois nós vamos jantar e assistir a série! — Ouço o barulho
dos talheres sendo organizados em um prato e estico o pescoço
para espiar o que Pedro está fazendo.
— Mas a Cris odeia que a gente coma na sala… — tento.
— Odeio nada!
Ela odeia, sim! Eu a olho, sem acreditar.
— Isso é alguma armação de vocês?
Cris responde com um sorriso.
— Não era bem esse o meu plano, mas… dá pro gasto.
— Que…
Pedro me entrega um prato, com um sorrisinho de vitória, e se
senta do meu lado. Eu o analiso. De perto, ele parece ser ainda
mais branco. Ou talvez seja o cabelo escuro demais que dá
contraste à pele. Ou talvez… Então, ele se vira para mim e me
encara. Os olhos dele são tão escuros que eu poderia ficar perdido
neles. Sinto meu coração acelerar demais e desvio o olhar para a
TV.
— Ei… Não vai pegar pra mim, não? — Cris protesta e se
levanta. — Nossa, um cavalheiro desses, bicho!
— Gente, vamos fazer assim: eu arrumo a mesa lá de fora, a
gente se senta perto da piscina e jantamos. Depois, a gente volta
pra cá e assiste essa porc… série ótima.
Pedro estreita os olhos e me encara, daquele jeito estranho que
ele faz desde que cheguei aqui. Uma vez, a Cris me disse que olhar
nos olhos de Pedro era como ver o céu em uma noite escura.
Finalmente entendi o que ela quis dizer. Quando eu era
adolescente, costumava ter problemas para dormir. Eu pensava
demais. Então, sempre que ficava acordado, eu ia para a varanda e
ficava olhando o céu. A maioria das pessoas gosta de ver as
estrelas ou a lua, mas eu não. Sempre gostei de olhar para a
escuridão, de me perder procurando nuances no céu preto.
Assim como estou perdido agora no olhar desse homem.
Pedro corta o contato visual e se levanta. Minhas mãos estão
suando. Quase deixo o prato cair quando ele para na minha frente.
— Então, vamos?
Eu me levanto e o sigo, deixando uma distância segura entre
nós para que ele não ouça a bagunça que fez dentro de mim.
E, mesmo depois de termos terminado de jantar, ainda sinto
que meu coração está batendo forte demais.
Capítulo VII
No dia seguinte, Cris viaja para Goiânia. Eu me ofereço para ir
também, mas ela não aceita, diz que prefere ir sozinha. Então fico
em casa.
Pensei que, sem Cris aqui, Pedro não apareceria.
Mas pensei errado.
Acordo todos os dias com o cheiro do café. Vejo Pedro
cuidando do jardim, sempre com uma camisa branca, mas não o
atrapalho. É muito fácil me acostumar com ele aqui, como se sua
presença fosse natural. Já é parte da rotina. Nós dois conversamos
pouco; Pedro não é um sujeito de muitas palavras. Mas, quando
abre a boca, fala rápido, solta tudo de uma vez.
Ele passa o dia inteiro aqui; chega cedo e vai cuidar do jardim,
depois toma um banho e some para o quarto dele ou para o estúdio.
Sempre aparece antes do almoço, prepara a comida e almoçamos
juntos, vendo alguns episódios de Doctor Who (porque não tenho
escolha). Às vezes, enquanto prepara a comida, nós conversamos
(eu falando mais do que ele, quase sempre). Pedro me conta sobre
os mais de dez anos de carreira, falamos mal de alguns desafetos
em comum e sobre as manias da Cris, e ele me ensina coisas legais
sobre plantas.
Só percebo o quanto estou acostumado com sua presença
quando acordo no quinto dia sem Cris e não sinto o cheiro do café.
Eu me levanto, incomodado, sem entender por que estou me
sentindo tão vazio. Perambulo pela casa, procurando o que tem de
diferente. Vou até o jardim, Pedro não está lá. Olho no relógio, são
dez da manhã. Ele já deveria ter chegado. Será que aconteceu
alguma coisa? Penso em ligar para ele e perguntar, mas percebo
que não sei seu número.
Fiquei dias com um cara praticamente morando na minha casa
e não sei nada sobre ele.
Ligo para Cris, e ela me avisa que Pedro tinha outras coisas
para fazer e me pediu para regar as plantas. Ela encaminha para
mim uma lista de instruções, que eu sigo sem reclamar. Jogo água
no jardim, o estranho vazio ainda me acompanhando, como se
estivesse faltando uma peça no meu quebra-cabeças. Não consigo
compreender por que estou sentindo saudade de alguém que nem
conheço direito.
Mas eu o conheço, percebo de repente.
Posso não saber todas as curvas da história de Pedro, mas sei
quem ele é.
Sei que Pedro dorme em casa porque a mãe fica preocupada,
com medo de ele estar em algum lugar, bebendo de novo. Sei que
ele é alcoólatra e que está limpo há um ano. Sei que vai aos
alcoólicos anônimos todas as quintas. Sei que chega mais tarde nas
sextas e que, às vezes, não lembra se colocou açúcar no café,
então joga tudo fora e faz de novo, xingando baixinho e mordendo
os lábios, algumas vezes com força demais. Ele sempre faz isso
quando algo o chateia ou quando fica nervoso. Sei que ele repete
algumas frases de Doctor Who sem perceber e que canta alto
demais algumas músicas da Marília Mendonça. Sei que ele sabe de
cor a letra inteira de “Estranged” e que faz todos os solos famosos
do Guns n’ Roses no violão. Sei que sempre pula Bruno e Marrone
nas playlists, mas, de vez em quando, canta baixinho “Por Um
Minuto” enquanto mexe no jardim.
Está quase na hora do almoço quando Pedro aparece.
Ele abre o portão lá de fora e sobe, mas, quando chega à porta,
toca a campainha. Sei que ele tem a chave, mas não a usou desde
que Cris viajou. Vou até a porta, um pouco depressa demais e a
abro.
— Oi — eu o cumprimento.
Pedro está com as mãos cheias de sacolas.
— Demorei hoje porque fiz umas compras. — Ele as ergue no
ar. — Não tinha quase nada nessa casa.
— Ah... — Quase suspiro. Então era isso? Meu coração dá um
pulo tão desesperado que sinto meu rosto enrubescer. Não é
possível que eu esteja nesse nível de paixonite. Para evitar que meu
corpo entregue coisas que eu não quero que entregue, pego as
sacolas das mãos de Pedro e as levo até o balcão.
Ele sorri enquanto me mostra o que trouxe, e retribuo o sorriso
sem conseguir controlar.
É possível, sim.
— Eu trouxe muita pipoca pra gente terminar de ver Doctor
Who. — Ele está animado. — Mas, antes, vou fazer o almoço. Você
está com fome?
— Uhum — respondo, um pouco distraído. Na verdade, quero
perguntar o motivo de ele parecer tão eufórico. Em vez disso,
informo: — Eu reguei as plantas.
— Ah, a Cris te avisou? — Ele mexe nas sacolas, sem olhar
para mim.
— Seria mais fácil se eu tivesse o seu telefone, e você, o meu.
— Por que estou tão ansioso? É só um telefone.
Pedro me olha daquele jeito esquisito. Ainda não consigo lidar
com os olhos dele, não consigo lidar com essa testa franzida. Ele
parece me analisar, parece esperar algo de mim. Mas o quê?
— Verdade. — Ele tira o celular do bolso de trás da calça e me
entrega. — Coloca seu número aí.
Pego o aparelho e, antes de salvar meu contato, observo as
notificações que chegam. São mensagens da Cris. Não quero me
intrometer nas conversas deles, então devolvo o celular.
— Será que a Cris não vai voltar, não? — pergunta, assim que
olha as mensagens na tela.
— Tá demorando, né? Mas ela deve vir para a ceia de Natal.
Ou talvez ela esteja é fugindo dessa ceia de Natal…
— Ela deveria estar aqui. Você finalmente voltou pra casa.
Acredita que ela ficou meses reclamando? Às vezes, a Cris passava
o dia inteiro andando meio perdida pela casa.
— Ah, é? — Sorrio. — Não se preocupa, vou ficar de férias por
muito tempo ainda.
— Eu me acostumei com ela aqui, sei lá... — Pedro estala a
língua.
— E eu estou me reacostumando a estar de volta. Mas eu sinto
falta dela também, só não acho muito justo cobrar que ela fique aqui
o tempo todo, sendo que eu não fiquei. Nessa nossa vida, a gente
precisa se acostumar com a falta.
— Nossa, isso aí daria uma música bem triste.
— Vou anotar! — Pego meu celular e digito a frase no bloco de
notas. Fico um tempo lendo as coisas que anotei ali nos últimos
meses, ideias de músicas, trechos. Quase todos são sobre ela. —
Ai, quer saber? Vou falar pra essa mulher voltar logo!
Pedro ri, indo até a geladeira e guardando as compras. Mando
uma mensagem para Cris.
Volta logo, Cristiellen!
E acrescento:
Antes que eu me apaixone pelo seu namorado.
Ela responde na mesma hora, com uma palavra que me
desconcerta.
Mais?
Fico observando em silêncio enquanto Pedro separa e prepara
a comida, sem saber o que dizer. Quero conversar, falar alguma
coisa, qualquer coisa, só para ouvir sua voz.
Estou lascado!
Preciso puxar assunto, porque se ficar pensando demais, posso
acabar fazendo alguma besteira.
— Pedro... Como é ficar fora dos palcos por tanto tempo? —
pergunto a primeira coisa que vem à minha cabeça.
— Libertador... mas, ao mesmo tempo, sei lá, estranho. Sinto
um vazio. Eu sinto falta dos meus fãs, de gravar, de cantar.
— É por isso que você vai voltar?
— Não, não vou voltar. Só vou sinalizar minha volta lá no
Prêmio da Música Sertaneja. Pelo menos foi o que a Cris disse. Eu
devo ficar algum tempo longe desse mundo ainda. Ainda preciso me
recuperar, não estou pronto para lidar com tanta pressão, sabe? —
Ele morde os lábios com força.
— Por que você faz isso?
— Faço o quê?
— Morde os lábios.
Pedro arregala os olhos, surpreso. Acho que não estava
esperando por essa pergunta. Por um instante, ao perceber a
expressão que ele faz, eu me sinto mal, como se algo se revirasse
dentro de mim. Ele junta as sobrancelhas, antes de olhar para mim.
— Acho que é porque não posso beber. Aí eu mordo os lábios
como se isso fosse segurar a minha vontade.
— Ah… — Engulo em seco. Não deveria tocar nesse assunto,
mas sou muito curioso e estou ainda mais curioso para saber como
ele se sente. Quero entendê-lo. — É difícil demais, né?
Ele para, coloca as mãos sobre o balcão e me encara.
— É a coisa mais difícil que já tive que fazer.
Pego as mãos dele porque é a coisa certa a se fazer, porque
preciso tocar esse homem.
— Mas você consegue.
Os dedos dele respondem ao meu toque e se enlaçam nos
meus. Sinto meu coração parar por um segundo. Sinto vontade de
soltar as mãos de Pedro, dar a volta no balcão e…
— Ai, deixa eu terminar isso aqui. — Ele me solta, piscando
algumas vezes antes de se afastar.
Pego meu celular, que coloquei sobre o balcão, e respondo a
mensagem de Cris.
Eu tô MUITO lascado!
Ah, é?
Consegui cartolinas.
Ok.
Também quero ver alguns episódios da sua série para confirmar
meu crush.
Crush em quem?
Em você!
Na Rosa, lógico!
Capítulo VI
Dia 11
Uma tosse ecoa pelo ar, depois tudo volta a ficar silencioso. As
pessoas lá embaixo andam pelas ruas como sempre andaram. Elas
se encontram, se abraçam, conversam, se beijam. Tudo está
normalmente caótico. Mas daqui não posso ouvir o caos. Estou
deitada com as costas no chão frio do quarto, Erick está do meu
lado, desenhando flores simples e infantis na minha mão com uma
caneta azul. Ele beija meu ombro e diz que tudo vai ficar bem. Eu
me viro de lado e encosto minha testa na dele, puxo seu lábio
inferior de leve com os meus dentes e… o som de algo caindo no
chão me acorda.
Puta que pariu.
A bissexual não tem um dia de paz nessa quarentena.
— Droga! — Erick xinga alto no quarto ao lado do meu.
— Tá tudo bem aí? — Coloco o rosto para fora da janela.
— Deixei o violão cair. Eu te acordei?
— Uhum, mas não tem problema. — Volto para dentro do
quarto e pego o celular, mandando um áudio para ele, enquanto
sento na minha cama: — O que nós vamos ver hoje?
Qual?
Vamos.
Vou pensar no seu caso. Mas só vou fazer isso depois que o
Marcelo sair pro trabalho. Ele me viu colocando torta na sua porta
antes de ontem e não para de me sacanear desde então. Ele quase
contou pros meus pais, aquele linguarudo!
Não sei por qual milagre, mas não acordo gritando. Levo as
mãos ao peito e aperto forte, na tentativa de fazer aquela angústia
esquisita passar.
Demoro a me levantar. Mas faço isso porque hoje é dia de fazer
compras para o meu avô e para os outros idosos do prédio. Às
vezes, como hoje, me pergunto onde eu estava com a cabeça
quando me voluntariei para essa tarefa.
Meu avô já está a todo vapor fazendo seus exercícios na sala,
sobre um tapete de ginástica. Faço meu caminho até o banheiro,
mas ele me nota antes que eu chegue lá.
— Bom dia! Dormiu comigo por um acaso?
Reviro os olhos e paro.
— Bom dia, vô. — Ignoro a piadinha. — A lista tá pronta?
— Tá, sim. Já coloquei em cima da mesa, junto com o cartão.
— Não esqueceu nada dessa vez, né? — Semana passada ele
não colocou leite na lista, e eu tive que sair de casa num dia não
planejado só para comprar o bendito. Meu avô não conseguia viver
sem seu café com leite.
— Conferi cinco vezes. — Ele para o movimento que está
fazendo e me encara com seus olhos escuros, franzindo o cenho
enrugado. — Cê tá bem?
— Tô… com sono só.
Ele continua me olhando por um tempo, desconfiado, depois
volta para o exercício. Penso em comentar sobre o pesadelo que
tive, mas desisto e vou caminhando em direção ao banheiro. Não
sei se ele vai entender.
Meu avô não me conhece muito bem. Fui criada em outra
cidade e, quando minha avó ainda era viva, costumávamos visitá-los
mais. Desde que ela morreu e meu avô se mudou para este
apartamento, vim muito pouco aqui. Eu sempre tinha uma desculpa:
um evento da igreja, uma viagem da escola, uma apresentação da
banda. E sei que, depois que tudo isso passar, essa pandemia e
esse isolamento, terei ainda menos tempo de vir.
Queria poder dizer que aceitei vir passar esse período aqui por
ser uma pessoa boa e querer ficar mais tempo com meu avô. Mas a
verdade é que vim porque não aguentaria ficar presa em casa com
a minha mãe. Eu conseguiria até suportar a gritaria dos meus
irmãos e o vício do meu pai por partidas de futebol antigas. Ela, no
entanto…
— Não vai colocar nada pra você na lista? — meu avô grita lá
da sala com sua voz grave.
— Vou não, vô! — Abro o armarinho do banheiro e pego minha
escova e a pasta de dentes. Toda vez é assim, meu avô sempre
pergunta se quero algo, eu sempre respondo que não. Às vezes,
trago uma balinha de hortelã que adoro, quando me lembro.
Termino de me arrumar (se é que posso dizer que ajeitar esse
cabelo de qualquer jeito e colocar essa máscara preta que não me
deixa respirar é me arrumar) e pego minha bolsa.
Meu avô continua fazendo os exercícios. Agora, ele está
sentado no tapete verde escuro, esticando os braços e deixando a
coluna ereta. Sinto meus ossos rangerem só de olhar. Eu deveria
fazer companhia para ele nos dias em que não vou ao
supermercado, mas sou sedentária demais para sequer cogitar isso.
— Come alguma coisa antes de sair, menina. Saco vazio não
para em pé.
— Ah, tô sem fome.
— Se você desmaiar na rua, sua mãe me mata.
Essa é a preocupação dele?
— Realmente tô de boa. — Pego a lista e o cartão que estão
sobre a mesa. — Vou e volto rapidinho.
Dobro o papel e o coloco em um compartimento específico
dentro da bolsa. Não gosto de misturar as listas. Minha organização
é confusa demais para qualquer um que tente me entender. Mas faz
sentido para mim, e isso me basta.
Passo em frente às portas dos outros dois idosos do prédio que
me prontifiquei a ajudar, pego as listas que deixam coladas ali toda
terça-feira de manhã, e vou ao supermercado.
Enquanto observo a moça do caixa passar as compras, que
separei na ordem certa, colo post-its de cores diferentes nas
sacolas: azul para o meu avô, laranja para a pessoa do 13b, e verde
para a pessoa do 21b.
A caixa tem dificuldade em passar um pote grande de vidro,
cheio de azeitonas. Parece que o código está errado. Respiro fundo,
encarando o vidro sobre o balcão metálico enquanto a moça chama
a supervisora para resolver o problema. Aquele pote maldito de
azeitonas e o sonho que tive fazem meus olhos encherem de água.
Puxo o celular do bolso e abro o aplicativo de mensagens. O
nome está lá, mas nada de foto, nada de respostas desde março de
2020. As últimas mensagens, enviadas por mim, meses atrás, não
são pedidos de desculpas.
Começo a digitar uma nova.
Ah, sinto muito pela sua esposa. Saudade não dá para traduzir
e não dá para explicar, não é? Sinto uma gratidão enorme pelas
pessoas que passaram pela minha vida, mas elas já foram.
Infelizmente, hoje vivo só. E tenho meus momentos de me sentir
exatamente assim como você: alguém que viu todo mundo ir
embora. É difícil estar longe dos meus. E agora, nessa quarentena,
tem ficado insuportável. Foi muito bom encontrar você. Com esses
bilhetes, a solidão me deixa um pouquinho.
Rosimar.
— Pra mim é isso o que mais importa, Cecília. Ter alguém que
preencha, ao menos um pouquinho, o meu vazio. E que eu seja
alguém que preencha o vazio dessa pessoa também. Ter com quem
conversar, falar sobre coisas que só a gente entende. Vocês, jovens,
talvez não consigam entender a falta que isso faz, com esses
celulares que tocam toda hora com uma mensagem nova…
Eu suspiro, compreendendo como meu avô nem imagina.
Como dizer a ele que receber um milhão de mensagens não afasta
a solidão?
Talvez eu seja mais parecida com meu avô do que ele pensa.
E talvez eu devesse tentar conversar com Gio uma última vez.
— Sabe, vô, o senhor tem razão! Tem gente que se importa
com gênero, com tipos de corpo, com sei lá mais o quê, e tá tudo
bem, né? As pessoas são diferentes, veem o mundo de jeitos
diferentes. Mas, assim como o senhor, eu não ligo muito pra essas
coisas, não.
Ele sorri, meio de canto.
Eu me levanto, encerrando o assunto. Quero mandar logo a
mensagem para Gio antes que eu me arrependa e esse impulso
passe.
Deito na minha cama e vejo que tem tanta notificação no meu
celular que eu, sinceramente, penso em jogá-lo pela janela. No
entanto, abro direto o aplicativo de mensagens, ignoro todas as
outras vinte e três conversas pendentes (tudo isso em menos de
uma hora longe do celular) e clico na conversa com Gio. Penso em
mandar algo curto e eficaz, mas, quando vejo, já digitei um textão.
Quando vim morar com meu avô, havia três coisas que eu não
sabia: que a quarentena duraria tanto, que seu Mário é bissexual e
que é possível virar a noite conversando com uma pessoa sobre
vários nadas.
Se eu soubesse que a conversa terminaria com Ciano dizendo
que está apaixonado por outra pessoa, talvez eu nem tivesse
respondido a DM dele em primeiro lugar. Foi um balde de água
gelada no meio da cara e não passo bem. Desde o meu último
namoro — que deu completamente errado —, jurei que não seria
trouxa. Fui trouxa.
Mas, ok, né? É só um crush de internet.
Durmo repetindo esse mantra. Parece até uma maldição, tenho
outro pesadelo. Dessa vez, estou em uma casa com três quartos.
Todos vazios. No maior, há uma garota, que nunca vi na vida, mas
que me parece estranhamente familiar, sentada em um canto. Ela
cobre o rosto com os braços e apoia o queixo nos joelhos. Acho que
está chorando, então me aproximo lentamente. Não quero assustá-
la. O que não adianta, porque alguém grita meu nome e a voz corta
o ar fazendo com que eu e moça nos sobressaltemos.
Acordo em um pulo.
— Cecília! — Meu avô está batendo na porta. — Cecília, você
esqueceu que hoje é dia de fazer as compras?
Resmungo e passo a mão pelo rosto.
— Que horas são? — Até quero me levantar, mas não tanto
assim.
— Já são onze.
— Nossa senhora, vô! — Eu pulo da cama, em um misto de
sonolência e alerta. Indisposta sim, mas pronta para sair correndo.
— Desculpa. Já tô indo.
— Tá bom. — A voz dele vai se afastando. — Fiz café.
Eu me arrumo depressa, visto qualquer coisa, escovo os dentes
de qualquer maneira e mal lavo o rosto.
— Come alguma coisa antes de sair, Cecília — meu avô alerta.
Sinto o cheiro de cebola no óleo e meu estômago ronca.
— Vou rapidão e já volto — digo, afobada, pegando a lista e a
carta sobre a mesa, colocando-as na bolsa e ajeitando a máscara
do jeito correto no rosto. Não consigo desacelerar. Pego as listas
dos vizinhos e deixo a carta que meu avô escreveu para Rosimar.
Vou praticamente correndo até o supermercado. Ainda estou
ligeiramente sobressaltada enquanto faço as compras, mas tento
me focar para não me confundir de novo. Vai que, sei lá, viro garota
de recados do prédio inteiro. Já estou desconfiada que meus
vizinhos de cima estão namorando, cada um da sua janela.
Aff, que coisa ridícula!
Reviro os olhos para o vidro de azeitonas que coloco no
carrinho.
Reviro os olhos para o leite. Para o café. Para o arroz. Para as
maçãs.
Quase puxo o celular para pesquisar: meu crush tem um crush
e não sou eu, o que fazer? Mas desisto. Não cheguei a esse ponto.
Tem treze mensagens não lidas de Ciano no meu celular. Queria ter
aquela força que a Cecília ideal teria para ignorá-las, apesar de
saber que não é culpa dele que eu tenha criado expectativas
completamente irreais durante nossas conversas. Como sou fraca,
paro ali mesmo, no meio do supermercado, e leio as mensagens.
Sorrio, lógico, mas deixo para responder só quando estiver em casa.
Termino de colocar as compras no carrinho, separando-as para
que eu não faça confusão. Antes de ir para o caixa, confiro lista por
lista, produto por produto. Presto o dobro de atenção enquanto
etiqueto as sacolas com meus post-its coloridos.
— Cê tá bem hoje, moça?
Noto que estou balançando a perna, inquieta.
— Tô sim. — Sorrio para ela, mas por trás da máscara. Não sei
se ela percebe meu sorriso, mas não insiste e volta a me ajudar a
embalar as compras.
Na última vez que me perguntou se eu estava bem, confundi as
sacolas. Então volto a conferir tudo, mais uma vez. A moça não fala
nada. Guardo os três comprovantes em suas respectivas bolsas e
vou embora.
Hoje, as sacolas estão um pouco mais pesadas que o costume.
Ou sou eu que estou mais fraca. Não deveria ter virado a noite
conversando na internet com o contatinho. Infelizmente, não dá para
voltar no tempo.
Ou dá?
Uma sensação estranha passa por mim. É como se eu já
tivesse vivido esse momento.
As sacolas deixam marcas vermelhas nos meus braços e mãos.
Tento caminhar mais rápido para chegar logo ao prédio. Meu peito
dói pela falta de ar, a respiração comprometida pela máscara e pelo
afobamento. Talvez minha pressão esteja caindo. Se eu desmaiar
na rua, minha mãe vai me matar. Olho em volta e me sinto boba por
ser praticamente a única a seguir as recomendações da
Organização Mundial da Saúde. A quarentena parece ter acabado
para todo mundo. O problema é que o vírus ainda está por aí, mais
disseminado que nunca. Tenho vontade de gritar com todo mundo
que vamos todos morrer.
O som agudo de uma buzina machuca meus ouvidos. Um carro
passa depressa por mim e freia de repente. No susto, dou um passo
para longe da rua. Uma das sacolas quase caí no chão, mas
consigo segurá-la bem no momento em que meu celular começa a
apitar descontroladamente no bolso. Meu coração martela dentro de
mim quando olho para trás, esperando ver aquele carro atropelar
alguém.
Mas não há ninguém ali para se atropelar.
Ninguém vem correndo no meio da rua, gritando meu nome.
Me vejo obrigada a escorar as costas na porta de uma das
poucas lojas fechadas da rua. Respiro fundo, coloco algumas
sacolas no chão e espero o caos dentro de mim se dissolver ou,
pelo menos, diminuir um pouco. Tenho medo de passar mal na
calçada. Seria um desastre.
Um senhor (que não deveria estar na rua) me oferece ajuda,
mas dispenso, com educação. Já estou melhor, então pego minhas
sacolas e sigo até o prédio.
Coloco as compras na frente da porta do 13b. A carta de três
folhas que meu avô escreveu (e eu nem tive tempo de ler) não está
mais lá. Em seu lugar, há uma folha solitária, dobrada com cuidado.
Eu a pego, toco a campainha e começo a me afastar, mas paro no
meio do caminho quando meu celular vibra de novo no bolso. Tenho
quase certeza de que é Ciano falando do crush. Reviro os olhos
antes de abrir o aplicativo e meu corpo pesa tanto que quase me
sento no chão. Tem várias mensagens de Ciano, sim. Mas é outra
que faz meu coração entrar em desespero.
Abro, sem pensar muito no que estou fazendo.
Eu ouvi algo. Sei que ouvi. Tem alguém do outro lado da parede.
Mas não tenho muito tempo, preciso tentar seguir a voz que parece
estar na minha cabeça. Tenho que sair daqui depressa. Eles estão
atrás de mim. Não tenho como me esconder nessa cidade
fantasma. Preciso de ajuda.
Por favor, alguém me ajuda!
Capítulo 7
Emma
Oi, Juan, boa noite. Aqui é a Cris. Sua amiga Liliane me pediu
ajuda para organizar um encontro entre você e o João Vinícius.
Você está disponível no dia 26/10? Aguardo sua resposta o mais
rápido possível para agilizar isso.
Não sei o que ela pensa que está fazendo, mas não tenho mais
energia nem cabeça para ficar nervoso com isso. Vou tomar meu
banho e dormir, porque amanhã o dia vai ser longo.
Acordo vinte minutos antes da equipe de João Vinícius entrar
em contato e dizer que está mandando meu ingresso por e-mail.
Área VIP. Depois do show, que está marcado para as 22h, vou me
encontrar com ele. Tento não ficar mais ansioso do que já estou.
Checo a passagem para Belo Horizonte pela décima vez. O ônibus
sai às 15h. A gravação do vídeo está marcada para logo depois do
almoço. Se tudo der certo, consigo acompanhar ao menos o
começo.
Quando chego ao estúdio de Paulo, a equipe da TV e os
músicos já organizaram quase tudo. Paulo está sentado em um sofá
vermelho, com um violão preto sobre o colo. Lili está sentada no
chão, na frente dele, com um caderno na mão. O resto da banda
está arrumando os instrumentos, enquanto o pessoal da TV
organiza os ângulos das câmeras e a iluminação.
Eu os cumprimento, tentando não fixar meu olhar em Lili. O que
é bem difícil. Desvio o olhar para o resto do estúdio, tudo é muito
bem organizado, com paredes chumbo, piso de madeira e tapetes
vermelhos com detalhes em dourado no chão.
Ela olha para mim e desvia o olhar rápido.
— Estamos revendo alguns detalhes da letra! — Está toda
sorridente. Dá para ver de longe o quanto ama isso.
— Posso ajudar com alguma coisa? — ofereço.
— Não — diz, ainda sem olhar para mim. — Você vai acabar se
atrasando.
— Vou nada! — Eu me sento no sofá ao lado de Paulo, que me
dá dois tapinhas na perna. — Tudo certo por aqui então? —
pergunto para ele.
— Essa menina é ótima, Juan! Não teremos problema nenhum.
Pode ficar tranquilo! — Ele está encantado.
— Eu te falei que ela era!
Lili fecha o caderno e me olha.
— Pensei que você não tivesse nada com isso… Que tinha sido
coisa do Robertinho.
— Bem…
— O Robertinho nos apresentou, mas o Juan ficou horas me
falando o quanto você é maravilhosa. — Paulo interfere. — No final
das contas, nem precisava! — Ele solta uma gargalhada.
Eu até riria junto, mas estou muito nervoso.
— Viu? Não menti. Não tive absolutamente nenhuma
interferência…
— Mesmo que tivesse, eu jamais te daria esse crédito! — Ela ri
também.
— Lili? — Um dos músicos chama por ela, que se levanta em
seguida e vai até onde eles estão.
— Vamos passar a música? — ela pergunta. — Tudo certinho?
— Acho que sim!
Paulo se levanta e vai até um painel enorme, cheio de botões e
luzes. Já vi vários desses em clipes e vídeos. Mas nunca tinha visto
pessoalmente.
— Vamos passar o som, ok? Com a música do vídeo mesmo,
pode ser?
— Pode! — Lili olha para mim por um instante, mas desvia o
olhar depressa para o caderno que está segurando.
Então eles começam a música.
E eu percebo que estou sobrando aqui. Por isso, vou embora.
Faixa 10 - Me apaixonei
Lili
Quando vi os teus lindos olhos brilhando
Em outra direção olhando
E eu não existia pra você
- César Menotti e Fabiano
Eu estou caindo.
Retórica e literalmente falando.
Vou parar no chão como uma manga madura, assim que saio
da biblioteca atrás de Mirela, e no caminho levo um garoto estranho
comigo. Meu coração, que já estava acelerado, acelera ainda mais.
Se esse fosse um livro do H. B. Sobrinho, esse seria o início de
uma linda história de amor, mas infelizmente é a vida real.
— Ei, você não olha por onde anda? — grita em meu ouvido.
— Essa frase meio que vai ser minha bio da lápide —
resmungo. — Desculpa aí!
Eu me levanto e saio apressado antes que ele diga mais
alguma coisa.
Passo rapidamente na sala para pegar minha mochila e saio da
escola pensando em três coisas: o encontro do Mariano Madeira; o
fato de que fiquei mais de cinco minutos em uma roda de conversa
com Mirela; e que, naquele momento, eu não consegui pensar em
outra coisa além do ocorrido que a tornou famosa na escola antes
mesmo de seu canal ser criado no YouTube.
Mas não quero focar no terceiro pensamento agora, então o
empurro para debaixo do tapete e sigo para casa, refletindo sobre o
encontro e sobre o quão maravilhoso pode ser se conseguirmos ir
juntos. Tudo bem que isso significaria ter que passar um tempinho
com a fofoqueira da Ana Cecília, mas não pode ser tão ruim. Se ela
gosta dos livros do Mariano, é porque tem bom caráter, não é?
Minha mãe tem duas regras supremas para mim e meu irmão:
nunca brigar com ninguém sem motivo e nunca pedir qualquer tipo
de ajuda para qualquer pessoa da família do meu pai.
Agora já posso dizer que quebrei as duas — embora a primeira
não tenha sido tão intencional e, bem, não foi eu quem brigou, mas
eu estava lá e era o motivo da briga. Eu, porém, tinha plena
consciência da regra que estava quebrando quando resolvi falar
com meus avós paternos. O fato é que, quando concordamos com o
plano do empréstimo forçado do carro, tive que dar um jeito de
arrumar dinheiro. E, como minha mãe não pôde ajudar, eu tive que ir
baixar no único outro grupo de pessoas ligadas a mim pelo DNA.
— Você fez o quê? — mamãe pergunta quando eu conto que
estou indo para Santa Clara e onde arrumei o dinheiro para pagar
os lanches da viagem.
A história dos meus pais é simples: minha mãe engravidou e
meu pai disse que não queria ter filhos, aí ela decidiu que não iria
brigar e nos criou sozinha. Mas a família do meu pai às vezes finge
que se importa conosco e aparece raramente para tentar opinar na
educação que nossa mãe nos dá.
— Desculpa, eu estava desesperado. — Tento usar a tática de
Mirela.
— Garoto, você vai ficar desesperado depois que eu te deixar
com as costas quentes — ela grita.
Eu me seguro para não soltar um risinho; imaginar minha mãe
me batendo me faz pensar que ela está prestes a deixar “as marcas
de dona Joana em mim”, mas me seguro para não deixá-la mais
estressada.
Ela está sentada em nosso sofá velho. Na TV, está passando
uma propaganda do Me Ajuda, Lucimar, que minha mãe sempre
assiste aos sábados. Eu me ajoelho à sua frente e seguro suas
mãos.
— Mãezinha, me perdoa, sério mesmo. — Forço tanto para
fazer meus olhos lacrimejarem que minha visão fica meio
embaçada. — Mas deixa pra me colocar de castigo depois. É o
Mariano Madeira! A senhora sabe que sou doido pelos livros dele.
— Você não tá merecendo nenhum acordo. — Ela faz um bico
com os lábios.
— Eu sei, sério mesmo, sei muito. Sei tanto que pareço até um
homem branco explicando as coisas. Mas eu nunca mais terei uma
oportunidade dessas… — Faço uma pausa. — Ainda mais com a
Mirela.
Ela me encara e um sorrisinho se abre em seus lábios.
— Então não era mentira que você ia se encontrar com ela?
Minha mãe ama a Mirela, principalmente por causa do que
aconteceu — e eu também já posso ter deixado escapar que tenho
uma paixonite por ela. Dona Joana é a maior shipper de Mirelipe!
— Não era… a gente só não ia fazer trabalho.
Ela se mexe no sofá, fingindo estar com raiva, mas não
consegue segurar o sorriso.
— Tudo bem, mas depois eu vou te dar um castigo que vai
durar até você se casar com a Mirela!
Dou um pulo, animado.
— Muito obrigado mesmo, dona Joana, mas não precisa
exagerar!
E saio correndo sem explicar se estou falando que ela exagerou
sobre o castigo ou sobre eu me casar com a Mirela.
Eu odeio andar.
Sério! Eu poderia dançar por seis horas seguidas ou ficar de pé
por vinte horas em uma prova de resistência do BBB. Mas andar
não é para mim.
Não sei como entrei nessa furada. Mas, já que estou aqui,
vamos seguir em frente. Não estamos longe da cidade em si e logo
chegaremos a algum ponto de ônibus que nos leve até o centro.
Não sei direito como estou me sentindo na companhia de uma
mentirosa e um ingrato. E não aguento mais não colocar para fora o
que está me incomodando. Ana e, principalmente, Felipe têm que
me ouvir. O problema é que me falta a coragem de falar e correr o
risco de perder as primeiras pessoas com as quais me encaixo
desde que escolhi Mirela como nome. Isso, claro, com exceção da
minha mãe.
Ah, e sobre ela, há duas coisas que é preciso saber. Sim, sobre
a minha mãe:
1- Ela é uma das maiores futriqueiras da cidade. Sem mentira!
Dessas exageradas, mas que nunca inventam coisas. Para ter uma
ideia, segundo ela, a menina que mora no fim da cidade tem
superpoderes. E, por mais incrível que isso possa parecer, eu
acredito nela.
2- Minha mãe é a manicure da dona Graça, tia da Ana.
Ou seja, sabe tudo da vida da mulher. Não vou mentir, uso as
informações de bom grado para bolar meu plano de me aproximar
da filha dela, a maior produtora e empresária musical do Brasil (na
minha opinião). Mas, quando eu disse para dona Izabel que viajaria
com Ana, minha mãe torceu o rosto em uma expressão bem feia.
— Essa garota é estranha — declarou. — A tia dela me contou
que ela só dava dor de cabeça lá em São Paulo e por isso trouxe a
menina para cá.
— A Ana é legal, mãe! — Fiz pouco caso da observação,
porque minha mãe sempre exagera muito. — Até se ofereceu de
levar a gente, antes do Alex topar. — Obviamente escondi a parte
do roubo do carro.
E eis que minha mãe disse:
— Levar como, se ela é menor de idade?
Agora estou aqui, caminhando lado a lado com Ana no canteiro
central dessa rodovia, esperando o momento em que ela vai contar
que mentiu.
Já de Felipe, não espero nada.
Não vou confrontar nenhum dos dois. Só posso me
responsabilizar por aquilo que eu faço. As atitudes, mentiras e
silêncios deles, são responsabilidades deles.
Minha psicóloga ficaria feliz de ouvir esse meu pensamento.
Mas eu só uso minhas sessões para reclamar, chorar e falar mal
dos transfóbicos que olham torto para mim na rua.
O violão pesa, e estou completamente sem jeito de carregá-lo
nas mãos. Que ideia boa não trazer a bolsa dele…
Com uma expressão bem chateada e mal-humorada, olho para
Ana, mas ela me devolve um sorriso tão bonito que me desarma.
Que saco! Esse jeitinho animado, mas esse olhar que esconde
alguma coisa. Algo muito mais profundo que uma idade alterada. De
alguma forma, esse olhar me reflete e me completa. Acho que nós
três sabemos o que é não ter amigos. Mas Ana parece ainda mais
solitária. Parece um pontinho no meio de uma folha branca, longe
de tudo, afastada.
Esse olhar… me incomoda.
Então desvio dele, sentindo a mão que segura a caixa do violão
suar e o instrumento escorregar um pouco. Olho para Felipe. Eu me
lembro de quando nós dois tínhamos o mesmo tamanho, lá na
quarta série. Acho que nunca mais cresci. Já ele, ficou alto.
Eu odiava as amigas dele. Ele detestava as minhas. Mas nós,
secretamente, dividíamos o lanche durante as aulas de educação
física, das quais sempre fugimos. Os meninos jogavam a bola de
futebol em nós e nos chamavam de "viados", o que eu odiava, e
"namorados", o que fazia meu coração de criança acelerar.
E meu coração acelerou por Felipe por muito, muito tempo.
Até o dia em que ele o feriu.
— Aquilo lá é um ônibus? — Ana aponta para um ponto
amarelo distante na via.
— Não faço ideia! — respondo, tentando enxergar mais do que
sou capaz.
— Acho que não é — Felipe responde, desanimado. — É bem
capaz de o Alex conseguir trocar o pneu antes de a gente achar um
ônibus nessa cid…
Ele para, porque fica mais que óbvio que o pontinho amarelo é
mesmo um ônibus.
— Ai, meu deus, onde será que é o ponto? — Ele começa a
correr, com os braços balançando desengonçados nas laterais do
corpo.
— Não corre, Felipe! — Ana grita, de um jeito sério e alto. —
Para. Você é preto!
Olho para ela, assustada. O olhar de Ana é puro terror. Parece
que já viu mais coisas do que deveria ser aceito uma adolescente
ver. Acho que o menino também se assusta um pouco, pois para e
se vira para nos encarar. Eu demoro mais que ele para perceber o
que ela quer dizer.
— Eu não entendo… — solto, quase sem querer. Eu não queria
confrontar ninguém, só queria chegar em paz ao lançamento. Mas
não aguento mais ficar calada. Essa é que é a verdade. — Você
está preocupada com um garoto negro correndo em plena luz do dia
no meio da rua, mas não estava preocupada em uma menor de
idade, negra, sem carteira de motorista, dirigindo um carro
roubado… Qual a sua lógica?
— Emprestado. A gente ia pegar emprestado.
— Menor. De. Idade. — Aponto o braço do violão na direção
dela, de um jeito ameaçador, frisando o que é realmente importante.
Felipe se aproxima de nós. Não está entendendo nada.
Ana se rende.
— Eu tenho dezessete anos. Mas é quase dezoito.
— Você não tem carteira? — Felipe está em choque.
— Ai, gente, eu nunca pensei que vocês realmente se
empolgariam, ok? Depois não pensei que a gente chegaria ao ponto
de roub… pegar o carro emprestado. Eu só… — Hesita e olha para
o chão. — Só estava empolgada com... bem, vocês.
Sinto como se um alienígena me rasgasse por dentro.
— Bom, pelo menos deu certo. — Não fico tão irritada com sua
confissão quanto achei que ficaria. Sei lá, quem sou eu para julgar?
Ainda precisamos conversar sobre muita coisa. Mas foi graças às
ideias erradas de Ana que a gente chegou até aq… O ônibus!
Gesticulo forte com uma das mãos, no canteiro central mesmo. —
Moço, pelo amor de deus! — O motorista obviamente não para. Mas
passa por nós, dá uma volta e para a cerca de duzentos metros de
onde estamos. Deve ser o ponto final.
Algumas pessoas vão descendo enquanto corremos até lá.
— Moça, passa ônibus pro centro aqui? — Felipe pergunta para
uma senhora de uns setenta anos.
— Esse aqui volta pro Centro, meu filho! — Dá dois tapinhas no
braço dele e segue o caminho, meio encurvada.
— Bom, então a gente só tem que esperar! — Ana diz, ainda
sem graça com toda a situação.
— Não. — Paro onde estou para demonstrar minha firmeza no
que vou declarar: Finalmente criei coragem para deixar sair as
palavras que estavam entaladas há tempos. — O que a gente
precisa é conversar.
Capítulo 10
Felipe
— Muito obrigado!
— Nunca que eu vim até aqui pra não ver a cara desse escritor
ao vivo! — ela diz, determinada.
— Ei, vocês dois estão furando fila! — um cara alto com uma
peruca vermelha fala, apontando de mim para Ana Cecília.
E é quando o vejo.
O grito dos fãs invade toda a rua. Vai ser impossível chegar até
lá.
Fofo!
3- Ela tem uma voz forte que faz a gente sentir um misto de
respeito e admiração.
Enfim, a Cris.
Não sei como senti raiva de Felipe por tanto tempo. Ele é
assim. Esse menino fofo, engraçado e bobo, que chora para morrer
ao conhecer o autor preferido. Quando o defendi dos gordofóbicos
da escola, ele me viu como a Shuri sendo genial em Wakanda. Uma
heroína. Alguém para admirar, assim como Mariano.
Ele foi meu fã, quando tudo o que eu queria era um amigo.
— Meu primo vive dizendo pra minha mãe que eu deveria dar
mais atenção à família e aos artistas da cidade. Tem muita gente
boa, segundo ele — diz, quando já estamos longe da multidão. —
Mas eu trabalho demais!
Tenho vontade de perguntar se é verdade que ela está
trabalhando na carreira de um rapper americano e se é verdade que
os dois estão de trelelê, mas ainda não estamos nesse nível de
amizade.
Volto a olhar para Felipe. Por que perdemos tanto tempo? Bom,
pelo menos agora nós ainda podemos ser amigos (ou mais que
isso). Ainda posso dividir meu lanche com ele no intervalo e nas
aulas de educação física. E aí a gente chama a Ana e dá para fazer
um piquenique. Ela, lanches e muito sobre nós. E aposto que
ninguém mexeria com a gente.
Seríamos incríveis!
Olho por cima do peito de Felipe e vejo que ele e Ana estão de
mãos dadas. Não sinto ciúme. Sinto que tudo está certo. No lugar.
Como o prólogo de um livro bom: apenas começando uma nova
história.
Um Papai Noel de outro planeta
Edição e revisão: Clara Alves
Leitura sensível: Koda Gabriel
Para Maria.
Nós conseguimos.
Capítulo 1
Papai Noel na carroça
Noa tem razão quando diz que existem coisas que o cérebro
humano não é capaz de processar. Estou há vinte minutos sentado
no sofá de uma sala onde nunca estive antes, olhando para essa
moça, e ainda não consigo compreender como a conheci, uma hora
atrás, quando ainda era uma criança de cabelos bagunçados.
Ela está parada à minha frente, em pé e com os braços
cruzados, enquanto Noa perscruta todos os cômodos da casa com
aquela porcaria de dispositivo. Os dois rapazes que moram aqui o
acompanham. Eles parecem muito mais receptivos com toda essa
ideia absurda do que Patrícia.
— Então, tem algum risco se a gente continuar morando na
casa? — Ouço um deles perguntar. Patrícia estica o pescoço para
conseguir olhar pelo corredor.
— Hm… — Noa demora a responder. — Acredito que vocês já
tenham sido expostos a todo o tipo possível e processável de
energia espaço-temporal, Rafael. Se isso não destruiu a mente de
vocês no primeiro momento, não vai destruir mais.
Nossa, é realmente um alívio, penso, com ironia.
Fico imaginando tudo o que esses jovens devem ter visto nessa
casa mal-assombrada para terem acreditado assim tão fácil na
história que eu e Noa contamos. Ok que falamos a verdade. Mas
uma verdade muito difícil de processar.
Eu é que não moraria num lugar desses.
— Você também não gosta nada dessa história, né? —
pergunto para Patrícia, que parece tão incomodada quanto eu. Mas
ela apenas me ignora. Continua observando Noa e os meninos.
Depois que termina sua análise, meu companheiro de viagem
se joga no sofá ao meu lado e apoia o cotovelo no espaldar. Ele
parece aliviado e satisfeito. Feliz por estar nesse ambiente.
Sinto uma irritação subir pela minha garganta. O principal ainda
não foi resolvido.
Acho que Noa entende o recado, porque olha para Patrícia e a
estuda por um momento. Os dois meninos ficam tagarelando, mas
nenhum de nós está prestando atenção.
— O que você sabe sobre a menina que desapareceu aqui na
cidade? — Noa não sabe ser sutil.
— Eu? — Patrícia engole em seco.
— Sim! — Ele aponta o aparelho para ela. Nunca vi o bipe ficar
tão insistente. — É realmente incrível! — Noa parece encantado. —
Você é rara! — diz, e então se vira para mim. — Essa garota pode
se transportar entre dimensões. E eu tenho uma teoria de que sua
namorada também tem essa habilidade…
— Não. Ela não tem — Patrícia retruca, de um jeito firme. — O
que aconteceu com ela é culpa minha. — Para de falar e fica me
encarando. Um silêncio frio cai sobre nós e todo mundo a encara,
esperando uma explicação. — Eu me transportava sempre, fazia
pequenos saltos e tal. Mas um dia quis tentar algo diferente. Só que
deu tudo errado, e eu fui parar em uma dimensão onde não tinha
ninguém. Era…
— O vazio. A dimensão entre dimensões — Noa completa,
olhando para mim, como se aquilo explicasse tudo.
— Eu fiquei presa nesse lugar, não sabia como sair — ela
continua. — Mas aí, uma pessoa me ajudou. Aliás, duas. E eu
estava tentando justamente voltar para essas pessoas quando
apareci no corredor daquele prédio. Foi muito repentino, eu não
estava me sentindo bem. — Patrícia coloca a mão na têmpora
esquerda. — A minha cabeça estava me matando. Eu estava a
ponto de desmaiar quando a porta do elevador se abriu e a menina
saiu de lá. Ela me olhou de um jeito estranho, perguntou se eu
estava bem e veio na minha direção, acho que para me ajudar. Eu
só me lembro que ela pegou minha mão e, de repente, tudo ficou
escuro. Quando acordei depois disso, ainda passando mal e sem
entender o que tinha acontecido, entrei em um apartamento vazio,
até que outra moça me encontrou. Só dias depois é que fiquei
sabendo que a menina do elevador tinha desaparecido, quando vi a
foto no jornal.
Tenho muitas coisas para falar, mas não digo nada.
— Você tem alguma ideia do que aconteceu com ela? — um
dos meninos pergunta para Patrícia.
— Não. Mas eu acho que, de alguma maneira, ela se
transportou para outro lugar, usando meu poder. Não sei por que
não fui junto. Eu deveria ter ido junto? — Ela olha para Noa, que se
levanta e começa a andar pela sala.
— Não sei... — Ele parece estar fazendo milhares de contas ao
mesmo tempo. — Você disse que estava tentando voltar para as
pessoas que te ajudaram. Onde eles estão?
— Em outra dimensão!
Noa dá um soco com a mão direita na mão esquerda.
— É pra essa dimensão que temos que ir.
— Não dá. Essa casa… nos protege. Aqui, no meio de tanta
distorção, é o único lugar onde estou segura — diz Patrícia, olhando
para Noa e depois para mim. — E eu, sinceramente, já tentei voltar,
mas não tenho nem ideia de como fazer isso.
— Mas eu tenho. — Noa vai para trás do sofá. — Essa casa
tem várias janelas, e elas oscilam. Consigo estabelecer um padrão e
rastrear a Alice. Mas a gente só consegue passar pela janela se ela
estiver aberta.
— E como faz pra abrir essa janela? — Estou disposto a fazer
de tudo para buscar minha namorada.
— A Alice precisa estar esperando por nós.
— Como assim, esperando?
— Sabendo que nós vamos resgatá-la.
— E como vamos fazer isso?
Noa aponta para Patrícia.
— A Patrícia consegue. Acho que é possível fazer um
transporte parcial, seguro e calculado. Mas só ela tem a genética
capaz de resistir a essa fragmentação. A gente encontra uma janela
que esteja ligeiramente no passado, faz a Patrícia passar, ela dá o
recado rápido e volta.
— E quais são os riscos? — um dos meninos, o Rafael,
pergunta.
— Na pior das hipóteses, essa casa implode e é engolida pela
fenda. Na melhor, a janela certa é aberta e nós conseguimos
resgatar a Alice.
— É muito arriscado! — digo, vendo os olhos arregalados de
todo mundo.
— Sim — ele sussurra. — Mas lembre-se, Gal: existe um futuro
para esta casa nesta dimensão. Então eu apostaria todas as minhas
fichas de que vai dar certo.
— Ainda assim…
— A natureza é perfeita, Gal. Confie.
Capítulo 12
Âncora
Gal,
Antes da Betânia me entregar o papelzinho do amigo oculto,
eu sabia que tiraria você. É que mãe sempre sabe. No fundo, a
gente sempre sabe.
E eu soube que você era diferente do que eu esperava
ainda cedo, quando você era uma criança faladeira e fugia para
a casa da vizinha.
Sei que você acha que me decepcionou, mas não, Gal, eu é
que te decepcionei. Sempre pensei que eu fosse uma mãe,
dessas amigas, mas não sou. Eu tenho os meus processos, e
você tem os seus. Mas sinto que falhei em te entender.
Por favor, me deixe te conhecer melhor.
Talvez eu nunca consiga ser sua amiga, mas quem sabe eu
consiga ser sua mãe.
Rose
Essa série foi feita para a Maria de 16 anos. Eu devia isso a ela.
Devia os aliens, devia as paredes que falam, as dimensões
paralelas, os não-binários, os superpoderes, o amor por pessoas
fora do padrão. O interior de Minas Gerais. Agora está pago (mas
ainda faltam os fantasmas).
Caralho, eu acabei!
SOBRE A AUTORA
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Telegram: @ClubedaMaria
Mas… e se?
Um corpo de verão
Amor de janela
Estrela e a Flor
Azeitonas
As razões de Henrique
Edição e revisão: Clara Alves
Bregafunk do amor
[1] Expressão típica da região Leste de Minas Gerais, que quer dizer “fica esperto”.