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T í t u l o : A Conspiração dos Antepassados
A u t o r i a : David Soares
E d i t o r : Luís Corte Real
Esta edição © 2007 Edições Saída de Emergência

C o m p o s i ç ã o : Saída de Emergência, em caracteres Minion, corpo 12


D e s i g n d a c a p a e i n t e r i o r e s : Saída de Emergência

I m p r e s s ã o e a c a b a m e n t o : Guide - Artes Gráficas, Lda. Rolo & Filhos II, S.A.


1 ª e d i ç ã o : Setembro, 2007
i s b n : 978-989-637-009-1
D e p ó s i t o L e g a l : ??????/07

Edições Saída de Emergência


Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dtº, 2775-274 Parede, Portugal
T e l e F a x : 214 583 770
w w w. s a i d a d e e m e r g e n c i a . c o m

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“Retenhamos, para já, que toda a composição lembra uma dessas repre-
sentações teatrais, mistérios ou paixões (…)”
—Lima de Freitas, 515, O Lugar do Espelho

“´É outro mundo. Fica muito longe.´


Mas ele riu-se e disse: `Nada fica muito longe.´”
—E. E. Eddison, The Worm Ouroboros

“Não é mister da sociedade guiar e salvar o herói criativo, mas o inverso.


Sendo assim, cada um de nós está incumbido de realizar essa tarefa supre-
ma – e carregar a cruz redentora – não à luz das maiores vitórias da sua
tribo, mas no abrigo do seu desespero íntimo.”
—Joseph Campbell, The Hero With a Thousand Faces

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Prólogo

“O símbolo e o ritual são os modos de uma alma superior comunicar com


outra inferior sem que tenha necessidade de palavras. São como um olhar
que se entende, olhando com outro olhar.”
—Fernando Pessoa, “Os tipos de ritual
e a sua significação”, Átrio

“Lançaste-me ao abismo, ao seio dos mares, e as correntes das águas


envolveram-me. Todas as Vossas vagas e todas as Vossas ondas passaram
por cima de mim. E eu já dizia: Fui rejeitado de diante dos Vossos olhos.
Acaso me será dado a ver ainda o Vosso templo? (…) Então o Senhor
ordenou ao peixe, e este vomitou Jonas na praia.”
—Jonas: 2.4-2.11

“Os dois homens olharam um para o outro, ambos seguros


de quem se tratava.”
—Thomas Pynchon, Against the Day

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Não existe nenhum horizonte que distinga o céu sem estrelas do oceano ne-
gro, mas os pescadores conhecem este território truculento tão bem quanto
as suas faces. O vento persegue as marés espessas e espalha os grãos de areia
da praia, soprando-os como pimenta sobre a espuma produzida pelas on-
das: uma sobremesa selvagem de sílica e sal. O bafo dos pescadores tem o
cheiro de madeira queimada. Sentem-se agressivos: são sempre violentos.
Arrastam os pequenos barcos para a água. O Vigário observa-os, sentado
numa duna.
O homem agarra uma mão-cheia de areia: é fria e pinta a pele de
preto. Espreme a visão na direcção do grupo de pescadores e descobre que
apontam para um peixe muito grande, prisioneiro nos baixios. É vulgar os
peixes grandes ficarem ali muito tempo até os pescadores ouvirem o carpir
e correrem para os barcos. É um choro que soa como sirene: uma corneta
de caça tocada pela própria presa. O Vigário abre a mão e liberta os grãos
de areia. São sugados pelo vento que os leva para longe; mas sem luz todos
os locais são longe. O suor da areia deixa-lhe na palma da mão um tra-
çado sujo que parece uma assinatura. Olha para ela durante uns instantes
e apaga-a, esfregando-a na túnica. Com a mesma mão sossega os cabelos
louros, arrepiados pelo ar em movimento. Como se chama este vento, afinal
de contas?
O peixe fora de água sacode o focinho, cheira hostilidade e compre-
ende que alguém lhe está no encalço. Sente-se com medo e chora ainda
mais alto. Na enseada, alertados pela urgência do vagido, os pescadores sal-
tam para dentro dos barcos e agarram os remos. Não há luz, mas eles não
precisam de ver: escutam e cheiram. Tudo cheira a rocha e o grupo rema
silencioso, guiado pelos sons emitidos pelo animal assustado: a lamúria
reverbera no labirinto construído pelas formações afiadas que rompem o
oceano superficial; ecos que se transferem, fantasmas vibrantes beliscando
a água.
Levantando-se para observar melhor a acção, o Vigário desce até à
praia. As pegadas que deixa na areia luzem antes de serem novamente en-
sopadas de humidade; ao longe piscam pulsares púrpuras, como destroços
caídos da colisão de duas galáxias. O homem lembra-se do nome que os
pescadores dão ao vento que percorre toda a esfera para vir desarrumar
os grãos de areia preta: O Grande Consolador! Esta corrente está sempre

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em movimento; deve ser parteira de coisas secretas. Chamam-lhe Grande
Consolador porque é um vento de esperança: esperança que exista um hori-
zonte radiante por detrás da escuridão feita de oceano e céu. Esperança.
Esta praia, esta câmara de reflexões, compreende a esperança. Na
verdade, cultiva-a! Um dos pescadores ergue um braço e joga o arpão ao
lombo do animal neurasténico.
Os pescadores aproximam-se do peixe. De pé, empurrados pela água
mole como mel, os arpoeiros equilibram-se com destreza e atiram as ar-
mas; a madeira manchada ruge sob o seu peso, mas não desiste. Repuxos
de sangue negro, com cheiro a romã, espirram dos golpes no dorso do peixe
que gira a cabeça na direcção da praia. Cruzando os braços para aquecer o
peito, o Vigário é o destinatário de um pedido de socorro silencioso.
O olho sem pálpebra vê tudo e reproduz o panorama rugoso que o
circula, transformando a silhueta do homem numa pincelada fininha. O
peixe submerge a cabeça e um arpão mergulha atrás dela: o animal regressa
cego à superfície. Na praia, outro grupo de pescadores pula. Os arpoeiros
sentam-se e esperam que o peixe aborte a alma. O Vigário repara nas longas
lâminas que os pescadores da praia agarram: peças únicas, de uma matéria
preta irregular, que terminam num gume grosso. Batem com os cabos na
areia, ansiosos, mordendo o ar e abanando as cabeças; esfregam os molares
uns contra os outros. O som faz-lhe lembrar cigarras. Não! Cigarras, não. Os
uivos nocturnos de um louva-a-deus! Faz uma careta e cospe: tem um medo
de morte desses insectos. Olha para o oceano; o vento bate-lhe na cara e o
frio fá-lo chorar. Os barcos voltam à praia, puxando o peixe para fora de
água; lentamente, como uma agulha a nadar na corrente sanguínea.
Ágeis, descem dos barcos e puxam o peixe com a ajuda dos elemen-
tos do segundo grupo. Todas as mãos agarram as cordas: o peixe é muito
pesado. Indiferente à confusão, o Vigário senta-se na areia à espera que eles
consigam trazer a presa. A linguagem dos pescadores é incompreensível
na maioria das vezes; com efeito, as suas vocalizações não fazem parte de
nenhuma linguagem, pois eles comunicam entre si de outro modo. Os seus
objectos de culto, talhados nos ossos dos peixes capturados, são muito di-
ferentes das ferramentas esculpidas em rocha: são macios e sem ângulos.
Estes pescadores são muito hábeis com a pedra bruta e não desperdiçam:
têm maneiras de reciclar velharias em pedra cúbica. Precisam de ser hábeis
para sobreviver neste sítio, porque a preguiça é como o mar: consome.
Alguém larga a corda e afasta-se a correr na direcção do acampamen-
to, desaparecendo atrás das dunas. Regressa com um novo grupo de pesca-
dores; os recém-chegados mestres intrometem-se entre os companheiros, e
os aprendizes, e agarram o cordão nodoso começando a fazer força com os
braços de acordo com flexões secretas e precisas. O peixe desliza depressa e

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o peso verga o nível do areal como se a praia fosse feita de cera.
Puxam uma segunda vez e param para descansar. Reconhecem o ho-
mem de barba amarela sentado na areia. Já se habituaram à sua presença;
não se aproximam, nem lhe voltam as costas: guardam cautela. É um es-
tranho vindo do mar como os peixes – um profano: examinam-no com
cuidado. Ele que os procure, se quiser aprender. Com a boca cheia de areia,
o peixe soluça a vida para fora do corpo; opérculos param, todo o movi-
mento cessa durante a sublimação do espírito. O vento violento acicata os
pescadores de volta ao trabalho: retesam as cordas como fios-de-prumo,
imaginando uma estrela flamejante em vez de verem o peixe.
O ritual antigo durante o qual rasgam e dividem a carne da criatura é
mecanizado. Cada pescador assume uma posição desconfortável para tra-
balhar com uma espada sobre o animal. Apenas dois pescadores não par-
ticipam: aguardam de pé, vigilantes, apoiados nas ferramentas. As lâminas
de cabo comprido cortam o peixe de alto a baixo, quebrando ossos e tecido.
O sangue preto é do mesmo matiz dos grãos de areia; chupado pelo chão,
nem sequer tem tempo de lhes sujar os pés descalços. Com o auxílio de ma-
lhetes toscos, cinzelados em pedra, os pescadores enterram pontilhas com
ganchos no peixe e puxam: as colunas de carne que ladeiam o golpe abatem
e as tripas do peixe tombam para o exterior. Os pescadores afastam-se; um
dos vigilantes aproxima-se dos órgãos e sonda-os com o cabo da arma. O
segundo vigilante junta-se a ele e ajuda-o. Sentado a pouca distância do
ajuntamento, o Vigário inclina-se e arregala os olhos azuis. Suspende a res-
piração. O primeiro e o segundo vigilante abanam as cabeças; a este sinal, os
outros investem sobre as entranhas com as lâminas. Desiludido, o homem
fecha os olhos e respira fundo; um grito inesperado arrepia-lhe os cabelos.
Os pescadores afastam-se e observam um movimento nas tripas do
peixe que se torcem e protestam. Uma erupção na carne é seguida pelo
romper da superfície venosa e pelo aparecimento de um braço branco: a
mão mexe os dedos compridos e procura algo para agarrar; uma aranha
albina. O velhote levanta-se e corre na direcção dos intestinos espalhados
na areia.
Agarra o braço inquieto e investiga a mão: é a direita. Larga-a e, sem
hesitar, ajoelha-se e rasga com os dedos a película brilhante que oculta o
resto do corpo. Descobre o outro braço e compara a mão esquerda com
a primeira: também tem dedos longos, mas é muito mais pequena. Sorri,
compondo uma careta atrapalhada, e mergulha as mãos nas vísceras para
agarrar o tronco do homem escondido na barriga do peixe. Os pescadores
observam o Vigário sem reagir, enquanto ele resgata um jovem louro.
O corpo é um mosaico bicolor, ladrilhos de pele clara e sangue escu-
ro. O Vigário arrasta-o para o local onde estava sentado e com uma ponta

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do manto enxuga-lhe o rosto redondo, polvilhado de sardas. O cabelo louro
é quase branco e os lábios pequenos estão fechados. O homem introduz
dois dedos na boca do jovem e abre-a, extirpando um novelo de matéria
orgânica. O ar frio ocupa o espaço que havia sido ocupado pelo bezoar e
desperta o jovem como uma injecção de gelo. Ele tosse, senta-se e descobre
o Vigário ajoelhado à sua frente. Atrás deles, junto do corpo despedaçado
do peixe, os pescadores regressam ao trabalho.
‘Bem-Vindo’, diz o Vigário. Olha para o peito do clandestino: o tron-
co é muito pequeno e tem três mamilos. O jovem inspira fundo.
‘Vejo que nascer pagão é nascer livre.’ Joga a cabeça para o lado e
regurgita.
‘Não se preocupe com isso’, responde o Vigário. ‘É uma forma mais
intensa de sentir o mundo.’
‘Sinto-me como se trouxesse o mundo ao colo’, diz, agarrando o estô-
mago. Arrota e evita outro vómito.
‘Vai passar.’
O Grande Consolador envolve os dois homens e insinua-se como
um cão curioso à procura de odores familiares. O jovem vomita outra vez.
O outro olha para trás, em sinal de respeito, e vê que os pescadores já se
apressaram em retalhar o peixe. Cortaram toda a carne em grandes cubos
idênticos e salpicaram-nos com areia preta. Escamam o dorso e depõem as
espinhas enormes no areal para serem lavadas; parecem dentes de elefante.
‘És o Vigário?’
‘Sim. E vós sois…’
‘Aquele por quem esperavas.’
O homem levanta-se e oferece ajuda ao jovem. A mão dele está quen-
te: vai sobreviver.
‘Ou esperavas outro?’ Larga a mão do homem para massajar o estô-
mago.
‘Esperar por vós, senhor, foi a minha vida. Já posso cumprir o traba-
lho para que fui feito.’
‘Muito bem, Vigário.’
O homem acena com a cabeça; oferece-lhe o manto e cobre-lhe os
ombros. O visitante é coxo porque o lado esquerdo do corpo é mais peque-
no que o direito, no qual o dedo mínimo do pé apresenta uma excrescência
verrugosa que parece um sexto dedo e tem uma cicatriz na sobrancelha.
‘O que é aquilo?’ Aponta para as formações afiladas que emergem da
costa. ‘Rochas?’
‘Pelo modo como os pescadores agem, acho que eles acreditam que
existe um espírito protector dentro de cada uma dessas rochas. É nelas que
enrolam as tripas dos peixes depois de os trincharem.’

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‘Enroladas? Como um colar!’
‘Sim, como um colar sangrento, mas é preciso que saiba que de ro-
chas elas não têm nada. Estou aqui há tempo suficiente para ter percebido
que são feitas com os excrementos daquela espécie de peixe.’ Aponta para o
animal acabado de apanhar. ‘Trazidas pelas marés, acumulam-se ali e for-
mam exóticas estalagmites.’
‘E os espíritos protectores?’
‘Não existem nenhuns, meu senhor. São apenas detritos.’
‘Compreendo. Mesmo assim, preferia que não fosses tão apressado a
julgar aqueles montes. Talvez não existam espíritos porque não são preci-
sos.’
‘Não entendo, senhor.’
‘Talvez os dejectos sejam o próprio espírito. Talvez não haja necessi-
dade de existir mais nada.’
‘Como está o nosso pai?’
A pergunta do Vigário surpreende o novato. Balbucia qualquer coisa
e, com a velocidade que se apaga uma vela, muda de expressão para uma
carantonha amarga.
‘O pai está bem.’ Espera uns instantes e prossegue: ‘Está no Monte a
tratar da horta. Está sempre a tratar da maldita horta!’
‘Traz consigo uma mensagem dele para mim, meu senhor?’
‘Não trago nada porque sacrifiquei tudo, mas tu sabes isso.’
‘Sim, senhor.’
O Vigário baixa a cabeça e lembra-se de algo que viu há muito tempo
atrás: o pai, louro e hirsuto como ele, arrancando ervas daninhas no jardim.
Lembra-se das abelhas e da luz do sol. Lembra-se das duas colunas que
amparavam o portão de ferro do Monte: pedra parda pintada de musgo e
margaridas. A dor que sente é transparente. O jovem responde-lhe:
‘Não sintas, irmão! Pensa, porque pensar é existir com os deuses, en-
quanto sentir é existir sozinho.’
‘A substância dos sentimentos, senhor, é não possuírem expressão. O
nosso pai ensinou-me isso há muito tempo.’
Olha para o rapaz que parece um albino. A voz dele ainda reservava
um pouco de inocência adolescente, mas já quebrara e fora preenchido por
um cinismo maduro. O Vigário pensa que a perda da inocência pelo prazer
é bem melhor que a perda da inocência pela política e, agarrando-lhe o bra-
ço esquerdo sobre um antigo ferimento de batalha, condu-lo na direcção
das dunas. A pele está gelada outra vez: tão gelada quanto os ossos de peixe
que os pescadores lavam no mar.
‘Venha comigo, senhor.’
‘Estou ansioso, irmão. Muito ansioso.’

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Acenando com a cabeça, o Vigário não diz nada enquanto abandona
a praia. Viajam em silêncio.
Um barco carregado com as tripas do peixe passa ao lado dos pes-
cadores que lavam as espinhas e aproxima-se com meiguice do dédalo de
detritos.

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Capítulo 1

Pela Palavra Receberás a Luz

“Sendo assim, meus queridos filhos”, disse ele, “aprendam que o Homem
nunca sabe qual é o bem que Deus lhe destinou.”
—Johannes Valentin Andreae,
The Chemical Wedding of Christian Rosenkreutz

“Sendo assim, não evoluo, VIAJO. (Por um lapso na tecla das maiúsculas
saiu-me, sem que eu quisesse, essa palavra em letra grande.
Está certo, e assim deixo ficar.)”
—Fernando Pessoa (excerto de uma carta escrita
a Adolfo Casais Monteiro)

“Já dissemos que a Região Etérea se estende para além da atmosfera


da Terra densa; que o Mundo do Desejo se alonga no espaço para além
da Região Etérea, e que o Mundo do Pensamento se prolonga ainda mais
que os outros, no espaço interplanetário. Por isso, devemos concluir que os
mundos de matéria mais subtil ocupam maior espaço do que os mais
densos, que se condensaram e cristalizaram.”
—Max Heindel, The Rosicrucian Cosmo-Conception

“É na Arte que encontramos experiências que nos escaparam na vida.”


—Austin Osman Spare, The Logomachy of Zos

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I

1925

Sentado na cama, ele agarrou o lenço e olhou para a fotografia pousada


sobre os joelhos.
As janelas do quarto estavam fechadas e a luz filtrada pelo tecido do
reposteiro vincava a penumbra do mesmo modo que as rugas na fotografia
envelheciam a imagem da sua mãe. Poluindo o ar com antecipação, ele ain-
da era capaz de cheirar o perfume dela nos lençóis e na superfície dos mó-
veis. Respirou fundo, enchendo os pulmões com esse cheiro, e concentrou-
-se na fotografia para enviar a impressão a preto e branco ao éter como um
telegrama desesperado. Ao alcance da mão, tinha uma caneta, mais umas
folhas de papel vazias que aguardavam inscrições; a beata de um cigarro
Bons consumia-se em fumo baço atrás dele: ascendendo do cinzeiro para se
colar como uma teia de aranha num quadro pendurado sobre a cama.
Pousou a fotografia, mas continuou a agarrar o lenço preto. Beijou-
-o, esfregando as pontas dos dedos na seda para libertar o odor familiar, e
deixou-o ao lado da foto. Permaneceu quieto e de olhos fechados por uns
momentos, mas já sabia que não conseguiria comunicar. Assim como an-
dava a esquecer como se falava com os vivos, há muito tempo que perdera
a capacidade de ouvir as palavras dos mortos.
Sentiu-se isolado de toda a matéria e começou a chorar. Lembrou-se
da última vez que a mãe dormira naquele quarto, há dois anos, antes de ir
morar com o resto da família para o Alto da Boa Vista: velhinha, sem con-
seguir mover o braço esquerdo e tentando pentear-se com o outro antes da
partida. O rosto desviado para a esquerda, não pela força da gravidade, mas

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pela doença; olhos que encontraram o filho à porta do quarto sem o verem:
uma expressão estrangeira com voz familiar. Come, dissera-lhe. Se tivesse
dito açúcar ou orçamento a voz soaria da mesma forma.
‘Vou comer tudo, mãe.’
Não precisas de comer tudo, respondeu a mãe, agarrando a bengala.
Não precisas de comer o que não gostas.
‘Tem razão, mãezinha.’
Um barulho no corredor!
Agarrou o lenço e cobriu a boca com ele. Olhou para a porta fechada,
tentando adivinhar a origem do ruído. Aguardou.
Escuridão e ar tépido que cheirava a nicotina e perfume: fósseis
hidralcoólicos debaixo dos cobertores e dos tacos de madeira do soalho.
Olhou à volta e quando se inclinou para ouvir melhor descobriu que tinha
uma perna dormente. Pousou o pé no chão com a urgência de um homem
que se preparava para fazer uma coisa fatal e murmurou o nome da mãe.
Ouviu outro som, mais forte que o anterior. Espreitou a fotografia e viu que
a imagem da mãe ainda lá estava, sorrindo e segurando-o ao colo. O seu
sorriso era igual ao dela: talvez devesse sorrir mais vezes.
Fechou os olhos e agarrou a caneta; na sua precipitação feriu o papel
manchando-o com um respingo negro. Lembrou-se das conversas sobre
sexo e morte que mantivera com o espírito Henry More e o coração acele-
rou. Os cabelos da nuca ergueram-se à aproximação de novos sons. Arrega-
çou as pálpebras, prendeu a respiração e descodificou-os: eram passos.
Os passos pesados do cunhado, avançando pelo corredor em direc-
ção à casa de banho: reconheceu a pressa dele em soltar a bexiga; tão bem
quanto um perinatologista identifica deformidades no desenvolvimento
do invólucro humano. Expirou com violência, largando a caneta e o lenço
em cima da cama. O candeeiro de rua que iluminava o interior do quarto
piscou e quando a luz regressou, no instante seguinte, inundou o espaço
de pormenores; a geometria branca criou sombras que se assemelhavam a
rostos no reposteiro. Tonto, com os olhos a arder, deitou a nuca na almo-
fada. Voltou-se para a mesa-de-cabeceira e procurou o maço de cigarros.
Pensou que aquilo que tivesse de acontecer, aconteceria, apesar de tudo: se
não nesse dia, talvez num próximo. Acendeu um cigarro; travou o fumo,
obrigando-o a largar o lastro odorífero dentro de si – faíscas absorvidas
pelos brônquios como raspas de alma.
Pensou na revista e compreendeu que já não tinha vontade de conti-
nuar a editá-la nem de lutar contra a falta de publicidade e colaboradores.
Lembrou-se que precisava de responder à carta do Francisco Costa. Coita-
do do Francisco! Não gostara nada do Verbo Austero, mas como poderia di-
zer alguma coisa menos simpática sobre esse livro quando o próprio autor

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tivera a gentileza de lhe pagar um café? Tinha de acabar com a revista, mas
não podia deixar o último número a meio: falaria com o Vaz sobre isso no
dia seguinte. Suspeitava que a decisão fosse desagradar à Teca e ao Chico
que tinham um pavor indescritível de o ver sem fazer nada.
Dava-se bem com o cunhado que era um homem de ideias sãs. Ia ser
com toda a certeza um bom pai para o seu novo sobrinho. Ou seria uma
sobrinha? Ele e a irmã, ainda desgostosos pela morte da Leonor, esperavam
uma menina, mas o capitão Chico preferia um rapaz para poder levá-lo ao
futebol. Ainda não dissera nada, mas gostaria que a sobrinha ficasse com o
nome da mãezinha. Talvez fosse demasiado. Já tinham visto muitas mortes
naquele ano.
A morte dos velhotes era mais fácil de entender. Quando são as crian-
ças a desaparecer nada pode substituir o vazio que elas deixam, a não ser
outras crianças. O Henry More estava sempre a dizer-lhe que uma mulher
estava no seu destino e ele sempre pensara que se tratava de uma hipotética
namorada. Talvez tenha entendido mal as coisas e o espírito aludisse a um
elemento familiar ainda por aparecer. Uma sobrinha, neste caso. Sim, ia
nascer menina, sem dúvida!
Ouviu o cunhado retornar da casa de banho e sentou-se em silêncio
à espera que ele passasse. Acabou de fumar, amachucou a beata no cinzei-
ro e alcançou as folhas em branco. Uma irritação na garganta que piorara
durante essa tarde despertou com o fumo do tabaco e provocou-lhe tosse.
Abafou-a com as duas mãos, pois não queria que eles soubessem que es-
tava no quarto da mãe a comportar-se daquele modo. Guardou a caneta
e o maço de tabaco no bolso da camisa e recolheu o resto das coisas. Que
horas seriam? Calculou que seriam duas e meia. Daí a pouco tinha de es-
tar no escritório, mas não sentia sono nenhum. Podia aproveitar a insónia
para escrever, mas escrever o quê e com que objectivo? Não queria escrever!
Queria era falar: falar com a mãe. Queria dizer-lhe tantas coisas que nunca
tivera oportunidade.
Saiu do quarto e avançou pelo corredor alcatifado até à sala de estar;
o candeeiro de rua em frente do reposteiro aberto era o satélite luminoso
que lhe mostrava as órbitas daquela galáxia de objectos. Olhou para o reló-
gio de parede para ter a certeza das horas, mas os ponteiros não giravam;
o relógio parava sempre que alguém lhe mexia e agora tinha começado a
parar sozinho. Entre o armário de alçado, recheado com o serviço de chá
inglês, e o aparador cheio de bibelots, encontrava-se a mesa circular que na
presença de convidados obedecia a um protocolo de geometria de salão e
desdobrava o seu centro em dois focos que se apartavam para a transformar
numa elipse. Sobre ela estava o bloco de notas cheio de poemas que lera
para a família depois do jantar.

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Sentada no sofá, ao lado do marido, a Teca só dizia: Oh, Fernando, tu
tens de publicar! Tens de publicar! Era uma alma sincera: pousava as mãos
na barriga inchada e sorria enquanto aconchegava o feto; o Chico não fin-
gia que entendia o assunto dos versos, mas dizia que gostava muito de ouvir
o ritmo das palavras. Divertia-se mais quando ouvia as desventuras dos in-
telectuais nos cafés e tinha um riso curioso: soltava uma gargalhada alta que
ia burilando com risinhos tímidos, assim como um oleiro dá a forma a uma
peça compactando camadas cada vez mais translúcidas de barro molhado.
Saiu da sala levando consigo o bloco de poemas. Andou devagar pelo
corredor, desabituado da escuridão por culpa da luz que encontrara na di-
visão anterior, e entrou no quarto. Aproximou-se da escrivaninha e pousou
o cinzeiro e as folhas de papel. Abriu a última gaveta e guardou o lenço da
mãe entre as suas roupas. Estaria a perder o juízo? Se sim, quem era o cul-
pado? Ele mesmo ou a herança da família?
Rilhafoles e Campo de Ourique não eram tão diferentes como pa-
reciam. Os vapores das usinas de tecidos do Rato amasiavam-se com os
fumos dos fornos dos padeiros de Campo de Ourique, concatenando-se
numa mistela adocicada que invadia o peito dos habitantes como gás mos-
tarda. Ele via os pedintes nas ruas, agrupando-se junto às paredes da fábrica
de cerâmicas na rua Saraiva de Carvalho, mendigando tanto uma côdea de
pão como uma lufada de ar limpo: gente de pequena estatura como gnomos
mineiros, mas activos sob a luz do meio-dia, com olhos negros enxertados
em pele cinzenta. Lembravam-lhe os doentes sentados nos corredores do
manicómio onde a avó tinha sido internada e imaginou a sua própria posi-
ção fetal deitado num beliche de uma dessas celas. Encolhido, protegendo
a cabeça com as mãos, protegendo o espírito do contágio com a loucura
virulenta. Lisboa estava a cair, enfraquecida pelas construções de cal e areia
dos gaioleiros.
Um anarquista que morava numa dessas casas guardava dezenas de
explosivos. Quando a estrutura ruiu, as bombas rebentaram com o resto.
Foi perto do velho bairro operário dos Barbadinhos e o sítio do desmoro-
namento ficou pior que o Rossio com as novas obras. Entregue a si mesma,
a população operária da Graça, do Poço do Bispo ou de Campo de Ourique
só tinha um objectivo: comer um prato de sopa por dia e viver na vizinhan-
ça do local de trabalho. Já eram dois objectivos! Por culpa dos patos-bravos
ou dos anarquistas, o relapso de Lisboa estava em repetição contínua: a ta-
quicardia do próprio país.
Depois de fechar a gaveta, tirou o maço de cigarros do bolso e pou-
sou-o na escrivaninha ao lado do cinzeiro. Começou a desabotoar a cami-
sa, mas interrompeu o gesto para acender outro cigarro. Tinha medo de
enlouquecer e o horror não era infundado porque era um trabalhador do

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cérebro: era a sua doença profissional. Pensou que entre o trabalhador do
cérebro e o trabalhador do braço não havia identidade nem semelhança,
mas uma profunda oposição. O povo não é educável porque é povo, essa
era a realidade que poucos se atreviam a exclamar. O ódio à ciência e às leis
naturais era o que caracterizava a rua lisboeta e os seus gnomos operários.
Seria preciso eliminar as falsas distinções exteriores, como a que ergueram
entre pretos e brancos, e substitui-la pela verdadeira diferença: a diferença
entre gente e indivíduos.
Sorriu e soprou fumo pelas narinas, voltando a ocupar-se dos botões
da camisa. Gostou da ideia haeckeliana que acabara de formular: iria levá-la
para a cama para se entreter enquanto o sono não chegasse.
Não pôde filosofar durante um período muito longo, pois quando
voltou a lembrar-se da mãe começou a chorar.
Só sossegou quando adormeceu.

‘Bom dia, senhor Tomás.’


‘Olá, Fernando’, disse o guarda-livros acenando com a cabeça e con-
tinuando a andar em direcção ao arquivo. Ergueu um braço e agarrou o
“borrão” de Janeiro. Folheou-o, procurou a página que lhe interessava e
depois de a marcar com um dedo avançou para o seu gabinete onde Vas-
ques, o encarregado do armazém, estava à sua espera; sentado à secretá-
ria de Tomás, o rapaz via pela janela uma retroseira coberta com um xaile
preto de lã. As janelas daquele primeiro andar na Rua da Prata deixavam
entrar todo o barulho oriundo da Rua da Conceição, mas a luz era escassa.
O escritório da ourivesaria Moitinho cheirava ao papel velho que servia de
alimento aos peixinhos-de-prata; os funcionários costumavam achatá-los
com os punhos assim que os viam a deslizar para fora dos livros abertos.
Uma vez atingidos, os insectos cosmopolitas esfumavam-se num compos-
to pulverulento que se assemelhava a minério moído. O trabalho dos dias
gastos no escritório podia tornar-se rotineiro, às vezes maçador, mas os
prazeres que proporcionava eram fáceis: fumar, fazer olhinhos às raparigas
que respondiam aos anúncios dos jornais a pedir dactilógrafas, e assassinar
peixinhos-de-prata.
Fernando Pessoa tirou o sobretudo e o chapéu para os pendurar no
cabide junto à porta. Vinha com frio e a diferença de temperatura sentida
no interior começou a insinuar-lhe uma sonolência débil. Não tinha comi-
do nada em casa, mas passara a correr no Montanha para beber um café.
Frio, claro: o café no Montanha era servido sempre frio. Dirigiu-se à mesa,
sentou-se e abriu uma gaveta de onde tirou uma pasta verde. Agarrou a

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correspondência que tinha para traduzir, leu-a e começou a trabalhar. Mo-
mentos depois, tirou a cigarreira do bolso e acendeu um cigarro. Pigarreou;
a irritação que lhe afectava a garganta persistia.
Ouviu a conversa entre Vasques e Tomás enquanto escrevia; o guar-
da-livros falava devagar, e a voz não tinha energia para atravessar a madeira
da porta, mas compreendeu alguns monossílabos. A voz do Vasques era
mais forte e foi ela que lhe sugeriu que ambos pareciam estar a discutir
qualquer coisa sobre preços de artigos comprados. O rapaz era ambicioso e
tinha mais pinta de patrão que muitos patrões a sério. Instantes depois, en-
trou o filho do chefe; estava de férias e passava o dia inteiro no escritório.
‘Olá!’
‘Bom dia, Luís.’
O miúdo aproximou-se da mesa e enfiou as mãos nos bolsos. Olhou
com atenção para a testa grande do seu amigo, procurando novas rugas e
cabelos grisalhos – crateras na superfície da lua. Os ponteiros no relógio
da parede aproximavam-se das dez horas. Tomás abriu a porta do gabinete
e Vasques regressou ao trabalho; passou por Luís e deu-lhe os bons dias.
Depois de arrumar o “borrão” no arquivo, o guarda-livros caminhou até à
secretária de Pessoa e cumprimentou o miúdo.
‘Não fiques aqui muito tempo a arreliar o senhor.’
‘Daqui a pouco eu é que o vou arreliar um bocadinho, ó Tomás’, disse
Pessoa. O guarda-livros sorriu e voltou ao trabalho.
Pessoa amarrotou a beata no cinzeiro e continuou a escrever. Olhou
para Luís através das lentes grossas sem aros, sorriu e curvou-se para abrir
uma gaveta da secretária. Tirou uma folha de papel dactilografada e entre-
gou-lha.
‘Um “Bom”?, disse, radiante. ‘Obrigado, senhor Pessoa!’ Tratava-se de
um pequeno conto que Pessoa corrigira e classificara.
‘Está muito engraçado’, acrescentou. ‘Tem alguns erros, que apontei,
mas não te preocupes. Só estou interessado na literatura.’
‘E a parte da tartaruga?’
‘Ri-me bastante com ela.’
A história era uma farsa infantil sobre a morte de Ésquilo, atingido
com uma tartaruga largada por uma águia. O miúdo achara um piadão a
essa lenda que Pessoa lhe contara e escrevera uma fábula na qual, a partir
desse acidente, todos os filósofos só saíam de casa com o crânio protegido
por um capacete. No final de um concílio que se arrastou por muitos dias, a
república de Atenas criara uma lei que obrigava todas as tartarugas a trocar
a carapaça por conchas de caracol para não voltarem a interromper o racio-
cínio aos sábios e poupá-los de uma mortal dor de cabeça. Pessoa pensou
uns instantes nas pobres tartarugas; batendo com um dedo na mesa, mar-

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cou o andamento largo de uma lengalenga acabada de inventar:

U-upa – upa, tomba a tartaru-uga.


Olha só para ela, com o casco na garupa!
Se ela é muito leeenta, que raio a gente inveeenta?
Panela com ela, mais mel, couve e canela!
A tonta tartaru-uga dá uma rica su-upa – supa.

Falava, meneando a cabeça, imitando o gingar de um desses répteis.


O miúdo riu.
‘Quero escrever outra história gira.’
‘A sério? Tens de pensar bem naquilo que queres fazer. Escrever é
uma actividade perigosa.’
‘Porquê?’
‘Porque…’ Os olhos húmidos perderam o brilho, mas o rosto voltou a
animar-se no momento seguinte. ‘… não te ensina a viver.’
‘Então o que ensina?’
Pessoa riu e concluiu com firmeza:
‘A escrever melhor!’
Luís sorriu.
‘Quero que escrevas uma história de fantasmas. E tem de meter
medo!’, disse. Fez-lhe sinal com a cabeça para se ir sentar à máquina de
escrever na mesa em frente.
Prosseguiu com a tradução, embalado pelo matraquear do miúdo
trapalhão; um som tão sonífero como os passos de uma tartaruga. Sabia
que as máquinas de escrever absorviam os vícios de quem amiúde as uti-
lizava: por essa razão, nunca deveriam ser emprestadas a outros artificieis
da escrita.
Ouviu os moços de fretes vindos do Rossio a passar debaixo das jane-
las do escritório. Encontrava-os todos os dias encostados às portas do Abel,
ruborizados pelos copos de Marujinho que bebiam, com os rolos de corda
em volta dos ombros à espera de clientes. A Rua de São Nicolau desenhava
um delta, cuja base assentava na Rua dos Fanqueiros, e as três portas da
tasca abriam-se aos sequiosos como prolegómenos imaginais dessa traça
mitogeométrica. Lembrou-se de uma história que lhe tinham contado so-
bre um actor que enchera garrafas de Porto com o vinho que o Abel vendia.
Passara-se há uns anos, quando um grupo de actores amadores se lembrou
de fazer uma festa num dos armazéns de um negociante judeu que fazia re-
médio para cães. O rapaz tinha-se oferecido para levar os molhados e com-
prometera-se a arranjar vinho do Porto, cheio de vontade de impressionar
os companheiros. Quando percebeu que não iria conseguir, teve a ideia de

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encher no Abel todas as garrafas de Porto vazias que encontrasse. Cheio de
cautela, selou-as com cápsulas verdadeiras compradas num distribuidor e
ofereceu-as aos amigos como sendo o artigo genuíno. Se o resto do grupo
acreditou na malandrice isso era outra história, mas o vinho do Abel, que
não possuía o cheiro e textura do outro, fora bom o bastante para que nin-
guém se tivesse queixado.
Luís continuava a escrever; a campainha da máquina soou no mo-
mento em que o relógio anunciou as onze horas. No final da manhã, Pessoa
iria ter com Tomás e pedir-lhe um vale à caixa por conta dos vencimentos;
precisava liquidar uma dívida acumulada na livraria do Tabuada. Também
queria comprar uns sapatos novos, mas isso teria de ficar para o mês se-
guinte. Mais um vale, menos um vale, não importava nada ao Carlos: o
patrão andava muito entusiasmado com a mudança que prometia aconte-
cer ainda esse ano e que, na melhor das hipóteses, voltaria a unir os irmãos
do Grémio Luso-Escocês com os seus irmãos do Grande Oriente Lusitano.
O Carlos nunca lhe dissera a que loja pertencia, mas suspeitava que fosse
a Fiat Lux, na vizinhança do escritório, por razões de economia: o patrão
detestava perder tempo.
O ano andava alvoraçado, e cada alteração agredia a ancilose que aba-
fava todas as regiões da vida: há uns meses fracassara uma tentativa de golpe
de estado; a economia sarava aos soluços de uma ferida desvitalizante, aber-
ta na fase terminal da grande guerra; e a mãezinha tinha morrido. Essa era
a mudança mais ruinosa: chegara a pensar em mudar de casa, como ritual
de autopunição, e só permaneceu em Campo de Ourique porque a irmã e
o cunhado vieram morar com ele, assombrados pelas mortes da filha e da
matriarca. Tinham-se unido, como os maçons envergonhados almejavam
fazer, e a nova situação confortava-os. Conversavam muito e nas primeiras
semanas chegavam a ficar acordados até de madrugada, lembrando preté-
ritas passagens de família; interrompidas em intervalos regulares pelo repi-
que do relógio de parede. A Teca, cada vez mais pesada, já não aguentava
estar sentada muitas horas seguidas e o Chico ia deitar-se com ela deixan-
do-o sozinho. Alumbrado pela luz icterícia que o candeeiro de rua emitia,
agarrava os últimos poemas e tentava comunicar com a mãe, coagido por
um dos seus maus génios interiores.
Cada alma é um demónio: durante as horas matinais era fácil vestir
um fato, descer de eléctrico até à Rua dos Douradores e seguir em direc-
ção ao escritório para fazer pela vida, mas quando a claridade da cidade
diminuía, manchando de negro os interstícios entre os passeios e as casas,
o seu coração emagrecia, tornando-se demasiado pequeno para animar os
músculos. Só tinha forças para agarrar a única fotografia da mãe que qui-
sera guardar e tentar evocá-la durante a noite. Impaciência, desconfiança e

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ascetismo: masturbações monásticas reguladas por regras desconhecidas.
‘Dá-me licença?’
O miúdo aproximou-se da mesa e ofereceu-lhe a folha dactilografa-
da. Pessoa aceitou-a com um sorriso. Leu o título e riu:
‘A Alma Depenada?’
‘Lembrei-me disso.’
‘Fala de quê?’
‘É sobre um fantasma que vive no sótão de uma mansão abandonada.
Durante o dia, o novo proprietário descobre o lençol do fantasma e entre-
ga-o à governanta. Nessa noite, o fantasma acorda e vai à procura dele. En-
contra-o estendido na corda da roupa, veste-o e descobre que encolheu. A
história acaba com ele no sótão a trocar o lençol por uma manta de retalhos
cheia de penas dos pombos que dormem no telhado e a tirá-las uma a uma.
É uma alma depenada!’
‘Ah! No entanto, nenhum homem é uma alma até ser um demónio.’
‘Não percebo.’
‘Deixa lá’, disse, abrindo a gaveta para guardar o conto. ‘Tens muita
imaginação. Deve estar muito bom.’
Luís agradeceu. ‘Então fico à espera que me dê um “Muito Bom”!’
Pessoa acenou com a cabeça e levantou-se. Dirigiu-se ao cabide e ves-
tiu o sobretudo.
‘Se perguntarem por mim, diz-lhes que fui ao Abel ter com a “velhi-
nha”.’
‘Qual velhinha?’
‘Eles sabem quem é.’
Pôs o chapéu, afagou a cabeça do miúdo e saiu do escritório; as calças
entaladas nas polainas, descendo tão depressa que parecia flutuar dois de-
dos acima do chão.

**

As ruas estreitas da freguesia de São José, cobertas de pombos e pedras


afiadas, erguiam-se como escamas no dorso de Lisboa, golpeando a terra
em direcção ao céu – ao sonho. Alheio à sombra, Pessoa caminhava entre
alcatrão e alvenaria, imaginando o que diria às suas criações literárias se as
encontrasse a perscrutar as perspectivas numa das esquinas que tinha à sua
frente.
Nem Caeiro, nem Reis assomavam no seu horizonte psicogeográfico:
apenas velhotes vestidos de couro e corda, gatos vagabundos que pulavam
para apanhar moscas pousadas nas paredes, janelas quebradas, portas des-
quiciadas, um denso labirinto de imundície e segredos oleosos. Não encon-

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trara o Pedro Vaz na tipografia da Travessa do Fala-Só; voltaria para falar
com ele, mas deixara assente com o irmão que a quinta edição da Athena
ainda iria ser dada à estampa: depois disso podiam deitar fora as chapas.
O título da revista andava com ele há tantos anos: lembrou-se que quisera
abrir uma escola com esse nome quando era garoto, mas desistira da ideia
porque descobrira que não gostava de ensinar. As explicações de português
que ia dando aos miúdos no café eram outra conversa: eram mesada. Outro
nome que andava sempre consigo era Álvaro de Campos, o engenheiro his-
triónico a quem já atirara um livro durante a noite para o obrigar a calar-se,
do mesmo modo que Lutero atacara Satanás jogando-lhe um tinteiro.
Sabia que não ia encontrá-lo por ali porque ele não gostava dos pon-
tos mais primitivos da cidade, dos locais onde os romanos tinham erguido
os seus templos a Mercúrio e Baco nos anos em que a cidade curvara a ca-
beça diante do rio. Álvaro de Campos não era um verdadeiro pagão: os seus
deuses – se os tinha – eram feitos de aço, de rodas dentadas e plataformas
cheias de transmutadores de corrente eléctrica.
Sim, algo se intrometera no caminho de Campos, influenciando-o a
mudar de direcção e a ganhar uma força inédita. Poderia um heterónimo,
como gostava de chamar aos seus noms de plumes, tornar-se consciente?
Tornar-se consciente que era consciente: que estava vivo? Se sofrer muito
pode dar a ilusão de ser o Eleito da Dor, que dizer sobre pensar muito?
Deixando para trás a Calçada da Glória aproximou-se da Rua São
Pedro de Alcântara onde ficava a livraria de Kamenezky, na vizinhança do
palácio erguido por Ludwig; falsamente apontado como arquitecto do con-
vento de Mafra quando tinha sido D. João V o cérebro responsável por to-
dos os detalhes do projecto ulterior. Em sua homenagem, a rua esteve quase
a ser baptizada de Rua Ludovice. Galgou o território e atravessou a estrada,
ensopando o sulco dos carris com a sua silhueta – nafta vertida das solas
dos pés. Olhou para a grade que circundava o jardim: o panorama cheirava
a acácia e duas mulheres desceram na sua direcção vindas do Largo de Rio
de Janeiro, uma vestida de branco e outra de preto. Passou entre elas e, vol-
tando a cabeça para trás, viu-as a descer para o Largo da Trindade, monturo
de forças instintivas que, nesse início de tarde, brilhava como o frontispício
de um templo. Chegou à Bric-à-Brac e entrou.
A pequena livraria cheirava a fumo de cachimbo. Eliezer Kamenezky
atendia um homem alto, vestido com um fato escuro. O cliente do alfar-
rabista judeu virou-se para a porta para ver quem acabava de entrar e o
cachimbo balouçou nos seus dentes; agarrava um livro velho que Pessoa
reconheceu como sendo uma cópia do Ennoea, de Anselmo Castello Bran-
co, publicado há dois séculos.
‘Boa tarde, Cirilof’, disse Pessoa, dirigindo-se ao dono da loja.

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Cirilof era a alcunha que tinha inventado para brincar com o naturis-
ta russo. Kamenezky cumprimentou-o num português pesado, com sota-
que brasileiro, e continuou a falar com o cliente; os seus lábios torcendo-se
como minhocas debaixo do enrodilhado de bigode, barba e cabelo com-
prido. Com quase dois metros de altura, a presença do livreiro oriundo de
Lugansk era tão exótica quanto a de um koschei. Pessoa simpatizara com ele
desde que lhe pusera a vista em cima, nesta livraria onde dois corvos empa-
lhados por um embalsamador da Rua da Madalena vigiavam os dedos dos
clientes; pousados sobre a porta, num retorcido ramo envernizado, estes
Hugin e Munin de trazer por casa acumulavam pó nas penugens pretas.
Em baixo, um busto de Atena, feito em gesso, fitava o balcão, os livros e as
velharias com olhos sem pupilas.
‘Fernando, chega aqui, se fazes favor.’ Pessoa aproximou-se do balcão.
Tinha acendido um cigarro para diluir o odor a tabaco de cachimbo: esse
cheiro lembrava-lhe Ofélia e o cachimbo que ela lhe tinha tirado. A partir
desse dia passara a fumar cigarros. ‘Quero apresentar-te o senhor António
Ribeiro que também é um grande pensador.’ O outro riu e apertou a mão
do poeta.
‘O nosso livreiro é um homem de rara cultura, mas exagera. Tenho a
honra de falar com o senhor?...’
‘Fernando Pessoa. ’
‘Senhor Pessoa, é um prazer.’
‘Gosta de ler sobre alquimia?’, Olhava para o livro que António Ribei-
ro comprara. Tinha um igual em casa.
‘Gosto muito. A leitura destes assuntos é uma das minhas paixões. A
outra é o cinema. Gosta de ir ao cinema, senhor Pessoa?’
Pessoa olhou para Kamenezky e sorriu. Um eléctrico passou em fren-
te da livraria, cheio de miúdos pendurados na parte traseira, e encobriu a
luz do sol por uns instantes, ocultando os corvos na penumbra. Quando o
interior da livraria voltou a iluminar-se, Pessoa coçou o nariz e respondeu:
‘Nem por isso. Prefiro ir a concertos ou à ópera. Às vezes também
vou ao teatro.’
‘Exacto!’ Arregalou os olhos grandes e inclinou-se. Pessoa recuou
para manter a distância e percebeu que o homem era ainda um rapaz: não
devia ter mais que dezoito anos; um rosto redondo com olhos enormes e
um sorriso empapado de saliva nos cantos da boca. ‘Mesmo assim terá de
concordar que o cinema é a arte deste século. Não é por acaso que estamos
a ter esta conversa na loja do nosso amigo: é que os russos fazem alguns dos
melhores filmes do mundo!’
‘Oh, Fernando, eu não ponho as minhas mãos no fogo’, disse Kame-
nezky, piscando-lhe um olho.

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‘É verdade’, disse António Ribeiro, passando a língua nos lábios para
limpar o cuspo. Pousou o livro no balcão e gesticulou com o cachimbo na
mão. ‘Pense no Eisenstein. O homem é um génio!’
‘Não sei quem é, não me leve a mal’, respondeu Pessoa, puxando uma
fumaça do cigarro. ‘O senhor vê muitos filmes?’
‘Vejo e escrevo sobre eles! Até estou a pensar em falar com alguns
jornais e ver se estão interessados em publicar uma página que fale sobre
cinema.’
‘Por que não uma página que fale sobre alquimia?’ Olhou para cima
do balcão em busca do cinzeiro e apagou o cigarro.
‘Uma página só não era suficiente. Nem um jornal inteiro. É uma área
muito vasta, compreende? Também escrevo sobre essas matérias, mas não
me atrevo a mostrá-las. Sou muito melhor a pensar e escrever sobre cinema
que já é a expressão artística do futuro. E o cinema do futuro será o sonoro,
não tenha dúvidas! Sabe que este ano um americano conseguiu transmitir a
primeira emissão de imagens com som? Um filme pequeno com menos de
dez minutos de duração, mas é assim que se começa. Um filme, veja bem,
com um moinho de brinquedo! Ah, meu amigo, essa escolha não pode ser
coincidência: os cineastas que defendem o advento do cinema sonoro não
lutarão contra moinhos por muito tempo.’
‘Não percebo nada de cinema. Explique-me essa história do advento
do cinema sonoro.’
‘O que se passa é que ainda existem muitos autores que acham que
o verdadeiro cinema é o mudo e afirmam que o sonoro é uma aberração.
Certos botas-de-elástico até vão mais longe e dizem que é perverso! Estão
enganados. Pense no prodígio que será ver um documentário sobre países
estrangeiros e ouvir os sons dessas terras, as línguas das pessoas. É uma
riqueza.’
‘Estou a pensar. E o passo seguinte?’
‘Não percebo.’
‘Depois do cinema sonoro que tipo de cinema virá?’
António Ribeiro piscou os olhos e mordeu o cachimbo. Olhou para o
alfarrabista e coçou a capa do livro enquanto buscava algo para responder.
‘Ora esta!’, disse. ‘Não tinha pensado nisso, senhor Pessoa, mas é uma
bela pergunta. Afinal de contas, o cinema não pode cair na inércia.’
‘Talvez cinema em cores. Sonoro e em cores.’
‘E por que não? É uma ideia estranha, mas nada me garante que tal
não venha a acontecer.’
‘Como se chama o senhor americano de quem me falou?’
‘Charles Jenkins.’
‘Os americanos são um povo extraordinário. Se vier a existir cinema

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em cores será pela cabeça deles.’
‘Que pensa dos portugueses?’
‘São preguiçosos, mas já reparou que são todos alquimistas?’
‘Diga-me porquê.’
‘O autor desse livro escreveu que a Pedra Filosofal era o Sebastianis-
mo da Philosophia e isso é dizer tudo.’
‘O Fernando é um apaixonado pelo sebastianismo’, disse Kamenezky,
respirando fundo. ‘Se lhe pedes para falar sobre isso tens conversa para oito
dias seguidos.’
‘E um apaixonado por alquimia, pelo que ouço.’
Observou Pessoa com muita curiosidade: os óculos grossos sem aros
eram como duas lunetas e o bigode, sob aquela iluminação, parecia pintado
de ruivo. Era um homem alto, magro e bem vestido. Se o encontrasse na
rua diria que era um vulgar manga-de-alpaca, graciosamente curvado por
anos passados a copiar facturas e calcular balanços. Mesmo assim, os olhos
húmidos denunciavam uma inquietação mental que não passava desper-
cebida.
‘Repare…’, prosseguiu Pessoa, ‘… os heróis de grande entendimento
são os sebastianistas. Existe a cultura da busca com esperança na tradição
portuguesa. Ora, se é uma busca de esperança não é imediata, daí o nosso
carácter indolente. Até é bom sê-lo, se for para gastar essas horas vagas no
aperfeiçoamento do espírito. Todavia, tudo tem dois lados. Até uma sim-
ples moeda tem dois lados, não é verdade? A nossa indolência, a nossa es-
pera, provoca-nos um sentimento de inutilidade que, aliado à esperança, se
transforma num profundo desespero.’
‘É o destino?’
‘É a arte de viver do próprio país. A nossa alquimia! Vamos devaga-
rinho é o que é.’
‘Lisboa é que vai rebentando.’
‘Sim, é verdade, mas devagarinho, devagarinho. Lisboa imunizou-se
contra catarses desse género. Deus tentou acordar Lisboa com um grande
terramoto e não conseguiu.’
António Ribeiro riu e bateu com o cachimbo no balcão. Pegou no
livro e agarrou-o debaixo do braço.
‘Foi um prazer falar consigo, senhor Pessoa.’ Apertou-lhe a mão com
força. ‘A gente vê-se.’
‘Sim, mas diga-me uma coisa: nasceu em Abril?’
‘Como adivinhou?’, disse, espantado.
‘Calculei que fosse um nativo do signo de Carneiro. O sebastianismo
é uma das minhas paixões, a astrologia é a outra.’
‘Veja se adivinha o signo de Portugal, da mesma maneira que adi-

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vinhou o meu, e talvez descubra a origem da nossa indolência, como lhe
chamou.’
‘Já o fiz. Tudo o que lhe contei está escrito nas estrelas à superfície da
vida.’
‘E que pede às suas estrelas?’
‘Dantes pedia-lhes que não me tirassem o sol, mas agora peço-lhes
que não me tirem o sonho.’
‘Bem pensado! Eliezer, toma lá do Fernandes!’ Agarrou e apertou a
mão do livreiro. Acenou com a cabeça aos dois e saiu.
‘É boa gente, o Ribeiro’, disse Kamenezky sentando-se na cadeira para
anotar a compra na sebenta; com a mão esquerda prendeu o cabelo atrás
da orelha. ‘Quer ser cineasta. Se conseguir vir a sê-lo, diz ele, põe-me num
filme.’
‘Ousa!’, disse Pessoa tirando outro cigarro. ‘É boa publicidade para a
livraria.’
‘Mas uma péssima representação.’
‘Como vai o teu livro?’
‘Vai andando.’ Fechou a sebenta e disse: ‘Devagarinho, como Portu-
gal, que é para não ficar torto. Depois mostro-te. Ah, é verdade: vendi todas
as revistas. Quando sai a próxima?’
‘Em breve. Será o último número.’ Falou depressa com uma voz su-
mida.
‘Porquê?’ Kamenezky cruzou as mãos sobre o balcão. Outro eléctrico
passou à frente da vitrina, mas no sentido oposto do anterior.
‘Já não tenho paciência para fazer tudo, para ter as ideias todas. Fal-
tam colaboradores, faltam patrocínios. É uma grande dor de cabeça.’
‘Tenho alguma dificuldade em acreditar que tu, Fernando, não consi-
gas encontrar colaboradores. Em quantos vai a contagem?’
‘Não os conto, Cirilof. Só os invento.’ Expirou uma nuvem de fumo
de tabaco pelo nariz e embaciou as lentes. Tirou os óculos e limpou-os com
o lenço.
‘É uma pena que acabes com a revista.’
‘Eu sei.’ O preço dos livros que comprava a Kamenezky era deduzido
das vendas da Athena. Pôs os óculos, escondeu o lenço no bolso e pôs-se a
olhar o chão ladrilhado em tons de vermelho. ‘Tens novidades para mim?’
‘As novidades que recebi são coisas que já tens.’
‘Está bem. Vou andando. Até amanhã, Cirilof.’ Apertou-lhe a mão.
‘Adeus, amigo.’
Pessoa saiu da Bric-à-Brac e desceu a rua até chegar à Praça Luís de
Camões. Passou ao lado d’ A Brasileira, olhando de soslaio a fachada acaba-
da de estrear, e passou o Largo do Chiado para entrar na Rua Garrett. Junto

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à porta da Basílica dos Mártires um grupo de indivíduos trajados de ne-
gro colocava coroas de flores nas escadas e dois elementos acompanhavam
uma velhota para dentro da igreja; chorosa, com o rosto coberto por um
rendado, era amparada por dois homens de cabelo e bigode branco.
Não reparou no número de carros estacionados, mas viu que os mo-
toristas observavam o cortejo fúnebre encostados aos veículos e com os
chapéus nas mãos. Um rapazinho mal vestido, com um saco de cauchu
ao ombro, chorava baixinho sem despertar a atenção dos participantes nas
exéquias. Antes que o grupo atravessasse as portas e se sumisse, Pessoa ou-
viu o ardina do quiosque da esquina contar a um cliente o que estava a
acontecer; frases faladas em surdina. Tinha morrido o filho de uma viúva,
dizia: tinha sido assassinado.

33
2

Tinha sido suicídio, ia fazer dez anos.


Os pensamentos sobre a morte visitavam-no à noite e, mormente,
lembrava-se do amigo que falecera em Paris pela própria mão. No inte-
rior do quarto, o ritmo funéreo que o bico da caneta imprimia no papel
fê-lo recordar o cortejo que vira há umas semanas em frente da Basílica dos
Mártires. A brancura da igreja, tornada ainda mais luminosa pelos fatos
dos gatos-pingados junto às paredes, avultara ao Sol; tal como as nódoas
de tinta preta que sobressaíam nos seus dedos claros: manchas malignas
que insistiam em crescer. Elas e o cheiro da nicotina debaixo das unhas.
Só a tinta que gastava é que não cheirava a nada: era inodora porque o que
escrevia era insípido.
A noite que via pela janela não tinha Lua. Onde andaria ela? Onde
andaria a inspiração?
Satélites descaroçados viajando pelo universo em órbitas paralelas:
um do planeta e outro da vida – da vida vulgar. O avesso da vida era o
sonho que cobria o raciocínio: outra espécie de sonho. Outra espécie de
amor?
Ouviu a caneta arranhar o papel. Leu:

Príncipe de melhores horas, outrora eu fui tua princesa,


e amámo-nos com um amor doutra espécie, cuja memória me dói.

Que estava a escrever? Sentia a sua voz, mas não a conhecia. Agarrou

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a garrafa e engoliu farelos de cortiça com o vinho porque destruíra a rolha
ao desocupar o gargalo. Lambeu o bigode, pousou a garrafa no chão e en-
frentou o papel. Não queria beber nem escrever: queria gemer, queria gri-
tar. Queria escrever como se gemesse, magoando o cérebro como o aparo
feria a celulose, e desenhar palavras desprestigiantes nas pregas dos miolos.
Não escreveria em português, escreveria em ele mesmo e com uma caligra-
fia desrespeitadora, empilhando parágrafos como se fossem pratos sujos.
Continuou a preencher a frente e o verso da página, anotando com
rapidez as ideias que conseguiam furar a superfície fibrosa da dura mater,
castigando os ossos do pulso no exercício. Nunca lhe doíam quando se
masturbava porque costumava esfregar a glande devagar com a ponta dos
dedos da mão esquerda, influenciando uma suave emissão de sémen que
não podia competir com a jactância das ejaculações mais triunfantes.
Acreditava que não era um pecado, capaz de debilitar o corpo ou ce-
gar, mas consistia num acto com ressonâncias políticas muito sérias. Por
baixo da sua nudez, quasi-católica, aflorava uma alegria pontiaguda de cos-
tureira masculina que tem no regaço cabeças de príncipes que são prince-
sas. Era um onanista! Um homem que se masturbava e que desejava encon-
trar uma mulher que se masturbasse com ele.
Não pensava em ninguém quando se tocava porque nunca conseguia
deixar de pensar. Pensava nas coisas para poder escrever sobre elas, era o
seu trabalho. Talvez um dia escrevesse uma história cultural da masturba-
ção para desmistificar a falha de Onan, que Jeová tinha rachado ao meio,
atirando-lhe um relâmpago roubado à luminária, quando o apanhara em
ilícito coito interrompido. Queria encontrar uma mulher que não tivesse
medo de se masturbar à sua frente enquanto ele, cobrindo o pénis com um
lenço para que ela não o visse, trabalharia para alcançar o clímax observan-
do os seus movimentos. No final, arrumaria o tecido molhado e fingiria
náusea para que ela sentisse vergonha: a culpa é o afrodisíaco preferido da
mulher. Iria masturbar-se diante das mulheres e dos homens, dos animais e
das coisas paralisadas, sempre com a meta de avançar de onde as suas mas-
sas acabavam: masturbar-se-ia como se os comentasse. Como se escrevesse.
Levantou-se, baixou-se para agarrar a garrafa e deixou-a em cima da
secretária. Abriu a gaveta e tirou o lenço da mãe. Recolheu a fotografia, um
bloco de apontamentos e inspirou fundo, duvidando de muitas coisas: se
iria conseguir comunicar com ela, se estaria a enlouquecer, se uma íbis só
com uma perna iria longe numa corrida contra o tempo.
A noite crescia e, com ela, aumentava a melodia negra de jardins de-
sertos, pavimentos polidos pela humidade e o bater das asas dos insectos
em volta da luz miserável dos candeeiros. Lisboa podia ser lúgubre durante
o Verão, porque o silêncio nascido da ausência do ruído do Inverno fazia

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ninho em todos os opérculos da cidade. O som da chuva aquecia sempre
qualquer quarto, mas que coisa poderia reconfortar uma vazia noite de
Agosto? Pudesse ele transferir a ambiência das noites de Natal para aquelas
horas, gravando-as na salitragem e ferrugem da sua casa como uma pista
sonora numa película de nitrato de prata, e adormecer com essas vozes a fa-
larem-lhe nos ouvidos: a voz da mãe bastava, mesmo com o bafo sujo pelo
alho do bacalhau cozido. Distraiu-se e começou a bater lentamente com os
nós dos dedos na secretária enegrecida pelos salpicos de tinta permanente,
olhando a fotografia da mãe e lembrando as coisas que ela escrevera nas
cartas enviadas da África do Sul, coisas de outros tempos nos quais ele era
mais novo e ela ainda conseguia mover os dois lados do rosto; histórias so-
bre sobretudos esquecidos e dinheiros ganhos, reminiscências grafológicas
e barcos afundados por icebergues, forragem de nomes que se consomem a
frio. Acariciando o lenço de seda teve a súbita ideia de o substituir por um
artigo maior e lembrou-se que a irmã tinha guardado algumas roupas da
mãezinha. Guardou o lenço na gaveta e saiu para o corredor em dedos dos
pés na direcção do quarto desocupado.
Entrou, fechou a porta sem fazer barulho e aproximou-se do armário;
estava ansioso e sentiu vontade de fumar, mas esquecera-se da cigarreira no
bolso do casaco. Aguardou uns instantes, agarrando a fotografia e o bloco
de apontamentos, e, em silêncio, abriu o armário descobrindo o que havia
lá dentro: um par de botas de pele e caixas de cartão cheias de conteúdos
misteriosos; cabides de madeira, alguns vazios e outros com roupa pendu-
rada. Viu um vestido preto pendurado num dos cabides como se fosse as
asas de um morcego agarrado a uma estalactite. Hesitou, mas tirou o cabide
do armário; admirou o vestido, passando-o na bochecha e nos lábios.
O cheiro do perfume da mãe fê-lo chorar. Sentou-se na cama com
a cara mergulhada no vestido, soluçando e procurando não se fazer ouvir.
Sem saber porquê tirou os sapatos. Bateu com as solas dos pés no chão,
levantou-se e, sem tremer, tirou as calças e desabotoou a camisa. Deixou
a sua roupa em cima da cama e agarrou o vestido; deixou-o cair ao longo
do tronco encurvado. A peça de roupa era grande demais e precisou de se-
gurar uma das mangas em cima do ombro para evitar que ela escorregasse
para o chão. Sentiu o pénis encher-se de sangue; procurou o bloco de apon-
tamentos e a fotografia antes de se sentar na cama da mãe.
Tinha consciência que a hereditariedade era uma condição impor-
tante no êxito de fenómenos mediúnicos e tentava lembrar-se de tudo o
que a tia Anica lhe ensinara. Sabia que os brâmanes casavam em exclusivo
com mulheres pertencentes à mesma casta para que a linha de sangue dos
médiuns não fosse interrompida, mas a mãe era alheia a estas questões ex-
tra-sensoriais: se ele tivesse um único osso espírita no corpo só podia ter

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sido herdado da tia. Talvez o fracasso das telegrafias fosse cultivado pela au-
sência de elementos familiares, observando que um círculo alargado com-
posto por parentes fortalecia as projecções, ou por se sentir prejudicado
pelas frequentes insónias. Não se alimentava da melhor maneira, comendo
em restaurantes da Baixa, onde abusava do sal; bebia em excesso e fuma-
va muito: qualquer candidato a médium reconheceria a fatalidade desses
comportamentos. Agora era tarde demais para começar uma dieta: a mãe-
zinha morrera sem aviso e só a esperança de conseguir entrar em transe
pneumatográfico com ela, ignorando todas as deficiências que concorriam
para o atrapalhar, lhe dava coragem para sair da cama. Concentrou-se na
fotografia e agarrou o vestido, cuidando para que a caneta não rolasse para
fora do seu alcance.
Assustou-se com um ruído sem assinatura e enrugou a testa, puxan-
do a prega de vestido com mais vigor. Abriu a boca e chamou pela mãe,
esperando uma confirmação. Ouviu outro som e sorriu com nervosismo:
compreendeu que alguma coisa senciente o acompanhava no interior do
quarto. Inspirou com força e chamou novamente pela mãe com a maior
doçura que a garganta apertada lhe permitia. A presença ganhou peso; pre-
parou-se para abrir os olhos e comunicar com ela. Era a hora!
Sentiu uma tímida corrente de ar arrefecer-lhe as mãos. Atrás dele, a
janela e o reposteiro estavam fechados e a luz do candeeiro de rua sangrava
em linha recta até ao chão. Os cabelos levantaram-se e a pele arrepiou-se
debaixo do vestido preto; as tripas protestaram, mas comprimiu o abdó-
men e prendeu-as. Uma voz! Pareceu-lhe ouvir uma voz de mulher dizer
baixinho o seu nome.
Ignorou o impulso de se mover e abrir os olhos. Uma sede terrível
secou-lhe a boca. O coração acelerou. A língua inchou para chupar o sabor
férreo do sangue que lhe subira à cabeça. Ainda de olhos fechados, come-
çou a escrever gatafunhos no bloco de apontamentos; desenhou círculos e
longas linhas enroladas para aquecer a mão antes que a transmissão come-
çasse. Ganhando coragem chamou pela mãe e pediu-lhe que falasse com
ele. O ar em volta do corpo fervia de antecipação. Ele receava reagir e cessar
a comunicação que conseguira iniciar com tão grande esforço, mas tinha
de arriscar: agarrou a caneta com força, abriu os olhos húmidos pelo choro
e viu a irmã vestida com uma camisa de noite a olhar para ele.
‘Merda!’
Levantou-se e fugiu para um canto do quarto, deixando cair o bloco
de apontamentos e a caneta; voltou a cara para a parede. Sacudiu-se, como se
tivesse sido atingido por um tiro, e deixou-se cair para o chão. Cobriu o rosto
com as mãos e começou a chorar, não se apercebendo que a irmã se apro-
ximava devagar atrás dele. A mulher baixou-se, agarrando-lhe os braços. A

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caneta rolou para debaixo da cama; a ponta metalizada funcionou como um
íman, atraindo a luz e dando-lhe o formato de uma bolha: uma espada caída
com uma gota de sangue reluzente na porção mais afiada do gume.
‘Fernando, levanta-te. Vamos conversar’, disse a irmã, coçando-lhe a
nuca.
‘Desculpa, Henriqueta. Eu não sei o que se passa comigo.’ Limpou o
nariz no braço. ‘Ajuda-me.’
‘Que queres que faça? Eu faço tudo, Fernando.’
‘Eu…’ Tirou os óculos e viu a irmã transformar-se numa mancha de
luz e sombra; uma fofa auréola kiriliana. Secou os olhos e voltou a colocar
os óculos. ‘… não sei que te diga.’ Inclinou-se, abraçou a irmã e puxou-a
com força sem se lembrar do bebé. Henriqueta amparou a queda com um
braço e sentou-se em cima dos tornozelos, voltando-se de frente para o ir-
mão. Apalpou o vestido da mãe, deixando a palma da mão escorregar pelo
tecido.
‘Por que foste vestir isto?’, disse, abanando a cabeça. ‘Que estavas a
fazer?’
A voz indicava que estava prestes a chorar. Pessoa gemeu e o som en-
grossou numa lamentação dolorida que lhe provocou novamente o choro.
Bateu com os dentes ao pousar com força o queixo no ombro da irmã e
cuspiu a resposta entre eles.
‘Tenho tantas saudades da mãezinha!’
Abraçou-a com delicadeza e sentiu o ventre enfunado contra o seu
estômago. O pescoço dela cheirava à água-de-colónia do marido: tinha a
cria do cunhado dentro dela, o cheiro dele embebido na pele, mas de seu
não tinha nada. Sentiu-se completamente sozinho. ‘Não queria isto, não
queria nada disto.’
‘Nenhum de nós queria.’
‘Que vamos fazer sem ela?’
‘Não sei. Só sei o que não devemos fazer.’
‘O quê?’
‘Isto, Fernando. Desesperar.’
‘Estou triste. Estou tão triste!’
‘Escuta, tens de continuar em frente.’ Calou-se por uns instantes e
continuou: ‘Por que acabaste com a revista? Não devias tê-lo feito.’
‘Não devia ter vestido isto.’
Saiu do chão, ajudando a irmã a levantar-se, e sentou-se a seu lado
na cama. Olharam para a porta e viram Francisco aparecer de pijama e
com o cabelo em reboliço. Quando ele viu Pessoa vestido com as roupas
da sogra ficou de boca aberta. Avançou para dentro do quarto, mas a
mulher disse-lhe:

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‘Deixa estar, Chico. Eu falo com ele, está tudo bem.’
O marido acenou com a cabeça e sem que Pessoa desse por isso per-
guntou por gestos à mulher se ele estava com os copos. Ela disse-lhe que
não e mandou-o para o quarto. Agarrou a mão do irmão, espreitando os
riscos traçados no bloco de apontamentos, enquanto esperava que ele dis-
sesse alguma coisa. Acabou por ser ela a falar primeiro.
‘Tens de ter mais juízo, Fernando. Não podes desesperar desta manei-
ra, por mais que te custe a suportar a morte da mãezinha. Também estou
triste, mas vou ter um filho e não posso andar sempre preocupada contigo.
Preciso de saber se te vais portar bem ou se vais continuar a…’ Parou e sa-
cudiu a mão, pensando numa forma de acabar a frase.
‘Se vou continuar a fazer o quê?’
‘Tu sabes.’
‘Diz-me.’
‘A beber, Fernando, bolas!’, disse, batendo com a mão no joelho dele.
‘A beber. Cheiras a vinho! Achas que não se nota?’
‘Não estou bêbedo.’
‘Então por que é que estás vestido com a roupa da mãe? Queres expli-
car-me o que estavas a fazer?’
‘Eu não estou bêbedo.’
‘Queres acabar como o tio, é isso?’
‘Não fales mal do tio.’
‘Não estou a falar mal do tio, Fernando, mas sabes bem que foi a be-
bida que o arruinou. Tu ainda és novo. Não te deixes arruinar, está bem?’
Agarrou-lhe a mão e beijou-a. ‘Não estou zangada contigo. Despe isso que
eu amanhã arrumo.’
‘Está bem.’
‘Vai dormir e promete-me vais começar a portar-te melhor. Por favor.’
Pessoa não falou, mas respondeu com um aceno de cabeça. Quando
Henriqueta saiu do quarto ele levantou-se e despiu a roupa da mãe. Vestiu-
-se, mas deixou-se ficar descalço; quando reuniu as suas coisas para se ir
deitar, descobriu que lhe faltava a caneta. Largou tudo em cima da cama e
gastou uns instantes à procura dela; guardou-a no bolso da camisa. Quando
fechou a porta olhou para o fundo do corredor e viu a irmã à porta do quar-
to dela: estava à espera para ter a certeza que tudo estava bem.
‘Boa noite’, disse Pessoa. Henriqueta não respondeu. Baixou o rosto,
cruzou as mãos sobre a barriga grávida e entrou devagar no quarto.
Sentando-se à escrivaninha, com um cigarro aceso na boca, Pessoa
ignorou a garrafa de vinho, abriu o bloco de notas e começou a escrever
uma carta para Mário de Sá-Carneiro: não iria deitar a cabeça na almofada
essa noite sem falar com um morto.

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Meu Ex.mo Amigo:

Creio estar sofrendo um acesso – ligeiro, suponho, e, se assim é, curável


– de loucura psicasténica. Como, se é certo o que de mim presumo – e
se não é certo, é provável que o meu diagnóstico de leigo seja brando
– é recomendável o internamento em manicómio, e o Decreto de Maio
de 1911 permite, num número qualquer de um dos seus artigos, que o
próprio doente requeira esse internamento, vinha pedir-lhe o favor de
me dizer como e a quem esse requerimento, e com que documentos, se
alguns são desde logo precisos, deve ser fundamentado.
Perdoa-me falar desta maneira, mas não tenho a coragem para
me matar e tenho de pensar na vida de um modo que já esteja pronto
a pensar. E, entretanto, penso em ti, também. Muito.
De V. Ex.ª
Am.º Resp. e Obgdo.

Arrancou a folha do bloco e olhou para ela durante uns instantes. De-
pois riscou o último parágrafo até rasgar o papel e deitou-se sem se despir.
Passadas duas horas ainda não dormia. Sentou-se na cama, abriu a bragui-
lha e masturbou-se.
Não pensou em nada.
Depois chorou.
E adormeceu.

Se alguma coisa parecia fora do sítio na sala escura do Montanha não eram
as mesas quadradas onde se sentavam cavalheiros de chapéu de coco vin-
dos da Rua da Prata nem o lacrador gordo com calças rotas que costumava
montar serviço na Praça do Comércio, mas o rapazote escanifrado a quem
Pessoa dava explicações de português uma vez por semana. O miúdo vinha
ter com ele à hora combinada, com uma sacola ao ombro, e sentava-se à
mesa. Assim que entrava, o criado Manuel saía de trás do balcão com dois
copos na mão: um de aguardente velha e outro de leite. Bebe o teu leitinho
que eu bebo o meu, dizia Pessoa a Diogo. O puto agarrava o copo de leite
com as duas mãos, bebia e mostrava um bigode branco antes de limpar a
boca na manga da camisa. Pousando o cálice vazio, Pessoa estalava a língua,
perguntava-lhe quais eram as suas dúvidas e durante a hora seguinte revia
com ele a matéria leccionada nas aulas.
O barulho das conversas dos outros clientes não os incomodava tan-

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to quanto o cheiro: seria possível alguém em algum lugar do mundo inven-
tar uma coisa para os sovacos não federem como cebolas? Enquanto o café
não fechava para remodelação continuava a oferecer pousio a um grupo
numeroso de fregueses regulares; reuniam-se ali, no gaveto da Rua do Arco
do Bandeira com a Rua da Assunção, para contar anedotas e beber porque
o Abel não tinha mesas. Sobre o balcão, entre prateleiras cheias de garrafas,
podiam ver-se as mascotes favoritas do patrão, homónimo do criado: um
galo de Barcelos em faiança branca e uma mão-cheia de Nossas Senhoras
das Dores; relíquias macilentas, tornadas enxofre pela luz que perfurava a
sujidade das vitrinas – Feng Shui de classe operária. Enquanto estava com
Diogo, Pessoa nunca parava de fumar; os cigarros anulavam os maus odo-
res e a nicotina mantinha em ponto-de-rebuçado os demónios taquicardí-
acos invocados à noite.
‘Lá na escola disseram que, se calhar, para o ano só temos de fazer até
à quarta classe’, disse Diogo enquanto copiava o rascunho da composição
para a sebenta.
‘Até à quarta classe?’
‘Não sei. Ouvi os miúdos mais velhos a dizer isso.’
‘Deves ter ouvido mal.’
‘Se calhar.’ Partiu o bico do lápis e abriu o estojo para tirar o apara-
lápis. ‘Ah! As meninas vão ter uma escola só para elas.’
‘Onde ouviste isso?’
‘Na mesma conversa.’ Guardou o afia no estojo e continuou a escre-
ver.
‘Parece uma conversa de doidos’, disse Pessoa, acabando de fumar e
cruzando os braços.
‘Se calhar’, respondeu Diogo, virando a folha para copiar o texto escri-
to no verso. Pessoa tirou a cigarreira do bolso e acendeu um cigarro. Olhou
para o balcão e distraiu-se a ver o Manuel tirar as chávenas de café do lava-
loiça e secá-las com um pano cortado de um saco de farinha enquanto ia
assobiando. Na parede atrás dele, o relógio mostrava que a tarde envelhecia
rapidamente e Pessoa estava com pressa para passar na Bric-à-Brac. Uma
voz brusca interrompeu-o:
‘Que vantagens foram buscar à escola?’
Pessoa olhou para o lado e viu um homem vestido de preto aproxi-
mar-se da mesa; o seu aspecto tinha algo de desarrumado, mas não conse-
guiu perceber o quê. Diogo parou de escrever, escondeu as mãos debaixo da
mesa e esperou que o explicador fizesse alguma coisa.
‘Como disse?’, perguntou Pessoa, avaliando o estranho.
Era um homem baixo, de meia-idade; pelas orelhas, calculou que ele
devia ter praticado boxe durante uns anos em alguma fase da vida.

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‘Que vantagens é que putos como esse, que hoje são homens, foram
buscar à escola?’, perguntou o homem, torcendo as sobrancelhas cabeludas
que faziam os olhos parecerem mais pequenos. Olhou para a sebenta de
Diogo, inclinou-se para espreitar o texto e concluiu: ‘Nenhumas.’
Pessoa falou com o intruso buscando alguma cumplicidade. Puxou
uma fumaça do cigarro, esfanicou-o no cinzeiro e logo que o fumo do ta-
baco perdeu visibilidade sentiu o cheiro do suor do resto da clientela; era
sempre pior no Verão.
‘Acredita nisso?’
‘Claro que acredito! Não ganharam nada, mas perderam tudo. Digo-
lhe, senhor, felizes são aqueles que esquecem a escola e voltam à enxada!’
‘Como as dos trabalhadores rurais?’
‘Esses trabalhadores, senhor, são a parte mais linda, mais forte e mais
saudável da alma portuguesa.’
‘O senhor andou na escola?’
O homem acenou com a cabeça e abriu a boca sem dizer nada. Pes-
soa ainda não tinha percebido se ele estava embriagado, mas não queria
arriscar-se.
‘Andei, andei.’
‘O que é que lhe ensinaram?’
‘Nada que a vida não me tivesse ensinado melhor.’
‘Victor Hugo escreveu que abrir uma escola era fechar uma cadeia.’
‘Quem é esse?’
‘Não se lembra do que leu nas aulas?’
‘O senhor acha que tem graça, é isso? Está a fazer pouco?’
‘Deixe lá. É porque não posso fazer muito.’
‘Está a ver esta gente?’ Apontou os outros clientes com o braço. Pes-
soa olhou em volta e viu que estavam todos a prestar atenção à conversa. As
mãos de Diogo continuavam debaixo da mesa agarrando o lápis acabado
de afiar; por trás da cabeça do intrometido espreitava o galo de louça, levan-
tando a crista pintada com pingos azuis.
‘Manuel, trazes três copos de leitinho, se fazes favor? Mas do meu.’
‘Está a ver esta gente?’, insistiu. ‘Toda a gente o censura.’
‘Toda a gente?’, perguntou Pessoa voltando-se de frente para o ho-
mem. Pelo rabo do olho viu que ele já tinha apoiado uma mão em cima da
mesa e que os dedos grossos pareciam estar com vontade de lhe saltar para
a cara. Imaginou os seus óculos desfeitos por um valente soco; mostrou-
-lhe uma cara surpreendida e, mantendo a cabeça fria, perguntou-lhe: ‘Das
cinco partes do mundo?’
Envergando um guarda-pó manchado de vinho, Manuel aproxi-
mou-se da mesa agarrando um tabuleiro com três cálices de aguardente

42
velha. Pousou os copos na mesa e afastou-se, virando a cabeça para não
perder o que se iria passar. O bouquet de álcool envelhecido em casco de
carvalho flutuou sobre a mesa.
‘Bom… das cinco partes do mundo, não’, respondeu o homem, co-
çando a cabeça e olhando guloso para os copos. Pessoa aproveitou a opor-
tunidade e agarrou em dois cálices.
‘De toda a Europa?’ Ofereceu-lhe uma aguardente e fez-lhe sinal para
que a bebesse.
‘De toda a Europa, não.’ Riu, cheirou o copo e bebeu um gole rápido.
Pessoa bebeu a seguir.
‘Então de todo o Portugal?’, continuou.
‘De todo o Portugal, também não.’
Pessoa pousou o copo vazio na mesa e empurrou o terceiro na di-
recção de Diogo. Fez-lhe sinal com a cabeça para que bebesse. O miúdo
recusou-se, mas Pessoa arregalou os olhos e ele pegou no cálice do mesmo
modo que agarrava os copos de leite e bebeu todo o líquido de uma só vez.
‘Ao menos de todas as freguesias de Lisboa?’, perguntou. A voz agasa-
lhou um arroto de Diogo.
‘Isso também não’, respondeu o homem, gesticulando com o dedo.
Bebeu a aguardente, deixou o copo vazio na mesa e abalou. Pessoa e Diogo
seguiram-no com os olhos; passados uns instantes, o miúdo bateu com as
palmas das mãos em cima da mesa.
‘Que grande besta!’
Pessoa riu e espiou os clientes à sua volta. Alguns riram-se da explo-
são de Diogo, mas a maioria já tinha voltado a meter-se nos seus assuntos.
‘Que é que achaste do meu leitinho?’
‘O seu leitinho é uma bela porcaria, senhor Pessoa. Arranha muito!’
‘Arranha muito e trepa bastante, mesmo sem ser animal.’ Esperou um
momento e disse: ‘Há gente, Dioguinho, que não gosta da vida que leva e
que tenta meter-se na vida dos outros, mas não podemos deixá-los entrar.
Percebeste?’
‘Se calhar.’
‘Aquela besta, como tu lhe chamaste, não é nenhuma besta. É um
homem e já foi um rapaz como tu.’
‘Qual era o problema dele?’
‘Andamos neste mundo para ser alguma coisa, eu e tu e todos. Aquele
nunca descobriu para que serve e isso deixa-o danado e com medo.’
‘Medo de quê?’
‘Medo de encontrar alguém melhor que ele.’
‘E por que raio tive de beber esta porcaria?’ Deitou a língua de fora e
fez uma careta desagradada.

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‘Por que eu também estava com medo.’
‘Não percebo.’
‘Tens a certeza dessas coisas que ouviste na escola?’
‘Se calhar não.’
‘A instrução, Diogo, é uma das coisas mais importantes da vida. Eu
quando tinha a tua idade queria ser professor, queria construir uma escola.
Acho que desta forma, com as nossas sessões, sou professor por um boca-
dinho.’
‘Quero ser jogador de futebol!’
‘Acaba de copiar isso e talvez consigas!’, disse, sorrindo. Diogo reco-
meçou a tarefa. ‘Usa a cabeça. Para marcar golos e para o resto, sempre.’
‘Sim, senhor.’
‘Nunca confies em alguém que te diga que não é preciso estudar para
ter uma boa vida, porque aquilo que esse alguém quer é que tenhas uma
má vida.’

**

Foi ao final da tarde que Pessoa entrou na livraria de Kamenezky para dei-
xar à consignação meia-dúzia de exemplares do quinto número da revista
Athena, saída da tipografia no final de Junho, mas datada do segundo mês
do ano; a capa mantinha a curiosa ilustração parecida um mosaico romano
emoldurado por um padrão que se assemelhava às cinco quinas do escudo
de D. Afonso Henriques. O livreiro estava sozinho e preparava-se para fe-
char a loja quando Pessoa passou pela porta com um embrulho debaixo do
braço. Deixou-o sobre o balcão e estendeu a mão ao amigo.
‘Trago-te a nova revista.’
‘Nova e última.’
‘É verdade.’
Kamenezky rasgou o papel e desembrulhou seis revistas. Olhou para
elas com atenção, folheou-as e sentou-se para ler um trecho. Tinha o cabelo
apanhado com uma fita atrás da nuca e, sem ele a cair sobre o rosto, a barba
imensa ganhava uma dimensão majestosa.
‘Belos poemas de Caeiro’, disse, cheirando a tinta do papel e voltando
a página com os dedos ossudos.
‘Obrigado.’
‘É uma pena que a maioria dos leitores não saibam que foi Fernando
Pessoa quem os imaginou.’
‘Ora, ora, Cirilof, esses poemas são parte de toda uma literatura que,
como bem disseste, imaginei e vivi, logo é sincera.’ Pensou uns instantes,
passeando a vista pelos livros expostos em busca de novidades, e acrescen-

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tou: ‘Em cada heterónimo coloquei um profundo conceito de vida, diverso
em todos, mas sempre atento à importância misteriosa de existir.’
‘E isso significa?’
‘Significa que Caeiro, como o concebi, só poderia ser Pessoa em qual-
quer parte do mundo porque foi construído com a minha leitura das coisas
deste mundo e de outros mundos.’
‘E quando morrer o Pessoa morre o Caeiro.’
‘Isso não é verdade porque Caeiro já morreu.’ Riu-se e Kamenezky
sorriu. ‘Mesmo assim, não te preocupes que ficam cá baús cheios.’
‘Está bem, amigo. Já percebi tudo. Tu queres é influenciar os outros.’
‘Tens razão’, concordou, depois de pensar um pouco no que o li-
vreiro dissera. ‘Quero influenciar os outros, mas de uma maneira bené-
fica.’
‘Claro que sim.’
‘Em ninguém eu encontro uma atitude para com a vida que bata cer-
to com a minha sensibilidade, com as minhas aspirações. Encontro apenas
quem está de acordo com actividades literárias que estão nos arredores da
minha sinceridade.’
‘Isso não basta, suponho.’
‘Não basta e a minha sensibilidade vai ficando cada vez mais pro-
funda e a minha consciência cada vez maior da terrível missão que todo o
homem de génio recebe de Deus.’
‘E o resto que não é sensível à arte?’
‘O resto também vai pelo mesmo caminho da arte, da fertilidade lite-
rária. Vai tudo ficando cada vez mais oco, repugnante.’ Kamenezky abanou
a cabeça. Pousou a revista no balcão e seguiu com o dedo o padrão que
decorava a capa.
‘Tens de publicar. Publica que isso desaparece.’
‘Isso é o que a minha irmã me diz.’
‘Devias dar ouvidos à tua irmã.’
‘Agora não sou capaz.’
‘Tudo bem.’ Viu Pessoa acender um cigarro e disse: ‘Sabes que eu te
percebo porque escrevo. Não como tu, mas gosto de pensar que aquilo que
estou a fazer também vai ser útil, vai erguer alto o espírito daquilo que eu
acredito.’
‘É uma consequência de encarar a sério tanto a arte como a vida’, res-
pondeu Pessoa, soprando fumo de tabaco. Enxotou cinza da manga do ca-
saco e enfiou uma mão no bolso das calças. Continuou a falar, gesticulando
com a outra: ‘A ideia patriótica sempre esteve presente nos meus propósitos.
Sempre desejei, como dizes, erguer alto o nome português através daquilo
que faço.’

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‘Vejo-o na capa da revista’, disse, apontando o padrão que a decorava.
‘É uma coincidência ou quiseste reconciliar a cultura saturnina dos roma-
nos com os deuses dos lusitanos?’
‘É uma coincidência’, respondeu. Inclinou-se para agarrar um exem-
plar. Observou a capa por uns instantes e disse: ‘Agora que falas nisso reco-
nheço neste padrão uma semelhança com as armas de Afonso Henriques,
mas confesso que é acidental.’ Pousou a revista na mesa. ‘Faz de conta que
pertence aquele velho plano de respigar a imagética dos etruscos para repa-
vimentar Lisboa e que, tantos anos depois, ainda não deixou o Rossio em
paz. Também parece o logótipo do Café Chiado. Há ideias que andam no
ar.’
‘E eu a pensar que se tratava de neo-paganismo para combinar com
os versos do Caeiro.’
‘Respondo-te citando de má memória umas coisas que li sobre isso,
escritas por António Mora, conheces?’
‘Acho que não.’
‘Ele diz mais ou menos o seguinte sobre essa história do neo-paganis-
mo: neo-pagão, ou pagão novo, não é um termo que faça sentido. Porquê?
Porque o paganismo é a religião que nasce da terra, da própria natureza,
floresce da atribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira. Em virtu-
de da sua própria natureza, enfim, natural, o paganismo pode aparecer ou
desaparecer, mas não pode mudar de qualidade.’
‘Em suma?’
‘Faz tanto sentido ser neo-pagão como neo-pedra ou neo-flor.’
‘Ah! Estou a ver.’
‘Falaste em reconciliar os deuses romanos com os deuses lusos,
mas as nossas instituições políticas sofrem do colectivismo romano mis-
turado com o sentimentalismo cristão. Ainda outro dia pensei nisso e
concluí que misturámos as receitas humanitárias de Cristo à dureza ad-
ministrativa que herdámos de Roma. É uma prova de quão longe nos
desviámos da anima grega, no mínimo daquilo que ela deveria ser ori-
ginalmente. Assim, Roma perverteu a Grécia e nós pervertemos a Roma
pervertida, primeiro absorvendo o sentimento sefardita da diáspora ju-
daica de 74, e em segundo com o cristianismo visigótico. Quem é que se
lembrou de preservar a herança intelectual grega no meio deste imbró-
glio? Os muçulmanos.’
‘Escreve um livro que fale da diáspora portuguesa.’
‘Da diáspora portuguesa?’
‘Portugal explodiu no século XV e os estilhaços espalharam-se pelo
globo, a oriente e a ocidente: homens e coisas. Escreve sobre o que perma-
neceu de tudo isso. Estou a pensar em chamar Alma Errante ao meu livro.

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Sou judeu e os judeus percebem muito sobre a diáspora. Não estou a querer
dizer que tenho respostas, mas que tenho empatia com o meu passado. Se
não a tivesse não te estava a falar nisto.’
‘Portugal também é judeu, Cirilof!’ Pessoa sorriu; estava entusiasma-
do. ‘Afinal de contas, se não somos hiperbóreos, mas sefarditas, a nossa ex-
pansão ultramarina, da qual nos restam as províncias em África e na Ásia,
não foi um acidente, foi obra de uma vocação judaica.’
‘Vocação de povo eleito?’
‘Se calhar, como diz um aluno meu.’ Abanou a cabeça e bateu com o
dedo no balcão. O cigarro balouçava nos lábios como um ramo sacudido
pelo vento. ‘Não, não acredito que o português seja, no sentido mais farisai-
ca, um povo eleito. Prefiro destinado, que é uma palavra que nos deixa mais
à vontade. À vontade para falhar.’
‘Como falharam sempre as tentativas de reconciliar judeus e cris-
tãos.’
‘Os judeus nunca perceberam que Cristo é um rei encoberto na
tradição de muitos outros reis encobertos, como aqueles que podes en-
contrar nas mitologias francesa, alemã ou dinamarquesa. Cristo é sebas-
tianista.’
‘Os judeus não reconhecem Cristo como Messias, sebastianista ou
não, como sabes, mas os cristãos também adiaram a vinda do Messias.’
‘Como?’
‘Instituindo a crença no Espírito Santo. Pensa que pelo culto do Espí-
rito Santo se poderia reconciliar a fé judaica com a cristã e mitigar muitas
dores de cabeça.’
‘Compreendo. É o mesmo tipo de messianismo joaquimita que
ofendeu a Inquisição, e isso é sebastianista! Cristo ou o logos, como D.
Sebastião e Frederico Barbaroxa, não existe senão simbolicamente, per-
cebes? Quando lemos nos livros dos rosicrúcios que o sentimento é mais
verdadeiro que a razão, supomos erroneamente que se trata do senti-
mento como o sentimos, mas não é isso que contam os Encobertos. Eles
são símbolos para outro tipo de processos, alquímicos até, mas já se sabe
que quando a política não é mais que a mística degradada ela ofende-se
com facilidade.’
‘A política espiritocida!’
‘Se calhar!...’
Kamenezky agrupou as revistas, levantou-se e arrumou-as numa
prateleira com outras publicações; como a Ísis, da qual Pessoa era assinante.
O livreiro aproximou-se do amigo e o seu tamanho minguou o corpo do
poeta. Pessoa já vira Kamenezky pôr-se ao lado de Ferreira Gomes e tinha
sido uma barrigada de riso.

47
‘Tens novidades para mim?’, perguntou-lhe, ainda com o diminuto
Ferreira Gomes em mente.
‘Não tenho, amigo. Só recebi coisas que não te devem interessar, mas
podes ver à vontade.’
‘Como está o Ribeiro?’
‘Anda desaparecido, mas deve estar bem.’
Pessoa andou pela livraria lendo lombadas e capas; o Cirilof tinha
razão: não ia comprar nada. Levantou a cabeça na direcção dos dois corvos
empoleirados sobre a porta e ao olhar para baixo descobriu um homem a
espreitar para dentro da loja através da montra. Aproximou-se e observou-
-o: era um vagabundo, carregado com uma mala de cartão rasgada, acom-
panhado por um galgo velho, cego de um olho, e que escrutinava a livraria
como se fosse um espeleólogo. Pessoa não conseguiu tirar os olhos de cima
daquele homem.
Viu-o coçar a cara com a mão direita, enviando um reflexo atrasado
à superfície envidraçada que os separavam, e descobriu que ele tinha dois
anéis nos dedos indicador e mindinho; aros de prata oxidada, como fios da
juba do próprio Leão Verde. O galgo pestanejou o seu único olho e, com
um movimento rápido, cheirou o ar com o focinho pontiagudo. Ladrou e
o dono puxou a corda que lhe tinha atado ao pescoço; agarrou o pau que
trazia à cintura e afastou-se, deixando Pessoa a admirar a rua vazia. Pondo
a cabeça fora da porta, o poeta deitou o cigarro ao chão e procurou o velho.
Encontrou-o a descer a rua, seguindo devagar o cão coxo. Um eléctrico
aproximou-se vindo da direcção oposta e quando passou já ele tinha desa-
parecido.
‘Cirilof…’
‘Sou eu.’
Pessoa caminhou até ao balcão e escondeu as mãos nos bolsos.
‘Ouve lá, sabes alguma coisa sobre espiritismo?’
‘Essa pergunta é por causa da nossa conversa sobre o Espírito Santo?’
‘Não é isso’, disse, mordendo o lábio. ‘Que sabes sobre conversas com
os mortos?’
‘Ah! Transe mediúnico? Materializações?’
‘Sim. O que se passa, Cirilof, é que eu tive algumas breves experiên-
cias há nove ou dez anos atrás e depois perdi a prática.’
‘Que tipo de experiências?’
‘Comuniquei com espíritos. Com alguns espíritos.’
‘Quais espíritos?’
‘Um professor inglês. Um astrólogo. E outros…’
‘Outros?’
Pessoa acenou com a cabeça. Esperou uns momentos e disse:

48
‘Eu gostava de conseguir comunicar com um espírito outra vez.’
‘Com esses?’
‘Com outro.’
‘Com qual?’
Pessoa suspirou e mostrou uma careta constrangida ao livreiro. Im-
pressionado por esse sentimento inédito, que nunca tinha visto estampado
nas feições do seu cliente, Kamenezky arregalou os olhos e levantou-se com
urgência. Contornou o balcão e colocou-se à frente de Pessoa que o fitou
timidamente nos olhos.
‘Queres falar com um espírito, é isso?’
‘É.’
‘Deixa-me ver de que modo te posso valer.’ Escondeu as mãos atrás
das costas e inclinou a cabeça para trás, coçando o nariz de Pessoa com os
pêlos da barba. ‘Desculpa’, disse, achatando a barba enrodilhada e voltando-
-se para a rua. ‘Conheço umas pessoas, sabes? Que estudam essas coisas.’
‘Conheces?’
‘Sim, conheço. Espera um pouco.’ Ficou uns momentos calado e vi-
rou-se para Pessoa dizendo: ‘Podes vir cá na quinta-feira pelas três da tar-
de?’
Pessoa olhou-o, intrigado. ‘Acho que sim.’
‘Vai estar cá uma pessoa que talvez te possa ajudar.’
‘Quem?’
‘Uma cliente. Ela vem aqui nesse dia para buscar uma encomenda.
Aparece e eu apresento-ta.’
‘Está… está bem.’ Hesitou. ‘É uma médium?’
Kamenezky sorriu. ‘É uma grande senhora, vais ver.’
Pessoa olhou para Kamenezky quase a chorar. Despejara o coração
ao russo e ele tinha ido buscar um vaso de ouro para apanhar o recheio: a
sua amizade pelo alfarrabista cresceu.
‘Obrigado, Cirilof.’ Agarrou-lhe o braço e apertou-lhe a mão. ‘Obri-
gado.’
‘Tu és um verdadeiro amigo, Fernando. As pessoas gostam de ti, mes-
mo que penses que estás só contra o mundo. Podes contar sempre comi-
go.’

***

Debaixo do céu invadido por nuvens claras, escanções de goela seca flu-
tuando sobre os telhados, Lisboa parecia uma gravura feita a grafite na
qual os carris dos eléctricos deixavam marcas buriladas a esfuminho no
pavimento rugoso; os cabos onde fluía a electricidade que os galvanizava,

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entreteciam-se uns nos outros como teias de aranhas entre os edifícios, cap-
turando pombos em vez de moscas. Os novíssimos táxis “palhinhas” con-
corriam com os eléctricos a dez tostões a bandeirada; apenas uma frota de
onze veículos acabadinhos de estrear por iniciativa da Associação de Classe
dos Chauffeurs do Sul de Portugal que fundara a Cooperativa Lisbonense de
Chauffeurs. Os Citroën, com estofos de palha, esperavam clientes em frente
da estação ferroviária do Rossio; essa praça já desarborizada, mas ainda por
cicatrizar.
Buscar clientes na Praça da Figueira também recompensava; sobretu-
do quando os motoristas tinham de esperar que passasse uma anacrónica
carruagem puxada por cavalos, antes de abandonarem o local com os tá-
xis ocupados por alguma das numerosas famílias proprietárias das velhas
trapeiras pombalinas que entornavam sombra e cinzas sobre o telhado de
ferro do mercado. Enquanto os eléctricos levavam mercadores de volta ao
Poço do Bispo, onde os armazéns de vinho ofereciam à atmosfera um per-
manente cheiro a alambique (não obstante o Tejo espraiar-se na sua vizi-
nhança), os “palhinhas” conduziam os folgados até à praia de Carcavelos
num passeio à beira-mar sem grades ou muros que furtassem a fluidez do
trânsito.
Nessa manhã, Pessoa leu o jornal sentado num banco de madeira
no Jardim Constantino, ao lado da estátua de Prometeu, arrancada à pe-
dra por Francisco Santos. Este titã mirim tinha o fígado demasiado duro
para ser devorado e ocupava um pedestal discreto na área central do espaço
baptizado em honra de Constantino Sampaio e Mello, o rei dos floristas
portugueses.
Pedra bruta num lugar de rosas, Prometeu parece esculpir-se a si pró-
prio, descascando a epiderme empedernida para revelar películas mais
macias, mas o rosto não esconde a futilidade da cobiça. A semelhança da
estátua com o símbolo da Loja dos Hereges Mercantes, extinta há dois sécu-
los, não passou despercebida a Pessoa, ansioso por ir conhecer a misteriosa
cliente de Kamenezky. Imaginou que no interior da pedra persistia o espíri-
to de algo que resistia às tentativas de abatimento de colunas; a alma de um
titã da Era Secundária, segundo a Ciência Espiritual da Sociedade Teosófica
Portuguesa, sedeada numa cave a cinco minutos de distância do jardim.
Uma estátua anã para lembrar aos homens que na Terra já caminharam
gigantes:

No meio da Terra cresceram e se fizeram grandes.

A génese do irreparável sofrimento do homem consistia no seu erro


de ter sempre logrado prolongar a existência no mundo descartando o es-

50
pírito e voltando-se para a carne, metodizando transferimentos de sangue,
operações glandulares bartholdianas e ejectamentos voronofistas:

Seja A = {Varro, Galeno, Seutónio} e B = {Metchenikof, Lespinasse, Lydston}.


Sabendo que A ∩ B = {opeterapia} ⇒ A ∪ B = {A Conquista da Vida}.

Um surto de vento virou do avesso as páginas do jornal de Pessoa;


um vento de Verão, húmido como chá de tília. Era o cheiro de Lisboa: tília
e peixe e o fedor do, ainda morno, cadáver da História.
Sacudiu o jornal, que dobrou ao meio, e pousou-o a seu lado em cima
do banco. Fechou os olhos e com a imagem da mãe na consciência, pensou
naquilo que tinha lido sobre o município ir inaugurar um novo monumen-
to no Largo do Chiado dali a três meses: uma estátua do poeta alcunhado
com o nome do local. Acreditava que erguer uma estátua a um bardo, ainda
por cima louco, era uma boa maneira de acabar um ano marcado por duas
tentativas de golpe de estado que enfraqueceram uma república jovem su-
portada sucessivamente por mais de trinta governos; lenha ardendo na pira
funerária da democracia.
Ah! E sempre tinha comprado os sapatos novos que andava a namo-
rar desde a Primavera, pese o facto de ter passado uns meses complicados
que pontuais empréstimos de dinheiro de amigos e patrões tinham ajuda-
do a ultrapassar. Antes de a mãe ter morrido, chegou a ir a casa do João
Correia de Oliveira para lhe pedir emprestados quinhentos réis, mas não
ousou fazê-lo porque ele tomou a visita como de amabilidade; ficaram na
conversa, até às onze da noite, discutindo a instrumentalização do saudo-
sismo nacional pelas mãos do regime de Sidónio Pais, concluindo que, inter
alias, se o mito energizava a política, a dádiva da política ao mito era nula.
Já não falava com Oliveira desde essa altura e era uma chatice, pois era um
bom amigo.
Prometeu não se manifestava e, certamente, continuaria imóvel. Pes-
soa agarrou o jornal, levantou-se e passou a mão pela estátua ainda coberta
com o mosto da manhã. Gostara muito de ler a notícia sobre a futura inau-
guração da estátua do “Chiado”. Quando a fosse ver não distinguiria essa
estátua do homem que deveria ter servido de modelo, do mesmo modo que
não discriminava um homem de uma das árvores que deixava para trás ao
sair do jardim: se a árvore lhe interessava mais, era pior cortarem a árvore
que o homem. O país estava cheio de homens com menos valor que uma
estátua ou uma árvore. Pudessem as sementes de uma democracia de estilo
ateniense germinar já a partir do próximo mês de Janeiro: uma democracia
de índole esclavagista que reduzisse o proletariado à sua condição natural
de escravos, mas de modo disfarçado, careto e doméstico. Afinal, a plebe

51
deveria ser o instrumento da casta dominadora composta pelos imperialis-
tas, mas um instrumento submisso e unido em conventículo de misticismo
nacional de modo a ser escravo voluntariamente desde a nascença, vivendo
conformado com a condição que se lhe impõe. Sobre eles os poetas!, como
os filósofos em Atenas. Que viessem as estátuas aos poetas, ao “Chiado” e,
porque não, a ele próprio! Pessoa ao lado de “Chiado”, vendo passar a clas-
se operária: o primeiro censurando-os com paternalismo e o segundo, ao
abrigo da loucura, cuspindo-lhes em cima.
Descendo a Rua Passos Manuel em direcção à Avenida Almirante
Reis, batendo com o jornal na perna, Pessoa apressava-se em ir almoçar.
O cheiro das frutas à venda nos caixotes, dos enchidos pendurados nas vi-
trinas e do pão ainda enxuto perseguiram-no. Desviando os olhos do sol,
mudou para o outro lado da avenida para apanhar o eléctrico que seguia na
direcção das bainhas do bairro da Mouraria, até chegar à Rua do Ouro.
Labirinto solífugo, a Mouraria fartava de casebres que trepavam uns
sobre os outros num afã de escapar ao iluminismo cosmopolita que atape-
tava os territórios mais oxigenados da Baixa: a cansarem-se daquela forma,
não iriam ficar de pé muito tempo.
As ovarinas que iam vender peixe a esse bairro, e ao da Madragoa,
atentavam à presença da polícia para evitarem ser multadas por andar des-
calças. Era costume vê-las sair do Mercado da Ribeira, em fila indiana; leva-
vam as canastras à cabeça, apoiadas nas “sogras”, e subiam a Rua dos Baca-
lhoeiros. Vestidas com sarguilhas listadas ou quadriculadas, iam pelas ruas
a berrar Olha a bela pescada marmota!, ou Viva da costa!, mas calavam-se
quando entravam na Praça do Município. Persignavam-se diante do falo es-
culpido por Anatole Calmels que adornava a frontaria dos Paços do Conce-
lho e piscavam os olhos peninsulares umas às outras; não por luxúria, mas
por devoção religiosa, herdada dos antepassados fenícios – sacerdotisas do
Deus Peixe, rezando em reverência muda àquele avatar de carácter renas-
centista. Os homens saíam das lojas e das tabernas para se meter com elas;
gabavam-lhes a formosura e elas respondiam-lhes: Formosa é a sua prima!
Descendo do eléctrico, espreitando de longe a portada dos Armazéns
Grandela, decorada com ferro e sol em substituição dos tradicionais már-
more e bronze, Pessoa virou à esquerda e andou depressa para a Antiga
Casa Pessoa. Entrou, cumprimentou o empregado e avançou para o lugar
do costume, perto da janela.
Pendurou o chapéu no cabide e atirou o jornal para cima da mesa já
posta. Sentou-se e sentiu o cheiro da pescada cozida que devia ser um dos
pratos do dia. Entretido a espiar as outras mesas para ver o que havia na
ementa nem se apercebeu que o empregado baixinho se aproximava para
lhe entregar a lista. Consultou-a e lá estava a pescada, cozida com o rabo na

52
boca, mas não lhe apetecia. Escolheu uma sopa, coelho de coentrada e pe-
diu um jarro de vinho tinto. O empregado levou a lista e Pessoa tirou uma
caneta do bolso do casaco para fazer as palavras cruzadas.
Procurou a página que queria, dobrou o jornal ao meio e curvou-
-se sobre ele para preencher os quadrados brancos com letras. Entre a vida
teórica e a vida prática havia um abismo sobre o qual alguns individualistas
faziam de ponte, e o cruzadismo era o único vício de massas onde o prag-
matismo e a filosofia se encontravam; sem se misturarem, senão existiria
um único quadrado cinzento em vez de quadrados pretos e quadrados
brancos.
Alimentava o projecto de escrever um ensaio sobre cruzadismo, as-
sinando-o com o heterónimo A. A. Crosse, campeão das palavras cruzadas
inglesas; dissertaria à desgarrada, cruzando esse tema com a literatura. Nas
palavras cruzadas, a língua portuguesa transformava-se em matemática e
isso relaxava-o: concentrado no uso lógico dos nomes, ginasticava a imagi-
nação para quando fosse escrever poesia. Bem precisava de relaxar porque
teria de prestar muita atenção àquilo que iria dizer à tal amiga de Kamene-
zky. E se ela revelasse ser uma falsa médium? Daquelas que iam tão longe
na charlatanice que até se mascaravam com barbas postiças?
Dois rapazes que almoçavam numa das mesas em frente escondiam
um exemplar de A Monarquia debaixo do jornal, mas Pessoa reconheceu-o:
sabia que era o órgão de propaganda do movimento Integralismo Lusitano.
Antes de Sidónio Pais ter sido assassinado, os integralistas haviam conse-
guido eleger três deputados na Câmara, mas esse atentado, somado à morte
súbita de António Sardinha no início do ano, concorrera imediatamente
para a desagregação do Integralismo. Ao ver aqueles adolescentes a discutir
política recordou-se do movimento que tinha criado: o Núcleo de Acção
Nacional, desactivado há bastante tempo. Sentiu empatia pelos rapazes,
mesmo que essa empatia fosse apenas platónica; as ideias mais anárquicas
dos integralistas, em particular aquelas de carácter sindicalista professadas
por Francisco Rolão Preto, desagradavam-lhe. Ouviu bocados da conversa
e algumas coisas levaram-no a concluir que um novo Integralismo Brasileiro
emergia sob a orientação de várias personagens, entre as quais um político
cujo nome memorizara em virtude da sonoridade exótica: Getúlio Vargas.
Passados uns instantes, o empregado trouxe a tigela de caldo verde e
Pessoa deixou o jornal de lado para comer; o vapor da sopa embaciou-lhe
os óculos e ele limpou-os no lenço. Mergulhou a colher na tigela, mexeu-a
para ver a rodela de chouriço subir à superfície e descobriu duas rodelas
enredadas nos fios de couve como antigos dobrões ferrugentos escondidos
entre algas. Quando terminou a sopa, o empregado trouxe o coelho de co-
entrada e levou a tigela vazia. Tinha sido uma escolha desinteressada, a do

53
prato de coelho, mas Pessoa percebeu que fazia todo o sentido e lembrou-
-se que ainda se encontrava com o Coelho, ou Animal, como lhe chamava,
quando este vinha com o Almeirim.
Certa vez, no café, lembrou-se de chamar “animal” a Geraldo Coe-
lho e continuou a tratá-lo dessa forma por mais algum tempo. Às tantas, o
amigo, com o qual tinha criado o Núcleo de Acção Nacional, levou as mãos
à cintura e perguntou-lhe: Oh, Fernando, mas que ideia estúpida é essa de
me chamares Animal?
Ouve lá, tu não te chamas coelho?
Chamo-me.
E o coelho não é um animal?
É.
Então não vejo onde está o problema: se és Coelho, és Animal, pronto!
Os dois integralistas já tinham ido embora quando Pessoa acabou
de almoçar. Resgatou o jornal, agarrou a caneta para completar as palavras
cruzadas e bebeu um gole do cálice de aguardente. Estava farto dos ócu-
los que o magoavam no nariz; pensou que seria melhor comprar outros
mais macios e com armação. Finado o período do almoço, o restaurante
esvaziou a maioria da clientela; apenas Pessoa, mais um velhote muito bem
vestido que bebia chá e fumava charuto, permaneciam sentados, alheios ao
empregado que andava pela sala arrumando cadeiras e tirando as toalhas
sujas das mesas. O chá do velhote inspirou uma brincadeira em língua in-
glesa a Pessoa. Escreveu na margem do jornal:

You ask why I love my tea? ‘Cause


I’m an old drinker, don’t you see?
But don’t you drink tea, Mr. Crosse,
just do those bloody words in cross:
Camomile tea – Makes you pee!

Reflectiu sobre o seu caso, que era o de um poeta que se imortali-


zava sob pseudónimos, sendo o nome verdadeiro uma coisa ignorada. O
que era um nome? Absolutamente nada? Seria ele um imortal ou o ver-
dadeiro imortal era um desconhecido? O que seria, então, a imortalidade
na arte, na poesia, na rua, fosse onde fosse? Até quando seria guiado por
essa compulsão? Todos os homens desejavam descanso, repouso, excepto
ele que se desdobrava em múltiplos homens e nomes de homens, matéria
em constante movimento. Quando matava um heterónimo nunca o fazia
com a esperança de continuar a sentir a sua personalidade. Podia agir nesse
sentido, mas talvez ao anular essas personagens esperasse aviltar a própria
personalidade: entrar num não-ser eterno. Como podia alcançar uma vida

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melhor se fugir à personalidade não lhe trazia felicidade? Nomes, nomes,
nomes! Que significavam? Dirt? Vive-se e morre-se sem se aprender o que
os nomes são. Nomes, não sou vosso escravo!
Quando saiu do restaurante assustou um bando de pombos que le-
vantaram voo atrapalhados e quase cabecearam por acidente as janelas de
uma casa; pousaram nos telhados à espera que ele se afastasse e regressaram
à calçada para continuar a bicar os pedaços de pão que um cliente do res-
taurante lhes jogara. Satisfeito, e com algum sono, Pessoa decidiu ir a pé até
à livraria de Kamenezky; acendeu um cigarro e pôs-se a caminho.
Entrou na Praça da Figueira e seguiu pela Rua da Betesga até ao Ros-
sio. Viu nuvens tão grandes que dir-se-ia que o céu é que era branco e as
nuvens é que eram azuis; prenhas de luz, agigantavam-se sobre as fumaças
do cigarro. Mulheres bonitas avançavam aos pares pelos passeios e ouviu
alguém assobiar para elas de uma janela alta, fazendo-as andar mais depres-
sa; do mesmo modo que o esperma paramagnético ejaculado pelo obelisco
que assinalava a restauração da independência afectava o comportamento
de todo o estratótipo. A quantidade máxima de informação contida nesse
sémen atacava tudo aquilo que ameaçasse criar raízes na base da pudenda
de mármore e, ainda, acelerava o crescimento do cabelo. Um meio-dia lis-
boeta era uma pérola parda numa concha muito diferente da cidade branca
descrita por Herculano.
Subindo na direcção do Bairro Alto de São Roque, Pessoa estava
embrulhado num estado de alma agressivo, ansioso por aprender como se
aproximar da alma da mãe, lembrando-se de palavras que nunca lhe en-
viara nem mostrara: Que serei eu daqui a dez anos – de aqui a cinco anos?
Os meus amigos dizem-me que serei um dos maiores poetas contemporâneos
– dizem-no vendo o que tenho já feito, não o que poderei fazer. Mas sei eu ao
certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez
a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podridão.
Porque não ia falar com o Lacerda, em vez de confiar numa estranha?
Que lhe ia dizer? A morte do tio também o assustava porque imaginava
que ia pelo mesmo caminho de poeta decadente, afogado em álcool para
escrever elegantes elegias a crianças mortas; no seu caso, o jazigo de he-
terónimos, e no que dizia respeito ao tio, às diversas crianças que morre-
ram ainda bebés no seio da família, seus sobrinhos e irmãos. Quanto mais
se concentrava na recordação dos olhos do tio, tão gordos e azuis como
berlindes, mais se lembrava das canções fúnebres de Mahler. Poderiam os
heterónimos ser remédios – anticorpos – para o seu patológico medo de
enlouquecer – de murchar?
Sentado a ler um livro com a lombada estragada, Kamenezky trajava
uma camisa vermelha. Cumprimentou Pessoa e apertou-lhe a mão; o se-

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gundo deitou o olho à capa do livro, mas o volume não tinha título.
‘Ela ainda não chegou.’
‘Eu espero.’
‘Senta-te’, disse, oferecendo-lhe um banco. Pessoa sentou-se e tirou
um cigarro.
‘Quem é ela?’
‘Chama-se Maria O’Neill’, respondeu o livreiro. Marcou a página do
livro e fechou-o para prestar atenção ao amigo. Sobre o balcão ardia um
queimador de incenso que tecia um fio de fumo em direcção ao tecto. Com
as narinas cheias de tabaco, Pessoa não sentia esse cheiro apimentado. ‘É
uma amiga. Andamos a escrever umas coisas juntos.’
‘Compreendo.’ Bateu com o cigarro no cinzeiro para quebrar o tabaco
queimado. ‘E ela percebe bastante de espiritismo?’
‘Sim, meu amigo. Ela faz parte de um grupo muito interessante.’
‘Um grupo de espíritas?’
‘Sim. Pessoas interessadas no espiritismo.’
‘Mas o que é que fazem? Fazem sessões? Já foste a alguma?’
‘Os meus interesses são outros, Fernando. Nunca vi uma sessão deles,
mas já fui convidado.’
‘Por ela?’
‘Isso mesmo.’
‘Certo.’ Levou o cigarro à boca e sugou o que restava do fumo. So-
prou-o pelo nariz e deixou a beata no cinzeiro. ‘Pareces um cigano com
essa camisa.’
‘Ah!’
‘Um rei cigano.’
‘Há quem goste, deixa lá.’ Acariciando o tecido, inclinou-se sobre o
balcão e disse em voz baixa: ‘O Malhoa anda doido para me pintar.’
‘Imagino.’
‘Olha, ali vem ela’, disse, encostando-se à cadeira e apontando para a
porta da loja com os olhos.
Vestida de preto, Maria O’Neill vinha com o cabelo apanhado num
rabo-de-cavalo e parecia mais gorda do que era. Saudou o alfarrabista e deu
as boas-tardes a Pessoa. Era uma mulher pequena, cujo rosto não denun-
ciava a idade. Kamenezky e Pessoa levantaram-se para a cumprimentar; o
primeiro pediu licença e desapareceu para dentro da arrecadação, deixando
o segundo muito nervoso com o afastamento imprevisto. O queimador es-
gotava o incenso e Kamenezky regressou com um embrulho pequeno que
entregou a Maria O’Neill.
‘Obrigada!’ Abriu a bolsa e tirou dinheiro para pagar. O livreiro agra-
deceu e aceitou o pagamento; enquanto o guardava na caixa disse:

56
‘Maria, gostava de te apresentar o meu grande amigo Fernando Pes-
soa.’ A mulher virou-se para o poeta; ele correspondeu, sorrindo e inclinan-
do a cabeça. ‘Fernando, esta é a minha amiga Maria O’Neill.’
‘Muito prazer, cara senhora.’
‘Igualmente’, respondeu, observando o poeta com mais atenção. Des-
cobriu uma nódoa de molho de coentrada que ele deixara cair na manga
do casaco durante o almoço. No melhor pano cai a nódoa, pensou, porque
o homem estava muito bem aprumado.
‘Maria, o Fernando é um grande poeta. Olha, esta é a revista que ele
edita’, acrescentou, mostrando-lhe o quinto número da Athena. Ela agar-
rou-a, admirando a capa antes de a desfolhar.
‘O papel é muito bom. Deve ser caro.’
‘Não é caro, mas também não é barato.’
‘Quais são os seus poemas?’
‘São esses assinados por Alberto Caeiro’, respondeu Kamenezky.
‘Estou a ver.’ Leu um trecho e perguntou: ‘É o seu pseudónimo?’
‘É o meu farmacêutico.’
Maria O’Neill ergueu as sobrancelhas como costumava fazer quando
alguma coisa a surpreendia. Depois sorriu para Kamenezky e, fechando a
revista, disse:
‘Apesar de ter lido só umas linhas acho que estão espantosos, e a re-
vista está muito bem impressa. Este papel tem uma gramagem e textura
excelentes.’
‘Se gostou assim tanto, faço questão de lhe oferecer uma.’
‘Levo-a com muito gosto, mas quero pagá-la. Quanto custa?’
‘Deixe isso. É um presente.’ Virou-se para o livreiro e perguntou: ‘Não
te importas?’
‘Ora essa’, respondeu Kamenezky.
‘O seu interesse pela manufactura da revista é muito interessante’, co-
mentou Pessoa. Fixou os olhos de Maria O’Neill e achou que por trás da
frontalidade existia uma grande repressão de sentimentos.
‘Não é vulgar, reconheço, mas um grupo a que pertenço está a pensar
em criar uma revista e os meus sentidos acabam por ir ao encontro disso.’
‘Posso ajudá-la no que diz respeito ao contacto com algumas boas
tipografias.’
‘Isso seria uma bela ideia.’ Examinou Pessoa atentamente.‘Eu e o meu
grupo de amigos vamos criar uma federação ligada ao movimento espírita,
não sei se está familiarizado com esse assunto...’ Pessoa acenou afirmativa-
mente com a cabeça.‘A revista que lhe falei será um órgão da nossa associa-
ção. Se tudo correr bem, como até aqui, teremos a federação formada já na
próxima Primavera.’

57
Pessoa olhou para Kamenezky, mas qualquer pista que ele lhe pu-
desse ofertar estava oculta sob o redemoinho de cabelo e barba. O li-
vreiro levantou-se e foi buscar outro pauzinho de incenso para pôr a
queimar.
‘O movimento espírita conta com muita adesão?’, perguntou Pessoa.
Sentiu o cheiro resinoso do incenso que Kamenezky acabara de abrasar e
achou-o muito relaxante; tinha de se lembrar de lhe pedir uns pauzinhos
para aromatizar o seu quarto.
‘Desperta muita curiosidade, como tudo aquilo que sai da norma,
mas somos poucos porque poucos têm interesse genuíno. Mesmo assim,
realizámos o primeiro congresso espírita português, na segunda semana de
Maio, no Ateneu Comercial e o evento foi um pequeno sucesso. O senhor
interessa-se por espiritismo?’
‘Sim, interesso-me por tudo o que sai da norma, como disse.’ Aproxi-
mou-se do queimador e respirou fundo, impregnando os pulmões de fumo
burseráceo. ‘Durante muito tempo fui um grande cultor da Teosofia e até
traduzi as obras de Blavatsky para a A. M. Teixeira.’
‘Ah, sim? Não me diga que foi o senhor que também traduziu o Com-
pêndio de Teosofia, de Leadbeater?’
‘E ainda dei início à versão portuguesa do tomo dele sobre Maçona-
ria, mas a editora não o quis.’
‘Muito bem, vejo que é informado. Que raro!’ Sorriu.
‘De maneira que o espiritismo me desperta uma curiosidade bem in-
tencionada.’
‘Ouça, gostava de o apresentar aos meus companheiros. Tem alguma
coisa contra?’
‘Nada. Será um prazer.’
Maria O’Neill pensou uns instantes e inclinou-se para Pessoa que re-
sistiu ao impulso de pular para trás: não gostava de ter pessoas assim tão
perto; aliviado, descobriu que o hálito da mulher era mascarado pelo fumo
aromático.
‘Se estiver mesmo interessado, posso convidá-lo a assistir à próxima
reunião de trabalho.’
‘Uma sessão… espírita?’
‘Exactamente!’, esclareceu, regressando à sua postura inicial. Pessoa
voltou a pôr-se junto do queimador.
‘Deixe-me pensar, é uma situação inesperada.’ O incenso estava a
criar-lhe uma ligeira vertigem.
‘Compreendo, mas repare que o convidei porque sinto que o senhor
se iria adaptar bem. É muito… simpático! Diga-me: já passou por alguma
experiência incomum?’

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‘Não. Quer dizer, sim. Ou melhor, não tenho a certeza.’ Olhou para o
queimador e viu o pó consumido pelo fogo a cair como rocha moída: talvez
enrolando-o numa mortalha se pudesse fumar.
‘Foi o que pensei. Não me leve a mal, mas quando vinha para cá, mes-
mo antes de entrar, senti que a loja estava cheia de gente.’
‘Só cá estou eu’, disse Pessoa, voltando a olhar para a mulher.
‘Aparentemente.’
‘Não entendo.’
‘Oh, meu caro, eu acho que o senhor me entende muitíssimo bem.
Perdoe o meu atrevimento, mas quantos é você?’
Pessoa ficou rígido, mas não perdeu a compostura.
‘Se se refere às minhas entidades literárias, aos meus pseudónimos,
que fazem parte da minha abordagem às letras, respondo-lhe que são bas-
tantes, mas ignoro em quantos vai a lista. Nunca os contei, como tive opor-
tunidade de dizer uma vez ao nosso amigo.’
‘Então acho que o senhor não deve mesmo faltar à nossa próxima
reunião de trabalho.’
‘Porquê?’
‘Porque acho que existem coisas dentro de si que o senhor não co-
nhece. Coisas que agem como se estivessem vivas.’
‘Espíritos? Está a dizer-me que estou possesso?’ Inspirou mais um
pouco de incenso; o coice perdera a força.
‘Ainda não sei se é esse o seu caso, há outras hipóteses...’ Olhou-o sem
pestanejar e aproximou-se novamente dele. Pessoa procurou o apoio de Ka-
menezky, mas este, intrigado, observava a cena em silêncio. ‘Costuma sentir
os dedos dormentes? Ou falhas de memória? Tem dores de garganta?’
‘Sim, às vezes tenho isso tudo. São sintomas de possessão?’
‘Não, são sinais que me indicam que o senhor bebe mais do que de-
via. Peço-lhe que me desculpe, senhor Pessoa, mas vejo-o com muita clare-
za no seu rosto. O meu pai também gostava de beber e vê-lo tantas vezes ser
manipulado pelo álcool deixou-me muito sensível.’
‘Não me ofendeu, se é isso que receia. Até acho amável.’
‘Porque é um cavalheiro. De onde é o seu sotaque?’
‘O meu sotaque?’
‘Sim.’
‘Não sabia que tinha um sotaque. Será um resíduo de quando estive
na África do Sul? Vivi e estudei em Durban.’
‘Pode ser isso. Ou talvez não.’
‘Então?’
‘Parece-me mais um subtil sotaque escocês. Esteve na Grã-Bretanha?’
‘Não.’

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‘É estranho. Agora que estou com atenção, entendo que o seu sotaque
é mesmo escocês!’
‘Não sei o que dizer.’ Olhou para o queimador e reflectiu nas palavras
de Maria O’Neill: tinham-no deixado com um formigueiro na nuca, mas
não percebeu porquê. ‘Nunca estive na Escócia’, continuou. ‘Desde que vol-
tei da África do Sul só saí de Lisboa para ir ao Alentejo. Não será antes um
sotaque alentejano?’
Maria O’Neill riu: ‘Claro que não.’
Pediu um papel a Kamenezky e escreveu algo que entregou a Pessoa.
‘Se quiser participar na nossa reunião apareça neste endereço no pró-
ximo domingo à noite, às dez horas. Peça para falar comigo.’
‘Obrigado’, disse, aceitando o papel. ‘Vou pensar.’
‘Faça isso. Ah! E traga um saquinho de sal no bolso.’
Agarrando o pacote que viera buscar, mais a revista oferecida por
Pessoa, Maria O’Neill despediu-se dos dois homens e saiu.
‘É louca’, disse Pessoa a Kamenezky.
‘Suponho que seja preciso um louco para reconhecer outro. Ela gos-
tou de ti.’
‘Que fazes com ela, Cirilof?’ Sentou-se e coçou o bigode. Que poderia
haver de familiar na Escócia?
‘Sou amigo dela. Conhecemo-nos no Brasil e estamos a escrever um
livro a duas vozes.’
‘Sim, vejo que vozes é com ela.’
Lembrou-se! Agitando-se no banco olhou para o pauzinho de incen-
so quase consumido e para o livro de lombada destruída que o amigo se
encontrava a ler; passando a mão pelo rosto, perguntou-lhe: ‘Achas mesmo
que tenho um sotaque escocês?’
‘Fernando, sou duro de ouvido.’
‘Para ser sincero, Cirilof, a tua Maria O’Neill deixou-me intrigado.’
Alargou o nó do laço para respirar melhor. Tinha os olhos raiados de san-
gue pelo contacto com o fumo do incenso.
‘Porquê?’
‘Eu nunca estive na Escócia, como sabes, mas…’ Começou a bater
com o pé no chão e tirou um cigarro.
‘Sim?’
Sugou uma longa fumaça e apoiou as mãos nos joelhos. Inclinou a
cabeça para a direita, estalando um osso do pescoço, e olhou para Kamene-
zky que aguardava pachorrento a resolução daquele enigma. Tirou o cigar-
ro da boca e disse:
‘Eu nunca estive na Escócia, mas o Álvaro de Campos esteve.’

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3

Domingo de manhã, durante o banho, Pessoa revisitou a conversa que ti-


vera com o cunhado na noite anterior, concluindo que a ideia peregrina de
ele querer ajuda para editar uma revista sobre o mundo dos negócios só
podia ter sido concebida pela irmã: como tinha acabado com a Athena, ela
devia ter pensado que a maneira mais rápida de o ver ocupado era pô-lo
a redigir uma revista nova. Ficou surpreendido por ver o Chico, prestes a
ser pai, preocupado com essas coisas, mas pelo amor à Teca o homem era
capaz de tudo, inclusive tornar-se editor. Saiu da banheira, enrolado numa
toalha, e aproximou-se do espelho observando o rosto. Estaria a ficar mais
longo? Tinha lido em algum sítio que, segundo o folclore japonês, quem
se preocupava com o alongamento das feições estava possuído por rapo-
sas demoníacas, mas quem estivesse preocupado com as olheiras estaria
possuído por quais entidades? Pela ressaca, no mínimo; quanto às outras,
iria descobri-las na reunião de trabalho dessa noite. Reunião de trabalho.
Aqueles tipos levavam-se a sério.
Na sexta-feira, depois de sair do escritório do Moitinho, passara na
biblioteca para ler alguma coisa sobre espiritismo e reavivar a memória de
coisas lidas em livros antigos, como o de Marcel Violet, que vendera para
comprar volumes novos. Não encontrou muita informação, apenas um li-
vro de prestidigitação que ensinava algumas ilusões usadas em serões dessa
natureza como o famoso Truque do 1089. Esse era simples, mas criava um
efeito arrepiante quando introduzido a horas tardias no meio de uma ses-
são: o médium mostrava uma ardósia com um ponto de interrogação feito

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com giz e pedia a um elemento do grupo que a guardasse, explicando-lhe
que continha uma previsão oculta anotada por um espírito. Em seguida,
dirigia-se aos restantes indivíduos e dizia-lhes que precisava de um número
de três algarismos. Alguém sugeria um e o médium escrevia-o num papel.
Depois de realizarem determinados cálculos numéricos, como a inversão
do número, a subtracção e a adição, alcançavam o resultado de 1089. Sor-
rindo com uma expressão altiva, o médium chamava a atenção do grupo
para o facto que o número inicial ter sido escolhido de livre iniciativa por
um deles. Ordenava à pessoa que guardava a ardósia para apagar o ponto
de interrogação traçado a giz e, enquanto ela obedecia, o número 1089 sur-
gia no quadro como se estivesse a ser escrito por uma mão invisível. O autor
explicava no livro que a preparação deste efeito era a seguinte: antes da ses-
são ter início, o médium escrevera com cera o número 1089 na ardósia, sem
fazer muita pressão, e só depois desenhara o ponto de interrogação sobre
toda a superfície do quadro, carregando bastante no pau de giz. O resto do
segredo residia nas contas que mandava o grupo fazer: independentemen-
te do número escolhido, após a resolução das operações, o resultado seria
sempre 1089. Se escolhessem o número 671, por exemplo, invertiam-no
para 176; a diferença entre ambos os números seria 495. Somando a inver-
são da diferença, que é 594, e somando-a ao resultado anterior obtinham
o número 1089. A artimanha resultava sempre, e no caso do resultado da
subtracção ser um número de dois algarismos, o médium mandava acres-
centar um zero à frente, que, na inversão consequente, apareceria no fim. A
cera transparente agarrava o pó de giz quando o ponto de interrogação era
apagado e a ilusão da mão invisível estava construída. Pessoa não sabia o
que esperar da sessão para a qual fora convidado, mas desejava não encon-
trar prestidigitadores de salão.
No escritório, enquanto batia à máquina, ainda tivera oportunida-
de para discutir com o patrão as revoluções e os atentados bombistas dos
últimos tempos, quase todos apontados pela imprensa como sendo orga-
nizados pela Maçonaria e pela Carbonária. Carlos Moitinho, que era um
democrata, explicara-lhe que isso eram blagues; a Carbonária Lusitana é
que era, de facto, anárquica, mas mais de meia centena de membros do
Parlamento pertenciam à Maçonaria e não apoiavam, ou mandavam exe-
cutar, actos violentos. Os maçons andavam mais preocupados em unir o
Grande Oriente Lusitano com o Grémio Luso-Escocês, separados há onze
anos. A Maçonaria tem no seu seio o escol da sociedade portuguesa, dissera
o Moitinho, médicos, ministros de Estado, banqueiros e oficiais do Exército
e da Armada. Desde as academias científicas até às agremiações operárias
lá possuímos elementos desfrutando de situações de destaque e de prepon-
derância. Pessoa não se considerava um democrata, mas o interesse pela

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Maçonaria especulativa, como o patrão a ela aludia, crescia; muito por força
de se tratar de uma sociedade iniciática. Se a Teosofia tinha sido um grande
desapontamento para Pessoa, com os seus humanitarismo e apostolismo
tão semelhantes ao catolicismo, insuportáveis ao ponto de o contaminarem
com um pavor metafísico, por outro lado, talvez a Maçonaria… Os maçons
acreditavam em Deus, como ele, mas não o chamavam dessa forma nos
ritos para não serem confundidos com uma religião e desse modo, pelo uso
da designação Grande Arquitecto do Universo, ambígua quanto à função
demiúrgica ou reguladora do ser supremo, reconciliavam o culto crístico
gnóstico com o cristianismo.
A noção embrionária de cristão gnóstico, como começava a entendê-
-la à luz da demanda iniciática que tanto o fascinava, parecia-lhe a identi-
dade certa para uma magnífica aventura espiritual, mas tinha dúvidas no
que dizia respeito ao futuro desse empreendimento. Conhecia o étimo da
palavra poeta, o nome latino vates, que significava vaticinador, ou seja: um
vidente – um profeta! Lembrou-se disso quando escolhera o nome Orpheu
para título da sua revista modernista. Queria ser um profeta, mais que um
poeta. Contudo, os profetas viam o futuro e ele queria olhar para o passado:
queria falar com a demiurga que o havia criado.
Ao almoço, a irmã ralhara com ele outra vez por voltar a fingir que
estava bêbedo quando chegara a casa; começara a cambalear assim que a
vira à janela. Ela estava mesmo danada, e o Chico sempre calado.
Depois do almoço passou a tarde no quarto sentado a escrever. A
sugestão de Maria O’Neill provocara-lhe uma vontade imensa de recuperar
a poesia de Álvaro de Campos, em particular o poema Lisbon Revisited,
que escrevera há dois anos. Cada vez mais preocupado com assuntos de ca-
riz místico esquecera-se do histérico e cosmopolita Álvaro de Campos. Foi
procurar o poema e demorou algum tempo a encontrá-lo entre a papelada
que guardava, velhos bilhetes de eléctrico, de concertos, e postais. Encon-
trou a carta que o padrasto lhe tinha enviado de Pretória há dez anos atrás.
Começou a lê-la, mas as menções ao acidente da mãe e à dependência das
enfermeiras deram-lhe vontade de chorar. Escondeu a carta e continuou a
procurar o poema. Encontrou-o dentro do livro Sodoma Divinizada que o
Raul Leal lhe autografara.

Ao meu querido Fernando Pessoa,


para o seu espírito altíssimo de pensador e artista.
Raul Leal

Arrumou o livro e foi sentar-se com o poema na mão. Quando se


preparava para o ler, ouviu o assobio inconfundível de um amola-tesouras

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que passava na rua; lembrou-se de quando era miúdo e cortara um dedo
com uma tesoura quando estava a desfazer um novelo de lã só para arreliar
a mãe. Ficara hemofóbico desde essa altura. Fechou os olhos, esperou que o
homem passasse e, quando já não era capaz de ouvir a gaita dele a tocar ao
longe, olhou para o papel:

Não: não quero nada.


Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!


A única conclusão é morrer.

Sem hesitar, voltou-se para a folha em branco que tinha pronta à sua
frente e escreveu:

Nada me prende a nada.


Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne

Não sabia como prosseguir e escreveu isso mesmo:

Não sei que seja

Mudou para:

O que não sei que seja


Definidamente pelo indefinido…

Lembrou-se das noites passadas a tentar falar com a mãe e da espe-


rança que o mantinha acordado. Sim, Lisbon Revisited era o título ideal para
os dias que atravessava, pois sentia uma mudança de mentalidade mesmo
ali ao lado.

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto


De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

A voz de Álvaro de Campos não lhe saía com naturalidade; aliás,


nunca tinha saído, mas agora tinha-se distanciado dela e não a conseguia
evocar com o mesmo tom, com a mesma claridade e até com a mesma ca-
ligrafia. Achou que seria importante esclarecer essa situação no próprio po-
ema, mas não sentiu pressa. Nunca tinha pressa para escrever um poema, e

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se não ficasse esclarecido com esse poema, escreveria outro.

Outra vez te revejo,


Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.

Parou uns instantes e releu o trecho. Percebeu que fatídico soava de-
masiado dramático, num sentido teatral, e riscou a palavra. Mais tarde, ao
passar o rascunho à máquina, e quando decidiu mudar a localização do
segmento para o final do poema, voltou a incluí-la, acrescentando um verso
conclusivo:

Outra vez te revejo,


Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim.
Um bocado de ti e de mim!...

Olhou para o relógio: desde que se sentara a escrever tinham passado


mais de duas horas. Descansou, bebendo um copo de vinho, tirado de um
garrafão que escondia debaixo da cama. Estava contente por ter escrito um
bom poema e ergueu o copo a si mesmo, reflectido no espelho, em ges-
to de comemoração. Depois lembrou-se da tarefa que o esperava à noite e
mudou de disposição. Voltou a encher o copo e bebeu, decidido a ficar-se
por ali: dois copos de vinho, um alegre e o outro triste. Mas que raio?! Era
o mesmo copo e o mesmo vinho: ele é que era outro! Ou seria o mesmo?
Regressou à cadeira e escreveu na folha dactilografada:

À alegria segue a tristeza

Achou vulgar e riscou. Mais abaixo, numa estreita margem vazia, es-
creveu numa só frase:

Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta.


Ora bebemos o vinho porque é festa,
Ora o vinho bebemos porque há dor,
E de um e de outro vinho nada resta.
Ora toma!

Desenhou dois braços a fazer um manguito ao lado do poema, mas

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riscou-os, cobrindo sem querer o último verso. Encolheu os ombros e dei-
xou a folha de papel sossegada; fechou os olhos e sentiu-se com sono. Le-
vantou-se e foi-se deitar até a irmã vir bater à porta e chamá-lo para jantar.
Quando ia a sair do quarto descobriu que se tinha esquecido do copo de
vinho vazio em cima da secretária; não sabia se a irmã o tinha visto e ela
não disse nada sobre isso durante a refeição.

Apanhou um táxi que o levou às hortas na vizinhança da Estrada de Benfi-


ca, território arrabaldino que conhecia bem. Longe do centro, Benfica era
uma zona rural em desenvolvimento, como todas as áreas de Lisboa; cam-
po para onde se tinha aposentado aos trinta anos, antes do bulício bulímico
da baixa o respigar do meio das árvores para Campo de Ourique. A Quinta
dos Marechais, onde a mãe tinha morrido, não ficava muito longe do local
para onde se dirigia, debaixo daquelas trevas fantásticas, rasgadas pelos fa-
chos dos faróis do “fogareiro”. O pio de uma coruja que sobrevoou a estrada
arrepiou-lhe os pêlos dos braços, lembrando-lhe a fatalidade da sua empre-
sa nocturna: mau agouro, numa hora aziaga, sem a esperança prateada do
luar. Baixou o vidro da janela e o ar frio, quase sepulcral, entrou dentro do
veículo, gelando-lhe o rosto e os pulsos.
Um gato vadio assustou-se com a chegada do automóvel e saltou de
cima do muro da Vila Arlette para dentro do jardim que a circundava; uma
saia grossa de árvores e arbustos fundidos com o ferro do gradeamento que
protegia a sua dama de pedra e tijolo. Uma vivenda baixinha com um tor-
reão de dois andares; matrona decadente exibindo um totéme de orgulho
para desafiar os corvos e os morcegos.
Pessoa pagou a corrida e desceu do carro. Viu um grupo de viaturas
estacionadas em frente da entrada principal. Avançou até ao portão, ilumi-
nado por um pequeno candeeiro, puxou o fio da campainha e aguardou uns
instantes. Ouviu vozes vindas do interior da casa e viu uma luz acender-se
numa janela para se apagar logo a seguir. O gato voltara para cima do muro
e olhava-o com desconfiança, soprando e mostrando uma pata pendurada,
pronta a arranhá-lo se ele provasse ser uma ameaça. Viu um homem alto a
caminhar na direcção do portão; vestia uma farda de mordomo.
‘Boa noite’, disse. Era quase tão alto quanto Kamenezky. Pessoa tirou
do bolso o papel escrito por Maria O’Neill e entregou-lho através das grades
do portão.
‘Boa noite. Chamo-me Fernando Pessoa e fui convidado pela exce-
lentíssima senhora Maria O’Neill.’
O outro leu o papel, dobrou-o e guardou-o no bolso. Deixou cair os

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braços ao longo do corpo e calou-se. O poeta esperou e como o mordomo
não dizia nada, esclareceu:
‘A senhora está à minha espera. Fui convidado.’
‘Sim’, respondeu o mordomo. ‘Qual é a senha?’
Pessoa respirou fundo. Olhou em volta e viu que o gato se aproxima-
va devagar por cima do muro: vinha agachado e com as orelhas para trás.
Não parecia nada bem-disposto.
‘Não sei nada sobre nenhuma senha, mas fui convidado pela senhora
Maria O’Neill’, insistiu, com urgência. ‘Estou na casa certa?’
‘Sim, senhor, é a morada escrita no papel, mas só posso deixá-lo en-
trar se me disser a senha correcta para esta noite.’
‘Escute, não fui informado sobre isso. Pode chamar a senhora? Ela
está à minha espera.’ Olhou para o gato: estava parado a dois passos da sua
cabeça, avaliando a melhor forma de lhe saltar para o nariz.
‘Só posso ajudá-lo se me disser qual é a senha.’
‘E chamar-me um táxi? Pode chamar-me um táxi?’
‘Só posso ajudá-lo se me disser qual é a senha.’
Maldição! A Maria O’Neill não lhe tinha dito nada sobre a senha. Que
ia fazer? Baixou-se rapidamente e tacteou o chão à procura de uma pedra.
Agarrou um pau, levantou-se e olhou para o gato. O bicho assustou-se com
o movimento repentino e saltou assanhado do muro. Pessoa atirou-lhe o
pau com força e acertou-lhe na barriga. Surpreendido pelo bufar do gato,
o mordomo inclinou-se para ver o que estava a acontecer e viu o animal a
fugir pela estrada escura. Pessoa tirou os óculos e mostrou-lhe dois olhos
inchados pela adrenalina. Puxou o lenço do bolso para limpar as lentes.
‘Que acabou de fazer? Atirou alguma coisa àquele gato?’
‘Um pau, mas o gato não morreu.’ Colocou os óculos.
O mordomo fez uma careta carrancuda e aproximou-se das grades.
‘A senha, por favor.’
‘A senha, é verdade.’ Suspirou. ‘Muito bem.’ Agarrou as grades com as
mãos e baixou a cabeça, em silêncio.
Passou a limpo toda a conversa que tivera com Maria O’Neill na pas-
sada quinta-feira porque se existia uma senha ela poderia estar relacionada
com alguma coisa mencionada nessa altura. Lembrou-se das palavras sobre
o primeiro congresso espírita português, realizado por ela e pelos amigos
em Maio. Onde tinha sido? No Ateneu Comercial. Que tinha o ateneu de
especial? Porque raio o tinham escolhido para realizar o congresso? Olhou
para o mordomo e viu que ele aguardava imóvel uma resposta.
‘Estou a pensar.’
Que sabia sobre o ateneu? Nada. Só a sua localização, nas Portas de
Santo Antão, porque passara algumas vezes à porta. A porta. A porta do

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ateneu… A porta do ateneu tinha um símbolo. Qual era esse símbolo? Sa-
bia qual era porque na altura até achara que teria algo a ver com a Maçona-
ria. O deus Mercúrio! Era o deus Mercúrio. Que tinha o deus Mercúrio a
ver com o espiritismo? Mercúrio era o nome romano de Hermes. Hermes,
Hermes, Hermes… Hermes era o deus do comércio, mas também da lin-
guagem, o equivalente do deus Thot, a Íbis que ele tanto gostava de imitar
na rua para arreliar a irmã. O Íbis e o macaco… e o homem com asas nos
pés, eram todos o mesmo, mas que tinham a ver com o espiritismo?
‘A senha, por favor’, pediu o mordomo, impaciente.
Pessoa enervou-se e quase perdeu o fio à meada. Concentrou-se no
deus do ateneu, seguro que a resolução do mistério residia na sua figura.
Hermes era o deus do comércio. Hermes era o mensageiro dos deuses. Her-
mes era o mensageiro dos deuses com os homens. Com os homens e com os
mortos. Hermes era o mensageiro dos vivos com os mortos!
‘A senha é Mercúrio!’
Percebeu pelos olhos do mordomo que tinha falhado e rematou sem
lhe dar hipótese de abrir a boca: ‘Não, espere! A senha é… a senha é…’ Que
ia dizer? O homem começava a virar-lhe as costas para se ir embora. Seria
Hermes? Ou Mensageiro? Não, também não deveria ser isso: numa sessão
espírita a mensagem era mais importante que o mensageiro. Gritou:
‘A senha é Mensagem!’
O mordomo parou e voltou-se devagar para o poeta. Não mostrou
qualquer expressão, mas Pessoa percebeu que tinha acertado.
‘A senha é Mensagem. Não é?’ Sentiu-se como um garoto.
‘Pode entrar, senhor.’ Destrancou o cadeado, tirou a corrente e abriu o
portão para deixar passar Pessoa.
‘Obrigado.’
‘Tenha a bondade.’ Fez sinal para que o seguisse e caminharam para
a porta da Vila.
Subiram as escadas e passaram para o interior da vivenda. Pessoa viu-
-se num átrio escuro, espaçoso e de pé direito elevado, decorado com belas
e enormes tapeçarias. À sua frente, duas escadarias subiam até uma porta
estreita situada no primeiro andar e calculou que deveria ser uma divisão
pertencente ao torreão que observara quando chegara.
O mordomo pediu-lhe o sobretudo e o chapéu; depois de se afastar
para os arrumar, regressou e conduziu-o por um corredor iluminado por
velas, impregnado com um suave odor a clorofórmio, como se tivesse sido
esfregado com água de labarraque. Parou diante de uma porta, pediu-lhe
que aguardasse uns momentos e bateu. Uma voz masculina deu-lhe per-
missão para entrar e o mordomo obedeceu, deixando Pessoa sozinho no
corredor que continuava a estender-se até à parede do fundo onde se bifur-

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cava. A luz das velas mostrava-lhe ariscos pormenores das tapeçarias que
cobriam as paredes do corredor; peças que perfaziam um número mais que
suficiente para se combinarem com os artigos do saguão numa riquíssima
colecção. O seu corpo rígido produzia duas sombras na parede: uma gran-
de e cinzenta e outra mais pequena, mas negra. Levantou um braço para
alisar o cabelo e teve a impressão que a sombra maior repetira o gesto com
um segundo de atraso; podia ser uma sugestão provocada pelo ambiente
lúgubre. Olhou para as pernas e agarrou as calças pelo cinto, subindo-as.
Passou a mão pelo cabelo mais uma vez e ficou de pé no corredor durante
um período mais longo que o esperado até que o mordomo abrisse a porta
e o convidasse a entrar.
Reconheceu Maria O’Neill, sentada num sofá comprido ao lado de
um homem forte e de bigode; estava maquilhada, com o cabelo solto e en-
vergava um vestido negro muito decotado. Ao seu lado, noutra poltrona,
encontrava-se um cavalheiro careca, vestido com um fato escuro, que fu-
mava um charuto. Viu mais pessoas na sala: outra mulher, alta, vestida com
plumas e com um decote mais fundo que o de O’Neill, e três homens que
aparentavam ter idades muito próximas. Um grande espelho, engastado de
preto, ocupava a parede atrás do sofá de Maria O’Neill; ao fundo da sala viu
uma porta parcialmente coberta por um estrágulo negro. Entre os sofás,
uma mesa redonda servia de suporte aos copos, às garrafas e aos cinzeiros.
A iluminação era fraca e era emitida pelas diversas velas que preenchiam a
divisão, lançando trevas visíveis em vez de brilho.
‘O senhor Fernando Pessoa’, anunciou o mordomo. Fez uma vénia,
saiu e fechou a porta.
‘Boa noite, caro Pessoa’, disse Maria O’Neill. ‘Ainda bem que vieram.’
Pessoa pensou se valia a pena esclarecer a história da senha e achou
melhor não mencionar o assunto; já tinha entrado, não tinha? Avançou até
à mesa e cumprimentou Maria O’Neill. Reparou no aquário que estava so-
bre o móvel ao lado da escrivaninha: dois peixes vermelhos cruzaram-se
um sobre o outro, vindos de direcções opostas.
‘Boa noite, cara senhora’, disse, saudando os outros. ‘Excelentíssimos
senhores.’
‘Por favor, sente-se.’ O’Neill afastou-se, criando um lugar vago entre
ela e o homem do bigode. Pessoa agradeceu e sentou-se; o homem tinha
sobrancelhas pretas e grossas.
‘Colegas, este é o senhor Fernando Pessoa, um cavalheiro informado
e de bom gosto que nutre um interesse genuíno pelo nosso trabalho. Con-
videi-o porque considerei que ele poderá vir a ser um elemento valioso.’
Voltou-se para Pessoa e explicou-lhe quem eram as pessoas que a acompa-
nhavam.

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Ao homem careca, de mãos escondidas por luvas negras, chamavam
Barão de Teive. Era um cavalheiro escanhoado e com um olho aquoso, mas
vigilante; o outro estava escondido por uma pala negra: acabara de chegar
de uma viagem a Paris onde um acidente lhe tinha vazado a vista.
A mulher era a senhora Lacombe, filha do compositor Frondoni La-
combe, autor da popular melodia Maria da Fonte. Impunha-se pela voz
clara, pela altura e pelas roupas extravagantes.
António Freire, sentado ao lado do poeta, era um médico moreno, de
pele engelhada pelo sol. Mais tarde, Pessoa descobriu que ele vivera na Ar-
gentina durante um curto período em que contactara com a sabedoria das
populações das planícies do Chaco e aprendera a concatenar substâncias
de elevadas propriedades psicotrópicas. Pessoa simpatizara logo com Freire
graças às suas orientações políticas anti-republicanas.
Homem de meia-idade, Pedro Carvalho Monteiro herdara a fortu-
na e a casa do pai, falecido há cinco anos: uma propriedade em Sintra co-
nhecida pela população local como Quinta da Regaleira. Os restantes dois
convidados eram Oliveira Feijão, professor de medicina, e o comendador
Fernando da Cruz Ferreira.
O cheiro alcalóide que Pessoa sentira no saguão da vivenda tinha ori-
gem nesta sala e provinha do ópio que os convivas fumavam. Freire e Cruz
passaram a noite a fumar ópio e a beber absinto. Monteiro acompanhou-os
no absinto, assim como a senhora Lacombe, mas não fumou. Maria O’Neill
não fumou nem bebeu, fazendo par com Oliveira Feijão; não gostava de
ver os colegas consumir essas substâncias. Freire, personagem brusca de
aparência intimidante que falava com forte sotaque insular, convenceu Pes-
soa a fumar. Enterrado nos fundilhos do sofá, observando-os em silêncio e
escutando todos os pormenores sibilinos, o Barão de Teive chupava o fumo
do charuto. Quando lhe pediam opinião sobre um assunto qualquer, limi-
tava-se a menear a cabeça, abrindo com preguiça a pálpebra para mostrar
a pupila borrada como uma mancha de tinta. O mordomo trouxera-lhe
uma taça de vidro cheia de pequenos bagos brancos; Pessoa não sabia o que
eram, mas viu-o a comer da taça diversas vezes: parecia cumprir um dever,
como se tomasse um medicamento.
‘Eça de Queirós foi o maior escritor português e não por acidente.
A cultura literária que tinha estava à frente do seu tempo, os modos de
escrever contemporâneos amalgamaram-se na sua escrita com perfeito
saber-fazer’, discorreu Cruz Ferreira, pousando um copo de absinto vazio.
‘Reparem que com tudo isto quero transmitir-vos a ideia que o considero
um verdadeiro artista.’
‘Achei As Cidades e as Serras muito fraquinho’, disse Maria O’Neill, de
mãos cruzadas no regaço. Cruz Ferreira continuou:

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‘Sim, concordo que está longe de ser o romance mais representativo,
mas já leu Os Maias? Porventura notou a estrutura escondida sobre a qual
a história é contada?’
‘Que estrutura é essa?’ O’Neill olhou para Pessoa: parecia estar a di-
vertir-se e seguia o tópico com atenção.
‘Como calculo que seja do seu conhecimento, Eça era maçom, mas o
nosso Barão, excelso Cavaleiro Rosa Cruz, pode falar-lhe nesses ritos com
uma autoridade maior que a minha. O que se passa é que esse livro é um
romance iniciático.’ Pessoa inclinou-se para a frente à menção da palavra
iniciático. ‘A primeira intenção é, com certeza, escrever um romance, ou
seja, contar uma história e dar vida a uma galeria de personagens… inclu-
sive, a crítica social nem sequer pode ser considerada como o palco onde o
enredo é representado… mas, debaixo de tudo isto, de forma oculta, logo
esotérica, encontramos um livro… diferente. As cores, os nomes, as situa-
ções, comunicam com tradições mágicas antiquíssimas.’
‘Vamos perguntar ao nosso novo amigo aquilo que ele pensa sobre
isso que você acabou de expor. Fernando…’ Maria O’Neill voltou-se para
Pessoa.‘… o que é que acha sobre estas, enfim, brincadeiras de Eça de Quei-
roz? Concorda com o que disse o Cruz Ferreira?’
‘Com efeito…’, começou Pessoa, encostando-se ao sofá e coçando o
bigode. ‘… vivemos, hoje em dia, num mundo artificial. Fazem-se coisas
sem que se pense muito nelas…’ Parou uns instantes para ordenar ideias e
continuou: ‘A secreta geometria das coisas é inexorável, e isso é válido na li-
teratura. Não só é válido como é uma regra de ouro para escrever obras que
perdurem no tempo. Perduram porque, precisamente, possuem uma estru-
tura que desafia a erosão. Não é sem alguma vaidade que vos confesso que
me dedico ao estudo dos clássicos e tenho encontrado nas obras de maior
expressão um rigor técnico insuspeito em autores que, por culpa de certos
escândalos individuais, hoje julgamos… sei lá, italianizados ou antiquados.’
‘Autores como?’
‘Como Camões.’
O homem endireitou-se: ‘O Camões, antiquado?’
‘Se não é antiquado, do italianizado não se livra de ser, mas dizia-lhe
que tenho lido um Camões diferente, para usar uma expressão sua, daquele
que nos ensinam na escola.’
Antes que Cruz Ferreira fizesse outra pergunta, o mordomo bateu à
porta. O Barão mandou-o entrar; ouviram-se as badaladas de um relógio
anunciando a meia-noite. O mordomo, com uma bengala na mão, aproxi-
mou-se do dono da casa e ajudou-o a levantar-se do sofá. Agarrando a ben-
gala, encastoada com um T de prata, o Barão arrumou o laço pendurado na
gola da camisa e disse aos convidados:

71
‘Queridos amigos, vamos continuar a noite noutra sala. Já está tudo
pronto para a reunião.’
‘Ainda me vai explicar essa do Camões’, disse Cruz Ferreira sorrindo,
aproximando-se do ouvido de Pessoa.
‘Eça, do Camões terá pouco’, respondeu. ‘A não ser o gosto por labi-
rintos literários.’
Atravessaram a passagem já familiar a Pessoa, virando à esquerda
para o interior de uma pequena galeria, e ingressaram em outro corredor.
O Barão ia à frente, apoiado na bengala e no braço do mordomo; coxeava.
Atrás deles iam a senhora Lacombe e Pedro Carvalho Monteiro, seguidos
por Maria O’Neill e António Freire. Pessoa acompanhava-os, à frente de
Cruz Ferreira e Oliveira Feijão. O mordomo abriu uma porta e acendeu um
lampião que estava pendurado num prego na parede. Mostrou o caminho
aos convidados e, depois de avisar o último a entrar para que fechasse a
porta, começou a descer as escadas.
‘Na cave?’, perguntou Pessoa em voz baixa a Maria O’Neill.
‘Sim. Quanto mais próximos da terra, melhor.’
‘Ouça, não somos poucos para formar um círculo?’
‘Ah, mas é que temos uma médium muito desenvolvida.’ Apontou
para a senhora Lacombe.
‘Ela?’
‘Não. Alguém que ela trouxe. Tenha calma. Vai perceber tudo.’
A cave exígua só tinha uma mesa de pé-de-galo coberta com um
pano preto; no centro da mesa, via-se uma caixa de madeira tapada com
uma folha grossa de papel. O mordomo pendurou o lampião num prego
e cobriu a chaminé com uma folha de papel igual à que estava em cima
da caixa. Não havia cadeiras à volta da mesa: apenas bancos de madeira,
toscos e pintados de preto. Pessoa viu o mordomo levantar a folha de papel
e tirar uma vela de dentro da caixa; acendeu a vela e voltou a colocar tudo
como estava. A luz fosca que era produzida dessa forma criava ondas na
pele sempre que alguém se movia, como se nadassem no fundo do mar. A
um canto da divisão, Pessoa descobriu linhas marcadas no chão de madeira
pelo peso de uma garrafeira: a cave já tinha sido uma adega e o cheiro a vi-
nho guardado, que lhe lembrava o cheiro do armazém do Abel, fez-lhe sede.
O mordomo subiu as escadas e deixou-os sozinhos.
‘Colegas…’, disse a senhora Lacombe, fazendo um gesto com a mão
na direcção da mesa. ‘...a Bruxa de Castle Witch.’
Do negrume saiu uma velhota vestida de preto, como se as sombras
tivessem ganho forma humana. Com o rosto coberto por um véu rendilha-
do, a Bruxa de Castle Witch aproximou-se da mesa e estendeu os braços.
Era uma mulher muito pequena.

72
‘Senhor Barão de Teive, Dr. António Freire, Dr. Fernando da Cruz
Ferreira e senhora Lacombe, sentem-se à minha esquerda, por favor’, disse;
a sua voz era indistinta e soava de várias maneiras, consoante as sílabas. ‘Dr.
Oliveira Feijão, senhor Pedro Monteiro, senhor Fernando Pessoa e senhora
Maria O’Neill, sentem-se à minha direita, por favor.’
Esperou que os convidados ocupassem os lugares à mesa e sentou-se.
Pousou as mãos em cima da mesa com as palmas voltadas para cima.
‘Todos têm o sal?’
Cada um tirou para fora o seu saquinho de sal e aguardou instru-
ções.
‘Deitem o sal em cima da mesa à vossa frente.’
Pessoa abriu o saquinho de lã e despejou o sal.
‘Se o vosso montinho de sal se tornar uma papa, gritem o vosso nome,
seja em que altura for. Agora, por favor, ponham as mãos em cima da mesa,
de modo a que a vossa mão esquerda fique em baixo da mão direita do vos-
so vizinho e a direita em cima da esquerda do outro vizinho.’
O grupo obedeceu e Pessoa deu as mãos a Pedro Carvalho Monteiro
e à senhora Lacombe; a mão do primeiro era fria e a mão da segunda era
quente.
‘Aconteça o que acontecer, vejam o que virem, em nenhuma circuns-
tância larguem as mãos.’
O grupo concordou em voz baixa.
‘Podemos falar uns com os outros?’, perguntou Pessoa.
‘Sim. Pode. Mas em voz baixa e, por favor, não fale pelos cotovelos’,
respondeu a médium. A palavra cotovelos soou como se tivesse sido dita
por uma criança.
A Bruxa de Castle Witch inclinou a cabeça para a esquerda, perma-
necendo nessa posição. O grupo concentrou-se nas mãos, e Pessoa, que não
sabia o que esperar, memorizava todos os pormenores para os reproduzir
em casa.
‘Sinto um vento nas mãos’, disse Oliveira Feijão, passados uns instan-
tes, erguendo a cabeça entusiasmado.
‘Eu também’, disse Maria O’Neill, apertando as pálpebras e inspiran-
do fundo. ‘Sinto uma presença.’
Pessoa ouviu um ruído parecido com madeira a estalar sob o peso
de um pé. Olhou em volta e confirmou a imutabilidade das condições ini-
ciais da sessão. Começou também a ficar com frio nas mãos e lembrou-se
que o livro de prestidigitação explicava que esse efeito podia ser construído
metendo as mãos num saco de gelo durante uns segundos, mas os vizinhos
não lhe tinham largado as mãos desde que se tinham sentado. O ranger
regressou e à terceira vez que se fez ouvir prolongou-se num som irritante

73
parecido com um arranhar. Arregalou os olhos lacrimantes: cada vez que
sentia ansiedade, ou medo, começava a produzir lágrimas.
‘Que é?’, perguntou Cruz Ferreira à médium, olhando nervoso para
todo o lado.
‘Escutem!’, disse António Freire, inclinando-se sobre a mesa. Outro
ruído semelhante a um arranhar fez-se ouvir no interior da cave e a luz
desapareceu por uns momentos; quando a cave voltou a iluminar-se, fê-lo
com maior intensidade, carregando as sombras e alongando as feições dos
participantes.
‘Eu…’ A médium começou a endireitar a cabeça devagar. ‘… Eu
veee…’
‘O quê? Que se passa?’, perguntou Cruz Ferreira
‘Eu veeejo-te!’, berrou a médium com uma voz que parecia a de um
gato. ‘Tu! Tu! Tu!’
Miou como um gato e sacudiu-se, ameaçando saltar para cima da
mesa. Pessoa estava impressionado, mas, no fundo, achava que tudo aquilo
não passava de uma representação. Olhou para o sal que tinha deitado em
cima da mesa e sentiu um arrepio gelado na espinha: tinha-se derretido e
transformado numa pasta liquefeita que começava a cheirar mal.
‘Eu veeejo-te! Tu! Tu!’
A bruxa de Castle Witch começou a arrotar miados e estalidos, mas
não parecia estar com vontade de saltar do banco. Cruz Ferreira suava, mas
manteve o contacto com firmeza. António Freire e a senhora Lacombe sor-
riam, deslumbrados.
‘Fernando Pessoa!’, gritou o próprio como a médium tinha instruído;
a mulher olhou para ele e gritou:
‘Fernando Pessoa, fecha os olhos e junta os pés!’ Falou com a sua
voz normal, mas ainda dissera o nome com o sotaque felino. ‘Não deixes
nenhumas das tuas extremidades desacompanhadas. Não tenhas medo: é
fraco!’
A médium deu um pulo no banco e o grupo sentiu uma presença
passar debaixo dos seus rostos. Pessoa arrepiou-se e gemeu:
‘Meu Deus!’
Cruz Ferreira começou a rir e os outros imitaram-no, descarregando
os nervos.
‘Sente-se bem, senhor Pessoa?’, perguntou a senhora Lacombe, exta-
siada e com os mamilos duros debaixo do vestido.
‘Acho que estou bem. De repente, fiquei cheio de frio, mas já passou.’
‘Passou, passou’, disse António Freire. ‘Passou por si! Já foi embora.’
‘Passou o quê?’
‘Era um gato!’, disse a médium, elevando o tom de voz. ‘Podem largar

74
as mãos e que a paz de Deus seja convosco.’
‘Um gato?’, perguntou Pessoa, levantando-se do banco e limpando o
suor das mãos no lenço. Pedro Monteiro fez a mesma coisa e Cruz Ferreira
passou as palmas nas calças. A senhora Lacombe dirigiu-se à médium e
ajudou-a a levantar-se, segredando-lhe ao ouvido. Beijou-a na cabeça e foi
falar com António Freire. Maria O’Neill penteava o cabelo com a mão
‘Era mesmo um gato?’, perguntou o Barão de Teive aproximando-se
da médium; chamou o mordomo. O homem abriu a porta, desceu as esca-
das e começou a arrumar a sala.
‘Sim, senhor. Um gato vulgar.’ Dirigiu-se a Fernando Pessoa e disse:
‘Este senhor matou-o.’
‘Não.’ Lembrou-se do gato que o atacara junto ao portão. ‘Atirei um
pau a um gato, sim, mas ele não morreu. Ele fugiu… acho eu.’
‘Qual pau? O senhor matou-o quando ele passou por si.’ Vendo que
Pessoa não a entendia, explicou: ‘Os espíritos das coisas não são como os
seres espirituais, compreende? São fracos. Não aguentou o que tem dentro
de si.’ Tocou-lhe no peito com um dedo e retirou a mão rapidamente, dan-
do um passo atrás. Hesitou e disse: ‘Você…’ Inspirou fundo e aproximou-se
de Pessoa outra vez. ‘… está muito bem protegido!’
‘Não percebo nada.’ O grupo tinha-se juntado ao pé das escadas e dis-
cutia a sessão com entusiasmo, esperando que o mordomo terminasse as
tarefas para o Barão dar ordem de saída. ‘Qual é a diferença entre o espírito
de uma coisa e um ser espiritual?’
‘O espírito de uma coisa é a essência desencarnada de algo físico que
ainda pertence a este mundo, mas que não está dentro de um corpo espiri-
tual. Os seres espirituais são espíritos de algo físico que já morreu, incarna-
dos em corpos espirituais.’
‘De onde apareceu o gato?’
‘Às vezes, chamamos presenças próximas, tão fracas que facilmente
vêm até nós’, explicou a médium. Continuava com a cara coberta pelo véu e
Pessoa não conseguia vê-la. ‘O que fazemos é criar uma corrente de energia
magnética com dois pólos, um negativo e um positivo, esquerda e direita.
É esse magnetismo que atrai os seres espirituais. Se alguma coisa mais fraca
passar junto da corrente é atraída, independentemente de estar morta ou
viva.’
‘E se atraírem o espírito de alguém que está vivo?’
‘O espírito de um indivíduo é muito forte. Por outro lado, o de um
gato… Mas tudo aquilo que sai não volta a entrar. O corpo físico morre
assim que o espírito sai.’
‘Como posso contactar com um ser espiritual à minha escolha?’
‘Alguém que já foi da família?’

75
‘Sim.’
Maria O’Neill aproximou-se deles.
‘Temos de subir’, disse.
‘Para falar com um ser espiritual…’, disse a médium enquanto subia
as escadas. Pessoa viu os lábios moverem-se atrás do rendilhado negro: era
uma boca pequena. ‘… tem de entender o que é um ser espiritual. É uma
entidade a quem o mundo físico não interessa. Quando estamos a falar de
seres espirituais, estamos a falar de coisas que são todas feitas de… ideias.
Como um Tulpa.’
‘Entendo.’
‘Tem alguma fotografia da pessoa com quem deseja entrar em con-
tacto?’
‘Sim.’
‘Queime-a! Destrua todos os objectos, como se fosse um sacrifício.
Quando essa pessoa só existir na sua cabeça… Então, pode falar com ela.’

**

Sentado na cama, de tronco nu, Pessoa sentia-se cansado: de astros e de leis,


e com vontade de ficar de fora do universo. Naquele momento não existia
vácuo nem razão, nem infância, nem adolescência, nem idade viril, só o
negativo absoluto: a encarnação do nada. Agarrando a fotografia da mãezi-
nha pensou que o Homem era um animal que despertava sem saber onde
nem para quê, porque quando adorava os deuses fazia-o como se praticasse
bruxaria: as religiões são símbolos que a humanidade toma não como vi-
das, mas como coisas que não podem ser. Cristo era o símbolo do Sol, mas
poderia ser o Sol o símbolo de Cristo? Pessoa queria ser Goethe, se não na
hora da vida, na hora da morte: o espírito alquímico que contraria – que
vira do avesso. Virou a foto do avesso e leu a data inscrita no papel pela mão
da mãe. Olhou para o cinzeiro, para a caixa de fósforos, e começou a chorar,
tremendo as mãos.
Este quarto na Rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, bairro
de padarias, fábricas e cemitério, não se encontra numa casa feita de tijolo,
argamassa e areia, mas sobre um caminho pavimentado de espinhos e es-
corpiões e estrelas negras. Este é o caminho que saído de Netzach, a Vitória,
conduz a Tipheret, a Beleza: uma viagem elevada a partir de um domínio
venusiano onde o Amor é mais forte que a gravidade, que o electromagne-
tismo e as forças nucleares, até à esfera solar em volta da qual todo o univer-
so orbita. Uma viagem só de ida em que o destino do peregrino é encontrar
a alma; pura como ouro garimpado do leito da própria vida.
Pessoa agarra a fotografia e aproxima-a da luz que entra pela janela,

76
pintando-a com os reflexos azulados emitidos pela noite, e vê-se bebé nos
braços da mãe; uma criatura pequena, embrulhada de branco. Pousa a ima-
gem no cinzeiro e agarra a caixa de fósforos. A Morte espera o peregrino
neste caminho, entre a Vitória da Vida e a Beleza do Espírito: é preciso mor-
rer, destruir o corpo, para progredir – para evoluir! O fósforo cabeceia a lixa
e a chama aparece; abandona o estado larval de clorato de potássio para se
alimentar do oxigénio circundante como um ser vivo, trepando pelo palito
em direcção aos dedos do poeta. Os olhos de Pessoa fixam o imo incandes-
cente e voltam-se para a fotografia. Queime-a! Como um sacrifício. Pessoa
agarra a foto e dá-a de comer ao fogo: a chama dilata-se para engolir o rosto
da mãe e, pulando da parafina, destrói a cara do bebé, reduzindo-a a uma
pústula que pinga como uma ferida aberta. Caída no cinzeiro, a fotografia
da mãe arde – morre; a imagem desaparece da face do mundo para passar a
existir na forma de uma representação mental na lembrança do filho, para
passar a ser sonho!
Este poeta, este homem, quase nu, chorando agachado sobre as cin-
zas da mãe, sente-se no fundo da existência, ignorando que existe luz nes-
se lugar: uma luz fulminante que faísca com mais vigor apenas porque se
encontra prisioneira no breu. Pessoa morre e Pessoa renasce: rangendo os
dentes, agarra a caneta e o bloco de apontamentos – a varinha e o cálice
– onde ainda se vêem os círculos – as ondas provocadas pela imersão da
varinha – desenhados na noite em que a irmã o surpreendeu vestido com a
roupa da mãe. Virou a página e algo também se virou dentro dele; sentado
entre o desejo e a alma, Pessoa transcendeu-se: emergiu de queixo erguido
do seu mosto de bebé queimado para beber o néctar. Abriu os olhos e focou
um ponto cego à sua frente.
Silêncio.
Escuridão.
Cãibras no cóccix e nas pernas.
Nunca sentiu um distanciamento tão grande da realidade, como se
o espírito estivesse dormente de habitar a mesma posição no mundo há
demasiado tempo. Liberto da materialidade dos sentidos escutou um mur-
múrio entre as sombras, tão fraco como um sopro cardíaco. Então, como se
adormecesse, começou a ouvir:

… escreve e que escrever seja para ti uma fonte de prazer…


… ergue-te, ó meu profeta… serás mais alto que as estrelas…
… eles adorarão o teu nome…

A voz assexuada debitava as palavras com um timbre neutro que ig-


norava sílabas tónicas. Era um idioma inédito, mas, sem explicação, com-

77
preensível! Enfeitiçado, Pessoa esforçou-se por ouvir mais, mas súbitas mu-
danças de volume mutilavam as frases.

… eu a elevarei aos píncaros do poder:


e farei com que me dê à luz uma criança mais poderosa
que todos os reis do mundo…
… faz aquilo que a tua vontade manda e que essa seja a súmula da lei…
… quem ignorar este aviso sofrerá as consequências…
… não há mais nenhuma lei que aquilo ditado pela tua vontade…
… o amor é a lei… amor guiado pela vontade…

O som sumiu-se e ele não escreveu mais nada. Esperou por nova
transmissão, mas não voltou a ouvir a voz morna que falava como se ditas-
se combinações químicas. Agarrou o bloco de apontamentos e leu as frases,
não encontrando sentido nenhum. Não poderiam ser mensagens da mãe:
não fazia ideia do que seriam e com quem tinha estabelecido comunicação.
Eram apenas palavras, apenas voz, e nada de imagens. As primeiras frases
que escrevera pareciam-lhe ser alusões ao seu trabalho, mas não queria re-
tirar conclusões apressadas.
Seria a confirmação astral que viria a ser um grande escritor ou ti-
nha sintonizado uma mensagem alheia? Releu tudo e duvidou da primeira
suposição, pois não encontrava na sua escrita nada em comum com o con-
teúdo das transcrições. Quem seriam a mulher e a criança mencionadas
no texto? Que história era aquela da vontade e do amor? Começou a rir:
tratava-se de uma transmissão real, porque era demasiado absurda para ser
construída pela auto-sugestão ou pelo cansaço.
Deitou-se com o bloco na mão e releu o trecho várias vezes até o saber
de cor. Tinha falhado em falar com a mãe, mas a Bruxa de Castle Witch ti-
nha razão: o sacrifício funciona! Pensou que não poderia ser de outra forma:
o sucesso depende do sacrifício, do investimento. Quanto maior é o investi-
mento, mais alto chega o êxito do empreendimento. Para ganhar enquanto
poeta, que era uma actividade física, sacrificava outras actividades físicas,
e para alcançar esferas espirituais tinha de sacrificar ideias, pensamentos e
memórias. Precisava sempre de pagar! Apenas mudava de moeda.

***

Ouviu o apito distante de um barco ancorado na Rocha Conde de Óbidos


quando desceu do eléctrico na Praça do Comércio; parecia o barrido do
elefante esculpido por Machado de Castro para o pedestal da estátua eques-
tre de D. José I: uma cornetada lúgubre, arrancada à pedra que pautava

78
a pulsação do próprio plateau onde Pessoa passava. Olhando de esguelha
para Viriato, em pé sobre o Arco do Triunfo que abria a goela iluminista
para exibir a augusta traqueia, o poeta avançou com o seu consentimento
para a Rua do Ouro, cruzando a estrada em frente ao local do regicídio.
Com as mãos nos bolsos, apalpava o bloco de apontamentos onde
anotara a tiptografia; um eléctrico quase vazio passou por ele deixando-o
para trás; um homem gordo com um casaco demasiado pequeno fixara-o
com tristeza. No cruzamento com a Rua de São Julião virou à direita para
a Rua Nova do Almada e subiu-a para entrar na Rua Garrett, engalanada
por dezenas de pombos que retouçavam nos cabos eléctricos ao ritmo do
repique dos sinos que anunciavam os cultos matinais da Basílica dos Már-
tires. Sobre o Hotel de L’Europe, na Praça Luís de Camões, as nuvens desa-
gregavam-se para deixar cair do céu um cobarde facho de luz. Um eléctrico
desceu para a Rua do Alecrim depois de deixar sair um cavalheiro bem ves-
tido, munido de bengala, com uma pasta preta debaixo do braço. Ao vê-lo,
Pessoa compreendeu que apenas via homens solitários nas ruas por onde
andava: banqueiros de fraque e vendedores de hortaliças puxando carretas
de madeira, todos homens dentro de si mesmos, animados pela luz fraca e
encarregados de realizar as mais anódinas tarefas como enzimas. Quantos
deles teriam no bolso mensagens de outros mundos? E, no entanto, olha-
vam-no e aceitavam-no como seu semelhante: a ele, que nada partilhava
com eles, excepto o sono rarefeito. Quem passeia no estrato mais elevado
da vida tem sempre um sono rarefeito: é como o ar, daí a sua agitação febril,
que namora com o instinto suicida. Uma matilha de cães vagabundos subiu
a Rua da Misericórdia à sua frente e quando ele alcançou o Largo Trindade
Coelho já não os viu. Pelo caminho, entrara na Carioca, à saída da Praça
Luís de Camões, e comprara um pacotinho de chá para oferecer à irmã. O
bebé estava quase a nascer e sentia que iria ser uma menina. Farei com que
me dê à luz uma criança mais poderosa que todos os reis do mundo, eram
as palavras que trazia no bolso. A sobrinha seria a sua rainha: uma criança
soberana. Até crescer…
Passou pelos táxis estacionados em frente à Igreja de São Roque e
entrou na Rua São Pedro de Alcântara, parando uns instantes no miradou-
ro antes de ir ter com Kamenezky. Cheirou o pacotinho de chá e deixou
que a brisa fria lhe relaxasse os movimentos. O bairro da Mouraria parecia
uma nódoa negra no tornozelo da Costa do Castelo, e o telhado férreo do
mercado da Praça da Figueira assemelhava-se à couraça caliginosa de um
escaravelho enorme, prisioneiro entre o Poço do Borratém e o Rossio. Esse
pensamento fez-lhe comichão, mas não foi capaz de lembrar o que a visão
lhe inspirava. Guardou o pacotinho de chá no bolso e voltou para trás, atra-
vessando o jardim em direcção à livraria; sem querer, chutou uma cotovia

79
morta que era esquartejada por uma fila de formigas. Um grupo de rapazes
que brincava ao berlinde junto do chafariz apanhou-a e um dos miúdos
agarrou a cabeça do pássaro e puxou-a, decepando-o. Sacudindo formigas
da mão atirou o corpo para dentro do chafariz e baixou-se para usar a ca-
beça da ave como se fosse um berlinde. Pessoa voltou a cara e passou para
o outro lado da rua, apertando o sobretudo contra o pescoço, sentindo a
manhã enegrecer.
Encontrou Kamenezky a abrir caixas com livros usados; depois de
anotados no estreito canhenho sarapintado com manchas de tinta, voltava
a guardar os volumes nas caixas e levava-as para dentro da arrecadação. O
pó enfiou-se na garganta de Pessoa fazendo-o tossir.
‘Tanta tralha!’, disse Pessoa, tirando a cigarreira do bolso.
‘Nem tanta, vendi duas revistas tuas.’
‘Boa, boa.’
‘Já há algum tempo que não vinhas cá.’ Pousou uma caixa pesada em
cima do balcão e apoiou os braços em cima dela. ‘Sei que foste a Benfica
naquela noite. Como correu?’
‘Nem sei que te diga’, disse, espreitando para uma caixa aberta, ten-
tando ler os títulos dos livros que continha. ‘Acho que não correu mal.’
‘És um troca-tintas.’ Riu e abriu a caixa que tinha à sua frente. ‘Já me
contaram que estiveste muito bem.’
‘Hum…’
‘Encontraste o que procuravas?’
‘Ainda bem que falas nisso, porque…’, aproximou-se e tirou o bloco
de apontamentos. Abriu na página certa e entregou-o ao alfarrabista. ‘Que
te parece isto?’
‘Não sei’, respondeu, sentando-se para ler. ‘O que é?’
‘Ouvi uma voz na minha cabeça e essas foram as suas palavras.’
‘Um espírito?’
‘Talvez. Talvez esteja a perder o juízo!’ Riu. ‘O Francisco Lacerda dis-
se-me uma vez que as verdadeiras transmissões espirituais contém núme-
ros.’
‘Sim?’
‘Parece que ninguém se lembra de inventar números quando quer
fazer passar por verdadeiro um texto de escrita automática. Números são…
esquisitos. Tenho de acreditar que isso é uma transmissão genuína.’
‘Não vejo números.’
‘Pois não, mas acho que ouvi alguns. Tenho quase a certeza que ouvi
um 418. Não consegui ouvir tudo, apenas pedaços.’
‘A sério?’
‘Sim.’

80
Kamenezky pousou o bloco em cima do balcão.
‘Qual é a tua pergunta?’
‘Que achas disso? Faz algum sentido?’
‘Bom… Não sei o que procuravas…’ Agarrou o bloco e releu. Ergueu
as sobrancelhas e fitou o texto por uns momentos. ‘Acho…’
‘Que?’
‘Vou aos apalpões, calma.’
‘Apalpões seguros?’
‘Gosto disso! Gosto mesmo’, sorriu e olhou para o bloco. Leu mais
uma vez e devolveu-o a Pessoa. ‘Acho que já li algo parecido com isto, mas
não me lembro onde.’
‘Garantes?’
‘Tenho quase a certeza.’
‘O que é, Cirilof?’
‘Não me lembro. Tens de perceber que vejo muitos livros, Fernando.
Olha, hoje recebi este.’ Agarrou um livro de capa preta que tinha sobre o
balcão e ofereceu-o a Pessoa.
‘Mein Kampf?’ Folheou-o. ‘Que é isto?’
‘É um livro escrito por um alemão. É um livro anti-semita.’
‘O meu alemão não é muito bom.’ Leu umas linhas e devolveu-o a
Kamenezky. ‘Parece aborrecido.’
‘Parece perigoso’, disse o outro. ‘Sabes quem o encomendou?’
‘Quem?’
‘O teu amigo António Ferro.’
‘Não o vejo há algum tempo.’
‘Esteve aqui há uns meses.’
‘Como te sentes com isso?’
‘Como me sinto?’
‘És judeu e estás a vender livros anti-semitas.’
‘É uma boa pergunta que merece uma boa resposta. Sou um livrei-
ro, Fernando. Não posso recusar-me a vender um livro por não concordar
com o conteúdo. Seria a minha ruína.’
Pessoa concordou com um gesto de cabeça e inclinou-se sobre o bal-
cão. Agarrou o bloco, tirou uma caneta do bolso e copiou o texto para uma
folha que arrancou e deu a Kamenezky.
‘Se te lembrares do tal sítio onde viste algo parecido com isto, diz-me,
por favor.’
‘Está combinado, mas porque não pedes ajuda à Maria O’Neill? Fi-
caste com os contactos deles?’
‘Sim, trocámos contactos, mas prefiro não me envolver com o gru-
po.’

81
‘Porquê? Eles percebem mais disto que eu. Repara que posso estar
enganado e fazer-te perder tempo. Se isto é tão importante para ti…’
‘Cirilof, eu odeio grupos. Não quero pertencer a nenhum. Nada de
bom pode nascer de um grupo.’
‘É uma opinião controversa, amigo.’
‘Só se a própria lógica é controversa. Achas que um grupo poderia ter
inventado a roda?’
‘Como?’
‘Um grupo, Cirilof, perderia anos de trabalho até encontrar uma so-
lução de compromisso e acabaria por fazer uma roda heptagonal para agra-
dar a todos os elementos da equipa.’ Ergueu o dedo indicador e agitou-o.
‘Mas o criador solitário é guiado em exclusivo pela sua visão. E digo visão
no sentido mais profundo que possas imaginar.’

82
4

Sentado à mesa no fundo do salão d’A Brasileira, Pessoa fazia palavras-cru-


zadas, observando o crescimento das nódoas de vapor e fumo de tabaco que
sujavam as paredes desde a última vez que ali bebera café. Há algum tempo
que não frequentava o espaço, tendo-se deslocado à Rua Garrett naquela
manhã para se encontrar com Kamenezky e para ver a estátua do “Chiado”,
esculpida por Costa Mota, inaugurada no dia anterior. Onde andava a es-
tátua de Poseídon que tantos anos ali tinha estado? Não sabia. Olhou para
o criado “João Franco”, que visitava todas as mesas com um tabuleiro nas
mãos, distribuindo chávenas e copos como se polinizasse a clientela. De-
pois, demorou uns momentos a estudar as telas do Telles que tanto escânda-
lo tinham causado na altura da sua exposição; agora, camufladas por uma
fina película de pó, já tinham desaparecido da vista de todos. Descobriu
os quadros pintados por Almada Negreiros e sorriu ao ver o próprio no
retrato de grupo; o artista só tinha recebido 4 contos por cada trabalho, mas
como era apenas um desenhador, e não um pintor, como António Soares
ou Eduardo Viana, não se podia queixar.
No dia anterior, horas depois da inauguração da estátua, encontrara
o Luís de Montalvor na vizinhança de um alfarrabista da Rua do Crucifixo
e ele dissera que o ajuntamento de pessoas no evento lhe tinha lembrado
a tarde em que Sidónio Pais ali tinha passado a cavalo. Pessoa lembrava-se
muito bem desse momento: tinha aplaudido a passagem do líder e acenado
com o chapéu, como um rapazinho da província. Todavia – e sobre Lisboa
existia sempre um todavia –, o seu comportamento não andava afastado

83
da norma porque Lisboa era provinciana; se não fosse, as telas mandadas
pintar por Adriano Telles nunca poderiam ter causado indignação. A Bra-
sileira, com a nova frontaria, os novos quadros e a nova estátua, tinha-se
tornado no sol da baixa pombalina, agremiando estudantes, escritores e
empresários sob a densidade da sua massa; os borrões amarelados nas pa-
redes eram as manchas solares desse corpo celeste em célere órbita de trans-
lação. Pessoa, selenita por feitio e formação, fazia a rotação dos afectos para
outras estrelas mais frias, como o Café da Arcada, na Praça do Comércio,
e o Montanha, que ia fechar para obras. O ruído da chuva a cair fê-lo olhar
para a porta e interromper as palavras-cruzadas e as palavras-pensadas: a
chuva veio de repente, como um amigo que se senta à mesa para transmitir
uma morte na família; oblíqua, agitada pelo vento, desintegrava-se contra a
estátua do Chiado, baptizando-a.
A lembrança de Sidónio Pais deu-lhe vontade de reunir os rascunhos
desterrados para dentro da arca e recomeçar o projecto do livro sobre polí-
tica portuguesa que tantas vezes iniciara para desistir no instante seguinte.
Seria uma desculpa para não se meter na desventura da revista de contabi-
lidade com o cunhado.
Nascida no mês anterior, a sobrinha Manuela era a rainha da casa e
a grande prenda de Natal que recebera adiantada. As crianças tinham algo
de divino, como Dionísio assassinado e devorado pelos titãs de cujos restos
mortais tinha nascido a espécie humana. Divina era a pequena Manuela
– a Criança Nova que habita onde vivo –, e as suas titânicas birras! Pessoa
pensou que era bom haver alguém a chorar em casa à noite sem ser ele, mas
a questão da mãezinha, embora por resolver, já não o desesperava. Tinha
sido reconduzido a uma situação, se não de unidade, de sintonia com o
cosmos, e sentia que aquele final de ano misterioso, pautado por gatos en-
demoninhados e vozes do além, seria apenas o início da abertura de mais
arcanos, colocados no seu caminho nos próximos meses. Tratava-se de um
pensamento que muito o aprazia porque reconhecia, pela memória da edu-
cação clássica, que esse tipo de apokalyptos é apanágio das elites. Pitágoras,
Platão e, sobre todos, Pessoa – o Super-Camões! Continuava a chover quan-
do a hora combinada com o livreiro se aproximou, e ele, sempre cheio de
fobia às trovoadas, inclinou-se sobre o jornal para fazer as palavras-cruza-
das devagar, receoso de acordar Zeus.
Lembrou-se outra vez do Luís de Montalvor e, sem saber porquê,
odiou-o. Ou melhor, o Álvaro de Campos odiou-o, sussurrando-lhe ao cé-
rebro que ele queria arruinar-lhe a carreira contando a toda a gente a verda-
deira identidade de Alberto Caeiro. O Álvaro de Campos tinha demasiadas
vezes atitudes parvas, mas Álvaro de Campos não era ele próprio? Ou já o
tinham trocado?

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O aguaceiro extinguiu-se, sem que tivesse trovejado, deixando a cal-
çada mais brilhante que os sapatos de Pessoa quando voltava de lavar os
pés por fora. O poeta chamou o “João Franco”, pagou a bica e saiu para se
encontrar com Kamenezky.
Pôs-se de pé diante da estátua do bardo de bronze que botara a alcu-
nha de Trinca-Fortes ao amigo Camões; o bardo ou o cordão-dos-anjos – no
sentido original de coisa entre dois: dois mundos – como a ele se referiam
os cristãos gnósticos quando desejavam denominar à consciência que se
avantajava à morte. Seguiu com os olhos o dedo da estátua que apontava na
direcção da Rua da Misericórdia. Não vinha ninguém ao seu encontro. Fo-
lheou o jornal enquanto esperava a chegada do livreiro e leu que o municí-
pio ia erguer no próximo ano uma estátua dedicada ao Marquês de Pombal
na parte superior da Avenida da Liberdade, mas a notícia que lhe suscitou
mais curiosidade foi a descoberta e a escavação da Esfinge do Egipto.
O acontecimento não deixou de cunhar com um carácter profético as
revelações das últimas semanas: era o símbolo derradeiro para que acredi-
tasse na providência, para que acreditasse que se encontrava à beira de algo
inesperado. Pisando a calçada molhada com cautela para não escorregar,
vestido com um sobretudo verde-escuro, Eliezer Kamenezky aproximou-se
e cumprimentou-o. Trazia um embrulho e olhou Pessoa com uma expres-
são matreira. Desceram a Rua Garrett em direcção à Antiga Casa Pessoa.
‘Estás com sorte, ó Fernando’, disse Kamenezky. ‘Trouxe-te uma coisa
que te vai fazer arregalar os olhos.’
‘Encontraste o livro onde leste o texto parecido com as frases que te
dei, não foi?’
‘Sim, mas já te mostro.’ Exibiu o embrulho e voltou a enfiá-lo debaixo
do braço. ‘É muito curioso. Muito curioso, mesmo.’
‘Que livro é, Cirilof? Quem o escreveu?’
Com o cabelo solto caído sobre os ombros e a longa barba negra en-
sarilhada pelo vento, Kamenezky parecia Gurnemanz a descer a Rua do
Carmo em trajes cerimoniais – ou o Merlin do vetusto ciclo do Graal. Pes-
soa perguntou-lhe outra vez o título do livro e o nome do autor, mas ele não
respondeu. Na descida, o poeta olhou para o logótipo do Café Chiado e as
letras pareceram-lhe borradas pela chuva prévia: começava a ver mal com
aquelas lentes e decidiu que para o ano iria mudar de óculos.
A igreja vazia do Largo de São Domingos baliu ao longe, como se
roncasse de fome, e um carro atravessou-se apressado à frente dos dois ami-
gos no caminho para o restaurante. Seguiram pela Rua de Santa Justa até ao
cruzamento com a Rua dos Douradores e entraram na Antiga Casa Pessoa.
Kamenezky acompanhou o companheiro até à mesa que ele costumava
ocupar. Sentaram-se: o cheiro a carne assada recebeu-os antes do criado.

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‘Mostra-me o que encontraste!’, disse Pessoa, aceitando a ementa das
mãos do empregado e pousando-a na mesa sem a consultar. Sorrindo, mas
olhando-o com uma expressão afiada, Kamenezky ofereceu-lhe o embru-
lho.
‘Vê se gostas.’
Pessoa rasgou o papel e retirou um volume de grande formato, grosso
e com o título O Equinócio.
A ilustração da capa, que apresentava um frontispício de inspirações
rosicrúcias e maçónicas, vinha acompanhado pela legenda O Método da Ci-
ência, o Objectivo da Religião. Olhou para Kamenezky e arregalou os olhos.
Folheou a publicação, de onde flutuou um açucarado odor a naftalina, e
percebeu que se tratava de uma revista; a décima e última edição do pri-
meiro volume de uma série. Leu o índice, que continha artigos intitulados
O Templo do Rei Salomão, Rosa Ignota e Hino a Satã, assinados por nomes
como Arthur Grimble, Victor B. Neuburg e Aleister Crowley; perplexo, riu
e mostrou a Kamenezky a capa com a Justiça e o Tosão desenhados.
‘Que é isto?’
‘É a revista da sociedade mágica Argenteum Astrum, a ordem da Es-
trela Prateada. O líder é um homem chamado Aleister Crowley.’
‘Sim, posso ver o nome dele por todo o lado’, disse Pessoa, voltando
a olhar para o índice. ‘E o que é esta Ordo Templi Orientis…’, leu o início
do editorial, ‘… cujo órgão oficial, o Oriflamme, passará a ser editado pelo
Irmão Crowley?’
‘Não tenho a certeza, mas acho que é outra sociedade mágica, com
lojas na Europa e na América.’
‘Esta revista está relacionada com o texto que escrevi?’
‘Sim, dá-me licença.’
Agarrou o volume, procurou a página onze, mas foi interrompido
pela chegada do criado que desejava anotar os pedidos. Ambos escolheram
o prato de carne assada; Pessoa pediu um jarro de vinho e Kamenezky quis
água. Quando o criado se afastou, levando a ementa, o livreiro continuou:
‘Lê esta parte.’
‘Liber… Legis? É isto?’, perguntou, aceitando a revista de volta.
‘Sim.’
‘Está bem.’
Pessoa começou a ler O Livro da Lei.
‘Cada homem e cada mulher é uma estrela.’
‘Continua.’
Saltando as páginas com rapidez, Pessoa foi escolhendo frases e pa-
lavras que lhe chamavam a atenção. Não conseguia perceber o assunto do
livro, mas o registo era muito parecido com o texto que a voz lhe tinha

86
ditado. A primeira frase da página 24 fê-lo pular na cadeira.
‘Está aqui, Cirilof!’, disse, radiante. ‘Olha! Escreve e que escrever seja
para ti uma fonte de prazer! É isto, é isto! Não é possível!’
‘A voz com que contactaste estava a ditar-te isso, Fernando. Estava a
ler-te O Livro da Lei.’
‘Porquê?’
Leu mais um trecho e levantou a cabeça; nervoso, começou a lacri-
mejar. Tirou os óculos, pousou-os na mesa e esfregou as pálpebras com os
dedos. ‘Que tem isto a ver comigo? Aliás… este Livro da Lei fala de quê?’
‘Não sei. Deve ser a lei da Argenteum Astrum.’
‘Certo, mas como soubeste que era isto?’, perguntou, colocando os
óculos.
‘Lembrei-me que tinha lido a frase que escreveste, aquela que diz
“Faz aquilo que a tua vontade manda e que essa seja a súmula da lei”, num
anúncio de um catálogo. Olha, num anúncio parecido com esses que estão
nas últimas páginas da revista.’
Pessoa passou as páginas a correr até descobrir os anúncios.
‘Sir Palamede, o Sarraceno? Olha, este também é escrito pelo tal Cro-
wley.’ Soltou uma casquinada que lhe abanou o corpo todo. ‘E poemas do
Baudelaire traduzidos pelo Crowley… Vejo que é um senhor muito ocu-
pado.’
Nos anúncios seguintes viu diversos títulos que falavam de hipnotis-
mo, reincarnação e ocultismo. O autor Victor Neuburg, que vinha credita-
do na lista de conteúdos, anunciava um livro de poemas dedicados a Pã e
o conspícuo Crowley dava a conhecer uma comédia chamada Deuses Do-
mésticos e um livro sobre a santa cabala, intitulado 777, que estava prestes
a esgotar. Ainda viu um anúncio a óleos e perfumes – Óleo de Abramelin,
Incenso de Salem e UnguentVm Sabbati – antes de pôr a revista de lado no
momento em que o criado trouxe as travessas.
‘Tenho de ler isto com atenção, Cirilof’, disse, mastigando e cortando
a carne que tinha no prato. ‘Por alguma razão contactei com este Livro da
Lei. Preciso de saber porquê.’
‘Queres que mande vir mais revistas?’
‘Sim, e o livro do Crowley sobre a santa cabala que vi nas páginas de
anúncios. Antes de irmos embora, anotas o título.’
‘Certo’, respondeu, bebendo um copo de água que lhe deixou o bigo-
de brilhante.
‘És um grande amigo, Cirilof.’
‘Ora, Fernando, não mereço esses encómios.’
‘Com toda a sinceridade, de um judeu ao outro, não só és um bom
amigo como uma boa alma, romântica e idealista.’

87
‘E materialista como todas as boas almas judias.’
‘Ficamos combinados que eu escrevo o prefácio do teu livro quando
o acabares.’
‘O meu livro? Tens a certeza?’
‘Toda a certeza.’
‘Aceito.’ Riu e pousou os talheres na borda do prato. Cruzou os dedos
e disse: ‘Mas o meu e não aquele que estou a escrever com a Maria.’
‘Exacto.’
‘Agora que tenho o privilégio de contar com o teu prefácio preciso
mesmo de o terminar.’
‘Eu espero.’
‘Ah! Mudando de assunto: depois de leres a revista vais-me explicar
de que se trata, está bem? O rosicrucianismo interessa-me.’
‘Mais que o espiritismo?’
‘Oh, sim.’
‘Mas os rosicrúcios são cristãos, Cirilof.’
‘São cabalistas.’
‘Está bem, alquimistas espirituais ou cabalistas é o mesmo, mas, ainda
assim, são cristãos.’
‘Se não interpretarmos as doutrinas de Cristo numa leitura simbó-
lica ficamos com um inesperado anarquismo. Sendo assim, só podemos
concluir que esse radicalismo todo é judeu no sentido em que o próprio
cristianismo é judeu.’
‘Vou lembrar-me desse argumento na altura de escrever o prefácio
para o teu livro.’
O restaurante ganhou uma clientela numerosa enquanto os amigos
conversavam. Quando os banqueiros e os lojistas regressaram aos empre-
gos, Pessoa e Kamenezky ainda esgrimiam neurónios diante de um cálice
de aguardente velha e um copo de água. À saída, deram um abraço e dese-
jaram as boas-festas um ao outro.
‘E boas festas para o senhor Crowley, esteja ele onde estiver’, disse Ka-
menezky.
‘Feliz Natal, senhor Crowley!’, respondeu Pessoa, acenando um adeus
ao livreiro e apressando-se em direcção à paragem do eléctrico.

88
II

1929

A década aproximou-se do fim de vida útil; as bainhas gastas pelo uso e


pelas pisadelas de milhões de pés, tantos quanto os feijões colocados nos
quadrados do tabuleiro de xadrez pelo pastor que desafiou o rei. Alguns
meses iriam tornar-se capítulos no Liber Mundi, outros não chegariam a
figurar como notas de rodapé.
Era treze de Fevereiro, e Fernando Pessoa, colado a um vector singular
de Lisboa pelo âmbar da geografia, fluido espácio-temporal e depressoras
susceptibilidades privadas, descia de eléctrico para leste, para a baixa pom-
balina. 149 anos antes, Goethe suplicara a Jacob Von Fritsch que o deixasse
entrar para a Sociedade dos Pedreiros-Livres: mais que um nome, o primeiro
degrau que urgia atingir para ascender aos sedimentos mais altos da hierar-
quia social europeia. Os poemas Ein Anderes e Symbolum demonstram o
seu debut; sobremaneira simbólicos, tresandam a Alquimia.
Pessoa conhece esse caminho e trilha-o, ainda na ressaca da chegada
do Presidente do Conselho ao governo e da subida da percentagem de vo-
tos do partido Nazi na Alemanha – ele sente que anda um novo elemento à
solta, e que não é feito de água, terra, fogo e ar.
As palavras “censura prévia” flutuam de boca em boca, mas ainda não
foram dactilografadas. Há três anos atrás, o Departamento de Justiça irlan-
dês criara o Comité da Má Literatura; e não com o objectivo de encorajar
os escritores a escrever melhor. As informações sobre planeamento familiar
foram consideradas particularmente obscenas pela comissão, mas Kevin
O’Higgins, o Ministro da Justiça, pensou de modo diferente e dissolveu esse

89
quinteto formado por dois sacerdotes e três lacaios. No ano seguinte, a 10
de Julho, foi assassinado; acidente trágico que poderá ter sido fruto da co-
nexão constringida que existe entre linguagem e a forma de olhar o mundo
– de desejar o mundo, conforme Boas e Sapir. Talvez no futuro palavras
como Eu, Meu e Liberdade também sejam consideradas obscenas.
Sentado no eléctrico, à frente de todos estes acontecimentos, Pessoa
prosseguiu para o escritório da ourivesaria, bocejando e enchendo os pul-
mões de ar que cheirava a sabão e maresia. Sem que as linhas de continui-
dade que o haviam conduzido até esse momento o deixassem adivinhar,
Ofélia entrou no eléctrico!
Era ela: pequena, morena, cheia de beleza, com o cabelo apanhado
na nuca e a expressão feliz de quem gosta de acordar cedo. Quando a antiga
namorada passou por ele para ocupar um lugar, Pessoa voltou a cara para a
rua e baixou a cabeça, cobrindo a testa com o chapéu. O coração acelerou;
começou a suar das mãos. O perfume dela veio ter com ele: ainda era o
mesmo.
Lembrou-se de uma tarde passada no Cais das Colunas, antes da
hora do jantar, quando lhe oferecera uma moldura com dois gatinhos para
ela encaixilhar a sua fotografia. Era uma menina, uma linda menina; e ele
sentiu-se tão velho. Nunca acreditara no amor que Ofélia dizia sentir por
ele: como pode um velho crer na paixão de uma rapariga que precisa é de
rapazes e não de estafados? Existia um abismo entre a idade do seu corpo e
a idade da sua inteligência; e aquilo que o primeiro pedia, a segunda consi-
derava fastidioso. Certa vez, na brincadeira, comprara-lhe uma cadeira de
bonecas; um erro de contabilidade, porque, bem avaliadas as coisas, Ofélia
não era baixinha, mas alta: a Shekinah da Santa Cabala, o Eterno Feminino,
a sua Margarida.
Como podiam duas pessoas tão próximas, à distância de um beijo, se
encontrarem tão longe uma da outra? Nunca soubera o que fazer com ela,
porque fora incapaz de racionalizar Ofélia, de a comentar, como fazia com
os fetiches com que se masturbava. Impotente porque apaixonado: um pa-
radoxo excepcional, mas ele era um excepcional recortador de paradoxos.
Queria virar-se e falar com ela, contar-lhe que a publicação do Inter-
regno tinha sido um erro, mostrar-lhe as revistas e fascículos onde publicara
trabalhos mais luminosos, convidá-la para comer neve no Café da Arcada,
convidá-la para ir a sua casa… Percebeu que em cada coisa que queria fazer,
a Ofélia não existia: só existia o Pessoa; inteligência macho-e-fémea como a
mónada dos pitagóricos. Não precisava da mulher que seguia sentada atrás
dele. Desistiu e continuou cabisbaixo, à espera que ela saísse.
Os solhos serpenteavam sobre o solo sujo, e a sentença O Caminho da
Serpente surgiu-lhe subitamente. Pensou nessas palavras e naquilo que evo-

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cavam, calculando que a presença de Ofélia não era um acaso porque todas
as histórias que apresentam serpentes como personagens possuem mulhe-
res como protagonistas. Se o diáfano Caminho da Serpente existia, nunca
poderia ser seu em absoluto, por isso importava definir qual serpente – e,
entretanto, qual mulher. Lembrou-se das serpentes do caduceu de Hermes,
as mais óbvias, e do Sol alado que as sobranceava; o Sol que era feminino
para os egípcios. Ele, a Íbis – Thoth –, era o Hermes do caduceu.
Outras mentes na carruagem pensavam na lista de artigos a comprar
na mercearia, ou nas promessas feitas às caras-metades que não tinham
intenção de cumprir, mas tudo isso era desprezível comparado com a reve-
lação que Ofélia era Ré na reconstituição universal imaginada por Pessoa
a caminho do escritório; cosmografia sexuada, prenhe de órgãos genitais
femininos e masculinos à guisa de estrelas. Hermes Trimegisto e Afrodite
Callipyge, os pais de Hermafrodito que os deuses acabaram por fundir com
a ninfa Salmacis, criando dessa forma uma criatura duplamente sexuada
– um Rebis.
O seu novíssimo Caminho da Serpente era um caminho simbólico, e
móbil de múltiplas mistificações que precisavam ser clarificadas para se po-
der encontrar os referentes certos, mas as ressonâncias ecoavam no âmago
dos estudos alquímicos e neles descobriria as respostas – como o caminho
de Goethe que rememorara no início da viagem. Se não as descobrisse, in-
ventá-las-ia!
O eléctrico parou e ele deixou-se estar sentado à espera de ver Ofélia
sair. Viu-a saltar para o passeio e caminhar para o outro lado da rua, indo
ao encontro de um rapaz alto. Abraçaram-se; ele agarrou-lhe a mão e segui-
ram na direcção da Praça da Figueira.
Pessoa ficou, por uns instantes, sem o dom divino da imaginação.
Mulheres!
São meretrizes! Mas também são matrizes: mães!...
E, como Fausto, Pessoa estremeceu.

Tinha conhecido o prostíbulo da Rua do Ferragial numa das divagações


noctívagas realizadas pela Tertúlia Alentejana, organizada periodicamente
no Montanha antes do café reabrir restaurado e com uma nova sala de jan-
tar no primeiro andar; o piso térreo ganhou uma nova decoração na qual
as mascotes de louça do Manuel já não figuravam.
Tornara-se cliente desse bordel, situado no segundo andar de um pré-
dio junto à entrada da Rua Vítor Cordon, e amiúde o frequentava, sempre
da parte da tarde porque havia menos clientes nesse período. As mulheres

91
que atendiam no bordel não eram raparigas novas, mas ele não se importa-
va; na maioria das vezes, pedia-lhes que o masturbassem porque era invul-
gar ter orgasmos durante o coito. Subia às escuras as escadas de madeira,
batia à porta e entrava para uma salinha pequena de onde se via uma nes-
ga da Igreja do Corpo Santo. O Francisco Camello tinha um escritório no
largo e várias vezes pensara em lhe fazer uns biscates, mas o Carlos era o
melhor patrão que já tinha encontrado e gostava de saborear o seu tempo
livre: tempo livre para escrever, para pensar e, às vezes, para ir às putas.
Convidado a entrar pela madame, passava para um pequeno hall onde se
sentava num sofá para avaliar com placitude as meninas que vinham à vez
ao seu encontro para se apresentarem; quando se inclinavam para o saudar,
examinava-lhes as mãos: era ao que vinha, e não ao resto do corpo.
Nessa tarde, como uma lousa coberta de greda, a janela da sacada
mostrava-lhe um céu cinzento e ele, assentado no sofá, com um copo de
vinho na mão, via as constantes caras e corpos que encontrara na última
vez que ali tinha estado, mas maquilhadas de outra forma e enfarpelados
com uma moda diferente. Algumas das prostitutas suas conhecidas esta-
vam ocupadas nesse momento, mas depois de receber as velhas finórias
entrou na sala uma rapariga que não conhecia: cabisbaixa, de cabelo preto
comprido, caminhando descalça sobre o tapete verde.
‘Maria José’, disse a prostituta, inclinando-se e saindo da sala. Nesse
instante, Pessoa descobriu que ela era marreca e que o cabelo comprido
estava aberto em leque sobre os ombros para disfarçar a corcunda. Logo a
seguir entrou a madame.
‘Quero a Maria José’, pediu Pessoa assombrado, pousando o copo de
vinho na mesinha ao lado do sofá. Acenando com a cabeça, a madame au-
sentou-se para dentro da alcova onde as raparigas aguardavam as eleições
dos clientes. A rapariga corcunda saiu e solicitou a Pessoa que a seguisse.
Atravessaram um corredor cheio de portas fechadas e escutaram as
súplicas abafadas de fregueses entretidos. Maria José abriu uma porta e en-
trou; o quarto fedia com o cheiro de demasiados perfumes diferentes, mas
sugeria asseio. Pessoa tirou a carteira do bolso e pagou; a mulher agradeceu
e saiu, deixando-o a despir o sobretudo e o chapéu. Sentou-se na cama para
tirar os sapatos e ouviu-a abrir a porta. Despiram-se em silêncio e entraram
nus para debaixo dos cobertores; ela, que não vestia cuecas, apenas deixou
escorregar a combinação ao longo do corpo. Os lençóis estavam frios, ás-
peros de muitas lavagens com lixívia, mas limpos. O quarto nublado tinha
uma janela fechada; em frente da cama havia um armário com um espe-
lho.
‘Não queres tirar os óculos?’, perguntou Maria José. A pele tostada era
morna e os olhos pequenos observavam Pessoa com prudência.

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‘Sem eles não vejo nada’, disse, contemplando o colar que ela tinha:
um filamento de prata com uma pomba de asas abertas e com o bico para
baixo.
‘Como te chamas?’
‘Jean Seul.’
‘Então és francês?’
‘Nasci em França, mas vim para Portugal quando ainda era peque-
nino.’
‘Jean…’, disse, pronunciando o nome como “chã”. ‘… que queres fa-
zer?’
‘Quero que me masturbes.’
Maria José procurou o pénis de Pessoa debaixo do cobertor e esfre-
gou-o; o órgão inchou entre os dedos, mas falhou em erguer-se. Ela afastou
a roupa da cama e deslizou na sua direcção, arqueando-se para o meter na
boca; o cabelo deslizou pelos ombros derreados e a corcova assomou entre
as espáduas como um incrível ovo de Roc.
‘Posso tocar nas tuas costas?’
‘Na marreca?’
‘Sim, na marreca.’
‘Podes.’
A bossa era quente, como um athanor: apalpou-a com meiguice e
deixou cair a mão ainda tépida em cima do lençol. Maria José recuperou o
fôlego e perguntou:
‘Como é que queres?’
‘Quero que me masturbes.’
‘Mas já estás teso.’
‘Eu gosto das tuas mãos, continua só com as mãos.’
Maria José agarrou o pénis e massajou-o, acarinhando a glande com
o dedo indicador.
‘Assim?’
‘Mais devagar.’
A mulher olhou para o homem deitado na cama, com os braços es-
tendidos ao longo do corpo: era magro, mas o estômago dilatado e o nariz
sarapintado de pigmentos vermelhos denunciavam o abuso de álcool. Os
olhos eram molhados e, atrás das grossas lentes de aros pretos, pareciam os
olhos de uma vaca. Continuou a friccionar o órgão aspergido e sentiu-o a
ficar flácido.
‘Não estás a gostar?’
‘Estou, mas não faz mal. É normal.’
‘Não estás cá, é o que é.’
‘Nunca estou cá.’

93
‘Não te posso deixar ir assim, ainda estás tão duro.’ Curvou-se e lam-
beu-lho. ‘Fecha os olhos e pensa nela’, disse, sacudindo o punho. ‘Pensa
nela, vá.’
Pessoa tirou-lhe a mão e sentou-se na cama, abanando a cabeça.
‘Que queres que eu faça?’
‘Nada.’
‘E vais embora assim, sem te vires.’
‘Não ligues.’
Maria José deitou-se na cama de barriga para baixo, ao lado de Pes-
soa, e com uma mão desviou os cabelos de cima da corcunda.
‘Anda’, disse, tacteando a bossa. ‘Esporra-te em cima dela.’
‘Para cima da corcunda?’ Pessoa soluçou, mas a ideia inflamou-o.
Virou-se para ela, com os joelhos em cima da cama, e passou uma mão
receosa em cima do inchaço.
‘Sim, para cima dela.’
‘Não te incomoda?’
‘Claro que não. É onde todos me pedem para se virem.’
Pessoa agarrou o pénis e inclinou-se para a frente. Masturbou-se de-
vagar, como era hábito, admirando a marreca pontuda. Entre a cabeleira
enleada viu o fio de prata com a pomba: tinha rolado para trás quando Ma-
ria José vassourou os cabelos com os dedos e o bico da ave apontava para
a intumescência. Acelerou o ritmo e aproximou-se ofegante da corcunda.
Com a mão esquerda, palpou-a: como podia estar tão quente? Que essência
– latona – estaria a ser incubada no seu interior à espera de eclodir?
O orgasmo rebentou numa emissão de esperma – azoth – que se dis-
persou em esguichos elegantes sobre a corcunda; como logografias. Ainda
dormente, Pessoa sentou-se na cama, lustrando com a mão esquerda as
costas molhadas de Maria José: a pomba de prata mudara de posição e o
bico apontava para o occipício – voltada do verso, a face inferior do pinga-
relho estava preta da persistente proximidade com a pele.

**

Com a Teca, o Chico e a Lili fora de Lisboa, a solidão doméstica regressara


à vida de Pessoa. Saía do escritório, almoçava nos restaurantes da baixa,
passava as tardes no Montanha ou no Arcada e voltava para casa à hora
do jantar; frequentava o Abel, mas retirava-se depois de beber um copo ou
dois. Gostava de ler e fazer as palavras-cruzadas nos cafés e, dentro da pasta
preta que se habituara a transportar, levava sempre papel à espera que um
poema viesse ter com ele; e se não vinha um poema vinha um amigo. Co-
meçara a corresponder-se com João Gaspar Simões, um rapaz de Coimbra

94
que tinha escrito um ensaio muito lisonjeiro sobre a sua obra: era um amigo
de José Régio e pertencia ao núcleo dos novos-modernistas responsáveis
pela edição da revista Presença onde costumava publicar poemas. Com
quarenta e um anos de idade, Pessoa sentia que precisava de organizar o
espólio intelectual com um rigor que até aí lhe tinha faltado, mas a disci-
plina britânica com que contactara na juventude havia sido suprimida pelo
bucolismo lisboeta e durante o dia não conseguia fazer mais que absorver
para descarregar à noite nos usuais períodos insones.
Começara a divulgar excertos inéditos em várias revistas, elabora-
ra uma colectânea da moderna poesia portuguesa com a ajuda do amigo
António Boto, dos tempos da Olissipo, e intrigava-se com uma sequência
de versos de cunho nacionalista, empeçados no final do ano anterior, que
ambicionava publicar sob o título Portugal, mas, mesmo assim, consumia-
-se em dezenas de programas imperfeitos, ensaios e florilégios que nunca
chegariam a ser impressos e detinham a grande estreia literária. Estava a
envelhecer, muita coisa que ansiava ter visto cumprida não calhara; tinha
de agarrar tudo e organizar-se. Espelhava-o na correspondência com os
amigos e com a família residente em Évora, para onde o Chico tinha sido
enviado; prometera ir ter com eles ao Alentejo para festejar os aniversários
da irmã e da sobrinha e para passar o Natal.
Um dia, quando entrou na farmácia do Evaristo para comprar aspi-
rinas, ouviu uma conversa sobre o estado do país. Interessado ao princípio,
depressa se enfastiou. Começava a ficar farto daquela espécie de animais
políticos que apareciam nos Paços do Conselho cheios de vocação messiâ-
nica, como Salazar que até no nome exprimia a dimensão para a qual Por-
tugal havia minguado: o étimo salacia transformado em diminutivo; por
conseguinte, um pequeno lascivo. Os seus discursos, as narrativas de salva-
ção, eram pobres em imagens, em ideias e em esperança, mas o misterioso
sortilégio da sua oratória, deletreado por uma voz sibilina que lembrava a
tonalidade usada pelos sacerdotes, despertava as massas neutrais levando-
-as ao arroubo de espírito. Não era apenas o povo a ver um redentor nesse
antigo seminarista, e muitos intelectuais, como António Ribeiro, o amigo
de Kamenezky, que se estreara como cineasta há dois anos, e António Ferro,
o velho camarada da Orpheu, se dispunham demasiado perto. Ele não os
compreendia, mas não possuía argumentos para reprovar a sua conduta:
afinal, tinha agido do mesmo modo no advento do sidonismo. Agora tinha
outras ideias e, cada vez mais voltado para dentro, enovelado na sua gesta
literária e mística, não dava importância a fenómenos políticos.
Perdurava em estudar a obra de Aleister Crowley, que fora adqui-
rindo na Bric-à-Brac, desde há 4 anos: anotara extensamente os volumes
da revista O Equinócio e o livro 777. Discutira diversas vezes os textos de

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Crowley com Kamenezky, mas ele não apreciava o humor do mago nem
via muito sentido em aprofundar a leitura do Crowleynismo. Pessoa, po-
rém, sentia-se intrigado por aquela alma que reconhecia como sendo de
sensibilidade análoga à sua, um feiticeiro com espírito de poeta ou um
poeta mágico:

“Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que
bata certo com a minha sensibilidade e ela vai ficando cada vez mais profunda e a
minha consciência cada vez maior da terrível missão que todo o homem de génio
recebe de Deus. O resto também vai pelo mesmo caminho da arte, da fertilidade
literária. Tudo vai ficando cada vez mais oco e repugnante.”

Aleister Crowley, a auto-cognominada Besta 666, irrompera pela


querença obscura da Pistis - a dádiva – e, a partir dessa data, a sua Grande
Obra era consumar a Gnosis: não só aceitar o Crowleynismo como compre-
endê-lo. Os textos sobre a Santa Cabala que lera em 777 compunham-se
nos mais audaciosos e inteiros itens que já encontrara sobre esse tema; e,
atónito, achara n’ O Livro da Lei um aparente messianismo trinitário de
inspiração joaquimita.
As Três Idades do Mundo, ou Tempos, como Joaquim de Fiore as
pensara, intitulavam-se Tempo da Lei Natural, ou dos Velhos, Tempo da Lei
Evangélica, ou dos Homens Maduros, e Tempo da Inteligência Espiritual, ou
dos Meninos: as idades do Pai, do Filho e, por último, a idade do Espírito
Santo, ou a do Evangelho Eterno. Nesse ciclo, o Grande Consolador, o Para-
cleto prometido desde a Última Ceia, desceria à Terra para erguer nela um
Paraíso por um período de mil anos: a Parúsia, à qual se seguiria o fim do
mundo.
Variadas vezes Kamenezky conversara com ele sobre essa crença no
Espírito Santo, justificando-lhe, como fizera o rabi Manassés ben Israel
diante de António Vieira, que esse mito encerrava a reconciliação entre ju-
deus e cristãos. Mito que, sabia-o, se associara à mitologia quinto-imperial
desde o século XVI; não pela pena do Zarolho, mas através de um poema
do obscurecido João Rodrigues Menezes:

As dadas por mãos Divinas


A Rei mais que terreal
Armas são de Portugal
Sobre prata cinco Quinas
E os dinheiros por sinal.
Cujos Reis, que já passaram,
Com vitórias as pintaram.

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Por África grão tropel
E el Rei D. Manuel
Onde os Romãos não chegaram

A empresa quinto-imperial das campanhas quinhentistas portugue-


sas seria a pedra basilar de todas as esperanças sebásticas profetizadas em
expressão popular por Gonçalo Anes Bandarra e em rigor académico por
António Vieira:

O primeiro império do mundo, que foi o dos Assírios, e dominou toda a


Ásia, também foi o mais oriental. Dali passou aos Persas, mais ocidentais que
os Assírios: dali aos Gregos, mais ocidentais que os Persas: dali aos Romanos,
mais ocidentais que os Gregos: e como já tem passado pelos Romanos, e vai le-
vando seu curso para o ocidente, havendo de ser, como é de fé, o último império,
aonde pode ir parar, senão na gente mais ocidental de todas?
Pois assim como Deus, no governo da natureza observa a proporção dos
tempos, assim é de crer, que no governo dos impérios observe a proporção dos
movimentos. O Sol, os céus, as estrelas, os mares, todos se movem perpetuamen-
te do oriente para o ocidente: e porque a roda que os ignorantes chamam da For-
tuna, é própria e verdadeiramente a da Providência Divina, correndo sempre
os movimentos naturais do Universo desde o oriente ao ocaso, pede a proporção
e harmonia do mesmo Universo, que também corram do oriente para o ocaso
os movimentos políticos. Assim não é totalmente violenta a força que muda e
desfaz os impérios antigos, e cria e levanta os novos; mas nessa mesma violência
ou força tem muito de natural, pois segue os movimentos e peso de toda a natu-
reza. No oriente nasceu o primeiro império; no ocidente há-de parar o último.
O que eu logo pudera confirmar a Portugal com um famoso texto da Escritura;
mas porque faço conta de acabar com ele, basta que fique aqui citado.
E que outro lugar há no universo tão acomodado a receber ele como de
uma só fonte todos estes benefícios vitais mais breve e facilmente que Portugal:
situado quase na boca do Mediterrâneo, não longe das gargantas do Báltico, e
para o Atlântico, e o Etiópico, para o Eritreu, e o Índico mais vizinho?

Não teria sido obra do acaso quando na madrugada de 4 de Agosto


as palavras de Vieira inspiraram versos quinto-imperiais a Pessoa; ansiava
enriquecê-los antes de os incluir no seu projecto Portugal:

Grécia, Roma, Cristandade,


Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade

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Que morreu D. Sebastião?

A obra de Crowley, a revelação do futuro éon patente em O Livro da


Lei, era evidentemente joaquimita aos olhos de Pessoa, com as suas três
idades da mãe, Ísis, do pai, Osíris, e do filho, Hórus, ou Harpócrates; a versão
infante de Hórus, ainda sem a cabeça de falcão, que as mitologias mediter-
râneas transformaram no deus do silêncio. O Livro da Lei recapitulava nas
suas páginas a memória da evolução humana em três episódios: a Adoração
da Mãe, quando o universo se concebe como o nutrimento por ela oferta-
do; a Adoração do Pai, quando o universo se apresenta como um cenário
catastrofista; e a Adoração do Filho – da Criança Divina – que alia o céu e
a terra na sua biunidade, como confecciona o Paracleto no advento da Pa-
rúsia. As exposições trinitárias de índole joaquimita tinham sido raspadas
da arte portuguesa após o concílio de Trento, e escasseavam, mas Pessoa
lembrava-se de uma representação do gesto de Harpócrates que vira num
painel de azulejos na Igreja da Madre de Deus, em Xabregas.
Entrementes, especulava sobre os móbiles que impuseram Crowley a
intitular-se de Besta 666, pois sabia que esse número nada tinha de sombrio
ou satânico, consistindo numa cifra solar: o Sorath, ou Espírito do Sol – e o
Mestre Thérion também estava bem informado sobre essa realidade porque
a tinha documentado.
Poderia ele querer aproximar-se do estatuto messiânico, empregando
essa nominação? Afinal, Cristo era um dos emblemas para o Espírito do
Sol. O Diabo é, tão somente, o estado morto de Deus; morto e, em seguida,
erguido, como Hiram no grau de Mestre. Se Deus é um espírito, de acor-
do com a Bíblia – e apreciando que o divino, em relação a este mundo, é
espiritual –, então a matéria – o corpo – não pode ser outra coisa senão o
Diabo: o Príncipe deste Mundo. Crowley, conhecedor profundo dos arca-
nos, assumia-se de imediato como Mestre, Messias e Soberano – Ipsissimus;
preeminência patente pelos seus pantáculos de propriedades salomónicas
e sexuais. Quanto mais Pessoa relia os trabalhos de Crowley, sempre com
a caneta, a garrafa e o copo ao alcance dos dedos, mais ambiguidades ia
alimentando:

Como se dá a passagem de um Mundo para o outro?

Descobrira uma editora nova no panegírico A Lenda de Aleister Cro-


wley, escrito por Percy Reginald Stephensen, que o livreiro lhe obtivera:
uma chancela chamada Mandrake Press, à qual enviara um pedido de ca-
tálogo. Kamenezky, o seu infra-condiscípulo, encontrava-se fora de Lisboa,
viajando pelo país na companhia de Maria O’Neill e outros elementos da

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Federação Portuguesa de Espiritismo: os segundos, palestrando sobre a as-
sociação e respectivos labores; o primeiro, sobre naturismo e sobre tudo.
Até tinha mandado imprimir, numa tipografia indicada por Pessoa, car-
tões de visita onde se podia ler “Professor Eliezer Kamenezky. Naturista”.
Quem achara muita graça aos cartões fora o António Ribeiro, contara-lhe
o alfarrabista antes de partir. Deveria regressar no próximo Outono, altura
que Maria O’Neill escolhera como provável para ir ao Brasil falar sobre a
federação. Pessoa guardava numa gaveta da escrivaninha os exemplares da
Revista de Espiritismo que a mulher lhe enviava com regularidade, mas esse
órgão da associação não o impressionava. Não que desgostasse do “espírito
da revista” (para aplicar um mau trocadilho): apenas desconfiava de um
caminho iniciático que pudesse ser federalizado.
Iluminado pelos novíssimos ensinamentos do mago inglês, recupe-
rara a pessoalidade de Raphael Baldaya para escrever de modo intensivo
sobre astrologia. Quando olhava Lisboa pela janela do quarto durante uma
pausa entre as quadraturas, os trígonos e os sêxtiles, observava a noite es-
branquiçada e bebia um copo de vinho pensando no que diria a Crowley se
algum dia o viesse a conhecer: de todos os autores que estudara só ele estava
vivo, e o único que lhe poderia dar pistas – iniciá-lo! Uma ideia demasiado
louca: nur narr, nu dichter!
Imaginou Hugin e Munin, sós na loja de Kamenezky, jogando às es-
tátuas com o busto de Atena e sorriu: o conteúdo dos mistérios resumia-se
sempre em ensinamentos sobre três ordens de coisas – como as Idades e os
Tempos. Se esses ensinamentos secretos seriam verdadeiros ou abstrusos
era um problema diferente: o oculto pode ter, e tem muitas vezes, alucina-
ções próprias.

***

O pensamento que Pessoa apadrinhava, de mudar de casa e ir viver


para Cascais ou Sintra de forma a poder ocupar-se sem desconcentrações à
organização da sua obra, foi suspenso por uma carta inesperada de Ofélia.
Já nem se lembrava que lhe tinha enviado no início do mês, por inter-
médio do Carlos, uma cópia da fotografia que o Manuel Martins lhe tirara
no Abel: por brincadeira posara de perfil para a câmara com um copo de
vinho na mão e oferecera uma duplicata desse retrato ao Carlos.
Sentou-se na cama e releu a carta, recordando-se do dia em que o
sobrinho da antiga namorada lhe dissera que a tia gostaria de ter uma foto
igual.
Porquê?, perguntara-lhe.
Achou graça, respondeu Carlos, bebendo o seu café. Estavam no Café

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da Arcada e pouco tempo passava das três e meia; o Carlos estava mui-
to bem-disposto, mas ele, que já ganhara o dia, sentia-se incomodado por
uma dor abdominal que o impedira de dormir. Carlos pousou a chávena na
mesa e acrescentou: Ela disse logo que estavas mais gordo.
Não acho que seja boa ideia.
Achas que é para gozar contigo?
E se é?
As mulheres não funcionam assim, Fernando. Se ela quer a fotografia,
dá-lha.
Sim, mas para quê? Já não vejo a tua tia há quase uma década e ago-
ra ela quer o meu retrato só porque achou graça. Achas que isso faz algum
sentido? Inclinou-se para aliviar uma pontada sentida no lado direito do
abdómen; pressionou o local com as pontas dos dedos e voltou a encostar-
-se à cadeira. Agarrou o cálice de aguardente e bebeu um gole, esperando a
resposta de Carlos.
Se não quiseres dar a fotografia, não dês. Acabou o café e cruzou os
braços em cima da mesa. Falando em dar… lembras-te como vocês se davam
tão bem?
Pois era, mas, falando em dar, acho que nunca lhe dei o que ela que-
ria.
Que era?
Uma vida sossegada. Comigo a trabalhar num banco pela noite den-
tro.
Estás enganado, Fernando. A Ofélia não namorou contigo à espera de
viver às tuas custas. Ela namorou contigo porque gostava de ti.
Gostava.
Gosta.
Mas tem namorado.
Não tem.
Não sabes.
E tu sabes?
Eu vi-o.
Então viste mal. Garanto-te que está sozinha.
Está?
Sim. Há quase uma década, como disseste.
E, falando em dar, é por essa razão que devo dar-lhe uma cópia do
retrato?
Já que falamos em dar, é.
Mas é uma fotografia tão ridícula, Carlos. Escuta, e se lhe desse outra?
Carlos riu e bateu-lhe no ombro com a palma da mão. Ele enxotou-a
e olhou para a porta: Augusto Ferreira Gomes, o Almeirim, entrou no café e

100
avançou para a mesa; era um homem pequeno, de gestos enérgicos. Aper-
tou as mãos a ambos e sentou-se.
Como está a tua tia?, perguntou a Carlos.
Está bem, obrigado.
Por onde andaste?, perguntou Pessoa, apontando para as bainhas das
calças: estavam todas molhadas.
Vê lá bem, um sacana de um miúdo atirou-me um saco de água. Des-
viei-me, mas acertou-me nos pés.
E era água ardente?
Não, riu. Era da que molha.
Tiveste azar, disse, bebendo mais um gole. Pousou o cálice na mesa
e lambeu o bigode. A dor abdominal ainda persistia, mas magoava menos.
Permaneceram mais uma porção de tempo a beber e à conversa até que o
Carlos se levantou.
Vou andando. Apertou as mãos aos amigos e arrumou a cadeira. Fer-
nando, não queres mesmo dar-lhe uma cópia da fotografia?
Olha…, disse Pessoa, sem deixar de olhar para o copo vazio que tinha
à sua frente. … conta com isso. Levantou a cabeça e Carlos viu como ele se
sentia só. Conta com isso.
A buzina de um carro despertou-o do transe: pousou a carta de Ofé-
lia na escrivaninha e ficou a olhá-la durante algum tempo, tentando com-
preender que sentimento a folha de papel lhe estimulava.
A sua virgem – o seu mercúrio – voltara, prometendo a regeneração
pelo amor. Nisso residia o mistério faustiano de Goethe, mas a esperança
que a epístola expelia cheirava a tempestade e ele morria de medo de tro-
voadas.
Sentou-se e começou a escrever uma resposta. Álvaro de Campos, o
Mefistófeles que o humilhava, estava ausente e a escrita avançou sem obstá-
culos, como se a última carta que lhe escrevera tivesse sido enviada no dia
anterior:

Ofelinha:

Gostei do coração da sua carta, e realmente não vejo que a fo-


tografia de qualquer meliante, ainda que esse meliante seja o
irmão gémeo que não tenho, forme motivo para agradecimento.
Então uma sombra bêbeda ocupa lugar nas lembranças?
Ao meu exílio, que sou eu mesmo, a sua carta chegou
como uma alegria lá de casa, e sou eu que tenho que agradecer,
pequenina.
Já agora uso a ocasião e peço-lhe desculpa de três cousas,

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que são a mesma cousa, e de que não tive a culpa. Por três vezes
a encontrei e a não cumprimentei, porque não a vi bem ou, an-
tes, a tempo. Uma vez foi já há muito, na Rua do Ouro e à noite;
ia a Ofelinha com um rapaz que supus seu noivo, ou namorado,
mas realmente não sei se era o que era justo que fosse. As duas
outras vezes foram recentes, e no carro em que ambos seguíamos,
no sentido que acaba na Estrela. Vi-a, uma das vezes, só de sos-
laio, e os desgraçados que usam óculos têm o soslaio imperfeito.

Leu e percebeu que faltava algo importante. Aquilo que lhe queria
dizer, disfarçado entre a paranóia e a pantomima, era que ela voltava a fa-
zer-lhe falta. Inspirou fundo e começou:

Outra cousa…

Arrependeu-se logo, sentindo-se grotesco, e cruzou as mãos atrás da


cabeça, soprando sem saber o que dizer. Em vez de agarrar outra folha de
papel para passar a carta a limpo, continuou na mesma linha. Como não
sabia o que dizer, não disse nada:

Não, não é nada…

Não era nada: nada.


Qual era mesmo o sabor dos beijos dela?
Sabiam a nada, a cuspo?
Não.
Sabiam aos chocolates que lhe comprava na Nacional e lhe escondia
nas gavetas da secretária antes dela chegar ao escritório.
Os chocolates que lhe deixavam a

…boca doce…

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