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E
a
verdade
é
que
eu
sou
uma
moça
negra
de
Sergipe,
que
se
mobiliza
em
ter
tido
tantas
transmigrações,
tantos
desterros.
Estou
sempre
em
busca
de
um
território
não-‐terra.
Eu
queria
um
Quilombo
não
necessariamente
aqui.
Um
quilombo
onde
eu
sei,
algum
antepassado
meu
viveu.
Beatriz Nascimento(s/d), 3
O
livro
que
você
tem
em
suas
mãos
foi
organizado
pela
União
dos
Coletivos
Pan-‐Africanistas
de
São
Paulo
e
reúne4,
de
forma
inédita,
escritos,
entrevistas
e
artigos
da
historiadora,
poeta,
militante
e
personagem
singular
do
Movimento
Negro
brasileiro,
Maria
Beatriz
do
Nascimento
(1942-‐1995).
1
entre
os
anos
1977
a
1988,
viajou
até
a
África
para
melhor
compreender
aspectos
da
nossa
história.
Em
suas
palavras:
“Trata-‐se
de
filme
fundamentado
em
minha
trajetória
de
vida,
enquanto
mulher,
enquanto
negra
e
especializada
em
História
do
Brasil,
assim
como
minha
inserção
no
movimento
político
de
afirmação
da
negritude”.
(Beatriz
Nascimento,
1992)5.
A
família
viveu
em
Cordovil,
um
bairro
carioca
distante
do
centro
do
Rio,
em
uma
casa
com
um
enorme
quintal,
onde
plantavam
para
criar
laços
profundos
com
a
nova
terra,
para
ajudar
a
sobreviver
e
para
complementar
a
renda
familiar.
Nós
estamos
aqui
em
Cordovil,
mas
o
ambiente
que
nós
vivemos
até
então
é
uma
recuperação
do
passado,
da
vida
que
nós
vivemos
em
Sergipe,
um
quintal
de
40m2,
canavial
e
todas
as
plantas,
tudo
que
nós
tivemos
lá:
mangueira,
canavieira,
o
araçá,
o
maracujá,
o
couve,
o
alface,
o
maxixe,
o
jiló,
as
coisas
que
a
gente
tinha
que
aprender
para
viver
nesse
mundo
novo.
[…],
era
nossa
área
de
subsistência,
inclusive
para
vender
cana
para
as
pessoas
que
compravam
na
porta,
cana,
couve,
alface,
banana,
alimento.
A
família
se
reproduz
através
do
alimento.
Então,
meu
pai
e
minha
mãe
sempre
plantam,
uma
cana,
um
coqueiro,
um
araçá,
a
reprodução
do
seu
axé,
das
suas
árvores,
das
suas
plantas
de
proveniência,
de
origem,
isso
também
vai
prover
a
própria
família.
(Beatriz
Nascimento,
1982)7
5 “Por um Território (Novo) Existencial e Físico”. Texto produzido para a disciplina Teoria da
Comunicação, ministrada por Janice Caiafe. 01/08/1992. Cf. Arquivo Nacional. Fundo Maria
Beatriz Nascimento, Caixas 21, Pasta 3, dossiê 4, Código de Referência BR NA, RIO 2D.
6 COSTA, Haroldo. Fala, Crioulo. Rio de Janeiro, Record, p. 194, 1982. (depoimento)
7 VINHAS, Wagner. “Palavras sobre uma historiadora transatlântica: estudo da trajetória
intelectual de Maria Beatriz Nascimento”. Tese de Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos,
Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015, p. 28.
2
Em
1967,
iniciou
a
graduação
em
História
na
Universidade
Federal
do
Rio
de
Janeiro
(UFRJ),
concluindo
o
curso
em
1971,
com
29
anos.
Posteriormente,
cursou
a
Pós-‐Graduação
Latu
Sensu
em
História
do
Brasil
na
Universidade
Federal
Fluminense
(UFF)
concluindo-‐a
em
19818,
iniciou
o
mestrado
na
mesma
instituição,
porém
não
completou
o
curso.
8 De acordo com o material pesquisado no Arquivo Nacional Beatriz, ela foi aprovada no
mestrado em história na UFF em 1979, porém não concluiu o curso. Encontrei no Arquivo
documentos que comprovavam o trancamento de matricula em 1983, e depois, 1985. Conferir:
Arquivo Nacional. Fundo Maria Beatriz Nascimento, Caixa 21, Pasta 4, documento 7, Código
de Referência BR NA, RIO 2D.
9 “Por um Território (Novo) Existencial e Físico”. Texto produzido para a disciplina Teoria da
Comunicação, ministrada por Janice Caiafe. 01/08/1992. (Arquivo Nacional. Fundo Maria
Beatriz Nascimento, Caixas 21, Pasta 3, dossiê 4, Código de Referência BR NA, RIO 2D).
3
Beatriz
participou
ativamente
do
início
do
movimento
negro
contemporâneo10
no
Rio
de
Janeiro11,
em
1974,
que
iniciou-‐se
a
partir
das
reuniões
que
aconteciam
no
Centro
de
Estudos
Afro
Asiáticos
(CEAA),
abrigado
na
Universidade
Candido
Mendes
(UCAM)
em
Ipanema,
bairro
nobre
da
Zona
Sul.
Dos
encontros
na
UCAM
surgiram
importantes
grupos
para
o
movimento
negro:
o
Instituto
de
Pesquisas
das
Culturas
Negras
(IPCN),
o
Grupo
de
Trabalho
André
Rebouças16
(GTAR)
e
a
Sociedade
Internacional
Brasil
África
(SINBA)17.
O
GTAR
foi
fundando
por
Beatriz
e
estudantes
negros
da
UFF,
que
organizaram
um
grupo
de
estudos
e
a
“Semana
de
Estudo
sobre
a
Contribuição
do
Negro
na
Formação
Social
Brasileira”.
Evento
iniciado
em
1975
que
trazia
anualmente
pesquisadores
e
10 O movimento iniciado na década de 1970 tem características distintas que diferem das
experiências anteriores de organização politica da comunidade negra.
11 Cabe ressaltar que as datas variaram nacionalmente. No Grande do Sul, o Grupo Palmares
foi fundado em 1971. Em São Paulo, o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) e o grupo de
teatro Evolução fundados em 1971. Na Bahia, o bloco afro Ilê Aiyê em 1974.
12
A Lei de Segurança Nacional, decretada em 29 de setembro de 1969, criminalizava a
discussão sobre o racismo entendendo que isto poderia incitar à guerra, à subversão, à divisão.
13
KÖSSLING, Karin Sant’Anna. As Lutas Antirracistas de Afrodescendentes sob vigilância do
DEOPS/SP (1964-1983). Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH/USP, 2007.
14 NASCIMENTO, Maria Beatriz. Por uma história do homem negro. Revista de Cultura
Vozes. 68(1), pp. 41-45.
15 VINHAS, Wagner, 2015, p.41.
16 André Rebouças (1838-1898) foi o primeiro engenheiro negro a se formar na Escola
Politécnica do Largo de São Francisco, em São Paulo. Ele participou do movimento
abolicionista e criou a Confederação Abolicionista, junto com José do Patrocínio. Usualmente é
pouco citado seu protagonismo, e de outros homens negros, no movimento abolicionista.
Na concepção de Rebouças a Abolição deveria incluir uma reforma nacional que garantisse
concessão de terras e educação para a população negra.
17
Beatriz participou das fundações do IPCN e do GTAR.
4
especialistas
que
trabalhavam
com
questões
raciais.18
18 Arquivo Nacional. Fundo Maria Beatriz Nascimento, Caixas 16, Pasta 4, doc.6, Código de
Referência BR NA, RIO 2D.
19 O Quilombo e a historiografia In: Quinzena do Negro, 1977, São Paulo. (mimeo)., p.03
Arquivo Nacional. Fundo Maria Beatriz Nascimento, Caixa 29, Código de Referência BR NA,
RIO 2D.
20 É importante frisar que Beatriz não foi a primeira estudiosa dos quilombos no Brasil. Outros
pesquisadores já haviam abordado o tema antes como Edson Carneiro (1947); Décio Freitas
(1954);
21 O que revela o traço da potência criadora negra e uma negação à desumanização
ambicionada pelo sistema ideológico que justificativa a escravidão.
22O Quilombo e a historiografia, op.cit,
5
pessoas
escravizadas,
momento
de
rebelião
e/ou
fuga.
Beatriz
interessou-‐se
em
pensar,
justamente
o
contrário,
a
paz
quilombola,
isto
é,
o
momento
onde
não
havia
conflitos
e
os
quilombos
podiam
se
desenvolver.
23 O negro visto por ele mesmo. Rio de Janeiro, Revista Manchete, setembro, 1976.
24 NASCIMENTO, Beatriz (1989) Textos e narração de Ori. Transcrição (mimeo).
25 O negro visto por ele mesmo. Rio de Janeiro, Revista Manchete, setembro, 1976, p.130-131.
6
Cabe
frisar
que
Beatriz
era
uma
historiada
comprometida
e
bastante
rigorosa
em
suas
pesquisas.
As
afirmações
e
hipóteses
defendidas
pautavam-‐se
em
fontes
históricas
e
não
em
idealizações
e/ou
discursos.
Por
essa
mesma
razão,
ela
não
considerava
os
quilombos
“paraísos
terrenais”,
fato
defendido
por
alguns.
Para
ela,
toda
a
sociedade
humana
era
marcada
por
contradições
e
os
quilombos
não
eram
isentos.
Vale
ressaltar
que
no
campos
historiográfico
brasileiro
ainda
não
há
um
reconhecimento
formal
para
suas
contribuições.
26
Fala proferida na Quinzena do negro na USP em 1977 e registrada no documentário ORI
(1989).
27 Atualmente algumas corroboram a hipótese de Beatriz acerca das permanências territoriais.
Para citar alguns estudos. COSTA, Ângela Maria Faria de. Quilombos Urbanos, segregação
espacial e resistência em Porto Alegre. Uma analise a partir do Quilombo do Areal e da Família
Silva. Florianópolis: Revista Discente Expressão Geográfica. No. 5. TELLES,
Lehonna Marques Ferreira. O regime das titularidades das terras quilombolas em área urbana: o
Quilombo da Sacopã. Departamento de Direito da PUC-RIO. Relatório Interno, 2009.
AURELIANO, Rodrigo Souza. Quilombos Urbanos. Identidade, territorialidade no Bairro da
Mata Escura na cidade de Salvador; Bahia. Seminário Estudantil de Produção Acadêmica. Vol.
10. No. 1. UNIFACS, 2006.
7
acadêmicos,
além
de
desistir
do
mestrado,
foi
taxada
de
desequilibrada
mental.
(Henrique
Cunha,
2012)28.
28 CUNHA Jr., Henrique. Quilombo: patrimônio cultural histórico e cultural. Revista Espaço
Acadêmico (UEM), v. 129, p. p.160, 2012.
29 O movimento negro foi monitorado pelo órgãos de repressão da Ditadura. Por exemplo, “A
Quinzena do Negro” organizada por Eduardo de Oliveira e Oliveira, estava sendo monitorada
de perto. A informação encontra-se disponível em: Dossiê 50-J-0, 5372,p.122. Acervo do
DEOPS/SP, Arquivo Público do Estado de São Paulo. A informação foi publicado
originalmente por KÖSSLING, Karin Sant’Anna. As Lutas Antirracistas de Afrodescendentes
sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983). Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH/USP,
2007.
30 No documentário Ori (1989) é possível ver fragmentos desse debate.
8
“COMO
O
CORPO
FOSSE
DOCUMENTO”31
Na
medida
em
que
havia
um
intercâmbio
entre
mercadores
e
africanos,
chefes,
mercadores
também,
havia
uma
relação
escravo/escravo
como
também
de
intercâmbio,
uma
“change”.
Essa
troca
era
do
nível
do
“soul”,
da
alma,
do
homem
escravo.
Ele
troca
com
o
outro
a
experiência
do
sofrer.
A
experiência
da
perda
da
imagem.
A
experiência
do
exílio.
(Beatriz
Nascimento,
1989)32.
O
Quilombo
hoje
é
uma
metáfora,
um
verbo,
um
imperativo,
uma
tradição.
Uma
forma
de
estar
no
mundo
pautada
na
junção
de
saberes
do
corpo,
do
intelecto
e
da
alma.
O
quilombo
hoje
habita
em
nós.
Não
como
um
território
externo
a
ser
alcançado,
como
no
período
da
escravidão,
mas
como
uma
episteme
negra,
elaborada
a
partir
do
acúmulo
de
experimentações
passadas
que
construíram
um
31
NASCIMENTO, Beatriz (1989) Textos e narração de Ori. Transcrição (mimeo)
32
Idem.
33
Idem.
34
Idem.
9
repertório
de
resistência,
tradições,
valores
sociais,
culturais
e
políticos35.
Dentro
de
cada
aquilombado
está
o
imperativo
de
reinterpretar
a
tradição
e
segui-‐la.
A
Terra
é
o
meu
quilombo.
Meu
espaço
é
meu
quilombo.
Onde
eu
estou,
eu
estou.
Quando
eu
estou,
eu
sou36.
Aos
52
anos
Beatriz
partia.38
Sua
morte
foi
trágica,
triste,
injusta,
perversa,
covarde
e
dolorosa39.
No
dia
28
de
janeiro
de
199540,
Beatriz
teve
a
“interrupção
de
sua
vida
provocada
por
um
homem
branco
desumano
e
desumanizador.41”
A
morte
física
de
Beatriz
não
significou
seu
fim,
significou
uma
passagem.
Seu
pensamento
continua
vivo
e
cabe
a
nós
a
responsabilidade
de
manter
viva
sua
memória,
conhecer
suas
contribuições
e
seguir
seu
legado.
Parafraseando
Assata
Shakur42,
Seguimos
uma
tradição
forte/
Seguimos
uma
tradição
orgulhosa/
Seguimos
uma
tradição
Negra-‐Quilombola/Transmitam-‐na
às
crianças/
Transmitam-‐na/
Até
a
liberdade.
35
Reflexões baseadas no diálogo com o Sociólogo Carlos Alberto Moreira.
36
NASCIMENTO, Beatriz (1989) Textos e narração de Ori. Transcrição (mimeo).
37 LOPES, Helena Theodoro. Mito e espiritualidade: mulheres negras. Rio de Janeiro, Pallas,
1996, p.26
38
Beatriz teve uma filha, Bethânia Gomes. Ela vive nos Estados Unidos e é bailarina no Thatre
of Harlem.
39
Outras informações disponíveis em :
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/4/20/cotidiano/29.html. Acesso em: 28 out. 2018
40
VINHAS, Wagner. “Palavras sobre uma historiadora transatlântica: estudo da trajetória
intelectual de Maria Beatriz Nascimento”. Tese de Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos,
Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015, p. 21.
41
RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento. São
Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p.78
42
SHAKUR, Assata, Assata: An Autobiography. Chicago, Lawrence Hill Books, 1987, p.263-
265.
10