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INTRODUCAO. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL CARACTERISTICO DA PRIMEIRA INFANCIA Na segto precedente, © método de estudo da natureza humana foi de- damiiado pela discussi0 dos instintos © da progressio dos tipos de Nesta secio, que trata do desenvolvimento emocional caracterfsti- Co da fase de lactacho, seré utilizado um método deseritivo diferente, A {rianga nio seré vista como jf tendo estabelecido uma relagdo tiangu- dora, ¢ dotado de um interior © um exterior. Isto, como afirmei ante. slormente, responde pela totalidade do desenvolvimento que condur cag este sentimento de ser um. O8 conceitos da seco anterior eram conceitos intelectuais na =87— mente do observador. Eu havia adotado os conceitos de consciéneia, de inconsciente € de inconsciente reprimido. Em vez disso, agora seria mais proveitoso utilizar um diagrama, que bem pode ser um desenho infantil. Digamos que uma crianca estivesse enchendo um papel de ra- discos, num movimento de vaivém, e passeasse com o lépis sobre o pa- Pel de um lugar a outro, escapando as vezes para fora do papel, por falta de controle; em algum momento, surge algo novo, uma linha que acaba por juntar-se com 0 seu infcio, formando um cfrculo um tanto impreciso. A crianca aponta e diz: “pato”, ou mesmo “Pedrinho” ou “Joana”. O diagrama de que precisamos 6, de fato, a nogio que a crianca tem do self, uma esfera, que num desenho bidimensional é re- presentada por um efrculo, dentro fora A crianca alcanga gradualmente a posiglo que estou agora examinando. Caracteristicamente, neste estégio ocorre um progresso nos seguintes termos: Surge a idéia de uma membrana limitadora, e daf segue-se a idéia de um interior ¢ um exterior. Em seguida desenvolve-se a idéia de um EU* e de um nio-EU. Existem agora contetidos do EU que dependem em parte de experién lade pela experiéncia instintiva e pelos to de independéncia em relagio ao que est fora. Surge um sentido para o termo “relacionamento”, indicando algo que ocorre entre pessoas, 0 EU € os objetos. A conseqiiéncia € 0 reconhecimento de que hé algo equivalente ao EU na mie, 0 que impli- ca em senti-la como uma pessoa; 0 seio, ento, € visto como parte de uma pessoa. "No original, ME e not-ME. (N, do 7.) aime CAPITULO 1 A POSICAO DEPRESSIVA CONCERN, CULPA E REALIDADE PSIQUICA PESSOAL INTERNA Paralelamente a tudo isto desenvolve-se a discriminagio entre os dois estados, 0 tranqililo ¢ o excitado. O “ataque” impiedoso ao objeto, de- flagrado pelo instinto, cede lugar a um crescente reconhecimento da mie como a pessoa que cuida do EU, ao mesmo tempo que é a pessoa gue oferece uma parte de si para ser comida, Gradualmente vai ocor rendo uma integragio entre a forma tranqllila de relacionamento ¢ a forma excitada, ¢ 0 reconhecimento de que ambos os estados (e no apenas um) constituem uma relagéo total com a mie-pessoa. Fa isto gue se denomina “A Posigio Depressiva no Desenvolvimento Emocio- nal”, um estigio importante que envolve o bebé em sentimentos de culpa, levando-o a preocupar-se com os relacionamentos, em razio de seus Componentes instintivos ou excitados. ‘As ansiedades da crianga so de uma complexidade muito elevada. Existe ndlo s6 a preocupagio quanto aos efeitos sobre a pessoa da mie por causa dos elementos instintivos no relacionamento entre 0 EU e ela, duas pessoas, (culpa); mas também a preocupacio quanto as mu- dangas internas que decorrem das experiéncias de excitagéo, e de expe rigncias matizadas pela raiva ou motivadas pelo 6dio (ansiedade hipo- condrfaca). (E preciso acrescentar ainda a ansiedade chamada paranéi- de, que seré discutida em separado) E ffcil perceber a tremenda quantidade de crescimento que ocorre nesta progress da ruthlessness até 0 concern, da dependéncia do EU a0 relacionamento do EU, da pré-ambivaléncia & ambivaléncia, da dis- sociacio priméria entre os estados de trangililidade e excitago & inte- Braco destes dois aspectos do self. O bebé se vé As voltas com uma tarefa que exige de forma absoluta tanto tempo quanto um ambiente pessoal continuo. A mée-pessoa sus- tenta a situagdo no tempo, enquanto 0 bebé busca um caminho para al- —89— cancer a ‘'Posisho depressiva”, pois na austncia dos cuidados pessoais © continuos da mie esse desenvolvimento no pode oconer. A reson, ‘so desse proceso acontece da seguinte maneira: Fodemos considerar axiomAtico o fato de que o bebé humano 6 in- capaz de suportar 0 peso da culpa e do medo resultantes de um reco. nhecimento pleno de que as idéias agressivas contidas no amor instinth Bo Primitivo ¢ implacfivel esto dirigidas A mesma me da relagéo de Cependéncia (anaclitia). Além disso, a erianga ainda nfo progrediu 4 “bom”, que ap6ia, que € aceitével, que no machuca, ¢ com isto repa- fat imaginativamente o dano causado 3 mie. Na relagio comum entre née ¢ bebé esta seqiitncia de machucar-e-curar se repete muitas ‘imuiias vezes. Gradualmente, o bebé passa a acreditar no esforgo cons tmutivo © a suportar a culpa, © assim tornar-se livre para 0 amor ing. tintivo. Deste modo, enquanto no infcio a mie aceita um alto grau de de- Pendéneia como natural, o beb€ saudével vive independente do pai, que por sua vez € absolutamente Momento ¢m que a elaboragio imaginativa dos wltimos acontecimentos Ro inconsciente tenha produzido o material para alguma coisa constru. tiva no relacionamento, no brincar ou no trabalho. Provavelmente, a expressio “posicfo depressiva no desenvolvic mento emocional normal” foi utilizada porque nessa etapa o estado de Rsbftito depressivo foi clinicamente constatado, Isto ndo significa que o bebé normal atravessa um estado de dloenga depressiva. A doenca de. Pressiva no bebé* & de fato um estado anormal, que em geral no ocor. Xr om circunstancias de bons cuidados pessoais normais. Em condigdes favordveis, portanto, o bebé se tora capaz. de separar o que é bome 0 ue € mau no interior do self.* Surge entdo um estado interno de gran- de complexidade. Amostras do seu funcionamento aparecem no brincar € especialmente no consultério durante a psicoterapia. Na psicoterapia de uma crianga pequena, a sala de brinquedos muitas vezes representa @ pequena psique da crianga, e 0 analista 6 assim admitido ao mundo interno da crianga, onde hé uma tremenda disputa entre diversas forcas, onde reina a magia, ¢ onde o que € bom € constantemente ameagado pelo que € mau. © mundo intemo da crianga provoca uma sensagéo enlouquecedora em quem nele entra. Daquilo que ali podemos obser- var, deduzimos os elementos que compdem 0 mundo interno dos bebés. © que & mau é retido por algum tempo, para ser usado em expres S6es de raiva, € 0 que € bom é retido para servir ao crescimento pes- Soal, bem como a restituicao e a reparagio, e para fazer o bem ali onde imaginativamente havia sido feito um mal E claro que estou me referindo Principalmente aos sentimentos ¢ idéias inconscientes da crianga, aos contetidos da psique que existem Para além dos esforgos intelectuais que a crianga faz para compreender. ‘Com a mie (ou mée substituta) presente e dispontvel, quer dizer, com o bebé ainda situado num ambiente adequado para bebés, comeca lentamente a formar-se um momento de reparac&o (mending), um mo- mento no qual o bebé utiliza a capacidade que vinha se desenvolvendo zas tltimas horas de contemplago ou digestio, Pode ser que o bebé faga algo concretamente (um sorriso, ou um gesto espontaneo de amor, ou 0 oferecimento de um presente — um produto da excrecdo — como sinal de Feparacio e restituicao). O seio (corpo, mie) esté agora reparado, ¢ o tra- balho do dia se completa. Os instintos de amanhéi podem ser aguardados ‘com um medo menor. “Sufficient unto the day is the evil thereof”,** No humor depressivo, pode-se dizer que 0 bebé (ou crianga, ou adulto) amortece toda a paisagem interna, permitindo que um controle s bom ¢ mau sio herangas do passado longfnquo; so também ites para descrever 3s do que qualquer bebé sente ocorrer dentro de si mesmo quer se ale de forges, ons ou cheitos. NBo me refi aqui ao uso desta palavras por pais ou babs que ree, ‘icnte de que ela discorda de ceri detalhes da minha exposicio. Nao foi meu proposito ea {Eetanto, apresentarsussidéias com preciso, como jf fizeram cla prépria,Inees Heinaen, ha intensSo principal, neste ponto, &2 de deixar claro meu total recone; "A cada da basta osu fardo”, Mateus, 6; 34 (Nd) ee desca sobre ela, como rma nuvem, uma cerrago ou uma espécie de pa- ralisia. Isto torna possfvel (com 0 tempo) a gradual suspensio do con- tole mégico, permitindo que os resultados da experiéncia se organi- Zem, pouco a pouco, até que © humor melhore, e © mundo interno da crianga volte a viver. Existe um outro tipo de depressdo, aquela das pessoas esquizsides. Esta resulta mais da despersonalizacio que do mecanismo mais normal de controle magico, cuja intengao € curar. © humor depressivo que es- tou descrevendo esté intimamente relacionado ao luto normal, ¢ a toda @ questo da reacdo & perda.* O desmame & algo que adquire sentido depois (e no antes) de 0 bebé alcangar a posigéo depressiva. Como resultado do éxito das idéias e atos reparadores, 0 bebé tor~ na-se mais audacioso ao permitir-se novas experiéncias instimivas; a inibiedo diminui leva a conseqléncias ainda mais ricas da expe- rincia instintiva; surge, assim, uma tarefa ainda maior para a proxima fase de digestio ou contemplacio, mas quando o bebé conta, feliz~ mente, com a existéncia de um cuidado materno continuo e pessoal, ele cria uma capacidade de reparagio também maior, € a isto se segue um novo patamar de liberdade na experiéncia instintiva. Deste modo, esta- belece-se um cfrculo benigno, que forma a base para a vida do bebé or um longo perfodo. onde a “mae” que ali- menta de manhi nao € a * iho e arruma a tarde, a ca- Pacidade didria do bebé de fazer a reparagio € desperdicada, e 0 efr- culo benigno nio pode ser construfdo. Pior ainda, quando a prépria ssoal e mec@nica (€ isto pode ocorrer inclusive no if espaco para o desenvolvimento aqui descrito. mento da capacidade para o concern € portanto um assunto complexo, e depende da continuidade do relacionamento pes~ soal entre 0 bebé € uma figura materna, A caracterfstica marcante desta teoria do circulo benigno na posi- fo depressiva € a de que ela comporta em scu interior o fato de que na satide, o indivfduo em desenvolvimento € capaz de um reconhecimento quase pleno dos fatores agressivos e destrutivos presentes no amor ins~ tintivo e das fantasias inerentes a eles. Nao devemos esquecer que, na Esta parte da toria psicanalftica foi desenvolvida com base em Luo ¢ Melancolia, de Freud. -92- DIAGRAMA L Tempo: A mae sustenta a situagio 0°0 objetos bons 9% objetos maus infincia, a capacidade de reparaco € muito limitada — se excluirmos a Pronta aceitagSo, pela mic, da dadiva simbélica — se a compararmos & capacidade do adulto para contribuir socialmente através do trabalho. No entanto, os impulsos agressivos e destrutivos do bebé so tao inten- 508 quanto os do adulto. Disto se poderia deduzir, se j& no 0 soubés- semos, que a crianga € mais dependente que 0 adulto do amor oferecido Por outros, o que leva um sorriso ou um fnfimo gesto a valer tanto para a crianga quanto um dia de trabalho para o adulto. Repetindo mais uma vez: ndo € possfvel a um ser humano suportar a destrutividade que est na base dos relacionamentos humanos, ou se ia, do amor instintivo, exceto por meio de um desenvolvimento gradual associado as experiéncias de reparagao e restituicao. Quando o cfrculo benigno € rompido ocorre que: =e (2) © instinto (ou capacidade de amar) tera que ser inibido; (2) reaparece a dissociagéo entre o bebé excitado © a mesma pessoa quando trangiiila; (3) © sentimento de trangililidade no fica mais ao alcance, e (@) acapacidade para brincar (e trabalhar) construtivamente € perdida, Na verdade, a poténcia e a aceitagao da poténcia no podem ser descritas ‘somente em termos de desenvolvimento instintive. Numa descricdo teori- ca do desenvolvimento da capacidade sexual, nao € suficiente falar-se apenas em termos de progressio do instinto dominante, j& que aesperanca na possibilidade de recuperar-se da culpa causada pelas idéias destrutivas Eumelemento de importancia vital no que diz respeito A poténcia.* A natureza dos impulsos ¢ idéias destrutivos ser discutida mais tarde. O impulso do amor primitivo talvez.seja destrutivo quanto ao seu objetivo, ou talvez a destrutividade provenha de inevitdveis frustragées que interferem com a satisfacdo imediata (ver pags. 99, 153-56 ). A assim chamada “posicao depressiva” de modo algum deve ser considerada uma questo que 86 diz respeito avs tedricos e psicotera- peutas. Pais e professores também se preocupam com o processo de estabelecimento desse circuto benigno. E verdade que este processo se inicia quando 0 bebé tem apenas alguns meses de idade, perfodo em que a mie sustenta a situagiio, fazendo-o bem e com naturalidade, mesmo sem muita consciéncia do que faz. Este mecanismo vital de crescimento prossegue a sua marcha, O professor que fornece & crianga S © as técnicas para 0 brincar construtivo ¢ o trabalho, ¢ também um objetivo para o esforco através da avaliagio pessoal, est ha mesma posicio de importiincia ou necessidade daquele que cuida de um bebé. A pessoa que cuida do bebé, € 0 professor nfio menos que aquela, estio disponfveis para receber © gesto espontineo de amor da erianga, capaz de neutralizar suas preocupagées, remorsos ou culpa, surgidos em conseqliéncia das idéias que se desencadciam no auge da experiéncia instintiva.** Isto ser reexaminado no estudo das influén- cias ambientais, &s pags. 173 e segs. se da British Psycho: ‘mantido sua fliaso individual & International Psyeho- An aes A aceitagilo da posigi® depressiva (tenha ela este ou outro nome) ho constructo teérico implica em novas ¢ importantes maneiras de en- caminhar a descri¢&o da natureza humana. © mundo interno ou realidade interna do bebé 6 constituido por és elementos: ) Experincias instintivas propriamente ditas a, Satisfat6rias boas b. Insatisfat6rias, complicadas por raiva devida & frustracio més (2) Objetos incorporados (experiéncias instintivas) a. No amor bons b. No édio maus (3) Objetos ou experiéncias interiorizadas magicamente a. Para controlar ‘mau potencial b. Para usar como enriquecimento ou controle bom potencial Nenhum diagrama € satisfatorio, exceto temporariamente e apenas para @ pessoa que 0 constréi, Cada leitor poder fazer, naturalmente, um diagrama capaz de descrever © quer quer que esteja sendo discutide na sua propria linguagem. Existem diagramas que eu considero muito titeis para o trabalho prético (diagrama 2). Pode-se notar que o resultado da incorporaco funcional do “seio bom" provoca um aumento inespecifico, generalizado, de bondade in- tema. Por outro lado, a introjecdo do “‘seio bom” (reconhecfvel) evi- dencia sua prévia idealizacao, ¢ a introjecSo neste caso € mfgica e no uma parte da experiéncia instintiva. Aqui h4 uma importante licdo para a professora, j& que mesmo em seu trabalho mais bem-sucedido ela no serd reconhecfvel em seus alunos, que iro, por assim dizer, incorpo- Téa € as suas ligées, e crescerfo para além delas. Por contraste, haverd uma certa introjecio magica da professora ¢ de suas licées quando ‘ocorrer uma idealizagio, e isso poderia parecer até bastante simpético, mas a desvantagem € que 0 aluno ni ter crescido no verdadeiro sen- =95= DIAGRAMA 2 incorporago Gnstinto mais fantasia) controle mégico objeto vivido oe - é ‘como mau g @ 6 introjecio obye9 Bom (négion oO O com intengi0 introjegdo para obter oo contol) apoio (mégica) -96- tido da palavra, Geralmente, numa sala de aulas, existe a feliz mistura desses dois tipos de ensino e aprendizagem. Durante 0 perfodo de contemplagéo (depois de uma refeigio) existe uma suspensdo do instinto © a necessidade de que haja um con tole externo das intrusGes ambientais. Q voltar-se para dentro da fase hipocondrfaca acarreta uma certa vulnerabilidade, e isto significa que para que esta fase seja possivel o bebé deve ser cuidado de um modo suficientemente bom. No interior da pessoa agem forcas tremendas quando, por haver satide, existe a plena vitalidade. Para termos uma idéia do que ocorre durante o trabalho de reorganizacao interna apés a experiéncia instinti- va, devemos nos remeter 4s obras dos artistas que (em razio de sua técnica excepcional € sua confianga no préprio trabalho) conseguem aleancar a quase totalidade da forca que existe na natureza humana. ‘Um quarteto de cordas de Beethoven da tiltima fase, ou as ilustragées de Blake para 0 livro de Job, ou uma novela de Dostoievski ou a histé- ria polftica da Inglaterra, mostram-nos uma parte da complexidade do mundo interno, 0 entrelagamento do bem ¢ do mal, a manutengao do que € bom na reserva ¢ 0 controle, ainda que com total reconhecimen- to, do que € mau. Estas coisas surgem com forga total no mundo inter~ no do bebé (localizado por ele na barriga), embora seja verdade que no decorrer do tempo, enquanto a experiéncia de vida se torna mais rica, 0 mundo interno também se torna mais € mais rico em conteiidos. As for- as bésicas ¢ 0 conflito, no entanto, esto presentes desde 0 infcio, as- sim que as experiéncias instintivas se encontram ao alcance do bebé. Gradualmente, do interior do mundo interno surge uma espécie de padrao, uma ordem a partir dos caos. Esse trabalho nfo € mental nem intelectual, mas uma tarefa da psique. Esté intimamente relactonado A tarefa da digestio, que também se realiza 4 margem do entendimento intelectual, o qual pode ocorrer ou néo. © bebS que alcancou a estabilidade neste estéigio est agora em condigées de livrar-se de algo, manter ou reter aquilo outro, dar tal coi- sa por amor ou tal outra por édio. Outra conseqtiéncia do processo de reorganizagio interna € a possibilidade de experimentar uma espécie de continuar vivendo, mas vivendo no interior da psique (imaginada como estando na barriga). Deste momento em diante, 0 crescimento nfo € apenas do corpo ¢ do self em relacéo a objetos tanto externos quanto internos; € também um crescimento que se desenrola no interior, como uma novela que vai sendo escrita ao longo do tempo, um mundo de- -97- senvolvendo-se no interior da crianga, Na satide existem intimeras oportunidades de intercémbio entre essa vida no mundo interno ¢ o mundo externo, no qual se vive e em que hf relacionamentos. Cada um. enriquece © outro. (O que ocorre na doenga ser descrito mais tarde. Ver pags. 101 ¢ segs. e pfigs. 115 e segs.). A POSICAO DEPRESSIVA: RECAPITULACAO ‘A. Considerando todo 0 desenvolvimento anterior como realizado ¢ bem-sucedido: B, O bebé ou a crianga comecam em algum momento a sentir que o self, tem dimensées limitadas: C. O self 6 sentido cada vez mais firmemente como uma unidade: D, Um objeto externo ao self € sentido como uma coisa inteira: E, Este sentimento de integridade do self remete ao mesmo tempo ao corpo e & psique, de modo que no desenho que a crianga faz de um cfr- culo como um auto-retrato nao hé discriminago entre corpo e psique: (Estou presumindo a figura da mée sustentando a situacéo, dia apés dia, semana apés semana.) F. Acrescentada a esta totalidade de natureza espacial, surge uma ten- déncia semelhante para a integracao do self no tempo. Uma convergén- cia de passado, presente ¢ futuro: G. A situacio agora 6 propfcia para um relacionamento com novas fa- cetas, novas quanto ao fato de o bebé ou a crianca ter se tornado capaz, de ter experiéncias e de ser modificado por elas, apesar de conservar a integridade, a individualidade e o ser pessoais. H. Fases excitadas no relacionamento, nas quais os instintos estfio pre- sentes, testam a estrutura recém-desenvolvida, especialmente quando 0 debé estd no seu estado trangiiilo, entre excitagdes, e contempla os re- Sultados da idéia ou da aco excitada, 1. O bebé se torna preocupado (concerned) de duas formas: 1) quanto ao objeto do amor excitado. -98— 2) quanto As conseqiiéncias no self da experiéncia excitada. Estas duas possibilidades estao inter-relacionadas porque é apenas no momento em que o bebé se torna capaz de desenvolver um self estrutu- rado, dotado de riqueza interna, que o objeto amado também passa a ser sentido como uma pessoa estruturada ¢ valiosa. J. A preocupagio com 0 objeto amado surge a partir dos elementos agressivos, destrutivos © vorazes no impulso de amor primitivo, que 6 gradualmente assimilado ao self como um todo Guntando-se & persona- lidade no decorrer do tempo). A crianga agora se torna responsdvel pelo que aconteceu na ultima refeicdo e pelo que aconteceré na seguinte. 0 impulso primitivo era implacével (ruthless), do ponto de vista do observador. Para 0 bebé, o impulso primitivo € anterior A picdade ou consideragio, 86 € sentido como implacdvel quando a crianca final- mente integra a si prépria numa tnica pessoa responsfivel e olha para trfs. A partir do momento em que a integragio & alcangada (mas néo antes), a crianga controla os impulsos instintivos por causa das ameagas a0 seu movimento implacdvel, que provoca uma culpa intolerével — ou seja, 0 reconhecimento do elemento destrutivo na idéia excitada primi- tiva e bruta." ‘A culpa pelos impulsos amorosos primitives representa uma con- quista do desenvolvimento; ela € grande demais para ser suportada pelo bebé a nfo ser através de um processo gradual que se segue ao estabe- lecimento do cfrculo benigno descrito anteriormente. Ainda assim 0 impulso de amor primitivo continua a fornecer as bases para as dificul- dades inerentes & vida, ou seja, dificuldades préprias das pessoas sau- daveis, mais que daqueles que néio puderam atingir a “posigéo depres~ siva"” no desenvolvimento, esse fendmeno especifico que permite a ex- oar este livra, A ques- 1B, Esta € azo que me impediu de p livro O Brincar ¢ a ‘para mim, em “O Uso de um Objet =99— perigncia plena da preocupagio (concern). Os psicéticos so portadores de distirbios derivados de um estigio ainda mais precoce e basico. Suas dificuldades e problemas so especialmente aflitivos. Por nio se~ rem inerentes, nfo fazem parte da vida, e sim da luta para alcangar a vida — 0 tratamento bem-sucedido de um psicstico permite que o pa ciente comece a viver © comece a experimentar as dificuldades ine rentes a vida. Provavelmente, 0: maior sofrimento no universo humano € o sofri- mento das pessoas normais ou saudfveis ou maduras. Isto no € geral- mente reconhecido. A dor, a agonia ¢ a perplexidade manifesta obser- vadas num hospital para doentes mentais nos dariam sem divida um falso indicador. No entanto, € muito freqiiente os graus de sofrimento serem avaliados deste modo superficial, K. Preocupagio quanto &s conseqliéncias das experiéncias instintivas para o self. RECONSIDERANDO A REPRESSAO © conceito de repressio essencial a esta teoria da natureza humana, formulada com base na progressio dos instintos dominantes, pode ser agora ilustrado utilizando-se a prépria imaginago do bebé. Podemos dizer que certos objetos incorporados, ou relagées entre objetos, ou certas experiéncias introjetadas tornam-se como que enquistadas, cer- cadas por poderosas forgas de defesa que as impedem de serem assi- miladas ou de alcangar uma vida livre em meio a tudo aquilo que existe no interior do self, O bebé ou a crianga nunca esti livre de diividas sobre o seu self, j4 gue a tarefa da organizacao interior jamais se completa, e tudo aquilo que € completado perturbado pela préxima experiéncia instintiva, Portanto, existe um enriquecimento da fantasia a partir de cada no- va experiéncia, ¢ 0 fortalecimento do sentimento de realidade da expe- Fiéncia. Quando 0 corpo esté envolvido nessas experiéncias, utilizamos termos como incorporacéo, excrecdo ou evacuagio, termos que abar- cam as idéias de uma elaboracao psfquica e de um funcionamento cor- poral. Quando o perigo proveniente da situacdo interna & grande, a ex- Pressiio das fungdes ou instintos no pode esperar por oportunidades Propiciadas: pela realidade extema, entio tém lugar processos mais migicos, para os quais utilizamos 0s termos “introjeco” e “projegio”. —100- LIDANDO COM FORCAS E OBJETOS MAUS © fenémeno interno mau que no pode ser controlado, contornado ou excluido transforma-se num empecilho. Ele se transforma num perse- guidor intemo e € sentido pela crianca como uma ameaga que vem do interior. Freqiientemente, ele se transforma numa dor. A dor causada or doencas fisicas possivelmente investida das propriedades que de- nominamos persecutérias. E possfvel tolerar dores muito intensas, se estas estiverem separadas da idéia de forcas ou objetos intemos maus. Por outro lado, numa situagdo em que hé a expectativa de uma perse- Buicdo interna, até mesmo ligeiras desordens ou sensagdes corporais. muito pequenas podem ser sentidas como dor; em outras palavras, estas condigdes provocam o rebaixamento do limiar de tolerdncia & dor, Os elementos persecut6rios podem se tornar intoleréveis, sendo entio projetados, percebidos ou encontrados no mundo externo. Ou existe uma tolerdncia limitada, caso em que a crianca espera por uma situaco de verdadeira perseguico vinda do mundo externo, reagindo a ela de forma exagerada, ou enti nfo hé tolerfincia alguma, ¢ a erianca alucina um objeto mau ou persecut6rio; ou seja, um perseguidor € ma- Bicamente projetado, ¢ reencontrado no mundo externo ao self de for- ‘ma delirante. Assim, quando existe a expectativa de perseguicao, uma erseguicéo real produz alfvio, um alfvio devido ao fato de que o indi- viduo nao precisa se sentir louco ou delirante. Clinicamente, € comum encontrar esses dois estaclos alternada- mente, ou seja: a perseguico interna (alguma condi ou sem base em processos de doenca fisica) ¢ 0 delirio persegui¢io externa, com alivio tempordrio das queixas sobre proble- mas fisicos internos. Existe um estado clfnico no qual a crianga esté, por assim dizer, a meio caminho entre ser endo ser capaz de manejar ow livrar-se dos maus objetos através da excrecdo, ¢ fica com um medo excessivo do elemento persecutério que existe nas fezes para poder completar o pro- cesso. O sintoma manifesto € normalmente a constipacdo, com as fezes (endurecidas por terem sido desidratadas enquanto estavam no reto) re- presentando o perseguidor. A época em que esta teoria foi primeira Inente proposta*, nfo se sabia que 0 perseguidor comegava a perseguir * fOphuijsen, JH. W. Van: (1920) “On the Origin of the Feeling of Pers = 101— aindo na barriga, e que na verdade extrafa sua qualidade persecutoria dos impulsos orais sédicos. Freqiientemente acontece que os pais (€ os médicos, enfermeiras ou babs) tém medo das fezes. Esse medo aparece sob forma de um in- sistente esvaziamento do reto da crianca, seja por meio de laxativos, ou Por lavagem ou supositérios. Uma crianca tratada dessa maneira no te~ ra menor oportunidade de chegar a um acordo com as idéias perse- cut6rias de uma forma natural. Por outro lado, a ago dos pais leva fa- cilmente & superestimulagio anal; desta forma o Anus torna-se superen- fatizado como érgio erético e se apodera do erotismo que pertence & boca. O finus, nestas circunsténcias, pode se tornar mais importante pa- ra 0 seu dono como um orgio receptivo aceitavel do que como um re~ passador ou canal de safda do material que ndo tem mais utilidade, portanto potencialmente persecutorio. © conhecido interesse da crianga pelas fezes ¢ também por substi- tutos das fezes, inclusive pelo destino da fezes no sistema geral de es- va sua forca da qualidade potencialmente persecutéria s fezes, Algo equivalente a isso pode ser dito em relacao a fungdo urindria. ‘Quando @ funcHo genital est plenamente estabelecida, 0 sémen também pode receber um potencial persecutério. Neste caso € preciso livrar-se dele ou ele danificar o interior do corpo. Assim, o smen & visto como mau € no poderd ser percebido pelo homem como capaz de evar & concepgao de uma crianca na mulher amada (mesmo quando ele © €, © a crianca saudével que resultou desse fato esté ali, diante dos seus olhos). Uma forma mais branda de manifestacio deste fendmeno explica a preocupagio (concern) do homem saudével pela mulher que ele engravidou, ou seja, 0 seu sentimento de paternidade. Na mulher, o equivalente a isso é o sentimento de que 0 homem s6 tem a oferecer elementos persecutérios, dos quais ele préprio tem me- do, © ela, entéo, 86 pode tratar de evitar ser usada pelos esforcos do homem para se desvencilhar dos seus contetidos ruins. Desta maneira, resfduos dos conflitos internos ndo resolvidos podem causar interfe- réncias na poténcia sexual. =U RIQUEZA INTERNA E COMPLEXIDADE ‘© mundo interno pode agora ser visto como algo capaz de se tomar in- finitamente rico, mas talvez ndo infinitamente complexo; a complexi- dade € algo que cresce naturalmente ¢ isto tem um fundamento bastante simples. © estudo do modo pelo qual a psicoterapia de um tipo ou de outro feta o mundo interno de uma pessoa pode langar uma luz interessante Sobre 0 funcionamento do mundo interno em geral, e sobre o relacio- namento que 0 individuo mantém com o mesmo. A “posigéio depressiva”” € importante para todos aqueles que se interessam por seres humanos de qualquer idade. Esses assuntos que também dizem respeito ao desenvolvimento emocional muito primitivo niio so fenmenos de interesse apenas teGrico, Eles so e continuaréo a ser a tarefa basica de cada ser humano pela sua vida afora. As tarefas Permanecem as mesmas, mas A medida que o ser [human] cresce ¢ se desenvolve, torna-se cada vez mais individual, engajado na verdadeira uta que € a vida." * (Neste ponto foi deixada uma nots manuserta no texto datilografico:] Dewmame, Incluir aqui artigo sobre ue esta nota dssesse respeito ao capftulo “Desmame” inntcoe, D. W.: Crianga, A Fania e O Mundo Exterior. | ial margem deste parSgrafo dizis: “Re-escrever" 49) que agora se —103—

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