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PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO

PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS DA SME-SP


Nº1 - 2021
PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO
PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS DA SME-SP

PREFEITURA DA CIDADE DE SÃO PAULO REVISÃO TEXTUAL


Ricardo Nunes Felipe de Souza Costa
Prefeito Sueli Funari

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO CONSELHO EDITORIAL REVISTA OCUPAÇÃO MAÍ


Fernando Padula Carolinne Mendes da Silva
Secretário Municipal de Educação Eva Aparecida dos Santos
Felipe de Souza Costa
Minéa Paschoaleto Fratelli Jussara Nascimento dos Santos
Secretária Adjunta de Educação
CONSELHO CONSULTIVO REVISTA OCUPAÇÃO MAÍ
Malde Maria Vilas Bôas Adriano José de Sousa
Secretária Executiva Municipal André de Pina Moreira
Anna Luisa de Castro
Omar Cassim Neto Caroline Passarini Sousa
Chefe de Gabinete Duarte Luciano Antunes
Elaine Correia de Oliveira
COORDENADORIA PEDAGÓGICA - COPED Fabiana Bezerra Nogueira
Daniela Harumi Hikawa Fabio Ribeiro
Coordenadora Geral Fernanda Borsatto Cardoso
Fernanda Pereira da Costa
Giovana de Cássia Ramos Fanelli
Juliana Gonçalves Mutafi
Karine Evelyn Alves Carvalho
Luiz Gustavo Ramaglia Mota
Martiniliano Souza Silva
Priscila Aparecida Santos de Oliveira
Raphael Leon de Vasconcelos
Renato Brunassi Neves dos Santos Silva
Rubens Baldini Neto
Sara dos Santos
Yaracê Morena Boregas Rêgo

CENTRO DE MULTIMEIOS
Magaly Ivanov - Coordenadora

ARTE
NÚCLEO DE CRIAÇÃO E ARTE | CM | COPED | SME
Ana Rita da Costa - Revisão de Arte
Angélica Dadário
Cassiana Paula Cominato - Projeto Gráfico e Ilustração - Editoração
Fernanda Gomes Pacelli
Simone Porfirio Mascarenhas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ocupação Maí [recurso eletrônico] / Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria


Pedagógica. – n. 1 (ago. 2021). – São Paulo : SME / COPED, 2021.

89 p. : il. color
Bibliografia
Quadrimestral
ISSN 2764-4995

1. Educação – Periódicos. 2. Educação e cultura. I. Título.


CDD 370.5

Código da Memória Documental: SME131/2021


Elaborado por Patrícia Martins da Silva Rede – CRB-8/5877
Aos(Às) Educadores(as)

A
Revista Ocupação Maí nasce da necessidade de registrar e
publicizar as muitas ações dos(as) educadores(as) que compõem
a Rede Municipal de Ensino de São Paulo, especialmente
aquelas práticas que (re)introduzem, ampliam e potencializam
a educação para as relações étnico-raciais. Nesse sentido, quero destacar a atuação
protagonista de professores(as), em todas as etapas da educação básica e modalidades,
os(as) quais reuniram esforços e, em um contexto extremamente difícil, permitiram
encorajar outras ações por meio do compartilhamento de boas práticas, como as que
vocês lerão nesta edição.
O primeiro volume representa um marco nessa direção, pois sabemos que
boas práticas inspiram, fortalecem e ocupam um espaço que requer atenção em nos-
sa sociedade. No âmbito do município de São Paulo, podemos resgatar o Programa
de Metas, em sua versão inicial, e destacar a de número 17, que consiste em “Com-
bater o racismo, por meio da implementação de 8 iniciativas de melhoria no aten-
dimento da população negra e/ou de promoção da igualdade racial”. Trata-se, por-
tanto, de um esforço conjunto no qual diversas secretarias municipais estão envolvidas,
incluindo a da Educação.
São Paulo é uma cidade diversa e multifacetada, nossas escolas também o são
e, por isso, a leitura desta e das demais edições da Revista Ocupação Maí é um convite
ao reconhecimento dessa diversidade e um espaço para registrar o fato de que a edu-
cação cumpre papel importante para que o racismo e a xenofobia sejam combatidos
junto aos bebês, às crianças e aos estudantes que constituem a nossa Rede Municipal
de Ensino de São Paulo.
Por fim, quero parabenizar os(as) professores(as) que enviaram seus artigos e
relatos para compor este volume da Revista Ocupação Maí, além dos(as) organizado-
res(as), leitores(as) críticos(as) e as diagramadoras que fizeram esta edição acontecer.
Que venha a próxima! Fica o convite.
Boa leitura!

Fernando Padula
Secretário Municipal de Educação
Apresentação

É
com alegria que apresentamos a Revista Ocupação Maí, que foi batizada a
partir de encontros formativos com as treze DIPEDs (Divisões Pedagógicas)
das também treze DREs (Diretorias Regionais de Ensino) do Município
de São Paulo.
Considerando que a revista versará sobre educação para as relações étnico-raciais,
no que tange às leis nº 10.639/2003, nº 11.645/2008, bem como práticas equitativas para
as populações migrantes, compreendeu-se a necessidade de um nome que abarcasse essa
grande diversidade de povos. O povo Maí, indígenas e negros, que habitaram o norte do
Abomé, atual Benim, contribuiu para representação da fusão das discussões aqui propostas.
Diante da necessidade de contemplar a diversidade étnica presente em nosso país
e em nossas Unidades Educacionais, a Rede Municipal de Ensino tem traçado caminhos
para a promoção da equidade racial e inserção de conteúdos relativos à história e cultura
dos diferentes grupos que constituem nossa sociedade. Atualmente, é premissa básica que as
práticas sejam pautadas nos princípios da Educação Integral, Educação Inclusiva e Equi-
dade. Desse modo, a Revista Ocupação Maí, será espaço de destinar visibilidade às práticas
que já acontecem e, concomitante a isso, fomentar reflexões a toda comunidade educativa.
Trata-se de um espaço acadêmico e pedagógico, que visa acolher práticas e reflexões acerca
dos temas pertinentes à educação para as relações étnico-raciais.
A periodicidade das publicações será quadrimestral, ou seja, teremos três publica-
ções a cada ano. Nesta primeira edição, apresentaremos uma versão reduzida do que será a
Revista Ocupação Maí, que, a partir do próximo número, contará com a publicação de mais
textos produzidos por diferentes profissionais da Rede Municipal de Ensino de São Paulo.
Nós, editoras da Revista Ocupação Maí, desejamos que ela se torne mais um instru-
mento de compartilhamento das ações e reflexões de todas e todos as(os) profissionais da
Rede Municipal, por entendermos que o processo educativo é contínuo e acontece com a
participação das(os) envolvidas(os), dentro e fora das nossas Unidades.
Aproveitem a leitura!

Carolinne Mendes da Silva


Eva Aparecida dos Santos
Jussara Nascimento dos Santos
NEER/NTC/COPED/SME
Do registro como
prática de educação
para as relações étnico-
raciais: potencialidades
da Rede Pública de
Ensino Paulistana
Por Felipe de Souza Costa
Coordenador Pedagógico / Diretor do Núcleo Técnico de Currículo da SME-SP

R
egistrar ações didáticas advindas de práticas diárias em nossas Unidades
Educacionais não é tarefa das mais fáceis. Embora nós, educadores(as),
reconheçamos a importância do registro, sabemos também que tornar
tal prática uma rotina é um verdadeiro desafio diante das inúmeras
atividades profissionais a que somos submetidos. Colocar nossas ações práticas em um
papel, numa tela ou capturar um cenário desse dia a dia são, ao mesmo tempo, necessidades
formativas e querenças de todo(a) educador(a) que se conjugam, entre outros aspectos, com
as nossas atribuições, jornadas e demandas.
Quando pensamos um registro formal, como são os solicitados para compor este
periódico, parece-me que os desafios inerentes a essa atividade se intensificam. No entan-
to, apesar de ser bastante desafiadora, a produção de um relato de prática escrito ou de
um artigo nem sempre é (ou precisa ser) tão sisuda. Entre a correria dos tempos vividos,
tenho certeza de que, quando nos aventuramos numa atividade dessa natureza, depara-
mo-nos com nossos próprios sorrisos, angústias, reflexões, descobertas, medos e, é claro,
desejos de mudanças.
Nesta primeira edição da Revista Ocupação Maí, eu tive a feliz oportunidade de ler,
em primeira mão, todos os artigos e relatos que compõem este volume. Em virtude disso,
adianto que a leitura dos textos reunidos nestas páginas promoveram em mim todos esses
sentimentos descritos anteriormente.
Em alguns momentos, confesso, meu semblante tornou-se sisudo, seja por estar aco-
metido pelo cansaço de uma jornada intensa de trabalhos ou pela tristeza em perceber que,
como sociedade, apesar dos muitos avanços, ainda temos muito que superar. A sisudez, no
entanto, dissipava-se quando, durante a leitura, eu me via - de modo surpreso - em meio a
sorrisos, reflexões, angústias, medos, descobertas e desejos de mudanças.
Tematizar as discussões raciais, no âmbito de uma rede ensino, traz para nós a mis-
tura de todos esses sentimentos. Além disso, somados a um senso de responsabilidade que
norteia quem ocupa, temporariamente, uma posição estratégica de gerir políticas públicas
que atendam, entre outras, as muitas necessidades desta rede, sobretudo no que diz respeito
à educação para as relações étnico-raciais.
Nessa direção, imbuídos de tal sentimento de responsabilidade, entendemos que
este periódico constitui-se como um veículo propulsor de fomento a registros de práticas e,
ao mesmo tempo, de ampliação das discussões importantes a respeito dos aspectos étnico-
-raciais, que estão amalgamados em toda e qualquer ação educadora. Esse amálgama, no
entanto, não prescinde de atravessamentos e questionamentos necessários, os quais também
estão presentes em nossa sociedade - e não apenas no âmbito educacional. Refiro-me, espe-
cialmente, ao combate necessário a toda e qualquer forma, ação ou expressão do racismo e
da xenofobia, que estruturam uma sociedade desigual como a nossa.
Em face de tais realidades preocupantes, conhecidas de todos(as) nós e que nos con-
vocam ao senso de corresponsabilidade mútua, destaco as produções dos(as) educadores(as)
da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, notadamente as que compõem esta edição,
como aquelas que, por um lado, podem servir como inspiração para boas práticas em nossas
Unidades, no caso dos relatos; por outro, as que nos provocam a pensar a luta antirracista a
partir de um chamamento consciente de combate ao racismo estrutural.
Além disso, destaco também as produções que nos movem para pensarmos, con-
juntamente, práticas de acolhimento da população migrante, denunciando que o mito da
cordialidade no Brasil ainda precisa ser desvelado e, de igual modo, combatido, mesmo em
uma cidade e numa rede como a nossa, que recebem muitos migrantes.
Quero, ainda, destacar que a publicação desta Revista se soma a uma série de inicia-
tivas com vistas a atender à Meta 17, constante no Programa de Metas do município de São
Paulo 2021-2024 (ainda em sua versão inicial), levando-nos a compreender que o respeito à
diversidade, o fomento às igualdades de oportunidades e a luta antirracista são ações que atra-
vessam e convocam toda a Rede Municipal de Ensino da Cidade de São Paulo a unir forças
nessa direção. Para tanto, é, mais do que oportuno, necessário alimentarmo-nos das leituras
dos textos que compõem/comporão esta e as demais edições deste periódico, que já nasce
grande e ocupando um espaço indispensável para a educação das relações étnico-raciais.
Finalmente, quero agradecer e parabenizar publicamente o profissionalismo, mais
os esforços individuais, das profissionais da educação que fazem parte do Núcleo de Educa-
ção para as Relações Étnico-Raciais: Carolinne Mendes, Eva Santos e Jussara Santos, além
de todos(as) os(as) demais avaliadores(as) e leitores(as) críticos(as) e diagramadoras, que são
também profissionais da nossa rede e tornaram esta edição possível.
O convite está feito: boa leitura com uma explosão de sentimentos e, às vezes, um
semblante sisudo sem perder o sorriso e a esperança, que fazem parte de toda e qualquer
ação educadora!
SUMÁRIO

Histórias não contadas na Escola ........................................................ 7


Antonia Terra de Calazans Fernandes
Departamento de História – FFLCH – USP

Patrimônio Cultural: nossa herança africana - as possibilidades


de efetivação da Lei nº 10.639/03 com turmas de 7º ano
na Rede Municipal de Educação de São Paulo .................................... 15
Adriana de Carvalho Alves Braga
Professora de Ensino Fundamental II e Médio – História
EMEF Professora Lilian Maso – DRE Freguesia/Brasilândia

Processos de acolhimento a bebês, crianças e famílias migrantes


no espaço da escola: diálogo com o Currículo ................................... 28
Cristiane de Novais Almeida
Assistente de Direção
EMEI Professor Lourenço Filho – DRE Jaçanã/Tremembé

Huka-Huka e Derruba o Toco: lutas indígenas nas aulas


de Educação Física .......................................................................... 40
Everton Arruda Irias
Professor de Ensino Fundamental II e Médio – Educação Física
EMEF Raimundo Correia – DRE São Miguel

Migrantes latino-americanos na escola em São Paulo: um relato


de prática sobre história e cultura dos povos andinos ........................ 50
Ritta Minozzi Frattini Ueda
Professora de Educação Infantil e Fundamental
EMEI Dom Pedro I – DRE Ipiranga

História e cultura africana por meio do Mancala Awelé:


reflexões para uma prática pedagógica antirracista ........................... 63
Robson Gonçalves da Silva
Coordenador Pedagógico
CEU EMEF Pres. Campos Salles – DRE Ipiranga

Protagonismo Negro e a Educação no Brasil ..................................... 78


Vínicius Felipe Gomes
Professor de Ensino Fundamental II e Médio
EMEF Adolpho Otto de Laet – DRE Jaçanã/Tremembé
Ilustração: Cassiana Paula Cominato

Histórias não contadas


na escola

Antonia Terra de Calazans Fernandes


Departamento de História – FFLCH – USP
“(...) não somos tocados por um sopro de ar que e atuarem mais conscientemente nas vivên-
foi respirado antes? Não existem, nas vozes que cias do mundo contemporâneo?
escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (...) Se
assim é, existe um encontro secreto, marcado entre Existem muitos modos de analisar nos-
as gerações precedentes e nossa. Alguém na terra sos problemas históricos atuais. Podemos
está à nossa espera. Nesse caso, como a cada gera- partir da perspectiva hegemônica e denun-
ção, foi-nos concedido uma frágil força messiânica ciar abusos de poder, opressões, discrimi-
para a qual o passado dirige um apelo. Esse ape- nações, exploração e mecanismos intimi-
lo não pode ser rejeitado IMPUNIMENTE. O dadores e repressivos. Nessa perspectiva, o
materialismo histórico sabe disso.” princípio é desmascarar as ações e ideias
Walter Benjamin. Sobre o conceito de que fundam a dominação, por meios implí-
história1. citos ou explícitos, atingindo povos, classes
sociais, gêneros ou presentes nas relações
Será que atualmente vivemos um con- econômicas e de modo dissipado nas vivên-
texto que nos convoca a incluir estudos his- cias cotidianas.
tóricos mais aprofundados e críticos na es- Na perspectiva de desvelar situações
cola? Será que um dos motivos de estudar opressivas, podemos considerar que a his-
história na escola tem sido contribuir para tória vivenciada hoje mantém fortes laços
as novas gerações questionarem, refletirem com as ideias e acontecimentos de outras

1 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras escolhidas, vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p. 222 – 232.

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épocas. A luta dos povos indígenas atuais, da praia por ordem que tomavam os cor-
por exemplo, indica que muitas das histó- pos perto de uma légua, fiz muitas outras
rias coloniais ainda interferem no modo saídas em que destruí muitas aldeias
como ainda é negado o reconhecimento de fortes pelejei com eles outras tantas vezes
que são os donos naturais das terras e como em que foram mortos e feridos e já não
são pouco atendidos em suas lutas e reivin- ousavam estar, senão pelos montes, onde
matavam cães e galos e constrangidos da
dicações por seus direitos ancestrais.
necessidade, vieram pedir misericórdia e
Vale relembrar o fato de que no início lhes dei pazes com condição de que ha-
da colonização, os portugueses enviaram viam de ser vassalos de sua alteza , pa-
seus administradores para explorar as ri- gar tributo e tornar a fazer os engenhos.
quezas nas terras brasileiras. Um desses Tudo aceitaram e fizeram e ficou a terra
administradores foi o governador geral pacífica em espaço de trinta dias (...).
Mem de Sá (1500 - 1572), que tinha a Instrumentos dos Serviços de Mem de Sá
missão de pacificar os grupos indígenas – autor: Mem de Sá, 1570 – Annaes
da Bahia, para serem utilizados como da Biblioteca Nacional, Vol. XX-
mão de obra nas produções agrícolas. Por VII - 1905, Rio de Janeiro, 1906,
suas ações, Mem de Sá foi consagrado, 131 - 135.
pela historiografia e nos livros didáticos
O documento oficial explicita a destrui-
dos séculos XIX e início do XX, como
ção das aldeias indígenas, incluindo a ma-
herói da história brasileira e ganhou es-
tança de homens, mulheres e crianças. A
paço como homem notável. Mas, recor-
perseguição e a guerra exterminaram mi-
rendo aos documentos, podemos em ou-
lhares de tupiniquins, afogados nas praias
tra perspectiva analisar o relato que ele
da Bahia. Por seus atos, Mem de Sá foi um
próprio enviou à coroa portuguesa, des-
herói? Em qual versão histórica exalta seu
crevendo suas ações. No seu relato, Mem
heroísmo? Como será que os povos indí-
de Sá conta como a repressão, a guerra e
genas transmitiram para suas gerações as
o desrespeito à vida dos indígenas, foram
ações desse administrador português?
desencadeados por suas ações.
Criar imagens dos administradores
(...) veio recado ao governador como portugueses como heróis significa valori-
o gentio Tupiniquim da capitania de zar histórias de guerras, com exaltação de
Ilhéus se alevantava e tinha morto mui- façanhas dos vencedores, em contexto de
tos cristãos e destruído e queimado os conflito. Mas, quais são as intenções e as
engenhos (...) fui com pouca gente que me
consequências de predominar essas abor-
seguiu e, na noite que entrei em Ilhéus,
dagens no ensino? Com essas histórias,
fui a pé dar numa aldeia que estava a
sete légua da vila, (...) e, antes da manhã quem se pretende formar? Quais os valores
duas horas, dei na aldeia e a destruí e estão sendo ensinados?
matei todos os que quiseram resistir e na A seleção de temas históricos para se-
vinda vim queimando destruindo todas rem ensinados na escola depende de cada
as aldeias que ficaram atrás e porque o contexto histórico no qual vivemos e das
gentio se ajuntou e me veio seguindo ao finalidades educativas. A questão é consi-
longo da praia, lhes fiz algumas ciladas
derar, diante da realidade contemporânea,
onde o cerquei e lhes foi forçado deita-
quais histórias podem contribuir para for-
rem-se a nado no mar de costa brava.
Mandei outros índios atrás deles e gente mar as novas gerações. E, nesse caso, po-
solta que o seguiram perto de duas léguas demos escolher diferentes abordagens que
e lá no mar, pelejaram de maneira que atendam às questões atuais. Podemos, en-
nenhum tupiniquim ficou vivo, e todos os tão, acrescentar: quais histórias não têm
trouxeram a terra e os puseram ao longo sido contadas? Há a possibilidade de es-

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tudar história de modo invertido, na con- Mas, o que dificultava para o governo é
tramão do olhar dominante, da posição de que nosso povo, apesar de falar a mesma
não poder, de ações roubadas pelo peso da língua, nosso povo tinha costumes diferen-
arbitrariedade? Como fazer para inverter, tes, tinha índio que gostava de ficar na
disputar a palavra, a razão, abrir espaços margem do rio, tinha gente que gostava
para a voz de grupos silenciados? de ficar mais retirado um pouquinho para
caçar, comer caratinga, que é uma batata
A história dos povos indígenas no Bra- que hoje já não tem mais, e isso foi difícil
sil precisa de espaços para ser contada. E para o pessoal do SPI. Então, como as
têm sido importantes as ações dos inúme- coisas foram se tornando difíceis e a estra-
ros povos no compromisso de fazer uso da tinha que ser construída, as questões
dos diferentes meios de comunicação para começaram a ser mais baseadas na força,
relatar as histórias que não tem chegado e na questão do extermínio mesmo, mas-
às salas de aula. No vídeo Guerra sem fim – sacre, porque o povo resistia.
Resistência e luta do povo Krenac (2016)2, por Douglas Krenac. Guerra sem fim – Resis-
tência e luta do povo Krenac (vídeo), 2016.3
exemplo, Douglas Krenac conta como o
Serviço de Proteção ao Índio – SPI, agia para Para entender algumas questões his-
deslocar os indígenas de seus territórios, tóricas citadas por Douglas Krenac, há a
quando estavam no caminho dos planos possibilidade de estudar as políticas colo-
econômicos dos governos. Nesse caso, faz niais de agrupamento dos indígenas em al-
referência ao deslocamento forçado dos deamentos (citados na fala como “aldeias”),
Krenac, na primeira década do século gerenciados pelos padres jesuítas desde o
XX, para que a ferrovia Vitória-Minas século XVI, que perduraram oficialmente
pudesse ser construída. até 1755, quando o Marques de Pombal ex-
pulsou os religiosos. E, mesmo tendo sido
(...) Foi por volta de 1910, que o SPI os aldeamentos transformados em vilas ou
veio contactar nosso povo para liberar a diretórios, muitos permaneceram nesse for-
estrada de ferro Vitória-Minas. E isso mato até o século XX.
foram por muitos anos esse embate. E aí
o SPI fez várias manobras. Essa questão A história dos Krenac pode ser estuda-
de colocar o índio em aldeia, isso aí foi da na escola, assim como de muitos outros
uma manobra militar, antiga isso. Hoje, povos indígenas, tanto para destacar a di-
a aldeia é vista para muitas pessoas como versidade cultural brasileira, para proble-
um lugar onde os índios ficam. Mas, a matizar os contatos interculturais, como
aldeia é na verdade uma represaria cria- também demarcar os contextos mais ma-
da pelo não indígena. Para nós, para o cros da expansão territorial, promovida
índio não tem cerca. Mas, hoje existe até pelas políticas econômicas dos governan-
por causa de uma questão histórica. Nos- tes, que desencadearam conflitos e ações
so povo era dividido em subgrupos, eram agressivas de expulsão territorial das popu-
vários grupos nas margens do rio Doce. lações nativas.
Então, para atrair esse pessoal para um
local só era muito complicado. Tinha que A análise histórica pode contribuir,
ter alguém falando a língua fluente e ter assim, para evidenciar as causas profun-
alguém de confiança do governo para fa- das, enraizadas, naturalizadas, que soli-
zer que esse povo viesse para um lugar só, dificaram as muralhas que impedem visu-
para liberar o acesso da estrada do ferro. alizar as estruturas opressivas. É possível

2 Documentário produzido pela Unnova Produções em parceria com o Ministério Público Federal
(MPF - 6CCR; PR-MG; PRR 3ª Região) com apoio da Associação Nacional dos Procuradores da República
(ANPR) e da ANDHEP. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DfkGVfkJpAM.
3 Idem.

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desconstruir, desmontar alicerces para O que desencadeou o
transparecer os meios, as ações, os pode- estopim do movimen-
res trançados no cotidiano. to foi mais um vio-
Muitas vezes, unicamente as narrativas lento castigo -
didáticas assumem as responsabilidades 250 chibatadas
por formar os estudantes. Todavia, escolher a um marinheiro
documentos que deem oportunidade para do Encouraçado Mi-
diferentes vozes silenciadas, contribui para nas Gerais. Em carta en-
ampliar a compreensão das relações de viada aos jornais do Rio de Ja-
poder estabelecidas em determinados con- neiro, um marinheiro escreveu:
textos. Na história da Primeira República,
por exemplo, houve um acontecimento que Ilustrado sr. Redator do Correio da Ma-
o jornal O País, do Rio de Janeiro, pediu nhã – É doloroso o fato que ora se pas-
para ser esquecido. sa na nossa marinha de guerra, mas, sr.
Redator, quem os culpados? Justamente
Sobre o levante da marinhagem, felizmente os superiores da referida Armada, esses
acabado, parece que o melhor é nada mais que deviam encarar os seus subordinados
dizer. O país só tem a lucrar com o silên- como homens servidores da pátria; pelo
cio geral sobre esse fato. Na vida dos povos, contrário, eles são tratados como desprezí-
como na dos indivíduos, há lembranças que veis e sujeitos à simples falta, aos castigos
se desejaria apagar de todo, pela tristeza, mais rigorosos possíveis. Têm hoje como
pelo vexame, pela aflição que despertam. símbolo do martírio desses infelizes a pal-
Para o Brasil, a revolta dos marujos é uma matória, as algemas e o chicote, e tudo
delas. Não se pense mais nessa vergonha ou isto, ilustre sr. Redator, na marinha, que
nesse infortúnio. conforma os planos do sr. Ex-ministro di-
O País, Rio de Janeiro, 28 de novem- zia civilizar-se. A escravidão terminou-se
bro de 1910. a 13 de maio de 1888, com a áurea lei da
liberdade, e os oficiais da nossa marinha
Para a elite da época, o desejo de igua- de guerra, conquanto as leis militares ti-
lar o país aos padrões civilizados solicitava vessem abolido estes castigos, não ligaram
o esquecimento da revolta, que colocou a importância às leis militares e à discipli-
capital ameaçada pelos canhões dos navios na, castigando os seus subordinados com
dominados pelos marinheiros, insatisfeitos o ódio com que os senhores castigavan os
por longos anos de maus tratos, e depois de maus escravos. Sr. Redator, é doloroso,
muitas tentativas pacíficas para pôr fim aos sim, ver-se a nossa marinha de hoje pas-
castigos. A vergonha incluía a insensibili- sar fome e todas as provações, pelo descaso
dade da marinha em ouvir sua tripulação dos comandantes de navios da Armada.
Com um pessoal resumido e sofredor, eles
e por ter o governo capitulado em situação
querem o serviço feito a tempo e hora, sem
de guerra - se rendido aos revoltosos. E,
encarar o cansaço, isto quando em viagens
junto com o acontecido, se impôs o silêncio longas, como se deu nestas vindas das
histórico das dificuldades dos marinheiros nossas unidades da Europa para aqui. Os
e o esquecimento dos líderes negros, pre- nossos pobres marinheiros e foguistas vie-
sos e condenados. A Revolta da Chibata foi ram como verdadeiros escravos, passando
duramente reprimida pelo governo. A cau- fome e sendo constantemente castigados
sa era justa: os marinheiros reivindicavam com os ferros, a chibata e o bolo. (...) O
melhores condições de trabalho e o fim dos verdadeiro navio negreiro. (...)Abaixo a
castigos físicos. No bilhete encaminhado chibata, as algemas e a palmatória. –
com suas demandas, escreveram: “Não Um marinheiro.
queremos fazer mal a ninguém. Pedimos Uma Carta. Correio da manhã, 26 de
apenas aumento de soldo sem chibata”. novembro de 1910.

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O líder da Revolta da Chibata foi João Nos outros paizes, a legislação vai progre-
Cândido, mais conhecido com Almirante dindo. Agora mesmo os Estados-Unidos
Negro. Foi preso e sobreviveu à tentativa de acabam de eleger a primeira deputada e de
assassinato na Ilha das Cobras em 1910, no confiar-lhe postos de alta responsabilidade
Rio de Janeiro. Em 1911, foi internado no em duas das mais importantes comissões
Hospital Nacional de Alienados, sob alega- da Camara. (...)
ção de loucura. Ficou preso por quase dois Revista Feminina. O voto feminino. N.
anos e, depois de muita resistência, foi ab- 39, São Paulo, 1917. (Esse documento
solvido pelo Conselho de Guerra e solto. faz parte do Kit Didático - Vozes Fe-
Outros silêncios da história estão rela- mininas: Mulheres falando para mu-
lheres de sua época – Disponível em:
cionados às histórias das mulheres. Poucas
http://lemad.fflch.usp.br/kits-didaticos)
são as suas histórias nos estudos escolares.
Mas, a luta das mulheres é muito antiga. Junto com a negação do direito político
Nem mesmo as professoras contam suas daquele contexto, estavam as preconcepções
histórias e de suas ancestrais quando assu- projetadas para o mundo feminino, que se
mem a palavra na sala de aula – silenciam estendeu por muito mais tempo. Em 1976, a
ou são silenciadas pelos conteúdos legiti- Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, orga-
mados pelos currículos oficiais. nizada para examinar a situação da mulher
Uma das lutas femininas conhecidas foi brasileira, convidou muitas estudiosas para
canalizada para a possibilidade de parti- que explicitassem “a posição de inferiorida-
cipar da vida política do país. E, desde a de atribuída à mulher em todos os setores da
metade do século XIX, as brasileiras luta- atividade humana, não somente no compor-
ram para isso. Manifestaram suas reivin- tamento e no relacionamento das pessoas”,
dicações por meio da batalha pelo direito mas também “através das convenções ou
ao voto. Mas, até a década de 1930, não instituições mais duradouras (família, por
puderam ir às urnas. exemplo), como no próprio ordenamento ju-
rídico da sociedade”.
Um homem analfabeto não pode votar.
A mulher, em escolas públicas, oficiais, Naquele contexto, na fala da pesquisa-
dá-lhe a instrucção precisa e ele adquire dora da Fundação Carlos Chagas, Carmen
imediatamente o direito de voto. No en- Lucia de Melo Barroso, a atuação das mu-
tanto, a professora, muito mais instruida lheres brasileiras era pouco visível, sendo
que ele, continúa a ser tida como incapaz ela responsável por jornada dupla de tra-
É um absurdo. balho, recebendo baixos salários, acumu-
lando atividade remunerada e responsável
Absurdo maior ainda é admitir a mulher-
sozinha pelas tarefas domésticas.
-advogado e não llhe reconhecer competên-
cia para votar! O seu criado, que mal sabe Não se pode afirmar que a mulher bra-
lêr e escrever, o réu que ela defende - po- sileira tenha estado ausente na tarefa de
dem votar. Ela, não! construção da riqueza do país. É verdade
Entre nós, a questão do sufrágio femi- que sua atuação tem sido pouco visível: se
nino parece antes uma questão de examinarmos os livros de história ou os
gracejo. jornais que registram a história contempo-
rânea, verificaremos que sua contribuição
Não é que os gracejos se-
é praticamente ignorada. E, no entanto,
jam novos e variados.
tem sido de sua exclusiva responsabilida-
Sempre que se trata
de a execução de funções imprescindíveis
deste assunto voltam as
à manutenção do trabalhador e sua prole.
mesmas pilherias e ha quem
Que aconteceria se ela se recusasse a cum-
se julgue infinitamente espirituo-
prir a sua jornada de trabalho como dona
zo, só porque as repete…
de casa e mãe de família? (...)

12
(...) mais assustadores são os dados que soas reais ou simbólicas. Aprende-se a ser
se escondem atrás daqueles números, homem e a ser mulher através de como se
mostrando que, quando sai de casa para viu e se ouviu comportarem-se, ou de como
exercer uma atividade remunerada, a se intuiu sentirem pessoas simbolicamente
mulher encontra ocupações menos grati- criadas através da imagem e do som. A
ficantes, menores oportunidades de reali- importância, e consequentemente a res-
zação profissional, salários mais baixos, ponsabilidade destas imagens criadas é
menos prestígio e condições de trabalho ainda mais acentuada quando se sabe que
piores que as do homem. (Além disso, é ao propagarem modelos de sentimentos,
importante acentuar que quase toda mu- atitudes e comportamentos, os meios de
lher que trabalha fora de casa, em nosso comunicação atuam como freios ou moto-
País, continua arcando sozinha com toda res de mudanças sociais. (...)
a responsabilidade das tarefas domésti- Todos os estudos concluem, de forma re-
cas, o que caracteriza uma dupla jornada petitiva e indignada, que a imagem dos
de trabalho.) papéis sexuais apresentada pelos diferen-
Carmen Lucia de Melo Barroso. Co- tes meios de comunicação, é estereotipada,
missão Parlamentar Mista de Inquérito. discriminando acintosamente a mulher.
CPI da Mulher. Brasília: Senado Fede- Ao homem são reservadas as imagens de
ral, 1978, p. 23. conquistador e de profissional, à mulher
Por sua vez, a apresentação feita pela são atribuídos principalmente os papéis
de sedutora, de dona de casa e de mãe.
professora Fúlvia Maria de Barros Mott
Fúlvia Maria de Barros Mott Rosem-
Rosember ressaltava a atuação dos meios
ber. Comissão Parlamentar Mista de Inqué-
de comunicação difundindo, por meio de rito. CPI da Mulher. Brasília: Senado
imagens e sons, modelos sociais e de com- Federal,1978, p.75.
portamento, que interferem na aprendiza-
Quantas dessas questões do passado
gem de papeis sociais e sexuais, com carac-
permanecem hoje em dia? Vale lembrar-se
terísticas estereotipadas e discriminatórias,
das redes sociais, das imagens que circulam
como, por um lado, a mulher sedutora e,
na internet e chegam, segundo a segundo,
por outro, a dona de casa. aos celulares, alimentando novas e antigas
(...) Nas sociedades atuais, os meios de co- reproduções de papéis femininos.
municação tornaram-se poderosos agentes Outra história pouco contada nas es-
educacionais, canalizando e ordenando a colas é a dos migrantes nordestinos que
informação, impingindo modas e modis- chegaram a São Paulo nas décadas de 1950
mos, esculpindo gostos e interesses de inú- de 1960, acompanhando o crescimento in-
meras pessoas. (...) dustrial e urbano da cidade. Poucas pesso-
Este bombardeio e esta concentração de as sabem sobre as dificuldades vividas nas
imagens não teriam tanta importância se viagens e como conseguiram sobreviver
ao lado da informação e do divertimen- longe de casa. Quem conta algumas dessas
to os meios de comunicação não fossem histórias é a geógrafa Ely Souza Estrela, na
poderosos professores, não fossem agentes sua dissertação de Mestrado, Os sampaulei-
do processo de socialização, não trans-
ros: cotidiano e representações.
mitissem modelos de comportamentos e
de sentimentos a serem imitados. Mas é Ela conta como muitos migrantes re-
exatamente o contrário que vêm afirmando cém-chegados eram encaminhados para
os psicólogos sociais: a aprendizagem de a Hospedaria dos Imigrantes. Lá, eram
papéis sociais, isto é, a maneira de com- verificadas a documentação, as condições
portar-se e de sentir-se enquanto membro de saúde e questionados sobre o local para
de uma sociedade, ocorre não apenas por onde queriam seguir. A exigência da do-
meio da ação de reforços e de punições, de cumentação consistia em um problema.
prêmios e castigos, como também por meio Os pequenos e isolados municípios do
da observação dos comportamentos de pes- interior do Brasil não contavam, naque-

13
la época, com cartórios de registro civil e certo. Medo da perdição. Medo da fome.
isso dificultava que a população tivesse re- Vergonha de retomarem em condições
gistro de nascimento. Desse modo, naque- muito piores do que quando partiram. Se
le tempo, muitos brasileiros viviam sem na chegada não encontrassem o parente ou
saber ao certo a data de seu nascimento. amigo que se havia comprometido a bus-
Assim, muitos só foram registrados quan- cá-los no ponto de desembarque, ficavam
do atingiram a maioridade. completamente desorientados e se sentiam
O deslocamento até São Paulo era feito como que órfãos. E muitos eram vítimas
por conta própria. Um migrante arrastava de roubos nas estações de embarque e de-
o outro e assim sucessivamente. Isso era ne- sembarque. Para começar a vida na cidade,
cessário porque a luta pela moradia e pelo dependiam assim da experiência daqueles
emprego era difícil e penosa, exigindo do que vieram antes. De modo solidário, eles
recém-chegado habilidades que muitos não ajudavam os recém-chegados a conseguir
traziam consigo. Ely conta, por exemplo, moradia e trabalho.
que os recém-chegados sentiam uma espé-
cie de abismo entre o mundo que deixaram Diante das inúmeras questões coti-
e o novo mundo que agora lhes cabia co- dianas, é importante saber que a história
nhecer e dominar. Enfim, tudo era estra- admite muitas e outras histórias. A diver-
nho ao recém-chegado. Tudo lhe causava sidade de histórias democratiza o passado,
assombro e insegurança. A vida no novo escancarando aquelas que não têm sido
ambiente causava também medo e incerte- contadas. Podem tornar plural o passado
za. Medo do desconhecido. Medo do desa- para o presente também ser plural.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: ma-
gia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 222 – 232. (Obras escolhidas, v. 1).

ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros cotidiano e representações. São Paulo: EDUC/


FFLCH, 1999.

MAESTRI, Mário. Cisnes negros: uma história da revolta da chibata. Porto Alegre: FMC Em-
preendimentos e Editora Ltda, 2014. (Coleção Brasil República, 2).

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.


2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimen-
to_silencio.pdf. Acesso em: 13 abr. 2021.

14
Ilustração: Cassiana Paula Cominato

Patrimônio Cultural:
nossa herança africana
as possibilidades de efetivação da Lei nº 10.639/03 com
turmas de 7º ano na Rede Municipal de Ensino de São Paulo

Adriana de Carvalho Alves Braga


Professora de Ensino Fundamental II e Médio – História
EMEF Professora Lilian Maso – DRE Freguesia/Brasilândia
RESUMO

O
texto consiste no relato de uma experiência pedagógica re-
alizada junto a estudantes do 7º ano do Ensino Fundamen-
tal II, em uma escola municipal da cidade de São Paulo.
Com o objetivo de possibilitar o reconhecimento e a valori-
zação da contribuição dos povos africanos à formação da sociedade brasileira,
desenvolvemos a sequência didática Patrimônio cultural: nossa herança africa-
na, fundamentada teoricamente no escopo da Educação para as Relações Ét-
nico-raciais (GOMES, 2012; MUNANGA, 2013; QUIJANO, 2005). O traba-
lho pedagógico se alicerçou nas tipologias do conteúdo propostas por Zabala
(1998), que foram metodologicamente transpostas, cujos conteúdos foram or-
ganizados em: factuais, através da relação entre o Brasil e a África; conceitual:
o Brasil como país afrodiaspórico; atitudinal: valorar a influência africana na
formação do Brasil e; procedimental: responder aos desafios, jogar, pesquisar,
desenhar, dividir tarefas em grupo. As ações expostas se vinculam à efetivação
da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003) e articularam elementos da cultura ma-
terial e cultura imaterial, buscando promover o reconhecimento e valorização
dos saberes produzidos no continente africano e suas manifestações na história
e cultura brasileira, formando nosso patrimônio cultural.

Palavras-chave: Educação para as Relações Étnico-raciais; Ensino de História; Lei nº


10.639/03; Práticas pedagógicas decoloniais.

16
Educação para as relações
étnico-raciais: um breve
olhar para os desafios

O ensino de História e Cultura Afri- somam-se outras problemáticas, tais como


cana e Afro-brasileira na escola, conforme a necessidade de superação de um ensino
determina a Lei nº 10.639/03 (BRASIL, focado no livro didático e a necessidade
2003), é uma das ações afirmativas que de proporcionar experiências educativas
compõe um conjunto de ações institucio- que possibilitem ao estudante valorar a
nalizadas pelo Estado, fruto das lutas do influência africana na formação do Brasil.
movimento negro, com objetivo de buscar Buscando romper com a perspectiva euro-
a equidade, sobretudo contribuir para a centrada de currículo, tenho desenvolvido
construção de uma autoimagem positiva algumas ações que permitam, aos estudan-
dos estudantes negros. Passados 17 anos da tes, estabelecer a relação cultural entre o
promulgação dessa legislação, que propõe Brasil e a África, atribuindo significado e
alterações substancias no currículo, pode- valor à nossa matriz africana.
mos verificar que esse tema ainda apre-
Como professora negra de pele clara, tra-
senta alguns obstáculos. Um levantamento
go na minha memória escolar diversas passa-
realizado pelo CEERT apontou que mui-
gens em que a África e a população africana
tos dos desafios para a implementação da
e afro-brasileira foi apresentada de modo bas-
legislação estavam vinculados à defasagem
tante deturpado e carregado de estereótipos.
na formação inicial e continuada dos pro-
Recordo-me, inclusive, do medo que senti de
fessores, à dificuldade no acesso a materiais
Zumbi de Palmares por conta de uma ilus-
didáticos e até mesmo o questionamento,
tração no livro didático. Acreditando que
por parte dos professores, da obrigatorie-
as imagens, os conceitos e os contextos so-
dade de tal ensino (MALACHIAS et al.,
cioculturais apresentados aos estudantes são
2010, 159). Os resultados da não efetivação
primordiais para a formação da representa-
da Lei nº 10.639/03 é um ensino descolado
ção positiva, nos meses iniciais do ano letivo
das exigências previstas na legislação, que
de 2020 desenvolvi uma sequência didática
não dialoga com a realidade e necessidade
dedicada a estudar, a partir dos conceitos de
dos estudantes e mantém uma perspectiva
cultura material e cultura imaterial, alguns
monocultural e eurocêntrica de currículo.
elementos culturais que aproximam o Brasil
Na atuação junto aos estudantes dos do continente africano. À época, intitulamos
anos finais do Ensino Fundamental, le- essa sequência didática de Patrimônio cultu-
cionando a disciplina de História em es- ral: nossa herança africana e as atividades fo-
colas públicas da cidade de São Paulo, ram desenvolvidas com estudantes do 7º ano
foi possível constatar que a esses desafios, do Ensino Fundamental.

17
Em relação às normativas curriculares, referências culturais na vida brasileira”
a ação desenvolvida se vincula aos Obje- (SÃO PAULO, 2019, p. 90). Considerando
tivos de Aprendizagem e Desenvolvimento as possibilidades de alargamento cultural,
presentes no Currículo da Cidade (SÃO o protagonismo e diálogo com o contexto
PAULO, 2019) para o 7º ano na disciplina social, as ações privilegiaram a abordagem
de História, que sugere que sejam constru-
interdisciplinar – por meio de estudos da
ídas abordagens do ensino que possibilitem
língua e das artes visuais - e os métodos de
ao estudante “Conhecer e refletir sobre a
diversidade das populações africanas tra- ensino ativos, tais como e a resolução de
zidas ao Brasil e a disseminação de suas desafios e a pesquisa em grupo.

1 - As bases históricas da Lei nº 10.639/03,


o currículo escolar e relações étnico-raciais

O colonialismo, que forjou a história Esse sistema de classificação, no qual


brasileira se consolidou de tal forma que identidades são racializadas e submetidas
sua racionalidade, a colonialidade, perma- a uma determinada hierarquização, inci-
neceu nas estruturas sociais, condicionan- diu também na construção subjetiva dos
do não apenas as relações políticas, mas ou- indivíduos. A esse respeito, Almeida (2020)
tras esferas da dimensão dos sujeitos. Para afirma que “a vida cultural e política no in-
Quijano (2005), a consolidação do projeto terior da qual os indivíduos se reconhecem
colonial na América Latina estruturou-se como sujeitos autoconscientes e o modo
sobre dois elementos primordiais, raça e como formam seus afetos são constituídas
capitalismo, sendo que a raça é atribuída por padrões de clivagem racial inseridos no
a função de estabelecer o padrão de poder imaginário e em práticas sociais cotidia-
mundial. Sobre a formação de relações so- nas” (ALMEIDA, 2020, p. 64).
ciais fundadas na ideia de raça, afirma
É a colonialidade do saber que nos
afasta dos saberes produzidos em outras
(...) na medida em que as relações sociais
partes do mundo e é isso que justifica, por
que se estavam configurando eram relações
exemplo, a permanência de visões estere-
de dominação, tais identidades foram as- otipadas sobre o continente africano. É
sociadas às hierarquias, lugares e papéis a essa perspectiva de colonialidade que
sociais correspondentes, com constitutivas a Lei nº 10.639/03 visa combater. Fruto
delas, e, conseqüentemente, ao padrão de da luta dos movimentos sociais, as nor-
dominação que se impunha. Em outras mativas relacionadas à Educação para as
palavras, raça e identidade racial fo- Relações Étnico-raciais1 propõe um giro
ram estabelecidas como instrumentos de decolonial, por meio da incorporação da
classificação social básica da população história e cultura desses sujeitos racializa-
(QUIJANO, 2005, p. 117). dos à cultura escolar.

1 Essas normativas são: a Lei nº 10.639/03, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Re-
lações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e os pareceres do Conselho
Nacional de Educação vinculados à essa legislação.

18
Essa demanda, destinada aos sistemas Quanto mais se amplia o direito à educa-
de ensino, escolas e professores, respon- ção, quanto mais se universaliza a edu-
de às reivindicações de políticas de ações cação básica e se democratiza o acesso
afirmativas, reparações, reconhecimento e ao ensino superior, mais entram para o
valorização de histórias, culturas e iden- espaço escolar sujeitos antes invisibili-
tidades dos movimentos sociais negros. zados ou desconsiderados como sujeitos
Busca combater o racismo a partir do de conhecimento. Eles chegam com os
reconhecimento estatal e propõe a divul- seus conhecimentos, demandas políticas,
gação e a produção de conhecimentos que valores, corporeidade, condições de vida,
eduquem cidadãos orgulhosos de seu per- sofrimentos e vitórias. Questionam nossos
tencimento étnico com direitos garantidos currículos colonizados e colonizadores e
e identidades valorizadas (CANDAU; exigem propostas emancipatórias. Quais
OLIVEIRA, 2010, p. 32). são as respostas epistemológicas do cam-
po da educação a esse movimento? (GO-
A demanda não se restringe apenas a MES, 2012, p. 99)
uma revisão curricular, mas traz elemen-
tos que podem contribuir para uma cons- A valorização dos saberes que a auto-
trução subjetiva positivada. De acordo ra menciona está intrinsecamente relacio-
com Candau e Oliveira (2010) o reconhe- nada a percepção de que são esses sujeitos
cimento está vinculado a “desconstruir o racializados que tensionam a cultura esco-
mito da democracia racial; adotar estraté- lar, exigindo respostas que contemplem a
gias pedagógicas de valorização da dife- diversidade desse espaço. Ao questionar se
rença; reforçar a luta antirracista e ques- “é possível educar para a diversidade em
tionar as relações étnico-raciais baseadas uma sociedade marcada pelo colonialismo,
em preconceitos e comportamentos dis- pelo capitalismo, pelo machismo e pelo ra-
criminatórios” (CANDAU; OLIVEIRA, cismo?”, Gomes (2017, p. 43) interpela qual
2010, p. 32). espaço educativo é ocupado pelos movi-
mentos sociais na escola. A reflexão sobre o
Outro elemento imprescindível a esta
currículo e as políticas educacionais que os
discussão é a compreensão de que o cur-
geram não pode tergiversar dessa presença.
rículo escolar não é neutro: é território em
disputa. Nessa disputa, os saberes africanos Para Munanga (2013), o reconheci-
e afrodiaspóricos têm sido deixados de lado mento oficial e público das diversidades é
quando o conhecimento historicamen- uma das estratégias de combate ao racis-
te acumulado é ensinado aos estudantes. mo, no entanto
Considerando que “o trabalho educativo
é o ato de produzir, direta e intencional- “[...] a questão fundamental que se colo-
mente, em cada indivíduo singular, a hu- ca hoje é o reconhecimento oficial e públi-
manidade que é produzida histórica e co- co dessas diversidades, que ainda estão
letivamente pelo conjunto dos homens” sendo tratadas desigualmente no sistema
(SAVIANI, 2008, p. 13), cabe questionar educacional brasileiro, além de os por-
as lacunas produzidas nesse percurso, espe- tadores dessas identidades de resistência
serem também vítimas dos preconceitos
cialmente aquelas relacionadas aos saberes
e da discriminação racial, até da segre-
produzidos no continente africano.
gação racial de fato.” (MUNANGA,
Para Gomes (2012), a necessidade de 2013, p. 22)
articular esses saberes de forma sistema-
tizada no percurso formativo dos estu- Ao eleger o patrimônio ofertado pela
dantes emerge, principalmente, a partir matriz afro-brasileira para tratar das ques-
da universalização do acesso à educação. tões referentes à Educação para as Rela-
Para a pesquisadora ções Étnico-raciais, temos como propósito

19
incidir sobre a formação cidadã dos estu- no âmbito da formação cidadã e do direito
dantes, de modo que esses reconheçam e à memória, se convertendo em um dos ob-
valorizem a contribuição dos povos africa- jetos de ensino. Considerando os objetivos
nos para a construção da sociedade brasi- almejados ao tratar da produção histórica
leira. A esse respeito, Oriá (2008) pondera e cultural de sujeitos racializados, acredita-
mos que a realização do trabalho pedagó-
Considerar a preservação do patrimônio gico que apresentaremos a seguir cumpre
histórico como uma questão de cidadania essa função ao possibilitar a reflexão so-
implica reconhecer que, como cidadãos, bre o reconhecimento da contribuição dos
temos o direito à memória, mas também povos africanos à formação da sociedade
o dever de contribuir para a manuten- brasileira. Para as Diretrizes Curriculares
ção desse rico e valioso acervo cultural Nacionais para a Educação das Relações
de nosso país. Ademais, por admitirmos Étnico-Raciais e para o Ensino de Histó-
o papel fundamental da instituição esco- ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
lar no exercício e formação da cidadania
o reconhecimento “requer a adoção de
de nossas crianças, jovens e adolescen-
políticas educacionais e de estratégias pe-
tes, é que defendemos a necessidade de
que a temática do patrimônio histórico dagógicas de valorização da diversidade, a
seja apropriada como objeto de estudo no fim de superar a desigualdade étnicoracial
processo ensino-aprendizagem (ORIÁ, presente na educação escolar brasileira,
2008, p. 140). nos diferentes níveis de ensino” (BRASIL,
2004, p. 12) e as ações que apresentaremos
Nessa perspectiva, a discussão do patri- a seguir tiveram por propósito atender a
mônio e sua inclusão ao currículo se situa determinação legal.

2 - Caminhos metodológicos

A sequência didática Patrimônio cultu- conteúdos conceituais seriam um conjunto


ral: nossa herança africana foi alicerçada no de fatos, objetos ou símbolos que têm ca-
referencial epistemológico da Educação racterísticas comuns, cujos princípios se re-
para as Relações Étnico-raciais, organiza- ferem a mudanças que se reproduzem num
da metodologicamente em uma sequência fato, objeto ou situação em relação a outros
didática e fundamentada conceitualmente fatos, objetos ou situações e e que, normal-
nas tipologias do conteúdo, propostas por mente, descrevem relações de causa-efeito
Zabala (1998). Para organizar os conte- ou de correlação; os conteúdos procedimen-
údos de ensino, utilizamos a metodologia tais se referem à concretização de ações or-
da sequência didática, que é definida por denadas com vistas a atingir um objetivo,
Zabala (1998, p. 53) como “série ordenada como o domínio de regras, técnicas, méto-
e articulada de atividades que formam as dos, destrezas etc.; os conteúdos atitudinais
unidades didáticas”. estão relacionados a valores, atitudes e com-
preensão das normas sociais (ZABALA,
Nessa abordagem, para a finalidade de
1998, p. 42-47).
organização do trabalho pedagógico, os
conteúdos são definidos como factuais, con- Considerando essa abordagem, de-
ceituais, atitudinais e procedimentais. Os senvolvemos um conjunto de atividades
conteúdos factuais se vinculam aos fatos; os sequenciais que contemplam o conteúdo

20
factual (entender a relação Brasil x África), à Rede Municipal de Ensino de São Paulo
conceitual (outorgar de significado à ideia (RMESP), na região da Vila Brasilândia e
do Brasil como afrodiaspórico), atitudinal os participantes foram três turmas de estu-
(valorar a influência africana na forma- dantes do 7º ano do Ensino Fundamental.
ção do Brasil) e procedimental (apropria- Um elemento que facilitou a realização des-
ção dos procedimentos em cada etapa, tais sa ação foi o fato de eu ter acompanhado as
como responder ao desafio, jogar, pesqui- três turmas no 6º ano, quando alguns dos
sar, desenhar, dividir tarefas em grupo). pré-requisitos já haviam sido desenvolvidos
As atividades foram desenvolvidas na em situações de aprendizagens anteriores,
EMEF Professora Lilian Maso, vinculada como a sociodiversidade africana.

3 - Construindo possibilidades: relato da


sequência didática

A sequência didática foi iniciada na pri- elementos da formação do Império,


meira semana do mês de fevereiro de 2020 unificado por Sundiata Keita - em
e as primeiras atividades foram de revisão seus aspectos políticos e econômi-
dos conteúdos aprendidos no ano anterior, cos desvelamos, por meio da pro-
especialmente no que se referiu aos reinos dução cultural de Salif Keita, as
e impérios africanos. Nesse momento, re- teias dessa história. Foram apre-
organizamos os conhecimentos a partir de sentados, aos estudantes, alguns
regiões culturais do continente africano e videoclipes com canções de Sa-
destacamos a África Subsaariana e o Nor- lif Keita, um texto biográfico e
te da África. Para esse trabalho, os pro- uma entrevista2 realizada com o
cedimentos foram a leitura e discussão de músico, na qual ele narra a ex-
textos selecionados pela professora, como periência de ser descendente de
os de localização e interpretação e análise Sundiata Keita, discorre sobre o
de mapas. A respeito do trabalho com os preconceito por ser uma pessoa
mapas, é relevante destacar que foram dis- albina e discute os significados da
ponibilizados mapas contemporâneos, e os nobreza no mundo contemporâ-
exercícios consistiram em situar os reinos e neo. As atividades na sala de aula
impérios sobre as fronteiras dos atuais Es- foram sonorizadas com as músicas
tados africanos, proporcionando a reflexão do álbum La Différence (SALIF KE-
sobre essa Geografia como constructo his- ITA, 2010), que os estudantes ouviram
tórico do colonialismo europeu. enquanto realizavam as atividades.
Aprofundamos o estudo do Mali, e Após essa revisão e reorganização dos
sendo que a estratégia utilizada foi recu- conhecimentos, iniciamos as atividades da
perar os elementos históricos da formação sequência didática “Patrimônio cultural:
do Império articulando à produção cul- nossa herança africana”, cuja sistematização
tural contemporânea. Além de estudar os apresentamos no quadro a seguir.

2 A reportagem utilizada foi “Herdeiro do Império Mali, cantor albino Salif Keita luta contra o preconcei-
to”, disponível no link https://www1.folha.uol.com.br/serafina/2013/07/1302415-herdeiro-do-imperio-mali-can-
tor-albino-salif-keita-luta-contra-o-preconceito.shtml (Acesso em: 27 dez. 2020).

21
Quadro 1 – Sistematização das ações da sequência didática Patrimônio cultural: nossa
herança africana

Etapa Eixo Duração Fato Conceito Atitude Procedimento


temático
Aplicar os concei-
Cultura material e Patrimônio Cultura e Valorizar o patri-
1º 2 aulas tos ao contexto
cultura imaterial cultural Patrimônio mônio cultural
conhecido

Palavras do Valorizar a
Cultura imaterial: português linguagem como Resolução de
2ª 4 aulas Cultura imaterial
a língua brasileiro de construção desafio e bingo
origem africana histórica

Conhecer
Cultura material:
Máscaras em e distinguir
3ª as máscaras 4 aulas Cultura material Pesquisa em grupo
contexto étnico a produção
africanas
artística africana

Confeccionan-
do máscaras Exercitar a auto-
(interrompida por Produção de ria, criatividade Realizados: obser-
4ª Prevista: 6 aulas Cultura material
conta da suspen- máscaras e a produção vação e desenho.
são das aulas artística
presenciais)

Fonte: Elaboração da autora

Cabe destacar a diversidade presente superiores, bem como o corpo de forma


nas três turmas, caracterizada especial- global, destaca-se que o estudante tem o
mente por diferentes níveis de leitura e cognitivo preservado, compreendendo as
escrita e pela presença de estudantes com comandas e orientações. Essas característi-
deficiência. Um dos estudantes tem hidro- cas demandaram que, no planejamento das
cefalia, o que lhe causa limitação física, ações, houvesse a adaptação curricular, de
dificuldade de memorização e de comuni- modo que todos pudessem participar e ser
cação oral, mas realiza as atividades pro-
incluídos. Outro elemento importante foi
postas, é animado e interessado em apren-
o processo de avaliação das aprendizagens
der e gosta muito de músicas. Já o outro
e, a esse respeito, consideramos pertinente
estudante tem deficiência física, o que afeta
realizar a avaliação formativa no decorrer
a coordenação motora ampla, necessitan-
do de apoio e intervenções para realizar do processo, por meio da estratégia da au-
atividades que exijam o uso dos membros toavaliação ao término de cada etapa.

22
3.1 - Compreendendo o conceito de
cultura material e imaterial

Com duração de duas aulas, essa eta- lizamos a leitura de texto3 editado pela
pa foi dedicada a compreender os concei- professora com os conceitos e discutimos
tos de cultura material e imaterial. Rea- alguns exemplos.

3.2 - Cultura imaterial: a língua

A segunda etapa foi dedicada à discus- nificam socialmente alguns termos, tais
são da cultura imaterial, especialmente como cafuné, dengo, banguela e em quais
por meio da exposição da influência das contextos nós os utilizamos.
línguas africanas na língua portuguesa fa- O terceiro momento consistiu em uma
lada no Brasil. Com atividades de leitura e atividade lúdica, que nomeei “Bingo das
reflexão em grupo, foram propostos exer- palavras”. Considerando as palavras estu-
cícios de estudo sobre a língua. A partir de dadas na atividade anterior, os estudantes
um banco de palavras, os estudantes infe- selecionaram 9 dessas e escreveram em
riram o significado ao significante, sendo uma ficha de papel demarcada, que cum-
que todas as palavras selecionadas para a priu a função de cartela de bingo. A pro-
atividade tinham origem em idiomas afri- fessora fez o sorteio da palavra e, ao passo
canos. Na discussão com a turma, pergun- que os estudantes eram contemplados e
tei quais palavras eram conhecidas, quais gritavam “bingo”, tinham que dizer o que
eles nunca tinham ouvido falar, o que sig- aquela palavra significava.

Imagem 1 – Atividade da 2ª etapa: banco de palavras e cartela do bingo.

Fonte: Acervo da autora

3 Para tratar desses conceitos, foram utilizadas informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (IPHAN), órgão vinculado ao governo federal que tem por missão proteger e promover os bens
culturais. Através da pesquisa no site http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218, selecionei e editei os textos
que foram utilizados na aula.

23
3.3 - Cultura material: as máscaras africanas

A terceira etapa teve como propósito em geral, e aprofundamos para o tema das
exemplificar o conceito de cultura material máscaras das sociedades africanas.
por meio do estudo e confecção de másca- Em grupos, os estudantes realizaram
ras africanas. Iniciamos as atividades dis- pesquisa no livro Arte Africana (FEIST,
cutindo o significado social das máscaras 2010) a partir de um roteiro de análise,
com o suporte de um texto4. No período de modo que subtraíssem do material in-
em que a sequência didática foi realizada, formações como: os materiais comumente
o uso de máscaras como bloqueio para evi- empregados na elaboração das máscaras
tar a contaminação por COVID-19 ainda africanas, as cores que se sobressaem, os
não era uma orientação no Brasil, apesar significados sociais, os grupos étnicos e os
disso, os estudantes trouxeram essa discus- contextos de uso das máscaras apresenta-
são. Tratamos do uso social das máscaras, das no livro.

Imagem 2 – Atividade da 2ª etapa: pesquisa no livro Arte Africana

Fonte: Acervo da autora.

4 Um dos textos base para essa discussão foi “As Máscaras Africanas”, disponível em: https://www.gele-
des.org.br/mascaras-africanas/ Acesso em: 27 dez. 2020.

24
3.4 - Confeccionando máscaras: interrompida
em virtude da pandemia

Para iniciar o trabalho com as másca- africano e percebessem como essa se reflete
ras, realizei uma pesquisa sobre as más- na produção material.
caras elaboradas por alguns grupos étni-
Em grupos, os estudantes escolheram
cos do continente africano e reuni em um
um exemplar de máscara para confeccio-
conjunto de três amostras: Iorubá (Nigéria
nar. Para a produção da máscara a partir
e Benin), Baule (Costa do Marfim) e Dan
do exemplar disponibilizado pela professo-
(Costa do Marfim). Foram selecionadas
doze máscaras e as imagens impressas jun- ra, era imprescindível observar a imagem,
tamente com um pequeno texto informati- buscando discernir: o tipo de material uti-
vo sobre seu contexto de uso e apresenta- lizado, o formato, as cores, os detalhes em
das aos estudantes. Essa contextualização relevo e os adornos. Para agir com pre-
foi fundamental para que eles compreen- cisão, realizaram o decalque da máscara
dessem a diversidade étnica do continente escolhida em papel vegetal.

Imagem 3 – Exemplar de máscara Iorubá e o decalque realizado pelo grupo 3.

Fonte: Acervo da autora

Em virtude da suspensão das aulas de 2020. No momento da interrupção, já


presenciais na Rede Municipal de ensi- tínhamos dado passos importantes para a
no de São Paulo mediante a pandemia de continuação do trabalho: havíamos sele-
COVID-19, essa sequência didática foi in- cionado os materiais que seriam utilizados
terrompida na segunda semana de março para a elaboração das máscaras (papel reu-

25
tilizado e cola, para a técnica da papela- lizados experimentos com a técnica de pa-
gem) e vasilhames de material de limpeza pelagem, verificando as camadas de papel
(que seriam utilizados como suporte para a necessárias para garantir a firmeza da peça
papelagem). Também já haviam sido rea- e a quantidade de materiais.

Considerações finais ou para


continuarmos pensando!

Neste texto, discutimos os conceitos condição indispensável para o acesso aos


referentes à Educação para as Relações conceitos fundamentais, é necessário que
Étnico-raciais por meio da exemplificação sejam construídas ações de valorização das
da sequência didática Patrimônio cultural: diferenças através do acesso aos bens cultu-
nossa herança africana, realizada junto a rais e reflexão sobre a influência africana na
estudantes do 7º ano do Ensino Fundamen- formação histórica, cultural, social e econô-
tal, em uma escola municipal da cidade de mica do Brasil. Para atender a essa deman-
São Paulo. As ações expostas se vinculam da, as ações pedagógicas realizadas na sala
à efetivação da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, de aula devem ser intencionalmente planeja-
2003) e articularam elementos da cultura das de modo a atender o dispositivo legal e
material e cultura imaterial, buscando pro- incidir sobre a formação das representações
mover o reconhecimento e valorização dos positivadas dos estudantes. Por esse motivo,
saberes produzidos no continente africano o acesso aos bens culturais e reflexão sobre
e sua intersecção com a cultura brasileira. os contextos de produção são primordiais
Para garantir a efetivação da Lei nº para a ampliação do repertório conceitual,
10.639/03, além da formação docente, dirimindo todas as manifestações.

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27
Imagem: Adobe Stock
Processos de acolhimento
a bebês, crianças e famílias
migrantes no espaço
da escola:
diálogo com o Currículo

Cristiane de Novais Almeida


Assistente de Direção
EMEI Professor Lourenço Filho – DRE Jaçanã/Tremembé
RESUMO

O
s movimentos de migração acontecem na sociedade desde
as primícias do tempo. O fluxo da migração ocorre na
História por diferentes motivos, entre eles podemos citar
a busca por melhores condições de vida; os conflitos de
gênero, religião, sexualidade. Atualmente, vivemos um cenário ainda maior
de fluxo migratório com toda a tragédia sanitária que ocorre, advinda da crise
da COVID-19. Existe um panorama mundial no qual se sustentam políticas
migratórias extremamente restritivas, que ferem o direito humano de migrar.
O presente trabalho visa elucidar vivências dentro de Unidades Educacionais
de Educação Infantil na rede municipal de São Paulo no que tange ao prin-
cípio curricular de acolhimento a crianças, bebês e suas famílias migrantes.
Para atender tais demandas dentro das Unidades Escolares tem-se dialogado
sobre materializações de práticas de acolhimento que contemplem direitos aos
migrantes. Por isso, é imprescindível conhecer tais práticas que compreendem
a migração à ótica dos direitos humanos, na busca de um viés mais humanitá-
rio que garanta inclusão social, empoderamento dos bebês, crianças e famílias
migrantes, efetivando, assim, a tão almejada equidade.

Palavras-chave: Acolhimento, Crianças, Migração.

29
Introdução

O chão da escola pública carrega em si necessária nas nossas ações educativas que
múltiplos sentidos. Cada bebê, criança, jo- desvelam o acolhimento enquanto método
vem ou adulto vivencia de uma maneira sin- permanente? O que se fazer para romper
gular/subjetiva as experiências e relações es- com padrões eurocêntricos, hegemônicos,
tabelecidas ou construídas nesse espaço, no entre e para além dos muros da escola?”.
tempo, nas possibilidades e nas interações.
É nesse chão, no cotidiano elaborado, [...] Portanto, todo território é um espaço
que as narrativas se desenvolveram. Escu- social em que forças econômicas, políticas,
culturais estão em permanente tensão, dis-
tamos os detalhes que se revelaram desde
putando a hegemonia. Os territórios estão
o primeiro contato, no ato do preenchi-
localizados em um espaço geográfico, um
mento de formulários padronizados para território em movimento — de coisas e de
efetivar a matrícula no Sistema de Escola pessoas (SÃO PAULO, 2019, p. 23-24).
On-line (EOL).
Os atores da escola pública necessitam As reflexões iniciaram dentro desse es-
ocupar-se de intencionalidades, de compreen- paço chamado “eu” e, de maneira gradual,
são sobre seu fazer, para, a partir daí, garanti- reverberaram trazendo mais interrogações
rem direitos a todos que a procurarem. É nesse e pistas inovadoras para o desenvolvimen-
momento que a materialização do Currículo da to de um projeto nosso estabelecido nesse
Cidade, organismo vivo, em movimento, que território.
integra a polifonia das vozes, precisa estar A Vila Maria é uma das regiões que
presente, oportunizando um acesso afetivo, mais recebe migrantes de diferentes partes
acolhedor e humanitário a todos que estão ou do mundo, principalmente da Bolívia. No
estarão inseridos na comunidade educativa. tocante à sua posição na relação de direto-
Foi a partir dessas reflexões e da pauta rias regionais de atendimento educacional
da observação das relações estabelecidas na Prefeitura do Município de São Paulo,
nas escolas por onde passei, além daquela permanece no segundo lugar entre as treze,
na qual atuo, que iniciei um ato perma- sendo o primeiro lugar ocupado pela DRE-
nente de ponderação: “quem são os bebês, -Penha.
crianças e famílias que atendemos? Como No ano de 2017, foi promulgada a nova
são acolhidos os que chegam nesse territó- Lei de Migração nº 13.445 (BRASIL,
rio da Zona Norte, DRE-Jaçanã/Tremem- 2017), com o objetivo de receber de manei-
bé, marcado pela presença diversificada de ra acolhedora e favorecer esses novos gru-
migrantes? Há lugar, de fato, que garanta pos que passam a fazer parte do território
suas vozes? Quais construções precisamos brasileiro e, por conseguinte, dos espaços
elaborar para demarcar a significante par- escolares do nosso país, cidade e bairro.
ticipação real e multifacetada das famílias Nos princípios e diretrizes dessa Lei cons-
que atendemos? Quanta sensibilidade é ta no art. 3º, XVII, de maneira evidente,

30
o direito “à proteção integral e atenção ao incluindo o seu, e o direito de regressar ao
superior interesse da criança e do adoles- seu país. (ONU, 1948).
cente migrante”.
Para o atendimento dessa realidade, Este artigo descreve sucintamente a
ações específicas precisaram ser conside- prática de acolhimento como uma atitude
radas nas intenções do nosso coletivo. Re- permanente, e um fato social. Convida a to-
desenhamos, então, o projeto político pe- dos os educadores a se inspirar e promover
dagógico considerando o fator da intensa práticas que envolvam os bebês, crianças e
presença desse fluxo migratório no nosso famílias num movimento de continuadas
território e o principal objetivo de garantir formas de convivência e solidariedade. Re-
atenção absoluta à criança migrante. corre, para tanto, à noção de comunidade
educativa na construção de vínculo diário,
Todos os seres humanos nascem livres e de respeito cultivado à vida e às práticas
iguais em dignidade e em direitos. Do-
educativas de combate à xenofobia, racis-
tados de razão e de consciência, devem
mo, discriminação e contra todo tipo de
agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade. Toda a pessoa tem o direito experiência que promova a separação, ex-
de abandonar o país em que se encontra, clusão e inferioridade nas relações sociais.

O que carregamos ou trazemos na mala:


migração como direito humano

Nesse início de Projeto, elencamos os nos fizeram pensar na perspectiva de ser-


marcos dos processos educativos que rein- mos migrantes e vivermos deslocamentos
ventamos: a receptividade das famílias e temporários ou efetivos em determinado
estudantes por meio de um acolhimento período da vida. Compreendemos que al-
buscando considerar atenção ao superior guns educadores migravam todos os dias,
interesse da criança; pautas formativas numa perspectiva pendular, pois transi-
de encontros com todos os educadores de tavam entre bairros distintos para chegar
diferentes funções que atuam na escola; à escola; outros, por sua vez, migravam
reinvenção do planejamento da equipe e numa perspectiva de deslocamento inter-
construção processual e participativa da no – chegaram de outros estados de dentro
documentação pedagógica. do Brasil em algum período da vida; havia
também a condição de migração interna-
Para atrair a participação dos educado-
cional de antepassados, na perspectiva de
res a esse Projeto e iniciar sensibilizando a
deslocamento territorial, na mudança ad-
equipe na compreensão dessa pauta, come-
vinda de outro país.
çamos a dinâmica com as perguntas “quem
somos? O que trazemos na mala ao migrar Essa experiência também foi multiplica-
para esse território e o que desejamos com- da na sala de referência1 das crianças. Para-
partilhar?”. Essas indagações mediadas fraseando Francesco Tonucci (1997), curioso

1 Espaço pensado e organizado com intencionalidade, destinado às crianças, para garantir o direito infantil
à convivência, à participação e à brincadeira.

31
ver com os “olhos de criança”, há sempre o na Vila Maria buscando refúgio, portas
que se encantar no cotidiano em suas com- abertas e uma esperança de dias e oportu-
panhias, suas elaborações e representação do nidades melhores. Conhecer por onde an-
sentimento de pertencimento: uma criança daram os pés das crianças que recebemos
brasileira trouxe um ovo de galinha na mo- na escola, pés que por vezes, estavam des-
chila, fantasiando ser um ovo de dinossau- calços e feridos, faz toda a diferença para o
ro. Essa partilha gerou rodas de conversas, desenvolvimento do acolhimento. Precisa-
aprendizagens e algumas oportunidades de mos escutar para conhecer como foi o mo-
acolhimento, pois sua fantasia se frustrou mento dessa travessia, isso se faz essencial
ao abrir a mochila e se deparar com o seu para o entendimento de muitos fatores. Há
“ovo de dinossauro” quebrado e constatar crianças que são separadas dos seus pais,
que se tratava de uma frágil casca de ovo de recolocadas em espaços físicos frios, sem
galinha. Foi acolhida pela professora e pelos alimentação adequada, gerando angústia
colegas da sala, que também se propuseram e insegurança. Há crianças que migram
a aprender um pouco mais sobre o processo para diferentes lugares antes de chegar
natural da vida animal. aqui, não brincam, não são abraçadas nem
tocadas com afeto, mas, pelo contrário, são
Outra criança, boliviana, quis partilhar
tratadas com diferentes tipos de violência.
alguns retalhos da oficina de costura de seus
Deixar brincar, alimentar, aquecer, ouvir,
familiares na representação de um “rio” que
ser sensível à dor do outro, ser interessa-
estavam construindo na sala. Abriu a mochi-
do pelas suas andanças e suas narrativas,
la e disse “Trouxe peixinhos para todo mun-
aproxima, ensina e salva.
do Pro”. A professora, vendo os retalhos, não
os associou à silhueta dos peixes aos quais Logo vou te encontrar. Mas a dúvida vai
ele se referia. Contudo, a criança, com olhos além de saber com que roupa eu vou.
de poesia, gentilmente ajudou a professora a Qual sorriso escolho? Preciso escolher que
olhar melhor e perceber a silhueta dos peixes. palavras vão estar na minha boca além da
Continuamos as pautas formativas e cor do batom? Qual a cor da minha voz
quando eu for dizer teu nome?
aprendemos sobre as modalidades de mi-
A única coisa que já me escolheu foi o bri-
gração, sobre o direito humano de migrar
lho dos meus olhos, este está em mim...
garantido na legislação e conhecemos as Mas o que mais me admira é escolher com
nossas próprias histórias, reais e de imen- qual coração eu vou. Posso levar meu co-
surável valor. Esse ato afetou a equipe ração partido e te pedir: conserta. Posso
com empatia e interesse por essa reali- levar meu coração cheio de abismos e te
dade social que vem crescendo dentro da pedir: salva-me.
nossa rede, produto do fluxo atenuante de Pensei em levar meu coração criança e te
deslocamentos populacionais ao longo da pedir: ensina-me. Mas trago meu coração
história, seja por questões de catástrofes vazio e te convido... Entra.
ambientais, vulnerabilidade social, per- E vem com os pés descalços, aqui a terra é
seguição religiosa/política/de gênero santa (ARANTES, 2018, p.4).
ou atualmente por questões de fragili-
A sensibilidade por inteireza foi o pas-
dades decorrentes da crise
so inicial, certeiro e preponderante desse
humanitária estabele-
“plano de voo” – uma estrutura de de-
cida com a Pandemia
senvolvimento bem planejado. As metas
da COVID-19. As
definidas coletivamente, em inúmeras for-
famílias que aten-
mações, garantindo a todos da equipe au-
demos chegam ao
tonomia para atuação: Onde estávamos?
Brasil, em São Pau-
Aonde queríamos chegar? Quais as estra-
lo e especificamente
tégias para traçar a rota e alcançar o desti-

32
no determinado? Quantas histórias cabem ram-nos sobre as cicatrizes deixadas nessas
dentro de outras histórias? Essas perguntas travessias, que ora eram de dores e de sau-
se fizeram presentes para o fortalecimento dades, ancoradas nas marcas da migração
e a movimentação nas ações do grupo. forçada, ora eram de paixões e resistência
Esses compassos de escuta das múltiplas na migração voluntária em busca de ressig-
narrativas do grupo trouxeram sobre nós nificar as possibilidades.
o sentimento de pertencimento e de atra-
Assim foi ganhando forma, cores, aro-
vessamento de inclusão e equidade. Muitos
mas e sentidos cada ação do Projeto, que
educadores se reconheceram migrantes,
trouxe para o centro do desenvolvimento
outros se sensibilizaram com as vozes dos
pares e compreenderam que todos somos mais protagonistas, pessoas que entendiam
migrantes, seja em um determinado mo- o seu papel não de salvadores de apátridas,
mento da vida ou ao longo da trajetória mas de guardiões da responsabilidade social
percorrida pelos nossos ancestrais. Conta- pela garantia de direitos.

Arrancando “arames farpados” invisíveis:


fronteiras abertas para acolher!

Precisamos falar da invisibilidade na timento de pertencimento e os trouxeram


qual os bebês, crianças e estudantes mi- mais para perto. As diferentes materialida-
grantes que estão inseridos nas nossas es- des estiveram presentes contribuindo e re-
colas vivem. Muitas vezes os vitimizamos, pertoriando nos momentos das formações:
praticando a falta de acolhimento, ferindo poesias, músicas, literaturas e objetos de
o direito à migração. Seja na negação do manifestação cultural.
atendimento das dúvidas ou até mesmo
O espaço tem importante função na
na elaboração de hipóteses nos processos
educação infantil, ele é compreendido
de construção de saberes. Por vezes le-
como um parceiro pedagógico por meio
vantamos muros com arames farpados,
do qual fortalecemos a identidade. Foi or-
invisíveis, que sustentam historicamente e
ganizado, pensado, para provocar apren-
geograficamente o NÃO LUGAR, reafir-
dizagens, reflexões e novas percepções do
mando a pauta da exclusão e da xenofobia.
mundo ao nosso redor e das diferentes ma-
Preparar um momento de acolhimen- nifestações regionais e internacionais que
to e considerar as experiências de vida dos acompanham as crianças e suas famílias
envolvidos é uma arte promovida pelo en- que atendemos diariamente na Unidade.
contro. Todo encontro é uma oportunida-
Transformamos o espaço físico de todo
de de acolher e ser acolhido, de conhecer
dia num ambiente de memórias afetivas,
e de ser conhecido.
extremamente necessário para abordagem
Para o desenvolvimento das ações da pauta: foram móbiles com fotografias,
planejadas em relação à função social da cartas escritas à mão que descreviam a
escola e para aproximar ainda mais os saudade de vivências de outras épocas, de
educadores na construção do projeto de outras terras, de brincadeiras; objetos que
acolhimento, realizamos diferentes mo- revelavam culturas diferentes, relatos orais,
mentos de impacto que favoreceram o sen- mostras de documentos de antepassados

33
que chegaram antes com nenhuma baga- “criança é criança, só muda de endereço”
gem nas mãos, ou com malas pequenas, é equivocada e precisa ser questionada,
grandes, de diferentes formatos, que com- pois o endereço e o cenário sócio-históri-
puseram a organização desse espaço. co-cultural das crianças influenciam de
forma direta e permanente as formas de
Os objetos trazidos de maneira partici- viver as infâncias e produzir sua identi-
pativa contribuíram para revelar a identi- dade (SÃO PAULO, 2015, p. 9).
dade do nosso território, do pertencimento
de cada participante, e esse simbolismo ga- O simbolismo da mala, a identidade
nhou novos sentidos. Citamos a mala, que construída na relação estabelecida com o
passou a não ser mais um objeto simples, espaço físico e subjetivo, deliberou novo
para carregar apenas roupas nas viagens, repertório, ampliou e diferenciou o ima-
mas um importante símbolo para o nosso ginário dos atores da escola, que anterior-
projeto de acolhimento, carregado de emo- mente apresentavam identidade de não
ções e histórias de vidas. Essa mala traz pertencimento, denominando os migrantes
sonhos? Traz esperança? Essa mala traz como estrangeiros, sujeitos sem-terra, que
dores? Traz barreiras ou desafios a serem adentravam no Brasil e aqui permaneciam
superados? Essas foram interrogações que como ilegais, o que por vezes é fortemente
permearam as experiências formativas e divulgado nos eventos promovidos pela mí-
que oportunizaram singularizar os plane- dia de largo alcance.
jamentos com uma escuta realista da infân-
Repensamos o espaço/tempo da orga-
cia que atendemos.
nização de todo o atendimento dentro da
As crianças e os bebês com os quais li- Unidade. Novamente os princípios inego-
damos nesse espaço relacional não podem ciáveis são evidenciados: a garantia de di-
ser vistas ou ouvidas da mesma maneira. reitos e a prática do acolhimento afetivo a
Elas não são todas iguais, não têm a mesma todas as pessoas desde o primeiro contato
história de vida e de migração. É essencial no ato da matrícula, vínculo inicial e fun-
conhecer as múltiplas infâncias e singulari- ção política da nossa escola.
zá-las, dando aos indivíduos vez e voz.
O ato do preenchimento de formulá-
Precisamos nos dedicar a essa escuta, rios ou de funções pré-determinadas dei-
pois dificilmente há consultas prévias sobre xou de ser um movimento involuntário ou
seus desejos ou interesses no ato da deci- apenas um contato inicial de mero cumpri-
são de migrar. Algumas crianças chegam mento de protocolo. O primeiro momento
à escola falando idiomas diferentes e pre- passou a ser uma importante possibilida-
cisamos vivenciar o compartilhamento de de, uma ponte para a garantia dos direi-
ideias com elas, falantes de outras línguas, tos, que muitos ainda desconhecem, uma
entendendo essa relação como uma opor- travessia que vem ao encontro por meio do
tunidade de ampliação cultural e plurilín- olhar atento, da voz que dá anuência, que
gue, sem jamais silenciá-las ou solicitar a manifesta interesse em conhecer e princi-
elas que evitem utilizar seu idioma nativo. palmente revela os princípios curriculares:
A experiência adquirida nos leva à compre- acolhimento, educação integral, equidade
ensão de que concepções opostas a essas e educação para as relações étnico-raciais.
[...] contribuem para a invisibilidade das Falar em travessia e acolhimento soa
crianças e das infâncias reais, pois não um tanto contraditório. A palavra travessia
revelam suas identidades, singularidades, apresenta na sua etimologia um contexto
histórias, culturas, pertencimentos, di- de saída de um estado, de um ponto especí-
versidades e contextos de vida. Assim, a fico, para outro ponto. Uma ação de deslo-
ideia presente no imaginário social de que camento. O contexto de acolher convida a

34
ir ao encontro, receber, abrigar. Pensar em sobre o PPP
acolhimento é de certa forma uma traves- da escola: fun-
sia, que convoca afetivamente um desloca- cionamento,
mento de fronteiras do eu para o encontro horários, organi-
com o outro. Legítimo outro, que na ação zação interna ou so-
de acolhimento traz proximidade, desfaz bre o que trazer na “mala”
estereótipos construídos na esfera do es- escolar todos os dias. Nesse diálo-
tranhamento, do não pertencimento ou do go, também surgiam informações
não lugar. Os que migram, que pertencem, e dúvidas, falávamos sobre de onde
e já não são vistos como povo estranho/es- vieram ou passaram, quais idiomas fa-
trangeiros. Consideramos parte importan- lavam, sobre as peculiaridades da família
te do acolhimento essa metanoia, essa mu- e das concepções da escola. Um momento
dança de pensamento e de olhar: há lugar importante para principiar os vínculos.
de direito e esse faz parte do todo.
Nesse primeiro encontro, algumas difi-
Foi a partir dessa escuta no primeiro culdades já eram identificadas – a barreira
contato das famílias com a escola, que os linguística foi a que mais preocupou. En-
observáveis saltaram aos olhos e preenche- tender os migrantes e se fazer compreen-
ram pautas formativas para toda a equipe dido é um desafio cotidiano, mas que nos
escolar. Entendemos que a mudança de convoca a manter a compreensão do nosso
concepção precisava acontecer com todos
fazer na escola, de garantir direito ao aces-
os atores desse espaço educativo. O aco-
so e a condições para uma permanência de
lhimento passou a acontecer por meio de
qualidade. Reconhecer no dia a dia a gran-
um diálogo mais inclusivo, que considera o
de possibilidade de ampliar saberes nessa
tempo de compreensão principalmente em
oportunidade de encontro com o diferente.
casos de famílias migrantes ou refugiadas,
Foi nesse momento que tomamos nota do
recém-chegadas no Brasil, que estão no
que mais gerava desconforto na ação do
desafio do deslocamento territorial, elabo-
acolhimento, nessa preocupação de com-
rando emoções, dificuldades com o conta-
preender e ser compreendido. Pontuamos
to inicial na perspectiva linguística e todo
que é processual a aprendizagem e que faz
contexto de fragilidade social. Consideran-
do essa real necessidade das famílias que necessário um investimento de tempo e de
atendemos, elaboramos um folder explica- buscas ativas para esse fim. É necessário ter
tivo, no idioma específico do público-alvo pressa para garantir direitos e equidade,
que recebemos diariamente. Iniciamos a assim como é necessário elaborar saberes
distribuição do folder nessa inserção da considerando cada sujeito aprendente, suas
família, antes mesmo do período de pan- especificidades e elaborações. É, ainda, ne-
demia. Convidávamos para entrar, conhe- cessário nutrir com novos conhecimentos.
cer a escola e dialogar sobre os conteúdos Essa pauta foi mapeada e levada para dis-
desse material que contém informações cussão no espaço formativo.

35
Lócus da reflexão: me espera
que eu também vou!

Quem são os migrantes: os que tomam pode ser todo aquele que se reconhecer, que
nossas terras e nossas vagas de emprego? compreender a importância do acolhimen-
Quem são os estrangeiros: os que vivem to, que entenda a essência da partilha de
escravizados, que não tomam banho ou fa- saberes, de vivências, que contribua para a
lam muito enrolado? O espaço formativo construção do grupo em prol de um objeti-
precisa ser lugar de confronto de ideias, de vo. Assim fui repertoriando a equipe: quem
ruptura com o senso comum, um lócus da somos? De onde viemos? Quais histórias
reflexão e da pesquisa onde o bom exem- temos para aprender nesse/desse território
plo arrasta e convida à transformação. dos migrantes que aqui chegam? Um ma-
Lócus de estrutura sólida, fundamentada peamento importante para percorrer e que
na ação/reflexão construída a partir da trouxe pistas dos próximos passos. Foi nesse
escuta. Pares avançados para provocar a ritmo que as formações aconteciam. As ro-
mudança de olhar, alguém que busque por das com relatos orais aconteciam em todos
novas experiências, que medeie com uma os encontros, deixamos de ser um corpo no
proposta de interlocução os processos. mundo para sermos histórias, memórias,
narrativas de todos nós.
Sou educadora, venho nesse chão da
escola trazer boas novas, com experiências Após esse período de descobertas, a
como docente, coordenadora pedagógica e, função pedagógica foi aprofundada por
nesse momento, contribuindo na função de meio de pesquisas com as famílias para
assistente de diretor de escola. Ser interlo- saber também sobre suas andanças, suas
cutora desse espaço formativo é ver o invi- culturas, suas línguas faladas, músicas,
sível revelando interesses, ouvir o inaudível culinária, as especificidades das suas brin-
que aponta para necessidades, é compreen- cadeiras, seus cortes de cabelo, seus artefa-
der os processos, as pausas, mas também é tos sagrados, seus acessórios e roupas, uma
buscar por avanços. É ter o compromisso infinidade de elementos, materialidades
de descolonizar o currículo, descentrali- novas para nos maravilhar e ampliar o al-
zando o poder supremo eurocêntrico, rom- cance da nossa visão.
per com paradigmas e com a hegemonia. É
As infinitas experiências no contato
percorrer novos horizontes empoderando
com as culturas migrantes nos provocaram
meninas, meninos e menines migrantes,
mudança no olhar e nas ações necessárias
indígenas, negros, a totalidade afro-ame-
para maiores transformações nesse espaço:
ríndia. Assim que se constrói uma proposta
democrática, de gestão participativa e de • Muitos migrantes em processo de
equidade social. conhecer a escola apresentavam difi-
Neste relato, são múltiplos os pares culdades de reconhecer até mesmo os
avançados no acolhimento e esse lugar foi ambientes escolares: sala referência,
sendo compartilhado à medida que ocorria refeitório, secretaria, banheiros – então
maior aprofundamento e envolvimento dos passamos a desenvolver paisagens lin-
educadores e famílias. Quem mais pode ser guísticas sinalizadoras traduzidas para
um par avançado nessa proposta? Essa per- a língua dos falantes da nossa Unidade.
gunta é de suma importância para o pro- • Na leitura dos relatórios semestrais
tagonismo e para a autoria na realização de aprendizagens das crianças, assim
do Projeto. Entendemos que par avançado como dos recados em agendas ou pe-

36
las plataformas digitais, percebíamos do mundo que aqui chegam, como vivem
que não havia interação – depois de e como brincam.
traduzidos e comunicados oralmente,
aumentou de maneira significativa. [...] A simbologia deste instrumento de
• Convidamos as famílias a escre- brincar atravessa a fronteira do físico em
verem cartas ou a irem até a Unidade direção ao espiritual e faz dele instru-
contar um pouco da história das suas mento que promove interação, diálogo,
embarcações – assim, aprendemos ven- aproximação com o lúdico, reforço de
do as famílias interagirem com seus habilidades cognitivas e de relação de
artefatos culturais, refletimos sobre as sociabilidade. (SILVA, 2006, p. 108.)
culturas infantis e suas formas de pro-
dução simbólica. Apreendemos o sig- Para a confecção das/dos bonecas/
nificado cultural da brincadeira para bonecos, contatamos a comunidade, soli-
outros povos, produto do universo so- citando a doação de materiais. Uma par-
ciocultural das famílias. cela significativa de famílias do entorno
trabalhava na confecção têxtil e a mate-
Foi com essa concepção que partimos rialidade de tecidos, linhas, botões, elásti-
para a análise prevista em calendário es- cos etc. é algo muito significativo às suas
colar da leitura dos Indicadores de Qua- experiências de vida.
lidade da Educação Infantil Paulistana
Com pouco tempo, começamos a per-
2016. Já mais críticos, pudemos repensar
ceber as doações chegando: uma varie-
os materiais disponíveis para as crianças,
dade de tecidos, de botões, de texturas e
compreendendo a real necessidade de ad-
tonalidades de lãs, assim como de linhas
quirirmos um acervo de brinquedos, de
e agulhas. Em um tempo recorde, com a
materiais pedagógicos, literários e artísti-
participação efetiva da comunidade no
cos com ampla diversidade, para que todos
Projeto, tínhamos uma vasta quantidade
pudessem se reconhecer entre os muros da
de materiais diferentes e podíamos iniciar
escola, pudessem ser protagonistas nesse
a confecção.
espaço, se vendo e podendo ter uma ima-
gem positiva da sua identidade. Antes de começarmos a ação bonequei-
Acessar brinquedos com traços fe- ra, elaboramos um mural na sala do lócus.
nótipos não brancos é um desafio, por Nele constavam fotografias de diferentes
vários motivos. Por meio desses questio- crianças, bebês, artesanatos, objetos, rou-
namentos entendemos a importância da pas, alimentos de diversas partes do mundo.
representatividade e passamos a confec- Um acervo com diferentes penteados, tran-
cionar brinquedos com os educadores, ças, cortes de cabelo, tudo o que podia ins-
entre as famílias e com as crianças. O pirar e trazer possibilidades criativas para a
primeiro material confeccionado foi um equipe. O regulamento bem definido era ga-
livro, mas o brinquedo de maior inte- rantir a manifestação das diferentes culturas
resse do grupo para construção foi a/o e etnias na confecção das/dos bonecas/bo-
boneca/boneco, visto que são artefatos necos. Um repertório rico que foi ganhando
culturais de relevância, articulados a um vida nas mãos arteiras e olhos atentos aos
conjunto de práticas sociais e culturais, detalhes. Cada linha costurada, cada botão
que pode representar diferentes povos, pregado ou cada fio de lã que tecia os ca-
territórios e diferentes identidades, algo belos ganhava significado importante e em
bem importante para a nossa proposta pouco tempo nasciam as produções. Cada
que era conhecer sobre pessoas ao redor uma singular, exclusiva, cheia de magia.

37
As/os bonecas/bonecos foram pauta do continente africano. No chão da escola
de importantes discussões sobre a lingua- temos potência para a resolução dos de-
gem violenta da xenofobia que vem por safios do agora no nosso território e para
vezes com o tratamento exótico ou fol-
transformar o currículo vivido de maneira
clórico da beleza dos corpos não brancos,
principalmente dos migrantes que chegam a garantir isonomia de direitos.

Considerações finais

Diante do exposto, vale trazer para o não há condições dignas aos pertencentes
diálogo que as famílias migrantes acom- do território e é acreditando em uma me-
panhadas por seus filhos chegam ao nosso lhor qualidade de vida que eles acabam
território cada vez com maior frequência. por migrar. Por isso, cabe à escola ou
Os migrantes, com suas histórias diferen- a qualquer outro espaço que faça parte
tes, únicas e de imensurável valor, bus- do território onde eles escolham viver o
cam em outras nações melhor qualidade acolhimento humanitário e a promoção
de vida, e essa necessidade de mover-se de sua dignidade. É notório que migrar
ocorre pelas inúmeras dificuldades que é um direito humano e seu exercício está
enfrentam em seus territórios originários. simplesmente relacionado à condição hu-
Precisamos manter elucidado que migrar mana. Sendo assim, todo indivíduo tem o
é um direito garantido a todo ser huma- direito de buscar melhores condições de
no, tanto que a Declaração Universal dos vida em país diverso do de origem. Que
Direitos Humanos assegura que esse di- este artigo não seja lido como uma forma,
reito é inerente a todo ser, onde quer que um ditado ou qualquer similaridade, mas
esteja. Desse modo, o presente relato de visto como um ponto de interrogação nas
experiência vivida em Unidades da Rede pautas dos projetos político-pedagógicos
Municipal abordou a situação das famílias nas treze diretorias regionais de São Pau-
que avistam no Brasil melhores condições lo. Que seja lido como um convite, uma
sociais, sendo a maioria delas atraída pelo convocação que sopre, aqueça, fecunde
fato de o país ser um mercado econômico essa semente, que gere vidas imbricadas
emergente. Migraram para cá buscando nesse fazer acolhedor e nessa manifesta-
recomeçar suas vidas e, conforme mencio- ção da educação transformadora.
namos no decorrer do trabalho, tiveram
Sejamos nós todos responsáveis por ar-
de enfrentar inúmeros desafios. Mesmo
rancar os arames farpados que excluem,
assim, vale destacar que muitos foram os
segregam e rotulam, pois os direitos hu-
pontos elencados como desafiadores na
manos não podem e nem devem ser relati-
relação que estabelecem no espaço da es-
vizados. A partir do momento em que um
cola. Embora nem todas as expectativas
sujeito nasce humano este tem direitos e
desses migrantes tenham sido atendidas, é
necessário mencionar o “acolhimento afe- deveres, independentemente do território
tivo” apontado por eles. É sabido que as no qual escolha viver. Que a resistência que
pautas da escola, assim como o currícu- move a busca dos migrantes por melhores
lo, de maneira geral, necessitam de con- condições de vida nos inspire a continuar e
tínuas transformações partindo da escuta nos transmita a força para encontrar a rota
real. Muitos falam que no país originário de lugar no mundo para todos.

38
Referências Bibliográficas

ARANTES, Ana Claudia Quintana. Jornal das Miudezas, São Paulo, ed. 6, p. 4, 2018.

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica.


Currículo Integrador da Infância Paulistana. São Paulo: SME/DOT, 2015.

SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da Ci-


dade: Educação Infantil. São Paulo: SME/COPED, 2019.

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação. Indicadores de Qualidade da


Educação Infantil Paulistana. São Paulo: SME/DOT, 2016.

SILVA, Lúcia Isabel da Conceição. Papagaio, pira, peteca e coisas dos gêneros. 2006. Tese (Dou-
torado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Pará, Belém/Pará, 2006.

39
Folhagens e Cidade: Freepik
Fotografia: Daniel Cunha

Huka-huka e
Derruba o Toco:
lutas indígenas nas aulas
de Educação Física
Everton Arruda Irias
Professor de Ensino Fundamental II e Médio – Educação Física
EMEF Raimundo Correia – DRE São Miguel
RESUMO

O
trabalho consiste num relato de experiência acerca da
tematização de duas lutas praticadas por diferentes et-
nias indígenas, nas aulas de Educação Física. Os pro-
cedimentos didáticos adotados ao longo da tematização
buscaram colocar em ação uma Educação Física culturalmente orientada a
fim de garantir o contato dos estudantes com a história e cultura dos povos
indígenas. Foi possível verificar que, a despeito de iniciarmos, eu e estudan-
tes, a atividade sem ter muito conhecimento sobre a história e cultura dos
povos indígenas que vivem no Brasil, a atividade teve resultados positivos
considerando o conhecimento adquirido ao final da atividade.

Palavras-chave: lutas indígenas; currículo cultural; cultura indígena.

41
O trabalho aqui apresentado se cons- linguagem e atravessadas por práticas de
titui em um relato de prática, realizado significação acerca dos diferentes esportes,
nas aulas de Educação Física, no segundo lutas, danças, ginásticas e brincadeiras, as-
semestre de 2017, na EMEF Raimundo sim como os seus (e as suas) praticantes.
Correia, escola da DRE São Miguel, zona
leste de São Paulo. A proposta envolveu Em síntese, essa proposta busca a forma-
estudantes das turmas de 2o e 5os anos do ção de um sujeito solidário, logo, a favor
das diferenças. A seleção dos temas cul-
Ensino Fundamental I. Nessa época eu
turais2 abordados e a organização de si-
atuava como professor de módulo, ou seja,
tuações didáticas dão-se sob influência de
não era regente de turmas e ministrava princípios ético-políticos: reconhecimento
aulas na ausência dos professores regentes da cultura da comunidade, favorecimen-
ou quando era necessário parceria para to da enunciação dos saberes discentes,
realizar uma proposta de trabalho de pro- descolonização do currículo, justiça cur-
fessores regentes. ricular, rejeição ao daltonismo cultural
A definição do tema de estudo e pro- e ancoragem social dos conhecimentos
(NEIRA, 2020, p. 186).
posta aqui apresentadas foram intituladas
de Lutas Indígenas e nasceu do diálogo com O que une professores e professoras
os(as) estudantes e da importância em equi- que tentam colocar em ação um currículo
librar as práticas corporais, que são objeto culturalmente orientado “é o compromisso
de estudo das aulas ministradas ao longo com a democratização das relações viven-
do percurso escolar, a outros saberes, den- ciadas com as práticas corporais e os co-
tre os quais, a articulação entre o currículo nhecimentos que a circundam, a valoriza-
escolar e saberes oriundos de grupos sociais ção das diferenças, e a problematização do
muitas vezes negligenciados e silenciados. modo como são produzidas no meio social”
As ações didáticas descritas ao longo (NEIRA, 2019, p. 16).
do relato buscaram ancoragem nos pressu- Um trabalho fundamentado nos pres-
postos teóricos do Currículo Cultural1 de supostos teóricos do currículo cultural busca
Educação Física, que por sua vez encontra compreender a prática corporal enquanto
inspiração nas teorias pós-críticas do cur- texto, passível de leitura, interpretação e
rículo (pós-estruturalismo, pós-colonialis- reelaboração. As diferentes ações didáticas
mo, estudos culturais, multiculturalismo propostas nas atividades alinham-se às pro-
crítico e pós-modernismo). Denomina-se blematizações geradas por meio do diálogo,
de Currículo Cultural a perspectiva curri- da prática, da análise de imagens e vídeos,
cular de Educação Física que “considera a produzem a tematização da prática corporal
experiência escolar como um campo aberto estudada. “Tematizar não é ensinar. Te-
ao debate, ao encontro de culturas e à con- matizar consiste em organizar e desenvol-
fluência de práticas corporais pertencentes ver várias situações didáticas de maneira
aos vários setores sociais (NEIRA, 2018, p. a propiciar uma compreensão mais am-
9). Sob influência dessas bases teóricas, as pla, profunda e qualificada da ocorrência
práticas corporais passaram a ser entendi- de determinada prática social” (NEIRA,
das como textos, produzidas por meio da 2020, p. 191).

1 Também chamado de pós-crítico ou, simplesmente, pós-currículo (CORAZZA, 2010 apud NEIRA,
2020, p. 185). Surge a partir dos questionamentos propostos pela teorias pós-críticas sobre a noção de currículo. A
cultura passa a ser compreendida como um campo de disputa pela validação dos significados, e o conhecimento é
entendido como construção social à mercê de relações de poder (NEIRA, 2020, p.185).
2 Reterritorialização da noção de tema gerador de Paulo Freire (CORAZZA, 1997 apud NEIRA, 2020, p. 185)

42
Sendo assim, a tematização das Lutas Huka-Huka, Laamb, para que os(as) estu-
Indígenas inicia-se na retomada das aulas dantes pudessem expor suas representações
após o recesso de julho do ano em questão. e suas significações acerca daquilo que ob-
Estabelecemos uma conversa com os(as) servavam. Eles e elas apresentaram muitas
estudantes buscando relembrar as manifes- falas relacionadas ao sumô, assim como al-
tações corporais estudadas até o dado mo- gumas dúvidas, isso pelo fato de terem ob-
mento. Vale considerar aqui que já era meu servado a luta na novela Carrossel3. Entre-
sétimo ano na escola e eu já havia ministra- tanto, ao observarem os povos indígenas
do aulas para todas as turmas do período realizando uma luta, mais especificamente
nos anos anteriores, e também saliento a praticando o Huka-Huka, expressaram al-
proximidade com o professor de Educação guns comentários: “de onde são estes ín-
Física regente das turmas do período, que dios?”, “índios lutam para ficar forte para
compartilhava as ações didáticas e as te- depois caçar”, “índios existem?”, “por que
matizações com cada turma, em momentos usam estas roupas?”, “por que estão pinta-
de reuniões. Enfim, diante de tudo isso, e dos?” Os comentários acabaram por des-
do diálogo estabelecido com os(as) estudan- pertar minha atenção. Vale salientar que
tes, percebemos que as lutas foram temas as crianças não tinham ideia do objetivo
que pouco havíamos estudado ao longo da dessa luta indígena, nem mesmo da forma
trajetória escolar das turmas envolvidas. de organização dos lutadores para a práti-
ca, se compararmos com os conhecimentos
Diante disso, numa aula posterior, fi-
que possuíam em relação ao sumô. No en-
zemos o levantamento das lutas estudadas
tanto, os comentários proferidos por eles e
pelos(as) estudantes de ambas as turmas até
o fato de conhecerem e reconhecerem com
aquele momento, assim como das lutas aces-
maior amplitude uma luta originada em
sadas fora do ambiente escolar. As respostas
outro continente, em detrimento de uma
obtidas foram categorizadas, coletivamente,
luta brasileira, trouxe à tona a importância
de acordo com o tipo de ação motora: lu-
de tematizarmos o Huka-Huka. Aliás, esse
tas de desequilíbrio, lutas de contusão (ou
meu último questionamento foi o conteúdo
de acertar, como denominamos), e lutas de
das discussões realizadas com as crianças
imobilização. Feita a categorização, pude-
das turmas, após a leitura das imagens.
mos observar que, em algumas turmas, as
lutas estudadas se encaixavam nas catego- Para iniciar a discussão sobre a luta
rias de imobilização e contusão e que, ainda indígena Huka-Huka, que é realizada pe-
não haviam estudado uma luta de desequi- los indígenas da etnia Kamaiurá, os quais
líbrio, já em outras turmas, as lutas de de- habitam o Território Indígena do Xingu4,
sequilíbrio pouco apareciam dentro do uni- juntamente com 16 outros povos, entre os
verso experiencial das crianças. Com isso, quais os Yalawapiti, assistimos e realizamos
na aula seguinte, seis imagens foram mos- a análise de dois vídeos5 mostrando uma
tradas para os(as) estudantes. As imagens ocorrência social da mesma. O primeiro
apresentavam a ocorrência social de di- deles, com menos de 3min30s, intitulado
ferentes lutas de desequilíbrio: Judô, Luta Xingu-Huka-Huka, apresentava brevemente
Marajoara, Luta Greco-romana, Sumô, a preparação para a luta. O segundo Luta

3 Transmitida no SBT.
4 Antes e ainda pelo costume chamado de Parque Nacional Indígena do Xingu.
5 “Xingu – Huka huka”. Programa Box Cultural. Youtube, 2010. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=gahPr4tUrHs. “Luta tradicional Huka Huka na Aldeia Multiétnica”. Encontro de Culturas. Youtube,
2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wONaFbDeOOo

43
Tradicional Huka-Huka na Aldeia Multiétnica, cias de informações e novas regras foram
com 1min30s, mostrava lutadores em ação. adotadas: inicialmente pensávamos que era
Em seguida, de forma coletiva, lemos um necessário derrubar o adversário de costas
texto6, que explicava algumas das caracte- no chão, depois descobrimos que qualquer
rísticas da luta: objetivo, contexto de práti- queda era válida. A princípio, os(as) estu-
ca, organização da luta, alguns rituais, etc. dantes se separavam durante o combate e
Essas atividades desencadearam novas per- depois recomeçavam o mesmo. Entretanto,
guntas e comentários por parte dos(as) es- descobrimos que toda separação na luta
tudantes: “Por que se chama Huka-huka?”; resultava em empate. Diante desses novos
“Por que eles se pintam?”; “Mulher tam- conteúdos acessados, a prática sofria modi-
bém luta?”; “Índios comem o que?”; “Eles ficações e ressignificações.
não comem as mesmas coisas que os seres
Em algumas turmas, fizemos a leitu-
humanos né?”; “Eles não se machucam
ra do livro infantil Kaba Darebu, escrito
na luta?”; “Por que eles andam pelados?”
pelo autor indígena Daniel Munduruku.
(aliás, observar indígenas com pouca ves-
O livro descreve várias características do
timenta nos vídeos causou burburinhos e
povo indígena a partir dos olhos de um
risadas entre as crianças), entre outras fa-
menino indígena chamado Kaba Darebu,
las. Alguns comentários foram problemati-
personagem principal do livro. As carac-
zados no momento, a fim de desestabilizar
terísticas de uma aldeia, os principais ali-
algumas representações, mesmo conside-
mentos do povo Munduruku, as brincadei-
rando o meu restrito conhecimento acerca
ras praticadas, as explicações das pinturas
do conteúdo da história e cultura indígena,
corporais, o motivo para alguns povos in-
e outros foram registrados, pensando em
dígenas andarem nus e também o motivo
ações futuras.
para deixaram de andar nus foram alguns
Mediante a análise dos vídeos e leitu- dos conteúdos expressos no livro. Todavia,
ra do texto, organizamos, também cole- conversamos sobre as diferenças culturais e
tivamente, a forma como realizaríamos a sociais que podem existir entre as diferen-
vivência da luta. Pensando nas caracterís- tes aldeias indígenas presentes no Brasil e
ticas do ambiente, do grupo e nos mate- que, tais características descritas no livro,
riais presentes na escola, os(as) estudantes não poderiam explicar os povos indígenas
sugeriram a utilização de tatames, tendo como um todo, tendo em vista as particula-
em vista que a luta, socialmente, ocorre ridades culturais de cada povo.
em um chão de terra batida. A luta foi pra-
Buscando aprofundar e ampliar os co-
ticada durante algumas aulas e, ao longo
nhecimentos, fizemos a leitura de uma re-
destas, conversávamos sobre as impressões
portagem7, em que dois jornalistas foram
e as sensações advindas das vivências, e
enviados ao Xingu, para acompanhar o
propúnhamos modificações na estrutura
Kuarup, ritual de homenagem aos mortos,
da luta, de acordo com os problemas e as
e a realização do Huka-Huka. Dada a con-
situações levantadas, como, por exemplo, o
dição dos jornalistas, imersos por algum
aumento da quantidade de tatames, tendo
tempo naquele grupo e espaço cultural,
em vista as quedas que ocorriam fora deles.
o texto trazia mais detalhes sobre a ocor-
Além disso, buscando novos textos e vídeos
rência da luta e sobre toda a organização
que explicassem com mais objetividade a
que antecedia esta manifestação corporal.
organização da luta, percebemos divergên-

6 “Huka-huka”. Felipe Araújo. Infoescola: navegando e aprendendo. Disponível em: https://www.infoes-


cola.com/artes-marciais/huka-huka/
7 “Huka-huka levanta a poeira na aldeia”. Folha de São Paulo. Disponível em: http://temas.folha.uol.
com.br/viagem-ao-xingu/luta/huka-huka-levanta-poeira-na-aldeia.shtml

44
Conteúdos como: a preparação do lutador ação, que para algumas modalidades é corri-
durante a madrugada; a escolha dos luta- queira, da automutilação. Foi uma forma de
dores; a estrutura dos combates; duração demonstrar que tal fato não se restringia ape-
da luta; sensações dos lutadores durante e nas ao ritual de uma etnia indígena.
após o combate, apareceram no texto. No
Vale salientar que, em meio a todo
entanto, ao lermos e dialogarmos sobre a
esse processo de aprofundamento e am-
preparação do lutador de Huka-Huka nos
pliação dos saberes, as vivências da luta
meses que antecediam a luta, certo grau de
Huka-Huka continuavam ocorrendo, as-
estranhamento foi nitidamente percebido
sim como as modificações propostas pe-
no rosto de alguns e algumas estudantes.
las turmas.
O processo de preparação descrito envolvia
cortes no corpo com dentes afiados de pei- Dialogamos também sobre a partici-
xe-cachorra, uso de ardidos unguentos nas pação feminina na luta e fizemos a análi-
feridas e chás para harmonização espiritual. se de um outro vídeo8 que apresentava a
A mutilação do corpo chamou a atenção e ocorrência social de uma luta feminina.
apareceram questionamentos e comentários O vídeo retratava apenas a luta ocorren-
como: “Para que fazer tudo isso?”; “Acho do entre mulheres indígenas, sem revelar
que não precisa se machucar apenas para outras informações a respeito desta partici-
virar um lutador”. Perante essas reações e pação feminina. Por isso, realizamos novas
opiniões, numa aula posterior fizemos a pesquisas e concluímos que o Huka-Huka
observação de algumas imagens mostran- não contava com uma grande participação
do “técnicas” de mutilação ou automutila- feminina, restringindo-se a prática femini-
ção que ocorre em treinamentos de outras na apenas a algumas aldeias.
lutas, mais acessadas pelos(as) estudantes, A partir da análise de imagens e de um
tais como a chamada “orelha de couve-flor” texto que li para conhecer um pouco mais
dos(as) lutadores(as) de Jiu-Jitsu; o “caleja- sobre o Kuarup9, dialogamos sobre esse ri-
mento” nas pernas e abdomens de lutado- tual, levantando algumas das características
res(as) de muay thai; a retirada do osso do desse ritual indígena que ocorre na
nariz de lutadores(as) de boxe. região do Xingu: a preparação
A análise das imagens per- da cerimônia, as fa-
mitiu fomentar o diá-
logo sobre esta

8 “Amazon Tribes: Xingu huka-huka festival Brazil 2015/Yamurikuma”. Patricia Figueroa. Youtube,
2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2rg1PYNft2E
9 Texto que está no site da Funai – Fundação Nacional do Índio.

45
mílias responsáveis pela organização, os sig- Compreendida a estrutura e as regras
nificados dos troncos e seus ornamentos, e a da luta e reorganizada, para a nossa ati-
finalização da cerimônia com o lançamento vidade, a forma de ocorrência da mesma
dos troncos na água. (exemplo: o toco de madeira foi substituído
por uma bola, a fim de nos precavermos de
Para finalizar o trabalho elabora- qualquer acidente), propusemos a prática
mos, coletivamente, uma rubrica de da luta durante algumas aulas. Os proble-
autoavaliação, a fim de refletirmos so- mas e as impressões oriundos da prática le-
bre as ações e os conteúdos envolvidos varam-nos a conversas e às ressignificações
no processo de estudo do Huka-Huka. na forma e estrutura da luta, visando às
Considerando que já nos encaminhávamos futuras vivências. Devido à longa duração
para o último bimestre do ano letivo e que das lutas, foi sugerida a definição de um
ainda permaneciam várias dúvidas dos(as) tempo de duração delas.
estudantes com relação à cultura indígena, Intercalada às vivências da luta fizemos
resolvemos continuar tematizando uma a leitura de outro texto12, que explicava a
luta indígena. Escolhemos para dar conti- cerimônia de casamento na etnia Pataxó
nuidade ao trabalho o “Derruba o Toco”, até o momento em que a luta acontece.
praticada por membros da etnia Pataxó. Duas inquietações surgiram nas turmas.
A primeira delas era sobre o que ocorreria
Para essa parte da atividade, notamos caso o noivo perdesse a luta. Infelizmente,
que havia escassez de materiais que pudes- as pesquisas que fizemos por meio dos tex-
sem nos ajudar compreender aspectos re- tos e vídeos que encontramos sobre o tema
lacionados à prática de luta. Na pesquisa não me permitiram encontrar uma resposta
realizada, encontramos apenas um vídeo10, para esta pergunta. A segunda inquietação
intitulado Derruba o Toco: Luta Tradicional do dizia respeito ao tipo de relacionamento
Casamento Tradicional Indígena Pataxó, que afetivo entre indígenas: após lermos no
foi exibido em aula a fim de identificar- texto que o noivo deveria carregar uma
mos algumas das características da luta. pedra com peso equivalente ao peso da
Além disso, fizemos a leitura de um breve noiva, um dos estudantes indagou: “Mas
texto11 sobre lutas indígenas, que encontrei e se ele casar com outro noivo?”. No mo-
mento respondi que não sabia se existiam
no Portal do MEC, que descrevia algumas
casamentos homoafetivos entre indígenas.
das características da manifestação corpo-
Após me debruçar em algumas pesquisas e
ral dessa prática. A título de informação,
conversar com outras pessoas que estudam
“Derruba o Toco” é uma luta que ocorre o assunto acessei conteúdos que, ao certo,
após a cerimônia de casamento Pataxó, em não explicavam uma totalidade, mas que
que o noivo é desafiado pelos três melhores davam a entender que relações homoafe-
guerreiros da aldeia, selecionados pela lide- tivas eram comuns também entre alguns
rança espiritual do grupo, que costumamos povos indígenas (ou todos). No entanto, ne-
nomear como pajé. nhum dado foi encontrado que confirmasse

10 “Derruba o toco – Luta tradicional do casamento indígena Pataxó Carmésia 2015”. Mari Ultramarato-
nista Ultra. Youtube, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=syEJ4iCbZ50
11 “Lutas Indígenas”. Luciano Silveira Coelho. Portal do Professor, 2010. Disponível em: http://portaldo-
professor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=22413
12 “Um ritual que celebra a chegada das chuvas e clama pela preservação da natureza. Aline Frazão.
Jornalistas Livres, 2015. Disponível em: https://medium.com/jornalistas-livres/um-ritual-que-celebra-a-chegada-
-das-chuvas-e-clama-pela-preserva%C3%A7%C3%A3o-da-natureza-7323adeb8136

46
ou negasse a existência de casamentos in- na sua aldeia havia casamentos
dígenas homoafetivos e esta foi a resposta
para os(as) estudantes. homoafetivos. A imprevisibilidade da en-
trevista fez com que eu me esquecesse de
Como resultado das pesquisas, elabo-
perguntas importantes que com certeza
ramos um pequeno quadro comparando as
nos trariam ótimas informações como, a
lutas estudadas: etnia que praticava, mo-
participação feminina nesta luta.
mento em que ocorria e local de prática.
A entrevista foi gravada e o vídeo foi
Já encerrando o ano letivo, uma surpre-
mostrado para algumas turmas, já que não
sa bastante agradável permitiu ampliarmos
foi possível adentrar em todas as turmas que
um pouco mais nossos olhares. Visitando o
estavam na tematização da luta antes de fin-
evento intitulado Revelando São Paulo, pro-
dar o ano letivo. A observação do vídeo não
movido pelo Governo do Estado, e que
gerou muitos comentários por parte dos(as)
traz à cidade alguns e algumas represen-
estudantes. O que chamou bastante a aten-
tantes de parte do patrimônio cultural de
ção foi uma explicação de Raion sobre o
diferentes cidades do interior de São Paulo,
“Derruba do Toco”, no qual ele disse que
assim como de outras etnias, acabei por ter
para se protegerem e não se machucarem
a sorte de me deparar com um indígena da
ao serem derrubados no chão, os lutadores
etnia Pataxó. Aproveitando o momento e a
passavam barro no corpo. Não imagináva-
disponibilidade dele, que se chama Raion
mos (estudantes e eu) que tal ação poderia
Pataxó, consegui entrevistá-lo, a fim de escla-
diminuir os machucados.
recer algumas dúvidas sobre a luta estudada.
Raion confirmou muitas das informações Todo o trabalho foi planejado, aula a
que havíamos acessado em relação ao “Der- aula, a partir das considerações, comentá-
ruba o Toco”, como as regras da luta, a oca- rios e acontecimentos da prática, que tra-
sião quando ela ocorre. Além disso, trouxe ziam subsídios para que novas
outros conhecimentos importan- ações didáticas fossem traça-
tes: detalhou as vestimentas uti- das. Os registros realizados
lizadas durante a luta, como ao longo de todo o pro-
faziam para se pro- cesso, por meio de fo-
teger e não se ma- tos, vídeos, ou mesmo
chucar quando de maneira escrita,
eram derrubados permitiram ava-
no chão, explicou liarmos o percur-
o que ocorria caso o so o reorientarmos
noivo perdesse a luta, as rotas. Nesse
e se sentido, foi soli-
citado aos es-
tudantes que
registrassem
em seus ca-

47
dernos o que aprenderam no projeto Lutas so, o olhar sobre os povos indígenas se
Indígenas. O registro foi compreendido como um modificou. Percebemos, por exemplo, que
procedimento didático que visa reorgani- cada etnia possui seus próprios costumes e
zar o planejamento docente, a fim de dialo- práticas culturais e que, por isso, generaliza-
gar sobre as representações e significações ções que buscam trazer uma única noção so-
dos estudantes acerca da prática corporal
bre grupos indígenas se tornaram incabíveis.
estudada e de seus praticantes, buscando
Além disso, compreendemos que os conheci-
desestabilizar e desconstruir representa-
mentos oriundos de etnias indígenas são tão
ções hegemônicas. Dessa maneira, acre-
dito que tanto para mim quanto para os valiosos quanto tantos outros e que podem, e
estudantes que compuseram esse percur- devem compor, o currículo escolar.

Referências Bibliográficas

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Xingu. http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/4990-kuarup-o-ritual-funebre-
-que-expressa-a-riqueza-cultural-do-xingu Acesso em: 30 out. 2017.

Infoescola - Huka-Huka.
Disponível em: https://www.infoescola.com/artes-marciais/huka-huka/ Acesso em: 30 out. 2017.

48
Jornalistas Livres - Um ritual que celebra a chegada das chuvas e clama pela preserva-
ção da natureza.
Disponível em: https://medium.com/jornalistas-livres/um-ritual-que-celebra-a-chegada-das-chuvas-e-
-clama-pela-preserva%C3%A7%C3%A3o-da-natureza-7323adeb8136 Acesso em: 06 nov. 2017.

Portal do Professor. Lutas Indígenas.


Disponível em: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=22413 Acesso
em: 04 out. 2017.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2rg1PYNft2E Acesso em: 03 ago. 2017.

Youtube. Derruba o toco – Luta tradicional do casamento indígena Pataxó. Carmésia,


2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=syEJ4iCbZ50 Acesso em: 03 ago. 2017.

Youtube. Luta tradicional Huka Huka na Aldeia Multiétnica.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wONaFbDeOOo Acesso em: 03 ago. 2017.

Youtube. Xingu – Huka huka.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gahPr4tUrHs Acesso em: 03 ago. 2017.

49
Imagem: Adobe Stock
Migrantes latino-americanos
na escola em São Paulo:
um relato de prática sobre história
e cultura dos povos andinos

Ritta Minozzi Frattini Ueda


Professora de Educação Infantil e Fundamental
EMEI Dom Pedro I – DRE Ipiranga
RESUMO

O
presente artigo trata do relato de prática pedagógica de-
senvolvida com as crianças da EMEI Armando de Arruda
Pereira (DRE Ipiranga), nos anos de 2016 e 2017, pelas
professoras Ritta Minozzi Frattini Ueda e Simone Benig-
no Martins. Essa Unidade Educacional localiza-se na região central de São
Paulo e possui um número significativo de crianças migrantes de países da
América Latina. O trabalho desenvolvido teve como objetivo proporcionar
aos estudantes conhecimentos sobre história e cultura dos povos andinos, o
respeito à diversidade e a aproximação de todas as crianças da turma à cultu-
ra das famílias migrantes de países sul-americanos. Essa prática conseguiu en-
volver toda a comunidade escolar, valorizar a cultura de origem das famílias
migrantes, aumentar a comunicação entre essas famílias e a escola, desenvol-
ver relações de respeito à diversidade e possibilitar a descoberta, por parte de
professores e crianças, da história e da cultura dos povos andinos.

Palavras-chave: migrantes na escola; diversidade étnico-cultural; valorização do outro;


interação sociocultural; território educativo; cultura material e imaterial dos povos andinos.

51
Introdução

O Brasil, desde o século XIX até o famílias com o propósito de pensar sobre
presente, é o destino escolhido por muitos a história e a cultura dos países de origem
migrantes que buscam uma vida melhor. dessas pessoas para, então, implementar
Ainda hoje, assim como no decorrer da his- práticas pedagógicas de valorização dessa
tória, é a falta de trabalho, e, por sua vez, a diversidade cultural. Elegeram a história e
falta de alimento, que geralmente faz com a cultura andina como tema central para a
que as pessoas deixem seu lugar de origem. nossa proposta didática, em especial da ci-
Mas a vida em outro país geralmente apre- vilização Inca, uma vez que a maioria das
senta dificuldades e muitos migrantes têm crianças migrantes é originária de países
de enfrentar o preconceito, o trabalho in- localizados no território que pertenceu ao
formal sem benefícios da lei, os baixos salá- antigo Império Inca.
rios, entre outros problemas.
Assim que a coordenadora pedagógica
Considerando que os migrantes latino- da escola dialogou com o grupo de profes-
-americanos vêm morar no Brasil, especial- sores sobre a necessidade de um trabalho
mente na cidade de São Paulo, trazendo pedagógico voltado para a diversidade
consigo suas famílias ou, então, formando étnico-cultural, especialmente no que se
suas famílias na capital paulista, mesmo refere às crianças migrantes latino-ameri-
que indocumentados, os filhos desses mi- canos, eu, enquanto estudante de História
grantes têm direitos fundamentais, como o e professora de Educação Infantil, propus
da educação1. pesquisar e escrever um trabalho de modo
a oferecer subsídios teórico-práticos para
A EMEI Armando de Arruda Pereira,
que as (os) professoras (es) da instituição pu-
localizada na Praça da República, região
dessem conhecer a história e a cultura dos
central da capital paulista, possui grande
países de origem de grande parte de seus
número de alunos (as) de origem boliviana,
alunos e, com isso, realizar práticas peda-
peruana, paraguaia, colombiana, equato-
gógicas que proporcionassem vivências e
riana etc., cujos pais, em sua maioria, tra-
aprendizagens sobre os povos Incas.
balham em indústrias têxteis localizadas
em bairros do entorno da escola. Diante O levantamento de dados sobre a na-
desse contexto particular da comunidade cionalidade das famílias, a fundamenta-
escolar e do território em que está inseri- ção teórica e a proposta didática foram
da a referida instituição de ensino, surgiu a elaboradas por mim. Contudo, contei
preocupação, por parte das professoras e da com a colaboração da professora Simone
coordenação pedagógica da unidade, em Benigno Martins para que a prática aqui
acolher os(as) alunos(as) migrantes e suas apresentada fosse implementada. A profes-

1 Estudos recentes abordam como está sendo realizado o direito humano à educação para migrantes da
Bolívia que vivem em São Paulo. Consultar: MAGALHÃES, Giovanna Modé; SCHILLING, Flávia. Imigrantes da
Bolívia na escola em São Paulo: fronteiras do direito à educação. Pro-Posições: Campinas, SP, vol. 23, n. 1, 2012.

52
sora Simone (MARTINS, 2021) menciona A nossa prática alinhou-se ao projeto
que aceitou participar do projeto, porque político-pedagógico da escola, que busca
acredita “que valorizar a cultura de uma valorizar a diversidade étnico-cultural da
criança é valorizar o seu ser, é respeitá-la comunidade escolar. A direção colaborou
e é promover a valorização de sua cultura com o fornecimento dos materiais a serem
dentro da escola”. utilizados durante o projeto e a coordena-
ção pedagógica contribuiu na construção do
De acordo com Munanga (2005, p.
conhecimento do grupo de professores pro-
31): “Identificar e corrigir a ideologia, en- movendo formações e visitas pedagógicas ao
sinar que a diferença pode ser bela, que Memorial da América Latina e ao Museu
a diversidade é enriquecedora e não é si- da Imigração do Estado de São Paulo. Essa
nônimo de desigualdade, é um dos passos proposta teve início no ano de 2016 e em
para a reconstrução da autoestima, do 2017 a professora Simone deu continuidade
autoconceito, da cidadania e da abertura às atividades. Nesse ano, 2017, eu apenas
para o acolhimento dos valores das di- acompanhei de longe, pois tive que fixar lo-
versas culturas presentes na sociedade”. tação em outra unidade educacional.

Objetivos

A prática pedagógica tem como obje- que alarguem os padrões de


tivo geral a construção da autoestima, do referência e de identidade no
autoconhecimento e da cidadania; além diálogo e reconhecimento da
de acolher e respeitar a diversidade por diversidade; e) Propiciar o
meio da aproximação de todas as crian- respeito à diversidade étni-
ças da turma à história e à cultura das co-racial e a valorização das
famílias migrantes de países sul-ameri- diferentes culturas e formas de
canos. Os objetivos específicos consistem expressão artística; f ) Incenti-
em: a) Promover o conhecimento de si e var a curiosidade, a exploração,
do mundo por meio da ampliação de ex- o encantamento, o questionamento,
periências sensoriais, expressivas e corpo- a indagação e o conhecimento das
rais de modo a possibilitar a expressão da crianças em relação ao mundo físico
individualidade e o respeito pelo ritmo e e social; g) Promover a interação das
desejos da criança; b) Favorecer a imersão crianças com diversificadas mani-
das crianças nas diferentes linguagens; c) festações de artes plásticas e gráfi-
Ampliar a confiança e a participação das cas e literatura; e h) Propiciar a
crianças nas atividades individuais e cole- interação e o conhecimento da
tivas; d) Possibilitar experiências éticas e história e de tradições culturais
estéticas com crianças e grupos culturais de países da América Latina.

53
A nacionalidade das crianças

Inicialmente, realizou-se o levanta- na escola, 33 eram pertencentes a famílias


mento da nacionalidade das famílias dos migrantes de países da América Latina2,
alunos da EMEI Armando de Arruda Pe- como Peru, Bolívia, Paraguai e Equador.
reira, matriculados no ano de 2016, com Esses países localizam-se em um território
vistas a identificar os seus países de origem. que pertenceu ao Império Inca no período
A partir do levantamento realizado, verifi- pré-colombiano3 e, por isso, são herdeiros
cou-se que de 391 estudantes matriculados da tradição andina.

Nacionalidade das famílias dos estudantes


da EMEI Armando de Arruda Pereira (2016)

Países do Continente Americano


Turmas
República
Brasil Argentina Peru Paraguai Colômbia Equador Haiti
Dominicana
Observações
5º A 25 1 3
Estudante 1: Pai - Peru, Mãe - Brasil
5º B 22 5 1 1
Estudante 2: Pai - Paraguai, Mãe - Peru
5º C 26 1 1

5º D 26 2

5º E 24 1 1

5º F 25 1 1 1 Estudante 1: Pai - Brasil (PR), Mãe - Paraguai

6º A 22 1 1 1

6º B 24 1

6º C 22 2 1 Estudante 1: Pai - Peru, Mãe - Brasil (CE)

6º D 21 1

6º E 28 1 1 1

6º F 26 3

6º G 23 3 Estudante 2: Pai - Peru, Mãe - Brasil (PB)

6º H 18 3 1 1 Estudante 1: Pai - Peru, Mãe - Bolívia

Total 332 1 26 5 4 3 2 1

2 América Latina compreende quase a totalidade dos países da América do Sul (exceto Suriname e
Guiana Britânica) e da América Central. A palavra “Latina” refere-se a países onde se fala espanhol, português
e francês, idiomas derivados do latim. O latim, originário do Lácio, região da Itália, tornou-se a língua oficial da
cultura romana, que a disseminou pelo mundo com a expansão do Império Romano.
3 Período anterior à chegada de Cristóvão Colombo à América em 1492.

54
Nacionalidade das famílias dos estudantes da EMEI
Armando de Arruda Pereira (2016)
Países do
Países do Continente Africano Continente
Turmas
Asiático
República
Tanzânia Democrática Angola Marrocos Camarões Nigéria Senegal Guiné Palestina China Observações
do Congo

5º A

5º B

5º C 1 1

5º D 1
Estudante 1: pai - Tanzânia,
5º E 1 1 2
mãe - Brasil (RJ)
5º F 1 1

6º A

6º B 1

6º C 1

6º D

6º E
6º F
Estudante: pai - Nigéria,
6º G 1 2 1
mãe - Camarões
Estudante 2: pai - China,
6º H 1 1
mãe - Brasil (BA)
Total 1 1 2 1 1 2 2 1 1 5

Imagens 1 e 2: Tabulação da nacionalidade das famílias dos(as) alunos(as)


da EMEI Armando de Arruda Pereira, 2016.

Diante dessa constatação, elegeu-se a ci- turas, construções arquitetônicas, alimenta-


vilização Inca como tema central da nossa ção e receitas culinárias, práticas agrícolas,
proposta didática, que objetivou proporcio- fauna andina; vestimentas; músicas; danças;
nar aos alunos(as) conhecimentos sobre a brincadeiras; literatura infantil; uso do quipo
história e a cultura dos povos andinos, vivên- para contabilidade e uso do “dinheiro pri-
cias artísticas e culturais e a aproximação de mitivo” (folhas, conchas marinhas, pimen-
todas as crianças da turma à cultura de paí- tas, hachitas de cobre, plumas e peças de ouro
ses sul-americanos. As práticas pedagógicas e prata) para trocas comerciais.
consistiram em apresentar aos estudantes a
Em seguida, buscou-se dialogar com a
localização geográfica do Império Inca; len-
literatura contemporânea que nos oferecesse
das e mitos do povo Inca; produção artística
fundamentação teórica para essa proposta
em cerâmica (vasos, vasilhas, pratos, jarros,
didática. Depois, as professoras envolvidas
xícaras, bules, canecas, enfeites etc.), escul-
no projeto realizaram entrevistas com as fa-

55
mílias migrantes por meio de questionário de 2016, sendo que a realização da proposta
bilíngue na tentativa de conhecer melhor com as turmas ocorreu nos meses de setem-
as práticas culturais de seus países de ori- bro, outubro, novembro e dezembro deste
gem (crenças, festas e roupas típicas, músi- mesmo ano e durante o ano de 2017.
cas, danças, culinária etc.).
Para a realização do projeto foram uti-
A partir do estudo da bibliografia e das lizados os espaços das salas de aula, ateliê
respostas das famílias, reformularam-se prá- de arte, sala de leitura e quadra. Os espaços
ticas pedagógicas sobre aspectos da cultura foram escolhidos de acordo com a proposta
andina a serem trabalhados com as crian- de cada atividade. A produção de cerâmica
ças. A prática foi desenvolvida com quatro com argila e a pintura foram feitas no ate-
turmas: uma de infantil I e três de infantil liê de arte e, em dias chuvosos, na sala de
II. O momento de concepção e escrita do aula. Na sala de leitura foi contada a lenda
projeto, a leitura bibliográfica necessária da fundação de Cuzco, as brincadeiras fo-
para compreender o universo Inca no perío- ram realizadas na quadra, já os jogos de
do pré-colombiano e o planejamento peda- quebra-cabeça e desenhos tiveram a sala
gógico ocorreu nos meses de julho e agosto de aula como espaço interativo.

Procedimentos didáticos

Roda de conversa

Para introduzir as crianças no uni- e informações acerca dos temas que nos
verso incaico foi realizada uma roda de propusemos a trabalhar.
conversa em que apresentamos imagens

Produção de cerâmica andina

A partir do que aprenderam sobre os jeto de cerâmica inspiradas na produção


Incas, propusemos às crianças a produção artística da região dos Andes e, em segui-
de um objeto a ser feito com argila. Ex-
da, produziram seu próprio artesanato
plicamos o modo de produção da argila
em cerâmica utilizando argila e pinta-
e trouxemos uma amostra para interação
ram com tinta guache.
sensorial. As crianças desenharam seu pro-

56
Imagem 1: Desenhos do projeto para artesanato em argila inspirado
na cerâmica Inca, Infantil I, 2016.

No Ateliê de Arte da Unidade Edu- Depois da produção do objeto com ar-


cacional, foi realizada a produção de um gila, trabalhamos as formas geométricas
objeto feito com argila inspirado na cerâ- observadas nas pinturas dos artesanatos
mica andina. A maioria das produções das andinos. Em seguida, as crianças pinta-
crianças basearam-se nos vasos, vasilhas, ram, a seu modo, a cerâmica produzida
pratos, jarros, xícaras, bules, canecas, en- anteriormente com o uso de tinta guache.
feites etc. observados nas imagens apre- Depois de secar, as cerâmicas foram enver-
sentadas pelas professoras. nizadas com cola branca líquida.

Imagem 2: Produções artísticas das crianças expostas na Mostra Cultural, Infantil I e II, 2016.

57
Lenda sobre a fundação de Cuzco (principal
capital do Império Inca)

No trabalho com a linguagem oral e es- Por fim, junto ao monte Wanakauri6 , os
crita sobre a história dos povos andinos, as filhos do Sol enterraram o cajado. Quan-
professoras contaram a lenda da fundação do a terra o tragou, um arco-íris ergueu-
de Cuzco, cidade localizada na Cordilheira -se no céu.
dos Andes, há cerca de 3.400 metros de al- Então o primeiro dos incas disse à sua
irmã:
titude, e que hoje faz parte do Peru. Cuzco
– Convoquemos as pessoas.
foi considerada a mais importante cidade
Entre a cordilheira e o altiplano estava
do Império Inca, que se iniciou em 1.200 o vale coberto de arbustos. Ninguém ti-
d. C. Seu nome, Qosqo, na língua quéchua nha casa. As pessoas viviam em buracos
(ou quíchua), ainda falada nas montanhas e ao abrigo de rochedos, comendo raízes,
da região andina, significa “umbigo do e não sabiam tecer o algodão nem a lã
mundo” ou “centro do mundo”. Confor- para defender-se do frio.
me relata Eduardo Galeano (1996, p. 63), Todos os seguiram. Todos acreditaram
segundo a lenda, o surgimento de Cuzco neles. Pelos fulgores das palavras e dos
teria ocorrido da seguinte maneira: olhos, todos souberam que os filhos do
Sol não estavam mentindo, e os acom-
Wiracocha4, que tinha afugentado as som- panharam até o lugar onde os esperava,
bras, ordenou ao Sol que enviasse uma fi- sem ter ainda nascido, a grande cidade
lha e um filho à Terra, para iluminar o de Cuzco.
caminho aos cegos. Após a leitura da lenda da criação de
Os filhos do Sol chegaram às margens do Cuzco, as professoras fizeram uma roda
lago Titicaca5 e começaram a viagem pelas de conversa com as seguintes perguntas
quebradas da cordilheira. Traziam um ca- às crianças: quem era Wiracocha? O que
jado. No lugar onde afundasse o primeiro o filho e a filha do Sol vieram fazer na
golpe do cajado, fundariam um novo rei- Terra? O que os filhos do Sol deveriam
no. Do tronco, atuariam como seu pai, que fazer com o cajado? Como viviam as pes-
dá a luz, a claridade e o calor, derrama a soas antes dos filhos do Sol chegarem à
chuva e o orvalho, empurra as colheitas, Terra? Como era a paisagem do lugar
multiplica as manadas e não deixa passar onde foi construída a cidade de Cuzco?
nenhum dia sem visitar o mundo.
Por todas as partes tentaram enterrar o ca- Para que as crianças vivenciassem o ar-
jado de ouro. A terra recusava, e eles conti- remesso do cajado de ouro pelos filhos do
nuavam buscando. Sol, o qual afundou no lugar onde se fun-
Escalaram picos e atravessaram corrente- daria um novo reino, o reino dos Incas, foi
zas e planaltos. Tudo que seus pés tocavam realizada a brincadeira de salto à distância
ia se transformando: faziam fecundas as como experiência corporal.
terras áridas, secavam os pântanos e de-
volviam os rios a seus leitos. Na alvorada, Em seguida, foi proposta a realização
eram escoltados pelos gansos, e pelos condo- de um desenho para ilustrar a lenda da
res ao entardecer. criação de Cuzco.

4 Wiracocha era deus dos povos antigos da América, da cidade de Tiahuanaco, considerado como o
criador do Universo e de tudo o que existe nele: a terra, o Sol, os seres humanos, os animais e as plantas.
5 Lago localizado entre Peru e Bolívia, em uma região muito alta da cordilheira dos Andes. Fica cerca de
3.800 metros de altitude em relação ao nível do mar.
6 Montanha perto de Cuzco.

58
Imagem 3: Ilustrações da lenda de fundação da cidade de Cuzco (Peru), Infantil II, 2017.

Quebra-cabeça: pedras poligonais

Em suas construções, os Incas demons- manejo e encaixe das pedras caracterizava


travam grande habilidade arquitetônica. O as construções Incas.
muro da famosa pedra dos doze ângulos, Nessa perspectiva, foi confeccionado
localizado na área central de Cuzco, é atu- um quebra-cabeça a partir da imagem do
almente muito visitado por turistas. Nesse muro construído pelos Incas com pedras
muro, nem um cabelo sequer pode ser in- poligonais para proporcionar às crianças a
experiência do modo como esse povo cons-
troduzido na junção das pedras. O perfeito
truía muros e paredes feitos com pedras.

Literatura infantil latino-americana

Nas linguagens oral e escrita, além da Bolívia” e “O nascimento dos Andes e ou-
lenda de fundação de Cuzco no Peru, a tras lendas pré-colombianas”. A mãe da
professora Simone trabalhou a contação criança Nicolas, de origem peruana, foi à
de história da literatura infantil peruana: escola ler a história “Quién tiene miedo de
“A Kantuta Tricolor e outras histórias da qué?” em castelhano.

Culinária andina

Em continuidade à sequência didá- produção de uma receita de origem chilena: Le-


tica, as turmas da professora Simone che Asada. Depois, as crianças fizeram o registro
realizaram atividade de culinária com em desenho dessa experiência gastronômica.

59
Música e dança

Outra característica cultural da região ral de danças peruanas típicas do folclore


estudada refere-se às danças e à música pe- local, como a Huaylarsh. Essa palavra tem
ruana. Ao saber que a turma estava apren- origem no idioma aymara e significa “campo
dendo sobre as músicas e instrumentos verde”. Acredita-se que a dança, marcada
musicais da região dos Andes, a família de pela força do sapateado e das palmas, está
Nicolas, do Infantil I, enviou para a profes- associada à cosmovisão andina da cultura
sora Simone as flautas peruanas. Além de Wanka, que é anterior aos incas. Os trajes
conhecer estes instrumentos musicais, foi também são característicos da cultura lo-
realizada uma vivência sensorial e corpo- cal, repletos de cores, bordados e detalhes.

Avaliação

A avaliação das crianças foi realizada rava de origem indígena, enquanto o pai
de forma contínua, considerando-se o en- do estudante Jhonatan, também de família
volvimento e a participação nas atividades, peruana, se apresentou como índio.
o reconhecimento do outro como ser diver-
Todas as crianças demonstraram inte-
so e o conhecimento de histórias e culturas
resse pelo tema e atividades, especialmente
de diferentes povos. Durante a realização
das vivências, as crianças expressavam a produção do objeto com argila, fizeram
sentimentos e sensações, como “a argila é perguntas e representaram de diferentes
fria” ou então “minha mãe veio desse país maneiras o conhecimento obtido. Obser-
[Peru]”. Quando a professora explicou que vou-se que, por meio da arte, essas crian-
a turma iria aprender sobre um país cha- ças, filhas de famílias migrantes latino-a-
mado Peru, uma das crianças peruanas ex- mericanas, assim como todas as crianças
clamou: “Do Peru? No creo!”, e sorriu. das turmas, tiveram a oportunidade de co-
nhecer aspectos históricos, artísticos e cul-
A menina Pahua, de origem peruana,
turais das populações andinas e valorizar
me perguntava constantemente quando
saberes e práticas de outros povos.
iríamos aprender mais sobre os “índios”.
Eu não havia utilizado a denominação Simone Martins (2021) avalia que com
“índios” durante as aulas, no entanto esta o projeto “conseguimos envolver a comuni-
criança relacionou os Incas aos povos in- dade, mostrar aos familiares que sua cultu-
dígenas. E percebi que ela não se conside- ra de origem é valorizada em nossa escola”.

60
Considerações finais

A prática pedagógica trouxe significa- assim como levaríamos um tempo para


tiva vivência cultural e aproximou toda a aprender um pouco sobre a dele, mas que
turma à história e à cultura pré-colonial há gestos de aproximação e de gentileza
de países sul-americanos. Ao apresentar as que nos unem” (MARTINS, 2021).
principais características da cultura Inca
O projeto proporcionou vivências sig-
houve interesse imediato das crianças, em
nificativas, visto que as crianças demons-
especial daquelas cujas famílias eram de
travam interesse pelas propostas, e cor-
origem latino-americanas, inclusive trou-
roborou para a construção do respeito e
xeram à escola objetos, tecidos artesanais
da valorização da diversidade étnico-cul-
peruanos e instrumentos musicais que ti-
tural. Notava-se a felicidade das crianças
nham em suas casas e compartilharam co-
migrantes quando sabiam que iríamos
nosco receitas que remetiam à sua cultura.
conversar sobre o país de seus pais ou de
“Professora, esse é do Peru”, disse orgu-
seu próprio país (algumas crianças eram
lhosamente a aluna Ariana do Infantil II.
filhas de peruanos, bolivianos, equatoria-
Segundo a professora participante nos, entre outros, mas nasceram no Brasil,
do projeto, “ver a participação e o en- já outras nasceram nesses países e imigra-
volvimento das crianças e familiares, o ram para o Brasil).
entusiasmo em mostrar suas produções
Acrescenta-se a isso o fato de que ti-
durante a Mostra Cultural, em preparar
vemos a oportunidade de estudar e desco-
uma culinária e provar novos sabores,
brir “uma arquitetura incrível, uma arte rica em
ouvir e dançar novos ritmos são resulta-
cores e detalhes, lendas e contos ricos em signifi-
dos positivos dessa prática” (MARTINS,
cados, mas, em especial, o quanto é importante
2021). Além disso, observou-se que o pro-
que as crianças e seus familiares tenham a sua
jeto ofereceu abertura para que crianças
cultura valorizada e o quanto essa ação educa-
e famílias migrantes passassem a se co-
tiva foi a promotora de uma maior participação
municar mais e melhor com os professo-
e – diria até – de felicidade no ambiente escolar”
res e funcionários da Unidade educacio-
(MARTINS, 2021). As famílias, por sua
nal e com as outras crianças e famílias da
vez, perceberam a necessidade de respei-
comunidade escolar.
tar e valorizar as diferentes culturas.
Além de proporcionar o conhecimen-
Algumas experiências foram pla-
to de outra cultura a todas as crianças, o
nejadas, porém inviáveis de serem exe-
principal desdobramento do projeto foi
cutadas naquele momento, como, por
uma maior inserção social das crianças
exemplo, a produção de uma horta em
migrantes latino-americanas na escola.
platôs, que representaria a cultura agrí-
Ao longo do trabalho observou-se que es-
cola semelhante ao tipo de agricultura
sas crianças se sentiram valorizadas, pas-
realizada na Cordilheira dos Andes.
saram a participar com mais empenho das
Além disso, Martins (2021) aponta que
atividades escolares e foram totalmente
“a maior dificuldade na implementação das
inseridas no grupo pelas demais crianças.
práticas foi em relação a encontrar livros apro-
A professora Simone destaca ainda que
priados à linguagem infantil que trouxessem a
“a mudança mais visível foi em relação à
cultura andina em seus contos com imagens que
língua, em entender que o colega ainda
se aproximassem do público infantil”.
levaria um tempo para aprender a nossa,

61
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62
Ilustração: Cassiana Paula Cominato
Foto: Jovino Soares

História e cultura africana


por meio do Mancala Awelé:
reflexões para uma prática
pedagógica antirracista

Robson Gonçalves da Silva


Coordenador Pedagógico
CEU EMEF Pres. Campos Salles – DRE Ipiranga
RESUMO

O
Jogo de tabuleiro Mancala Awelé pertence a uma família
de jogos de tabuleiro, originários do continente africano.
Após pesquisa de grandes pensadores africanos e não-a-
fricanos foi possível relacionar os aspectos do jogo com
o modo de vida e organização de antigas sociedades africanas, além de en-
contrar diversos valores civilizatórios que compõem a cosmovisão africana
presentes no jogo. Esse conjunto de saberes faz parte da história e cultura
africana, que são conteúdos obrigatórios na educação básica, de acordo com
as Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08. Por meio deles é possível transformar
o ensino dentro da escola, possibilitando um olhar para além da cultura
hegemônica e valorizando a cultura africana e afro-brasileira. Com isso,
conclui-se que o jogo de Mancala Awelé é uma importante ferramenta para
ensinar, potencializar e desconstruir preconceitos acerca da história e cultu-
ra africana dentro das escolas, sendo de grande importância para combater
o racismo e dar oportunidade de muitos estudantes construírem suas identi-
dades de forma positiva.

Palavras chaves: Mancala Awelé; Lei 10.639/03; Cosmovisão africana.

64
Introdução

Desde 2003, a Lei de Diretrizes e Bases cola na perspectiva da Lei nº 10.369/03”,


da Educação Nacional (LDBEN) foi alte- coordenada pela professora Nilma Lino
rada em seu artigo 26 com a promulgação Gomes, aponta que dentro de algumas es-
da lei nº 10.639/03 e, posteriormente, pela colas existem projetos significativos desen-
lei nº 11.645/2008. As respectivas leis obri- volvidos por alguns profissionais sobre a
gam o ensino de história e cultura africana temática étnico-racial e ao mesmo tempo
e afro brasileira e dos povos indígenas na existem profissionais que desconhecem a
educação básica. A LDBEN determina que Lei nº 10.639/03 ou mantêm um conheci-
o conteúdo programático: mento superficial dela entendendo-a como
uma imposição do Estado ou “lei dos ne-
 [...]incluirá diversos aspectos da história gros”. Outro aspecto encontrado foi que
e da cultura que caracterizam a formação o conhecimento dos docentes sobre as re-
da população brasileira, a partir desses lações étnico-raciais e sobre a História da
dois grupos étnicos, tais como o estudo África são superficiais e estereotipados,
da história da África e dos africanos, a fornecendo aos estudantes pouco conhe-
luta dos negros e dos povos indígenas no cimento sobre a África e sua inter-relação
Brasil, a cultura negra e indígena bra- com as questões afro-brasileiras (GOMES;
sileira e o negro e o índio na formação JESUS, 2013). Isso mostra que os saberes
da sociedade nacional, resgatando as suas africanos pouco são abordados dentro da
contribuições nas áreas social, econômica educação. Quando são abordados aconte-
e política, pertinentes à história do Bra- ce de forma voluntária, individual por al-
sil. (BRASIL, 2008). guns profissionais da educação e algumas
vezes de forma superficial sem um aprofun-
Dentro das instituições de ensino, en-
damento da filosofia, cultura e história que
contramos poucas práticas que cumpram
envolvem os povos africanos.
as referidas leis ou que permeiem todo o
currículo escolar. Nas poucas práticas que Considerando todas as problemáticas
encontramos, boa parte delas acontecem encontradas nas práticas pedagógicas ao
em algumas datas específicas e muitas ve- abordar a história e cultura africana, na
zes abordam a história africana apenas sob aplicabilidade das Leis nº 10.639/03 e nº
a perspectiva da escravidão ou da imagem 11.645/08, por conseguinte, na LDBN, na
de miséria pós-colonização do continente falta de pesquisas sobre a filosofia e cos-
africano, sem contemplar os conhecimen- movisão africana dentro da educação, na
tos africanos, a história pré-colonial, as possibilidade de utilização de um elemen-
cosmovisões ou até mesmo sem relacionar to que faz parte da cultura africana, que
todos estes saberes da cultura africana ao é o jogo Mancala Awelé. Trata-se de uma
Brasil (GOMES; JESUS, 2013). ferramenta pedagógica potente e carre-
gada de aspectos filosóficos, históricos e
A pesquisa “As práticas pedagógicas de da cosmovisão africana, este artigo tem
trabalho com relações étnico-raciais na es- a intenção de desvelar a possibilidade de

65
compartilhar a filosofia, história e cultu- partir de teóricos africanos ou afro-dias-
ra africana a partir de uma epistemologia póricos dispostos a agir em prol da liber-
pluriversal e afrocêntrica. Para Molefi dade humana e capazes de fazer isto de
Kete Asante, afrocentricidade é a cons- forma independente, de acordo com seus
cientização e o entendimento da história,
interesses (ASANTE, 2009).
cultura, literatura, linguística e política a

A origem do jogo mancala

Mancala é uma família de jogos de árabe naqala que significa mover) ou que
tabuleiro de origem africana, “esse termo tenham nascido algures na África Negra,
passou a ser usado pelos antropólogos para o continente onde estes jogos são mais
designar uma série de jogos disputados populares e cuja diversidade de regras e
num tabuleiro com várias concavidades e tabuleiros é maior do que em qualquer ou-
tra região do globo (SANTOS; NETO;
com o mesmo princípio geral na distribui-
SILVA, 2008, p. 23).
ção das peças.” (BRANDÃO, 2006, p. 69).
No Mancala essa distribuição simulam a Ao analisarmos os estudos de Bran-
semeadura e a colheita. Esse jogo é conhe- dão (2006) e de Santos et al (2008), iden-
cido por diferentes nomes, de acordo com tificamos algumas contradições entre eles,
a região, e é jogado de diferentes formas principalmente por Santos et al (2008)
entre os povos africanos e não-africanos. relacionar a palavra “Mancala”, de ori-
Utilizaremos o nome genérico, Mancala, gem árabe, com a origem do jogo. Além
a princípio, pois iremos abordar elementos de Brandão (2006) mostrar que esse nome
comuns em todos os tipos de jogos desta passou a ser utilizado por antropólogos,
família. Quando abordarmos o Awelé es- não necessariamente sendo o nome origi-
pecificamente, que é um dos tipos de Man- nal do jogo, demonstra que os princípios,
cala, utilizaremos o nome original, que foi conceitos e valores do jogo estão intrinsi-
dado pelos povos, atualmente habitantes camente ligados aos valores civilizatórios
das regiões da Costa do Marfim e Gana, africanos. Agbinya (2004) faz uma dura
que o jogam até os dias hoje. crítica ao uso da palavra “mancala” para
A origem do jogo, segundo alguns es- se referir aos jogos de tabuleiros africanos.
tudos, aponta para mais de 7 mil anos. Há Para ele é uma infelicidade essa confusão
teorias de que os Mancalas surgiram pri- que os não-africanos fizeram, utilizando
meiramente na “África Negra”1: esse nome genérico para referir-se aos jo-
gos que existem há séculos em diferentes
A sua origem é milenar e desconhecida. grupos-étnicos africanos e com diversos
É possível que tenham sido inventados nomes e regras. Ele nos traz que o nome
há mais de dois mil anos, na penínsu- “Mancala é na verdade uma corrupção
la Arábica (Mancala deriva da palavra da palavra Mankaleh que significa o jogo

1 Termo equivocado, que nos recusamos utilizar por julgarmos ser um termo racista e por concordamos
com os estudos de Diop (1974) que afirma que toda África, inclusive nas regiões mais ao Norte, era negra, ou seja,
não existia uma África branca.

66
da inteligência. É difícil encontrar o uso O modo de vida dos egípcios era de-
desse nome por grupos étnicos africanos. terminado pelas cheias do Nilo. Isso re-
Mankaleh é derivado de suaíli uma língua fletia em todos os aspectos da vida social,
híbrida que tem uma grande influência econômica e cultural do povo. A forma de
árabe” (AGBINYA, 2004, p.17). A crítica jogar os Mancalas parece reproduzir este
de Agbinya nos remete ao que Hampâté estilo de vida, em que a semeadura preci-
Bá escreve sobre a tradição oral africana sa ser planejada, para que a colheita seja
e da importância de ouvir os “tradiciona- bem-sucedida e, em seguida, ser armaze-
listas” africanos para conhecer a essência nada em depósitos, assim se garantiriam as
da história. De acordo com Hampâté Bá próximas semeaduras e o sustento do povo.
“Uma história que se quer essencialmente Esse estilo de vida coletivo/cooperativo faz
africana deverá necessariamente, portan- parte dos valores civilizatórios africanos e
to, apoiar‑se no testemunho insubstituível afro-brasileiros, que, de acordo com Trin-
de africanos qualificados. “Não se pode dade (2013), também contém a ludicidade
pentear uma pessoa quando ela está au- como elemento que se conecta a todos ou-
sente” 2, diz o adágio” (HAMPÂTÉ BÁ, tros valores.
2010, p. 175)
Pesquisadores encontraram fileiras de
A suposta origem dos Mancalas, ou buracos em rochas de monumentos egípcios,
Mankaleh, ter sido no Egito/Kemit faz inclusive no Templo de Kuma e na pirâmide
todo sentido quando lembramos de que no de Queóps. Culin (1896) já dizia, há dois sé-
Vale do Nilo a prática da agricultura era culos atrás, que o Mancala “pode ser consi-
o que movia a sociedade, além disso, uma derado, por assim dizer, como O Jogo Na-
descrição de Mokhtar (2010) sobre a expe- cional Africano”. (CULIN, 1896, p. 601).
riência dos egípcios com as cheias do Nilo, Em seus estudos e pesqui- s a ,
parece remeter diretamente aos princípios Culin (1896) mostra
dos jogos de Mancala: diversos nomes e
imagens de di-
Para compensar a escassez periódica, era ferentes tipos
necessário estocar cereais para alimentar de Mancala
a população e – mais importante ainda existentes no
com vistas ao futuro garantir quantidade continente afri-
suficiente de sementes para a semeadura cano, comprovan-
seguinte, quaisquer que fossem as circuns- do que, de fato, o Man-
tancias. Esses estoques de reserva eram cala é jogado por todos os povos
fornecidos pelo governo central, graças africanos, de norte a sul e leste a
ao duplo celeiro real, que estocava cere-
oeste do continente. O professor
ais em armazéns distribuídos por todos os
Acácio Almeida por meio de suas
pais. Limitando o consumo em períodos
de abundancia e estocando o máximo pos- pesquisas no continente africano
sível para se precaver contra cheias insu- teve contato com diferentes po-
ficientes ou excessivas, o governo central vos saberes, jogos e mitologias
passou a controlar, por assim dizer, a africanas. No prefácio do livro
ordem natural e veio a desempenhar um Mancala Awelé da coleção
papel muito importante (MOKHTAR, Jogos de Tabuleiro da Secre-
2010, p. XLVIII). taria Municipal de Educação
de São Paulo (SME/SP) ele
escreve que “segundo o mito

2 Aspas inseridas pelo autor do texto citado: Amadou Hampâté Bé.

67
fundador Massai, o jogo foi inventado por pelos africanos escravizados que estive-
Sindillo, filho de Maitoumbe, o primeiro ram por aqui, dentre eles o povo Yorubá,
ser humano, e remonta os primórdios da que trouxe o AYO, o qual em nosso país é
criação” (SÃO PAULO, 2020, p.23). chamado de AIÚ.

Na África os Mancalas recebem di- Em África, existem mais 200 tipos de


versos nomes: Awalé (Costa do Marfin), jogos de tabuleiros que simulam a semea-
dura e colheita. Não podemos considerar
Awele, Aela, Chosolo, Kalak (LIMA;
o Mancala como apenas mais um jogo de
GNEKA; LEMOS. 2005); Mungala (Nu-
tabuleiro, pois dentro dele estão inseridas
bia, Gabattà (Abyssinia/Etiópia), Aban- diversas culturas e cosmovisões de dife-
gha (Nova Guiné), Toee (Sudão do Sul), rentes povos africanos. Segundo Acácio
Madji (Benin), Poo (Libéria), Mbau (Ango- Almeida:
la), Kale (Gabão), Bau (Tanzânia), Isafuba
(Zimbabue), Wari (Costa leste efricana). Por meio dos jogos da família Manca-
Os estudos feitos por estes pesquisadores la é possível desenvolver a memória au-
nos levam a acreditar que origem dos jogos ditiva, a memória visual e corporal, a
“Mancala” é africana. O Awelé ou Awalé
imaginação, as funções da linguagem,
é, de fato, um jogo de tabuleiro africano
da gestualidade, o conhecimento do meio
jogado na região da Costa do Marfim e,
ambiente, a sensibilidade, a lógica, a
de acordo com Agbinya (2004), o Awalé
também é jogado por alguns povos do Se- afetividade, conhecer o patrimônio cultu-
negal e Kenya (Masai) e o Awelé em Gana ral, o ethos, a ética e a estética, as fun-
(Ga). Awelé é um dos estilos mais jogados ções sociais, morais e educativas (SÃO
dentro de África. Ele também faz parte de PAULO, 2020, p.19).
um grupo de jogos que têm regras inter-
nacionais definidas e campeonatos inter- Por isso, para jogar os jogos da famí-
nacionais organizados pela Antigua and lia Mancala é preciso contextualizar os
Barbuda Warri Academy, entre outras aspectos que permeiam suas dinâmicas,
organizações. No Brasil o jogo foi trazido histórias e regras.

África, humanidade e civilização

De acordo com a paleontologia, “o ho- da África uma grande variedade de pe-


mem é um mamífero, mais exatamente, um quenos primatas prenunciando todos os
mamífero placentário. Pertence à ordem que existem hoje: Cercopithecidae, Pon-
dos Primatas” (COPPENS, 2010, p. 448). gidae, Hylobatidae e Hominidae. As
No decorrer do texto, esse autor cita as di- linhas fundamentais estavam traçadas
versas espécies de primatas e os diferentes (COPPENS, 2010, p. 451).
gêneros que surgiram com o decorrer dos
milhões de anos. Ele destaca que: A história da humanidade perpassa
pela evolução do gênero Homo, que assim
como todos outros primatas, teve sua ori-
Qualquer que seja a relação de paren- gem no continente africano. Por conta dis-
tesco entre esses primatas, o interessan- so, a África é considerada o berço da hu-
te do período está em mostrar que, há manidade. Muito diferente do que vemos e
30 milhões de anos, havia no nordeste ouvimos, África não é um lugar primitivo

68
onde há apenas pobreza, animais e deserto. Diop (1974), ao escrever sobre a origem
As civilizações africanas são as mais anti- negra dos povos egípcios, explica a ori-
gas que existem e quase tudo que sabemos gem de Moisés e dos escritos no Livro de
hoje é de origem africana. De África surgiu Gênesis sobre a maldição de Cam (Kam),
boa parte da medicina, arquitetura, culiná-
comprovando que mesmo os judeus, após
ria, cultura, entre outras coisas que conhe-
cemos hoje. Imhotep, que viveu em África migrarem do Egito, consideravam aquelas
entre 2900 e 2280 a.C., foi considerado terras como a terra dos negros:
um Deus da medicina para os europeus.
Abu Bakr (2010) escreve sobre a história Na verdade, sabemos que os Egípcios cha-
da África e a representação de Imhotep na mavam seu país de Kemit, que significa
época, e até hoje, na enciclopédia História “Preto” em sua língua. A interpretação
Geral da África. segundo a qual Kemit designava o solo
preto do Egito, preferencialmente ao ho-
A dinastia (II) foi fundada pelo rei Zo- mem preto e, por extensão, a raça preta do
ser, que, a julgar pelas evidencias, era um país dos Pretos, decorre mais de uma dis-
soberano vigoroso e capaz. Entretanto sua torção gratuita por mentes conscientes do
fama foi consideravelmente obscurecida que uma interpretação exata desta palavra
pela de seu celebre súdito Imhotep (I‑ em- faria implicar. Por isso, é natural encon-
‑htp), arquiteto, medico, sacerdote, magi- trar Kam em hebraico, significando calor,
co, escritor e autor de provérbios. Vinte e preto, queimado (DIOP, 1974, p. 7).
três séculos após sua morte, tornou‑ se ele o
deus da medicina, em quem os gregos (que Em um simpósio realizado no Cairo,
o chamavam de Imuthes) reconheciam As- de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 1974,
clepio. Sua realização mais notável como o francês Sauseron afirma que “em egíp-
arquiteto foi a “pirâmide de degraus” e o cio, km (feminino, kmt) significa “negro”;
vasto complexo funerário construído para o masculino plural e kmu (Kemu), e o fe-
seu farão em Saqqara, numa área de 15 minino plural, kmnt. A forma kmtyw pode
ha, na forma de um retângulo de 544 m significar apenas duas coisas: “os de Kmt”
por 277 m. A construção compreendia um
e “os habitantes de Kmt” (“o pais negro”).”
muro circular, semelhante a uma fortale-
za, e Imhotep introduziu notável inova- (MOKHTAR, 2010, p. 830).
ção substituindo a pedra pelo tijolo (ABU Recentemente foi encontrado um fóssil
BAKR, 2010, p. 46). na região do Reino Unido, que data cerca
de 10.000 anos. Após análises laborato-
O continente africano se desenvolveu riais, concluíram que a pele daquele ho-
durante estes milhares anos, principal- mem, conhecido como “Homem de Che-
mente após a seca no Saara, forçando a ddar”, era negra, não branca, e com olhos
migração de muitos povos até as margens azuis. Em 2014, também foi encontrado, na
do Rio Nilo, e foi dali, do Vale do Nilo, Espanha, um fóssil de 7000 mil anos com
que os povos africanos se desenvolveram e a pele negra e olhos azuis. (DIAZ, 2018).
se espalharam por todo o continente. Ao se Os estudos recentes corroboram com o que
espalharem, levaram com eles seus conhe- Diop (1974) dizia no século passado sobre
cimentos, costumes e crenças, para dentro a origem da civilização e sobre a cor dos
e fora de África. A região do Vale do Nilo povos que viviam no Egito antigo, des-
era chamada de Kemit, ou Kmt, pelos po- construindo a ideia de que os faraós e os
vos que lá viviam, que de acordo com os povos egípcios não eram negros. O bran-
hieróglifos, significa “terra dos pretos”. queamento de alguns povos africanos foi
Porém, depois da colonização, passamos a uma construção dos europeus que sabiam
chamar essa terra de Egito. da importância e poder dos egípcios para

69
a humanidade, por isto quiseram identifi- Nesse calendário, a primeira estação do
ca-los como caucasianos, já que as teorias ano, Akhet em egípcio, marcava o come-
racistas queriam comprovar que os negros ço da enchente. As águas do rio subiam
eram primitivos e inferiores. pouco a pouco e cobriam a terra ressecada
pelo verão tórrido. Os campos permane-
Em Kemit, ou Egito, foi onde surgiram
ciam encharcados durante quatro meses
as primeiras organizações humanas.
aproximadamente. Na estação seguinte,
[...]é provável que o primeiro povoamento a terra, que pouco a pouco emergia da
efetivo do vale do Nilo tenha ocorrido no inundação, ficava pronta para a semea-
início do Neolítico (por volta de -7000). dura. Era a estação Peret – literalmen-
Nessa época, os egípcios adotaram um te, “sair” –, termo que, sem dúvida, faz
modo de vida pastoril e agrícola. En- alusão a terra que “sai” da agua e, ao
quanto aperfeiçoavam seus instrumentos mesmo tempo, a “saída”, ao despontar
e armas de pedra, inventaram – ou aco- da vegetação. Terminada a semeadura,
lheram – a cerâmica, que viria a ser para o camponês aguardava a germinação e a
nós de grande utilidade na reconstituição maturação dos grãos. Na terceira e última
de um quadro completo das diferentes cul- estação, os egípcios colhiam e estocavam a
turas egípcias durante o período neolítico
colheita disso, tinham apenas que esperar
(ABU BAKR, 2010, p. 37).
a nova enchente e preparar os campos para
Se a África é o berço da humanidade, a sua chegada. Essa era a estação Shemu
Kemit é o berço das sociedades humanas. (MOCKTHAR, 2010, p. XL).
Foi nesse local que os homens viveram por
milhares de anos e desenvolveram, inclu- Nota-se que o Nilo e a agricultura
sive, o calendário que utilizamos até hoje, eram a base para os egípcios construírem,
criarem, se adaptarem e se organizarem
onde o ano tem 365 dias e é dividido em 4
enquanto civilização. A partir desta vivên-
estações. Os egípcios desenvolveram este cia que foram construindo alguns valores
calendário, inicialmente, para se preca- civilizatórios que até hoje fazem parte dos
verem às cheias do Nilo. Mockthar (2010) povos africanos.
nos conta que:

Cosmovisão africana no Awelé

Sabemos que os povos africanos são primeiro capítulo do livro, Fu-Kiau (2001)
diversos, cada qual com suas característi- escreve sobre diversos elementos que com-
cas, valores, artes, vestimentas, culinária, põem a cosmologia do povo kongo, des-
jogos etc. Porém, existem alguns valores de a criação da Terra até os conceitos de
e cosmovisões que parecem ser comuns vida e morte (Kala-Zima-Kala) dos Mûntu
entre a maioria dos povos, desde a Anti- (seres humanos). Fu-Kiau (2001) também
guidade. Em sua tese A cosmologia africana nos traz como o povo Kongo vive em co-
dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução munidade, a forma que se organizam, se
negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil, relacionam e o que esperam dos seres hu-
Santos (2019) traz a tradução do livro de manos. Muitos desses valores e cosmovi-
Fu-Kiau (2001) A Cosmologia africana dos sões também parecem ser comuns entre os
Bantu-Kongo: princípios de vida e vivência. No povos do continente africano que foram

70
forçadamente trazidos para o Brasil, ou constituíram e se constituem num processo
seja, vieram para cá junto com os homens histórico, social e cultural. (TRINDADE,
e mulheres que foram sequestrados de 2013, p. 132).
África e escravizados pelo mundo. Trin-
dade (2013) nos apresenta alguns desses Esses valores civilizatórios também
valores, que têm origem africana, porém
são destacados por Brandão (2006) e con-
referindo-se a eles como valores civiliza-
sistem em: princípio da energia vital, cir-
tórios brasileiros. De acordo com autora,
cularidade, cooperativismo, oralidade,
A África e seus descendentes imprimiram e memória, musicalidade, corporeidade,
imprimem no Brasil valores civilizatórios, ludicidade e religiosidade. Como se pode
ou seja, princípios e normas que corporificam ver na figura 1, esses valores não estão iso-
um conjunto de aspectos e características lados, eles se intercomunicam, se conec-
existenciais, espirituais, intelectuais e tam uns aos outros, dando forma à orga-
materiais, objetivas e subjetivas, que se nização dessa cosmovisão africana.

Fonte da imagem: Brandão (2006)

71
A circularidade é um desses valores que Essa árvore é única que oferecia água ar-
está presente no jogo de Awelé e, também, mazenada dentro de si. Ninguém passa-
nos outros tipos de Mancalas. A movimen- va fome, tendo seus frutos e folhas como
tação das sementes se dá de forma circular, alimento. Desse modo, todos sobrevive-
ram. Por isso, a partir desse tempo, essa
onde os jogadores movem as peças (semen-
árvore tornou-se sagrada para nós. Res-
tes) de uma cova a outra, como se reprodu- peitamos um embondeiro tal como respei-
zissem o processo de semeadura, podendo tamos as pessoas. Cuidamos dela porque
passar por todas as covas do jogo, desta ela cuida de nós. (LIMA; GNEKA;
forma ambos os jogadores compartilham LEMOS. 2005, p. 32)
as sementes durantes as semeaduras e co-
lhem-nas, quando for possível. Essa troca As comunidades tradicionais africanas
constante durante o jogo é o que mantém costumam conviver em cooperativismo. Al-
viva a energia vital, por meio do conta- gumas sentenças em linguagem proverbiais
to com as sementes pelos dois jogadores. dos povos bantu-kongo ilustram essa coope-
Azoilda Trindade (2013) escreve que de ratividade: “Não são seus os bens da comu-
acordo com a cosmovisão africana “tudo nidade”, “Na comunidade todos ensinam e
que é vivo e que existe, tem axé, tem ener- são ensinados”, “Comunidade para mim; eu,
gia vital: planta, água, pedra, gente, bicho, para comunidade”, “Dentro da comunidade
ar, tempo, tudo é sagrado e está em intera- não há fronteiras”, “Na comunidade, toda
ção” (TRINDADE, 2013, p. 134). sorte de relação; mas não há rivais”. (SAN-
TOS, 2019, p. 191 - 206). Essas frases, que
O jogo, por si, já representa a ludicidade
remetem à sabedoria popular, entre muitas
dentro da cosmovisão africana, mas, além
outras, assim como a cosmologia africana
disso, ele traz a memória, oralidade e an-
dos bantu-kongo, e de outros povos africa-
cestralidade também. Georges Gneka nos
nos, se revelam nos jogos de Mancala. Isso
conta que aprendeu a jogar Awalé com os
faz parte da filosofia africana. Assim como
mais velhos aos pés do Baobá, que para o
nas comunidades tradicionais africanas o
povo dele (Krou – Costa do Marfim) era
cooperativismo está fortemente presente, no
chamada de Árvore da palavra, e as se-
jogo de Mancala costumamos dizer que não
mentes do seu fruto eram utilizadas para
temos um rival, um inimigo, pois nós esta-
jogar o Awalé. (LIMA; GNEKA; LEMOS,
mos dividindo as mesmas terras e sementes,
2005). Agbiyan (2004) também relata que
além de ser proibido deixar nosso parceiro
dentro da comunidade em que ele nasceu
de jogo faminto “[...] é, sobretudo, um jogo
(Anyuwogbu - Nigéria), os anciãos tinham
baseado na generosidade: para ganhar, um
o costume de jogar o “Echi”, nome que eles
jogador tem que saber doar ao seu adversá-
dão ao Mancala por lá, embaixo do baobá,
rio” (LIMA; GNEKA; LEMOS, 2005).
onde elaboravam diversas estratégias e re-
alizavam operações matemáticas constan- Os jogos de semeadura representam o
temente durante o jogo. Esses dois relatos que as sociedades africanas são por meio
indicam que o jogo, dentro das comuni- da ludicidade, onde uma simples colheita
dades africanas, é ensinado oralmente dos exige planejamento, estratégia, conheci-
mais velhos aos mais novos, rememorando mento e inteligência. No jogo encontramos
os ensinamentos ancestrais. Além disso, a as características das relações sociais exis-
referência ao baobá nos mostra a impor- tentes entre os povos africanos, sendo que
tância que a árvore tem para os africanos, elas se dão predominantemente por meio
sendo considerada sagrada para muitos po- de cooperação e trocas. Portanto, jogar
vos, como escreve Mário Lemos (2005): Awelé, ou qualquer outro tipo de Mancala,
nos permite vivenciar um pouco da cultura

72
e valores africanos. Com o jogo, podere- clusivamente ocidentais, que nos são trans-
mos vivenciar diversos elementos que fa- mitidos diariamente, desde a colonização.
zem parte da cosmovisão africana e afro- Conhecer esses outros saberes pode evitar
-brasileira, dando-nos a oportunidade de a reprodução de estereótipos construídos
conhecermos outras formas de sociedade, pela cultura ocidental, que estigmatizam
cultura e cosmovisões, além dos saberes ex- as culturas africanas e afro-brasileiras.

Porque levar o Awelé para a escola?

Diante o exposto anteriormente, nota- ção e raciocínio lógico. [...]. Entretanto, po-
mos a diversidade de temas que podemos demos ainda, por meio de situações concretas
vivenciar na escola por meio do Awelé. do jogo, construir conhecimentos matemáticos
Passamos pela origem da Terra, evolu- que são sistematizados pela escola como, por
ção humana, História da África, História exemplo, porcentagem, progressões aritméti-
cas e geométricas, tratamento da informação
do Brasil, valores civilizatórios africanos
e análise combinatória. (PEREIRA et al.,
e afro-brasileiros, cultura e arte africana
2018, p. 7)
e afro-brasileira. Além de todo conteúdo
elencado, ainda é possível utilizar o jogo O jogo demonstra, então, ser um im-
como uma ferramenta para abordar a ma- portante instrumento para o desenvol-
temática. Existem diversos estudos sobre vimento do raciocínio matemático. Ag-
etnomatemática que propõem a eficácia do binya (2004) relata que apenas na vida
jogo no aprendizado da matemática pelos adulta que passou a perceber que os an-
alunos. O jogo, além de contribuir para o ciãos que jogavam em sua aldeia conta-
raciocínio lógico, fomentar operações ló- vam na base 5, a cada jogada que faziam.
gicas, testar hipóteses, exercitar a concen- Utilizavam essa, e outras operações ma-
tração e construir identidades, contribui temáticas, estrategicamente, para obter
com o conteúdo da matemática inferindo vantagens no jogo.
na “geometria; sequência; equação e ine-
quação; sistema de numeração decimal; Podemos ver, assim, que por meio
estratégia; valor posicional; localização dos jogos da famí- lia
e espacialidade” (SANTOS; FRANÇA, Mancala proporcio-
2017, p. 97). Para Pereira et al. (2018), namos aos estudantes
um saber descolonizado3,
dando-lhes a oportuni-
No jogo Awalé, encontramos uma série de
dade de conhecerem
conceitos matemáticos que são sistematizados
pela escola. Temos tal percepção, por exemplo, e se identificarem
enquanto se joga. [...]. Com isso, de forma in- com outras cultu-
voluntária e espontânea, utilizam vários cál- ras, além da que
culos matemáticos que a própria dinâmica do lhes foi imposta his-
jogo exige, como a contagem, estimativas, pro- toricamente de forma he-
babilidade, análise combinatória, concentra- gemônica, que é a cultura

3 Descolonizar significa superar o colonialismo. Um saber descolonizado é um saber que vá além dos sabe-
res impostos pelos colonizadores.

73
ocidental. Conhecer outras formas de ver Apresentar a cosmovisão africana, utili-
o mundo, de se relacionar com as pesso- zando o jogo Mancala, contribui para o au-
as, partindo da perspectiva africana, pode mento de repertórios das educadoras (es), es-
despertar nos estudantes, um interesse e tudantes e possibilita novas reflexões, a fim
admiração maior pela estética negra, pos- de uma educação antirracista. O racismo
sibilitando uma aceitação maior de suas está inserido em todos ambientes e setores
características físicas, ao invés de busca- da sociedade brasileira, inclusive na escola,
rem atender aos padrões estéticos impos- local este no qual as crianças reproduzem
tos pela sociedade ocidentalizada. todas as violências, falas e preconceitos que
elas escutam. Diante disso, o papel dos pro-
O jogo tem um valor muito grande
fissionais da educação se torna fundamen-
para o povo africano, pois ele represen-
tal para reduzir e, quem sabe, extinguir
ta o estilo de vida, a ancestralidade, o
de uma vez por todas, o racismo. Somente
lúdico entre outros valores civilizatórios
descolonizando o saber, desconstruindo es-
africanos. Gneka (2005), que é um marfi-
tereótipos, fornecendo informações sobre a
nense, afirma que:
cultura, história, povos e arte africana, sob
o olhar e epistemologia africana, que conse-
Ao jogar, o que se está fazendo é repetir guiremos fazer com que as crianças passem
os ciclos da natureza: o cultivo do solo a admirar e se identificar com outras cultu-
e as colheitas, que seguem o ritmo das ras que não seja a hegemônica. Kiusam de
estações. [...] O awelé baseia-se na re- Oliveira [2017] nos escreve que:
distribuição contínua das sementes. [...]
Semear para colher é o princípio fun-
É hora de combater o racismo porque,
damental, que não varia. Esse é o se-
na ponta de todo o processo educativo, há
gredo e a fonte, na prática fundamental
uma ou um estudante negro necessitando
africana, da troca (LIMA; GNEKA;
se empoderar, e um estudante branco
LEMOS. p.54. 2005).
precisando aprender a enfrentar a educação
racista que recebe nos espaços sociais que
Por meio das regras e movimentos do frequenta. Mas como fazer isso? E eu
jogo, podemos notar como ele se relaciona respondo: Por três formas: a) aceitando
ao modo de vida dos povos africanos. Se- que o racismo existe; b) descobrindo onde
mear para colher, armazenar as sementes, você o guarda; c) combatendo-o através
não deixar seu parceiro sem sementes, não de práticas pedagógicas que foquem o
ter dono na terra, compartilhar as mesmas empoderamento da população escolar
sementes, a organização circular etc. Por negra (OLIVEIRA, [2017], p. 20).
conta disso, não dizemos que somos adver-
sários no jogo. Em sua tese, Santos (2018) Mostrar um continente africano po-
traduz uma sentença proverbial do povo tente, rico, cheio de diversidade, conheci-
bantu-kongo, registrada por Fu-Kiau, que mento, sabedoria, inteligência e tecnolo-
representa esta relação social: “Mu kan- gia fará com que as crianças passem a ter
da kikanda, bukanda, kinkwezi, um olhar diferente para a cultura africa-
kimwanambuta, kisikanda, kikun- na, ou olhar que não seja estereotipado e
di, kinzayani. Ka mwena kimpala distorcido, como difundido pelas mídias e
ko. [...] Na comunidade, toda sorte de livros, é reproduzido por grande parte da
relação; mas não há rivais” (SANTOS, população brasileira.
2019, p. 202).

74
Conclusão

É possível concluir que o jogo de awelé tilhar os espaços e as riquezas que lá estão
pode ser uma ferramenta pedagógica muito de forma igual, sem que um fique sem ter
importante para abordar a cultura, histó- nada e ambos possam ter o direito de co-
ria e arte africana e afro-brasileira para as lher e transitar pelo todo. Este olhar para
escolas, como regem as Leis nº 10.639/03 o outro como alguém a quem devo com-
e nº 11.645/08. Trabalhar com essas di- partilhar minhas terras e sementes reduz
ferentes epistemologias, que não sejam as o sentimento de rivalidade, superioridade e
ocidentais, possibilita uma nova forma discriminação entre os estudantes.
de perceber o mundo e de se perceber no
Com o jogo, é possível dar sentido a
mundo, oportunizando aos estudantes re-
existência e valorização da cultura ances-
fletirem e entenderem questões relativas ao
tral africana. A construção da identidade
racismo no nosso país, que silenciam, mar-
negra no Brasil é um processo de trans-
ginalizam e apagam outras epistemologias
formação que demanda reflexão e ação
que não sejam as hegemônicas e, com isso
contínua. O Awelé não é apenas um jogo
se identificarem e valorizarem os saberes
é uma pedagogia transformadora que per-
africanos e afro-brasileiros.
mite conexão identitária e compreensão da
Ressignificar e valorizar as culturas de valorização cultural. Georges Gneka diz
matrizes africanas é essencial para dimi- que “Pelo awalé, o jogador conhece a alma
nuir a desigualdade entre as pessoas que africana ou a dos baobás, pois é com seus
formam a diversidade sociocultural brasi- grãos que se joga. A diversão tem um pé na
leira. Os princípios do jogo trazem o coo- mitologia e outro no cotidiano da África.”
perativismo, em que todos devem compar- (LIMA; GNEKA; LEMOS, 2005).

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75
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77
Imagem: Adobe Stock

Protagonismo Negro
e a Educação no Brasil1
Vínicius Felipe Gomes
Professor de Ensino Fundamental II e Médio
EMEF Adolpho Otto de Laet – DRE Jaçanã/Tremembé

1 A conclusão e a idealização deste artigo seriam impossíveis sem a contribuição fundamental de meu ami-
go e companheiro de turma do curso de Pedagogia na Universidade Federal de São Paulo, Sandro Merg Vaz, o qual
foi o responsável pela construção cronológica do Movimento Negro no Brasil, bem como a escolha do texto “vozes
da África”, contido na primeira parte deste trabalho. Este trabalho faz parte de estudos compartilhados, debates,
descobertas e notas de nossas aulas na disciplina de História da Educação.
RESUMO

A
presente pesquisa tem por objetivo analisar os movimentos
negros a partir da ótica da educação no Brasil, utilizando
paralelamente os textos de Gomes, Gonçalves e Silva. Te-
mos como por objetivo, entender como esses movimentos
protagonizaram a luta pela educação em nosso país. Para responder tal ques-
tionamento, partimos da observação de fases do movimento negro no Brasil
bem como sua participação na formulação de Políticas Públicas Educacionais.

Palavras-Chaves: Educação, movimento negro, políticas públicas.

79
Introdução

No final do século XX e início do sécu- castigos físicos perpetrados por séculos, os


lo XXI, houve avanços importantíssimos colonizadores simulam uma pseudoliber-
do ponto de vista racial no Brasil. A Lei nº tação dessa massa, negando-lhes a chave
10.639/03 e a Lei nº 12.711/13 são o nos- para uma equalização social: a educação.
so ponto de partida para uma análise dos Como pensar em um projeto de nação com
avanços em relação às políticas públicas de a hipocrisia sórdida da diferenciação? Com
equidade racial. um racismo suave e velado que ainda per-
dura no século XXI? A saída sempre esteve
Por se tratarem de leis, temos o comum
na luta das minorias em conjunto com os
engano de acreditar que o debate, elabora-
setores progressistas. O poema do abolicio-
ção e aplicação delas tenham como dínamo
nista Castro Alves pode nos orientar nesse
o poder público e, assim sendo, apagamos
processo de anamnese
ou minimizamos a participação de sujeitos,
entidades e instituições em um processo
VOZES D'ÁFRICA
longo e diversificado para o estabelecimen-
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
to de tais legislações.
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Pretendemos debater temas com leitu- Embuçado nos céus?
ras de outras áreas, tendo dois objetivos: Há dois mil anos te mandei meu grito,
analisar as fases dos movimentos negros Que embalde desde então corre o infinito...
no Brasil, e a participação dos movimen- Onde estás, Senhor Deus?...
tos negros na formulação de Políticas Pú- (...)
blicas Educacionais. Tal esforço tem como Hoje em meu sangue a América se nutre
ponto final evidenciar como os movimen- — Condor que transformara-se em abutre,
tos negros do Brasil protagonizaram a luta Ave da escravidão,
pela educação.
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Não temos como deixar de pensar no Qual de José os vis irmãos outrora
sofrimento causado aos povos negros pelo Venderam seu irmão (ALVES, 2009).
homem branco europeu. Além de todos os

I. As fases do Movimento Negro


no Brasil

Ao analisar os textos de Gonçalves e buscamos entender os movimentos pós-


Silva (2000) e Gomes (2011), percebemos 2016, como resultantes de uma reformu-
quatro fases distintas das ações dos mo-
lação das estruturas do Estado brasileiro.
vimentos negros brasileiros referentes à
Portanto, nesta primeira etapa iremos de
educação: a de exclusão absoluta, a autô-
noma, a de cobrança ao Estado e a áurea, maneira cronológica apresentar as fases
com os maiores avanços obtidos na fase do movimento negro no Brasil e suas for-
de redemocratização do Brasil. Por fim mas e ferramentas de atuação.

80
A. Fase da Exclusão Absoluta

Desde a colônia, a questão da educa- Quando nos interrogamos acerca do aban-


ção dos negros do Brasil foi alvo da não dono a que foi relegada a população ne-
ação do Estado. Tanto por proibir qual- gra brasileira no que se refere à educação
quer acesso dos africanos escravizados à escolar, não podemos deixar de considerar
escola quanto encará-los como um entra- os dados supracitados. Por parte do Es-
ve à modernidade do país. Como enfatiza tado, houve, na segunda metade do século
Gonçalves (2000): XIX, uma iniciativa concreta que, se cor-
respondida à altura, poderia ter mudado a
Quando relemos as críticas lançadas à condição educacional na qual os negros in-
atual situação educacional dos negros gressaram no século XX (GONÇALVES;
brasileiros, encontramos dois eixos so- SILVA, 2000, p. 137).
bre os quais elas foram estruturadas:
exclusão e abandono. Tanto uma quan- Na prática, isso não ocorreu, pois ou-
to o outro têm origem longínqua em nos- tros artigos da referida lei permitiam aos
sa história (GONÇALVES; SILVA, senhores usufruir do trabalho das crianças
2000, p. 135). libertas até os 21 anos. Além disso, muitos
desses senhores enviavam até os jovens
Além do referido descaso, pressões da
pardos para a Casa dos Expostos, pois era
elite conseguiram forçar a aprovação da
mais lucrativo manter suas mães como
Lei do Ventre Livre com alterações em re-
ama-de-leite do que receber a indeniza-
lação a sua redação inicial. Onde se dese-
ção do governo, ou seja, mais uma vez o
java que as crianças nascidas de mulheres
Estado nega educação ao povo miscigena-
escravas a partir de 28 de setembro de 1871
do por meio de suas leis, isso é perceptível
fossem educadas. Por pressão dos senhores
ao constatar que apenas 113 crianças (ou
de escravos2, esses foram isentos de qual-
0,02%) foram encaminhadas às institui-
quer responsabilidade sobre o tema. A le-
ções de acolhimento. Por fim, destacamos
gislação ainda previa que somente seriam
uma das mais antigas associações negras
educadas aquelas crianças que fossem en-
do Brasil, nas palavras de Gonçalves.
tregues ao governo, por meio de estabeleci-
mentos públicos destinados a esse fim, por Tomemos, como exemplo, os eventos
seus proprietários mediante indenização. organizados por uma das mais tradicionais
Segundo Gonçalves e Silva (2000), esta e insuspeitas organizações negras no Brasil,
ação poderia ter beneficiado a população a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta
negra da época, portanto, Aurora, de Porto Alegre. Entidade
fundada em 1872, conserva
Sendo assim entendemos que:
em seu patrimônio uma
Quando relemos as críticas lançadas à importante história de
atual situação educacional dos negros luta contra o racis-
brasileiros, encontramos dois eixos so- mo no Brasil. Entre
bre os quais elas foram estruturadas: suas iniciativas vi-
exclusão e abandono. Tanto uma quan- sando à educação,
to o outro têm origem longínqua em nos- ainda no século
sa história (GONÇALVES; SILVA, passado, confor-
2000, p. 135). me registros em
livros e atas da en-
tidade, como lem-

2 Era o nome utilizado na época para designar pessoas das classes abastadas que
haviam comprado pessoas em situação de escravidão.

81
bra o militante Nelson Santana, está a salários para que fosse ensinado a ler e es-
reserva financeira formada com a contri- crever aos que não tiveram acesso à escola
buição que os associados retiravam de seus (GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 152).

B. Fase Autônoma

Após a Proclamação da República la. Pouco se esperava do Estado, porque se


houve uma profusão de novas iniciativas da desconfiava dele” (GONÇALVES; SILVA,
comunidade negra. As décadas de 20 e 30 2000, p. 146).
foram profícuas na criação de periódicos
Toda essa militância jornalística negra
como “O Clarim d´Alvorada”, “O Progres-
faz com que ao final dos anos 1930 surjam
so” e “A Voz da Raça”, cujos inflamados
movimentos mais articulados e integrados,
artigos conclamavam a população negra
aos estudos, como forma de ascensão social especialmente nas capitais e grandes cida-
e obtenção de respeito de toda a sociedade, des. Tendo como expoente a Frente Negra
às vezes em formas de críticas exacerbadas, Brasileira, essas associações fomentaram
culpando a indolência do seu público-alvo: várias iniciativas educacionais próprias,
sem requisitar o auxílio do Estado.
como se dirigiam a um grupo que se dis-
Fundada em São Paulo em 1931, a
tinguia no interior da comunidade negra,
ou seja, um grupo do qual poderiam emer- Frente Negra Brasileira foi responsável
gir lideranças, os jornais não poupavam pelo maior sucesso educacional na época,
críticas ao comportamento da maioria da tendo alfabetizado mais de 4.000 alunos
comunidade. Por exemplo, atribuíam, às e do ensino primário e de formação social
vezes, aos próprios negros a responsabi- a outros 200, inclusive de outras “raças” e
lidade pela precária situação educacional remunerando os educadores com recursos
da comunidade negra (GONÇALVES; próprios. Seus cursos de formação política
SILVA, 2000 p. 141). visavam à reconstrução da autoestima ne-
Como esse público-alvo era composto gra, a fim de mudar o seu comportamento
por uma grande maioria de analfabetos, futuro, o que levou à formação de várias
os jornalistas transformaram-se em ora- lideranças que continuaram a luta através
dores, em grandes datas comemorativas da criação de outras associações, como o
a fim de divulgar seus ideais aos que não Centro Cívico Palmares. Infelizmente, de-
poderiam ler. Assim eles criaram um vido à falta de recursos financeiros para
contingente de iletrados que seguiam ampliar a sua atuação e tendo se tornado
seus artigos através da leitura de filhos um partido político em 1936, foi extinta
e netos. Também tinham forte papel na pela ditadura Vargas em 1937.
divulgação das iniciativas educacionais, Em todo o Brasil, várias outras asso-
sempre independentes e autofinanciadas. ciações tiveram impacto no fomento da
A desconfiança com a manutenção das educação e conscientização da negritude
oligarquias pós-República e a total falta de brasileira. O Instituto São Benedito (1915),
subvenção do Estado a essas iniciativas, fize- em Pelotas (RS) e a Frente Negra Pernam-
ram com que a comunidade se mobilizasse a bucana (1936) tiveram papel importante,
fim de mitigar essa situação, “como se pode tanto na formação política e educacional
ver, contrariamente ao que se supunha, a da sua comunidade, bem como na cons-
ação dos movimentos negros se constituía trução de movimentos de âmbito nacional,
muito mais na autonomia do que na tute- que ocorreria na fase seguinte.

82
C. Fase de cobrança ao Estado

Dedicamos neste momento, especial ver de educar os seus cidadãos, como diz
atenção ao período de 1945 e 1985, para Gonçalves e Silva
destacar uma das fases de maior crescimen-
to e articulação dos movimentos negros. Não por acaso, os idealizadores do Teatro
Por meio de alianças com setores progres- Experimental do Negro criticam radical-
sistas da sociedade, bem como intelectuais mente o modelo proposto pelos militantes
brasileiros e estrangeiros, as associações fo- paulistas. Segundo eles, assumir para si
ram capazes de influenciar o Estado com aquilo que seria tarefa do Estado, acabou
ambiciosas propostas e requisições. criando uma espécie de isolamento do ne-
A partir de estudos de Florestan Fer- gro, um tipo de gueto (Gonçalves, idem,
nandes e de Roger Bastide, que acabaram p. 125-126). A esse respeito, Guerreiro
por desconstruir o mito do nosso paraíso Ramos não poupava palavras. Via o oti-
racial, o tema da negritude ficou cada vez mismo dos frentenegrinos como uma espé-
mais em voga neste período. Com a criação cie de afecção mórbida, resultante de uma
do Teatro Experimental Negro (TEN), em incapacidade de agir (GONÇALVES;
1944, Abdias do Nascimento e Guerreiro SILVA, 2000, p. 146).
Ramos elevam o patamar intelectual e de
alcance do movimento negro até então. Além disso, o TEN acrescentou um
Com viagens e contatos com outras asso- novo elemento de junção de educação
ciações por todo o Brasil, preparando a “1ª e cultura. Mais do que aprender a ler e
Convenção Nacional do Negro do Brasil”, escrever, o negro necessitava remover de
conseguiram influenciar inclusive a Consti- si o seu sentimento de inferioridade que
tuinte de 1946, ainda que tenham perdido estava profundamente enraizado na socie-
apoio parlamentar e de outras associações dade desde sempre. Por meio do teatro, as
importantes (como a UNE – União Nacio- neuroses poderiam ser tratadas como te-
nal dos Estudantes), sob a alegação de ra- rapia grupal. Além disso, se propunha a
cismo reverso. formar intelectuais que pudessem criticar
O TEN foi de importância fundamen- as raízes estrangeiras da cultura brasilei-
tal nesse período, pois muda o foco das ra. Mesmo com seu término, o TEN iria
ações: tendo o combate ao racismo como influenciar a próxima geração de movi-
protagonista, devolve ao Estado o de- mentos negros no Brasil.

D. Fase Áurea

Os ventos da democracia aos poucos os movimentos negros da época, em espe-


voltaram a soprar, ainda que na fase der- cial o Movimento Negro Unificado, em seu
radeira da Ditadura Militar. Com a Lei manifesto contra a discriminação, de 1978.
da Anistia de 1979 e o consequente re- Como afirma Gonçalves e Silva:
torno dos maiores intelectuais e políticos
progressistas do exílio, o Brasil entrou em Inicialmente, o próprio movimento negro
uma efervescência político-cultural, iria gerou novas organizações, mais competen-
ampliar, quantitativa e qualitativamente, tes para lidar com o tema da educação.

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Isto se explica, em parte, pelo aumento do sultado no âmbito legal o estabelecimento
número de militantes com qualificação em no ano de 2011 da Lei 12.519/11 que tem
nível superior e médio. Passa-se a compre- por finalidade reconhecer o dia Nacional
ender melhor os mecanismos da exclusão de Zumbi e da Consciência Negra, a ser
e, por conseqüência, como combatê-los
comemorado, anualmente, no dia 20 de
de forma mais eficiente. A via acadêmi-
ca, por maior que seja a crítica que a ela novembro (BRASIL, 2011).
se possa fazer, aumentou a comunicação A vitória de partidos progressistas nas
entre os pesquisadores que estudam o as-
eleições de 1982, fez com que fossem inseri-
sunto, e entre estes e os militantes negros.
Pelos registros que tínhamos disponíveis, das nas plataformas de governo, ações mais
parece-nos que esse aumento de comuni- afirmativas na questão educacional dos ne-
cação propiciou novas formas de trocas gros, pois muitos dos assessores vieram dos
de experiências, e, mais do que isso, de movimentos supracitados. Mudanças nos
conhecimento (GONÇALVES; SILVA, currículos escolares e nos livros didáticos
2000, p. 149-150). foram conquistas dessa época, bem como
A criação do Dia da Cultura Negra, em o florescimento de outras formas de educa-
20 de novembro, homenageia Zumbi dos ção inclusivas por todo o país.
Palmares e reafirma a luta de seus herdeiros A pressão da parcela negra sobre a
contra o racismo, também dá início a uma sociedade brasileira só iria aumentar aos
série de eventos, como o debate da discri- longos dos anos seguintes. Através de dois
minação nos sistemas de ensino na “Confe- encontros nacionais sobre a Realidade do
rência Brasileira de Educação” – CBE, em
Negro na Educação, que levantou propos-
1982. Nesse mesmo ano houve a realização
tas concretas para o tema, bem como o
da “1ª. Convenção do Movimento Negro
Centenário da Abolição em 1988.
Unificado”, na cidade de Belo Horizonte,
que discutiu questões como o maior acesso Com os resultados obtidos, foi perceptí-
dos negros em todos os níveis educacionais, vel a influência de diversos órgãos governa-
criação de bolsas e formas de aumentar a mentais, federais, estaduais e municipais,
permanência desses estudantes no sistema tendo a constituição cidadã de 1988 como
de ensino. Tal movimentação tem como re- auge das conquistas até então.

II. Participação dos movimentos negros


na formulação de políticas públicas
educacionais

É fato que a aurora do século XXI trou- políticos e sociais surgem em um número
xe ao debate, importantes temáticas até en- maior. Ao pensar a estrutura do racismo no
tão marginalizadas não apenas pela socie- mundo e sua sedimentação, caímos na falsa
dade e em partes pela academia. Produções ideia de simplificar como essa estrutura foi
que trazem ao centro questões relacionadas montada, ignorando assim sua relação dire-
aos negros, bem como seus movimentos ta com algumas concepções atuais.

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Os movimentos negros no Brasil, e no Lei nº 10.639/03 que estabelece o ensino de
mundo, têm protagonizado um enfren- história da África e Cultura Afro-brasilei-
tamento a essa estrutura de genocídio e ra e o estabelecimento das cotas raciais em
preconceito contra vidas negras, entretan- todo o país. Mas qual a intencionalidade
to ainda é muito comum a relativização dessas políticas públicas?
dessa realidade com justificativa como “vi-
Exclusão e abandono marcam a rela-
das humanas importam” ou até mesmo a
ção do Estado brasileiro com os negros.
acusação de racismo reverso. Diante desse
Como já abordado no presente texto, a Lei
debate, o papel da Educação, ganha uma
do Ventre Livre se mostra como um divisor
importância fundamental, pois ela é a pon-
de águas dessa situação, pois “crianças nas-
te entre a academia e comunidade, servido
cidas de mulheres escravas, a partir dessa
de espaço de reflexão e experimentação da
data, eram livres e deviam ser educadas”
ciência bem como a proliferação de con-
(GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 136). A
cepções filosóficas e sociais e de equidade.
educação dessas crianças era motivo de
Para Boaventura Santos,
debates entre alguns intelectuais da época.
qualquer conhecimento válido é sempre Por um lado, havia aqueles que achavam
contextual, tanto em termos de diferença necessário a libertação dos escravos, e por
cultural como em termos de diferença po- outro os que queriam condicionar essa li-
lítica, experiências sociais são constitu- bertação a um processo de letramento, com
ídas por vários conhecimentos, cada um o objetivo de “libertar” essas crianças da
com seus critérios de validade, ou seja, cultura escravista.
são constituídas por conhecimentos rivais
(SANTOS, 2009, p. 9). A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888,
libertou os escravos do Brasil de forma
Não pretendemos aqui debater a ques- definitiva. Gonçalves e Silva exploram o
tão do programa da empresária Luiza Tra- debate em relação a esse processo, uma
jano ou a pauta e a atuação dos movimen- vez que para a sociedade desse contex-
tos negros no Brasil e no mundo, mas com to, existia a necessidade de se estabelecer
eles exemplificar uma nova identidade para o povo brasi-
leiro. Novos sujeitos como os migrantes e
uma reivindicação que vai além das co-
tas raciais demandando a igualdade ra- os negros libertos estavam diante de uma
cial no mercado de trabalho, nos meios nova organização social pós-escravidão.
de comunicação, nas universidades pú- Diversas foram as teorias raciais baseadas
blicas, na saúde, enfim, nos vários seto- no darwinismo social e no racismo, pode-
res sociais em que a desigualdade racial mos citar intelectuais do início do século
se perpetua (GOMES, 2011, p. 151). XX como Nina Rodrigues, Sílvio Rome-
ro e Euclides da Cunha que tinham como
Toda ação no campo Política da Edu-
base teorias raciais sustentadas em pseu-
cação tem uma intencionalidade, ou seja,
dociência e biologia.
ela parte de um ponto, e é voltada para um
grupo de sujeitos e por isso precisamos olhar Dessa maneira, a consolidação do país
para estas políticas públicas como ações po- como “nação civilizada” se deu por meio
líticas intencionais (KRAWCZYK, 2015). da estruturação do racismo, na república
Sendo assim promover ações afirmativas pós-abolicionista. Os negros, indígenas e
tem a intencionalidade de alterar determi- mestiços libertos, não apenas das correntes,
nadas estruturas básicas da sociedade. No mas de todo e qualquer poder de represen-
final do século XX e início do XXI houve tação, sem qualquer espaço de influência e
a formulação de políticas públicas como a de poder ficaram à margem das possíveis

85
benesses daquela prematura cidadania re- no, que se constrói na cena política, lutan-
publicana (MUNANGA, 2009). do contra as formas de dominação social”
(GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 138).
A Era Vargas estabelece então um Não devemos esquecer que para alcançar
novo item a esse cenário, a identidade mudanças sociais significativas e compor-
nacional baseada em princípios sociocul- tamentais de negras e negros brasileiros
turais. Temas como o samba, futebol e a “seria necessário promover junto à escola-
capoeira buscam promover a cultura desta rização, um curso de formação política”.
nova identidade do brasileiro que tem na (GONÇALVES; SILVA 2000, p. 144).
miscigenação sua maior marca enquanto
Ao relacionarmos esses itens a um con-
povo. Nascia, assim, a partir de um gru-
texto de luta por direitos civis e sociais
po de pensadores, como Gilberto Freyre,
mais amplos, podemos adicionar os Esta-
o mito da “democracia racial”. Esse mito
dos Unidos, que nesse processo contaram
contribuiu para a reafirmação do racismo
com figuras como Rosa Parks, Martin Lu-
em sua estrutura, pois,
ther King, Malcon X e Angela Davis, entre
ao estudar a mobilidade social de bran- outras lideranças, que ao se posicionarem
cos e negros no Brasil, mostra como tais contra o Estado, foram criminalizados du-
desigualdades não derivam apenas das plamente, primeiro por uma parcela mais
diferenças observáveis no ponto de partida conservadora da sociedade e da imprensa
de ambas as populações, mas são devi- e, segundo, pelo próprio Estado repressivo.
das, principalmente, às oportunidades No Brasil, a repressão do Regime Mili-
desiguais de ascensão após a abolição tar forçou uma articulação entre esses mo-
(ROSEMBERG, 1998, p. 74). vimentos e grupos progressistas. Por aqui
mesmo com a nova Constituição de 1988,
Essa estrutura se baseia no pensamento a cidadania permanece um privilégio de
liberal do início do século XX, em que o brancos. Para Munanga, o racismo latino
sucesso era de exclusiva responsabilidade americano não está ligado à biologia, “ele
do indivíduo, pois a sociedade era repleta faz parte de um racismo ‘novo’ se alimen-
de chances em que ta da noção de etnia definia como grupo
cultural, categoria que constitui um léxico
militantes mais arrojados acabavam afas- mais aceitável que a raça (falar politica-
tando possíveis adeptos da causa negra, mente)” (MUNANGA, 2000, p. 27). Go-
simplesmente porque viam neles apatias, mes concebe a ideia de que o racismo pode
falta de vontade, promiscuidade ou até uma ser visto por dois lados:
mentalidade de escravo que ainda não havia
se libertado do cativeiro (GONÇALVES; por um lado, um comportamento, uma
SILVA, 2000, p. 145). ação resultante da aversão, por vezes, do
ódio, em relação a pessoas que possuem
Faz-se necessário relem- um pertencimento racial observável por
brar que a Educação era não meio de sinais, tais como: cor da pele,
apenas parte significativa tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado
da luta dos movimentos um conjunto de idéias e imagens referen-
negros no Brasil, mas era te aos grupos humanos que acreditam na
fundamental “considerada existência de raças superiores e inferiores
espaço prioritário de ação (GOMES, 2005, p. 52).
e de reivindicação. Quanto
mais a população negra liber- Sobre essa estrutura, e sua constituição
ta passava a figurar na história na prática, Hofbauer afirma que “todos os
com o status político de cida- índices socioeconômicos revelam a existên-
dão” (GOMES, 2011, p. 136). Tais cia de discriminação” (HOFBAUER, 2011,
movimentos, “de protestos dos negros p. 55), entendemos então que existe um “ra-
com o formato de um ator coletivo moder- cismo à brasileira”. Diante disso, a argu-

86
mentação de movimentos Mensurar
sociais é de que o caminho qual o efeito em
para superar tal conjuntura médio e longo
precisava passar por meio de prazo é algo que
uma transformação do proces- carece de dados e
so educacional, pois “constitui-se variáveis, que não se-
um dos principais ativos e mecanismos
riam possíveis serem analisados
de transformação de um povo e é papel da
neste trabalho. Porém, “não há como ne-
escola” (BRASIL, 2004, p. 7). O contexto
desse Brasil do século XXI demonstrava gar que as ações afirmativas mexem com a
que o racismo estrutural pode ser perceptí- ideologia da democracia racial brasileira e
vel em números, uma vez que colocam em xeque o discurso da tão propa-
lada identidade nacional inclusiva e diver-
pessoas negras têm menor número de anos sa” (GOMES, 2011, p. 151) e tais medidas
de estudos do que pessoas brancas (4,2 se constituem como “as mais relevantes po-
anos para negros e 6,2 anos para bran- líticas criadas especificamente para as popu-
cos); na faixa etária de 14 a 15 anos, o lações negra e indígena no Brasil foram as
índice de pessoas negras não alfabetizadas que preconizam a oferta de cotas raciais nas
é 12% maior do que o de pessoas bran-
instituições de ensino superior” (SANTOS;
cas na mesma situação; cerca de 15%
SCOPINHO, 2016, p. 269). Sendo que as
das crianças brancas entre 10 e 14 anos
encontram-se no mercado de trabalho, en- ações afirmativas
quanto 40,5% das crianças negras, na
trazem para o cerne do debate político e
mesma faixa etária, vivem essa situação.
educacional a indagação sobre a forma
(BRASIL, 2004, p. 7).
como historicamente a direito à vivência da
diversidade, com dignidade, e a efetivação
Outra Política Pública fundamental
da igualdade social e racial articulada à
estabelecida no século XXI, foi a Lei nº
equidade e à justiça social vêm sendo cons-
12.711 de 2012, que amplia o acesso ao truídos (GOMES, 2011, p. 115).
ensino superior por meio de cotas raciais
e que “tem favorecido um quadro políti- Por fim, “não há como negar que as
co-social de inclusão da população negra ações afirmativas mexem com a ideologia
e indígena em universidades e institutos da democracia racial brasileira e colocam
federais antes nunca visto no país” (SAN- em xeque o discurso da tão propagada
TOS, 2019, p. 2). Até 2016, mais de 20% identidade nacional inclusiva e diversa”
das vagas em unidades de ensino federal (GOMES, 2011, p. 115). Sendo elas funda-
do Brasil são ocupadas por jovens negros, mentais para o estabelecimento de uma so-
segundo estimativas da Secretaria Especial ciedade mais justa e igualitária, represen-
de Políticas de Promoção da Igualdade Ra- tando com louvor o trabalho fundamental
cial (SEPPIR) (SANTOS, 2019, p. 2). As de movimentos negros que durante toda a
cotas afirmativas têm papel fundamental, história do nosso país, lutam de forma mar-
uma vez que o acesso e a permanência em ginalizada pela educação livre, igualitária
universidades são sempre menores no caso e para todos, uma vez que
de estudantes negros, fazendo com que es-
ses espaços sejam ocupados predominante foi a partir das reivindicações e articula-
e historicamente por brancos econômica e ções políticas do movimento negro por me-
socialmente privilegiados. Quais os efei- lhores condições de vida para a população
tos a médio e longo prazo dessas medidas? negra, que se tornou pauta do dia a falta
de acesso desses sujeitos aos direitos so-
Como os jovens atingidos por elas reagem
ciais básicos (SANTOS; SCOPINHO,
a essa política pública?
2016, p. 268).

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Entretanto, ainda se faz necessário a velho problema. Isto explica por que os
continuidade dessa luta, pois movimentos negros, embora convencidos
da importância dos grupos de estilos,
continuam a reivindicar educação esco-
e continua sendo um problema crucial
lar para todos (GONÇALVES; SILVA
para a educação dos negros no Brasil, um
2000, p. 157).

Conclusão

Este trabalho buscou analisar o mo- história da África e cultura africana como
vimento negro em seu protagonismo na parte obrigatória e transversal dos currícu-
educação brasileira na luta por direitos da los de todas as escolas do Ensino público e
população historicamente excluída. De- privado do Brasil e a criação de cotas ra-
monstrando que a presença de reivindica- ciais em universidades públicas federais de
ções de movimentos negros decentraliza- todo o Brasil.
dos no Brasil é perceptível desde o Império.
Sendo assim, reconhecemos o protago-
O movimento negro se estrutura mais for-
nismo dos movimentos negros em um pro-
temente a partir da década de 30 do século
cesso de formulação e estabelecimento de
XX e tem o seu ápice na primeira década
do século XXI. Através de uma penetra- políticas publica educacionais amplas que
ção de âmbito nacional, uma influência superem a exclusão e o abandono histórico
internacional e uma aliança com os inte- a essa população.
lectuais progressistas da época, o ativismo Tais temáticas são fundamentais para
preto consegue penetrar no campo político a formação de professores de todo o Bra-
institucional. Assessorando governadores sil, bem como a conscientização de boa
e prefeitos após a Nova República, obtém parte da sociedade brasileira que ainda
avanços expressivos em alguns estados e possui uma discriminação velada e não
municípios, gerando experiências inovado- aceita a equidade dos negros no contexto
ras no que tange à descolonização do cur- atual. Mas ainda há muito que se conquis-
rículo e dos materiais escolares, favorecen- tar, seja pelos movimentos negros do sé-
do o surgimento de uma sociedade justa e culo XXI ou por parte daqueles cidadãos
igualitária através da educação que se consideram inclusivos. Os recentes
O avanço do ponto de vista de políticas dados em relação ao acesso, permanên-
públicas educacionais, está diretamente li- cia e desempenho de negros nas Escolas
gado à atuação de tais movimentos em três Públicas do Brasil demonstram ainda a
ações interligadas. São elas i) denúncia, necessidade de um debate mais internali-
como forma de combate ao racismo; ii) for- zado. Devemos pressionar todas as esferas
mação de militância e iii) articulação polí- políticas para que a dimensão extraesco-
tica. Podemos colocar como resultado des- lar das políticas públicas educacionais não
sas atuações as leis 10.639/03 e 12.711/12, sejam alvo de alteração a cada onda ideo-
que respectivamente são a inserção de lógica que chega ao poder.

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