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A Acção Terapêutica

de Vipassana

Dr. Paul R. Fleischman


Do original: “The Therapeutic Action of Vipassana”

Publicado também em Karma and Chaos, 1999

por Vipassana Publications of America

Primeira Edição Electrónica em Português, 2009

Publicado por:
Meditação Vipassana - Portugal

info@pt.dhamma.org

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SUMÁRIO
I, 8
Auto-conhecimento, 9
Confiança básica, 11
Integração do passado, 12
Futuro e vontade, 13
Responsabilidade, 15
Concentração correcta e ética, 17
Auto-controle, 19
Resolução de conflitos, 21
História e comunidade, 22
Tempo e mudança, 24
Integração corporal, 26
Relacionamento, 28
Verdade, 30
Amor humano, 31
II, 33
III, 39

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PREFÁCIO
No verão de 1982, no final de um curso de meditação, quando um grupo de antigos
alunos estava a propor a criação de um centro de meditação na América do Norte
para facilitar os ensinamentos desta tradição pura, Goenkaji sugeriu que eu escre-
vesse um artigo sobre meditação. "Como és psiquiatra, as pessoas vão dar-te credi-
bilidade". O resultado foi "A Acção Terapêutica de Vipassana". O propósito deste
trabalho é de explicar como um médico instruído pela ciência pode compreender,
validar e praticar a meditação Vipassana, conforme ensinada por S.N. Goenka, e
mostrar aquilo que Vipassana tem de universalmente prático, de eficaz e de tera-
pêutico, esclarecendo simultaneamente, a divergência entre a psicoterapia e o
Dhamma: a arte de viver ensinada pelo Buda.

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Naquele verão, o Centro de Meditação Vipassana nasceu em Shelburne Falls, Mas-
sachussetts. Contudo, a minha exposição escrita ainda estava pela metade. Amigos,
colegas e alunos de meditação como eu, às vezes pedem-me opinião. "O que é a
meditação, funciona de verdade, como funciona, como se compara com a psiquia-
tria?". Agora eu posso simplesmente entregar-lhes este trabalho! Mas às vezes tam-
bém me colocam uma pergunta mais difícil: "Porquê?" Para responder a essa per-
gunta, precisei procurar dentro de mim. Lá no fundo, revelada através da própria
prática, havia uma mistura de motivos sagrados e profanos - alguns verdadeiros e
outros completamente equivocados. Escrevi então um outro artigo "Porque me sen-
to" para explicar às pessoas do meu tempo e lugar - psiquiatras, colegas do pós-
doutoramento do meu seminário "Psiquiatria e Religião", pais como eu, carpintei-
ros a trabalhar nas minhas vigas - o verdadeiro coração humano da matéria, caso a
pergunta tenha vindo do coração. Uma guitarra parada num quarto onde outra está a
ser usada, vibrará por afinidade.

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Kochi Ichida, um monge Soto Zen e um querido amigo, desvelou-me muitos aspec-
tos do Budismo ao longo de centenas de horas de conversa. Jim Phillps, um colega
de toda a vida com uma grande visão perspectivada e de foco aguçado, exigiu-me
rescrever várias passagens - assim como a minha mulher, Susan, que também vive
toda a história comigo.

Paul R. Fleischman

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A MEDITAÇÃO VIPASSANA, como ensinada por S.N. Goenka de Igatpuri, Índia, e de
Shelburne Falls, Massachusetts, é considerada ser a prática de meditação ensinada
pelo Buda histórico como o caminho directo para a completa libertação do sofri-
mento humano. Muito antes de se alcançar esse objectivo, contudo, o aluno comum
e dedicado pode obter profundos benefícios terapêuticos de Vipassana. Porque
pratiquei essa técnica religiosamente durante muitos anos, e também porque sou
um psiquiatra no activo, achei que podia descrever essas acções terapêuticas em
linguagem psicológica contemporânea, para o benefício de novos e futuros alunos.
Todos esses benefícios são potenciais na técnica: que benefícios e em que quantida-
de são adquiridos com a prática, varia de acordo com o indivíduo, da sua prove-
niência, e da sua aderência à técnica dia após dia durante uma vida inteira.
Não vou procurar descrever a prática em si, pois para a aprender é necessário passar pela
experiência concreta de um curso de dez dias de treino.

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I

SEGUNDO AS DESCRIÇÕES TRADICIONAIS DA MENTE, assim como são vistas através


de Vipassana, uma grande parte da actividade mental humana consiste em desejos
para o futuro ou receios sobre o futuro e desejos do passado ou receios do passado.
Quanto mais a mente estiver livre de memórias e anseios, de desejos e ódios, quanto
mais irá descansar no momento presente e quanto mais reflectirá conteúdos mentais
nítidos da realidade imediata assim como se apresenta. A técnica de meditação per-
mite a libertação controlada de conteúdos mentais, enquanto, simultaneamente,
ancora o aluno à concreta realidade presente. Essa posição equânime, baseada na
realidade, permite que a avidez e a aversão, do passado e do futuro, subam à super-

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fície da mente e que desapareçam sem provocar nenhuma reacção. Dessa maneira,
a mente é descondicionada e a vida de cada um passa a caracterizar-se por um
aumento de consciência, por uma orientação realista, pela ausência de percepções
enganosas, pelo auto-controle e pela paz.

Auto-Conhecimento

Esta psicologia lúcida e lógica dificilmente expressa o animado drama humano que,
de facto surge sempre que alguém se submete a um treino de Vipassana. Indepen-
dentemente de quem somos, as nossas vidas interiores parecem-se mais com uma
enchente fluvial do que com uma caixa de compartimentos estanques. Quando nos
sentamos para ficarmos sossegados, surge do nosso interior um fluxo aparentemen-
te interminável de milhares de milhares de memórias, anseios, pensamentos, con-
versas, cenas, desejos, pavores, libidos e imagens impulsionadas pelas emoções de

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todos os tipos. O efeito mais nítido, mais imediato e mais inescapável da meditação
é o de aumentar o nosso auto-conhecimento. Isto pode ser curioso, excitante e inte-
ressante mas também pode ser devastador. Tendo isto em consideração, a técnica
permite, portanto, expandir a visão individual da verdadeira vida interior de cada
um num ambiente estruturado, protegido, controlado, sustentador e nutritivo, que é
essencial para um salto em segurança no alto mar.

As qualidades desse ambiente apropriado têm sido estudadas, codificadas e transmi-


tidas durante milénios, de mestre para mestre. Assim como o mapa para o viajante,
essas qualidades constituem a moldura do curso que é ensinado correctamente e
definem as qualidades do professor. Uma aderência precisa aos detalhes da técnica,
bem como o abraçador e generoso amor humano do professor, permitem que qual-
quer indivíduo abra as portas do seu coração e da sua mente. Nada, da condição
humana, irá permanecer desconhecido ou estranho para quem se tiver sentado, hora
após hora, assim estacionado em segurança e continuamente consciente.

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Confiança básica

Como resultado da expansão do conhecimento da vida interior de cada um ocorre,


então, a activação daquela confiança básica que a psicologia contemporânea presu-
me ser derivada da primeira confiança que é dada à criança pelos progenitores que a
nutrem, aquecem e alimentam e que constitui o substrato para posteriores relações
íntimas humanas. No contexto da Vipassana, essa confiança opera como a fé adulta
e informada que permite a entrega completa à técnica sem anseios sobre os resulta-
dos mágicos que possa trazer. Uma fé assim precisa enraizar-se numa compreensão
ponderada, numa confiança razoável e no compromisso de proceder segundo as ins-
truções. É preciso abrir mão da obstinação, pois a plataforma do conhecer é a parti-
cipação.

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Integração do passado

Os milhões de gravuras, cenas e episódios que aparecem do nosso passado pessoal,


surgem para desaparecer; paradoxalmente, antes de desaparecerem, vemos quem
fomos, sabemos de onde viemos. Na caminhada rumo a um centro comum, todos
partem de uma determinada posição periférica. Essa posição está fora do controle
de cada um, porque todos fomos condicionados por milhares de experiências passa-
das, e muitas delas não foram propriamente aquilo que teríamos desejado para nós.
Portanto o presente pode ser agarrado, mas o passado é ambos, evasivo e no entanto
inescapável. Sentar com isso, hora após hora, exige que se chegue a um acordo com
esse passado. Não há como fugir, nenhumas distracções. Chegar a um acordo com o
passado, aceitar o que passou, a integração pessoal de todo o nosso eu sem rejeição
nem negação - também são efeitos terapêuticos da meditação.

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Futuro e vontade

Da mesma forma, apesar de esforços para isso não acontecer, o aluno de meditação
irá perceber que está a pensar, a preparar, a planear e a antecipar. Mesmo quando
essa actividade muitas vezes fantasiosa, começa a diminuir, permite ao meditador
ver emergir a sua verdadeira volição. Quando, como em geral ocorre na vida, a
volição é rapidamente seguida pela acção, achamos que a acção é mais memorável
e magnetizadora. Assim, em retrospectiva, construímos a vida como uma série de
acções conectadas por causas. Explicamo-nos a nós mesmos com base naquilo que
connosco aconteceu e em como agimos, e acreditamos que somos produtos depen-
dentes de eventos, reagentes em vez de agentes.

Mas ao comandarmo-nos para permanecermos sentados, alertas, conscientes e imó-


veis, rompemos o automatismo daquela sequência. As escolhas e decisões - a von-

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tade motivadora das nossas vidas - são retiradas da penumbra para se colocarem
num palco desobstruído. O que ocorreu em velozes fracções de segundos, para ser
rapidamente seguido por ruidosas sequências de acções, agora ocorre...e é apenas
isso. Com a convicção da experiência, vemos como movemos, moldamos, empurra-
mos e dobramos com os nossos corações e mentes, momento após momento, para
montarmos a próxima plataforma da acção. O nosso futuro pode surpreender-nos
menos e pode, ironicamente, exigir menos planeamento, quando aumentamos a
nossa consciência de como as nossas vontades o moldam. Outro efeito terapêutico
da meditação é o de diminuir a nossa necessidade de planear, controlar e organizar
o futuro, porque activa a nossa determinação, aqui e agora, de observar, de identifi-
car e, conscientemente, de participar nas milhares de decisões que se apresentam a
cada dia.

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Responsabilidade

O desamparo é um dos sentimentos mais assustadores. Perder o controlo, ser uma


vítima do destino, é temido universalmente. Os ritos e rituais da religião organizada
- um dos fenómenos mais difundidos da cultura humana - têm por objectivo restau-
rar a sensação de poder, controle e capacidade de impor ordem aos acontecimentos.
Os ensinamentos sábios de diversas culturas, por outro lado, rejeitam a dependência
de poderes externos que precisam ser bajulados, coagidos ou implorados e ensinam
em vez disso, a apropriarmo-nos dos nossos próprios sentimentos e acções.

Por exemplo, Freud enfatizou que a vida mental não é caprichosa e incompreensí-
vel mas ordenada e submetida a leis. De modo idêntico, o Livro de Jó ensina ser
possível ver a causa e o sentido dos acontecimentos aparentemente arbitrários, se
for mantida a atitude correcta; e a ética de Jesus era focada no papel da intenção e

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da aspiração do destino final da alma. O existencialismo enfatiza que apenas o indi-
víduo é o construtor da sua própria essência. Viktor Frankl, o filósofo existencialis-
ta e psiquiatra, escreveu baseado na sua experiência pessoal, que até mesmo em
Auschwitz era o indivíduo na sua essência quem determinava o seu próprio destino
sem ter ninguém a quem implorar ou culpar.

Para o aluno de meditação, nem fé nem filosofia, mas a observação sistemática da


mente esclarece-o que cada evento mental é significativo, causado e da sua exclusi-
va responsabilidade. Mesmo em condições pré-estabelecidas, nós determinamos as
nossas próprias atitudes e as nossas respostas a essas condições. Um momento men-
tal condiciona o seguinte: quanto mais nos convencermos disso ao nível experimen-
tal, quanto mais arcaremos com a totalidade da responsabilidade pelas nossas pró-
prias vidas. Um maior sentido de controle e responsabilidade é o resultado directo
da activação da determinação pela clarificação da vontade.

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Concentração correcta e ética

Mas é impossível apenas "observar a mente" ou "olhar memórias e expectativas".


Nós não podemos simplesmente objectivar a mesma mente que procura objectivar.
Existe uma técnica de meditação que nos permite ver o fluxo de momentos mentais
em vez de sermos levados pela sua corrente. Um aspecto da técnica é a concentra-
ção, concentração correcta. Não é apagando, reprimindo ou esmagando a distracção
com um esforço voluntário que se alcança a concentração correcta. A concentração
correcta alcança-se eliminando a raiz da distracção. Por isso a concentração, o
tesouro das capacidades integradoras humanas, que dá coerência e direcção à vida,
não pode ser construída a martelo, exige um toque de pluma. Quando, no nosso
coração, abandonarmos a distracção, ocorrerá o mesmo na nossa mente.

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A concentração correcta depende de uma vida ética. A ética cria harmonia interior,
unidade das múltiplas partes do nosso ser, por isso a complexidade de um ser
humano adquire focalização apenas quando as acções da vida quotidiana estão ali-
nhadas na mesma direcção. Para a concentração correcta, então, é necessário um
estímulo suave, subtil, porque a concentração que resulta de exigências ruidosas
apenas obscurece a colcha de retalhos interna. Procurar concentrarmo-nos, naquilo
que é difícil obter a concentração, produz uma inevitável consciência daquilo que
precisamente, nos está a distrair. Assim a meditação conduz não apenas à auto-
consciência, à participação dedicada, à integração e aceitação do nosso passado, à
clareza sobre nosso papel causal no futuro e a um sentido de responsabilidade pela
própria vida como também, ao conhecimento experimental directo da base da ética.
Para se ter paz, é preciso estar em paz.

Distracções da concentração, quando são apenas vistas e não seguidas, nem repri-
midas, costumam ser desejos e medos em relação ao passado ou ao futuro. Para nos
concentrarmos no subtil, precisamos permanecer no presente e abandonar a imensa

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quantidade de artifícios de auto-engrandecimento ou de auto-protecção que consti-
tuem a incessante pressão psicológica para se fantasiar. Depois, as qualidades natu-
rais de uma mente a encarar a realidade tornam-se evidentes.

Auto-controle

Concentração – construída com base na harmonia, com base na ética, com base
numa integração em vez de um confronto com a realidade - ocorre não apenas no
plano do momento-a-momento mas, também, no plano da estrutura da vida. Ordem,
auto-controle e disciplina fazem parte da vida de meditação. Não existe concentra-
ção sem esses elementos e eles, por sua vez, são a expressão de uma vida focaliza-
da. A técnica de meditação encaixa-se com a técnica de viver: uma certa regulariza-
ção do sono, da comida, do sexo e do movimento físico expressam e elevam a cons-

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ciência e a equanimidade. Mas uma vida disciplinada não é uma vida fria nem rígi-
da. Quando as ondas do sentimento arrebentam na praia e, então - sem obterem res-
posta - retrocedem, encontramos não um amortecimento dos sentidos mas sim, as
profundezas da emoção, o oceano por debaixo das ondas.

O equívoco frequente, de que a paz é sinónimo de monotonia, de que o desapego


endurece o coração e de que a calma significa inércia, é gerado pela mente que
equipara a agitação, a excitação e a paixão com o prazer. Mas para além do prazer e
do desprazer, da preferência pessoal, da estimulação e dos gostos, estão os lagos
profundos da participação viva e da energia. Em vez de compartimentos estanques,
as disciplinas da meditação facultam o pleno acesso emocional, os fluxos espontâ-
neos e generosos de sentimentos de compaixão e empatia.

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Resolução de conflitos

Dos antigos mestres religiosos como o Buda, Jesus, São Paulo, Krishna e Rumi aos
teólogos modernos como Tillich, Buber e Eliade, a integração do ser humano tem
sido considerada o objectivo e o sentido da religião. Freud afirmou que o conflito
ou a falta de união era a causa da neurose, e a psicologia pós-freudiana tem estuda-
do intensamente os aspectos integradores da personalidade, como a identidade. A
meditação é um método directo de se reduzir o conflito psicológico, através dos
seus códigos éticos prescritivos, da sua integração do passado e do futuro, da sua
elucidação da auto-responsabilidade, da concentração e da vontade. A resolução de
conflitos poderia ser definida como o principal propósito da prática.

Contudo, a vida é dinâmica. Não há uma fórmula estática final que possa englobar
o oceano fluido da realidade que experimentamos como compromissos, objectivos,

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significados e preocupações. Por isso a meditação, frequentemente, aumenta a
consciência de conflitos existenciais à medida que reduz o nível da divisão, da frag-
mentação ou da desunião. Não existe um pedal automático para se conduzir na
Vipassana; o esforço correcto sempre renovado e o verdadeiro desafio não têm fim.

História e comunidade

A meditação Vipassana vem do passado e faz parte de vidas contemporâneas. É


passada de boca em boca - não por livros, discursos ou pelos meios de comunica-
ção. A profundidade de sentimento gerada pela prática não é uma abstracção, nem
um ideal religioso. A amizade, o companheirismo, o autêntico calor humano fazem
parte da técnica. Não se trata de uma sociabilidade tagarela, mas do respeito e apoio
mútuos daqueles que contemplam lado a lado, as estrelas ao amanhecer.

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Assim como a prática é partilhada agora, tem sido partilhada através dos tempos.
Um sentido de património, linhagem, história é uma experiência inevitável para o
aluno de Vipassana. A consciência da nossa história pessoal aumenta o nosso senti-
do de integridade pessoal e a experiência do significado da história da humanidade
é um elemento crítico de toda a cura psicológica profunda. Tal como a nossa lín-
gua, a nossa meditação coloca-nos numa comunidade humana trans-temporal. Ser
um membro de uma continuidade produtiva é um doce antídoto ao auto-
engrandecimento. A melhor das plantas é forçada a ser humilde na presença da ter-
ra. O significado psicológico é uma abstracção vã para aqueles cujas mãos, de fac-
to, alcançam através das gerações.

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Tempo e mudança

Situar-nos dentro da transmissão de gerações é apenas uma maneira da Vipassana


abrir os olhos do aluno para a realidade do tempo e da mudança. O cerne da prática
é melhorar a capacidade do aluno de olhar directamente a realidade da imperma-
nência, do fluxo, do vazio e da morte. A técnica inclui ver a realidade de modo
total, porém, somente depois da preparação adequada. A confrontação com a dor e
com a sua dissolução, contudo, é uma experiência humana universal. Vipassana
permite que esse encontro se dê com equanimidade. Por isso a técnica contém uma
ironia: quanto mais forte for o nosso confronto com a realidade, mais profunda irá
ser a nossa equanimidade: quanto mais profunda for a nossa equanimidade, quanto
mais desejos superficiais e medos se soltarão como as cascas da cebola e cada vez
mais nos aproximaremos das ansiedades centrais da existência humana.

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A imobilidade física é um medo inerente ao ser humano (já todos sonharam com a
paralisia de serem incapazes de correr, incapazes de falar); Vipassana prepara-nos
para enfrentar isso. A dor física é um medo inerente ao ser humano (alguns psiquia-
tras consideram-na a base de todo medo); Vipassana leva-nos a essa dor e tira-nos
dessa dor. A solidão é um medo inerente ao ser humano; Vipassana leva-nos para a
confiança, para a comunidade, para a fé mas, também, à solidão profunda do silên-
cio. E nós podemos aprender a transformar esse gelo num refresco para a mente
acalorada. Antigas e modernas teorias do coração humano apontam, com frequên-
cia, a morte como o nódulo, o ponto onde o carácter é formado, onde o conheci-
mento é testado e onde se enraízam as ansiedades mais profundas. Sócrates, é claro,
considerava a filosofia a arte de morrer; uma grande parte da teoria psiquiátrica
contemporânea ecoa isso, assim como a técnica da meditação Vipassana.

Um motivo pelo qual a mente está sempre em fuga, a sonhar acordada, a pensar, a
planear, a lembrar, é que a concentração na realidade física imediata irá esclarecer,
inevitavelmente, a temida verdade: o corpo está a apodrecer a todo o momento, de

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modo irreversível. Um dos paradoxos da técnica de Vipassana é que a profunda
concentração física e o relaxamento, a preciosa paz luminosa, conduzirão ao cerne
do pavor, que por sua vez, pode ser experimentado como uma doce e simples ver-
dade, tal como a noite é seguida pela aurora, a fome pelo alimento, o sono pelo
adormecer, o descanso pelas estrelas da manhã. Uma mente que retorna ao corpo
conhece tanto as limitações daquele corpo quanto a vibrante energia universal a
fluir de forma em forma.

Integração corporal

Vipassana não é uma actividade mental. Acontece num corpo e tem mais analogias
com o aprender a andar de bicicleta do que com o aprender a ler. Manter a cons-
ciência do nosso corpo inteiro, o tempo todo, é uma das chaves da prática. Pensa-

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mentos e emoções têm inevitavelmente contrapartidas nos eventos corporais. Por-
tanto, a consciência sistemática de nós mesmos exige a consciência de como nos
sentamos, como comemos, como dormimos, como pensamos e nos sentimos direc-
tamente através do próprio corpo. Emoções que foram antes, fantasmas não locali-
zados nos corredores do nosso ser, podem ser experimentadas como produtoras de
sensações especificamente situadas na pele, no coração, nos olhos, no couro cabelu-
do. Desejos e temores que nos conduziram semiconscientes, a uma corrida inces-
sante pelo conforto, podem ser identificados em planos profundos e subtis a afectar
o processo corporal. Mesmo o passado e o futuro, antes reverenciados como impo-
nentes forças externas, vão ser descobertos dentro de nós, nos nossos seres físicos
vibrantes, como a excitação, a fome e a inércia.

Uma vez que todos os corpos apodrecem, se dissolvem e desaparecem, a dor física
e a doença são experiências humanas universais e inevitáveis. E Vipassana pode
rapidamente, dispersar a crença secreta do aluno na sua própria invulnerabilidade.
Mas, outra fracção de sofrimento nasce da ignorância: reacções cegamente armaze-

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nadas em espasmos musculares, congestionamento pelo exagerado consumo ali-
mentar, estrangulamentos crónicos de auto-punição, retracções e trancamentos no
sistema venoso ou intestinal. Uma consciência corporal aprofundada é o melhor
método para se observar a raiz orgânica viva do pensamento e da emoção podendo,
ainda, reordenar hábitos corporais efectuando, ocasionalmente, curas de dores de
cabeça psicossomáticas, de espasmos gastro-intestinais e similares.

Relacionamento

A experiência da mudança incessante e contínua, de cada molécula do corpo a cada


momento, faz com que se veja a vida de uma perspectiva diferente. Fica evidente
que significados e propósitos organizados apenas em torno de nós mesmos são des-
tituídos de sentido. A cada fracção de segundo, a vida surge do todo e retorna de

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novo para esse mesmo todo, ressurgindo renovada, nova, distinta. Existimos no
todo, como partículas de espuma lançadas momentaneamente para fora do oceano.
Que sentido faz aqueles esforços de auto-engrandecimento que, até há tão pouco,
perseguíamos com tanto empenho?

A psiquiatria contemporânea tem expressado um renovado interesse na maneira


pela qual as pessoas organizam uma noção de si próprias em relação aos outros
seres. Na Vipassana, temos a experiência directa do arsenal de atitudes, posturas,
repreensões e reacções que todos nós elaboramos de modo a criar e manter a ima-
gem da nossa própria existência inexpugnável, eterna e inviolável - e quão destina-
da ao fracasso se revela essa defesa. A psicologia do “eu” é um exercício de cons-
trução de castelos de granito sobre areia movediça. Aquele “eu” estático pelo qual
ansiamos, exigimos e que sempre insistimos em afirmar é uma tira plástica colada
sobre fluxo, processo, interacção, relação. Sem pregações nem idealizações, a expe-
riência directa disponível através da meditação lava os nossos títulos honoríficos, a
nossa grandiosidade, a nossa auto-preocupação, e a ganância em agregar. Essa lim-

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peza é particularmente refrescante para pessoas que fazem parte das culturas Oci-
dentais modernas, já definidas como culturas de auto-absorção.

Verdade

A verdade não é um conteúdo, mas um processo. Significa uma atitude de expecta-


tiva e frescor, uma vontade para mentalmente, reiteradamente, voltar a reestruturar.
A meditação Vipassana poderia ser descrita como uma técnica de se viver com a
verdade. A verdade, neste sentido, não é uma escola, uma ideia, uma doutrina. Não
implica um “nós” e um “eles”. Não implica uma possessão. Não significa que pes-
soas que vivem de outras maneiras não detenham a verdade. A prática indica,
somente, uma técnica que permite pautar a vida pelo processo de exploração, todos
os dias, dia após dia, até a própria morte. Morte esta que, esperamos, poderá ser

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saudada também com a mesma indagação: objectivamente, qual é a natureza da rea-
lidade da minha mente e do meu corpo nesse momento? A ciência, a filosofia ou
qualquer ser vivo de mentalidade aberta partilham desta verdade. A meditação é
uma técnica bem experimentada e comprovada e contem o paradoxo de ser uma
aproximação objectiva do subjectivo, uma investigação da nossa própria natureza.
A verdade não é apenas o grandiloquente; nem o esforço para nos expressarmos
com honestidade, em momentos fugazes convencionais, é uma das melhores ferra-
mentas para se conseguir abrir a fechadura da porta do super defendido “eu”.

Amor humano

O que é que a experiência da meditação revela no coração humano? Sob os escudos


auto-protectores da raiva, da agressão, da possessão e do controle repousa o poço

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da vida clara, simples, amorosa, energética e vital. Generosidade, compaixão e
amor humano não são virtudes e sim atributos. Todos anseiam por amor, compro-
misso e pela luz da verdade. No entanto, o medo e a cautela empurram-nos para
desvios contínuos. Imaginamos que mais um muro, mais uma fechadura poderão
garantir a nossa segurança. Praticar Vipassana significa praticar a acção directa do
amor humano. Cristaliza o nosso anseio, o chamamento, de modo que sentimos
possuir a jóia que procurávamos.

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II

Com frequência, certas perguntas são me dirigidas por quem fica a saber que um
psiquiatra escolheu enraizar a sua vida na meditação.

Ensino pacientes a meditar? De maneira nenhuma. Como um profissional impar-


cial, não imponho práticas ou visões de mundo (além da ética geral amplamente
sancionada pela cultura dominante) aos pacientes que me vêm ver. Ninguém está
livre de valores, porém um psiquiatra precisa estar pronto para ouvir e nutrir os
muitos modos de ser de um ente humano. É central na profissão a capacidade de
seguir as necessidades e a direcção de outra pessoa. As pessoas que forem chama-
das à prática da meditação virão a ela, por isso eu nem a escondo nem a alardeio.
Alguns dos meus pacientes acabaram por conhecer o meu modo de vida; mas a

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grande maioria desconhece-o, cientes de que, como profissional, eu ofereço não
uma pessoa a imitar ou admirar mas um tratamento que os ajuda a serem mais ple-
namente e mais profundamente eles mesmos.

Pessoalmente, imagino que a verdade tenha muitas facetas mas apenas uma essên-
cia. Respeito essas facetas. Em todo caso, um psiquiatra é com frequência a interfa-
ce para o exercício de um cinismo amargo, para não mencionar de todo o panorama
de perversões, raivas, confusões paralisadoras e tantas outras manifestações de
vidas feridas. As pessoas partem de lugares diferentes e exigem diferentes modos
de ajuda - sob essa luz a psiquiatria, também, é muito limitada.

Além disso, perguntam se faço algum uso da meditação no meu trabalho. Sim - a
meditação é o meu trabalho, o meu coração e o meu âmago. Pois em todas essas
variações do sofrimento humano, eu vejo-me como já me vi durante a meditação.
Existe muito pouco da fenomenologia das vidas dos meus pacientes que não exista
na minha também. A meditação enriqueceu de forma notável a minha empatia e a

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minha visão do que é ser um ser humano: o medo, a ansiedade, a dependência, a
exaustão, o desespero, a derrota, o renascer, a aceitação, a visão, o trabalho, a delí-
cia, o esforço, a obstinação, a criatividade, a apreciação e a gratidão. Por ter tido a
experiência da minha própria natureza mais profunda, mais verdadeira, conheço
agora mais; por experimentar aquelas vibrações a cada hora do meu trabalho diário
com as pessoas, tenho sido capaz de me abrir mais plenamente, de receber e susten-
tar, de deixar cair as minhas próprias defesas, de verdadeiramente ouvir e de verda-
deiramente compreender.

É interessante que Freud tenha descrito um processo idêntico: disse que o psicana-
lista tem de desligar o seu pensamento consciente e abrir o seu próprio ser, como
um receptor para as antenas transmissoras do paciente. Eu consigo suportar mais e
para mim tornou-se claro, tenho dado mais para suportar. Contudo, praticar a psi-
quiatria é mais do que ser gentil e aprendi também com a meditação, como é demo-
rado, difícil, prenhe de exigências e muito doloroso encarar a realidade, destruir os
velhos moldes.

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A meditação é, de facto, eficaz? Creio que sim, porém, só se houver uma prática
dedicada. Embora tenha visto muitas vidas, inclusive a minha, deitarem raízes pro-
fundas na decência humana simples e comum, que transcende a teologia, a filosofia
e a psicologia, também conheço muita gente que meditou por um certo período de
tempo e, depois, apenas foi adiante aos tropeções. A meditação não pode ser inicia-
da de modo aleatório, sozinho no quarto; é preciso haver um treino real. Mas há
também uma exigência básica para uma vida diária disciplinada e regular. De acor-
do com o Buda, a fonte última do sofrimento humano é a ignorância, o que inclui
dentro de cada um uma resistência a conhecer a verdade que nos pode libertar. O
momento em que viramos as costas é aquele em que o pássaro pousa no ninho.
Quando saltamos, perdemos, esquecemos, não podemos fazer - é nessa hora que o
inconsciente nos controla. Uma rotina sistemática, sem escolhas, é essencial para
abrirmos a mente à observação, pois num pequeno lapso, a grande fonte desse lapso
é obscurecida. Se vocês puxarem, mão ante mão, um balde de água do fundo do

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poço durante cinco minutos e o soltarem por um pequeno instante...o resultado é
óbvio.

Embora a prática de Vipassana não seja uma religião no sentido de se vender ou de


engolir dogma, ritual ou fé cega, acredito ser fundamental que se pratique
“religiosamente”: isto é, com um compromisso de devoção centrada. A meditação
como uma prática irregular, como uma diversão ou como um passatempo ocasional
numa vida abarrotada, tem pouco efeito e pode despertar mais confusão do que alí-
vio. Infelizmente, tenho visto meditação auto-dirigida e intermitente, usada como
uma fuga à realidade, para desvalorizar dilemas dolorosos e, num caso, para
engrandecer o “eu” ao ponto da loucura e do suicídio.

A Vipassana, mais do que quaisquer formas culturais específicas, tem por referên-
cia a sabedoria humana universal. É não-sectária em pensamento. A sua estrutura
básica é reflectida todas as vezes que se pondera a arte de viver. Por exemplo, Tho-
reau escreveu, em Massachusetts, no século XIX:

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“Renove-se completamente a cada dia; faça-o de novo e de novo, para sempre
de novo...Para afectar a qualidade do dia, essa é a mais elevada arte...nenhum
método ou disciplina é superior à necessidade de estar sempre alerta...”.

As potenciais acções terapêuticas da Vipassana incluem um auto-conhecimento


aumentado, uma profunda confiança humana e participação, integração e aceitação
do nosso passado, activação profunda da nossa vontade, um maior sentido de res-
ponsabilidade pelo nosso próprio destino; uma maior concentração, compromissos
éticos mais profundos, estruturas e disciplinas de vida firmes porém flexíveis, aces-
so fluido às correntes mais profundas do sentimento e da imagística, comunidade
histórica e contemporânea ampliada; confrontação, com preparo, com realidades
básicas tais como o tempo, a mudança, a morte, a perda, a dor, levando a uma even-
tual diminuição do pavor, da ansiedade, da ilusão; uma maior integração corpo-
mente, redução do narcisismo e um leque mais amplo de forças de carácter tais
como a generosidade, a compaixão e o amor humano. Cada aluno parte de um pon-
to diferente e progride, individualmente; não existe magia nenhuma, nem existem
garantias.

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III

Considerar a meditação do ponto de vista das suas acções terapêuticas é apenas


uma forma de descrever esta técnica de viver. Vista de um outro ponto de vista, a
meditação transcende o apenas terapêutico, assim como a água do planeta excede a
sua propriedade de apenas matar a sede, assim como o sol excede as suas qualida-
des de dar vida e calor, assim como um poema atemporal excede o prazer pessoal
que podemos, individualmente, extrair dele. Fazemos parte de uma realidade que é
mais do que uma cura para as nossas personalidades. O sentido não é voltado para
nós e, sim, para todo o resto.

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A descrição completa da meditação Vipassana através das suas acções terapêuticas
esclarece alguns pontos mas lança uma sombra sobre um ponto extremamente cen-
tral. Ao mesmo tempo que a meditação é terapêutica - elevando muitas outras qua-
lidades humanas - tem um valor intrínseco como uma actividade em si. A arte pode
ajudar-nos a apreciar a vida; mas também expressa que o coração, os olhos e mãos
da natureza humana estão cheios de arte. A meditação é mais terapêutica não quan-
do encarada do ponto de vista dos seus efeitos terapêuticos e, sim, quando praticada
por si, como uma expressão de um aspecto da natureza humana. Esse aspecto não é
um atributo único, como uma fatia de torta, mas uma força sustentadora, sintetiza-
dora e criativa em todos os aspectos, assim como o calor que assou a torta. É mais
como o esqueleto ósseo inteiro do que como um só dos membros. Por isso a medi-
tação expressa algo a respeito do processo integrado de uma pessoa, em vez de ser
somente um meio que leva a fins em outras esferas da vida.

A meditação expressa aquele nosso aspecto capaz de receber: o receptor não-


seletivo e que tudo abraça. Podemos conhecer-nos como células membros de um

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todo integrado. Ocasionalmente, a pessoa sentir-se-á assim durante certas horas em
certos dias: a contemplar um pôr-do-sol sentada nas rochas de um desfiladeiro de
arenito, cercado por um bosque selvagem de pinheiros e de ruínas centenárias.
Esses momentos são de intensa inspiração, interlúdios fortuitos. A meditação
requer cultivar esse potencial humano em formação de modo sistemático, como um
empreendimento central de uma vida inteira. Ainda que uma certa activação desse
modo de ser receptivo, inter-penetrante e sem julgamento, seja o fundamento de
qualquer arte ou ciência, um qualquer compromisso significativo com o mundo,
tem sido expresso de maneira supremamente refinada por certos autores como
Tagore, Whitman, Thoreau, nos diálogos socráticos, pelos poetas Zen chineses e
japoneses e pelos autores anónimos de muitos textos clássicos em Pãli e Sânscrito
da antiga Índia.

Essa receptividade equânime, alerta, não filtrada é o sina qua non da experiência
religiosa (em oposição a ser apenas membro ou afiliado de uma religião). Abrir
essa receptividade faz com que nos sintamos inteiros e vivos, tal como quando nos

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alimentamos. Não é preciso racionalizar o jantar como sendo terapêutico; é uma
expressão essencial da vida em si. Da mesma forma, abrir e conhecer com o nosso
ser, não é que nos dê saúde, dá-nos vida. O tempo levou-me a acreditar que a medi-
tação activa o processo subjacente de toda a vida religiosa, quando se procura o
conteúdo de determinadas fórmulas culturais ou religiosas, que contêm o ingredien-
te essencial de todo o leque de pleomorfismo da religião - com base em estudos dos
maiores alunos da psicologia da religião: William James, Carl Jung, Paul Tillich,
Erich Erikson, Jerome Frank, Mircea Eliade, e outros.

No entanto, quando nos abrimos para receber o todo, somos também inundados por
uma imensa escuridão. A nossa lanterna, previamente selectiva e circunscrita, não é
suficiente para a clarear. Já não podemos excluir as bocas devoradoras do tempo, as
épocas hitlerianas cauterizando vidas de todos os séculos, civilizações e povos
inteiros; os nossos temores por nós mesmos, e por tudo aquilo que amamos, pare-
cem efémeras partículas de espuma a surgir e a desaparecer, interminavelmente,
num oceano sem fim e sem limites. A cultura humana em si, com os seus génios

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religiosos, artísticos e científicos, forneceu-nos velas, lanternas, até mesmo sóis
que, milagrosamente, revelam a terra seca entre os mares. Vipassana é um desses. É
uma técnica que nos permite ouvir a sabedoria da vida em si, contida no nosso
organismo assim como a sabedoria da fome, revelando o túnel cada vez mais pro-
fundo da visão, da determinação, e uma maior habilidade indomável e generosa ao
serviço da vida que vivemos. Dentro de nós, e ao nosso redor, encontra-se o criador
de quem cuidamos. A meditação Vipassana é uma maneira de activar um amor
duradouro e sustentado na teia de todos os contactos.

Os alunos que empreendem o treino nessa disciplina irão ver-se a entrar, às 4 horas
da manhã, numa grande sala escura. Ao seu redor, haverá uma centena de amigos
silenciosos, sentados, erectos, todos no mesmo caminho, homens e mulheres, pro-
fessores e viajantes desempregados, advogados e mães, que têm estado ali, dia após
dia, durante dez dias. A escuridão irá diluir-se, haverá algumas estrelas, a lua cres-
cente brilhará solitária, os pássaros irão levantar a cortina da vida antes do novo dia
e depois partir. A sala irá clarear mas permanecerá calma, sem movimento, em

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silêncio; irá começar um cântico cujas palavras, de dois mil e quinhentos anos atrás,
apenas nos apontam em direcção ao melhor de nós; e mesmo um tanto exaustos e
sedentos, os alunos podem, sem se mover, alcançar e colher uma jóia invisível de
valor incomensurável.

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