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Mony Elkaím
com a colaboração de
Caroline Glorion

Como
Sobreviver à
Própria Família

Tradução:
Maria Alice de Sampaio Dória

ké4IU1?é--J
/ / EDITORA
Título do original francês:
Comment survivre à sa propre fomille

Copyright da edição original © Éditions du Seuil, 2006


Copyright da edição brasileira © 2008 Integrare Editora Lcda,

Publisher SUMÁRIO
Maurício Machado

Assistente editorial Mensagem do NAIA. ..... 9


Luciana M. Tiba

Produção editorial e coordenação Apresentação da edição brasileira,


Estúdio Sabiá
por Sandra Fedullo Colombo 11
Preparação de texto
Hebe Ester Lucas
Prefácio, por Caroline Glorion ...............................................
15
Revisão de provas
Maria Sylvia Correa, Ceci Meira e Capiru Escobar de Assis
Introdução . . 19
Projeto gráfico de capa e de miolo I Diagramação
Nobreart Comunicação
Capítulo 1
Mãe e filha: a travessia de um conflito 23
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CI P)
(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

Elkaun, Mony
Capítulo 2
Como sobreviver à própria famnia / Mony Elkaim com a O passado não nos condena
colaboração de Caroline Glorion ; [tradução de Maria Alice S.
Doria]. - São Paulo: Integrare Editora, 2008.

Título original: Cornmenr survivre à sa propre famille. Capítulo 3


Bibliografia. O patriarca que queria o bem dos filhos .
ISBN 978-85-99362-32-7
contra a vontade deles 43
I. Família - Aspectos psicológicos 2. Terapia familiar T. Glorion,
CaroIine. 11.Título.
Capítulo 4
08-09046 CDD-616.89156
Em que roteiro eu me encaixo? .................................................
51
fndices para catálogo sistemático:
I. Terapia familiar: Ciências médicas 616.89156
Capítulo 5
Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar.......... ....57
Todos os direi tos reservados à
INTEGRARE EDITORA LTDA.
Rua Tabapuã, 1123, 7º andar, conj. 71-74 Capítulo 6
CEP 04533-014 - São Paulo - SP - Brasil
Libertar o outro para que eu possa mudar
Te!. (55) (l1) 3562-8590
Visite nosso site: www.integrareeditora.com.br
Capítulo 7
O homem que não conseguia deixar
a mulher nem continuar com ela.... . 77
A Olga, minha esposa,
Capítulo 8 e a Michael, meu filho,
O luto num contexto ... . 85 que me deram tanto.

Capítulo 9
A mulher a quem se pedia demais e
o homem que se sentia abandonado.

Capítulo 10
O homem que queria afeição e a
mulher que queria ser respeitada ..........
101

Capítulo 11
Meu parceiro, meu casamento e eu .....
109

Capítulo 12
Um segredo de família .... . 121

Capítulo 13
O navio fantasma... .. ..... u
..........
131

Capítulo 14
Sobreviver à própria família .139

Bibliografia 143
Mensagem do NAIA
o NAIA - Núcleo Assistencial Irmão Alfredo é uma en-
tidade filantrópica que, desde 1982, assiste e educa crianças
Agradeço a Caroline Glorion, com e sem deficiência, em situação de risco pessoal e social, e
pois sem a sua ajuda eu não teria suas famílias, nas regiões do Brooklin e Vila Missionária, na

realizado esta obra; a [ean-Luc Giribone, cidade de São Paulo.


Criado por um grupo de pessoas interessadas em minirni-
que com o seu intenso trabalho me
zar os problemas de abandono e discriminação que crianças com
permitiu terminá-Ia, e aos meus pacientes -
deficiência sofriam, iniciou seu trabalho com a missão de orien-
sem eles este livro não existiria. tar, encaminhar e atender, em regime de creche, crianças carentes
com deficiência cujas mães precisavam trabalhar e não tinham
com quem deixar seus filhos. Nessa fase, pudemos vivenciar o
preconceito e a exclusão das pessoas com deficiência em quase
todos os segmentos da sociedade.
Em 1994, procuramos novos caminhos e adotamos o "pa-
radigma da inclusão": nasceu a primeira "Creche Inclusiva" na
cidade de São Paulo. Passamos, assim, a atender 30 crianças com
deficiência e 30 sem deficiência num mesmo ambiente.
Em nossas experiências de educação nesse modelo, temos
constatado que a convivência entre crianças com e sem deficiên-
cia beneficia a todas igualmente, pois aprendem solidariamente a
reconhecer e respeitar as diferenças.

9
Hoje atendemos a 510 crianças e adolescentes, em am-
biente inclusivo, nos programas de Educação Infantil, Educação
Complementar, Atendimento à Família e Projetos Culturais: mú-
sica, esportes, capoeira, informática, inglês, teatro, artes.
Nosso objetivo é prepará-los, e a suas famílias, para que pos-
sam fazer escolhas, agir positivamente sobre sua realidade e ser ca- Apresentação da
pazes, futuramente, de colocar suas capacidades a serviço da comu-
nidade, no sentido de diminuir a desigualdade social e a exclusão. edição brasileira
O que uma pessoa se torna ao longo da vida depende das
oportunidades que teve e das escolhas que fez. Porém, entendemos Conheci Mony Elkaím no início da década de 90, em Bue-
que, além do acesso às oportunidades, as pessoas precisam ser prepa- nos Aires, em uma grande conferência mundial cujo objetivo era
radas para fazer escolhas. O que propomos é oferecer as ferramentas reunir os maiores pensadores contemporâneos, filósofos, cientis-
necessárias para o desenvolvimento sociocultural dessas crianças, jo- tas, pesquisadores, humanistas, em um grande fórum de reflexão
vens e suas famílias, estimulando-as ao exercício pleno da cidadania. sobre a ciência contemporânea e a compreensão das relações hu-
Assim, foi com grande satisfação que recebemos a indicação manas, cultura e subjetividade.
de nossa amiga e voluntária Sandra Fedullo Colombo e o posterior Entre esses pensadores estava Mony, que, em uma grande
convite da Integrare Editora para ocupar este espaço num livro que assembléia de quase mil pessoas, emocionou-nos e fez-nos mer-
aborda como tema central, com grande propriedade, as relações gulhar em nossas próprias histórias de vida, convidando-nos a sair
familiares. Agradecendo a oportunidade, sentimo-nos fortalecidos do lugar de profissionais que falavam sobre as relações humanas
e revitalizados na busca do cumprimento de nossa missão. para o de pessoas que tinham histórias de afeto para compartilhar,
Finalmente, convidamos os leitores a visitar o NAIA. Ve- e refletir .sobre algumas vivências que são repetidas e alimentadas
nham compartilhar um pouco de seu tempo, energia e conheci- através do tempo, em uma dança cuja coreografia sabemos de cor,
mentos. Sua presença é muito importante para nós. sem muitas vezes nos darmos conta.
O que me marcou, naquele momento, foi sua crença em
Nídia Krunfli David Daghum que as relações ocorrem no encontro das ressonâncias de histó-
Presidente do Núcleo Assistencial Irmão Alfredo - NAIA rias vividas, que se acordam mutuamente, e que, muitas vezes,
Rua Ribeiro do Vale, 120 - Brooklin, SP constroem seqüências repetitivas, mas que também podem ofe-
Fone: (11) 5533-7922 recer, ao nos darmos conta, os passos alternativos para uma nova
www.naia.org.br música ... O foco na consciência da responsabilidade mútua, na

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11
construção das relações e na autoria de todos os envolvidos na aprisionantes e dolorosas, apontando o momento de revê-Ias? E
trama estimula a capacidade de transformação de cada um de se os sintomas forem, também, uma proteção para nos queixar-
nós, dando ênfase à possibilidade de sair das armadilhas relacio- mos, mas não transformarmos nada, para continuarmos leais
nais em vez de buscar culpados. às nossas famílias? Essas e outras perguntas instigantes nos são
Seu convite a comprometer-nos com o que vivemos e di- apresentadas durante a leitura deste texto.
zemos foi, para mim, o diferencial: a consciência de que, quan- Como naquela primeira vivência com seu trabalho, nes-
do contamos uma história, estamos falando de nós mesmos, de te livro ele não nos deixa do lado de fora! Somos chamados a
nossas experiências afetivas, acordadas naquele encontro com o revisitar nossas histórias de encontros e conflitos, nossas resso-
outro! Nunca podemos falar sobre o outro, mas de nossa vivên- nâncias são acordadas e nossos sentimentos passam a fazer parte
cia junto com o outro! delas. Vemos Mony, em cada uma das situações relatadas, tra-
Ao ler Como sobreviver à própria família senti a mesma balhar e oferecer às pessoas a crença em seus próprios recursos,
emoção de quando o ouvi pela primeira vez, pois, com a postura para transformar aquelas situações e "mudar aquele destino",
sensível de um contador de histórias, Mony vai desvendando, pe- que parecia estar fechado.
rante nossos olhos, situações humanas tocantes, em que as pessoas A ênfase na própria autoria e na responsabilidade decorrente
se sentem prisioneiras na própria família. Passo a passo, ele nos dessa postura transforma a ética relacional de culpados e vítimas na
convida a perceber a parte de cada um na construção desse apri- de co-autores e co-responsáveis. Por meio dessa consciência e dessa
sionamento e, o que é maravilhoso, os recursos que cada um e o ética, Mony convida-nos a conhecer mais nossos enredos de vida e
grupo, como um todo, possuem para transformar essa história. fortalece-nos na posição de poder transformar as relações que senti-
Mony acredita profundamente, e nós com ele, ao acom- mos insatisfatórias. A crença de que todo narrado r de uma história
panhar as narrativas, que o futuro não precisa ser a repetição está incluído em sua narração, com suas próprias experiências e res-
estéril do que já conhecemos e, principalmente, tememos. Ele sonâncias, despertadas naquele encontro humano, permite perceber
nos faz perceber como estamos enganados ao procurarmos, com que cada ponto de vista é verdadeiro e útil, mas também relativo,
insistência, uma realidade imparcial e objetiva. E nos mostra a e, dessa forma, abrimos um espaço riquíssimo para a compreensão
impossibilidade de olharmos nossas histórias por um só canal, o das relações familiares, saindo da armadilha de quem tem razão e
nosso, e definirmos o certo e o errado como posições absolutas. de quem é culpado! Com esse movimento, a autoria do que está
E se todos estiverem certos, como nos pergunta? E se estivermos, acontecendo é dividida entre todos os participantes.
sem perceber, participando de um script familiar e repetindo O instrumento que Mony nos oferece é o de nos conectar
nosso papel sem nos darmos conta? E se os sintomas surgiram com nossa história pessoal, para percebermos o que aquela situa-
como uma denúncia de que aquelas relações estão tornando-se ção, com aquela pessoa ou grupo, acorda de dores e riquezas, qual

12 13
Prefácio

é o ponto onde as histórias se encontram, quais os significados


que são despertados e - o que chamei de "pulo do gato" - para
que serve esse acordar de histórias, essas ressonâncias, nessa rela-
ção, nesse momento da vida.
Nessa visão, não existe a possibilidade do observador neu-
tro, aquele que poderá perceber "a verdadeira realidade", a pessoa Prefácio
que poderá julgar o que é certo e errado. Os lugares de culpado,
vítima, juiz, tão disputados nos conflitos familiares, entre casais, Eu amo minha família ... Esse foi o título que escolhi para
entre pais e filhos, são desconstruídos ao vivermos o sentido da- o documentário que realizei há alguns anos para a rede de tele-
quela experiência para nossa história! visão France 2. Instintivamente, eu pegava o contrapé do título
Espero que nossos leitores saboreiem, como eu, essas his- de um filme lançado no fim dos anos 90, Eu odeio minha famí-
tórias, revisitem suas próprias experiências de vida e se permi- lia, que, retomando a fórmula de Gide, punha em cena os tor-
tam entrar em contato com as ressonâncias que surgirem, pois mentos da adolescência confrontada com um ambiente familiar
acredito que são portas que se abrem para novas possibilidades, nefasto e sufocante ...
no caminho da vida. Apoiando-me no princípio do copo meio cheio ou meio
vazio, decidi, depois de uma enquete sobre as famosas terapias
familiares, lançar um olhar deliberadamente otimista sobre a
Sandra Fedullo Colombo instituição "família". Se podia ser o lugar de todos os sofri-
Terapeuta de casal e família, co-fundadora do mentos, por que a família não poderia ser também um lugar
Sistemas Humanos - Núcleo de Estudos e de liberdade?
Prática Sistêmica Família, Indivíduo, Grupo O encontro com Mony Elkaim, que seria o meu guia
nessa inesperada viagem documental sobre os caminhos das
Para mais informações acesse: terapias de família, foi decisivo. Ele era o líder carismático
www.sistemashumanos.org dessa prática psicoterápica e optei por seguir-lhe os passos.
Sem demora, ele me ensinou a encontrar palavras simples para
explicar as fantásticas riquezas que todos podemos encontrar
no seio da própria família para vencer as adversidades que en-
venenam a vida cotidiana.

14 15
."

Como sobreviver à própria família Preidcio

Passei horas e horas ouvindo-o trabalhar com estudantes Com sutileza e não sem malícia, ao me falar sobre a sua pro-
de medicina ou psicólogos que tinham bagagem suficiente para fissão, sobre o seu papel, Mony Elkaim simplesmente explicitava
compreender os termos, às vezes um pouco difíceis para mim. como algumas vezes centrávamos o foco num dos membros da fa-
Em seguida, com muita condescendência e um evidente senso mília. Nós o cumulávamos de todos os males, o estigmatizávamos
de vulgarização, Mony passava um longo tempo decifrando para como "doente" ou "transviado", sendo que, na maioria das vezes, ele
mim os desempenhos de papéis, ocasião em que, aqui e ali, sur- era apenas o portador de um sintoma que, na verdade, afetava toda
giam momentos mágicos que lhe davam a oportunidade de de- a família. Que bela solidariedade irmos à consulta todos juntos,
senvolver as noções fundamentais da terapia familiar. para permitir a esse "determinado paciente" sair desse estado ...

Na minha família, eram muitas as histórias que impediam Mony Elkaim acredita no enorme potencial que existe no
as conversas, que desiludiam os mais audaciosos - jovens pais, seio de cada família. Seduzida por esse olhar, por essa condes-
jovens casais, avós orgulhosos, mas às vezes decepcionados, filhos c~ndência e essa abordagem que, segundo suas palavras, também
rebeldes, que saíram de casa ou estavam em vias de fazê-lo. pode apoiar-se nos ombros do Papai Freud, me deixei guiar e Eu
Essa terapia, sempre atual, interessava a todos, sem dú- amo minha família deu a alguns sobreviventes da vida em família
I! vida a mim em primeiro lugar, a mais velha de uma numero- a oportunidade de falar, finalmente reconciliados consigo mes-
sa família, curiosa para compreender como era possível nos mos e com os parentes, ilustrando com várias situações esta frase
amarmos tanto e brigarmos tanto! que Mony gosta de repetir: "Não é necessário que o outro esteja
errado para que tenhamos razão".
Um dia em que passeávamos num jardim em Paris,
Mony apontou uma bela árvore em flor e soltou a metáfora: Depois desse documentário para a televisão, numa das nos-
"As famílias são semelhantes a essas árvores magníficas, cujos sas conversas nasceu a idéia deste livro para o grande público. Par-
galhos desabrocham na primavera ... mas acontece que, às ve- tilhar o maior número possível de reflexões que ajudariam o leitor
zes, um dos ramos não dá botões ou, então, nenhum botão se a se fazer as perguntas certas, a mudar um ponto de vista estereo-
abre, nenhuma flor desabrocha. O galho parece seco, como tipado que nos aprisiona para dar um novo ar às relações, facilitar
se privado da seiva para se desenvolver. O papel do terapeuta a vida em família, abandonar, de uma vez por todas, as idéias pre-
familiar é o de um jardineiro que oferece ou traz um bom concebidas, as histórias ultrapassadas, penosas e imutáveis.
adubo, a boa terra, que faz nascer o sol no lugar certo. Então, Um livro concreto e acessível, no qual cada leitor pudesse
a seiva existente no tronco poderá circular e irrigar cada um obter sobre o que refletir e se comunicar de maneira diferente
dos ramos, inclusive aqueles que parecem atrofiados". com o cônjuge, os pais, o irmão, a irmã ou com o filho.

16 17
.<

I I
Como sobreviver à própria fàmília Introdução

Conversamos sobre as histórias verdadeiras relatadas en-


tre quatro paredes no consultório de Mony. Nós as organiza-
mos com o objetivo de, um lado, respeitar o segredo profissio-
nal e, do outro, apresentar os casos mais universais. Durante
esses encontros, Mony Elkaim, ímpar contador de histórias,
me relatava essas sessões com deslumbramento quando sur- Introdução
giam indícios que lhe permitiram oferecer aos pacientes as
ferramentas para destrinchar situações .emaranhadas. Atenta Quem nunca se sentiu, em algum momento, preso na
às palavras e aos conceitos, desempenhei o papel de ignorante própria família? Quem nunca teve a impressão de ser esmagado
que salientava os meandros das frases e da mente impossíveis por uma realidade sobre a qual não podia influir? Desejo que
de serem compreendidos pelos não iniciados. Levei para ele as esta obra esclareça essas situações familiares, que todos conhe-
perguntas que todos nos fazemos, a fim de aprofundar alguns cemos, com uma luz diferente da que estamos acostumados. Na
pontos obscuros e de difícil acesso. maioria das vezes, não é a realidade em si que nos prepara uma
Esses diálogos fascinantes, apaixonantes, decifrados até nas armadilha e sim uma representação dessa realidade construída
vírgulas, formaram uma base sólida, depois cuidadosamente revi- com o passar dos anos e dos acontecimentos. Como vamos ver,
sada e, em seguida, redigida por Mony. cada um desempenha um papel bem específico no roteiro fami-
liar e a distribuição desses papéis, em geral, é feita à revelia de
Diametralmente oposto a um livro de receitas, Como sobre- todos. A armadilha se fecha, um sistema rígido se instala e todos
viver à própria família é, no entanto, um livro salutar e útil. Estou se sentem prisioneiros. Alguns membros da família sofrem, sin-
feliz por ter sido a sua humilde "parteira". E como em todos os tomas aparecem ...
nascimentos, quer se trate de um filho ou mais prosaicamente Ao descrever e comentar as situações, das quais a maior
de um livro, promessas de vida, de sonhos e de novos horizontes parte diz respeito à nossa vida cotidiana, tentei oferecer ao leitor
acompanham essa vinda ao mundo ... uma forma de perceber o que lhe acontece; tentei mostrar de que
maneira participa delas sem querer, e como, para sair desse círcu-
lo vicioso no qual está preso com os parentes, ele pode conseguir
Caroline Glorion delimitar o seu território, fazendo com que seja respeitado pelas
pessoas que o cercam - sem provocar hostilidade, mas, ao con-
trário, conseguir aliados e não adversários.

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- ~___ 4- ...-... _~,_,_~,___ _

Como sobreviver à própria fàmília Introdução

Sobreviver à própria família passa a ser, então, sobreviver Aqui vão algumas explicações. Em primeiro lugar, foi im-
à idéia que fazemos dela. Como os membros da minha família, possível ser exaustivo. Diante da imensa e complexa paisagem
a cultura na qual cresci, meus relacionamentos sociais, a mídia, das situações familiares, precisei fazer uma escolha. Porém, como
me constroem, me esculpem, limitando a minha capacidade de veremos, muitos dos princípios evidenciados num caso também
mudança ou de adaptação? Por que me sinto preso na minha rea- valem para outros e trata-se mais de compreender a natureza
lidade familiar? Será que não participo, contra a minha vontade, do que podemos fazer e não de aplicar receitas mecanicamente.
da escultura de uma situação que, forçosamente, é mútua? Em segundo lugar, esses princípios, válidos na maioria das situ-
Desde o meu nascimento, estou preso num contexto: a ações da vida cotidiana, não funcionam da mesma maneira em
maneira como fui esperado, olhado, o nome que recebi e muitos contextos de abuso e violência em que devemos, antes de tudo,
outros elementos constituem um ambiente de regras e mitos, nos proteger, nem em casos graves em que uma ajuda medica-
criado e compartilhado entre os membros da família, cuja co- mentosa e, se necessário, uma hospitalização devem completar a
esão e permanência ela garante. Desde que cheguei ao mun- psicoterapia. Finalmente, eles não são dirigidos especificamen-
do, participo desse universo cuja estrutura também manterei. te aos filhos, nem aos pais, pois todos estamos envolvidos em
À medida que vou crescendo, os mitos e as regras da minha relações cujas tensões incessantes só poderemos evitar se acei-
família não poderão mais ser diferenciados da maneira como tarmos reconhecer o papel que nós mesmos desempenhamos
eu os percebo e como me situo em relação a eles. A partir de nelas. Como este livro vai mostrar, assim espero, é a conquista
então, torno-me ator da peça que representamos juntos: como da nossa capacidade em modificar as regras do sistema em que
vou me dar o direito de ser suficientemente "desleal" em relação vivemos que permitirá a todos os membros da família terem
àqueles que me cercam, ou à imagem que tenho deles, para ver acesso à mudança. Assim é que os vínculos que me unem aos
minha família de um modo diferente do que eles a vêem - de outros, lugares e causas do meu sofrimento, podem ser os pró-
um modo diferente do que eu também a vejo? Como abrir ca- prios caminhos da minha libertação e da deles.
minho fora das rotinas repetitivas e aparentemente inevitáveis
nas quais nos atolamos de comum acordo?
Essas são as perguntas às quais este livro se esforça para
responder. Evitando longas elaborações teóricas, me esforcei
para comentar casos concretos e mostrar o ensinamento que
podemos tirar deles.

20
21
----"--

Mãe e filha: a travessia de um conflito

I1

Capítulo 1

Mãe e filha: a travessia


de um conflito

E
legância e distinção são as palavras que me vêem à cabeça
quando mando entrar as duas mulheres que se apresen-
tam para a primeira sessão.
Vamos chamá-Ias de Anne e Agathe para facilitar o relato.
Anne, a mais velha, é mãe de Agathe. É uma mulher muito
bonita, de uns cinqüenta anos, e fiquei impressionado com a sua
desenvoltura quando se sentou à minha frente. A filha, que devia ter,
no máximo, uns 25 anos, senta-se ao lado dela com a mesma graça.
A jovem é a primeira a falar: acabou de dar à luz o seu pri-
meiro filho, ela explica, e a mãe se recusa a vê-lo.
Essa recusa é causa de um grande sofrimento para ela.
A mãe toma então a palavra, com a voz tingida de emoção:
"Não se trata apenas dessa criança. Reconheço que não me sinto
capaz de vê-Ia, mas o verdadeiro problema é que não agüento
mais sofrer com a atitude da minha filha!".
Ela inicia um monólogo, que ecoa como uma longa queixa:
"Eu não agüento mais dar a pessoas que me rejeitam, não agüen-
to mais amar alguém que só me retribui com indiferença. Aga-
the sempre adotou essa atitude para comigo! Ela me rejeita e a

23

_.1
Como sobreviver à própria fàmília Mãe e filha: a travessia de um conflito

maior parte do tempo só demonstra indiferença. Evidentemente, Que ciclo sem fim!
a questão não é o filho dela ... é a sua atitude. A verdade é que Sem dúvida, porém, olhando mais de perto, Arme e Agathe já
tenho medo de me expor ao me interessar por essa criança; tenho me haviam entregado elementos preciosos.Vamos tentar enurnerá-los.
medo de sofrer outra vez com uma rejeição afetiva, ou uma pala- Anne é uma mulher hipersensível e, parece, marcada por
vra ofensiva da parte da minha filha. É isso o que me impede!". relacionamentos dolorosos que teve no passado: ela prefere se
A resposta de Agathe não demorou: "Não quero que mi- proteger a se arriscar a sofrer como fez na infância. Ela me lem-
nha mãe se comporte comigo como a mãe dela fazia com ela, isto brou uma estudante que preferia não comparecer a um exame por
é, rejeitando-a, não a aceitando como ela era". medo de ser reprovada: expor-se a uma desilusão aterrorizava-a!
Anne prosseguiu como se não tivesse ouvido essa observa- A filha, em compensação, se sente mais à vontade para ex-
ção, o que eu notei atentamente. E se dirigiu diretamente à filha: pressar seu desejo, mas se sente rejeitada na sua singularidade. E,
"Quando seu pai me abandonou, você tomou o partido dele. Ele de fato, ela não pode ser diferente, não pode expor suas opiniões
me tratava mal, você sabe disso, e, apesar de tudo, ainda se rela- oú escolhas, sem que a mãe sinta isso como uma agressão.
ciona com ele! Além do mais, você optou deliberadamente por Além do mais, existe a sombra desse pai ausente que real-
continuar ligada a pessoas que me abandonaram depois da sepa- mente parece planar entre as duas mulheres.
ração. Não, eu não quero ficar longe de você, mas como poderia Uma equação bem simples fica evidente: Anne teme se
agir de outra maneira? É você quem me rejeita e que age de uma aproximar da filha com medo de que ela a faça sofrer e Agathe
maneira que não me dá opção!". desejaria encontrar cumplicidade e proximidade na mãe, mas não
Enquanto eu escutava, em silêncio, as duas mulheres, senti pagando o preço de abandonar sua própria personalidade.
uma emoção me invadir - o sofrimento delas era palpável.
Da minha posição de terapeuta, percebi primeiro - como Essa primeira sessão por pouco não foi bruscamente interrom-
é geralmente o caso - o sistema circular no qual Anne e Agathe pida devido ao gira-gira citado anteriormente: quanto mais Anne
estavam presas. Elas se acusavam mutuamente de serem respon- enumerava suas queixas e críticas à filha, mais esta reagia e insistia,
sáveis por aquela situação; Agathe acusava a mãe de se proteger presa na sua própria exigência: ser aceita, reconhecida como ela era.
e não aceitá-Ia como ela era, a mãe acusava a filha de rejeitá-Ia Nessa pesada atmosfera, eu ouvia Anne repetir como um
ao fazer escolhas ou ao adotar atitudes que lhe pareciam hostis e metrônomo, dirigindo-se a mim e depois à filha: "Não sou rece-
agressivas. Uma troca fechada em si mesma, uma espécie de gira- bida na casa dela e ela se relaciona com pessoas que me são hostis,
gira: ''A culpa é sua", disse a primeira, "foi você quem começou". que me evitam e me rejeitam. Quanto à relação que você man-
Ao que a segunda replica: "Não, a culpa é sua e se eu reagi assim tém com o seu pai, que me abandonou", prossegue, olhando para
foi porque você começou!". Agathe, "pois bem, ela me causa um terrível desgosto".

24 25
Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito

Uma especificidade da terapia familiar consiste em entrever Menina, depois adolescente, Anne via o pai muito rara-
de repente, hic et nunc, o sistema que se instalou entre duas pes- mente, a cada dois ou três anos. Quando fala sobre ele, suas pa-
soas, que lhes dá funções estreitamente complementares e as apri- lavras estão impregnadas de tristeza. Novamente a cena se torna
siona num círculo patológico. No caso, era uma espécie de laço emocionante, quando ela me conta um episódio que a abalou.
complicado, como uma trança cheia de nós, que prendia ambas Sofrendo por ver muito pouco o pai, quando tinha 14 ou 15
num sofrimento pelo qual se sentiam mutuamente responsáveis. anos, ousou lançar-lhe uma espécie de ultimato: "Pare de me
No entanto, não se deve acreditar que as duas se com- telefonar", ela declarou. "Se você me ama, vamos ver-nos mais
I
portavam em perfeita sincronia consigo mesmas. Agathe, por vezes!". A resposta paterna cai como uma punhalada: "Não gosta
exemplo, desenvolvia um forte sentimento de culpa quando re- dos meus telefonemas? Pois bem, eu paro". E ele não deu sinal de
II sistia ou se opunha às exigências maternas; mas, se ela cedesse, vida por vários anos.
tinha a sensação de que estaria rejeitando a si mesma - senti- Anne relata essa lembrança que ainda lhe dói e conclui:
I
mento que abominava. "Aqueles que eu mais amei foram os que mais me fizeram sofrer".
"Minha mãe", diz ela, "busca em mim o amor que não teve Do lado materno, Anne também não devia encontrar segu-
dos pais. Mas ela é um saco sem fundo: por mais que eu faça, rança nem consolo. A mãe, que se casara novamente, mandou-a
nunca está satisfeita." muito cedo para um colégio interno e quando Anne voltava para
Todos nós sabemos - por nos encontrarmos tanto numa casa, ouvia claramente que incomodava o novo casal que se for-
posição quanto na outra - que a demanda afetiva pode com- mava. "Saiba que o meu casamento vem em primeiro lugar",
portar uma dimensão absoluta que a torna impreenchível - desferiu-lhe a mãe um dia, intimando-a a não se instalar naquela
demandar é demandar mais ainda, sublinha Lacan no seminário casa que, no entanto, era o seu lar - a única coisa a fazer era
que tem esse título. "encontrar uma ocupação".
Agathe termina nosso primeiro encontro com uma consta- Portanto, Anne teve de se virar sozinha e o fez muito bem,
tação análoga, formulada clara e pausadamente. pois criou uma empresa que soube dirigir com maestria. Porém,
com os homens, suas aventuras, em geral efêmeras, deixavam-na
Na sessão seguinte, essas últimas palavras me voltam à continuamente na posição de abandonada.
memória, enquanto começo a questionar a mãe sobre a sua pró- Agora, Anne era uma mulher desamparada, pois os ne-
1I

I
pria infância. gócios tinham ido por água abaixo. Sua situação era realmente
Fico sabendo que o pai dela, um homem muito brilhan- difícil. No plano afetivo, confrontava-se com um passado que
te, apreciado por todos, abandonou o lar muito cedo, deixando ressurgia e a fazia repetir como um leitmotiv: "Por que aqueles a
Anne com a mãe num tête-à-tête cada vez mais doloroso. quem eu mais amei sempre me fizeram sofrer tanto?".

26 27
·"

Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito

Como acontece muitas vezes nesse tipo de situação, Anne me pergunto quem é a filha e quem é a mãe. Vivo a mesma rejei-
era movida por duas atitudes aparentemente contraditórias. A ção. Ela diz as mesmas frases da minha mãe. Existe uma analogia,
primeira, que vou chamar de seu "programa oficial', a impele a ir é incrível! O que tive de sofrer com a minha mãe, bom, eu não
ao encontro da filha - que ela ama - para construir uma rela- tinha escolha, mas merecia realmente uma filha que compensasse
ção satisfatória. A segunda, que diz respeito à sua "construção do isso e não que a reproduzisse. Com a minha mãe acontece o mes-
mundo", mais profunda, aprisiona-a e a mantém numa situação mo que com a minha filha, eu a amo e a detesto".
que já é habitual- a de se considerar uma pessoa rejeitada.
Anne vai em direção à filha protegida por uma armadura A relação teci da entre essas duas mulheres induz à re-
que não ousa retirar, com medo de uma trágica desilusão. petição já vivenciada por uma delas com outros, no caso, por
Não é nada surpreendente que Agathe fique tonta diante Anne com a própria mãe. Esse tipo de repetição dramática não
dessa mãe que, pela sua atitude, lhe diz "uma coisa e, ao mesmo tem muitas possibilidades de terminar sem uma "decodifica-
tempo, o oposto": ''Ame-me, mas não acredito que você possa ção" feita delicadamente.
amar-me!", ou ainda "Conheça-me, mas não acredito que possa . É isso o que me esforço para fazer nos encontros seguintes. A
fazê-lo, pois, até agora, ninguém conseguiu isso!". Dupla injun- função do terapeuta aparece aqui nitidamente: ele é aquele que, com
ção contraditória ditada por um "programa oficial" e uma "cons- sua presença e seus discursos, pela natureza de suas intervenções,
trução do mundo" contraditórios. abre o espaço relacional e permite sair da repetição patológica.
Além disso - e esse é um detalhe importante, pois se trata É importante destacar outro aspecto: trata-se da maneira
de uma relação mãe/filha -, provavelmente Anne não tem cons- pela qual a filha, na luta com a sua mãe, volta a representar o con-
ciência de que vivencia com Agathe o comportamento da mãe. fronto entre esta última e sua própria mãe. Essa situação poderia
Esta a havia rejeitado sem condescendência e eis que sua própria ser ilustrada pela queixa de outra paciente: "Minha filha tem co-
filha parece fazer o mesmo com igual empenho! migo as mesmas reações que eu tinha com minha mãe; é como
Trata-se de uma situação freqüente. Como prova, bastam se ela revivesse comigo o que vivi com a minha mãe. No entanto,
as declarações de outra mãe invadida por um tormento seme- fiz de tudo para lhe oferecer uma relação diferente da que minha
lhante: "Quando ouço minha filha falar, ouço a minha mãe. Eu mãe mantinha comigo".
Essa mãe trava uma luta contra a própria mãe, por meio
1 Chamo de "programa oficial" a demanda explícita que o membro de um casal faz ao outro. Por da filha, enquanto esta retoma a bandeira do combate da mãe na
exemplo: "Cuide mais de mim", "Fique mais próximo". Esse programa oficial deve ser diferen-
ciado de uma "construção do mundo", elaborada com base em experiências anteriores, que pode época, sem perceber que o que faz é repetir um conflito que não
contradizê-Ia totalmente. Por exemplo: "Todas as pessoas que dizem amar-me acabam me aban-
donando". Num nível superficial, alguma coisa é demandada, porém, num nível mais profundo,
é seu. Portanto, eis duas mulheres que esperam receber uma da
não acreditamos que o que é demandado possa ser conseguido. outra, mas que, no fundo, não podem receber.

28 29
orno sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito

Por trás do outro, tratado aqui e agora, surge um outro Nesse contexto, meu papel será o de fazer com que se cons-
"outro", enfiado no passado, adormecido e acordado pela repe- cientizem de que esse terceiro espaço existe e que aceitar a dife-
tição, que a terapia descobre, ao mesmo tempo em que revela a rença do outro não implica rejeição. Que uma diferença expressa
construção do mundo disfarçado pelo programa oficial. não equivale a um movimento de agressividade.
"Tenho a impressão de que dei em vão, nunca preencho o Tenho de propor que substituam a armadura por um escu-
espaço que minha mãe quer que eu preencha" - declara Agathe. do! Pois a armadura protege, mas impede de sentir o sol na pele,
Minha resposta tem a forma de uma pergunta: "É possível o vento no cabelo ... O escudo também protege, é claro, mas po-
preencher esse espaço?". Anne parece buscar inconscientemente demos deixá-I o no chão quando não há mais perigo, mesmo que
esse amor materno (e provavelmentepaterno) que ela nunca re- tenhamos de pegá-Io outra vez se surgir um novo perigo ...
cebeu. Mas como sua filha poderia dá-Io? A história de Anne e Agathe é uma história triste de amor
A melhor filha do mundo só pode dar o que tem! que poderia durar muito tempo. Mas a decisão de procurar um
Agathe só pode dar ternura e um amor filial. A fórmula ter?-peuta familiar é uma atitude que pode pôr fim ao calvário
irrevogável que ela empregou resume por si só a situação: "O que compartilham.
que quer que eu faça, de nada adiantará". Quando se entra num movimento perpétuo, nessa espécie de
moto-contínuo que dá tontura, ir a um terapeuta é encontrar al-
Nesse momento, qual deve ser a posição do terapeuta? guém que - se for um terapeuta familiar - vai começar a afugentar
Em primeiro lugar, ela comporta uma compreensão tingida o problema. Quem está errado? Quem tem razão? Quem começou o
de emoção, pois o terapeuta é confrontado com duas pessoas que, quê? A simples eliminação do problema, tão difícil de realizar porque
naquele frente-a-frente, gostariam de se amar, mas têm medo. sempre podemos nutrir nossa hostilidade com erros bem reais que o
Ambas podem dizer, com toda a legitimidade, que sentiram fal- nosso sofrimento imputa ao outro, abre um novo espaço. As pergun-
ta de amor na infância. Ambas procuram se situar, mas, nessa tas do terapeuta são, ao contrário, perguntas que libertam: qual é o
busca, falta-lhes uma experiência - precisamente a de ter o movimento 'incessante no qual estão presas a mãe e a filha? Qual é o
sentimento de ter ocupado um lugar no qual pudessem ter sido processo que as aprisiona? Que estrutura é essa que faz com que duas
respeitadas como elas mesmas. pessoas vivam como vítimas e vejam uma à outra como carrasco?
As duas mulheres buscam um "terceiro espaço" - aquele A função de uma estrutura dessa - é preciso insistir -
em que podemos nos abrir sem medo de sofrer -, mas ambas não é só a de fornecer proteção às pessoas aprisionadas. Cada
passaram, principalmente, pela experiência do sofrimento! A proteção também protege o outro: a filha não percebe que seu
isso se acrescenta o fato de estarem presas numa rachadura da comportamento permite à mãe se sentir como não reconhecida,
fronteira transgeracional, na qual estão no lugar de uma mãe. portanto, permite que ela mantenha a armadura e continue a não

30 31
Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito

se expor; e a mãe não vê que o modo como trata a filha também Nesse momento da conversa, eu intervenho e digo a Anne
"protege" esta última, pois permite que ela não se abra, que evite que ela é a mãe e que pode reivindicar legitimamente o desejo de
o sofrimento e a desilusão. Ao se proteger, sem ver isso explici- ver a filha e a neta. Sem dúvida, Agathe vai recusar, mas estarei
tamente, cada uma delas protege a outra e a leva, completado o ao lado delas para compreender o que se passou. Essa proposta
movimento giratório, a dar mais um giro! que vem do terapeuta é tranqüilizadora, pois o lugar de tercei-
Numa conduta de proximidade e respeito em relação às ra pessoa neutra, mas engajada de uma maneira diferente das
duas mulheres, mas também analisando o processo que as conde- duas protagonistas, já contém virtudes terapêuticas: a proposta
na a permanecerem nesse desentendimento e nessa autoproteção respeita a possibilidade de uma não-mudança sem, no entanto,
vivenciada como agressiva pela parceira, o terapeuta pode criar receitá-Ia. Como sempre, não se trata de propor um remédio
um espaço para ele e, portanto, para elas. milagroso, mas apenas de uma abordagem tranqüilizadora para
Ele é a terceira pessoa que se alia a cada uma das outras duas, que as duas mulheres saibam que não mais se defrontarão, cada
presas num ciclo infernal, para tentar intervir no próprio ciclo. uma com o seu sofrimento a tiracolo.
A proximidade com uma e com a outra permite uma vivência
afetiva nova, pois as duas mulheres percebem rapidamente que o Na sessão seguinte, fico sabendo que o encontro acon-
terapeuta não se alia a uma delas contra a outra, ou vice-versa. tecera e que tudo havia corrido bem. Melhor ainda: Agathe e
É na diferença ativa desse sistema terapêutica, sentida pelas Anne haviam almoçado juntas alguns dias depois. Anne conhe-
protagonistas, que pode aparecer outra saída, outro caminho, ou- eu a neta e estava feliz com isso, e Agathe, encantada com o
:
tra maneira de ver e de se ver. novo encontro, havia aceitado almoçar com a mãe!
I A referência a esse acontecimento, relatado com simpli-
Mais tarde, um novo diálogo se estabelece, quando Agathe cidade, só levou alguns minutos - depois, Agathe prosseguiu
reitera a sua demanda em relação à mãe: com a maior naturalidade, falando de problemas que, dessa
- Repito que acabei de dar à luz e que tenho um bebê; eu vez, eram totalmente pessoais.
gostaria que o visse! O espaço criado permitia à jovem deixar que viessem à
- Mas você nunca me telefona! - retruca Anne. tona suas dificuldades de contato com as pessoas à sua volta e
- Não preciso telefonar, você pode ir vê-Ia! a relutância que sentia em expressar sua própria opinião. Tudo
- Não quero que você me diga que está ocupada e que o que ela dizia entre nós três encontrava um novo eco. Já não
tem coisas mais interessantes a fazer. Vou sofrer de novo e ficar eram críticas em relação a uma mãe insatisfatória que ela punha
outra vez na posição de uma mendiga que pede esmolas na rua. E na cesta terapêutica, mas a expressão de uma dificuldade de vida
isso eu não quero por nada neste mundo! que, finalmente, podia ser formulada como tal.

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Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito

Essa fase sena transitória. Outros bloqueios surgmam criamos uma situação circular em que estamos presos num tal
mais tarde e precisariam do apoio infalível de um terapeuta para frenesi que não conseguimos sair dela? Como pensar em solu-
que as duas mulheres mantivessem o processo de mudança. ções para deter essa porta giratória, para acabar com essa queda-
de-braço? E isso, mesmo que me pareça que a última palavra
Anne e Agathe nos ensinaram muito sobre as dificuldades será do meu parceiro. Afinal, a última palavra não é um objetivo
que podem toldar a relação mãe-filho, a relação de um casal tão atraente; o que é realmente exultante é conseguir criar uma
e, de forma geral, qualquer relação em que duas pessoas, que situação que modifique radicalmente os dados do problema ao
partilham uma história em comum, enfrentam e com as quais trazer soluções inesperadas!
se defrontam. Elas nos permitem pôr alguns pontos de interro-
gação úteis, que considero universais. Para o terapeuta de família confrontado com histórias
Primeira pergunta, incontornável (e indispensável): em complexas que ele desenrola muitas vezes como uma meada de
que medida, se estou constantemente em conflito com meu fi- lã; ajudar o paciente a se abrir para as diferentes perguntas que
lho, não estou revivendo com ele alguma coisa que já vivenciei na desabrocham é uma necessidade.
minha própria história? É verdade que os protagonistas, em geral Isso permite esclarecer (mesmo arbitrariamente) os diferentes
transbordando de sentimentos ambivalentes, não podem fazer a níveis de complexidade, não para simplificar excessivamente, mas
si mesmos esse tipo de pergunta no auge da batalha. para dar coordenadas, permitir que as pessoas façam a si mesmas
Não estou repetindo o que meus pais fizeram comigo e novas perguntas, criar uma nova vivência e deixar delinear-se um
agindo igual com o meu filho, mesmo que eu tenha sofrido com espaço de liberdade para que novas perspectivas se abram nas rela-
isso na minha infância? ções que aprisionam, que confinam, sufocam os protagonistas do
Não estou protegendo meus pais, inconscientemente, drama sem fim que é representado diante do terapeuta e com ele.
como se eu me impedisse de ir mais longe ou ter pensamentos
críticos em relação a eles? Para completar essa síntese geral, é preciso destacar uma
Segunda pergunta, ainda mais surpreendente: em que me- das especificidades da relação pai-filho, que formularei assim: se
dida meu filho não está repetindo comigo, numa espécie de para- o outro é meu filho, tenho responsabilidades para com ele que
lelismo, o que vivi com meus próprios pais? são diferentes das que ele tem em relação a mim. Portanto, não
Outra pergunta, igualmente redentora quando a resposta posso me comportar como se ele fosse meu irmão ou irmã, ou um
aparece: em que medida o que o outro faz comigo não é algu- dos meus pais. Nossa relação não é simétrica: sou eu quem devo
ma coisa de que participo? Ele e eu não entramos numa porta dar o primeiro passo sem esperar que ele o faça - assim, aceito o
giratória que nos faz girar, mesmo contra a nossa vontade? Não meu papel de pai e a responsabilidade que decorre desse fato.

34 35
·~

Como sobreviver à própria família o passado não nos condena

o que concluir de tudo isso?


Que é impossível chegar a uma conclusão em terapia
familiar, pois a criatividade e a dinâmica são os motores das
sessões. A complexidade das relações humanas, os recursos ini-
magináveis dos indivíduos incitam-me a nunca encerrar uma Capítulo 2
história, a nunca pôr um ponto final. À guisa de conclusão,
me limitarei
qual terminarei
a acrescentar
a história
um elemento de reflexão, com o
dessa mãe e dessa filha que não po-
o passado
dia ser a mãe da sua mãe. não nos condena
Para um pai, achar que tem toda a razão não significa

O
que ele seja o único a ter razão! Longe disso! Um filho também capítulo que acabamos de ler descreve, entre outras
pode, legitimamente, achar que tem razão. Por isso, o problema . coisas, a história de uma repetição. O que se repetia
não é saber quem tem razão ou quem está errado, e sim sair do naquela família, de geração em geração? A rejeição. A
processo em que duas pessoas entraram seguros da sua certeza paciente, que se sentira rejeitada pela mãe, se vê rejeitada pela fi-
de ser vítima do outro. lha que, por sua vez, tem a impressão de que a mãe não a aceita.
Anne e Agache vieram juntas me ver, e essa atitude, pouco A primeira pergunta que essa história nos faz é uma per-
freqüente, é fundamental! gunta clássica no campo psicoterapêutico: qual é o impacto do
Isso porque, quando surge um problema, é importante ver passado no nosso comportamento?
toda a família (ou os dois membros do casal) para melhor com- Mas essa pergunta encobre outra, mais profunda: o que
preender como a dificuldade se instalou e que sentido, ou função, se deve entender por passado? Um terapeuta familiar respon-
pode ter o sintoma, num contexto mais amplo. derá: não são apenas os fatos, não são apenas os acontecimen-
Na história de Anne e Agathe, assim que vi mãe e filha, per-
I'i cebi a estrutura que as prendia. Percebi o tipo de relacionamento
tos que se sucederam desde que nascemos. Sem dúvida, nosso
passado é feito de mitos, de relatos e de regras, transmitidos
que haviam estabelecido, que as levou a se atolarern num pântano de geração em geração na nossa família, e também, mais am-
comum. Compreender uma e outra foi indispensável, mas o meu plamente, no nosso ambiente. Estaríamos errados em explicar
objetivo era modificar o tipo de relacionamento que as aprisiona- as tempestades internas que às vezes nos abalam unicamente
va, para que elas se abrissem para uma nova vivência emocional, com elementos ligados à nossa história; são os acontecimentos
inaugurada na psicoterapia e que, em seguida, pudessem exportar do presente que as provocam, ao entrarem em ressonância com
para a vida cotidiana. as experiências vividas e as crenças enraizadas na nossa própria

36 37

I,I[ I
Como sobreviver à própria fàmília o passado não nos condena

história. O passado e o presente desempenham um papel no jovens, pois, para ela, os homens são, por definição, incapazes
nascimento desses maremotos afetivos - na verdade, ambos de dar amor e ela não rejeitará aquele em quem detectar, além de
são necessários, mas nenhum deles, sozinho, é suficiente. Se o protestos vibrantes e declarações inflamadas, uma indiferença e
presente não desperta nada em nós, em geral ele é inofensi- uma hostilidade em potencial; dirá a si mesma que ele é como
vo; o passado nos sensibiliza, às vezes nos fragiliza, mas só nos todos os homens que conheceu, mas que, como ele a ama, tal-
condena se fizer o presente ecoar em nós. Nossas vivências de vez não seja impossível que, graças a ele, consiga vivenciar uma
outrora se parecem com dragões adormecidos sob a nossa cama. experiência pela qual nunca passou - uma relação de amor
Podemos não perceber a presença deles. Porém, um dia, certo mútuo. Uma parte da jovem fará tudo o que for necessário para
acontecimento toca a música certa' para acordar o dragão. E eis que o companheiro mude; mas, ao mesmo tempo, sua crença
que ele desperta, perturbando o nosso universo. profunda lhe soprará que é pouco provável que isso ocorra. Se
Como, a partir de então, age o terapeuta? Modificando, uma discussão eclodir e a rejeição puser o nariz para fora, ela
com a sua presença e suas reações, o coquetel explosivo ao qual irá ernparedar-se na sua crença: isso fatalmente teria de acorite-
está submetido o indivíduo, o casal ou a família em tratamen- r! O pois de vários confrontos dolorosos com o cônjuge, ela
to. Com as suas intervenções, ele faz evoluir, aos poucos, pelos não mais ousará esperar por uma mudança, pois ficará receosa
reenquadramentos que efetua ou tarefas que dá, o contexto de que, se ocorrer, será de pouca duração e, aí sim, provocará
afetivo no qual o paciente está preso; ele faz emergir um novo uma cruel decepção.
ambiente que permitirá sair progressivamente da repetição ge- Essa situação nos mostra claramente os diversos fatores que
rada pelas interseções entre os acontecimentos do presente e preparam o aparecimento de um configuração repetitiva:
as sensações do passado. A experiência afetiva do paciente na 1. Uma pessoa marcada por esse traço recorrente do seu pas-
sessão vai, então, substituir a antiga vivência tirânica e abrir ado acredita que o que vivenciou só pode acontecer de novo.
outros devires. 2. Ela cria para si mesma um refúgio para se proteger quan-
Vamos imaginar uma jovem que, tendo crescido num do existe o risco de a situação se repetir: ao menos nesse abrigo,
contexto difícil, associa os homens à ausência de amor e à rejei- ela pensa, não ficará exposta à desilusão.
ção afetiva. Mais tarde, ela quer criar uma relação amorosa com 3. Ao mesmo tempo, como qualquer ser humano, ela quer
o homem que escolhe por companheiro. Ela se sente dividida ser feliz, ou seja, procura outra saída, um devir diferente daque-
entre uma crença profunda ligada ao passado, que apresenta le, repetitivo e doloroso, que já conhece. Ela será mais atraída
os homens como incapazes de amar, e o seu desejo atual de vi- do que qualquer outra pessoa para o tipo de relacionamento
venciar um relacionamento compartilhado com o parceiro. Na que deseja ver mudado, porém, como, no fundo, não acha que
escolha do companheiro, ela estará menos atenta do que outras isso seja possível, não ficará tão atenta para evitar esse perigo.

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Como sobreviver à própria fàmília o passado não nos condena

4. Em nome da mudança, ela participa do ciclo que se sabia, ocorrer de novo e de novo! A partir de então, um ciclo de
forma em seguida. Paradoxalmente, deseja se livrar dessa crença comportamentos e de reações se estabelece e, rapidamente, come-
profunda que a consome, mas vai enveredar por uma situação ça a funcionar por si mesmo; nenhum dos dois protagonistas está
que irá reforçá-Ia. à altura de pará-lo, mesmo que o queira. Cada um deles reforçará
5. Porém, ao fazer isso, ela fica dividida. Uma parte dela a convicção do outro e o ajudará a fortalecer o refúgio.
quer a mudança, enquanto a outra não consegue acreditar que No entanto, a experiência nos mostra que esse ciclo pode
ocorra. Essa divisão interna faz com que envie ao parceiro uma ter outra saída. A situação pode começar com um convite à re-
dupla mensagem: "Pare de se comportar assim" e "Se você mudar petição sem que, por isso, vá em frente: basta que o outro man-
de comportamento, tenho muito medo de que isso não dure, tenha distância do tema proposto e que esse tema não desperte
pois você só pode se comportar desse modo". nele nenhuma fragilidade em especial. A reação será surpreen-
6. Portanto, ela estimula o que receia que ocorra. Ela se dente para o parceiro e se este último, devido a esse fato, não
coloca numa profecia auto-realizadora, como esses motoristas s~guir pelo caminho previsto, pode aparecer uma flexibilidade.
que, devido a um conflito internacional, temendo que a gasolina As crenças profundas não são convicções inabaláveis, não são
venha a faltar, completam o tanque e enchem o porta-malas com estruturais; elas exprimem o medo de sofrimentos renovados.
galões de combustível, provocando assim a escassez que receavam. Um contexto afetivo diferente, que recuse a via temida e, ao
A jovem reforça no parceiro o comportamento que abomina, mas mesmo tempo, proposta, pode livrar o outro de seus laços e lhe
que, ao mesmo tempo, a protege, pois permite que continue no devolver a liberdade que tanto lhe fazia falta.
seu refúgio, protegida da decepção. No capítulo anterior, vimos como a crença da mãe nutria
Esse mecanismo pode ocorrer num casal ou numa família, na filha a mesma convicção que, por sua vez, reforçava a vivência
entre um pai e um filho. Mas só é possível se o outro participar, da mãe. O papel do terapeuta foi "desconectar" os elementos do
de uma maneira ou de outra. É o que vamos ilustrar em seguida. passado dos elementos do presente. Essa desconexão reduziu o
impacto afetivo das crises agudas que mãe e filha atravessavam.
Não basta que um membro do casal convide o outro para Ela pôde ser realizada graças à experiência emocional vivida em
dançar para que esse outro aceite com prazer. É preciso que o família durante as sessões na presença do terapeuta, e enrique-
convite encontre uma sensibilidade ou uma fragilidade presente cida com o surgimento e a multiplicação de novas experiências
no outro. Só então o fato de entrar na dança será equivalente afetivas vivenciadas pelos membros da família entre as sessões.
ao reforço de uma de suas próprias crenças. Ele poderá, como o Na verdade, a repetição não é uma pulsão mortífera; ela é
parceiro, buscar refúgio na fortaleza de sua convicção - a expe- uma tentativa de solução que não dá a si mesma os meios de ter êxi-
riência repetida que ele teve no passado só poderia, como ele bem to. Por isso, o terapeuta pode explorá-Ia ao criar um contexto mais

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Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles

flexível e permitir que essa tentativa desabroche, até a resolução dos


dilemas nos quais os membros da família estavam mergulhados.
De resto, o convite que fazemos ao outro para repetir o
que conhecemos bastante deriva de uma lealdade inconsciente.
Muitas vezes estamos ligados aos nossos pais por grilhões ocultos Capítulo 3
- por exemplo, o sentimento de que os trairíamos se nos aven-
turássemos mais longe do que eles e se tivéssemos sucesso onde
eles fracassaram. Porém, mesmo nesse caso, a conscientização de
o patriarca que queria
que somos a parte interessada nesses ciclos de sofrimento mútuo
pode nos ajudar a tentar outra coisa. E a libertação do outro será,
o bem dos filhos ...
também nesse caso, associada à nossa própria libertação. contra a vontade deles

E
A vida é um processo paradoxal: nós, que nascemos, es- sta história começa como um conto.
tamos condenados a morrer. Talvez fosse melhor não ter nasci- Era uma vez um pai e uma mãe adoráveis que ama-
do, como sugeriu Sófocles, porém, é tarde demais! A maneira vam muito os seis filhos. Eles sonhavam comprar uma
como vivemos está toda nesse paradoxo que define o quadro do grande casa de campo que se tornasse o ponto de encontro da
qual não podemos sair - ter nascido e, portanto, ter de morrer. família. Uma construção acolhedora e espaçosa onde os filhos,
Não somos criaturas assepsiadas que vivem num mundo isento que já eram pais, pudessem se encontrar nos fins de semana e
de paradoxos, de rupturas e de contradições; mas podemos fazer nas férias. Conforme os anos fossem passando, essa bela casa, na
o melhor possível para que os paradoxos nos quais estamos pre- qual toda a família se reuniria como uma tribo feliz, manteria
sos e nos quais encarceramos os outros possam desembocar em alegremente a união entre as gerações.
múltiplas vias e não numa só. Nossa prisão reside na unicidade Ala{n e Denise - é assim que os chamarei - encontra-
do caminho que se perfila diante de nós; nossa liberdade pode ser ram a casa dos sonhos e compraram-na imediatamente. Com o
formulada como uma abertura de outras vias possíveis e nosso passar dos anos, Alain se tornou um verdadeiro patriarca: sentia-
dever de indivíduos é procurar ter acesso a essa liberdade. se feliz em ter à sua volta os seis filhos e as respectivas famílias e
dizia a si mesmo que pequenos, jovens e adultos (mais de trinta
pessoas ao todo) encontravam alojamento e refúgio na casa que
ele havia escolhido.

42 43

I '-<
Como sobreviver à própria família o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles

III Parecia o próprio cenário de harmonia em família. Mas de status menos sólido, não ousavam confessar suas reticências.
nem tanto, pois, nessa atmosfera de contos de fadas, um mal- E continuaram a celebrar na casa a liturgia dessa família perfeita.
entendido se instalava insidiosamente. No entanto, o fogo continuava latente sob a brasa. A apa-
Querendo agradar aos filhos, um belo dia Alain anunciou rente harmonia mal ocultava as ambigüidades que, lenta mas
que a casa era deles e que iria doá-Ia formalmente, em cartório, indubitavelmente, envenenavam o relacionamento de todos.
pois queria fazer a transferência em vida. Sem dúvida, deseja- Datas de férias que coincidiam, despesas com energia elétrica
va selar concreta e definitivamente a união da família doando divididas em meio a discussões, móveis sem manutenção: as dis-
simbolicamente as paredes hospitaleiras. Mas, é claro, ele con- putas aumentavam entre os irmãos, ou irmãs e seus parceiros.
tinuou a ir para casa com Denise, o que, no final das contas, Contudo, paralelamente aos desentendimentos familiares,
era bem compreensível. E zelava para que nenhum quadro fos- os rebentos se multiplicavam, para grande alegria do patriarca,
se mudado de lugar, nenhum móvel, mesmo incômodo, fosse e os anos passavam.
substituído e se responsabilizava pelos necessários trabalhos de . Foi nesse contexto que, depois de seis anos de coabitação,
manutenção e reforma. uma das filhas finalmente decidiu dizer aos outros: "Queridos ir-
Talvez Denise não aprovasse totalmente esse comporta- mãos e irmãs, eu os amo muito, mas vejo que o meu marido não
mento. Em todo o caso, nada deixou transparecer. fica muito feliz quando o trago para cá. Sinto que ele se sujeita,
Pouco a pouco, e sem que ninguém atentasse realmente que vem aqui para me agradar, mas precisa de um lugar que seja
para o fato, um conflito começou a se instalar. Parecia, cada vez dele realmente. Conseqüentemente, irmãos e irmãs, eu ficaria
mais nitidamente, que, apesar da doação, Denise e Alain ainda muito grata se me ajudassem a sair desta comunidade fraternal
eram "os donos da casa", não apenas na representação simbólica comprando a minha parte".
que faziam da situação, mas, no fundo, na realidade. Essa situa- A família ficou estupefata! Mas não houve nenhuma rea-
ção afetou o valor das reuniões familiares, pois, desde então, elas ção violenta ou desesperada. Na verdade, tudo teria transcorrido
pareciam organizadas para o prazer daqueles que continuavam a muito bem se o patriarca tivesse tomado uma posição e feito um
ser os verdadeiros proprietários da casa. discurso mais ou menos assim: "Filha adorada, devo lembrar-lhe
Os genros e as noras começaram a se sentir meio oprimidos que, enquanto eu viver, esta casa me pertence. Ela está no nome
com essasperegrinações rituais em que era celebrado, em coro, o cul- de vocês, mas isso porque eu quero que, no futuro, vocês sejam os
to à família reunida. Maus pensamentos começaram a germinar nas beneficiários. Enquanto eu estiver aqui, não existe possibilidade
suas cabeças - talvez pudessem passar as férias... em outros lugares! de que as coisas sejam encaradas de maneira diferente".
Mas os patriarcas tinham muito tato, eram tão acolhedores, Se o patriarca tivesse manifestado claramente a sua versão
de "convívio" tão fácil, que os membros agregados mais recentes, dos fatos, acabando com qualquer ambigüidade, a filha teria ou-

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Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles

vido claramente: ''A casa foi posta no nome de vocês porque eu o patriarca havia feito o que podia. Ele não reunira os membros
quis, mas, por enquanto, ela ainda é minha e vocês são meus da família apenas para o seu próprio prazer, mas para o que ele
convidados". Infelizmente, o patriarca permaneceu calado e os ir- achava que também seria o prazer de todos. Ao dizer a si mesmo
mãos, que não tinham recursos para pagar à irmã, disseram: "Está que os filhos ficariam felizes por estarem juntos, ele tinha razão.
pedindo uma coisa impossível! Não podemos vender esta casa, E para lhes mostrar que o lugar era deles, ele o deu de presente.
pois partiríamos o coração dos nossos pais. E você sabe muito Porém, não lhes deu realmente.
bem que não temos a quantia necessária para pagar a sua parte!". Situação insolúvel? Talvez não, se regras claras houvessem
Então, a interessada perdeu a calma, chamou os irmãos e as irmãs sido formuladas. Pois o que criou o conflito, no caso, não foram
dos piores nomes e, criticando-os por lhe imporem uma co-pro- os pontos de vista opostos e sim o clima de confusão em que
II priedade que ela não queria mais, disse: "Por causa de vocês corro essa oposição aparece.
I II
o risco de ser forçada a me divorciar! Meu marido vai me deixar, é O pai poderia ter reunido os filhos e dito: "Queridos filhos,
II
isso o que vai acontecer e vocês serão os responsáveis!". eu gostaria, para o nosso bem comum, que as coisas ficassem bem
II
Durante todo o tempo, o patriarca permaneceu calado. claras entre nós. Enquanto Denise e eu estivermos vivos, este
I
Podia-se sentir uma muda reprovação ao comportamento da lugar me pertence. Pus no nome de vocês para que soubessem
II filha, mas ele não disse uma palavra. Quanto aos filhos, en- que, de qualquer maneira, ele lhes pertencerá no futuro. Mas,
I veredaram pelo conflito que nascia sem perceber que, antes de enquanto eu viver, é importante que possamos usufruir dessa
tudo, eram vítimas de um sistema que não haviam criado. A casa juntos e que nos vejamos com regularidade. Quando eu não
situação começou a piorar. Eles tentaram contemporizar. Talvez estiver mais aqui, bom, poderão fazer o que quiserem com ela".
pudessem emprestar ao casal uma quantia que lhes permitisse Essas palavras criariam uma fronteira que, por assim dizer, teria
alugar uma casa no verão seguinte e passar as férias num outro impedido os filhos de entrarem numa zona de conflito como
lugar. Mas as propostas, que pretendiam ser conciliadoras, só aconteceu. Em compensação - e isso é muito freqüente -,
aumentaram a confusão e agravaram os rancores. numa sit~ação em que as ambigüidades se acumulam, uma cha-
mando a outra e a segunda reforçando a primeira, às vezes um
A história dessa família nos ensina que uma doação - que é desejo louvável de poupar o outro de uma ferida muito profunda
o que parecia ser - pode se transformar num presente envenena- gera uma confusão cada vez maior, que pode ampliar-se a tal
do. Inicialmente não havia nada de alarmante: todos os protago- ponto que se torna impossível corrigi-Ia. Essa configuração não
nistas se comportaram com generosidade. Mas, rapidamente, os é própria da família. Pensamos num diretor de escola que pode
não-ditos, causados pela ausência de regras claras entre os irmãos formular regras claras ao administrar suas relações com os alunos
- e entre a família - provocaram sérios conflitos. É verdade que e professores ou, ao contrário, se refugiar na imprecisão. Quando

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46
Como sobreviver à própria fàmília
o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles

uma lei é claramente estabeleci da, é possível se situar em relação


perceber que o que achavam que fosse bom para eles pudesse ser
a ela e, eventualmente, combatê-Ia se a acharmos injusta. Em
considerado de maneira totalmente diferente pelos interessados.
resumo, podemos circunscrever o espaço pessoal da sua inter-
Então, qualquer comentário da situação passa a ser difícil para
venção; mas se a lei não é formulada - ou pior, se é declarada e
os filhos, pois poderiam passar por ingratos. Freqüentemente
negada ao mesmo tempo -, a confusão parece inevitável na de-
encontramos pais que não se dão o direito de pensar neles mes-
limitação do espaço de cada um. Para falar concretamente: "Meu
mos - isto é, se questionar sobre eles mesmos -, pois, como
11111 espaço só começa a existir quando sei onde está o seu". "Se o seu
dizem, o amor que sentem pelos filhos "vem antes de tudo".
espaço não for traçado, não saberei onde fica o meu". Ou ainda:
Esse estado, que aliás é quase sempre acompanhado de uma
"Teoricamente, se não tenho limites, eu sou mais rico. Mas, na
culpa difusa, faz do filho uma pessoa que lhes permite mascarar
realidade, sou mais pobre, pois, se não existem fronteiras, não sei
/111111 a própria dificuldade em enfrentar seus desejos pessoais, obri-
onde você acaba e onde eu começo".
II gando esse filho a ser responsável por coisas que não são dele.
Precisamos, agora, nos fazer a pergunta essencial. Por que
Portanto, é importante que os pais digam a si mesmos:
1
o patriarca não enunciou a lei claramente? Por que ele não pôde
IIII1 "Temos o direito de existir e de dizer o que queremos, pois esse
criar essa fronteira definida entre o vocês e o eu? E o que acon-
direito que nos concedemos também libera nossos filhos de pre-
tece, em geral, com as pessoas que contribuem para criar esse
cisarem carregar o peso de nossas dificuldades". Caso contrário,
I tipo de situação?
a confusão entre o desejo dos pais e o que eles desejam para os
O pai que diz sacrificar-se para o bem de seus filhos é uma
filhos pode criar uma situação que não se pode deslindar.
figura, muitas vezes marcada por certa nobreza, que encontro
constantemente. A explicação para esse comportamento reside,
Essa história, que começa como um conto, não termina
ao menos em parte, na história dessas pessoas. Talvez tenham
com um happy end. Mesmo assim, vamos tentar transformá-Ia
sido criadas num contexto pouco claro que as mergulhou em si- num apólogo, tirar dela um ensinamento.
tuações ambíguas, que elas repetem sem ter consciência de que
O que é, na verdade, essa famosa casa de campo, razão de
o fazem. Mas outros parâmetros podem concorrer para criar
ser e base dos conflitos familiares, senão o lugar onde tudo se quis
montagens análogas e, a esse respeito, devemos destacar que foi
dar sem nada pedir e sem nunca estabelecer limites? Em vez de
toda a família que, num entendimento implícito, optou por
oferecer à família reunida o espaço que ela idealizava, essa casa
não esclarecer a situação, para evitar o choque com um deles, ou
passou a ser o lugar onde cada um, possuindo tudo, não tinha
na ilusória esperança de que um conflito não enfrentado pudes-
nada. Pois se fronteiras claras não são estabelecidas, se não somos
se ser absorvido por si só. Também podemos supor que os pais
capazes de expressar nossos desejos e dizer ao outro "Você começa
quisessem sinceramente o bem dos filhos, mas não conseguiram
onde eu termino", ninguém possui lugar nenhum.

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iillllit
Como sobreviver à própria família Em que roteiro eu me encaixo?

Quando os pais não ousam reivindicar seu espaço, passa


a ser difícil para os filhos traçar o deles! Invadir um filho com
o sacrifício que queremos fazer por ele pode criar uma situação
sufocante e incerta. E quando amamos os filhos e filhas a ponto
de nos esquecermos de nós mesmos, corremos o risco de, mesmo Capítulo 4
quando estamos cheios de amor e de generosidade, rimar "muito
amor "C(
com mau amor . "
Em que roteiro
eu me encaixo?

c riar um filho é uma das tarefas mais difíceis que exis-


tem. Se somos muito exigentes, nossa rigidez pode ser
condenada; se somos muito tolerantes,
ência é que é criticada; se amamos demais, corremos o risco de
parecer invasivos, sufocantes; se tentamos
nossa indul-

dar a eles um espaço,


nos acham indiferentes, muito distantes. Portanto, os pais não
têm outra escolha a não ser adaptar o seu comportamento a
cada filho, por ensaio e erro. Mas, ao mesmo tempo, devem as-
umir e reivindicar o lugar de pais, sobretudo no papel que lhes
cabe na hora da decisão.
"Como devo amar o meu filho?" - essa é a pergunta
lancinante que se apresenta a qualquer pai. Pois o amor que
recebeu (e recebe) dos pais é, para um filho, o viático que lhe
permitirá, nos momentos de sofrimento e de dúvida, continuar
a acreditar no próprio valor, a atravessar as situações difíceis
e a se salvar em caso de naufrágio. É, sobretudo, a segurança
específica que ele sente devido ao amor que lhe damos que lhe
permitirá enfrentar essas circunstâncias.

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I ."-'.
.0

Como sobreviver à própria fàmília Em que roteiro eu me encaixo?

Mas, infelizmente, amar não basta; é preciso amar respei- como eles são - menos ainda aos olhos deles. Podemos formu-
tando a diferença do outro. Acontece que esse limite é muito lar assim a mensagem implícita que o pai envia ao filho: "Eu o
difícil de ser estabelecido. Quando começo a impedir que meu amo como acho que você é, sem perceber que, talvez, você seja
filho desabroche impondo que ele seja como eu quero, sem res- diferente; mas como eu o amo e quero o seu bem, aceite o meu
peitar a sua alteridade? É ainda mais difícil dizer que também amor como sendo algo positivo".
devo defender, caso necessário, meu direito e dever de ser aquele Às vezes, para manter esse amor, o filho tenta ser confor-
que contribui para estabelecer a lei, sem me furtar a essa respon- me a imagem que ele acha que temos dele. Mas, ao incitá-Io a
sabilidade e aceitando assumir as conseqüências - que podem se engajar nesse processo, fazemos com que ele corra um grande
ser dolorosas - desse componente fundamental do papel de pai. perigo, pois quanto mais o amamos, mais risco ele corre de não
Estipular para o meu filho os limites que ele não deve ultrapassar se sentir amado, pois não é ele que é amado e sim a represen-
é, realmente, uma das principais responsabilidades que me ca- tação que ele forjou para nos agradar. Uma paciente me disse
bem, mesmo que esteja longe de ser a única. um dia, com vigor: "Meu pai me amou intensamente, mas ele
Os pais podem ter dificuldade em assumir plenamente suas nunca me conheceu como sou". Não poderíamos formular o
funções, pois estão incluídos, da mesma maneira que os outros problema de maneira mais clara. Entretanto, convencidos da
membros da família, em ciclos repetitivos que existem nas rela- sinceridade do seu amor pelos filhos, os pais só poderiam viven-
ções familiares. Esses roteiros escritos tanto pela família quanto ciar como ingratidão suprema a recusa do filho em aceitar o que
pela cultura nos aprisionam à nossa revelia - felizmente, como eles oferecem tão sinceramente.
veremos ao longo deste livro, eles podem ser modificados quando As coisas podem ser ainda mais complicadas. O filho
os protagonistas abandonam a trama. pode ser confrontado com uma mensagem contraditória de um
Além disso, já dissemos, a realidade não é um dado objeti- dos pais ou mesmo dos dois. Helm Stierlin, psiquiatra e psica-
vo; ela é criada no processo pelo qual a percebemos. O que per- nalista, professor da universidade de Heidelberg, nos ajuda a
cebemos e o que sentimos surge na interseção do que se oferece enxergar com mais clareza esse ponto, graças ao seu conceito
a nós e do que nos constitui. Os limites do nosso conhecimento de delegação. Delegare, em latim, significa "enviar" e, ao mesmo
do real estão ligados a elementos de natureza diversa: a consti- tempo, "confiar uma missão". O filho "delegado" é enviado por
tuição biológica de nossos órgãos da percepção obviamente é sua família e ligado a ela por lealdade - até aqui, nada de anor-
fundamental, mas os nossos a priori também o são. O mesmo mal. Porém, segundo Stierlin (que retoma noções freudianas
acontece com o modo como os membros de uma família se per- bem conhecidas), existem diferentes tipos de missão: aquelas
cebem mutuamente. Amamos nossos filhos como imaginamos que são dadas pelo id da pessoa que delega e as que são dadas
que eles sejam, mas o que pensamos deles não é necessariamente pelo superego. Pode muito bem ocorrer que a missão dada pelo

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Como sobreviver à própria fàmília Em que roteiro eu me encaixo?

id ("Pense, antes de tudo, no seu prazer") vá de encontro à que pela relação (o que eles fazem juntos?). Desde então, o paciente
vem do superego ("Trabalhe e tenha sucesso onde eu fracas- deixou de ser um indivíduo: ele é uma relação.
sei"). É, então, a mesma pessoa que formula duas exigências mais A partir dos anos 60, o terapeuta familiar se dedicou a ana-
ou menos incompatíveis e podemos adivinhar em que situação lisar as relações dolorosas que via desfilar nas sessões, diante dele.
inextricável o filho vai debater-se. Em outros casos, a contradi- Por volta do início dos anos 80, graças sobretudo ao trabalho de
ção ocorre entre as missões confiadas pelos pais individualmen- Paul Watzlawick, esse terapeuta tomou consciência da sua posi-
te, mas as coisas não ficam mais fáceis por isso. ção na terapia - ele percebeu que não era um observador exter-
Esses processos, como vemos, não derivam de uma con- no, sem influência no que se passava, mas que também pertencia
cepção linear simplista, segundo a qual os filhos "se ressentem" ao sistema humano que analisava e que o englobava. Foi então
devido às ações dos pais: para cornpreendê-Ios, o terapeuta deve que a pergunta mudou outra vez. Não era mais "O que eles fazem
levar em consideração as regras estabelecidas numa família através juntos?" e sim "O que nós fazemos juntos?". E, ato contínuo, a
das diferentes gerações e a articulação dos elementos singulares pr.ópria concepção da mudança terapêutica evoluiu. A maneira
que ele descobre nos filhos e nos pais. orno o terapeuta usa a si próprio na sessão pode contribuir para
mudar as regras desse sistema ao qual ele pertence, da mesma
Uma das críticas constantemente feitas à terapia de família forma que os membros da família.
é que ela contribui para culpar os pais. Ao insistir nas mensa- Nos capítulos seguintes, veremos como os membros de
gens contraditórias que o filho muitas vezes recebe dos pais, a uma família podem conscientizar-se dessas regras ao descobrirem
terapia familiar pode, ao dar os primeiros passos, ter dado essa roteiro pessoal que seguem sem saber. Então, uma deliberada
impressão. Mas, a partir do fim dos anos 50, surgiu outra manei- mudança por parte deles poderá esboçar na família outros ciclos
ra de enxergar as coisas (graças à teoria dos sistemas). Segundo de relacionamento que se abrirão para outros devires.
essa nova abordagem, a família passou a ser um sistema humano
e as interações que ocorrem entre seus membros são sempre re-
cíprocas - o que A faz a B provoca o que B faz a A e assim por
diante. Portanto, foi preciso abandonar a concepção linear da ca-
sualidade e substituí-Ia por uma concepção circular. Saber "quem
começou" não tinha mais sentido, assim como não tinha sentido
se perguntar quem armou a cilada para o outro. Passamos de um
universo no qual buscávamos um culpado (quem fez isso? o que
um fez para o outro?) para um mundo no qual nos interessamos

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Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar

Capítulo 5

Meu filho se recusa a


estudar e a trabalhar

O
casal que entra no meu consultório me impressiona
. pelas maneiras afáveis. Ambos estão na faixa dos qua-
renta anos e exercem profissões liberais. Vivem juntos
há mais de dez anos. O homem toma a palavra e, com voz firme,
explica a razão da consulta: Damien - filho da sua mulher, a
quem é muito ligado - se recusa a continuar os estudos ou a
procurar um emprego. A mulher intervém, visivelmente aborre-
ida, pois acha que Damien se comporta como um preguiçoso:
"Ele é passivo em relação à vida, espera que as coisas se realizem
ozinhas! Eu, que, ao contrário, sou impaciente, ao menos no que
e refere a de, continuo a ajuda-lo, a estimulã-Io. Queria muito
que ele fizesse as provas finais do ensino médio!".
Nesse ponto, o método materno deu frutos, mas, em
seguida, as coisas pioraram, pois o rapaz decidiu adiar a en-
trada na faculdade. Ele negociou com os pais a possibilidade
de trabalhar enquanto se decidia, pois, segundo suas próprias
palavras, "não gostava de estudar". Alguns meses depois, ele
já havia recusado todo tipo de trabalho e não dava mostras
de procurar outro! Esse comportamento provocava constante

57
Como sobreviver à própria família Meu {ilho se recusa a estudar e a trabalhar

conflito entre ele e os pais. E eis que eles estavam na minha concordou: "É, tenho medo de que meu filho se pareça com
frente, solicitando ajuda para sair desse impasse. Damien não eles ... ". O padrasto, em silêncio até aquele momento, confessou
quisera acompanhá-los. sua impotência diante do menino, sobre o qual reconhecia não
Diante de uma situação como essa, é difícil não ter uma rea- ter nenhuma influência; ele chegara a cometer pequenos furtos.
ção banal ou superficial: "Esses pais", somos tentados a pensar, Todas as vezes que tentava interferir, a esposa fazia de tudo para
"estão diante de um filho difícil, que só quer fazer o que tem vonta- mantê-lo afastado no momento das decisões. Essa atitude lhe
de e a quem, como diz a mãe, 'é preciso empurrar'!". Mas, eviden- dava um sentimento de exclusão e desvalorização: "Gastei tan-
temente, o terapeuta não pode parar por aí. Precisa tentar compre- ta energia", suspirou, "cuidando desse menino ... ". Esforcei-me
ender as razões do comportamento do adolescente e a verdadeira para pôr as palavras dele numa perspectiva transgeracional e
natureza do que, exteriormente, é percebido como preguiça. consegui saber que, na juventude, havia sentido a mesma coisa,
Eu quis, então, ver sob outra perspectiva a situação da fa- pois tinha a impressão recorrente de que, para a mãe, ele era
mília que estava à minha frente. Talvez precisasse saber mais sobre menos importante do que os irmãos.
as gerações anteriores para compreender melhor o que se passava Portanto, ficou nítido que, com o comportamento de Da-
com a atual. Interroguei a mãe sobre sua família e sobre os homens mien, que eles qualificavam de irresponsável e preguiçoso, os pais
que faziam parte dela. Ela começou a falar sobre o pai: "Era um reviviam uma mesma situação, o que ampliava as dificuldades
homem, como posso dizer, sem energia. Ele se queixava o tempo das quais se queixavam. Ao ser confrontada com Damien, não
todo da conduta da mulher diante dos próprios filhos. Era frágil, era tanto o filho que essa mãe via e sim um homem com quem já
como o meu filho!". Quanto mais ela falava sobre o pai, mais eu convivera e cuja incapacidade de tomar decisões e agir ela pude-
percebia que usava os mesmos qualificativos para descrever o filho ra, dolorosamente, avaliar. E, quando impedia a interferência do
e, além do mais, pintava mais ou menos o mesmo retrato de outto marido, não desconfiava que este último passava novamente pela
homem que havia desempenhado um papel importante na família experiência de desvalorização vivenciada com a própria mãe.
e, também, "se sujeitava à vida", sem ter nenhuma influência sobre Quando, na terapia familiar, tentamos trazer à luz certos fa-
ela. Em seguida, ela voltou a Damien: sempre sentira que ele era tos do passado relacionados à situação presente, esse tipo de análi-
"frágil" e acabou por se indagar se, pelo fato de estar constantemen- se vem constantemente à tona. No entanto, não associamos uma
te "por trás" dele, querendo ajuda-lo, não havia cometido um erro; relação desse gênero à simples ligação de causa e efeito. Quanto
o rapaz não lhe agradecia por todos os seus esforços! aos sintomas, tínhamos de lidar com uma dupla remissão: o com-
Eu lhe disse que fiquei surpreso com a similitude dos ter- portamento de Damien tinha uma função para a família e para
mos que ela usava para qualificar o comportamento do filho e os pais no aqui e agora (função que, naquele momento da terapia,
dos homens que considerava importantes na sua família. Ela eu ainda não havia compreendido), e tinha também uma "uti-

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I~
.0

Como sobreviver à própria fàmília Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar

lidade", ou um sentido, que só se podia entender se levássemos para os pais, na condição de casal. Todos opinaram. O que este
em conta o passado - ele reforçava crenças profundas na mãe e homem e esta mulher reviviam através do menino? Quais os sen-
no padrasto, construções do mundo estabelecidas (eu me sinto timentos envolvidos na situação criada?
tentado a dizer "enquistadas") desde a infância. Então, enquanto eu tentava apenas fazer surgir uma con-
No fim dessa sessão decisiva, pedi ao casal que viesse com figuração que permitisse a Damien perceber melhor os lances
o filho na sessão seguinte. Eu insisti: "Para lhes dar uma resposta, em que estava envolvido, uma reviravolta inesperada ocorreu:
é muito importante que eu veja toda a família". Quinze dias de- o rapaz anunciou que aceitava procurar um trabalho! Na sessão
pois, Damien estava na minha frente. Sem pestanejar, ele ouviu seguinte, quinze dias depois, foi a vez de a mãe fazer uma auto-
a mãe repetir o quanto estava irritada por ele não ter cumprido a crítica. Não teria superprotegido o filho? Ao ficar todo o tempo
promessa que fizera - trabalhar antes de retomar os estudos. "por trás dele", no fim das contas não lhe prestara um desservi-
Surpreendente, o filho "preguiçoso" me explicou o tipo de ço? Damien também se abriu e, durante a sessão, conseguiu se
estudo que queria seguir e me deu a impressão, apesar de usar expressar de maneira mais clara, menos vaga. Sim, repetiu, ha-
expressões não muito exatas, de que tinha uma idéia do que via procurado trabalho e podia até fazer uma lista dos empregos
poderia fazer mais tarde. A mãe voltou ao assunto do prazo que aos quais se havia candidatado.
lhe havia dado para encontrar um trabalho, "um prazo", disse A mensagem foi confirmada quinze dias depois: "Sabe,
ela, "não respeitado". estou resolvido a trabalhar, mas farei isso por eles, não por
Nessa sessão, também fiquei sabendo que o pai de Damien mim. Aliás, passei por uma experiência de três dias, mas o
interferia muito pouco e que o rapaz tinha mais intimidade com trabalho não me agradou. Vou procurar outro emprego, mas
o padrasto do que com o genitor ausente. E, em conseqüência da devo dizer que, se encontrar um trabalho, será para que eles
conversa focalizada no "problema oficial" - o futuro e a atividade se tranqüilizem!". Ainda me lembro da maneira como ele pro-
de Damien -, o rapaz se referiu ao ambiente pesado que reinava nunciou esse "eles": não havia no tom de voz nenhuma osten-
na casa: "Não nos entendemos bem' - repetiu. É claro que esse tação, nenhuma agressividade, simplesmente a nítida indica-
"nós" não designava apenas a relação dele com os pais, mas tam- ção de uma proposta. Estava claro que o rapaz havia percebido
bém o relacionamento entre eles. Estes últimos não negaram suas que a irritação da mãe e a angústia do padrasto, mesmo sendo
divergências, mas culpavam Damien, alegando que era por causa expressas a respeito da sua incapacidade de procurar um tra-
dele que discutiam com freqüência. balho, revelavam, na verdade, os medos que faziam parte da
Então, fiz um resumo do que, segundo meu ponto de vis- história deles mais do que da sua. Conversei a respeito com
ta, seria a contribuição essencial da sessão anterior e perguntei a ele e Damien declarou que estava pronto a "passar os pais na
Damien sobre a "utilidade" que o seu comportamento poderia ter frente". Surpreendente evolução!

60 61
F

Como sobreviver à própria família Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar

Havíamos partido de uma situação centrada num filho des- e de legados invisíveis", para retomar a fórmula do terapeuta Ivan
crito como preguiçoso, desocupado, inapto para qualquer ativi- Boszormenyi-Nagy, ou seja, pesam sobre ele imposições e coman-
dade, e eis que estávamos numa configuração bem diferente, em dos da geração anterior. Acontece que é importante que os filhos
que o rapaz (que continuava a ser o pivô da história) podia dizer possam retirar dos pais apenas o que consideram "positivo" e não
aos pais de maneira bem clara: "Seus receios estão mais ligados a se sintam enclausurados no que percebem como negativo. Na cor-
vocês mesmos do que a mim, suas expectativas estão mais rela- rida de revezamento entre as gerações, tem de ser possível escolher
cionadas aos seus medos e às suas esperanças do que às minhas; o testemunho que queremos transmitir à geração posterior.
quero arrumar um trabalho, não porque eu sinta necessidade, Na sessão seguinte, quinze dias depois, a mãe descreveu as no-
mas porque vocês desejam e eu quero agradar-lhes". vas relações que se haviam instalado entre os membros da família e
Na sessão seguinte, tomei conhecimento de que Damien que, segundo ela, eram excelentes. O diálogo parecia ter sido restau-
havia encontrado um emprego e que se dedicava com muita serie- rado e as fontes de conflito, afastadas. "Minhas relações com meus
dade à nova função, mesmo cansativa e que o obrigava a acordar pais são normais" - declarou Damien, que tinha o sentimento de,
muito cedo. Os pais pareciam descontraídos, como se estivessem finalmente, ter encontrado o seu lugar. Decidimos, de comum acor-
mais calmos com a boa notícia (e descansados depois de uma se- do, interromper o processo terapêutico ao final dessas seis sessões.
mana de férias!). O padrasto expressou claramente a mudança Três semanas depois, recebi um telefonema inesperado da
ocorrida na atmosfera familiar: "Eu me sinto melhor". O filho mãe. Ela me contou que havia saído de casa há quinze dias e gos-
tomou a palavra e, como se quisesse pôr os pingos nos "is" , de- taria que eu a recebesse com o marido. "Esse também é o desejo
clarou, sem agressividade, mas com firmeza: "Eu não sou quem dele" - acrescentou.
vocês temiam que eu fosse; eu sou eu" - reivindicando, assim, Na sessão, ela me explicou que a decisão não tinha nada
o direito de viver por si mesmo e não apenas através do olhar do de repentina - ela já havia ameaçado deixar o marido se ele não
casal. Aliás, ele me contou que, numa noite com amigos, havia se mudasse o comportamento em relação a uma outra mulher, ami-
referido, espontânea e delicadamente, ao clima de autenticidade ga do casal. "Não tenho", acrescentou, "de bancar a mãe do meu
que, segundo ele, reinava nas sessões de terapia e que chegara a marido e dizer: Meu filho, quer fazer o favor de pôr limites nessa
falar do prazer que sentia em comparecer às sessões com os pais. relação?". O marido, que não negou os fatos, reconheceu que
O desenrolar da conversa nos levou a falar sobre o grande realmente tinha "um problema com a sedução"; e fez uma ligação
ausente, o pai "biológico" do rapaz. Os limites da conduta dele com o sentimento de abandono vivenciado com a própria mãe.
no caso não eram muito evidentes e provocavam um problema de Voltamos a falar das relações da esposa com os homens em
"lealdade" em Damien, com relação a ele. Pode ocorrer, realmen- geral e, em particular, com um pai que sempre lhe dera a impres-
te, que um paciente carregue, sem perceber, "grilhões de lealdade ão de ser pouco confiável. O passado ressurgiu mais uma vez,

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Como sobreviver à própria fàmília Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar

enquanto esse homem e essa mulher se esforçavam para configurar sem culpa era, para ele, sinal de uma diferenciação bem-sucedida.
o que ocorria entre eles. O fim das dificuldades do filho havia dei- Foram necessárias dez sessões - sendo que as quatro últimas
xado o campo livre para que viesse a lume o que não queriam ver. apenas com o casal- para essa psicoterapia que, como vimos,
Como desejavam continuar a terapia, eu os recebi duas semanas tinha ido além do seu quadro inicial e revelado, por detrás dos
depois. A esposa voltara ao lar conjugal, mas ... "Eu vivo", disse ela, problemas oficialmente citados, mecanismos mais profundos.
"uma nova relação com um homem que conheço há mais de dez O que ela pode nos ensinar?
anos!" Ela insistiu no fato de que o desejo, desaparecido da relação Inicialmente, que o comportamento de um filho "com pro-
com o marido, havia voltado e que "era muito agradável!". blemas" está geralmente ligado a um conjunto de elementos, cujo
Este último reconheceu que, há anos, as demandas da mu- sentido só se pode compreender se os situarmos no nível familiar
lher, e a forma de que se revestiam, lhe eram pesadas e que ele se e não simplesmente num plano individual. No caso relatado, pa-
sentia culpado por não poder satisfazê-Ias. Ao constatar, com tris- rece que o filho desenvolveu uma atitude cuja função era proteger
teza, que a mulher sofria com a situação, sua única saída havia sido a família contra o que poderia ser uma fonte de dificuldade ainda
se fechar mais ainda em si mesmo. Assim se instalou um círculo maior - a saber, o conflito entre os pais.
infernal, que impedia qualquer comunicação autêntica, pois o Em seguida, que as situações cotidianas criadas pelo com-
marido, contrito, não podia expressar seus receios, nem rejeições. portamento do filho provocavam reações nos pais, cujas causas
Foram necessárias duas sessões particularmente intensas para que não podiam ser reduzidas a esse comportamento, e que muitas
viessem à tona esses sentimentos negados há tanto tempo. vezes é preciso retirar do outro a máscara do passado com a qual
O que ocorreu nesse momento da terapia? (Realmente, des- o fantasiamos para resolver o problema que vivemos com ele.
dobramentos posteriores podem surgir.) Esse homem e essa mu- Finalmente (e em geral é esse o problema nas terapias de
lher conseguiram dialogar melhor, sem temer a reação do parceiro. família), que um maior bem-estar do paciente "designado" não
EIa reconheceu, com a sinceridade que a caracterizava, que expres- encerra o processo aberto com a terapia porque, quando um dos
sava seus sentimentos com certa rudeza: "Percebi que podia pare- membros está melhor, é comum acontecer que um outro piore-
cer negativa. Mas, na verdade, queria exatamente o contrário!". ou que todo mundo se sinta melhor! É esse tipo de constatação
Agora, cada um deles sabia dizer "não" ao outro sem se sentir que levou os terapeutas a considerar a família como um sistema
culpado, e "sim" sem sofrer por isso. Tinham a impressão de que de indivíduos em inter-relação - uma mudança num nível, ou
escolhiam suas decisões, que elas lhes pertenciam e que podiam num ponto específico desse sistema, pode provocar outras mu-
assumi-Ias. Murray Bowen - um dos fundadores da terapia fa- danças em outros pontos ou em outros níveis.
miliar - insistia muito sobre a importância dessa "diferenciação" Na primeira parte dessa psicoterapia, tentei fazer com que
(para retomar o termo dele). Poder dizer "sim" sem rancor e "não" Damien percebesse que o seu comportamento incitava a mãe e o

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Como sobreviver à própria família Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar

padrasto a colocã-lo num lugar que não era o dele. Quando ficou Numa situação dessas, pode ser proveitoso que os pais se
claro aos seus olhos que ali havia um erro de pessoa, foi ele mes- raçam certas perguntas. Um filho passa a ser um problema pelo
mo quem escolheu dizer aos pais: "Eu quero protegê-los ocupando $ u comportamento: ele desestabiliza permanentemente as rela-
provisoriamente o lugar que me propõem, mas que não é o meu". ões de todos - é uma hipótese muito freqüente. Os pais devem
Eis um ato notável de criatividade! A partir do instante em que se perguntar se suas reações e expectativas concernem exclusiva-
Damien pôde formular as palavras da sua aceitação (alguma coisa mente a ele ou se o filho não foi, por eles, colocado no lugar de
do tipo: "Está bem, eu vou, mas vou por vocês, com conhecimen- um outro; porque, se for esse o caso, é fácil compreender que a
ro de causa'), ele começou a gostar do emprego e a falar do prazer reação desse filho, qualquer que ela seja, será sempre inadequada .
que sentia em trabalhar. Desde então, seu relacionamento com a ..orno é possível satisfazer, de maneira apropriada, uma demanda
família mudou completamente. que não é dirigi da a você?
O que descrevemos (aos outros ou a nós mesmos) como afetos Também podemos questionar a utilidade do sintoma
individuais (gosto, prazer, etc.) também é de natureza relacional. do filho para fazer com que o problema da família passe para
Essa família tomou uma atitude decisiva (consultar um egundo plano, um problema que o próprio filho acha quase
terapeuta) antes de as relações entre os membros se petrifica- impossível resolver. É quando lembramos ao filho que cabe a
rem. A atmosfera da casa era insustentável, mas a situação não nós solucionarmos nossos problemas e que ele tem o direito de
estava bloqueada, pois a intervenção dessa terceira pessoa per- viver a sua vida sem nos proteger a qualquer custo, que pode-
mitiu a cada um deles ocupar um lugar diferente, num proces- mos oferecer-lhe o lugar de que ele precisa. Para comprovar essa
so renovado. O rapaz pôde retomar as rédeas da própria vida, hipótese, podemos estudar as coincidências entre os momentos
ajudado pela mudança capital que ocorreu na maneira como os de intensificação do distúrbio na criança e as passagens particu-
pais o consideravam. larmente difíceis da vida familiar.
Então, o sistema familiar teve de "se reciclar", se assim pos- A regra de ouro, no caso, é não se culpar rápido demais,
so dizer: desaparecida essa dificuldade, outra surgiu, até aquele pois o que acontece com o filho está ligado a múltiplos parâ-
momento mascarada pela primeira - o conflito latente do casal metros, a uma combinação de diversos elementos, na qual os
parental, que foi trabalhado na segunda série de sessões. O curso pais desempenham um papel limitado. Se os terapeutas fami-
de uma terapia se parece com o de um canal: numa barca, a fa- liares pedem para ver os pais com o filho, não é porque achem
mília pede ajuda para abrir uma eclusa; nós a abrimos; mas, de que necessariamente exista um vínculo de causa e efeito entre
repente, outra aparece; e o terapeuta intervém de novo, até que o comportamento deles e o sintoma, mas porque os terapeutas
a família esteja em condições de abrir ela mesma todas as eclusas precisam da ajuda dos pais para agir sobre o que, por natureza,
que balizam o curso do seu desabrochar. é todo o conjunto. Se um rochedo bloqueia o seu caminho e

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66
Como sobreviver à própria família Libertar o outro para que eu possa mudar

você quer tirá-lo dali usando uma alavanca, basta aplicar a fer-
ramenta no lugar exato desse rochedo para que toda a pedra se
desloque: essa imagem me vem constantemente à cabeça quan-
do descrevo o funcionamento de uma terapia familiar.
E os filhos? - nos perguntamos. Eles têm o direito de dizer Capítulo 6
a si mesmos que os pais não entendem nada das suas dificuldades?
Acho que é útil que eles façam a si mesmos algumas perguntas. Libertar o outro para
Por exemplo: o problema que eu tenho e que parece ser meu não
é uma "imposição" que me fazem? Nesse caso, como lutar contra que eu possa mudar
esse distúrbio que me tiraniza e me impõe a sua ditadura? Será
ue contribuímos, mesmo que seja um pouco, para

Q
que é a mim que os meus pais rejeitam ou apenas o meu compor-
tamento? Será que não mostro a eles um comportamento a ser criar o contexto d~ que, por out~·ola~~,.nos que~xa~
rejeitado porque tenho medo de ser eu mesmo o rejeitado? Na mos, parece-me nao ser uma coisa difícil de aceitar.
verdade, não sou refém de um comportamento que os faz sofrer? Mas, provavelmente, o que mais interessa ao leitor é
Pode ser que o filho problemático se preocupe com o que saber como sair dessa situação. Gostaria, então, de lhe dar algu-
vivenciam os outros membros da família. Se for esse o caso, não mas pistas por intermédio do exemplo que se segue.
é impossível que a sua conduta, mesmo contendo elementos de Uma mãe se queixa do filho de 8 anos. Ele zomba dela
rejeição em relação a esses membros, sirva para protegê-los e até sempre que pede à criança alguma coisa, seja para se sentar à
mesmo proteger as próprias pessoas. Essas surpreendentes confi- mesa, ir para a cama ou fazer um favor. A mãe se surpreende
gurações não são raras. ao se descobrir cada vez mais afastada desse filho, que há muito
Por que não falar com meus pais e com os outros membros tempo não abraça. Quando eu pergunto o que, no relaciona-
da família sobre os temores que tenho relacionados a eles? Essas mento com ele, a deixa mais brava, mais irritada, ela responde
conversas podem ajudar-me a diferenciar os problemas dos ou- sem hesitar: ''A falta de respeito". E acrescenta que o seu pai a
tros das minhas próprias dificuldades. Nunca é fácil reconhecer tratava da mesma maneira, com a mesma falta de respeito. Além
os limites dos pais, mas é só assim que se pode tomar posse do do mais, ela se questiona se não se comporta com o filho do
próprio espaço e enfrentar de outra maneira o seu problema - mesmo modo que o pai agia com ela, reproduzindo assim uma
ou o que os outros apresentam como tal. configuração familiar que se transmitiu através dela de uma ge-
ração para a outra. Ela está na mesma posição de quando era
criança, pois seu filho se comporta da mesma maneira que o seu

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Como sobreviver à própria famíLia Libertar o outro para que eu possa mudar

próprio pai. O que parece é que o filho "protege" a mãe, ao per- ceto em casos de violência ou de abuso, que não abordo aqui-
mitir que ela continue a viver na idade adulta o que vivenciou se tiver uma utilidade para os diferentes protagonistas. Em geral,
na infância com o próprio pai. essa utilidade consiste em permitir que cada um dos parceiros não
A ?alavra "proteção" pode causar surpresa. Eu a uso de pro- saia da sua posição entrincheirada, evitando assim se expor a um
pósito. E como se o filho ajudasse a mãe a permanecer atrás da ataque devastador em campo aberto.
sua trincheira, continuando a duvidar que possa ser respeitada. Isso porque nossos sentimentos e nossa percepção não se
Uma posição dolorosa, é verdade, mas que tem a vantagem de não restringem a nós; o que sentimos, a nossa "vivêncià', também
obrigá-Ia a se expor à desilusão, que talvez ocorresse se ela ousas- tem uma função para o outro; esse é um dos aspectos do que eu
se pensar de maneira diferente. Além disso, o filho, que lida com chamo de ressonância. Esse conceito é desenvolvido no meu livro
uma mãe cada vez mais desconfiada e crítica, constrói uma visão Si tu m'airnes, ne m'aime pas':
de mundo fatalmente negativa - a mãe só pode se irritar com ele, O que a mãe pode fazer, numa situação como essa, para
só pode persegui-I o com demandas sem fim. Ele não percebe que, sair desse ciclo infernal do qual é prisioneira? Inicialmente, ela
com o seu comportamento, mantém o comportamento da mãe, tem de aceitar que, quaisquer que sejam os vínculos do seu com-
contribuindo assim para reforçar a profunda convicção materna. portamento no presente com a sua história, esse passado ~ q~e
Parece-lhe apropriado suspirar e levantar os olhos quando sem dúvida a sensibiliza - não dita a sua conduta. Sua vrvencia
a mãe lhe pede qualquer coisa. A mulher, sentindo-se impotente passada e sua reação são desencadeadas' pela maneira como o
diante do filho, se torna ainda mais dura e tenta, afetivamenre, filho age e a função dessa vivência e dessa reação é reforçar a
se afastar para se proteger. O comportamento "lógico" de ambos crença do filho. Essa mãe tem de se interrogar sobre a utilidade,
tem uma função essencial que passa despercebida aos olhos dos para o filho, do seu próprio comportamento - e simplesmente
dois parceiros - esse comportamento mantém o outro na pró- o fato de fazer essa pergunta já faz emergir um outro contexto
pria crença, reforçando o ciclo repetitivo e doloroso. Mãe e filho, afetivo. Pois ela não mais reagirá, sem refletir, à provocação de
inconscientemente, participam da redação de um roteiro, igno- um filha; ela vai se perguntar porque é importante para ele que
rando que são as próprias vítimas. ela manifeste irriração e distanciamento. Entre as hipóteses pos-
A primeira etapa para uma mudança será aceitar que as
reações de bom senso só fazem acentuar as dificuldades que ten-
2 Por exemplo, a irriraçâo que o rerapcura pode sentir não s~ reAct: :penas na sua ~i~~~cia; :,13
tamos há anos resolver repetindo as palavras de uma peça que também pode servir para reforçar a crença profunda do paciente ( Eu só posso ser rejeitado ).
Consultar, principalmente, o capítulo 6 de Si tu m'aimes, ne m'aime pas. Pans: Seuil, 1989, reto-
representamos sem saber.
mado na coleção "Points".
3 Não causadas, mas desencadeadas - nem os elementos do passado, nem o comportamento do
A segunda etapa exige que aceitemos a seguinte hipótese:
filho são a "causa", eles apenas fazem parte de um conjunto que desencadeia alguma COIsapoten-
geralmente, um comportamento repetitivo só se perpetua - ex- cialmente sensível ou frágil.

70 71
Como sobreviver à própria fàmília Libertar o outro para que eu possa mudar

síveis, ela provavelmente vai escolher a mais pertinente - a de mentalmente a mesma: qual é a utilidade para a minha mãe
um filho que não consegue acreditar que a mãe possa amá-lo e ou para o meu pai da minha reação para com eles? Partir da
respeitá-Io. Ela não se sente na posição em que estava o seu pró- hipótese de que a minha reação é esculpida pelo outrO para
prio pai? E se o filho estivesse reagindo ao seu comportamento permitir que ele reforce a sua visão do mundo pode, muitas
da mesma maneira como ela fazia com o pai? vezes, me libertar.
Essa nova vivência afetiva pode fazer com que ela veja Por quê? Porque a natureza da minha pergunta é outra.
sob um outro ângulo as reações do filho. Quando ele levanta os Quero manter esse tipo de relacionamento ao reagir assim?
olhos em reação às palavras dela, a mãe pode ter outra atitude uero sacrificar-me ao proteger o outro com um comporta-
que não aquela - aparentemente lógica - que, até então, só mento que talvez convenha a ele, mas só faz manter o meu
fez perpetuar o conflito e manter o roteiro de uma peça que sofrimento? Pode ser que eu descubra que, de fato, eu também
ela não quer mais representar. E se ela o abraçasse, o que acon- usufrua de benefícios secundários bem satisfatórios ao pros-
teceria? Por que não abraçá-lo e dizer a ele que respeita suas seguir esse jogo sem fim. Parafraseando Camus ao citar Sísifo
reações? Ela sabe antecipadamente que corre o risco de o filho .mpurrando o rochedo, provavelmente eu acabaria dizendo a
rejeitá-Ia porque, provavelmente, não vai acreditar na brusca mim mesmo: "Essa empreitada desesperada é minha: ela não
reviravolta e ficará desconfiado dessa reação atípica. Mas se (na me é mais imposta, eu até a reivindico". Ao menos eu me li-
sua nova vivência) ela perceber que, de fato, ele busca reco- bertaria de uma lei rígida a que não mais me submeterei como
nhecimento e respeito (como ela com o pai), então um outro Lima coisa imposta; ao ser o meu próprio legislador, reivindi-
devir poderá aparecer. Como ela não mais estará enclausurada arei meu papel na peça que represento.
na mesma irritação e será novamente capaz de abraçar o filho Os outros, os que desejam inventar novas réplicas para
e tranqüilizã-lo, este acabará por flexibilizar a sua jovem cons- transformar um roteiro ao qual, até então, se submeteram, terão
trução do mundo e se deixará levar. Ele se dará o direito de se de aceitar q~e vão se deparar com a incredulidade e as resistên-
descontrair perto dela. E esse novo comportamento ajudará a cias dos protagonistas dessa peça invisível. Eles lhes pedirão para
mãe a modificar a sua própria construção do mundo: ao ver o mudar também as réplicas, para deixar os caminhos conhecidos
filho mudar, ela também mudará. e se aventurar por trilhas desconhecidas, talvez perigosas. São
Naturalmente, a análise que acabamos de fazer do com- poucas as probabilidades de que suas inovações sejam recebidas
portamento de uma mãe em relação ao filho pode ser aplicada de braços abertos! Mas se persistirem, sem agressividade e com a
a situações análogas, nas quais os papéis estivessem trocados. mente aberta, resistindo às tentativas que farão os outros mem-
Se fosse o comportamento de um filho ou de uma filha em bros da família para trazê-los de volta às respostas habituais,
relação aos pais que estivesse em jogo, a pergunta seria funda- então um futuro diferente poderá delinear-se.

72 73
Como sobreviver à própria família Libertar o outro para que eu possa mudar

Resumindo, quando somos pegos numa situação repetiu- 6. Se não quero isso, como reagir de maneira diferente?
va, sugiro que fiquemos atentos aos seguintes pontos: Como posso não pegar esse florete que o outro me entrega para
1. Sem dúvida, meu passado tem o seu papel, mas, se essa que possamos retomar os duelos interrompidos? A margem de
situação se repete nesse contexto com essa pessoa, talvez seja liberdade que encontrei, a distância que começa a aumentar em
porque, sem se dar conta, essa pessoa seja modelada por sua his- relação à repetição pode permitir que eu improvise uma reação
tória e por seu contexto para agir assim e me modele para que contrária à expectativa do outro.
eu aja dessa maneira. 7. Ele não acreditará em mim e fará de tudo para me levar
2. Sem dúvida, meu comportamento tem uma dupla fun- de volta ao antigo ciclo.
ção - é preciso analisá-lo à luz da minha história, mas também 8. No entanto, se eu conseguir resistir aos convites da
segundo as crenças profundas da pessoa com quem eu lido. Por- repetição, à tentação de reproduzir minhas antigas falas, répli-
tanto, vamos simplificar a situação e nos ligar mais à função da cas tão familiares da nossa peça comum, se eu deixar surgir um
nossa vivência em relação ao outro. Pois se eu mudo ou se o outro nqvo devir, se me comprometer e me expuser, poderei libertar
muda, é todo o sistema que formamos que mudará. A alavanca O outro e a mim também, na mesma ocasião. Descobrirei que a
só pode ser aplicada num ponto do rochedo - se esse ponto se minha liberdade depende, muito mais do que eu supunha, da
deslocar, todo o rochedo sairá do lugar. liberdade dos outros. A caridade bem entendida não começa
3. Se a pessoa que está na minha frente for um membro da por nós, mas pelo outro.
família, posso ter uma idéia do que, na sua história, faz com que eu
me molde assim para que ela não tenha de mudar suas convicções.
Se for alguém que eu não conheça tão bem, só posso formular
hipóteses. Se ele me irrita, posso, por exemplo, me perguntar em
que medida ele não me leva a rejeitá-lo para reforçar a sua convic-
ção profunda de que só pode ser mal recebido pelos outros.
4. Quero me sacrificar para manter o ciclo de comporta-
mentos repetitivos, com o único fim de proteger o outro? Prote-
ger, nesse caso, não é ajudar, pois manter o outro fechado no seu
bunker contribui para manter o seu sofrimento.
5. Porém, se eu fizer essa escolha, estarei representando o
papel do Sísifo de Camus: reivindicarei a minha própria aliena-
ção com total conhecimento de causa.

74 75
( ) IJomem que não conseguia deixar a mulher nem continuar com ela

Capítulo 7

o homem
que não
conseguia deixar a mulher
nem continuar com ela
ão é a história de uma psicoterapia que o leitor en-
contrará neste capítulo, mas apenas os seus primei-
ros passos. O paciente decidiu, por iniciativa pró-
II1 pria, interromper o processo terapêutico, sendo que, na minha
opinião, ele não havia chegado ao fim. Mas achei que, mesmo
sem conclusão, esse relato podia ser útil para esclarecer o leitor
sobre as conseqüências de não se vivenciar o luto.
Quem era Marcel? Um homem de uns quarenta e poucos
anos, de carreira bem-sucedida, e que quer deixar a mulher,
11 I mas não consegue. A incapacidade para realizar essa ruptura
que ele deseja leva-o a me consultar. "Tentei deixar a minha
mulher por várias vezes", explica-me, "e todas elas eu voltei.
Quando estou longe, me sinto culpado e sinto necessidade de
voltar para cuidar dela; e quando estou com ela, só penso em
deixá-Ia!" Ele tem, prossegue, um relacionamento extraconju-
gal e, dividido entre as duas mulheres, multiplica idas e vindas
tão angustiantes quanto estéreis. Num apartamento recente-

77
, . -'~
Como sobreviver à própria fàmília o homem que não conseguia deixar a mulher nem continuar com ela

mente alugado para poder ficar sozinho, ele tentou analisar a ocasião - retrospectivamente, essa dor encobre qualquer outra
situação, mas as reflexões não lhe permitiram acabar com suas lembrança relativa ao primeiro ano de internato.
hesitações, nem com o tormento. Quando, anos depois, ele encontrou aquela que se tornaria
Eis uma situação bem clássica, talvez o leitor diga a si mes- nia mulher, a mãe estava doente e a doença a levaria alguns meses
mo, em que um homem casado, que se apaixona por outra mu- depois. Esse momento, conta Marcel, "foi para mim como uma
lher, hesita entre o conforto de continuar com a esposa e o desejo 1 raição". Em seguida, ele corrige: "Não, foi como se eu substituísse
de viver com a amante. Um tema de novela ou de filme "psico- :1 minha mãe pela minha futura esposa". Em seguida, ele mesmo
lógico" (não muito original) do qual Marcel, um homem preso propõe uma interpretação: "Pus a minha esposa no lugar da mi-
a valores tradicionais que o impedem de deixar a esposa, parece, nha mãe", o que, no caso dele, talvez significasse: "Quis evitar uma
decididamente, o protagonista perfeito. 1 raição em relação à minha mãe e pus minha mulher no lugar dela
Contudo, uma psicoterapia mostra outra coisa que não os " hoje, ao deixar minha mulher, é minha mãe que eu traio".
clichês desse tipo. Ao contrário, sempre nos surpreendemos com Essa é, realmente, a hipótese que se impõe nesse momen-
a riqueza e a diversidade das situações às quais somos confronta- to da terapia. Eis um homem que não conseguiu vivenciar o
dos se, em vez de trazê-Ias para esquemas gerais, tentamos captar luto da mãe morta e substituiu-a pela mulher. Portanto, ele não
com precisão a trama específica. Inadvertidamente, Marcel deixa . e relaciona com uma "esposa", mas com alguém que, ao tomar
escapar: "É difícil me separar e deixá-Ia sozinha; é como se eu O lugar da sua mãe, ocupou-o de uma maneira que lhe permite
abandonasse meu filho". Então, o terapeuta lhe pede que fale da vitar a traição que representaria a escolha de uma pessoa de
própria mãe e Marcel se entrega às lembranças do relacionamen- fora. Desde então, a forma do seu dilema adquiriu uma especi-
to idílico que teve com ela. Como o pai saíra de casa quando ele ficação suplementar - como poderia ter uma vida plena com
ainda era pequeno, a mãe teve de educar sozinha os quatro filhos. uma mulher a quem ele pedia que fosse a mãe que ela não é? E
Marcel era o último dos irmãos e depois que, progressivamente, como poderia abandonar uma pessoa que passara a equivaler à
os outros filhos saíram de casa para continuar os estudos numa própria mãe? Enquanto não vivenciasse o luto da mãe morta,
cidade grande, Marcel ficou sozinho com essa mulher, que ele a esposa estaria encurralada no lugar que lhe impunham e a si-
idealizava: "Ela não tinha defeitos", comenta, "era 'perfeita'!". Ele tuação se perpetuaria, sem evolução possível, enclausurando os
relembra, com profunda emoção, a época em que a mãe e ele dois protagonistas nos seus arcanos.
eram muito chegados. Até o dia em que, aos 12 anos, também Depois de relembrar mais uma vez a mãe - uma "pessoa
teve de deixá-Ia para ir estudar na cidade grande como interno ideal, sempre afetuosa, sempre de bom humor" -, Marcel acres-
num colégio. A mãe e ele se preparam para o "grande drama" des- centou de repente: "Sabe, depois de tantos anos, ainda dependo
sa separação, mas Marcel ainda sente a dor que experimentou na da lembrança dela. É como se, entre ela e mim, ainda houvesse

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79
Como sobreviver à própria fàmília o homem que não conseguia deixar a mulher nem continuar com ela

alguma coisa inacabada. Foi prematura a necessidade de deixá-Ia e significados tradicionais, não favorece o trabalho apazigua-
I I III1
1

aos 12 anos. Eis por que ainda dependo da presença dela". E ele dor do luto. É como se o luto matasse a pessoa pela segunda
dá esta explicação meio estranha: "Quando vejo o lugar que ma- vez, enquanto na cultura malgaxe, por exemplo, ele dá à pessoa
mãe ocupava na minha vida, fico surpreso de não ter ficado mais morta o status de deidade acompanhante e tutelar. Poderíamos
triste com a morte dela. Talvez, se eu tivesse, como dizem, 'ficado citar outros exemplos para ilustrar a impotência e o desespero
de luto', sentisse mais cruelmente a ausência dela". do homem ocidental mal preparado, pela evolução da sua cultu-
ra, para os inevi táveis sofrimentos da vida; mas isso nos levaria
Essa história mostra com veemência como uma situação longe demais. Basta destacar aqui que Norman Paul insiste na
aparentemente banal pode assumir, no cenário terapêutico, uma importância de um ritual de luto, de um processo que, se levado
consistência e uma significação inesperadas, para finalmente se até o fim, permite que ele seja consumado.
revelar como uma espetacular manifestação de um luto impos- Por isso, ele cria nas sessões contextos específicos que con-
sível. Mas uma simples conscientização, de ordem estritamente võcarn para esse ritual ou levam a isso e, para liberar afetos até
histórica, não bastaria nesse caso. Seria preciso que Marcel re- então bloqueados, às vezes ele se esforça para induzir uma rea-
vivesse afetivarnente sua dificuldade no cenário da terapia para ção adiada, que chama de "luto operacional".
que o torno começasse a afrouxar. Seria preciso que ocorresse o Um exemplo pode ser esclarecedor para ilustrar o notá-
processo de luto para que Marcel não precisasse pôr alguém no vel trabalho desse terapeuta original. Em um de seus artigos",
lugar da mãe morta. Somente pagando esse preço é que poderia Norman Paul descreve uma situação muito parecida com a
considerar a esposa como uma mulher que ele pudesse deixar, que acabamos de citar - com uma diferença: a pessoa cujo
ou com quem poderia ficar, e não como uma pessoa que, como luto não foi vivenciado não era o da mãe e sim da tia. Um
dizem os americanos, "usa os sapatos de um defunto". casal, os Lewis, foi consultar o terapeuta, pois o marido queria
Acontece que o trabalho terapêutico pareceu muito pe- separar-seda mulher para se casar com uma moça de 21 anos
sado para o paciente, pois ele o interrompeu prematuramente, chamada Charlotte. O senhor e a senhora Lewis tinham 39
quem sabe da mesma maneira que lhe foi impossível ir até o fim anos, seis filhos e uma história muito penosa, pois a senhora
no processo de luto. Lewis, quando soube que o marido queria deixá-Ia, tentou o
suicídio - como seus pais (a mãe quando ela estava com 16
O terapeuta Norman Paul destacou a importância, em anos, o pai quando tinha 33); o senhor Lewis se sentia "preso"
inúmeras vidas, de "lutos não vivenciados". Ele insistiu, princi- no casamento (como o pai, antes dele).
palmente, no teor cultural: a civilização ocidental, ao contrário
de outras culturas que souberam preservar melhor suas práticas 4 "Deuil er emparhie en rhérapie conjugale conjointe", in Résonances, n26, 1994.

80 81

IUII u...J
Como sobreviver à própria família o homem que não conseguia deixar a mulher nem continuar com ela

Num momento da terapia, o senhor Lewis se refere a uma parente: ''A busca de uma perda", escreve ele, "depois a capacida-
tia, irmã da sua mãe, "mulher absolutamente fabulosa", diz ele, de do terapeuta em se concentrar com empatia na angústia e no
e que, infelizmente, havia morrido aos 35 anos. Na ocasião sofrimento subjacentes, provocaram no senhor Lewis o tipo de
ele tinha 10 anos. À simples lembrança dessa pessoa, chamada soluços que, em geral, observamos nas crianças'". Um abscesso
Emma, ele começa a chorar: "É a mulher que eu queria en- mocional foi esvaziado, libertando o paciente do que, na sua
contrar" - explica. "Ela sempre me compreendia, me aceitava .voluçâo, constituía um ponto de fixação, e o senhor Lewis pôde,
como eu era. Bastava-me estar com ela para me sentir em paz, om a recomendação do terapeuta, concluir um trabalho de luto
simples e totalmente em paz ... ". , ir ao cemitério onde a tia estava enterrada.
O terapeuta descobre que a tia Emma estava enterrada Vemos a importância do trabalho de Norman Paul: ao se
numa cidade chamada Charlotte, na Carolina do Norte, e que interessar pelo papel secreto e capital que desempenham os lu-
o senhor Lewis era o único a chamar a moça que ama por esse tos não vivenciados, ele possibilitou uma nova visão de um tipo
nome, sendo que ela tinha dois outros nomes, mais usados; além d tensão e de conflitos que se produzem com freqüência nas
disso, os olhos e o cabelo de "Charlotte" são da mesma cor que os famílias e nos casais. Podemos completar essa contribuição com
da tia morta; por fim, mais um fato significativo: o senhor Lewis as pesquisas de John Bowlby, que distingue várias fases no luto:
nunca tinha ido ao túmulo de Emma e não manteve nenhum o período de tristeza e de raiva; a incredulidade diante da perda
laço com a família dela depois que ela havia morrido. e a busca da pessoa perdida; finalmente a fase de desespero que
Nas duas sessões seguintes, Norman Paul se esforça para precede o tempo da reorganização psíquica. Talvez, se aceitar-
ajudar o paciente a vivenciar o luto da tia adorada, 28 anos de- mos a necessidade desses tempos sucessivos e nos permitirmos
pois da morte dela. Liberar essa dor tanto tempo contida gerou vivê-los na sua plenitude, possamos passar de uma etapa para a
no senhor Lewis um sentimento de paz, análogo ao que ele dizia outra no nosso ciclo de vida.
sentir ao lado da tia. E ele poderá, se quiser, desistir de procurar
uma substituta para ela.
É claro que outros elementos que entrevimos nesse relato
devem ter desempenhado um papel importante nessa terapia, por
exemplo, os suicídios que marcam a história da senhora Lewis,
mas Norman Paul, deliberadamente, optou por apresentar ape-
nas essa faceta de um processo que percebemos ser mais comple-
xo. Ele insiste, principalmente, na necessidade de fazer alguém
falar, repetidamente, sobre as suas reações diante da perda de um 5 !bid.

82 83
o luto num contÔ~

Capítulo 8

o luto num contexto

N
o capítulo anterior, citei o caso, bem clássico, de
uma pessoa que não conseguiu vivenciar o luto. Mas
só me referi a esse caso sob o ponto de vista dessa
pessoa; muitos aspectos da situação continuaram na sombra. A
esposa desse homem não teria desempenhado um papel nessa
impossibilidade de iniciar um trabalho de luto? Como ela pôde
se adaptar a alguém que todo o tempo a deixava e voltava para
ela? Por que não pôs um fim numa relação que a fazia sofrer?
Todas essas perguntas fazem surgir outra, mais geral, uma per-
gunta sobre a função que pode ter um luto não vivenciado para
a família e para o ambiente. Isso porque o luto não é apenas
um acontecimento individual; é um acontecimento sistêmicv
- dimensão sobre a qual vou insistir agora.
Talvez possamos compreender melhor o processo que faz
com que certas famílias tenham tanta dificuldade em vivenciar o
luto de um dos seus membros.
Uma mãe e um filho vieram fazer uma consulta. Ela
xercia uma profissão liberal, ele devia ter uns trinta anos. O
ti stino havia sido cruel com ambos: no espaço de um ano, o
pai e, em seguida, o irmão do rapaz haviam morrido; porrari-

85
T ri I

Como sobreviver à própria fàmília o luto num contexto

to, essa mãe havia perdido o marido e o filho. Pouco depois, trabalho terapêutico consistiu em abrir o sistema fa-
esse outro filho começou a apresentar distúrbios psicológicos milis I a outras maneiras de funcionar. À medida que a terapia
que lhe prejudicavam a carreira. ~i avançando, a mãe começou a encarar a morte do marido.
Na primeira sessão, perguntei à mãe a data da morte do Sem dúvida, ela teve de passar por um grande sofrimento ("É
marido e ela me deu uma data situada no futuro. O filho sorriu horrível ficar sozinha" - disse-me ela um dia), mas tanto a
(eu também) e ele observou em voz alta que era um sinal incon- mãe quanto o filho começaram a se diferenciar e a se autono-
testável de que a mãe não vivenciara o luto. mizar, O filho pôde enfrentar o mundo com as responsabilida-
I Evidentemente, eu poderia abordar esse caso começando I s que isso comporta. Finalmente, ele poderá ter acesso a um
pela categoria bem conhecida do luto não vivenciado, pela im- omportamento de adulto, pensará em fundar uma família e
11I

I1 possibilidade individual de fazê-Io. Mas a continuação da terapia r tomar a vida profissional. Depois que cada um encontrar o
1II1111111
1 11 mostrou que essa incapacidade não só tinha uma função em rela- próprio espaço, o sistema familiar evoluiu progressivamente
I1

11
ção à mãe, como também em relação ao filho. para um estado mais harmonioso.
I O que se passou realmente? Essa mãe que havia perdido o . Esse exemplo mostra com clareza que o luto não deve ser
marido se agarrara ao filho, que havia perdido o pai e o irmão, e considerado simplesmente como um problema individual; ele
um vínculo fusional se criou entre eles, e este é um dos elementos também, como eu disse acima, um acontecimento que afeta
que explicavam os sintomas apresentados pelo filho. conjunto de um sistema humano e que obriga esse sistema
Devido à piora do seu estado, o rapaz parou de trabalhar. a se transformar.
Uma hospitalização foi necessária, sendo que o vínculo com a É claro que o sistema familiar, como qualquer sistema,
mãe se tornou tão intenso e seus problemas psíquicos tão pre- tende a manter um equilíbrio, mas o ciclo da vida compreende
ocupantes que a questão do luto não vivenciado passou para necessariamente diversos momentos de crise que o obrigam a se
segundo plano. Como vemos, o sistema familiar funcionava de reformar. Dois jovens decidem viver juntos; as regras da vida,
uma nova maneira, mas esse novo funcionamento permitia evi- para um e para outro, não podem ser as mesmas - a partir de
tar a mudança ou, de qualquer forma, a mudança necessária. então, precisam construir uma vida a dois. Eis que um primeiro
As regras que desapareceram não foram substituídas por outras filho chega, provocando mais uma mudança nas regras do jogo
suficientemente flexíveis para permitir que a situação evoluísse. - os dois cônjuges não são mais um casal, eles passam a ser
Ao contrário, o desaparecimento delas provocou o aparecimen- pais. Porém, mais tarde, a partida dos filhos os obriga a volta-
to de um sistema rígido, em que a mãe refez o casal, dessa vez rem a ser um casal, vem a aposentadoria, que modifica a dura-
com o filho. Conseqüência da nova simbiose: "o problema" pas- ção e a qualidade da presença de cada um, aumentando o tempo
sou a ser o distúrbio do filho. que passam juntos. O luto é um acontecimento desse gênero.

86 87
Como sobreviver à própria família o luto num contexto

Como os outros acontecimentos que acabei de mencionar, ele dente configuração chamou-a de o terceiro peso. A procura do
inclui a obrigação de não mais poder viver como se vivia até en- terapeuta pode ser vista como uma tentativa de mascarar a au-
tão. As regras não podem continuar a ser as mesmas e o sistema sência insustentável da figura imponente que se acabou de per-
tem de se adaptar para continuar a funcionar com uma pessoa der. E a demanda de mudança, vinda dos pacientes como uma
a menos. Isso porque toda família, como vimos muitas vezes ao tentativa de introduzir na família esse substituto, que seria o te-
longo deste livro, funciona com um roteiro específico em que rapeuta, é um esforço particularmente sutil para que ele ajude a
cada um tem um papel a representar. Esse roteiro é regido por ocultar esse luto que a família não está preparada para vivenciar.
regras que definem o lugar de cada um, tanto é que com a morte Assim como existe uma inteligência da neurose, há uma sutileza
de um deles a peça não pode mais ser representada como antes: dos sistemas patológicos!
falta um ator. Papéis e regras devem, então, ser redefinidos para Por isso, um terapeuta como Norman Paul insiste na ne-
que a vida possa se recompor. cessidade do trabalho de luto, sobre a empatia que esse trabalho
Infelizmente, a experiência mostra que, muitas vezes, te- xigé da parte dos membros da família, até mesmo do terapeu-
II mos dificuldade em refazê-Ia. Por detrás de um luto não vivido, ta. Ele não hesita, por exemplo, em pedir aos pacientes para
I constantemente descobrimos um sistema que não pode se dar ao irem ao túmulo dos parentes, para ajudá-Ios a vivenciar o luto
luxo de um luto bem-sucedido, porque não pode se libertar da que não foi consumado.
11

rigidez das regras. Às vezes é um membro da família que é posto Para que os parentes do morto aceitem a realidade da per-
no lugar do morto, como se encarregássemos um ator de dizer as da, eles devem poder falar sobre isso, não somente entre eles,
réplicas de outro! Às vezes, agimos como se o morto não tivesse mas também com os membros mais afastados da família e com
morrido, bloqueando assim a emergência de um novo roteiro que is amigos. O terapeuta Roberto Pereira insistiu particularmente
poderia ser representado sem ele. s bre essa necessidade de comunicação, de verbalização. É pre-
Se o luto não pode ser vivenciado, a responsabilidade não ·iso, diz ele, que a família permita que a tristeza venha à tona
é só daquele que não consegue vivenciá-Io - ele é apenas o e que se faça um trabalho em família para renunciar à presença
membro da família que não consegue fazer isso. E se está nessa do morto, aceitando a transformação dos papéis, tanto interna
situação é porque os participantes do conjunto não são capazes quanto externamente. Assim flexibilizadas, as regras do sistema
de mudar o roteiro; esses participantes descarregaram em cima familiar não criarão obstáculo à mudança necessária e, depois
dele essa incapacidade, obrigando-o a representar, além do seu ti um período de crise, a família poderá encontrar um equi-
próprio papel, o papel do morto. líbrio relativamente harmonioso, que preservará a autonomia
Pode até acontecer que se ponha o terapeuta no lugar do de seus membros e, ao mesmo tempo, as relações de afetuosa
morto. A terapeuta belga que identificou e analisou essa surpreen- ·rnpana que os unem.

88 89
..

A mulher a quem se pedia demais e o homem que se sentia abandonado

Capítulo 9

A mulher a quem se
pedia demais e o homem
que se sentia abandonado
artine e jean-Paul passavam por uma crise de casa-
mento. Martine havia sido criada numa família em
que o pai era muito ausente. Ele não só relutava em
assumir suas responsabilidades, como parecia feliz em não se en-
volver na vida da família - em todo o caso, foi essa a impressão
que deixou na filha.
Portanto, Martine cresceu com a irmã mais nova, que era
muito ligada à mãe, e ao lado de um pai que manifestava todo o
tempo, e ruidosamente, o seu descontentamento. Nesse contex-
ro, ela tinha a impressão de que a mãe a incitava a unir as forças
.orn ela e a irmã contra o pai. Não se tratava apenas de uma
.iliança, mas de uma verdadeira coalizão - esse termo, que em-
pregamos constantemente em terapia familiar, indica que várias
pessoas se unem contra outra, no caso o pai.
Este último percebia e se sentia ferido com isso. Ele se via
iomo abandonado, até mesmo atacado, e multiplicava os protes-
tos, que só faziam acentuar a atmosfera deletéria da família.
111i

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,11
...
Como sobreviver à própria fàmília A mulher a quem se pedia demais e o homem que se sentia abandonado

Quanto a Jean-Paul, ele foi uma criança extremamente homem, pelo menos não com o pai. Portanto, estava dividida
sensível, criado numa família em que se sentia muito só. Não ntre o que eu chamo de seu programa oficial, isto é, seu desejo
havia conseguido o lugar que desejara diante de um pai autori- explícito, como ela mesma formulou ("Quero um homem com
tário e uma mãe apagada, e sempre enxergou a si mesmo como quem possa contar") e a construção do mundo que, progressiva-
o "mau". O comportamento rebelde em relação aos pais, que mente, se estruturou por intermédio de experiências dolorosas e
faziam tão pouco-caso dele, só reforçava essa imagem negativa, repetitivas ("Um pai não dá o espaço que os membros da família
agravando, exatamente por isso, o seu sentimento de solidão e o necessitam; portanto, só pode se queixar de ser abandonado").
levando a novas contestações. Devido a essa construção do mundo, era difícil para ela aceitar
Martine e Jean-Paul agora eram adultos. Há alguns anos a idéia de que um homem, que se tornara pai, pudesse ficar ao
haviam iniciado um apaixonado romance, tão apaixonado que seu lado como um verdadeiro parceiro. Ela se parecia com o
decidiram casar-se e fundar uma família. Logo chegou o mo- proverbial gato escaldado que fica atento a qualquer água desde
mento tão esperado: há dez semanas Martine havia dado à luz que-foi queimado e tem medo até de água fria -foscinada com
uma encantadora menina, um belo bebê que era grudado na O comportamento de Jean-Paul, esperava o reforço da sua ínti-
mãe, seguindo-a todo o tempo com os olhos como se fossem ma convicção: não poderá, diante de um homem como esse , ser
uma só pessoa, e que dependia totalmente da voz e da presença mais bem-sucedida do que a mãe fora com o pai. Tudo, menos
dela. Em resumo, uma situação totalmente normal, exceto por mudar a sua imagem de mundo! Era melhor se enclausurar na
Jean-Paul que, como muitos homens no mesmo contexto, sofria ua fortaleza, verificar se a armadura que vestira para não sofrer
demais. Sentia-se abandonado, queria que a mulher ficasse dispo- era totalmente impermeável e só guardar das experiências ex-
nível, como antes. E é aqui que as vulnerabilidades em potencial ternas aquelas que eram confirmadas pelo filtro através do qual
de Martine e Jean-Paul entram em ressonância e se amplificam as via. O sofrimento psíquico muitas vezes é paradoxal; ele se
mutuamente. Criada numa família na qual viveu em coalizão alimenta do I?edo de uma dor ainda maior.
com a mãe diante de um pai que não parava de se queixar de Presa na sua armadura, protegida de qualquer mudança
abandono e de reclamar da aliança voltada contra ele, Martine e totalmente impermeável a qualquer renovação, Martine não
vivenciava dramaticamente com Jean-Paul uma situação sentida podia perceber o que o marido sentia. jean-Paul revivia o sen-
como análoga. Ela queria um homem que fosse diferente do pai timento de abandono tão difícil para ele na infância, passava
ausente, um homem que ficasse ao seu lado, um verdadeiro par- novamente pela experiência de rejeição que conhecia bem. O
ceiro que a ajudasse no seu papel de mãe e dividisse o amor que contra-senso pôde então começar a ocorrer. Martine não com-
ela sentia pelo maravilhoso bebê. Ao mesmo tempo, ela havia preendia que, se Jean-Paul se comportava daquele jeito, é porque
crescido num contexto em que não podia contar com nenhum remia a solidão ao mergulhar novamente na própria história; ela

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Como sobreviver à própria família A mulher a quem se pedia demais e o homem que se sentia abandonado

enxergava, do seu ponto de vista, um marido que se comportava crença profunda constituída na nossa família de origem. Atribu-
como o pai dela, incapaz, como ele, de aceitar que uma mulher, ímos ao nosso parceiro razões no agir ou intenções que, muitas
uma mãe, possa ter o seu próprio lugar. Então, Martine se torna vezes, são a transposição das atitudes dos nossos pais quando éra-
mais dura, se enrijece. Cada vez aceitava menos o comporta- mos crianças. Nesse caso, a bem dizer, não existe mais um encon-
mento do marido, que não se dava conta do mal-entendido que tro; há somente uma diferença que produz um desentendimento,
se instalara, não imaginava, nem por um instante, que a mulher que não enriquece em nada. Por uma bateria de comportamentos
não pudesse vê-lo da maneira que ele mesmo se via. jean-Paul e de ações sutis, incitamos o outro, meio sem saber, a ocupar o lu-
se imaginava como um homem solitário que teme ser rejeitado, gar que lhe designamos a fim de poder manter a nossa construção
um marido que apenas pede à mulher que fique perto dele. O do mundo que, certamente, nos faz sofrer, mas que nos protege
que pode ser mais legítimo? Na verdade, como a esposa, ele está de uma desilusão pior ainda. Esse é o esquema que encontramos
dividido entre o seu programa oficial ("Quero ser considerado em inúmeros conflitos de casais - o que reprovamos no outro,
pela minha família") e sua construção do mundo ("Não posso na maioria das vezes, corresponde a uma demanda que lhe faze-
ocupar o lugar que desejo na minha famílià'), que é baseada mos, mas temendo, em segredo, uma resposta positiva da parte
no que ele vivenciou na família de origem, na qual o levavam dele, que nos fará abrir a armadura, nos forçará a nos expor e,
muito pouco em consideração. Um trágico equívoco se instala: paradoxalmente, nos deixará sem defesa diante de uma desilusão
jean-Paul não vê que Martine reage assim porque teme que o que, mais cedo ou mais tarde, não deixará de advir.
marido se comporte como o seu pai; e ele confunde o que vive Um casal tem um filho, a mãe dedica todo o seu tempo e
hic et nunc no casamento com a experiência passada, moldada cuidados ao bebê nas primeiras semanas e o marido acha um pou-
de solidão e abandono; então ele também se torna mais duro, co difícil vivenciar isso. Essa é uma situação anódina. Na verdade,
ataca a esposa e reforça a coalizão mãe-filha que o faz sofrer. as coisas podiam parar por aí, mas eis que essa pequena crise, que
Diante desse homem que multiplicava os protestos agressivos, faz parte integrante do nosso ciclo de vida e que desapareceria
decepcionada, Martine se volta para o vínculo que criou com a por si só num' contexto diferente, se amplifica, nesse caso preciso,
filha, contra esse marido que, a seus olhos, a impedia de atingir porque exacerba duas sensibilidades, duas vulnerabilidades que
o objetivo que desejava tão ardentemente: viver ao lado de um e articulam uma com a outra, formando um sistema. Martine e
parceiro com quem pudesse contar, que ficasse perto dela e dos Jean-Paul ficam presos numa porta giratória onde cada um pode,
filhos num lar onde todos se sentissem amados e considerados. om toda a razão, achar que o outro é o culpado pelo movimento
Jean-Paul e Martine acabaram por se separar e essa situação, circular! E, então, não estamos mais em presença de duas pessoas
de conseqüências tão dramáticas, infelizmente é comum. Muitas que sofrem, mas de uma estrutura que prende inexoravelmente
vezes usamos o comportamento do cônjuge para reforçar uma as pessoas que engloba.

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Como sobreviver à própria fàmíLia A mulher a quem se pedia demais e o homem que se sentia abandonado

Talvez o leitor ache incongruente essa imagem da "porta sabe se o filho quer se aproximar dela ou do botão! É outra con-
giratórià', que uso com freqüência. Para esclarecer, acho que. é figuração que aparece, na qual não se sabe quem captura quem,
útil lembrar dois momentos importantes da história da terapla -quem começou, o que é causa e o que é conseqüência. Esse texto
familiar. Em 1956, um grupo de pesquisadores americanos que de Haley, historicamente importante, como já dissemos, permi-
trabalhava em Palo Alto sob a direção do antropólogo Gregory tiu que os terapeutas de família passassem de uma visão linear do
Bateson criou um conceito que se revelaria de suma importân- mundo, na qual tinha de existir um culpado e uma vítima, para
cia na nossa teoria e prática, o de "duplo dilema" (double bind, uma visão circular, em que a pergunta não é mais" O que um fez
em inglês). Do que se trata? Uma mãe está perto do filho. Ela ao outro?" e sim "O que fazem juntos?". É isso o que chamo de
fala gentilmente com ele. Até aqui, tudo bem. Mas a mensagem porta giratória - uma pessoa pode acusar a outra de empurrá-Ia
verbal ("Querido, sente no meu colo") se contradiz com outra por trás e, legitimamente, a outra pode responder: "É você quem
mensagem, situada no nível gestual ou corporal. Por exemplo, ela me está empurrando!". Todas essas reclamações têm um funda-
endurece o corpo quando o filho caminha para ela, mostrando mente parcial; o fato de proferi-Ias incessantemente impede que
assim o medo que sente quando o menino se aproxima. Nessa se veja que é a própria estrutura da situação que deve ser questio-
primeira teorização do duplo dilema", consideramos que o filho nada. Nosso trabalho, em terapia sistêrnica, consiste justamente
não tem condições de responder: muito pequeno, dependendo em localizar essas portas giratórias (ou outras configurações desse
afetivamente da mãe, ele não encontra uma saída que lhe permita gênero) que as pessoas que nos consultam ajudaram a construir e
escapar dessa situação, insustentável para ele. Existe uma dissime- das quais não conseguem escapar.
tria: a mãe prende o filho numa armadilha; o filho é a vítima. Onde está a porta de saída? Ela existe? Quem pode encon-
Porém, alguns anos depois, em 1958, Jay Haley, que foi trá-Ia? Diversas intervenções são possíveis. Algumas ocorrem no
um dos colaboradores de Bateson e um dos autores do famoso consultório e incluem o próprio terapeuta, que entra deliberada-
artigo de 1956, descreve uma estrutura mais complexa: o duplo mente na porra giratória, mas se comporta de maneira diferente.
dilema recíproco? Imaginemos que o filho responda a essa mãe Ele terá de ouvir a tristeza de ambos, tal como ela se expressa, por
que lhe pede que sente no seu colo e que se enrijece q~an~,o e~e meio da raiva, do desespero, da frustração, da agressividade.
o faz: "Nossa, mamãe, que bonito o botão do seu vestido .. Eis Se souber ouvir o apelo existente por detrás desses movi-
que, agora, é a mãe que fica presa numa armadilha, pois ela não mentos emocionais, talvez possa ajudar o casal a seguir novos
caminhos.
Voltemos a Martine e jean-Paul. Em virtude das suas per-
on J WakJand ) "Vers une rhéorie de Ia schizophrénie", in G. Bateson,
6 G . Baceson, O . O . J ac ks , . sonalidades, dos passados ou de suas vivências, estariam conde-
Vers une écologie de l'esprit, v. 2, Seuil, 1980, col. "Points~':,pp. 9-34. Q 1_ 2.
7 J. Haley, "An inreracrional descriprion of SChlzophlenla , Psycbiatry, n 22, pp. 32 33 nados a passar por aquela experiência? Acho que não. O passado

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Como sobreviver à própria família A mulher a quem se pedia demais e o homem que se sentia abandonado

nos fragiliza, mas não escreve o nosso destino; somente quan- afetiva. Se essa experiência é repetida, a armadura se abre aos
do uma situação específica acontece, na qual as construções do poucos, a construção do mundo enverga e o paciente acaba tro-
mundo de duas pessoas combinam e se amplificam numa música cando a armadura por um escudo - que nos protege sem nos
repetitiva, é que a vulnerabilidade de cada um aparece; não por- emparedar, sem cortar a comunicação com os outros. O dragão
que sempre estivesse lá, mas porque é resultante de uma cons- vai embora sem que nunca cheguemos a perceber sua presença.
trução do mundo enterrada e de uma situação inédita. Quando Tais procedimentos são freqüentes no próprio cenário te-
os acasos da vida não emitem uma nota especial para acordar os rapêutico. O paciente tenta reproduzir com o terapeuta o tipo de
dragões adormecidos, nós evoluímos com nossos monstros inte- relação costumeira que, por assim dizer, ele "controla", a fim de
riores, de cuja presença discreta nem desconfiamos, como o per- preservar a sua construção do mundo, sem precisar expor-se. Se
sonagem do desenho animado Mr. Magoo, que nunca percebe o terapeuta aceita o convite mas não entra na dança, cria-se uma
os inúmeros riscos que corre devido à intensa miopia. nova situação que permite passar da repetição para a diferença.
Porém, os imprevistos da vida também podem ter um Unia vivência inédita desponta no paciente: ele poderá, a partir
efeito terapêutico. É isso que os profissionais, em geral, subes- de então, exportá-Ia para fora da sessão.
timam, da mesma maneira que não prestam atenção suficiente Eu me permito insistir sobre este ponto, por ser muito
ao potencial que, de acordo com esse ponto de vista, a própria desconhecido: tanto as famílias como os casais também têm um
família pode oferecer. Imaginemos que Jean-Paul desposasse potencial terapêutico quando os membros não reforçam suas mú-
uma mulher que não tivesse passado por uma experiência trau- tuas crenças profundas. Às vezes, os terapeutas descobrem con-
matizante análoga à de Martine. Quando, depois do nascimen- textos libertadores e, às vezes, os próprios pacientes têm os recur-
to do filho, ele revivesse o sentimento de solidão que sentira sos necessários para evitar que se estabeleça uma engrenagem da
com os pais, essa mulher teria a capacidade de não confundir o qual, depois, é muito difícil se libertar.
comportamento do marido com o do próprio pai. Ela poderia Corno o terapeuta pode apoiar-se nesses recursos? Como
dizer: "Compreendo que não é fácil para você, mas peço que pode fazer surgir em cada um dos parceiros as capacidades
seja paciente; neste momento é importante que eu dedique toda terapêuticas que ajudarão o cônjuge e desmancharão o nó no
a atenção ao nosso bebê". Ao se recusar a entrar na queda-de- qual o casal está amarrado? É isso o que deverá mostrar o ca-
braço, talvez pudesse tranqüilizar o marido, fazer com que ele pítulo seguinte.
sentisse que não era rejeitado, que ela continuava ao lado dele
- e ela mesma desempenharia um papel terapêutico. Ao não
entrar na repetição, a mulher evitaria consolidar a construção
do mundo do parceiro, oferecendo-lhe uma nova experiência

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o homem que queria afeição e a mulher que queria ser respeitada

Capítulo 10

li~1I1I
o homem que queria
afeição e a mulher
que queria ser respeitada

U
1
11 1 mcasal entra no meu consultório. Marido e mulher
;11:
deviam ter uns quarenta anos. Paul se queixa de que
:Iil:· ,
li a esposa não é afetuosa e diz que sofre muito por não
[
I'
receber nenhum sinal de afeição como gostaria e que um mari-
do tem o direito de esperar da mulher. "Ela só emite", diz ele,
"onomatopéias." Charlotte responde, exasperada, que o marido
a sufoca com as demandas incessantes de afeição e que gostaria
que ele a respeitasse tal como ela é: "Compreendo que ele sofra
com isso, mas o que eu posso fazer? Preciso de ar".
Como dissemos no capítulo anterior, a pergunta que o tera-
peuta deve se fazer é como a situação se estabeleceu. Paul escolheu
Charlotte exatamente porque ela tem dificuldades em expressar ter-
nura, ou por razões independentes do problema que se manifestou
depois? Não seria a escultura mútua da vida do casal que o tornou
particularmente sensível a esse aspecto específico da personalidade
da esposa? Charlotte escolheu Paul porque ele a sufoca com suas
demandas ou foi o funcionamento do casal que fixou sua atenção e
sensibilidade nesse aspecto do comportamento do marido?
111111'

11 101
Como sobreviver à própria família o homem que queria afeição e a mulher que queria ser respeitada

Essa pergunta me parece de suma importância e cheia de Interroguei Paul sobre suas experiências afetivas ante-
conseqüências, inclusive teóricas. Não acho que se possa dizer, riores: "Muito simples", respondeu-me. "Como minha famí-
de maneira simplista, que cada um deles escolheu o outro para lia de origem era um deserto afetivo, cresci sem calor huma-
reforçar a sua construção do mundo. "Ele escolheu a mulher" - no, sem apoio, e, por isso, hoje em dia é essencial para mim
ouvimos muitas vezes - "justamente porque ela é incapaz de que a mulher que escolhi demonstre essa afeição que minha
demonstrar afeto"; "Ela escolheu o marido precisamente porque família não deu".
I ele a sufoca'. Não nego que existam situações desse tipo, mas não Dirigi-me, então, a Charlotte. Por que havia escolhido
'I me parecem tão freqüentes; em geral, são as relações que o casal um marido, segundo suas próprias palavras, "sufocante"? Ele
II1111
implanta ao se formar, são as regras do jogo que se constroem sempre foi assim ou foi a escultura mútua do casal que fixou
progressivamente por meio das trocas entre os dois que levarão sua atenção e sensibilidade sobre esse aspecto de Paul, até que
fi

um dos parceiros a se fixar precisamente naquilo que o faz sofrer: se tornasse insuportável? Quando peço que relembre a sua
e é esse traço, que no início aparece aleatoriamente, que se tor- história, a jovem senhora me responde que havia sido criada
nará objeto da sua atenção porque o atingirá mais e mais na sua numa família muito rígida, em que só era aceita se fizesse o que
vulnerabilidade - a dor que ele sentirá irá obrigá-lo a exigir do queriam. Segundo a educação que recebeu, uma moça tinha
outro um comportamento diferente. de obedecer aos pais, principalmente ao pai, e uma mulher
Mas as coisas não se passam inevitavelmente assim. Pos- devia ajudar e apoiar o marido, pensando em si mesma em
so pedir ao outro uma coisa que eu ache possível obter, mas segundo lugar, depois de cumprir tarefas e deveres. Charlotte
esse pedido pode não lhe causar nenhum problema! Paul pode recebe a demanda afetiva dirigi da pelo marido como uma ta-
ter pedido a afeição de uma mulher que lhe deu esse afeto e ele refa a mais, como condição necessária para que ele a reconheça
o recebeu. E se, achando que não fosse suficiente, ele pedisse e aceite. Ela responde a essa exigência "sufocante" com uma
ainda mais, talvez a mulher tivesse respondido que só se pode demanda de respeito, que Paul recebe como uma recusa a dar
dar o que se tem, continuando a lhe dar afeto; o problema afeição, análoga à que ele se deparou da parte dos pais quando
111111:11

teria desaparecido progressivamente (a não ser que Paul se sen- era criança: o mal-entendido se instala.
tisse em perigo com essa afeição que só pedia porque achava Esse tipo de círculo vicioso, que não deixa de lembrar os
que não a receberia!). nós de comunicação, ou melhor, de incomunicação, que Ronald
O funcionamento do casal nem sempre é negativo. Muitas Laing maravilhosamente descreve em Noeuds ou Est-ce que tu
vezes ele comporta recursos ocultos que o terapeuta pode usar, m'aimesi, é constantemente encontrado em casais que procuram
em vez de insistir exclusivamente no bloqueio - ainda mais por- a terapia. Reduzimos nossa experiência com o outro ao que já
que, em alguns casos, pode reforçá-lo. onhecemos, levamos o outro para a mesma situação e, por essa

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Como sobreviver à própria fàmília o homem que queria a&ição e a mulher que queria ser respeitada

repetição, agora nos protegemos na nossa fechada armadura. O de indignação diante da idéia de que tenham podido educar
que é, então, a psicoterapia? Uma experiência por intermédio da aquela que ia tornar-se sua mulher mostrando-lhe que servir
qual eu me abro para possibilidades às quais não tinha acesso. ao outro era o seu único horizonte!
Como o terapeuta pode abrir caminho? Essa reação já é muito importante, pois, na terapia de ca-
Em alguns casos, ele pode resolver apoiar-se nos recursos sal, nos esforçamos para flexibilizar as construções do mundo dos
IIIII terapêuticos oferecidos pelo próprio casal. Como, por exemplo, dois parceiros, isto é, criar as condições necessárias para que cada
ajudar Paul e Charlotte, e também a se ajudarem? Como agir de um possa modificar os a priori sobre o comportamento do outro,
II1 modo que eles realizem o que teriam feito espontaneamente se a que vêm de suas profundas convicções. Mas nossos esforços po-
demanda de um não provocasse no outro uma dor que bloqueia dem ser em vão se trabalharmos apenas com um dos membros
a troca e cria um mal-entendido? do casal, pois o outro pode, sem querer, continuar a reforçar a
Peço a Charlotte que relembre a sua história na frente do construção que o terapeuta tenta tornar menos rígida. Entre-
marido, convidando-o a conhecer o tema que lhe parece essen- tanto., assim que ouve o relato de Charlotte, Paul compreende o
cial: "Só sou reconhecida se for como o outro quer que eu seja". mal-entendido e uma nova situação afetiva é criada; ele percebe
Especifico que ela só precisa contar as experiências que precede- que, se a sua mulher não lhe demonstra afeição, não significa
ram o seu encontro com Paul. Ao meu lado, pela primeira vez, o que seja incapaz de dá-Ia e sim que o vê como seus pais, que
marido ouve o que a mulher diz sem se sentir diretamente envol- só a reconheciam se fizesse o que lhe pediam. A partir daquele
vido, pois nenhuma queixa é dirigida diretamente a ele. momento, Paul não se sente mais atacado; ele compreende que,
Nesse contexto, Charlotte aparece em toda a sua huma- involuntariamente, havia reaberto uma ferida mal fechada e que
nidade. Paul não a vê como alguém que está em conflito com não deve surpreender-se com os gritos da pessoa que fere: a reação
ele e que, nessa guerra, precisa de uma testemunha ou de um de Charlotte não lhe parece desproporcional e, de certo modo,
árbitro; ele é confrontado com uma pessoa que conta uma ex- estava de acordo com a dor que ela sentia.
periência dolorosa e difícil que ocorreu antes que ele apareces- Então, explico a Charlotte e a Paul a minha maneira de
se na sua vida. Charlotte não omite nenhum detalhe e conta, proceder: peço a um dos dois que represente o papel de co-tera-
em pormenores, como nunca pôde ser ela mesma diante dos peuta em relação ao outro e, quando o casal tiver uma sensível
pais. "Se você se comportar bem", dizia o pai, "se for estudio- evolução, peço ao outro que, por sua vez, desempenhe o mesmo
sa, poderá ser um bom apoio para o seu marido e ajudá-lo no papel. Muitas vezes acontece não precisar fazê-lo, tão profunda é
trabalho, de modo que ele se orgulhe de você." Paul e eu ve- a mudança na primeira fase dessa "co-terapia": o ciclo se modifica
mos a revolta de Charlotte quando ela nos conta essa história, e surgem outros elementos, transformando progressivamente esse
no momento em que cita essas palavras, e sinto Paul ferver sistema rígido e repetitivo num todo flexível.

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Como sobreviver à própria família o homem que queria afeição e a mulher que queria ser respeitada

Então eu pergunto a Paul se quer ajudar-me a ajudar Paul observa que, é claro, quer receber afeto, mas compre-
sua mulher a se ajudar. Podemos fazer com que Charlotte ini- ende que, se não o recebeu, foi devido a esse mal-entendido que
cie uma evolução, um desenvolvimento que ela acha ter sido não deseja perpetuar.
interrompido no ovo pelo contexto familiar? Em resumo, po- A cada sessão as coisas vão melhorando até que Charlotte
demos ajudá-Ia a renascer? Essa palavra atinge Paul em cheio. diz uma frase impressionante: "Agora eu tenho problemas, sendo
Será que ele poderia, até a próxima sessão, suspender suas de- que, antes, eu era um problema". Aos poucos, os dois cônjuges
II~ mandas de afeição? Posso, responde ele, pois agora sabe como criam um novo equilíbrio e se livram das dificuldades pelas quais
sua mulher "ouve" tais demandas; e, realmente, ele segue es- passavam e passavam e passavam ...
crupulosamente o caminho que tracei, reconhecendo que, no
fim das contas, não tinha nada a perder, pois, até então, suas Ao se aliar a um membro do casal, o terapeuta havia conse-
demandas tinham sido infrutíferas. guido interromper o processo no qual cada um deles reforçava a
Na sessão seguinte, Charlotte se diz surpresa pelo fato de construção do mundo do outro. Ele conseguira criar novas situa-
o marido não pressioná-Ia; ela achava que se abria, que renascia. ções afetivas que levarão o marido e a mulher a se dar o direito de
Paul presta atenção nessa palavra, que lhe parece essencial. Ele viver outra coisa, transformando pouco a pouco as armaduras em
IIII1
compreende que sua mulher tem necessidade de um espaço para escudos. O escudo é usado para se proteger quando necessário,
realizar essa abertura e até aceitaria que o deixasse se ela achasse sendo que a armadura separa do mundo exterior.
necessário. "De qualquer modo", acrescenta ele, "era preciso sair Podemos tirar um ensinamento desse exemplo que pode
I11
desse movimento circular insuportável." surpreender algumas pessoas: todo casal tem possibilidades te-
Quinze dias depois, Charlotte confirma que tem a impres- rapêuticas; todo casal, em certas circunstâncias, pode evoluir
são de que começa a desabrochar, mas se pergunta se Paul não buscando seus próprios recursos de modo que ambos deixem de
tem uma "atitude paternalista" em relação a ela: ao suspender suas fazer, e fazer,a si mesmos, aquilo cujo resultado conhecem muito
demandas e seus desejos, ele não se comportava como um pai bem. Contudo, para que essas potencialidades se realizem, é pre-
que quer cooperar com o desenvolvimento do filho? Vemos que, ciso que o terapeuta se contente com um espaço mais limitado:
mesmo não sendo mais aquele que exige, Paul continua, para seu retraimento relativo é que permitirá a um dos parceiros, ou
Charlotte, no lugar desse pai que tanto a pressionou na infância. eventualmente aos dois, compartilhar da sua função.
Nós analisamos essa dificuldade surgi da, e Charlotte perce-
be que é ela que tem dificuldade em aceitar que o marido possa
lhe dar espaço porque assim o deseja e não porque age como um
bom pai diante do filho.

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Meu parceiro, meu casamento e eu

Capítulo 11

Meu parceiro,
meu casamento e eu

A
o ler os capítulos anteriores, o leitor pode ter dito a
si mesmo: "Mas, afinal, há uma vantagem em ter pro-
blemas no casamento, pois o outro consolida a minha
construção do mundo e ajuda a reforçar minha armadura para
me proteger do que eu tenho medo. Então, para que fazer uma
terapia? Sei que, nesses casos, os psicólogos falam de 'benefícios
secundários'; mas por que não seriam primários? Por que não
continuar a viver assim?".
Meramente porque as coisas não são tão simples. Porque
estamos divididos, porque podemos querer sair de uma situação
e, ao mesmo tempo, não acreditar que isso seja possível. Pode-
mos benefidar-nos com o reforço das nossas crenças profundas
e, ao mesmo tempo, sofrer com esse reforço, porque essas crenças,
produzidas por decepções repetidas, trazem marcas indeléveis
desses desapontamentos.
É preciso dizer que aquilo de que temos consciência no
nosso funcionamento psíquico, aquilo que nos leva a agir, a que-
rer que as coisas mudem, é o sofrimento. E é nos momentos em
que esse sofrimento é particularmente intenso, em que não pare-

109
Como sobreviver à própria fàmíLia Meu parceiro, meu casamento e eu

ce desembocar em outra coisa que não nele mesmo, que um casal mens ou (o que também às vezes ouvimos) que os homens são,
procuta a terapia. Já citei esses momentos de crise no ciclo da na verdade, mais vulneráveis do que as mulheres! Homens e
vida - partida dos filhos, morte de um parente ou algum outro mulheres, somos feitos de combinações e nosso estofo íntimo é
acontecimento que tende a tornar obsoletas as regras antigas. um patchwork. São elementos sociais, culturais, familiares, his-
tóricos, fisiológicos, biológicos, determinados e aleatórios que
o que, no meu casamento, particularmente me fez sofrer? o tecem, de uma maneira complexa, às vezes inesperada e, em
O fato de o outro ter reagido de uma maneira desproporcional ao última instância, sempre individual.
que eu tenha feito ou dito. Esse sofrimento é compreensível, mas Eu insisto nisso. Os elementos que nos constituem po-
devo conscientizar-me de que aquilo que me pareceu despropor- dem ser determinados, mas a combinação deles é sempre im-
cional era exatamente o que fazia sentido para o outro. Inversa- previsível. É isso o que dá a cada terapia essa cor que só a ela
mente, devo dizer a mim mesmo que uma das minhas palavras, das pertence, e que força o terapeuta a inventar sempre, sem poder
minhas reações ou atitudes que não me pareciam nem dramáticas, seguir modelos preestabelecidos.
nem gigantescas, possa ter desencadeado no outro a tempestade Mas, voltemos ao nosso casal. Quando o outro me diz algu-
inesperada. Tempestade que, se olharmos mais de perto, foi cau- ma coisa que não compreendo, é importante que eu diga a mim
sada pelo despertar de um elemento adormecido que permaneceu mesmo: "Se não compreendo é porque certos elementos me esca-
inofensivo talvez por muito tempo, mas que, devido ao imprevisto pam, mas, de algum modo, isso tem sentido para ele". Retomando
de uma situação, encontra toda a sua virulência. uma frase famosa da escola de Palo Alto, "não é possível não se
comunicar"; da mesma forma, não é possível não ter sentido.
Podemos reduzir essas divergências e essas incompreen- Porém, como compreender o que não compreendo mas tem
sões entre os parceiros de um casal a diferenças de cultura, de sentido para o meu parceiro? Isso é ainda mais difícil porque, mui-
meio social ou de sexo? Acho que não. Lembro-me de ter visto tas vezes, a p~ópria pessoa é incapaz de explicar por que reagiu desse
um programa de televisão nos Estados Unidos em que o "psi- jeito. A única coisa de que posso ter certeza é que toquei num pon-
cólogo de plantão" declarou abertamente: "Vejam, caros reles- to importante para ela - a intensidade da reação comprova isso.
pectadores, quando uma mulher diz a um homem alguma coisa Portanto, mesmo que não compreenda, posso simplesmente ouvir
que o fere, é isto que ocorre" (ele joga uma pedra numa tábua), o que tem sentido. Ouvir o que não se compreende? Pois bem, sim,
"mas, quando um homem diz a uma mulher alguma coisa ofen- é possível e é até fundamental. Isso consiste em não desqualificar a
siva, é isto que ocorre" (e ele joga na tábua uma pedra enorme mensagem enviada pelo outro - mesmo sem que ele perceba - e
que a quebra em dois pedaços). Que simplismo acreditar que em recebê-Ia como mensagem, mesmo que eu não decifre o conte-
as mulheres são necessariamente mais sensíveis do que os ho- údo e mesmo que não esteja de acordo com o que sinto.

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Como sobreviver à própria fàmília Meu parceiro, meu casamento e eu

Mas, talvez o leitor diga, isso é fazer pouco-caso das respon- intensa em que o sofrimento é tanto que, realmente, procuramos
sabilidades reais de um e do outro! Ouvir, pode ser, mas e se for o remanejar o papel desempenhado nesse roteiro no qual estamos
outro o errado? Eu respondo que o fato de o outro estar "errado" aprisionados. Então, em vez de pular por causa desta ou daquela
não impede que se tente compreender as razões do seu compor- reação do nosso parceiro, é melhor se perguntar: "O que ele disse
tamento, e ainda acrescentaria que a prática me mostra que, na que eu não compreendo e que, mesmo assim, tem sentido?".
maioria dos casos, os dois, de fato, têm razão - o meu parceiro Talvez alguns de vocês me respondam: ''Ah! Está bem! En-
teve razão de explodir quando me expressei, pois desencadeei, tendi o que quer dizer, senhor Elkaim. Está tentando fazer-nos
sem querer, um maremoto que o invadiu, e tenho razão de ficar co~preender que é preciso evitar os mal-entendidos. É preciso
estupefato com essa reação cataclísmica pela qual não esperava. evitar, por exemplo, ouvir o que a minha esposa me diz de uma
A partir de então, o problema muda de natureza. Não maneira que me impeça de compreender as motivações ocultas
interessa saber quem está errado ou quem tem razão, e sim criar da conduta dela, o que a 'age', como o senhor diz no seu jar-
uma situação em que a paz possa ressurgir entre nós. A lógica gã9" Oxalá as coisas fossem tão simples assim! Infelizmente,
do "quem está errado? quem tem razão?" é insidiosamente per- não é esse o caso. Pois não é a minha esposa que está em jogo,
versa, pois supõe que, se um está errado, o outro fatalmente tem eu também estou, de modo que aquilo que aparece como um
razão: essa lógica funciona como um sistema binário. Aconte- ~al-entendido é, freqüentemente, um bem-entendido. É pos-
ce que é exatamente esse modo de ver as coisas que devemos sfvel que eu tenha esculpido a minha esposa, na nossa relação
esforçar-nos para abandonar - não é porque eu tenho razão de casal~para que ela aja da maneira que age, para que eu possa
que o outro está errado. Reconhecer que ele tem suas razões me del~Itar no papel do prisioneiro que se queixa de que a sua
não significa que eu esteja errado. E mesmo que eu tenha ra- carcereira o mantém preso.
zão, a vivência do outro e a dor dele são importantes e devo Imaginemos, por exemplo, que eu queira que a minha
reconhecê-Ias. Não posso julgar o outro por mim. Se quero ir ao parceira não fique contra mim, mas, ao mesmo tempo, a minha
encontro dele, devo fazê-lo na sua alteridade, no que constitui a construção' do mundo seja de que as pessoas só podem ficar
sua singularidade, e aceitar nossas diferenças. contra mim; o fato de ela agir como se estivesse contra mim
Evidentemente, é mais fácil dizer do que fazer. Por quê? é um. bem-entendido, pois reforça a minha crença profunda.
I1 Porque tanto num casal quanto numa família, somos "agidos"- ~maglllemos que, além do mais, a minha companheira tenha a
que me perdoem o recurso - por regras que não são redutíveis Impressão de que não a amo; se a sua crença profunda for exa-
I
à vontade de um, do outro, nem à soma dos dois. Estamos num tam~nte a de que não pode ser amada, essa crença sai reforçada
I carrossel que gira contra a nossa vontade e que nos faz girar mes- da situação, que, no fundo, não tem nada de mal-entendido.

I mo que não queiramos. Mas às vezes ocorre um momento de crise Ouvir o que o outro diz, dizendo a si mesmo que isso tem senti-

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Como sobreviver à própria fàmília Meu parceiro, meu casamento e eu

do para ele, é, portanto, um trabalho bem mais delicado do que te em desistir de sair de uma situação bloqueada, mas em tentar
parece, pois vai contra esse prazer que temos juntos em sentir e tentar de novo sair dela, sem se dar os meios reais de fazê-Io.
que, decididamente, a comunicação não é possível entre nós. Vivenciei experiências dolorosas, vou tentar não revivê-las, mas
Temos de renunciar a esse benefício secundário que consiste em tenho tanto medo de revivê-las que não vou me expor. Acontece
se considerar simplesmente um prisioneiro, quando, na verda- que só se eu me expuser é que outra coisa, que não a repetição,
de, somos prisioneiros e carcereiros - em resumo, temos de poderá advir. Vou à luta, armado, encouraçado e protegido.
renunciar ao prazer de que o errado seja o outro! Mas é justamente essa armadura e essa couraça que vão assustar
Esses benefícios secundários podem ser muito importan- o outro e, quando ele vai embora, eu me surpreendo ("Mas, por
tes. Eles explicam o paradoxo com os quais somos confronta- que ele foi embora?"); quando ele se encouraça, também me
dos: por que esses casais em que os dois parceiros sofrem, e surpreendo ("Por que ele se protege, sendo que dei um passo
fazem o outro sofrer, continuam juntos e muitas vezes por um na direção dele?"). Mas o outro não poderia saber que cheguei
longo tempo? É claro que inúmeros fatores entram em jogo e encouraçado unicamente para me proteger, caso me atacasse.
na terapia sistêmica sempre desconfiamos dessas explicações li- Tudo o que ele vê é que sou um agressor! Freqüentemente, vive-
neares (tal coisa causa tal efeito); provavelmente temos de lidar mos um processo como se fôssemos atacados, mas somos vistos
com vários conjuntos de elementos (problemas econômicos, como atacantes. As armas ofensivas e as armas defensivas são as
contexto cultural, elementos pessoais diversos de ordem afetiva mesmas: com uma espada, podemos nos defender de um agres-
ou psicológica); mas tais benefícios secundários podem muito sor ou atacar um homem para lhe roubar a carteira!
bem ser elementos determinantes num conjunto. O que impede um casal infeliz de voar em pedaços, além
E, além do mais, continuo com o outro porque já houve, dos benefícios secundários que os dois parceiros retiram da situ-
antes, um acordo entre nós: ambos pensamos que poderíamos ação, a despeito do sofrimento? Simplesmente a esperança! Eu
resolver juntos, construir ou compreender alguma coisa, e esse sempre espero progredir, espero que a minha vivência profunda
acordo, que é a base do nosso casamento, inegavelmente nos é vá se juntar ao que desejo no nível consciente, que vou realizar o
caro. Mas essa esperança de caminhar para a mudança, de al- salto que me fará passar da minha construção do mundo para o
gum dia vencer a repetição e seu cortejo mortífero de impasses, meu programa oficial, projetando uma ponte entre os dois. Todas
de não ser mais bloqueado por nossas próprias construções que as vezes, digo a mim mesmo: "Desta vez falhou, mas tentarei de
respondem uma à outra e se reforçam, se choca com os nossos novo". Essa esperança é profunda, pois é a esperança de não mais
medos. Temos tanto medo de que esses esforços fracassem que ficar dividido, é uma esperança louca de reconciliação comigo
criamos o contexto que permite esse fracasso. Encontramos aqui mesmo. Eu preciso do outro para me encontrar na situação de
a "repetição" de que os psicólogos falam tanto - ela não consis- tentar de novo. Ainda quero tentar uma aposta no cassino da

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Como sobreviver à própria fàmília
Meu parceiro, meu casamento e eu

vida, pois, quem sabe, desta vez eu acerte. E essa esperança se jun- Infelizmente, quase todo o tempo, a fala do outro ocorre
ta ao benefício secundário que é a consolidação da minha cons- na estrutura circular que construímos juntos e na qual está tão
trução do mundo - as duas dinâmicas se combinam. Mas como preso quanto eu. Por efeito dessa estrutura, é assim que ele
eu avanço sem me expor, só posso ser sentido pelo outro como fala, e continuará a falar, graças ao encorajamento fornecido
um atacante e todas as vezes perco a aposta. Então, só me resta por minhas reações.
tentar a sorte novamente e voltar a me sentar à mesa de pôquer. Como, então, um dos dois pode, unilateralmente, interrom-
Infelizmente, a partida está perdida por antecipação, pois per esse processo? É aqui que a intervenção da terceira pessoa, que
não analiso o processo dessa esperança, não tento compreender o é o terapeuta, pode ser necessária: essa intervenção pode desblo-
que, na sua essência, torna-o um processo sem esperança. E passo quear a situação e abri-Ia a novas possibilidades. Mas eu, ou o meu
a ser aquele que participa do próprio fracasso, em busca de uma parceiro, também podemos ser essa terceira pessoa. Não é ine-
esperança da qual preciso, sobretudo porque cada vez acredito vitavelmente necessário que sejamos realmente três: posso tentar
menos nela. Como Sísifo com um duplo rochedo, eu empurro assumir esse lugar mesmo que sejamos apenas dois. Se estiver con-
uma pedra que num dos lados tem a mensagem "esperança" e no vencido de que a caridade bem entendida só pode começar pelo
outro tem a inscrição "desesperança". Empurro para que o lado outro, talvez eu possa fazer aparecer coisas novas. Não se trata de
"esperança" apareça, mas assim que aparece, ele dá lugar ao outro, renunciar a todas as armas em todos os momentos, mas de trocar
enquanto o movimento continua ... a armadura por um escudo - esse escudo me protegerá quando
O que fazer, então? Expor-me ao avançar? Mas será que for necessário e poderei deixá-Io de lado quando não precisar mais
não corro o risco de me deixar devorar pelo outro, que está tão dele. Se não usa-lo de vez em quando, aceitando não me defender
acostumado a me ver como atacante que, mesmo que eu desista todo o tempo por medo de ser atacado, criarei aos poucos uma
do ataque, continuará a me considerar um agressor? Quando te- nova configuração. O outro verá que eu depus o escudo e, por
nho nas mãos todas as cartas para provar que o outro está errado, esse fato, começará a se sentir menos agredido. Encorajado pelo
podem pedir-me que não as abaixe? Passar, quando se tem uma aparecimento progressivo dessa base de segurança, ele perceberá
boa mão, não é pedir demais aos jogadores que todos somos? gradualmente que não mantenho mais esse ciclo a dois: o risco
Talvez não, se mantivermos em mente que passar, nesse de desilusão diminuirá e ele poderá pensar em retirar a armadura.
caso, é ganhar. Para reconhecer que aquilo que o outro diz tem Mas esse é um trabalho que, se não for de longa, será de
sentido, preciso renunciar à minha necessidade de achar que ele média duração. Ao me dar conta de que aquilo que eu considerava
está errado. Não existe outro caminho. Essa é a única via que um mal-entendido é, na verdade, um bem-entendido, que arruma
permite ao outro entrar na dimensão em que poderá reconhecer não só as coisas do outro, mas as minhas também, e que a reação
que eu também tinha razão. do outro, que me parecia desproporcional, está ligada ao fato de

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Como sobreviver à própria família Meu parceiro, meu casamento e eu

eu incitá-lo, por minhas próprias reações e comportamentos, a fracasso. Talvez ele tenha o sentimento de que faço um discurso
reagir assim, vou compreender que só posso agir em mim para não só epistemologicamente errôneo, mas, além disso, que pro-
tentar interromper o processo. Mas isso só pode ser feito se for voca a culpa e que é, até mesmo, moralizador. Sinto que minhas
criado progressivamente um contexto de segurança que resista aos propostas podem dar à pessoa que não consegue sair do impasse
ataques repetidos que o outro fará para reforçar a sua crença do a impressão de que erra ao não sair dele. Longe de mim esse pen-
mundo e voltar à situação de prisioneiro. O que quer que aconte- samento. Pois ele não leva em consideração que estamos presos
ça, manterei a porta da nossa prisão aberta - a responsabilidade é no ciclo, que somos, como já disse, "agidos". Como conside-
do outro se quiser continuar na sua cela, se a achar bem aquecida, rar o outro como uma possibilidade, quando eu mesmo estou
agradavelmente arrumada, mobiliada com gosto. Porém, eu não mergulhado numa estrutura que faz com que eu seja agido para
mais representarei o papel de carcereiro. E, se ele quiser continuar recusar sua alteridade? Se sou prisioneiro desse contexto, não é
na sua cela a qualquer preço, respeitarei a sua escolha. porque tomei, unilateralmente, a decisão de me fechar. As injun-
ções moralizadoras são, portanto, ineficazes e até inoportunas. O
Outra perspectiva poderá aparecer, trazendo novas possi- caminho que indico é diferente.
bilidades. No entanto, todos os problemas serão resolvidos? In- Se sou agido, qual é a minha parte de liberdade, ou seja, de
felizmente, não. Depois de resolver um conjunto de problemas, responsabilidade? Este livro tenta, justamente, dar as ferramentas
acontece, com muita freqüência, surgirem outros, que os primei- para que o leitor possa agir sobre o que age nele. Tenho indivi-
ros, maiores, mais importantes, encobriam. No entanto, não vol- dualmente a possibilidade de começar a desmontar a armadilha
tamos ao ponto de partida. Temos de vencer o desânimo de que que nos aprisiona, quando me interrogo sobre a função da minha
somos tomados quando, depois de fazer muito esforço para ul- vivência em relação ao contexto em que ela emerge.
trapassar um obstáculo e tê-lo vencido, descobrimos que não era Mas como descrever a saída para duas pessoas às quais dize-
o último. A nossa barca passou a primeira eclusa e chega a uma mos que se construíram mutuamente para não vê-Ia?
segunda. Pois bem, passaremos por essa segunda eclusa, depois Talvez fazendo-as compreender que o outro, o "inimigo
pela terceira, até o momento em que pudermos passar por todas íntimo", não é o responsável pelo seu tormento e sim a relação
as outras sem a ajuda de uma terceira pessoa. Nossos problemas tecida entre eles. Então, podemos deixar de ser inimigos que bri-
serão apenas "problemas da vida cotidianà' e sabemos que temos gam e, ao contrário, começar a nos aliar contra a relação que nos
em nós mesmos os recursos para resolvê-los. prende numa armadilha.
Talvez o leitor tenha dificuldade em se convencer de que, Na maioria das vezes é o terapeuta, essa terceira pessoa li-
numa situação totalmente bloqueada, uma iniciativa unilateral bertadora que, ao abrir espaço, pode oferecer essa nova chance,
não seja fatalmente inútil, nem esteja inevitavelmente fadada ao esse novo devir.

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Um segredo de família

Capítulo 12

Um segredo de família

U
ma família entrou para a consulta. Era composta de
três filhos (um menino e duas meninas) e os pais
. deviam ter por volta de cinqüenta anos. A "pacien-
te designada'", como dizemos no nosso jargão, sofria de uma
grave anorexia. Ela teve de ser hospitalizada, mas, infelizmen-
te, não melhorou muito e o médico que a tratava no hospital,
sabendo que o estado da menina exigia também um acompa-
nhamento psicoterápico, encaminhou-a para mim, esperando
que um trabalho com a família pudesse repercutir positiva-
mente no estado da paciente.
Na primeira sessão, a mãe falou sobre a grande perda de
peso da filha. Estelle (20 anos) reconheceu que tinha "um pro-
blemà', e àcrescentou, de maneira surpreendente, que não queria
"ser a única a carregá-lo". Naturalmente, essa frase não caiu em
ouvidos moucos e imediatamente me perguntei qual seria a na-
tureza do "problema" ao qual ela fizera alusão. Tratava-se de uma

8 Na teoria sistêmica, é o próprio sistema (a família, a empresa, o grupo etc.) que é parológico,
o que explica por que a ação do terapeuta deve se siruar nesse nível e não no de um indivíduo
isolado. No entanto, é comum que uma família faça uma consulta essencialmente por causa de
um problema, de um sintoma ou do distúrbio de um de seus membros (a filha anoréxica, o filho
violento erc.). É essa pessoa que é designada ao terapeuta como "o paciente".

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Como sobreviver à própria fàmília Um segredo dê' fàmília

dificuldade do pai, da mãe, do irmão, de um momento difícil no exatamente, mas tinha a intuição de que se tratava de um segredo
equilíbrio da família, de uma cena traumática, de um segredo em família. Não era isso que Estelle dizia por meias palavtas?
descoberto? Enquanto eu me fazia essas perguntas, a mãe men- Na quarta sessão, o pai, a quem eu havia acabado de cumpri-
cionou o seu difícil relacionamento com a família do marido. mentar, estranhamente me disse: "Lembra-se do meu nome?". Um
Tinha a impressão, disse ela, de que não era tratada como deveria pouco surpreso, respondi: "Lembro, é claro". ''Ah! É porque acabou
ser e que, aliás, na sua infância, havia sido igual, também não era de ler o dossiê ..." - acrescentou num tom resignado que me impres-
respeitada. Ela se queixou de não receber o suficiente dos outros, sionou, pois percebi que aquele homem não acreditava que pudesse
mas, ao mesmo tempo, sentimos que não ousava reivindicar. En- ter importância para alguém, que pudesse ter um lugar próprio no
quanto isso, o pai não disse uma palavra, dando a sensação de que grupo familiar. No fundo, a sua "visão do mundo" era parecida com
estava fora da família por intervir tão pouco. O irmão e a irmã a da mulher: tanto um quanto o OUtro tinham dificuldade ettl acre-
falaram, mas apenas sobre a anorexia da irmã. ditar que pudessem encontrar um lugar em qualquer situação.
Na sessão seguinte, percebi que Estelle queria abordar um Foi então que Estelle interferiu de maneira decisiva: "Ou-
assunto importante, mas também senti que os outros membros çarn", disse ela, "ou eu sou anoréxica e ponto final, e o único
da família se mostravam reticentes quanto a essa decisão. Então, problema é que, de uma maneira ou de outra, preciso recuperar o
procurei fazer todo o possível para que a jovem, que queria falar, peso, ou minha anorexia está ligada ao contexto familiar e estou
não se sentisse na obrigação de fazê-lo imediatamente. Esforcei- preparada para falarmos sobre ele". Então, perguntei aos outros
me para tranqüilizá-Ia: "Temos tempo, não vale a pena falar ago- participantes como pretendiam reagir àquelas palavras. Todos me
ra, não há pressa, você falará quando estiver preparada para fazê- disseram que não sabiam a que ela se referia, exceto a mã-, que
10, e quando todo o mundo estiver preparado para ouvi-Ia". Ao aventou uma interpretação hipotética: "Talvez ela queira falar do
mesmo tempo, fiquei intrigado. Eu me perguntava o que a jovem temperamento difícil de Laurent" (o filho de 29 anoS que acabara
podia ter a dizer que causava tanto medo à família e me indaguei os estudos e que agora era um executivo numa empresa). Emma,
sobre como criar um contexto familiar que permitisse a Estelle a irmã mais velha, de 24 anos, me disse enigmaticamente: "Ora,
falar com menos medo. Dediquei duas sessões a "flexibilizar" as tudo isso já passou". Todos se viraram para mim e, no olhar, exi-
regras familiares, isto é, a modificar o clima dessa família para biam medo e, ao mesmo tempo, expectativa. Estava claro que,
que todos se sentissem ajudados e tivessem a sensação de haver confusos, esperavam de mim alguma coisa, mas temiam que eu
encontrado alguém com quem podiam contar para atravessar esse fizesse o que quer que fosse.
momento difícil. Era preciso que os membros dessa família con- Então, perguntei a Estelle: "Quantos anos você tem?"
seguissem se abrir e que as relações entre eles se tornassem menos - Vinte anos.
rígidas, o suficiente para fazer eclodir ... o quê? Não podia dizer - Não, Estelle, quero saber a sua idade verdadeira.

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Como sobreviver à própria família Um segredo de família

- Sete anos ... - respondeu-me ela, depois de um cur- Como essa sessão memorável ocorreu antes das férias, só
to silêncio. voltei a ver a família três semanas depois. Estelle anunciou que
- E o que você viu aos 7 anos, Estelle? havia engordado seis quilos, que já estava cansada de ficar no
A jovem caiu em prantos e abraçou a irmã, pronunciando hospital, mas que ainda precisava engordar quatro quilos antes
desculpas incompreensíveis. O pai se levantou e propôs à esposa de voltar para casa. A mãe voltou a falar no seu problema: só
que saíssem e deixassem os filhos sozinhos comigo. Esse compor- podia contar consigo mesma e não recebia o apoio da pró-
tamento dos pais, evidentemente, era significativo: mostrava que pria família, como quando era criança. Mas reconheceu que,
não queriam, ou não podiam ouvir aquilo de que, na verdade, sus- talvez, não soubesse receber o que queriam lhe dar. Laurent
peitavam. Provavelmente, o pai achava que, se as coisas precisavam fez questão de dizer à irmã que estava feliz por ela estar me-
ser ditas, era a mim que deviam dizer e não a ele, e a mãe também lhor e que compreendia a doença dela, mesmo que se sentisse
não ousava desempenhar o papel que lhe cabia na família. impotente para ajudá-Ia. "Agora eu sei", acrescentou, "que a
A pedido meu, os pais aceitaram ficar e Estelle se aproximou felicidade existe."
de um por um, chorando e abraçando-os. Em seguida, ela se sentou Ele havia até começado uma psicoterapia por conta própria,
enrodilhada numa poltrona, imóvel e em silêncio. Para acalmá-Ia, pois, disse ele: "o peso que eu sentia dentro de mim desapareceu
observei que tínhamos muito tempo e que ela poderia falar quando e não sinto mais a barreira que me separava da minha irmã".
quisesse, quando se sentisse preparada. Mas foi o irmão quem to- Emma também disse estar aliviada. O relacionamento com o ir-
mou a palavra: "Não, não", disse ele com firmeza, "é preciso furar mão havia melhorado e ela se sentia bem com o namorado, que
o abscesso. Estou preparado para o que ela vai falar". ela compreendia melhor e com quem se comunicava mais.
A jovem contou, então, que aos 7 anos tinha visto o irmão Mas Estelle se entregou a uma descrição crítica da famí-
acariciar sexualmente a irmã Emma. Essa revelação teve o efeito lia: ''Aqui, é cada um por si", afirmou, "só se pode contar con-
de um trovão. A emoção, contida por muito tempo, tomou conta sigo mesmo, e pronto. Francamente, estou cheia de bancar a
da família e ninguém conseguiu reter as lágrimas. Deixei que a faxineira p~ra todo o mundo". Quanto mais ela desenvolvia o
sessão se prolongasse e fiz o melhor que pude para dar apoio a to- tema, mais eu percebia que o seu discurso repetia, quase palavra
dos. Eu queria que saíssem com a firme impressão de que tinham, por palavra, o da mãe, a qual, de repente, endossou: "Tenho a
eles mesmos, os recursos para enfrentar o que havia surgido. To- impressão de não ser reconhecida. Eu me sinto como uma fa-
dos me agradeceram antes de sair e viram que eu compartilhava xineira". O uso do mesmo termo, numa espécie de eco verbal,
a emoção que sentiam. Eu não esperava que ocorresse tão brus- era sinal da proximidade que veio a lume, confirmada pela frase
camente essa abertura na família, nem que os pais saíssem tão de impressionante que a mãe pronunciou em seguida: "Se eu me
repente da sua reserva e do mutismo no qual se haviam fechado. sentir bem, Estelle se sentirá bem".

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Como sobreviver à própria fàmília Um segredo de fàmília

Na sessão seguinte, a jovem, aparentemente, mudou de "Pode ser", respondeu Estelle, "mas tenho dificuldade em conse-
registro: "Sou uma menina. Não posso saber de nada". Essas guir o meu espaço na família. Como se eu fizesse mal a alguém ao
palavras talvez surpreendam o leitor, mas uma tal apresentação ocupar o lugar que gostaria."
de si mesma é freqüente nas anoréxicas. Alguns terapeutas, É realmente possível abrir um espaço de autonomia sem
como Mara Cilene Palazzoli, insistem na queda-de-braço tra- rejeitar o outro? Essa era a pergunta que iria dar o tom essencial
vada com o resto da família ou, em todo o caso, com alguns às sessões seguintes.
membros, e o esforço que fazem para serem mais importan- "Não se pode dar marcha à ré", disse a mãe. "Não se pode
tes para eles ou para existir mais. Estelle acrescenta: "Mesmo voltar a ser como antes. Como ser unidos se estamos separados? É
assim nos comunicamos, graças às nossas brigas". Ela mostra isso o que me pergunto hoje em dia. Reconheço que sinto falta da
que os conflitos familiares eram uma maneira de estabelecer união. É verdade que gosto muito quando estamos todos juntos
um vínculo que, senão, seria difícil e até mesmo impossível. e compartilhamos um momento de felicidade, como uma boa
O que, aliás, foi confirmado indiretamente pelo pai, que só refeição ... "
saiu do seu mutismo para comentar o seu silêncio e o de toda Ali estava uma mãe que queria que todos participassem da
a família: "É verdade que eles não se exteriorizam muito, sabe, sua refeição, mas não suportava a autonomia dos convivas, e uma
eles têm a quem puxar", acrescentou, apontando para si mes- filha que não participava da refeição da mãe, pois era anoréxica.
mo. Diagnóstico confirmado pela esposa, que acrescentou, a A situação se esclareceu, as coisas mudaram, e a sessão
,.
respeito d a filh a anorexica: "EI'a e o meu re fl"exo . "M amae
-" ,
seguinte trouxe seu punhado de boas notícias. Estelle havia en-
disse então Estelle, "tem dificuldades que vêm da sua juven- gordado, saíra do hospital e a atmosfera familiar estava mais
tude." "Tenho, mas não sou a única nesse caso", replicou a descontraída, segundo Laurent, que continuava com a psicote-
interessada, mostrando o marido. rapia. Estelle agradeceu à família pela ajuda que lhe tinha dado
Como este último não replicou, a mãe continuou: "Sabe, e a mãe agradeceu a ela por ter possibilitado que todos mudas-
eu receava que a anorexia da minha filha tivesse ligação com os sem. Emma continuava a se sentir melhor. Alguns meses depois,
meus problemas". Talvez ela esperasse que Estelle a tranqüilizasse Estelle atingiu o peso normal, disse que tudo corria bem para
sobre esse ponto, mas as palavras da filha não foram nesse senti- ela e que até havia encontrado um trabalho.
do: "Eu carrego os problemas da minha mãe", disse Estelle. "Exis- Que ensinamentos podemos tirar dessa história? Em pri-
te um vínculo entre minha mãe e mim que me dificulta qualquer meiro lugar, o seguinte: o segredo tinha uma função no contexto
tentativa de autonomia. Sou a caçula, mas tenho a impressão de familiar. Para que ele servia? Para unir a família no silêncio. Na-
ouvir sempre a minha mãe dizer: 'Não me deixe sozinha, prote- quela família em que o pai não falava, o filho se calava, a filha
ja-me, ajude-me". "Mas eu nunca pedi isso!", protestou a mãe. mais velha falava pouco e a mãe sofria com o mutismo que a

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.' ,_.- ai; !

Como sobreviver à própria família Um segredo de família

cercava, o segredo que planava transformava o silêncio em víncu- pode explicar uma patologia. Vimos como, nesse caso, ele estava
lo. O grupo encontrava nele a sua coesão, mesmo que fosse pelo cercado por elementos complementares. Existia o vínculo insatis-
preço do sofrimento dos seus membros. fatório de uma mulher com o marido que não participava muito
De uma forma bastante paradoxal, seria possível descrever da vida familiar e não apoiava muito a esposa, sobretudo no que
os segredos familiares com termos parecidos aos que Foucault se referia à família dele, obrigando-a a se voltar para os filhos e a
usou para caracterizar o "enunciado" - que, ao mesmo tempo, pedir o que o marido não podia lhe dar; um filho jovem já envol-
não está visível e não está oculto. O segredo cumpre a sua função vido pela vida profissional e uma filha mais velha preocupada com
ao invadir todo o espaço e ele o invade exatamente porque sua a experiência amorosa; uma mãe que, ao se ver isolada no meio do
existência é negada. Ao mesmo tempo, ele permite a um tema grupo familiar, transfere tudo para o vínculo que tinha com a filha
não visível cumprir o seu papel. O segredo só é segredo para que caçula; a relação entre um irmão e uma irmã que se tornara extre-
se "fale sempre" dele, Nesse sentido, poderíamos aproximar essas man:ente difícil por um acontecimento anterior; uma filha mais
considerações da análise que Michel Foucault faz do discurso so- nova que, monopolizada por sua relação com a mãe, sofria terri-
bre a sexualidade em A vontade de saber - é quando reprimimos velmente com a sua própria dificuldade de se autonomizar, mas
o sexo que falamos mais sobre ele, Deleuze insiste sobre esse ponto que não podia fazê-lo sem ter a impressão de que se separava de
no seu livro consagrado a Foucault, citando-o: "O que é próprio uma mãe que precisava tanto de ajuda, aliás, tanto quanto ela ...
das sociedades modernas não é terem condenado o sexo a perma- Confrontado com o segredo, o terapeura não deve pôr o
necer na obscuridade, mas sim terem se devotado a falar dele sem- foco nele - para que as coisas mudem, é preciso que o terapeuta
pre, valorizando-o como segredo", A função do segredo no sistema trabalhe na combinação à qual o segredo pertence. É preciso que
familiar pode ser aproximada desse tipo de enunciado, que nunca ele se esforce para tornar a situação familiar bem flexível para que
está oculto e, no entanto, não é diretamente dizível, nem legível. o segredo possa ser liberado, sem que haja, por assim dizer, um
Assim como Deleuze que, na sua obra sobre Foucault, afirma que "choque como resposta". Isso porque sempre se teme um choque
o enunciado só permanece oculto se "não nos erguemos até as quando o segredo é revelado e a situação ainda é rígida, e ele
condições exaustivas; ao contrário, ele está lá e diz tudo, quando ainda cumpre uma função. A família pode, então, se fechar com-
atingimos as condições", poderíamos dizer que o segredo familiar pletamente e as coisas, em vez de melhorarem, podem piorar. Foi
está ali e diz tudo quando permitimos que sua função não seja por isso que tomei tanto cuidado em não precipitar a revelação:
mais tão necessária ao equilíbrio do sistema humano em jogo. ontemporizei enquanto a situação não estivesse madura e, no
Segundo ensinamento: não é porque existe um segredo que momento da revelação traumatizante, prolonguei a sessão para
necessariamente tudo gire em torno dele. Um segredo sempre faz que os membros da família saíssem sentindo-se aliviados, com a
parte de uma combinação de elementos que, na sua globalidade, s .nsação de uma melhora e não de um aumento de tensão.

128 129
o navio fantasma
Como sobreviver à própria família

o segredo tem uma virtude hipnótica, não apenas para o~


membros da família, mas também para o terapeuta. Como ele e
espetacular, nossa atenção se concentra nele, levand~-nos a ~en-
sar que basta que ele seja revelado para que tudo esteja resolvido.
Capítulo 13
Mas um caso como esse mostra, visivelmente, que se devem levar
em conta todos os elementos que cercam o segredo e lhe dão
lugar, fazendo-os emergir progressivamente e trabalhando para
o navio fantasma

o
moderá-los - senão, a chocante revelação, não ocorrendo no
capítulo anterior nos mostrou a função do segredo na
momento nem no contexto certos, não passará de uma fonte de
manutenção do equilíbrio familiar, hic et nunc. Ago-
dificuldades suplementares.
ra, queria abordar uma outra dimensão do segredo e
most~ar como ele pode se reproduzir de uma geração para a outra
e servir de vínculo pela sua própria transmissão.
Para ilustrar minha afirmação, usarei um filme famoso de
François Truffaut, Os incompreendidos, em cujo enredo, confessa-
do pelo próprio cineasta, há muito da sua própria biografia.
Vamos relembrar a história. Um menino de 14 anos, Antoi-
ne Doinel, tem uma mãe muito pouco maternal, que o repreende
constantemente e não pára de lhe dar ordens ("Vamos, pegue meus
chinelos, [...] no quarto, embaixo da cama!", "Preciso de farinha,
vá comprar já!"). Realmente, essa mãe não parece transbordar de
amor pelo filho. É quando o marido lhe pergunta: "O que vamos
fazer com o garoto nas férias?" e ela responde, sem pestanejar: ''As
colônias de férias não foram feitas para cachorrinhos!".
O pai é mostrado como um homem simpático, em geral
cúmplice do filho, a quem ele amola chamando-o de "enfarinha-
do", brincadeira que aparentemente só diverte a ele mesmo. Um
terapeuta que tratasse dessa família certamente perceberia uma
"coalizão" do pai e do filho contra a mãe.

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Como sobreviver à própria fàmília o navio fàntasma

Mas eis que ocorre um fato fundamental. Antoine, que não centa: "Foi a minha mãe". "Sua mãe, sua mãe? O que ela tem?"
era um aluno modelo, mata aula com um amigo. Por acaso, ele "Ela está morta." O professor (que se perguntava o que esse aluno
surpreende a mãe com um homem, sendo que ela deveria estar no imaginativo e rebelde ia inventar dessa vez) teve de aceitar ... Mas,
trabalho. A mãe também o vê. para azar de Antoine, um de seus colegas, menino mal-inten-
Quando o adolescente volta para casa, o pai lhe diz que se cionado e malvado, foi contar aos pais dele que o filho faltara à
a mãe não está é porque o chefe "precisa dela para o balanço de escola no dia anterior. Os pais chegam às pressas. Ao descobrir a
fim de ano" e que eles vão comer "entre homens". Nesse tête-à- mentira, o pai dá um tapa na cara do filho diante de todo o mun-
tête, ele reconhece que a mãe tem sido "um pouco dura" com o do e Antoine foge com o amigo, depois de escrever um bilhete de
filho, mas acrescenta que "era preciso se colocar no lugar delà'. explicação: "Compreendo a gravidade da minha mentira. Depois
E, diante do menino silencioso, começa a justificar a rigidez da disso, a vida entre nós não é mais possível".
esposa - as mulheres eram sempre exploradas e, além disso, o Mas de que mentira se trata? Da que ele conta ao profes-
apartamento era muito apertado, etc. sor ou o fato de mentir ao pai ocultando o comportamento da
Antoine não diz nada. Sem querer, está preso nas malhas de mãé? É como se a mentira evidente, oficial, encobrisse a outra.
um segredo que não pode revelar. Mas a mentira evidente também pode suscitar algumas pergun-
Quando a mãe volta para casa, ele ouve os pais discutirem. tas. Por exemplo, a que é feita pela mãe - por que Antoine ha-
O pai pergunta para a mãe: "Viu o meu guia turístico?". "Pergunte via "matado" a ela e não ao pai? "É uma questão de preferência",
ao menino", responde ela, secamente, e quando o marido assegura responde, fleumático, o marido.
que já o fez, ela replica, decisiva: "Ele sempre mente". "Como al- Quanto ao nosso fugitivo, nós o vemos na rua, tomando
guém que conheço", responde o pai, que acrescenta: "Dei o nome leite numa garrafa como se fosse uma mamadeira. A mãe vai
para ele! Eu o sustento." "Já chega de reclamações", replica ela, procurá-Ia e o encontra. E a situação muda completamente:
"está certo, vamos mandá-Ia para os Jesuítas." "Meu pobre querido! Você está bem?", pergunta ela, solícita.
E é dessa maneira que Antoine ouve, muito sem querer, um A mãe leva Q menino de volta para casa, dá-lhe um banho, põe
segundo segredo: o homem que ele achava que era seu pai na ver- Antoine na cama dos pais e fala com ele afetuosamente. "Tam-
dade era seu padrasto. Essa revelação vem junto com a descober- bém já tive a sua idade [...] Eu não queria confiar nos meus
ta, ainda mais angustiante, de que a mãe está prestes a rejeitá-Ia. pais." A mãe confessa que escrevia um diário e que algum dia
Entretanto, a criança tem de justificar a ausência na escola lhe mostraria. Ela se apaixonara por um jovem pastor, mas a
e não sabe o que dizer. "Quanto maior a mentira, mais fácil de mãe a proibira de se encontrar com ele e nada revelara ao pai.
passar", garante o colega. Por isso, ao professor que lhe pede o "Chorei muito, mas obedeci. Pois sempre se deve obedecer à
bilhete de justificativa, Antoine responde: "Não tenho", e acres- mãe. Podemos compartilhar alguns segredinhos."

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Como sobreviver à própria família o navio fantasma

Essas palavras e esse comportamento mudam radical- atenção do adolescente! Mas a genialidade de Balzac não salva
mente a situação. De uma coalizão do pai com o filho contra a Antoine - o professor descobre o segredo, manda embora
mãe, passamos para a proposta da mãe de uma coalizão contra o adolescente e o proíbe de comparecer à aula até o fim do
o pai, que reproduz sua coalizão com a própria mãe contra o trimestre.
pai, quando ela era adolescente. Vemos, então, que esse tipo A situação piora dramaticamente. O adolescente rouba
de regra atravessa as gerações. A mãe, que já havia imposto uma máquina de escrever, o padrasto o leva à delegacia e ele vai
ao filho um segredo, lhe propõe mais um: "Se sua próxima para uma casa de correção (um "centro de educação vigiadà').
redação de francês ficar entre as [... ] cinco melhores, vou lhe Nesse centro, Antoine conversa com um dos colegas. Em
dar mil francos, mil francos, mas não pode contar nada a seu seguida, ficamos sabendo que a mãe dele era "mãe solteira", como
pai". E ela declara ao marido: "Julien, peço que confie em nós: se dizia (e pensava) na época, que ela queria abortar e que só tive-
Ele está nos preparando uma boa surpresa ... " ''Ah! Isso é um ra o filho por insistência da própria mãe. Assim, mesmo antes do
cornplô!", responde o pai. Mais uma vez, o segredo fundamen- nascimento, Antoine já estava envolvido numa coalizão (sendo
tal é mascarado por outro segredo, de tal modo que a terceira que não passava de um feto) - a que formava com a avó contra a
pessoa pode muito bem suspeitar que existe um segredo, uma mãe - e era a essa aliança pré-natal que ele devia a sua vida.
vez que esse não é o segredo certo! Aqui termina o meu relato. Nessa casa de correção, a famí-
Podemos avaliar a complexidade da estrutura: o segre- lia se dissolve de vez. Antoine recebe a visita da mãe, que lhe dá
do fundamental está ligado a um segredo anterior que é, por um recado do pai: "Ele pediu para dizer que não se interessa mais
assim dizer, seu equivalente na geração precedente e, ao mes- por você"... A última imagem do filme mostra o adolescente
mo tempo, a um segredo concomitante que serve, pela sua correndo na direção do mar e não da mãe.
própria qualidade de segredo, para mascarar a existência de
um outro. Transmissão de uma geração para a outra, inserção Esse filme nos mostra nitidamente como uma família pode
na geração atual... reproduzir, de geração em geração, as mesmas configurações. Três
Chega o dia da redação. "Descreva um incidente grave coalizões se sucedem - a da mãe e da avó contra o avô, a do pai
que testemunhou e que o atingiu diretamente." Antoine se limita e do filho contra a mãe e, finalmente, a da mãe e do filho contra o
a reproduzir um texto de Balzac, a página final de A busca do pai. Uma mesma regra se mantém através da sucessão de gerações
absoluto. Evidentemente, essa escolha não tem nada de anó- - a da exclusão da terceira pessoa. Dois membros que pertencem
dina, pois Balzac descreve uma pessoa para a qual um enig- a gerações diferentes se aliam contra um terceiro, que pertence a
ma é desvendado, mas cujo conteúdo não pode revelar, pois é uma das duas gerações. Todas as vezes surge um segredo, às vezes
impedido pela morte. Esse foi o texto literário que chamou a vários (um segredo superficial que encobre um segredo mais pro-

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Como sobreviver à própria fàmília o navio fàntasma

1 II fundo, para melhor escondê-lo). E qual é a função desses segredos? e que a mãe escondera o fato do filho. Podemos apresentar uma
1I I Justamente manter uma coalizão. Esses segredos têm um alcance descrição mais radical dessa configuração. O filho é envolvido
11 I que vai muito além do valor psicológico ou da utilidade narrativa. numa dupla coerção: ele é confrontado com coisas sobre as quais
É claro que eles têm uma razão de ser em relação à família atual, não se pode falar, mas, ao mesmo tempo, toda uma série de mí-
I,
mas também se inserem num sistema de coordenadas muito mais micas, de movimentos não-verbais fazem com que ele sinta que
amplo e só se pode compreendê-los plenamente se levarmos em existe alguma coisa oculta; o "sintoma" que apresenta é uma ma-
consideração o que já se passou nas gerações anteriores. Além da neira de obedecer a essa dupla coerção. O filho "não vai dizer",
sua razão imediata, o segredo também tem uma função oculta - pois isso é proibido, mas ele vai agir, pois a proibição não incide
a de manter as regras que, ao se transmitirem de geração em gera- sobre o agir. E esse comportamento, porque tem a estrutura de
ção, dão à família uma estrutura que se mantém através dos anos. uma dupla coerção, cria uma dupla coerção recíproca, estrutura
Esse é o segredo do segredo: podemos vê-lo como uma espécie complexa que mantém o sistema.
de testemunha, um vetor, um transmissor, que passamos de uma . Dizendo de outra maneira, eis a situação na qual a criança
geração para a outra, um navio fantasma que transporta a bordo o está presa:
tesouro oculto das regras familiares. - o adulto tem um segredo;
Mas, evidentemente, ele também tem uma função da situ- - ele emite uma dupla mensagem contraditória: "Não há
ação atual: a de reforçar as diferentes construções do mundo dos nenhum segredo" (silêncio, mensagem verbal) e "Existe um se-
protagonistas. A da mãe, na família pintada por Truffaur, poderia gredo" (constrangimento, mímicas, expressão);
ser: "Eu só sou aceitável como sou, se ocultar o que sou" ou "Te- - a criança recebe as duas mensagens e responde a essa
nho de ocultar o que desejo realmente"; o pai é alguém que duvida dupla coerção com outra - ela não fala, age. Mas, ao fazer
da própria capacidade de dar o bastante para a família - ele está isso, ela coloca o adulto na dupla coerção de ser aquele que
convencido de que não faz o suficiente (e, aliás, as palavras que não disse, dizendo.
emite sobre o filho já dizem tudo: "Se pelo menos ele tivesse fala- Um exemplo. Um menino de 9 anos se comporta como se
do comigo ... "). Podemos ver como essas construções do mundo não houvesse meninas na classe. A professora convoca a mãe, que
são reforçadas pela presença do segredo e como, por sua vez, elas revela que o marido a deixou por um homem quando a criança
vão reforçar a função do sistema familiar. tinha 3 anos. O filho não sabe, pois o marido a proibiu de dizer
à criança que ele era homossexual. Porém, ao rejeitar as meninas,
Em geral, frisamos que o segredo cria sintomas que são me- o filho cria uma coalizão com o pai, contra a mãe. Ao mesmo
táforas do que está oculto. Por exemplo, um menino que rouba tempo, descobrimos que essa mulher tem uma visão ruim dos
- descobrimos que o pai havia sido condenado por estelionato homens e que, de acordo com a família, assim que ela se casou,

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Como sobreviver à própria fàmília Sobreviver à própria fàmília

esse homem já dava sinais de homossexualidade ou, de qualquer


forma, de bissexualidade. Podemos indagar-nos se a criança, pelo
seu comportamento, não reforça também a construção da mãe
("Os homens, no fim das contas, são incompetentes").
Portanto, o sintoma ligado ao segredo poderia ser uma res- Capítulo 14
posta legítima ao segredo que o filho designa sem nomeá-lo. À
dupla coerção "Não há nada, mas sentimos que há alguma coisa",
a criança responde com outra: "Não sei de nada, mas sei, pois é o
Sobreviver à
que mostro com o meu comportamento". E qual pode ser a fun- própria família
ção desse jogo fascinante de duplas coerções em espelho? Pode ser

E
a de manter a estabilidade de um sistema de crenças, mesmo que m geral, subestimamos a nossa parte na construção
seja ao preço do sofrimento de seus membros. . do grupo ao qual nos sentimos presos. Sem dúvida, os
sistemas humanos dos quais participamos são regidos
por regras e estruturas - as situações e os casos mencionados
nesta obra nos mostraram isso várias vezes; mas, se conseguir-
mos tomar consciência dessas regras e dessas estruturas, recu-
peraremos nossa parte de livre-arbítrio e poderemos modificar
o nosso devir.
Como podemos conscientizar-nos dessas cadeias invisí-
veis que limitam nossos movimentos? Em geral, quando nos
sentimos em palpos-de-aranha com a nossa família, rejeitados
por ela ou 'impelidos a rejeitá-Ia é que pode emergir um novo
olhar. Nosso sofrimento é crucial, pois é, em si mesmo, um
sinal de alarme: ele nos indica que não conseguimos mais su-
portar esse conjunto de regras que, contra a nossa vontade,
dita a nossa conduta.
Esse sinal certamente tem ligação conosco, com o indiví-
duo que somos, mas não pode ser reduzido a nós. Tudo o que
acontece comigo vem da interseção do que me constitui e do

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Como sobreviver à própria fàmília Sobreviver à própria fàmília

que me cerca; em torno do meu sofrimento existe um mal-estar gerações, tenho de pegar outro bastão que não aquele que meus
familiar do qual eu tomo consciência pela minha própria difi- pais me passam. Mas como manter a filiação sem ser prisioneiro
culdade em continuar a jogar o jogo. daquilo que sinto como lealdade para com a geração anterior e
O risco não é só meu: ele também envolve aqueles que que me condena à repetição? Como me aliar a um jogo das regras
me cercam. existentes, propondo novas regras? Como fazer surgir outra ma-
Preciso delimitar o meu território, isto é, diferenciar-me neira de ver que não faça, por reação, cristalizar a antiga?
dos membros da minha família para poder encontrar a minha Um rompimento com a minha família às vezes pode pa-
esfera de autonomia. Essa é uma operação essencial, pois vai recer a solução mais radical. Mas, na verdade, essa solução
permitir que eu me liberte das regras às quais obedeço - des- confirma, aos olhos desses pais, a exatidão das crenças deles.
sas regras invisíveis que indicam o meu lugar e ditam o meu É até possível que ela pertença ao roteiro ao qual nos confor-
comportamento no seio da minha família. Mas, tanto quanto mamos sem o ter lido. Por exemplo, numa família em que um
possível, esse processo deve estar engatado numa aliança com dos pais já havia rompido com os seus, a revolta dos filhos
os outros membros da família, senão, a situação que tento mu- pode, inconscientemente, resultar de uma estranha lealdade
dar vai ricochetear nas regras do sistema que formamos e corro aos pais, mesmo que, aparentemente, seja expressa pela con-
de risco de ficar imobilizado exatamente no lugar onde me testação. E a minha rebelião pode ser, por sua vez, o bastão
puseram aqueles que não suportam minha diferença. Eu serei que vou transmitir à geração seguinte - "Rompa comigo para
o bode expiatório e, sem me dar conta, como tal me apresen- ser leal a mim". É por isso, como eu disse antes, que a melhor
tarei; isso lhes permitirá, com a consciência limpa, tornar as diferenciação é sempre aquela que se faz na aliança com o que
regras ainda mais rígidas: aparentemente, o meu comporta- nos diferenciamos.
mento lhes dará esse direito e provocará minha marginalização Mas essa aliança é uma tarefa difícil. Quando o filho diz:
e até minha exclusão. "Vocês têm uma ótima vida, mas não quero viver essa mesma
Foi isso o que mostrei ao longo deste livro: as regras que re- vida", em ge;al os pais ouvem: "A vida de vocês é ruim e, além
gem a minha família foram criadas por todos nós - pais, irmãos, do mais, não me interessa". No entanto, temos de dizer e ma-
irmãs, cônjuges e, é claro, por mim mesmo. Essas regras, e nossos nifestar todo o respeito que temos por aqueles que nos cercam
mitos - os que me cercam, mas também os meus - fornecem o e, ao mesmo tempo, recusar, se for conveniente, a obrigação de
cimento que nos une, que nos faz, a todos, nos sentirmos mem- fazer o que nos é pedido. Tenho de respeitar a alteridade dos
bros de um único e mesmo grupo humano. Portanto, compreen- membros da minha família se quiser que minha própria alteri-
demos que sobreviver à própria família não é uma coisa que acon- dade seja respeitada. A minha demanda será ainda mais legítima
tece naturalmente. Na corrida de revezamento que ocorre entre as se admitir e comportar a aceitação da reciprocidade.

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Bibliografia
Como sobreviver à própria fàmília

Esta obra descreveu certo número de situações-chave, mas,


sobretudo, se esforçou, partindo de casos concretos, para dar as
ferramentas que nos permitem compreender como os outros e
nós mesmos estamos presos na mesma rede, mesmo que seja de
uma maneira que pareça diferente. Espero ter demonstrado com
clareza que é possível conseguir dizer "sim" sem ficar furioso, e
"não" sem nos sentirmos culpados. Nossa aptidão para nos auto-
nomizarmos sem culpa ajudará aqueles que nos cercam a desco-
Bibliografia
brir que eles também têm direito à autonomia. E nossa auto no- BENOIT, Jean-Claude; MALAREWICZ, Jacques-Antoine; BEAUJEAN, Ja-
mização será ainda mais bem-sucedida se certa forma de aliança cques; COLAS, Yves; e KANNAS, Serge (dir.). Dictionnaire clinique des
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