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FRANCOIS LAPLANTINE APRENDER ANTROPOLOGIA Digitalizado com CamScanner Copyright® by Francois Laplantine, vepresentado por Robert Lattont, topy ‘Titulo original em flanees: Chefs pour Lantinopolouie Copyright © dn waalugo brasilian: Halton Brasilicnse tad Nenhuma parte desta publicagio pode : ser gravada, armazenada em si nas elettdnicos, fotocopiada reproduzida por meios meetinicos ou outros quaisqu sem autorizagio prévia da editora, Primeira edigho, 1988 27" reimpressio, 2012 Diretora Editorial: Mari esa B, de Lima iditor: Max Weleman Produgio Grifica: Adriana FB. 7 Diagrama inati Digitexto Bureau e Grafica Ricardo Miyake 1: Antonio Carlos Revi: Fotos de jarcia Dados Internacionais de catalogagiio na Publicagiio (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Taplantine, Frangois Aprender Antropologia / Frangois Laplantine ; tradugiio Marie-Agnés Chauvel ; prefiicio Maria Isaura Pereira de Queiroz, ~~ So Paulo : Brasiliense, 2012. Titulo original: Clefs pour L’ anthropologie. 27* reimpr. da 1. ed. de 1988 Bibliografia. ISBN 978-85-11-07030-9 1. Antropologia 1. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. II. Titulo. 08-06943 CDD-301 Tndices para catdlogo sistematico: 1, Antropologia: Introdugio: Estudo e ensino 306.07 editora brasiliense Itda Rua Anténio de Barros, 1839 - Tatuapé CEP 03401-001 — Sao Paulo — SP www.editorabrasiliense.com.br Digitalizado com CamScanner INTRODUGAO O CAMPO E AABORDAGEM ANTROPOLOGICOS O homem nunca parou de(interrogar-se sobre si mi Em todas as sociedades existiram homens que observavam ho- jens, Houve até alguns que eram tedricos e forjaram, como diz Lévi-Strauss, modelos claborados “em casa”. A reflexao do ho- mem sobre o homem e sua sociedade, ¢ a elaboragao de um sa- ber sao, portanto, tio antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na Asia como na Africa, na América, na Oceania ou na Europa. Mas opprojeto de fundar tmmaciéncia do homerh—uma. antropologia — €, a0 contrario, muito‘fecente. De fato, apenas no final do@século XVIIDE que comega a se constituir um sa- ber cientifico (ou pretensamente cientifico) que toma o homem como ‘objeto de conhecimento, e nfo mais a natureza; apenas tiessa época & que 0 espirito cientifico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao proprio homem os métodos até entio utilizados na area fisica ou da biologia. Isso constitui um evento consideravel na histéria do‘pe sobre o homemt) Um evento do qual talvez edindo todas as consequéncias. Esse \samento do home: ainda hoje nao estejamos m Digitalizado com CamScanner 14 0 CAMPO KA ANOKDAGEMS ANTROPOLOGIEOS pensamento tinha sido até cntdéo mitolégi co, artistic, Woldpico, Ofico, mas nunca cientifico no que dizia respcito 40 homem ¢ Gltimo do estauto Ki inalmente, \a antropologia, ou mais precisamente, 0 projeto antropoldgicg que se esboga nessa época muito tardia na historia — nao podia existir 0 conceito de homem enquanto regides da humanidade permaneciam inexploradas — surge em uma regido muito pe- qucna do mundo; Europa. Isso trara, evidentemente, como vere. mos mais adiante, consequéncias importantes. _ Para que Sse projeto alcance suas primeiras realizagées, para que 0 novo saber comece a adquirir um inicio de legitimi- dade entre outras disciplinas cientificas, sera preciso esperar a segunda metade do século XIX, durante 0 qual a antropologia se atribuiobjetos empiricos auténomos: : as sociedades entig di- | _ las * “primitivas”, Ou s¢ja, exteriore: areas de civilizagao cu- % experimentagdo ae entre 0 sujeito bsevaate eo nee gpbservado € obtida na fisica (como na biologia, botinica, ou Py zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos { presentes, nt historia, pela distancia no tempo que separa o his- toriador da sociedade estudada, cla consistird na antropologia, nessa época — — ¢ por muito tempo — em uma disténcia defini-__ ' tivamente feografi ica) As sociedades estudadas pelos primeiros | antropdlogos so socicdades onginquas as quais $ 9 atribuidas ’ \as seguintes caracteristicas: socicdades de dimensées restrilas; 7 que tiveram poucos contatos com os grupos vizinhos; cuja tec: squais hi ’N : tA nologia € pouco desenvolvida em relagio A no: -éio das atividades ¢ fungdes socials. ie | 0 { também qualificadas de “simples”; em consequéncia, elas 118 uma menor especiali Digitalizado com CamScanner APRENDER ANTROPOLOGIA 15 permitir a compreensao, como numa situacao de laboratério, da org: “complexa” de nossas préprias sociedades. koe ok A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que Ihe & proprio: 0 estudo das populagdes que nio pertencem a civilizagdo ocidental. Serio necessarias ainda alguma: cadas para claborarerramentas de investiga¢ que pe leta direta no campo das observagdes ¢ informagées. Mas logo~ apés ter firmado scus préprios métodos de pesquisa — no inicio do século XX — a antropologia percebe que 0 objeto empirico que havia escolhido (as sociedades “primitivas”) esta desapa> recendo, pois o proprio universo dos “selvagens” nao é de for- ma alguma poupado pela evolugao social. Ela se vé, portanto, we confrontada a umaCrise de identidade) Muito rapidamente, uma questao se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu nascimentoxo fim do “selvagen no ‘ou, como diz Paul Mercier (1966), sera que @ “morte do primitivo”)ha de causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo% Acssa pergunia varios iipos de resposta puderam e podem ainda. ser dados. Detenhamo-nos em trés deles. 1) Oantropélogo accita, por assim dizer, sua morte, ¢ volta para o imbito das outras ciéncias humanas. Ele resolve a ques- tao da autonomia problematica de sua disciplina reencontrando, | especialmente, a soc iologia, ¢ notadamente.o que.é chamado.de “sociolo} gia comparada ee (oe, 2) Ele sai em busca de uma.outra area de investigagao: 0 camponés, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, ja que foi deixado de lado pelos “ramos das ciéncias do homem.! 1.A pesquisa etnogrifica, cujo objeto pertence & mesma sociedade que 0 obser- vador, foi, de inicio, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van Gennep que ela- porou os métodos préprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar Digitalizado com CamScanner NN hy 16 © CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS ; 3) Finalmente, ¢ aqui temos um terceiro caminh inclusive nao exclui 0 anterior (pelo menos enquanto ea de estudo), ele afirma a especificidade de sua pratica, rasan através de um objeto empirico constituido (0 selvagem: owe Ponés), mas ¢ através de uma abordagem epistemolégica cons) Clituinted Essa € a terceira via, que comegaremos a esbocar im paginas que se seguem, e que sera “desenvolvida fo conn deste trabalho. O objeto tedrico.da Antropologia nao esta ligado na perspectiva na qual come¢amos a nos s fuar a par irdeagora, a um espaco geografico, cultural ou histérico particular, Pois a Antropologia nao sendoctim.certo. ‘olhar,-um-certo.enfoque que consiste em: a) 0 estudo do homem inteiro; b) 0 estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em fodos os seus estados © em fodas as épocas. O ESTUDO DO HOMEM INTEIRO S6 pode ser considerada como antropoldgica uma aborda- gem integrativa que objetive levar em consideragao ag niiltiplas) imiensdes do ser humano em sociedade. Certamente, © actimu- lo dos dados colhidos a partir de observagdes diretas, bem como o aperfeigoamento das técnicas de investigagao, conduzem ne- cessariamente a uma_ Gpecializagio do saber. Porém, uma das vocagées maiores de nossa abordagem consiste em nio parcelar ohomem mas, ao conitrario, em tentar relacionar campos de in- vestigacaio frequentemente separados. Ora, existem cinco reas principais da antropologia, que nenhum pesquisador pode, °F dentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve estar 1s campone pula re esse Txclusivamente (mas de uma forma magistral) as tradig®s ‘sas, a distancia social e cultural que separa o objeto do su caso a distancia geografica da antropologia “exotica”. jeito, substituind? N APRENDER ANTROPOLOGIA "7 (Sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas jelas, dado que essas cinco areas mantém relagdes estreitas en- tre si. —- atropologia bioldgica) (designada antigamente sob o nome de antropologia fisica) consiste no estudo das variagdes dos caracteres biolégicos do homem no espago e no tempo, Sua problematica é a das relacées entre o patriménio genético e 0 meio (geografico, ecoldgico, social); ela analisa as particulari- dades morfoldgicas ¢ fisiolégicas ligadas a um meio ambiente, bem como a evolugiio dessas particularidades. O que deve, es- pecialmente, a cultura a esse patriménio, mas, também, 0 que esse patriménio (que se transforma) deve a cultura? Assim, 0 antropdlogo biologista levaré em consideragao os fatores_cul- turais que influenciam o(Crescim ‘maturagaodo indiy: duo. Ele se perguntard, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da crianga africana é mais adiantado do que 0 » da crianga curopeia?_ You gut 7 Essa parte da antropologia,.longe de consistir apenas no estudo das formas de cranios, mensuragGes do esqueleto, tama- nho, peso, cor da pele, anatomia comparada das ragas e dos se- Xos, interessa-se em especial — desde a década de 1950 — pela genética das populagées, que permite discernir 0 que diz respeito ao inato ¢ ao adquirido, dos quais um ¢ outro estio interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um papel particularmente im- portante a exercer para que nao sejam rompidas as relagdes entre as pesquisas das ciéncias da vida ¢ as das ciéncias humanas. ate arcas da atividade humana). $ Seu_projet sa Teconstituir_as sociedades des rganizacdes Soc siais, quan- isticas. Notamos que esse. bordagem ‘idéntica as meio doscvestigic também quaisque que se liga a@arqueologia) vi parecidas, tanto em suas técnicas to em suas produgoes culturais € ar ramo da antropologia trabalha com uma al 18 © CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICos da antropologia histérica ¢ da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O historiador é antes de tudo um Chistoriégrafo) isto é, um_pesquisador que trabalha a partir do A@ntropologia linguistica. A linguagem é, com toda evi- expressam e expressam seus valores, suas preocupagées, seus pensamentos. Apenas 0 estudo da lingua permite compreender: os homens Pensam o que vivem € o que sentem, \ isto é, suas categorias psicoafetivas € psicocognitivas (etnolin- ) paras \ guistica); i + como cles €xpressan)o_universo eo social (estudo da | literatura, n&io apenas escrita, mas também de tradicdo oral); * como, finalmente, eles dhterpretani seus proprios saber ¢ saber-fazer (area das chamadas etnociéncias). A antropologia linguistica, que é uma disciplina que se situa no encontro de varias outras,’ nao diz respeito apenas, e 2. Foi notadamente gragas a pesquisadores como Paul Rivet e André Leroi--Gou- rhan (1964) que a articulagao entre as dreas da antropologia fisica, bioldaica e so- ciocultural nunca foi rompida na Franga. Mas continua sempre ameagada de rup- tura devido a um movimento de especializagio facilmente compreensivel. Assim, colocando-se do ponto de vista da Antropologia Social, Edmund Leach (1980) fala da “desagradavel obrigagdo de fazer ménage a trois com os representantes da ‘Arqueologia Pré-Histérica e da Antropologia Fisica”, comparando-a & coabitagd0 dos psicdlogos e dos especialistas da observagio de ratos em laboratério. 3, Foi o antropologo Edward Sapir (1967) quem, além de introduzir o estudo da Tinguagem entre 0s materiais antropol6gicos, comeyou também a mostrar que Um estud antropolgico d lingua (lingua como abjeto de pesquisa inserevendo-e ha cultura) conduzia a um estudo lingu‘stico da cultura (a lingua como modelo conhecimento da cultura). APRENDER ANTROPOLOGIA 19 de longe, ao estudo dos dialetos (dialetologia). Ela se interessa também pelas imensas dreas abertas pelas ova’ técnicas mo \ demas de comunicagid (mass media e cultura do audiovisual), AGniropologia psicolégion. Aos trés primeiros polos de pesquisa que foram mencionados, e que sao habitualmente os Unicos considerados como constitutivos (com a antropologia so- cial ¢ a cultural, das quais falaremos a seguir) do campo global da antropologia, fazemos questo pessoalmente de acrescentar um quinto polo: o da antropologia psicolégica, que consiste no estudo dos processos e do funcionamento do iquismo huma- no. De fato, 0 antropdlogo é em primeira instancia confrontado ————— —e nao a conjuntos sociais, e sim a individuos. Ou seja, somente através dos comportamentos(Particulares— conscientes e in- a (¢ também psicopatolégica) é absolutamente indissociavel do campo do qual procuramos aqui dar conta. Ela € parte integrante dele. Por muito mais tempo. Apenas nessa area temos alguma compe- téncia, e este livro tratard essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir de agora ofermocantropologi>mais genericamente, estaremos nos referindo 4 antropologia social ¢ cultural (ou ctnologia), mas procuraremos nunca esquecer que ela € apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos cuja abrangéncia é consideravel, j4 que diz respeito & (iudo)que | seus modos de produgio econdmica, | nicas, sua organizagio politica e juridica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crengas reli giosas, sua lingua, sua psicologia; suas criapoes-artisticas” Isso posto, esclaregamos desde ja que a antropologia ois no levantamento sistematico desses aspectos do que_ t SK © CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS 20 entre si e por meio da qual aparece a especificidade de uma go, ciedade. E precisamente esse ponto de vista da(fotalidade, co fato de que 0 antropdlogo procura compreender, como diz Léyj. -Strauss, aquilo que os homens “nao pensam Habitualmente m licas, os menores detalhes dos nossos Merperrarienics), que faz dessa abordagem um tratamento fundamentalmente diferente dos utilizados setorialmente pelos gedgrafos, economistas, ju- Tistas, soci 108, psicdlogos... O ESTUDO DO HOMEM EM SUA DIVERSIDADE A antropologia nao é apenas 0 estudo de tudo que compée uma sociedade. Ela é 0 estudo de todas as sociedades humanas = eos inclusive’), ou seja. ), ou seja, das culturas da humanidade como | todo em suas diversidades histéricas e geografi significativas, ela, inicialmente, Fevilegion clara- de civilizagao exteriores 4 nossa. Mas a antropo- ja ser definida por um objeto empirico qualquer pelo ie de sociedade ao qual ela a principio ci € ou mesmo exclusivamente). Se Consistisse no estudo das sociedades lente, ela se encontraria hoje, S$ pesquisadores em com a natureza das primet™ tudo das sociedades industria! quisas trataram prime", “iniio tradicionais” (8 aun marginais, ¢ finale Digitalizado com CamScanner APRENDER ANTROPOLOGIA 21 sociedades estudadas (as sociedades extraeuropeias), cla €a meu, ver indissociavelmente ligada ao modo de conhecimento que foi claborad ga partido estudo dessas sociedades: a observagao di nua de grupos humanos mi- reta, por impregnacao lenta e cont misculos com os ¢ quais mantemos uma relagaio pessoal. Além disso, apenas a distancia em relacdo a nossa socie- dade (mas uma distancia que faz com que nos tornemos extrema- mente préximos daquilo que é longinquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tomavamos por natural em nds mesmos é, | de fato, cultural; aquilo que era evidente € infinitamente proble- | matico. Disso decorre a necessidade, na formagio antropolégicay daquilo que nao hesitarei em chamar dcCestra nhamento”(de- paysement), atperplexid: d@)provocada pelo encontro das cultu-\ PayseMent), A Perr rex sce ee reer ras que sdio para nds as mais distantes, ¢ Cujo encontro vai levar a ima modificagao do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, | presos a uma Unica cultura, somos ndo apenas Cegos a cultura | dos outros, mas miopes quando se trata da nossa. A experiéncia ade (¢ a claboragao dessa experi | aquilo que nem teriamos consegui¢ aginar, dac | i¢dio no que nos é habitual, fami iat, \ s “evidente”. Aos poucos, notamos ; ficuldade em fixar nossa aten cotidiano, € qu tidiano, ¢4 { que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mimicas, pos- Fn) nnd ee turas, reagoes afetivas) nao tem realmente nada de “natural. Co- meg¢amos, entao, a nos surpreender com aquilo que diz respeito ands mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropoldgico) da_ nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das ou- tras culturas; e devemos especialmente _reconhecer_que_somos as, mas no a unica. uma cultura possivelentre tante Aquilo que, de fato, caracteriza Canidadexto homem, | de que a antropologia, como ja 0 dissem s ¢ voltaremos.a.di- zer, faz tanta questao, é sua aptidao praticam te infinita para ganizacao_social eX: inventar modos de vida ¢ formas de_organiza¢ tremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina 22 0 CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS ma permite notar, com a maior proximidade possivel, que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tomé- james todos spontaneamente por inatas (nossas maneiras de , andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os $ eventos de nossa existéncia...) so, na realidade, o produto de scolhas culturais? Ou seja, aquilo que os seres humanos tém em comum & sua capacidade para se diferenciar uns dos ou- tros, para claborar costumes, linguas, modos de conhecimen- to, instituigdes, jogos profundamente diversos, pois se hé algo NI natural nessa espécic particular que ¢ a espécic humana, é sua_ aptidao a variagao cultural. Via \ O projeto antropolégico consiste, portanto, no reconheci- mento e no conhecimento, juntamente com a compreensio de uma iumanidade plural) Isso supde ao mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual [do idéntico, e com a exchusdo hum irredutivel “alhures”. As sociedades ma cramos espontaneamente indi- sio na realidade tao diferentes entre si quanto | E, mais ainda, elas so para cada uma delas mui- to raramente homogéneas (como seria de se esperar) mas, pelo contrario, extremamente diversificadas, participando ao mesmo tempo de uma comum humant lade. A abordagem antropoldgica provoca, assim, uma verda- NJ deira revolugio epistemolégica, que comega por uma reyolucao hi 1 implica um descentramento radical, uma ruptura com a ideia de que existe um “centro do mundo”, e, correlativa- mente, uma ampliagio do saber® © uma mutagio de si mesmo. Vermos que a antropologia supe no apenas esse desmembramento (Elite in de Léry) ou no cet ment) do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de Lé Co mo (de um Montaigne), ligados a0 questionamento da cultura & aual se pein mas também uma nova pesquisa € uma reconstituicdo desse saber. Mas mnto coloca-se uma questo: seri que a antropologia ¢ 0 discurso somente dele) sobre @ alteridade? do Ocidente (© APRENDER ANTROPOLOGIA 23 Como escreve'Roger Bastida\em sua Anatomia de André Gide “Eu sou mil possiveis em mim; mas nao posso me resignar a A descoberta da alteridade é a de uma relagdo que nos permite deixar de identificar nossa pequena provincia de huma- nidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejei- tar o presumido “selvagem” fora de nés mesmos. Confrontados fe a multiplicidade, a priori enigmatica, das culturas, somos aos L poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre ahaturalizagtio do social (como se nossos comporta- {~*~ mentos estivessem inscritos em nés desde o nascimento, e nao | ‘fossem adquiridos no contato com a cultura na qual nascemos), Somos levados a romper igualmente com o humanismo classic que também consiste na identificagao do sujeito com ele mes- mo, e da cultura com a nossa cultura. De fato, a filosofia classica (antolégica com Sao Tomas, reflexiva com Descartes, criticista com Kant, histérica com Hegel), mesmo sendo filosofia social, Evidentemente, 0 europeu nio foi o tinico a interessar-se pelos habitos e pelas instituigdes do ndo-europeu. A reciproca também é verdadeira, como atestam no- tadamente os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade Média, por viajantes vindos da Asia. E 0s indios Flathead de quem nos fala Lévi-Strauss eram tao curiosos do que ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedigdes a fim de encontré-los. Poderiamos multiplicar os exemplos. Isso néio impede que a constituigéio de um saber de vocagiio cientifica sobre a al- teridade sempre tenha se desenvolvido a partir da cultura europeia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um africanismo, um oceanismo, enquanto nunca ouvimos falar de um “curopefsmo”, que teria se constituido como campo de saber teérico a partir da Asia, da Africa ou da Oceania. Isso posto, as condigdes de produgao histéricas, geogréficas, sociais e culturais da Antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropolégico perder de vista, mas que nao devem ocultar a vocago (evidentemente problemati- a) de nossa disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como es- creve Lévi-Strauss: “Nao se trata apenas de elevar-se acima dos valores préprios da sociedade ou do grupo do observador, e sim de seus métodos de pensamento; Preciso alcangar uma formulagao valida, nfo apenas para um observador honesto © objetivo, mas para todos os observadores possiveis”. 24 © CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS bem como as grandes religides, nunca se deram como objetivo 0 de pensar a diferenga (e muito menos, de pensa-la cientifj- camente), ¢ sim o de reduzi-la, frequentemente de uma forma igualitaria e com as melhores intengdes do mundo. O pensamento antropoldgico, por sua vez, considera que, assim como uma civilizagao adulta deve aceitar que seus mem- bros se tornem adultos, ela deve igualmente aceitar a diversida- de das culturas, também adultas, Estamos, evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pdde permanecer Por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si propria e fazendo de tudo que nao eram suas ideologias do- minantes sucessivas um objeto de exclusio. Desconfiemos po- rém do pensamento — que seria o cimulo em se tratando de antropologia — de que estamos finalmente mais “ticidos”, mais “conscientes”, mais “livres”, mais “adultos”, como acabamos de escrever, do que em uma época da qual seria erréneo pensar que esta definitivamente encerrada. Pois essa transgressaio de uma das tendéncias dominantes de nossa sociedade — 0 expan- sionismo ocidental sob todas as suas formas econémicas, poli- ticas, intelectuais — deve ser Sempre retomada. O que nio sig- nifica de forma alguma que o antropdlogo esteja destinado, ou seja levado por alguma crise de identidade, a adotar ipso factoa légica das outras sociedades e a censurar a sua, Procuraremos, pelo contrario, mostrar neste livro que a divida ¢ a critica de si mesmo 86 sao cientificamente fundamentadas se forem acompa- nhadas da interpelagao critica de outrem. DIFICULDADES Se os antropdlogos estdo hoje convencidos de que uma das caracteristicas maiores de sua pratica reside no confronto pessoa com a alteridade, isto é, convencidos do fato de que os uae sociais que estudamos sido fendmenos que observamos em sere APRENDER ANTROPOLOGIA 25 humanos com os quais estivemos vivendo; se eles so também undnimes em pensar que ha unidade da familia humana, a familia dos antropdlogos é, por sua vez, muito dividida quando se trata de dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesma, € de forma geral a todos aqueles que tém o direito de sa- ber o que verdadeiramente fazem os antropdlogos) dessa unidade miltipla, desses materiais e dessa experiéncia. 1) A primeira dificuldade se manifesta, como sempre, no nivel das palavras. Mas ela é, também aqui, particularmente— Teveladora da juventude de nossa disciplina,’ que nao sendo, como a fisica, uma ciéncia constituida, continua nao tendo ainda optado definitivamente pela sua prépria designagao: Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradigao terminoldgica dos franceses), insiste-se sobre a pluralidade irre- dutivel das etnias, isto é, das culturas. No segundo (que é mais usado nos paises anglo-sax6nicos), sobre a unidade do género humano. E optando-se por antropologia, deve-se falar (com os autores briténicos) em antropologia social — cujo objeto privi- legiado € 0 estudo das instituigdes — ou (com os autores ameri- canos) de antropologia cultural — que consiste mais no estudo dos comportamentos.” 6. Lembremos que a antropologia sé comegow a ser ensinada nas universidades ha algumas décadas, Na Gra-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Franga a partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan). 7. Para que o Icitor que nfo tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa localizar-se, vale a pena especificar bem o significado dessas palavras. Estabelegamos, como Lévi-Strauss, que a etnografia, a etnologia a antropologia constituem os trés momentos de uma mesma abordagem. A etnografia é a coleta direta, ¢ a mais minu- ciosa possivel, dos fendmenos que observamos, por uma impregnagdo duradoura Continua e um processo que se realiza por aproximagdes sucessivas. Esses fendmenos podem ser recolhidos tomando-se notas, mas também por gravagiio sonora, fotogrifica ou cinematogrifica. A emologia consiste em um primeiro nivel de abstragao: anali- Sando os materiais colhidos, fazer aparecer a légica especifica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste em um segundo nivel de inteligibilidade: Construir modelos que permitam comparar as sociedades entre si. Como escreve Lévi- Strauss, “seu objetivo é aleangar, além da imagem consciente e sempre diferente que £ 26 © CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS 2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de Cientifici. dade que convém atribuir 4 antropologia. O homem esté em con- digdes de estudar cientificamente o homem, isto é, um objeto que € de mesma natureza que o sujeito? Nesse caso, nossa Pratica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com Radcliffe. Brown (1968), que as sociedades sao sistemas naturais que devem ser estudados segundo os métodos comprovados pelas ciéncias da natureza,* © os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que preciso tratar as sociedades nao como sistemas organicos, mas como sistemas simbdlicos. Para estes tltimos, longe de ser uma “ciéncia natural da sociedade” (Radcliffe-Brown), a antropologia deve antes ser considerada como uma “arte” (Evans-Pritchard). 3) Uma terceira dificuldade provém da relagdo ambigua que a antropologia mantém_desde sua génese com a Historia Estreitamente vinculadas nos séculos XVIII e XIX, as duas Pl ticas vao rapidamente se emancipar uma da outra no século XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar periodicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antropdlogos. Evans-Pritchard: “O conhecimento da historia das sociedades nao é de nenhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das instituigdes”. Mais categorico ainda, Leach escreve: “A geracdo de antropdlogos 4 qual pertengo tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Historia em con- sideragdo”. Convém também lembrar aqui a disting’o agora fa- ‘os homens formam de seu devir, um inventirio das possibilidades inconscientes, que nao existem em niimero ilimitado”. 8. Ao modelo organico dos funcionalistas ingleses, Lévi-Strauss substitui, como vVeremos, um modelo linguistico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza (0 inato) ¢ da cultura (tudo o que nao é hereditariamente programado € deve ser inventado pelos homens onde a natureza nao programou nada), # An” tropologia deve aspirar a tornar-se uma ciéncia natural: “A antropologia perience 4s ciéncias humanas, seu nome o proclama suficientemente; mas se se resign ar fazer seu purgatério entre as cigncias sociais, é porque nao desespera de desPe! entre as ciéncias naturais na hora do julgamento final” (Lévi-strauss, 1973) APRENDER ANTROPOLOGIA 27 mosa de Lévi-Strauss opondo as “sociedades frias”, isto 6, “pro- ximas do grau zero de temperatura histérica”, que so menos “sociedades sem histéria” do que “sociedades que nao querem ter estorias” (Gnicos objetos da a antropologia classica) a nossas proprias sociedades qualificadas de “sociedades quentes”. Essa preocupag&o em separar as abordagens historica & antropolégica esta longe, como veremos, de ser unanime, e a histéria recente da antropologia testemunha também um dese- jo de co-habitagao entre as duas disciplinas. Aqui, no Nordeste do Brasil, onde comego a escrever este livro, desde 1933 um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a formacio da sociedade brasileira, mostrou 0 proveito que a antropologia podia tirar do conhecimento hist6rico. 4) Uma quarta dificuldade provém do fato de q ssa. pratica oscila sem parar, ¢ isso desde seu nascimento, a pesquisa que se pode qualificar de fundamental e aquilo que & designado sob 0 termo de “antro 0 falioi Comegaremos examinando o segundo termo da alterna- tiva aqui colocada e que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim considerava que a sociologia nao va- leria sequer uma hora de dedicagio se ela nao pudesse ser util, e muitos antropdlogos compartilham sua opinido. Margaret Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instauragdo de uma sociedade melhor, e, mais especificamen- te, a aplicagao de uma pedagogia menos frustrante 4 sociedade americana. Hoje varios colegas nossos consideram que a antro- pologia deve colocar-se “a servigo da revolug’o” (segundo es- pecialmente Jean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, entao, um militante, um “antropdlogo revoluciondrio”. contribuindo na construgao de uma “antropologia da liberta¢: Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a qualidade de especialistas, de conselheiros, participando em especial dos programas de desen- Digitalizado com CamScanner 28 © CAMPO E A ABORDAGEM ANTROPOLOGICOS volvimento e das decisées politicas relacionadas a elaboragio desses programas. Queriamos simplesmente observar aqui que a “antropologia aplicada” néio é uma grande novidade. E por ela que, com a colonizagio, a antropologia teve inicio.” Foi com ela, inclusive, que se deu 0 inicio da Antropolo- gia, durante a colonizagiio. No extremo oposto das atitudes “en- gajadas” das quais acabamos de falar, encontramos a posigao determinada de um Claude Lévi-Strauss que, apés ter lembrado que o saber cientifico sobre 0 homem ainda se encontrava num estagio extrernamente primitivo em relag&o ao saber sobre a na- tureza, escreve: Supondo que nossas ciéncias um dia possam ser coloca- das a servico da ago pratica, elas nao tém, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O verdadeiro meio de permitir sua existén- cia € dar muito a elas, mas sobretudo iiéio.lhes pedir nada. As duas atitudes que acabamos de citar — a antropologia “pura” ou a antropologia “diluida”, como diz ainda Lévi-Strauss — encontram na realidade suas primeiras formulagdes desde os primérdios da confrontagao do europeu com o “selvagem”. Des- de o século XVI, de fato, comega a se implantar aquilo 0 que al- guns chamariam de “arquétipos” do discurso etnoldgico, que po- dem ser ilustrados pelas posigdes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. Jean de Lery foi um huguenote* francés que permaneceu algum tempo no Brasil entre os Tupinambas. Longe de procurar convencer seus héspedes da superioridade da cultura europeia e da religiao reformada, ele os interroga ¢, sobretudo, 9. Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971. 10. A maioria dos antropdlogosingleses, especialmente, reaizou suas pesuiss a pedido das administragdes: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomentaos pelo governo britanico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Cos do Ouro. Nadel foi conselheiro do governo do Sudao ete. * Protestante. (N.T.) | APRENDER ANTROPOLOGIA 29 se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns anos mais tarde realizou uma verdadeira investigagao no Méxi- co. Perfeitamente a vontade entre os astecas, ele estava 14 como missionario a fim de converter a populagiio que estudava."" A questo da diversidade das ideologias sucessivamen- te defendidas (a conversao religiosa, a “revolugao”, a ajuda a0 “Terceiro Mundo”, as estratégias daquilo que € hoje chamado “desenvolvimento” ou ainda “mudanga social”) nao altera nada quanto ao 4mago do problema, que é 0 seguinte: 0 antrop6lo- go deve contribuir, enquanto antropdlogo, para a transformagao das sociedades que ele estuda? Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte for- ma: nossa abordagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos é mais familiar (aquilo que vivemos coti- dianamente na sociedade na qual nascemos) e em tornar mais familiar aquilo que nos & estranho (os comportamentos, as crengas, os costumes das sociedades que nao so as nossas, mas nas quais poderiamos ter nascido), est diretamente confronta- da hoje a um movimento de homogeneizagao, ao meu ver, sem precedente na Historia — 0 desenvolvimento de uma forma de cultura industrial-urbana € de uma forma de pensamento que é a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias sucessivas entre 0S Berberes do Médio Atlas ¢ entre os Baulés da Costa do Marfim, perceber realmente o fascinio que exerce esse modelo, perturbando completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de se distrair, de se encontrar, de pensar"? e levando a novos comportamentos que nao decorrem de uma escolha). i ahordagem da relago com o outro pode muito bem set realiza, da por um tinico pesquisador, A i, chegando as ilhas Trobriand (trad. franc., 1963), se deixa literalmente levar pela cultura que descobre € que 0 rae te Mas virios anos depois (trad franc., 1968) participa do que chama “uma experiéneia controlada” do desenvolvimento. rentos geradas por essa forma de civilizagdo mun- 12, As mutagdes de comportam dialista podem também evidentemente ser encontradas nas nossas préprias cul- 30 © CAMPO 1A ABORDAGEM ANTROPOLOK A questio que esti hoje colocada para qualquer antropé- logo é a seguinte: hd uma possibilidade em minha s (qualquer que seja) permitindo 0 ac ade industrial (ou pds-industrial) s risco de despersonalizagio? ciedade so a um estdgio de socie- m conflito dramatico, sem Minha convicgido &é de que o antropdlogo, para ajudar os atores sociais a responder a essa questio, ndo deve, pelo menos enquanto antropdlogo, trabalhar para a transformagao das so- ciedades que estuda. Caso contrario, seria conveniente, de fato, que se convertesse cm cconomista, agrénomo, médico ou po- litico, a n&o ser que cle seja motivado por alguma concepgio messidnica da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicitagao para cla mesma de sua propria diferenga é uma coisa; organizar politica, econdmica ¢ socialmente a evolugio dessa diferenga é uma outra coisa. Ou seja, a participagaio do antropdlogo naquilo que ¢ hoje a vanguarda do anticolonialismo e da luta pelos direitos humanos ¢ das minorias étnicas é, a meu ver, uma consequéncia de nossa profisstio, mas nao é a nossa profissao propriamente dita. Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urgéncia 4 qual temos 0 dever de responder. ulturais I ‘4 desde 0 seu a) Urgéncia de preservagdo dos patriménit cais ameagados (¢ a respeilo i Soa cinologia e: nascimento lutando contra 0 tempo para que a transcrigao dos arquivos orais ¢ visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os Ultimos depositarios das tradigdes ainda estado vivos) ¢, sobretu- do, de restitui¢ao aos habitantes das diversas regides na trabalhamos, de seu préprio saber ¢ saber-fazer. Isso supde uma ruptura com a concepgiio assimétrica da pesquisa, captagao de informagoes. as quais baseada na je fra turas rurais © urbanas. Em compensagio, parecem-me bastanl Nordeste do Brasil, onde comego a redigir este livro. APRENDER ANTROPOLOGIA 31 Nao ha, de fato, antropologia sem troca, isto é, sem itine- rario no decorrer do qual as partes envolvidas chegam a se con- vencer reciprocamente da necessidade de nao se deixar perder formas de pensamento ¢ atividade tinicas. b) Urgéncia de andlise das mutagées culturais impostas pelo desenvolvimento extremamente rapido de todas as socie- dades contemporaneas, que néo s&io mais “sociedades tradici nais”, ¢ sim sociedades que est%io passando por um desenvolvi- mento tecnolégico absolutamente inédito, por mutagdes de suas relagdes sociais, por movimentos de migracao interna, e por um processo de urbanizagiio acelerado. Através da especificidade de sua abordagem, nossa disciplina deve, nao fornecer respostas no lugar dos interessados, ¢ sim formular questdes com eles, elabo- rar com eles uma reflexio racional (e nado mais mégica) sobre os problemas colocados pela crise mundial — que é também uma crise de identidade — ou ainda sobre 0 pluralismo cultural, isto 6, 0 encontro de linguas, técnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropoldgica, que nao é de forma alguma, como po- demos notar, uma atividade de luxo, sem nunca se substituir aos projetos e as decisdes dos prdprios atores sociais, tem hoje como voca¢aio maior a de propor, nao solugées, mas instrumentos de investigagdo que poderao ser utilizados em especial para reagir ao choque da aculturagao, isto é, ao risco de um desenvolvimen- to conflituoso levando a violéncia negadora das particularidades econémicas, sociais e culturais de um povo. 5) Uma quinta dificuldade diz respcito, finalmente, anatu- reza desta obra que deve apresentar, em um nimero de paginas reduzido, um campo de pesquisa imenso, cujo desenvolvimento recente é extremamente especializado. No final do século XIX, um unico pesquisador podia, no limite, dominar 0 campo glo- bal da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural, linguistica, pré-historica, ¢ também mais recentemen- te o caso de Ktoeber, provavelmente o ultimo antropdlogo que 32 0 CAMPO E A ADORDAGEM ANTROPOLOGICOS explorou — com sucesso ae ume area tio extensa). Nao 6 evi. dentemente, 0 caso hoje em dia. O antropdlogo considera agora — com razaio — que é competente apenas dentro de uma fea restrita!? de sua propria disciplina ¢ para uma Area geogrifica delimitada. Era-me portanto impossivel, dentro de um texto de di- mensées tao restritas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance ¢ da riqueza dos campos abertos pela antropologia, Muito mais modestamente, tentei colocar um certo numero de referéncias, definir alguns conceitos a partir dos quais o leitor poderd, espero, interessar-se em ir mais adiante. Ver-se-4 que este livro caminha em espiral. As preocupa- ges que esto no centro de qualquer abordagem antropolégica e que acabam de ser mencionadas serdo retomadas, mas de di- versos pontos de vista. Eu lembrarei em primeiro lugar quais foram as principais etapas da constituigado de nossa disciplina e como, através dessa histéria da antropologia, foram se colo- cando progressivamente as questes que continuam nos inte- ressando até hoje. Em seguida, esbogarei os polos tedricos —a meu ver cinco — em volta dos quais oscilam o pensamento ¢ a pratica antropoldgica. Teria sido, de fato, surpreendente, se, pro- curando dar conta da pluralidade, a antropologia permanecesse monolitica. Ela é, ao contrario, claramente plural. Veremos no decorrer deste livro que existem perspectivas complementares, mas também mutuamente exclusivas, entre as quais é preciso escolher. E, em vez de fingir ter adotado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que nas ciéncias humanas é um engodo, esforgando-me ao mesmo tempo part apresentar com o maximo de objetividade o pensamento dos ou- tros, ndo dissimularei as minhas préprias opgdes. Finalmente, antrop0l0- rtstica, 8 13. A antropologia das téenicas, a antropologia econdmica, politic gia do parentesco, das organizagdes sociais, a antropologia religiosay antropologia dos sistemas de comunicagdes... APRENDER ANTROPOLOGIA 3 em uma tiltima parte, os principais eixos anteriormente exami- nados sero, em um movimento por assim dizer retroativo, re- avaliados com 0 objetivo de definir aquilo que constitui, a meu ver, a especificidade da antropologia. Queria finalmente acrescentar que este livro dirige-se ao mais amplo puiblico possivel. Nao aqueles que tém por profissio a antropologia — duvido que encontrem nele um grande inte- resse — mas a todos que, em algum momento de sua vida (pro- fissional, mas também pessoal), possam ser levados a utilizar 0 modo de conhecimento tao caracteristico da antropologia. Esta éarazio pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma lingua- gem técnica e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente pela segunda. Pois a antropologia, que é a ciéncia do homem por exceléncia, pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos nés.

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