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Ricardo Marcelo Fonseca Professor da graduagao e do curso de pds-graduagéio em direito da UFPR; Doutor em direito das relagdes sociais pela UFPR; Pés-doutor na Universita degli Studi di Firenze, ltalia (2003/2004), ‘onde integra o colegio dei docenti do curso de doutorado em storia del diritto; Pesquisador do CNPq; Presidente do IBHD (2007-2011); Procurador federal; Membro do IAP (Instituto dos Advogados do Parana); Diretor eleito da Faculdade de Direito da UFPR. Airton Cerqueira Leite Seelaender Doutor em direito na J. W. Goethe-Universitat (Frankfurt/Alemanha); Pesquisador visitante do Max Planck Institut fir europaische Rechtsgeschichte (1994-1997) e Presidente do IBHD (2005-2007); Ex-Procurador do Estado de Sao Paulo; Professor de Historia do Direito e Direito Constitucional na Universidade Federal de Santa Catarina Organizadores HISTORIA DO DIREITO EM PERSPECTIVA Do Antigo Regime a Modernidade 1? edigdo (ano 2008) 4? reimpressao (ano 2012) Colaboradores: Airton Cerqueira Leite Seelaender_ José Ram6n Narvéez Andrei Koerner Luis Fernando Lopes Pereira Antonio Carlos Wolkmer Luiz Edson Fachin Antonio Manuel Hespanha Manuel Martinez Neira Amo Dal Ri Junior Marcos César Alvarez Bruno Feitler Paolo Cappellini Carlos Petit Paolo Grossi Ezequiel Abasolo Peter Oestmann Gilberto Bercovici Pietro Costa Ignacio Maria Poveda Velasco Samuel Rodrigues Barbosa James Walker Silvia Hunold Lara José Ant6nio Peres Gediel Thomas Simon Curitiba Jurud Editora 2012 TETXEIRA DE FREITAS: UM CIVILISTA DO IMPERIO DO BRASIL José Ant6nio Peres Gediel' A formagao da modemidade juridica luso-brasileira apresenta peculiar’ dades que irao marcar a trajetoria de todos os juristas mais influentes do Imp tio, especialmente a de Teixeira de Freitas, considerado 0 maior civilista brasi- leiro do século XIX’. Na tentativa de compreender tais peculiaridades, é possivel identificar trés blocos de questées: a) a particular insergao dos juristas na transig&o colonial ¢ na formagao do Estado nacional brasileiro; b) a recepgao tardia do modelo de ensino juridico pombalino pelas primeiras faculdades de Direito; c) a centralida- de e a longa permanéncia do escravismo na economia do Brasil pés-colonial. No que se refere a primeira questo, nota-se que, no inicio do século XIX, com o aprofundamento da divergéncia entre os interesses econémicos das elites brasileiras e os interesses da Coroa portuguesa e da economia metropolitana, toma-se necessario formar quadros burocrdticos capazes de traduzir os anscios na- cionais em formas juridicas adequadas, para que o Império nascente pudesse operar, interna e externamente, segundo os cdnones juridicos das relagdes de mercado. O liberalismo econdémico foi, por isso, um dos principais marcos do pensamento politico e juridico deste periodo. O Estado brasileiro, a despeito de sua forma imperial, é construfdo e regido pela Constituigao de 1824 de fortes tragos liberais que se mesclavam ao anacronismo da tradi¢&o colonial remanes- cente da fuso entre os negécios da dinastia portuguesa e os negécios das elites escravistas agro-exportadoras. Professor Adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da UFPR. Segundo Orlando Gomes, ‘‘A influéncia de Teixeira de Freitas nao se faz presente apenas através da construgéo magistral em que reuniu e sistematizou os elementos esparsos da desor- denada € contraditéria legislagdo emigrada. Exerceu-se também por meio do ‘Esbogo’, que embora ndo howvesse sido aproveitado entre nés, como o foi em outras nagdes ibero-ame- ricanas, inspirou numerosas disposiebes do Cdigo Civil (...”. GOMES, Orlando. Raizes hist6- ricas ¢ sociolégicas do Cédigo Civil brasileiro. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 12-13 352 José Antonio Peres Gediel Os juristas brasileiros, por sua vez, terao por tarefa recepcionar o pen- samento juridico liberal europeu, adaptando-o 4 convivéncia com o modelo escravista interno. Sobre este ponto, Carlos Guilherme Mota afirma que: (...) se o liberalismo na Europa nasceu na crista das revolugdes, no Brasil os liberais, inicialmenie reformistas, regredirdo para preservar a ordem esta- mental-escravista. Para 0 manejo das regras do estamento burocratico e a administracdo dos interesses da sociedade escravocrata, o Estado necessi- tara de, um tipo de profissional especializado: os bacharéis, advogados e juristas’. Essa peculiaridade da formacdo e da inser¢do politica dos juristas, no Império, evidencia-se, por exemplo, no descompasso que houve entre a aceita- ¢4o e rapida aprovagao de leis de carater liberal, como o Cédigo Comercial, 0 Codigo Criminal, a Lei de Terras, e a resisténcia que sofreram a aprovagao da lei que aboliu a escravidaéo — somente em 1888 — e a elaboragao de um Codigo Ci- vil, claramente burgués, o que sé veio a ocorrer em 1916*. Para se compreender mais a fundo a articulagdo entre o ambiente politi- co da antiga colonia convertida em Império do Brasil ¢ a atuagdo dos juristas, ¢ necessario examinar, também, a natureza do ensino juridico, no final do século XVIII, em Portugal, onde eram formados os professores dos primeiros cursos juridicos do Brasil, os membros do Judicidrio e a maioria dos integrantes do Poder Legislativo do Primeiro Império. O peso que a tradi¢4o juridica lusitana teve na formagao dos primeiros juristas brasileiros é inegavel e vem marcada pela Reforma Pombalina e pela metodologia de interpretagao imposta pela denominada “Lei da Boa Razio” vigente em Portugal, a partir de 1769°. MOTA, Carlos Guilherme. Os juristas na formagio do Estado-nagio brasileiro, p. 144. No mesmo sentido, José Reinaldo de Lima LOPES conclui: “Do ponto de vista da cultura juridica, o liberalismo — como doutrina economica mais do que politica — foi um elemento-chave no dis- curso dos brasileiro, (...) Ideais democrdticos apareciam sob a forma republicana, como 10 caso da revolugdo pernambucana de 1817, estiveram também presentes na crise da Abdicagdo, ou revolugdo de 7 de abril de 1831, como a chamaram os contemporéneos”. A sociedade brasileira, no contexto da claboragdo do Cédigo, caracterizava-se por uma estrutu- ra agraria; “wma lavoura rudimentar, extensiva, servida ontem por 2 milhdes de escravos @ aquele tempo, abolida a escravatura, isto é, na tiltima década do século XIX, por tabathado- res nacionais...”. Enfim, em geral, a populagio era pobre, se nao miserdvel. Em um recensea- mento em 1872 desenhava-se o seguinte panorama do Brasil: uma populag’o de aproximada- mente dez milhées de habitantes; um milhio e meio de escravos, um milhdo de indios (“int- teis”) e cinco milhdes de agregados de fazendas, no constituiam, obviamente, um povo de uma nag4o. Gilberto AMADO conclui que restam apenas “trezentas ou quatracentas mil pessods pertencentes as familias proprietarias de escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho”. GOMES, Orlando, Rafzes hist6ricas ¢ sociolégicas do Codigo Civil brasileiro, p. 24. “Agora, no século das luzes, mantém-se a vontade do monarca, mas pretende-se substiluir 0 utrumque lus pela rastio, Rel v ruzéo nerio as fontes do direito. A viragem vai ser mareada ee — Historia do Direito em Perspectiva 353 Essa Lei ¢, segundo a maior parte dos historiadores do Direito, a ex- pressiio do iluminismo despético, que promove uma sistematizag3o das fontes, bane os usos e métodos de interpretacdo medievais e proibe, expressamente, a utilizagao das glosas de Bartholo ¢ Acursio. Diz a Lei: “mando que as glosas e opinides dos sobreditos Acursio e Bartholo nao possam mais ser alegadas em juizo (..)”. Nesse contexto, as Ordenagdes do Reino passam a ser aplicadas de acordo com a metodologia proposta pela Lei e sofrem as modulagdes da razio natural, segundo os interesses da Coroa. José Reinaldo de Lima Lopes observa: “No proposito da reforma, o jurista tornar-se-ia érgdo de aplicacdo estrita da vontade do poder soberano, submetido mais estritamente 4 legalidade”. No Brasil, por mais de trés séculos, estiveram em vigor as Ordenagdes Filipinas, publicadas em 1603, momento em que Portugal era dominado pela Espanha. Para Braga da Cruz, estas Ordenagées j4 nasceram velhas, na medida em que significavam uma nova versdo das Ordenagées Manuelinas, “constituin- do, verdadeiramente, uma presenca da Idade Média nos tempos modernos””. Assim, a Lei da Boa Razio foi extremamente importante para 0 Direito portugués ¢, conseqiientemente, para o Direito brasileiro. “Nenhuma reforma pombalina no campo da legislacdo teve alcance maior, por seu sentido autenti- camente revoluciondrio”. Essa lei determinava que se procurassem as opinides com boa razio dos Doutores, para a integragio das lacunas das Ordenagées. Para Martins Junior, a principal caracteristica dessa lei foi “o crescimento das liberda- des doutrindrias e do arbitrio juridico de que gozavam advogades e julgadores"® Deve-se notar que, justamente, por causa desse novo critério de inter- pretagio e integracdo das lacunas da lei, foi que se deu uma “extraordindria vitalidade das Ordenagdes Filipinas (...) abundancia de omissées, foi, quicd, o segredo de sua longevidade em Portugal, e mais do que Id, no Brasi?", No Brasil, ap6s sua separagio politico-administrativa da Coroa portu- guesa, em 1822, o direito aplicavel continuou sendo o direito das ordenagdes, segundo os canones da Lei da Boa Razao. Ressalte-se que os temas pertinentes ao direito privado, sobretudo os relativos a familia ¢ 4 sucessdo hereditdria, cram julgados de acordo com os direitos das Ordenagdes e segundo os escritos de autores portugueses, até o advento do Cédigo Civil em 1916. A reforma iluminista promoveu, também, a Reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra, em 1772. Nessa Universidade, foram educados os pela referida lei de 18 de agosto de 1769 que, pela sua constante referéncia & boa ra: crismada de Lei da Boa Razdo”. GOMES DA SILVA, Nuno J. Espinosa. Histéria do di Portugués, p. 276. § LOPES, José Reinaldo de Lima, O direito na histéria: LigSes introdutérias, p. 270-271. 7 GOMES, Orlando. idem, p. 4 GOMES, O. Adem, p. 5. ° GOMES, O. Idem, p. 6. GOMES, O. Idem, ibidem. foi 354 José Anténio Peres Gedie! primeiros juristas modemos do Brasil independente © que iriam compor um primeiro grupo de romanistas brasileiros. Gomes da s itando Luis AntOnio Verney, nos indica a importancia do Direito Romano em ‘Coimbra como fonte de interpretaglo das Ordenagves “Apés o estudante ter ‘tido bem a Histéria Romana, a qual dé: luz para entender as Leis Romanas, deve antes de fazer outro passo, ler a Historia do Direito Civil, principalmente do Romano’. 86 entao, 0 estudante tomaria contacto com os textos do direito romano, comecando pelas Insttuicdes™ © modelo coimbrao se instala no Brasil com a fundagdo dos cursos jur- dicos, em 1827, em Sd Paulo e no Recife, embora os Estatutos da Univer sidade de Coimbra nao tenham sido adotados pela lei de 11 de agosto, que criou tais cursos. José Reinaldo Lima Lopes falar do romanismo brasileiro, também indica a convivéncia de duas tendéncias presentes no Brasil, no que se refere a0 ireito Romano aplicavel ao Direito Civil. Diz 0 autor: “Os primeiros cursos Juridicos brasileiros, de cuja criacao participam homens que estudaram na Coimbra reformada, refletem esta reserva oitocentista ao direito romano & ‘moda antiga, ao jus commune. Jé em meados do século XIX, porém, o direito romano que vier a ser introduzido sera o da pandectistica alema"™. © particularismo do racionalismo juridico implantado em Portugal, pela Lei da Boa Razio, 0 romanismo dos cursos juridicos, a mentalidade colonial ¢ colonizadora dos juristas lusitanos, no Brasil, € posterior influéncia da pandec- tistica alema, parecem ter influenciado, decisivamente, para o perfil do direito privado brasileiro. Somam-se a esses fatores culturais, os limites materiais da eco- romia escravista ¢ a caracteristica autoritéria da Constituigao Imperial de 1822. Por um lado, racionalismo pretendido pela Lei da Boa Razio era, além de autoritério, deslocado das realidades da Colénia e do recém fundado Império brasileiro, porque, evidentemente, preso as razies do Estado portupués Por outro lado, a influéncia das idéias alemas e 0 desejo de estarem alinhados “cigneia juridica” de Savigny afastavam, ainda mais, os juristas de uma reflexio propria. A esse conjunto de tradigdes € herangas culturais somaram-se as exi- géncias econdmicas, politicas e sociais que irio determinar o perfil do ensino Juridico que se implantou, logo apés a independéncia, conforme nos indice ‘Mota: “No plano educacional e ideolégico, constata-se o fato de os projetos de eriagiio da Nagéo e de reconstrucao educacional terem ocorrido concomitante- ‘mente. Um ‘raro momento de criagao politica’, segundo Joaquim Falcéo. De {fato, no contexto histérico da descolonizagao e da independéncia howve meres ‘improvisacdo do que se costuma apontar™* GOMES DA SILVA, Nano J. Espinosa. Op. cit, p.274, LOPES, José Reinaldo de Lima. Op eit, p. 229-230, MOTA, Carlos Guilherme. Op. ct, p. 142 Histéria do Dircito em Perspectiva 355 Seguindo 0 espirito conservador e aristocratico mesclado com o libera- lismo econémico e politico restrito as elites brasileiras, criaram-se, em 11.08.1827, os dois primeiros cursos de Dircito, o de Olinda ¢ o de Sao Paulo, um no nordeste e outro no sudeste — regides mais ricas do Império. O objetivo desses cursos era fortalecer a emancipagdo brasileira, garan- tir uma sdlida formagao aos juristas e, ao mesmo tempo, suprir as necessidades burocraticas do Império. Nos estatutos desses cursos juridicos, constam, expli- citamente, esses objetivos: Tendo-se decretado que houvesse, nesta Corte, um curso juridico para nele se ensinarem as doutrinas de jurisprudéncia em geral, a fim de se cultivar este ramo da instrugdo piiblica’e se formarem homens hdbeis para serem um dia sdbios Magistrados e peritos Advogados, de que tanto se carece; e outros que possam a vir ser dignos Deputados e senadores, e aptos para ocuparem os lu- ‘gares diplomiticos e mais empregados do Estado. (CUNHA, 2000, p. 58) Para atingir tais objetivos politico-administrativos, os curriculos refor- gavam a influéncia do Direito Natural e do Direito Eclesiastico. O primeiro tipi- co do pensamento jusnaturalista liberal. O segundo revelador da influéncia do Dircito Canénico em Portugal’. Ambos cram orientados pela necessidade de se delinear uma feigo propria para a nova nacao"* Entre 1822 e 1850, o poder centralizado do Império firmou-se, comple- tamente, e provocou o deslocamento da atividade dos juristas para 0 campo do direito privado, principalmente, 0 Direito Comercial € 0 Direito Civil de Familia e Sucessdes. A questéio do trabalho escravo aparecia em todos os campos da ativida- de juridica, seja na questo do trafico que afetava as relagdes comerciais com a Inglaterra, seja em matéria de familia, em virtude dos incontaveis filhos havidos fora do casamento oriundos de relagdes sexuais entre senhores e escravas, 0 que também gerava inumeras e complexas questdes sucessorias. Por outro lado, a discussao politica ou juridica sobre a escravidio, no Direito Pablico ou Privado, vinha sempre recoberta de argumentos emocionais, de cunho religioso ou humanitario, da parte dos opositores, ou de argumentos romanistas ou tradicionalistas, por parte dos defensores do trabalho escravo. rio na histéria do direito ‘* Neste sentido: CRUZ, Guilherme Braga da. O direito subsi portugués. Coimbra: Coimbra, 1975. 'S O curriculo seguia a seguinte estrutura. No |° ano, a |* cadeira com Direito Natural Piblico, Andlise da Constituig0, Direito das Gentes, e Diplomacia. No 2° ano, a 1° cadeita com Conti- nuagao das matérias do ano antecedente; © adeira com Direito Pablico Eclesiastico. No 3° ano, a I* cadeira com Dircito Patrio Civil; e a 2* cadeira com Dircito Pétrio Criminal, ¢ Teoria do Processo Criminal. No 4° ano, a 1* cadeira com Continuagio do Direito Pitrio Civil; e a 2* cadeira com Direito Mercantil e Maritimo. No 5° ano, a |* cadeira com Economia Politica; e 2* cadeira com Teoria ¢ Pratica do Processo adotado pelas Leis do Império. 356 José Anténio Peres Gediel Assim a igualdade nto figurava no debate ¢ a liberdade era apenas penseda ‘como a “quebra dos grilhoes”, De qualquer sorte, 0 Segundo Império se firmou © ampliou ainda mais ‘0s espagos para os juristas, permitindo uma mudanca significativa nos estudo de Direito e na mentalidade jurfdica brasileira, como assinala Fonseca: Por outro lado, a partir da segunda metade do século XIX. outro perfil de jue risia comeca a se sobressair. Ja préximo dos anos 60, aparece a importante fi ‘gura de Teixeira de Freitas, (..) que traz consigo de maneira acentuada a pre- song da doutrinaalema.(..) A obra de Teixeira de Freitas, de fat, representa time tentative de busca de outros padroes e de uso de outros referenciaisteér- 08 (dos ‘adiantados’ conceitualistas alemdes) claramente em oposi¢do ao uso dos rradicionais mamuais impregnados da escoldstica e de um jusracionalismo dio ancien regime" Por inspiragio do positivismo, o ensino juridico adota uma vertente cuja base epistemologica se alicergava na crenca de que a ciéncia, como instrument de orientacao, poderia oferecer respostas para todos os problemas da humanida- de, reconhecendo a objetividade cientifica e privilegiando-se os campos priti- 0s, téenicos e aplicados dos cursos. Grinberg” analisa 0 impacto do positivismo sobre a cultura dos juriste, a0 dizer: *(..) desde aproximadamente a década de 1870, a formacéo de bacha- réis em Direito estava embebida do espirito positivista evolucionista que ca- racteriza 0 pensamento cientifico-politico da época. Acreditavam que as socie dades evoluiam positivamente, e que era possivel alcangar um estagio superior partir da elaboragéo de boas leis”. Decorre desse alinhamento politico-ideol6gico ao positivismo a exigén- cia de afirmagdo da neutralidade das normas juridicas e da fung2o do jurista Contudo, 0s cursos no deixam de ter por objeto a formacao de quadros para a administragio e para a politica do Estado. Mas se, antes, os juristas eram convo- cados para cuidar apenas das questées de Estado — deixando os conflitos parti culares para serem resolvidos pelos senhores de engenho e por esferas privadas ou particulares, agora deveriam participar, ativamente para a organizagio da sociedade. Com a Reforma do Ensino Livre no Brasil, em 1879, 0 Decreto 7.247 ‘trouxe no s6 a expansiio de cursos juridicos'*, mas também introduziu um novo FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura juridica brasileira na segunda metade ‘do século XIX, p. 363-368 1 GRINBERG, Keila. Cdigo Civile cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 33. Foram cridas dua faculdades na cidade do Rio de Janeiro, unificndas com a eriagio da Uni ‘ersidade do Rio de Janeiro em 1920; uma em Porto Alegre, em 1900; uma em Fortlec. «em 1903; uma em Ouro Preto, em 1892, transferida para Belo Horizonte em 1898; ¢ uma ett (Curitiba, em 1912. (BASTOS, 1998) b> sae Historia do Direito em Perspectiva 357 paradigma para o ensino do Direito, o da Filosofia do Direito, ancorada no posi- tivismo francés, N&o por acaso, no ano de fundagao da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, criada com 0 intuito de divulgar o pensamento filoséfico nestas terras, é editada a reforma que divide as faculdades de Direito em duas segdes distintas: uma de ciéncias juridicas e outra de ciéncias sociais”. Dez anos depois, com 0 advento da Republica, o posit tivismo francés se afirma como doutrina predominante para reorganizaco administrativa do Esta- do, agora laicizado, embora o liberalismo norte-americano determine a forma federativa de governo. Essas duas tendéncias levam os juristas a se dedicar mais ao Direito Administrativo e Publico, de carater republicano, distanciando-se, pouco a pouco, da tradigdo colonialista. Aos poucos, também, excluem-se matérias como Di- reito Natural Publico e Direito Publico Eclesiastico (1890), e privilegiam-se, a0 mesmo tempo, a criago das cadeiras de Filosofia, Histéria do Direito e de Le- gislacao Comparada”. Augusto Teixeira de Freitas, considerado 0 maior civilista brasileiro do século XIX, ira elaborar a Consolidagdo das Leis Civis, escrever 0 Esbogo do Cédigo Civil e travar a polémica com Caetano Alberto a respeito do status libertatis. Teixeira de Freitas nasceu na Provincia da Bahia, em 1816. Formou-se, em 1837, na Academia de Ciéncias Sociais e Juridicas de Olinda. Por ter parti- cipado do movimento republicano denominado “Sabinada”, foi designado Juiz em Salvador. Com a derrota desse movimento, foi processado; absolvido. Nesse mesmo ano de 1837, mudou-se para o Rio de Janeiro”', Capital do Império, onde '° A primeira, com direito natural, direito romano, direito constitucional, direito eclesidstico, direito civil, direito criminal, medicina legal, direito comercial, teoria do processo criminal, ci- vil e comercial e uma aula pritica dos processos. A segunda, com matérias de direto natural, di- reito publico universal, direto constitucional, direito eclesiastico, direito das gentes, diplomacia e historia dos tratados, direito administrativo, ciéncia da administragao ¢ higiene publica e eco- nomia politica. 2 A Lei 341, de 30.10.1895, fixou o curriculo para os cursos de Direito. No 1° ano: 1* cadeira, Filosofia do Direito; 2* cadeira, Direito Romano; 3* cadeira, Diteito Piblico Constitucional. No 2° ano: 1* cadeira, Direito Civil; 2* cadeira, Direito Criminal; 3* cadeira, Direito Intemacional Publico € Diplomacia; e 4* cadeira, Economia Politica. No 3° ano: 1* cadeira, Direito Civil; 2 cadeira, Direito Criminal, especialmente Militar e Regime Penitenciirio; 3* cadeira, Ciéncias das Finangas ¢ Contabilidade do Estado; 4* cadeira, Direito Comercial. No 4° ano: 1* cadeira, Direito Civil; 2 cadeira, Direito Comercial; 3* cadeira, Teoria do Processo Civil, Comercial ¢ Criminal, 4* cadeira, Medicina Piblica, No 5° ano: 1* cadeira, Pritica Forense; 2° cadeira, Cién- da Administragio e Direito Administrativo; 3* cadeira, Historia do Direito e especialmente do Direito Nacional; 4* cadeira, Legislapao Comparada sobre Direito Privado. 31” Silvio Meira, citando Luis Edmundo, descreve o ambiente da capital do Império: “O Rio de Janeiro daquela época era, nas palavras de Luis Edmundo, ‘uma cidade trapenta, cheia de atraso e imundice’. O que explica a criagiio do IAB nesse contexto é 0 intercdmbio de idéias entre novos juristas e as grandes naydes civilicadas da época. ‘Era preciso transplantar para 0 Brasil 0 que houvesse de aproveitdvel no exterior”, MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas: O jurisconsulto do Império, p. 74. 358 José Anténio Peres Gediel fundou, em 1843, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) juntamente com Carvalho Moreira, Montezuma, Josino do Nascimento Silva, dentre outros. Alcangou a presidéncia desse Instituto em 1857, no entanto, nao per- maneceu no cargo durante muito tempo, devido ao incidente polémico provoca- do por discussdes em tomo da escraviddo, fato que nos fornece pistas sobre as peculiaridades que marcam a vida deste e de outros juristas do Império. A polémica refere-se a uma consulta formulada a Caetano Alberto Soares, que a levou ao conhecimento do recém criado Instituto dos Advogados do Brasil, em 1857. A consulta consistia em saber se: “‘sdo livres ou escravos os filhos de uma escrava que em testamento foi libertada, mas com a clausula de servir a um herdeiro ou legatario enquanto viver”. Caetano Alberto emitiu Parecer no qual concluiu que os filhos eram li- vres. Teixeira de Freitas opinou em sentido contrario, afirmando que os filhos nasciam escravos. E interessante notar que ambos os juristas recorreram ao Direito Roma- no para formularem suas respostas e o debate revela a extrema erudigdo de am- bos, em relag&o aos textos romanos. Teixeira de Freitas, em sua carta-resposta ao Instituto dos Advogados, revela essas facetas em varias passagens, ao dizer: Em questées de jurisprudéncia, ndo posso compreender que se desenvolvam paixoes. (...) Admitida a escravidao, suspende-se, logo, ou antes, suprime-se nao o direito, mas o exercicio dele. Tudo é natural, tudo é rigor, ndo tenho feito mais do que aplicar principios, do que lembrar-vos verdades, umas axio- maticas, outras perfeitamente demonstradas, que a sabedoria dos séculos tem entesourado, e que formam, hoje, o corpo de doutrinas, que se chama Ciéncia do Direito. (...) E demais, ndo podeis me fazer maior honra do que chamando- me de romanista. Nas leis e doutrinas do direito romano esta depositada toda a filosofia do direito™. Segundo Silvio Meira, considerado o bidgrafo mais qualificado de Teixeira de Freitas, este jurista era contra a escravidio e, segundo a maioria dos autores, a sua posigao anti-escravocrata resultou no insucesso do seu esbogo de Codigo Civil. A reputagao de anti-escravocrata de Teixeira de Freitas, nao nos permite compreender sua resposta, se nao atentarmos para as peculiaridades da formagao e da insergao deste e de outros juristas, na sociedade imperial escravocrata bra- sileira. Segundo Spiller Pena, 0 episdédio foi minimizado pelo siléncio de Teixeira de Freitas e pela fama de antiescravista que alguns autores como Nabuco de Araujo a ele atribuiram, como esta sintetizado na seguinte passagem: “Nabuco, na sua caracterizagdo dos jurisconsultos do IAB como produtores de uma 22 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas: O jurisconsulto do Império, p. 86. Historia do Direito em Perspectiva 359 ‘consciéncia social’ antiescravista, significativamente néio mencionou o episé- dio. O préprio Teixeira de Freitas, que foi sécio-fundador e até presidente do instituto, passou ao largo dos elogios tecidos pelo historiador-abolicionista”™. Esse siléncio significativo também parece se enquadrar na tradigao juri- dica herdada de Portugal, conforme sugere o texto de Hespanha: “Nos séculos XVI e XVII, a escravatura foi uma instituigdo muito difundida em Portugal. Apesar de alguns juristas tratarem do regime das relacdes entre os senhores e 0s escravos, nao deixa de surpreender um certo siléncio sobre o tema. Que se explica, seguramente pelo facto de tal regime cair dentro da discricionariedade da gestao doméstica cometida ao pater familias” Mais adiante, Spiller Pena escreve sobre 0 sestidss de ansiedade produzi- do por dilemas morais enfrentados por pessoas livres que de alguma forma vi- venciaram a escravidao. Referindo-se ao civilista, diz: Teixeira de Freitas, ao que demonstram nossas evidéncias, viveu esse dilema, tomou sua decisdo e arcou com os incémodos que ela possivelmente tenha ge- rado. Para ele, no entanto, encontrou o paliativo de um remédio muito especial: 4 justificativa da lei. Prossigamos. Jé verificamos sua confissdio no IAB de que 05 castigos aplicados aos escravos o ‘afligiam’, Sua atuagdo como advogado néio o poupou de lidar com essa mesma situacdo"’. A reputacdo de anti-escravocrata de Teixeira de Freitas, nao nos permite compreender sua resposta, se n&o atentarmos para as peculiaridades da formagao e da insergiio deste e de outros juristas, na sociedade imperial escravocrata bra- sileira. Ao que parece, Teixeira de Freitas, apés sua participagao no movimento republicano baiano, “Sabinada”, tentou se afirmar como advogado ¢ como ju- rista, participando da vida cultural e juridica do Império. Seu republicanismo de vertente liberal nao encontrou espago, apés a consolidacao do poder imperial. A par disso, na base de seu conhecimento juridico encontrava-se a he- ranga do dogmatismo coimbrdo, ao qual, recentemente, comegava a se incorpo- rar 0 pensamento do positivista da escola pandectista alema, que influenciou Teixeira de Freitas, decisivamente, na elaboragio do Esboco de Cédigo Civil. “Mas ele é sobretudo um romanista dos novos tempos”, Como se vé, 0 episddio revela a mentalidade dos juscivilistas do Impé- rio brasileiro, mas também langa algumas dividas que perduram até hoje. Tei- xeira de Freitas ja era, a época, um conhecido jurista, e realizaria a Consolidacao PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperi p. 77. PENA, E. S. Op. cit.,p. 58. PENA, E. S. Op. cit., p. 104. LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 302. jurisconsultos, escravidio e a lei de 1871. 360 José Anténio Peres Gediel das Leis Civis logo em seguida. Fora adepto do movimento republicano e, ape- sar disso, formula sua resposta com base em textos romanos, seguindo as licdes de Savigny. Esse episédio coloca em confronto o jurista que, orientado pelo pensa- mento positivista, acredita na neutralidade do direito e busca na autoridade dos textos romanos uma unica resposta certa sobre um problema. A questio ultra- passa as fronteiras do juridico e atinge as concepgdes éticas e politicas do cidaddo Teixeira de Freitas, membro da sociedade brasileira do século XIX. Desse evento, restam indagagées sobre a formagao do direito privado moderno no Brasil, seus particularismos, as razées de Estado, as acomodacées das teorias recebidas dos paises do centro do capitalismo. REFERENCIAS FONSECA, Ricardo Marcelo. A cultura juridica brasileira ¢ a questao da codificagao civil no século XIX. Revista da Faculdade de Direito UFPR, n. 44, 2006. GOMES, Orlando. Raizes histéricas e sociolégicas do Cédigo Civil brasileiro. Sao Paulo Martins Fontes, 2003. GOMES DA SILVA, Nuno J. Espinosa. Histéria do direito portugués. Lisboa: Fundarao Calouste Gulbenkian, 1985. v. I. HESPANHA, Antonio Manuel. O direito dos letrados no Império Portugués. Florianépolis: Boiteux, 2006. LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na histéria: Ligées introdutérias. 2. ed. Sio Paulo: Max Limonad, 2002. MEIRA, Silvio. O direite vive. Goiania: UFG, 1984. . Teixeira de Freitas: O jurisconsulto do Império. 2. ed. Brasilia, 1983. MOTA, Carlos Guilherme. Os juristas na formagiio do Estado-nac4o brasileiro. Sao Paulo: Quartier Latin, 2006. v. I. PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: Jurisconsultos, escravidao e a lei de 1871. Campinas: Unicamp, 2001. RUFINO, Almir Gasquez; PENTEADO, Jaques de Camargo, Grandes juristas brasileiros. 1. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003.

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