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“CAPITULO 16 REGRAS DE CALIBRAGAO NO PROCESSO PENAL 10.1 Conceito de regra de calibragao E denominada de regulagao ou calibragem a incidéncia que diverge da expectativa consequente, mas que atende aos propésitos do justo processo. Cuida-se de solugao pragmati- ca que somente deve ser admitida se proporcionar eficacia maior ou equivalente ao direito fundamental. Nesse contexto, a calibragéo decorre de norma juridica que tem o efeito de desviar a consequéncia que, normalmen- te, seria imponivel. E chamada regra de regulagem ou de ca- libragao porque, descrita como prescritor de natureza excep- cional, visa a controlar a reacdo normativa, a fim de conferir justeza, justiciabilidade ao sistema juridico. Sob a 6tica do sistema, visa a outorgar equilfbrio, tal qual um termostato que tem o papel de manter constante a tem- peratura de uma estrutura. A expressao tem fonte no estudo sobre Pragmatica da Comunicagao Humana, de Paul Watzla- wick, Janet Beavin e Don Jackson, @) ambito de definido. O sistema comunicativo humano envolve variagées que, embora impliquem mudangas, devem representar uma cons- tAncia fundamental. A regra de calibragéo tem, outrossim, funcao escalonada, tal como o cambio de marcha de um auto- mével, com efeito estabilizador do sistema. Volvendo para a comunicagao humana, os tedricos suge- rem os seguintes caracteres, componentes de um sistema: (1) ha “uma calibragao do comportamento habitual ou aceitavel, as regras de uma familia ou as leis de uma sociedade, dentro das quais os individuos ou os gru- pos costumam funcionar”; — fai (2) emum dado nivel, o sistema é bastante estavel, “pois um desvio na forma de comportamento, fora do 4m- bito aceito, 6 contrabalancado”, isto é, disciplinado, sancionado ou substituido; (3) em outro nivel, a alteragdo pode ocorrer a longo pra- zo, com ampliacao de desvios e configuragéo de ou- tro estado de sistema (fungao escalonada).*” 10.2 Relato e cometimento da comunica¢ao normativa ‘ Os aspectos do pragmatismo descritos no t6pico anterior foram desenvolyidos por Tercio Sampaio Ferraz Jr, a partir: 359, WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet H da comunicacdo humana: um estudo dos padroes, pat ‘Alvoty Cabral Bap Pau: Gulla 2007, Para auxiliar na elucidagéo do funcionamento das regras de calibrag&o no processo penal, as conclusées de Tercio Sam- paio Ferraz Jr. sao v: as. A gama de relagées 6 interligada em uma teia normativa, que deve ser supedaneada em justi- ficag&o comunicativa, para retratar o equilfbrio sistemAtico. O ilustre jusfilésofo diferencia duas formas de configura- co da norma juridica: (1) 0 aspecto-relato: dialégico e resultante da relagao entre o enunciado e o intérprete; (2) © aspecto-cometimento: monolégico, expressao do sentido dado pelo érgao aplicador.” 10.3 Aspecto-relato da norma juridica As relag6es possiveis na junicagao jurfdica envolvem aqueles dois aspectos da mensagem normativa. Ambos se de- senvolvem conforme um fio que vai de antecedente a conse- quente, em dado tempo e ambito do sistema.” Na teoria normativa de Tei Sampaio Ferraz Jr., 0 as- pecto-relato é constitufdo pela descrigao da agao e da condi- cao da acao, devendo conter a narrativa da conduta pressu- posta e de suas consequéncias. E dialégico, eis que admite reflexibilidade. Essa descricao nao exaure a analise normati- va que sera completada pela parte seguinte. 361. WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D, Pragmética da comunieacao humana: um estudo dos padroes, patologias e paradoxos da intera- 0 Cabral. So Paulo: Cultrix, 2007, p.182-133. :paio, Teoria da norma juridica: ensaio de pragmatica Forense, 2009, p51 et seq 40. Tradugao: A 362, FERRAZ JR. io » normativa, 4. ed. Rio de Jan da comunicas WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet H da comunicacdo humana; um estudo dos padroes, pata ¢40. Tradugao: Alvaro Cabral, Sao Paulo: Cultrix, 20 cisho a ser tomada (decisao prévia ou relato), como também deve explicitar como aquela pré-deciséo precisa ser entendi- da pelo seu destinatério, descrevendo, em sobrelinguagem, a informacao sobre a informag4o (cometimento).™ As incompatibilidades entre esses aspectos, com prejufzo & imunizagdo normativa e possibilidade de reagdo dos ende- recados, serao examinadas mais adiante, a fim de possibilitar a compreensao das regras de calibragao.* 10.4 Aspecto-cometimento da norma juridica O Aspecto-cometimento é composto pela relagdo de me- tacomplementariedade, que envolve autoridade e sujeigao e que se instaura entre 0 editor-enderegado (juiz) e 0 sujeito- -receptor. E monoldgico, porquanto deve precisar como ser entendida a mensagem normativa,™ diante da relagéo meta- complementar que, entre editor e sujeito, é estabelecida. O que Tercio Sampaio Ferraz Jr. denomina de metacomplementari- dade tem sua determinacao ao nivel do aspecto-cometimen- to do discurso, pelos operadores (functores deénticos). Nas suas palavras, “os operadores normativos tem uma dimensao pragmatica além da dimensio sintatica, pelas quais, nao sé é dado um carter prescritivo ao discurso ao qualificar-se uma acAo qualquer, mas também Ihe é dado um carter metacom- plementar ao qualificar a relagao entre emissor e receptor”. 364, FERRAZ JR, Tereio Sampaio. Teoria da norma juridica: ensaio de pragmatica da: comunicacao normativa. 4. ed, Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 51-54; 106-107, 365, LE “arlos Henrique Bezerra; PIM , Paulo Roberto Lyrio; PELA, Carlos. A validade e a eficdcia das normas juridicas, Barueri: Manole, 2005, p77, Paulo; Annablume 367. FERRAZ JR, Tercio Sampaio, Teoria da norma juridica: dda comunicagao normativa. 4, ed, Rio de Janeiro: Forense, 2009. p.105 ne on (no interior de uma norma 'tivas (entre duas normas jurfdicas) poderao ser Reeseivals ou incompativeis. Havendo incom- patibilidade légica, poderé ser afetada a efetividade, a impe- ratividade ou a validade da mensagem normativa, consoante elucidam, na mesma esteira, Carlos Henrique Bezerra Leite, Paulo Roberto Lyrio Pimenta, e Carlos Pelé.” 10.6 Controle de imunizacao normativa Tercio Sampaio Ferraz Jr. deixa evidenciado que a comu- nicagdo ndo estard imunizada contra as reagdes do enderega- do quando incorrer em incoeréncias entre 0 aspecto-relato eo aspecto-cometimento, seja no interior de uma norma, seja na relagao entre varias normas jurfdit encadeadas no discurso comunicativo.” Peres Caso 0 enredo normativo padeca de defeito de imunizagao, restaré afetada a possibilidade de controle das reacGes dos desti- natérios. O problema poder ocorrer quando nao for respeitada a programacao de sua edicao ou relato, nos niveis seguintes, em ‘compasso com o ensinado pelo jusfilésofo e analisado por outros autores como Carlos Leite, Paulo Pimenta e Carlos Pela” (1) Divergéncia entre 0 aspecto-relato e 0 aspecto co- metimento de uma mesma norma juridica: have- rd incompatibilidade intranormativa, que reduz a efetividade, ferindo a possibilidade de obediéncia. A o de um dever-ser, quando desconectado de arlos Henrique Bezerra; PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio; PELA, validade ea eficécia das normas juridicas. Barueri: Manole, 2005. p.77. 69, FERRAZ JR, Tercio Sampaio, Teoria da norma juridica; ensaio de pragmsitiea, da comunicagéo normativa. 4, ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, PANG i 410, LEITE, Carlos Henrique Bezerra; PIMENTA, Paulo Roberto Lyi Carlos. A vatidade e a eficdcia das normas juridicas, Barueri: Maa Conflito entre o aspecto-cometimento de uma norma jurfdica e 0 aspecto-cometimento de outra norma ju- ridica: hipétese de incompatibilidade internormati- va, no nfvel exclusivo dos receptores, que prejudica a imperatividade, diante da contradigéo entre comu- nicagées. Nao é légico dizer que algo é obrigatério e, ao mesmo tempo, afirmar que é proibido.” (3) entre o aspecto-relato de uma norma juridica imuni- zante e o aspecto-cometimento de outra, imunizada: consiste em incompatibilidade internormativa que in- terfere na validade do discurso, afetando a possibilida- de de exigéncia, em virtude do rompimento do enlace entre normas juridicas reciprocamente implicadas."* Tais argumentos significam dizer que uma vez cons- trufda, por exemplo, uma norma declaratéria de nulidade de ato processual, o editor-enderecgado (juiz), ao transmitir uma mensagem ao destinatario-receptor, descrevendo a nor- ma nulificadora, atuara no sentido de definir posigGes de tal modo que finda por assumir uma “relagdo complementar (metacomplementaridade)” A titulo de exemplo da aplicagao dos fundamentos de Ter- cio Sampaio Ferraz Jr, ao processo penal, é possivel visualizar a descri¢ao dos aspectos normativos que viabilizam controle na estrutura normativa nulificadora de ato juridico atipico: 1. RIOS, Josué. A defesa do consumidor e o direito como instrumento de mobiliza- neiro: Mauad, 1998. p.156 ao social. Rio de J tivo. Revista Semina, Londrina, MIGLIORINI, Cloter. O direito como impe 2 p.108, 1988. MAURICIO, Ubiratan de Couto. Caréter normative (validade) das negras pra= gramaticas; um ensaio introdutorio. Revista da ESMAFE ~ TRRS, Recife; 1-1, #1, 2001 74, FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Teoria di da comunicagao normatis ed, Rio de Janeiro: Fore a9, © ato processual reconhecido como nulo; a partir dessa segunda mensagem normativa, o juiz pode tanto simplesmente transmitir a mensagem, como pode, além disso, fazer um coment4rio sobre ela, determinando o refazimento do ato ou, ainda, aplicando o principio da concatenagao, ordenando o desfazimento dos efeitos de todos os atos processuais dependentes do ato nulo (prejudicialidade). 10.7 Analise da regra de calibracgao A compatibilidade discursiva do segundo aspecto norma- tivo depende do enlace descritivo que nasce a partir do primei- ro. Havendo rufdo comunicativo, podera advir consequéncias negativas a efetividade, imperatividade ou validade.** Como frisado, é de Tercio Sampaio Ferraz Jr. a fonte da definicao de regra de calibracao. O autor aponta que a norma juridica é caracterizada pela sua imperatividade, retratada pela relacéo de calibracao entre o aspecto-cometimento de uma norma juridica e o aspecto-cometimento de outra norma juridica (nao contradi¢ao no interior do sistema)‘ Note-se que 0 aspecto-cometimento representa 0 carater monolégico da comunieacao que se dé quando depois de fixa- do 0 sentido encontrado no encerramento do caminho inicia- do a partir dos enunciados abstratos. No campo destes, dor- mita 0 carter dialégico, diante das alternativas possiveis.” 5, Curlos Henrique Bezerra; PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio; PELA, ae riigeae a eficdcia das normas juridicas. Barueri; Manole, 2005. p.78-79. 316, FERRAZ JR, Tercio Sumpaio, Teoria da norma juridi ensio de pragma da comunicagéo normativa, 4, ed, Rio de Janeiro; Forense, 2009. p31. 377. LEITE, Carlos Henrique Bezerra; PIMENTA, ie R Carlos. A palidade ¢ a eficdeia das noes suid ‘i Mimiperatividade das regras de Gallsraclo aa eneeem tra na estabilizagéo da definigéo dos aspectos-come- timento das normas; calibragdo é regulagem de enunciados que informam as possibilidades implicadas no espaco da relacéo normativa, consideradas as variagées possiveis;*” (8) 0 fito precfpuo é dar racionalidade as decisées jurf- dicas de invalidagao ou de convalidagao de atos pro- cessuais atfpicos naquelas hipéteses que se distan- ciam do modelo rigido antecedente-consequente; (4) taldesvio 6 explicado, por parte da doutrina, como fe- némeno da relativizagao das nulidades processuais. E nesse espaco que se encontra a pragmatica do discurso normativo, quando a norma juridica se adequa 4 modificagao es- tatuida por enuneiado que sufraga 0 desvio do consequente que seria geralmente previsivel, para lhe atribuir um sentido haurido do leque possibilista. A justificativa 6 de estabilidade do sistema, assegurando a coeréncia e autoridade do direito vigente” 378, FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Teoria da norma juridica censaio de p da comunicagio hormativa. 4. ed, Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.133. 379, FERRAZ JR, Tereio pie Teoria da norma FW normativa, constituindo- -se a informa- cao em estado bruto. informagao sobre info magao (sobre linguagem, interpretagao). Situa-se ho nivel d destinatario, consolidando a iridicidade do sistema. Nao bes ou ques tionamentos de outra, Deserigao ‘Acontradigao | A incompati- metacom- logra contera’ | entre prescri-__ | bilidade entre plementare — | aleatoriedade | goes de condu- | esses aspectos monolégica. | do cometimen. | tas prejudica que instaura | to,no nivel’ | a imperativi- relagio entre | damesma dade, Ocorre oreceptore | norma,haveri | noniveldo —_| reacdo dos oemissorda | inefetividade, | aspecto-co- | destinatérios. mensagem |emfaceda _| metimento de normativa. E> | desobediéncia. | uma norma e regulagem | pode incidir, na relagdo internormativa, entre “o aspecto-co- metimento de uma norma pelo cometimento de outra norma”, na toada do magistério de Tercio Sampaio Ferraz Jr. Consiste, pois, em uma “qualidade pragmatica do discurso normativo, através da qual a norma se adapta a mudangas e desvios em razo de uma estabilidade conhecida”. Consoante os passos do jusfilésofo quando descreve a relagao entre norma e sangao: (1) 0 discurso normativo é de natureza deciséria e “es- truturalmente ambiguo, em que o editor controla as reagées possfveis aos enderegados ao garantir expec- tativas sobre as expectativas de reagao, determinando as relacées entre os comunicadores na forma de uma metacomplementaridade caracterizada como imposi- cdo de complementaridade e imposicao de simetria”; (2) por outro lado, “o importante para o cometimento normativo nao é 0 cumprimento efetivo do relato (uma norma pode ser desobedecida e, apesar disso, a relacdo de autoridade permanece), mas a garantia de que reagdes que desqualificam a autoridade, como tal, estao excluidas da situacao comunicativa” 10.8 Regra de calibracao no processo penal Aregra de calibracao no processo penal sera assim consi- derada pela natureza de excecao A consequéncia juridica que seria normal. Por exemplo, o enunciado n° 160, da Simul mo Tribunal Federal, verbera ser “nula a deei do Supre- IEP Thos de wtniada absotuts,poréea ha Guabee : a consequencialidade que decorreria como regra, do aspecto cometimento de outra norma jurfdica, Com raciocfnio andlogo, incidem, a titulo de regra de ca- libragao, as hipdteses do art. 572 do CPR. Séo casos: (1) que nao desnaturam a natureza absoluta das nu- lidades cominadas no seu art. 564, situadas na com- pleigao de relato; (2) porém, afetam a consequencialidade normativa de invalidagao, localizadas no aspecto-cometimento. De todo modo, devem se submeter ao filtro constitucio- nal, para que possam ter aplicagao. Apenas a nulidade cominada no inciso IV, do art. 564, do CPP estampa 0 conjunto de casos abertos que se enquadram em nulidade relativa, haja vista ser demasiadamente ampla, descrevendo, genericamente, “nulidade por falta ou vicio de elemento essencial do ato”. Trata-se de hipotese vaga, and- loga a conceito juridico indeterminado, que autoriza aquela classificacao. Em outras pala: consiste no ponto do maior aspec- to pragmatico-possibil da categoria das nulidades rela- tivas. Ainda assim, a aplicagao dos prineipios relativizado- res nao pode descurar das disposicdes complementares ao texto constitucional, também se sujeilando a controle de constitucionalidade. Nao é demais lembrar, alias, a critica de Alexandre Mo rais da Rosa, pentuande Sue) to » TeHG de nulidades do CP! “f preensio mitologi ae verdade substancial (CP! mantém dispositivos revogados noutros CPP (art. 564, III, “a”, “b”, “e”, IID) 10.9 Caracteristicas da regra de calibragio O aspecto possibilista normativo pretende designar o desvio da consequéncia juridica que seria esperada, conside- rando o programa colorido em um antecedente normativo. A aferigao da compatibilidade normativa da regra de ca- libragdo e a constatagéo de auséncia de rufdos comunicati- vos dependem de conferéncia empfrica da corregao da teoria (aplicagao a casos praticos), com testes rigorosos demonstra- tivos de sua validade. E condigao necessaria & sua adequacao com parametros de cientificidade, na linha de Karl Popper.” Aregra de calibragao, portanto, se caracteriza por ser: (1) excec&o normativa permissiva de construcao de nor- ma juridica secundaria ou preceito-tese diverso da- quele que decorreria normalmente; (2) sufragada pelo sistema, que autoriza desviar a con- sequéncia que seria necesséria (invalidagéo), por outra que confira regulagem adequada & Lei Maior (convalidacao). Essa técnica torna plausivel classificar os vicios de acor- do com a gravidade intrinseca do defeito relativamente ao ato violado (ou nao realizado) ou, ainda, ao elemento afetado ou omitido. Circunstancias externas ao ato ou a incidéncia da norma juridica que é documentada por ele, sao estranhas & ssificacao da nulidade enquanto vicio processual. ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria ed. Floriandpolis: EMais, 2019. p582-583, 383. POPPER, Karl. Logica das ciéneias socials, ry Martins, Apio Claudio Muniz, Vilma de Oliveira M ro: Tempo Brasileiro, 2004. p.59; 62-63, gos. estrutura da nor- ridica nfo afeta a classe da nulidade, Essa amplitude de possibilidades é assegurada por regras de calibragdo, para conferir justeza ao resultado normativo, no bojo do caréter pragmatico do célculo normativo. Fa lagioa dedatlen da 10.10 Regras de calibragao de natureza legal Regra de calibragéo legal é expressio que se refere a enunciados do ordenamento juridico. Sao textos de lei que ex- cepcionam a cogéncia da invalidagdo, nos casos de nulidade cominada. Incide, portanto, na hipétese de nulidade absoluta, cuja tipificagaéo do vicio é depreendida diretamente do texto (art. 564, I, II, III e V, CPP). O art. 572 do CPP é exemplo de base empirica que ser- ve & edicéo daquela espécie de norma, maxime porque inten- ta alijar a consequéncia de supressdo de efeitos que deveria decorrer do texto legal nulificador. Esse enunciado propée a convalidacéo dos defeitos previstos nas letras “d”, “e” (segun- da parte), “g” e “h”, do inciso III, do art. 564, daquele Cédigo. Aclasse desses vicios é de nulidade absoluta, nao porque diga o texto legal, eis que de fato nao distingue as classes de atipicidades, mas porque a lei determina ocorrer nulidade. A cominacao de nulidade é um dos critérios para certificar a es- sencialidade do ato ou de seu elemento atingido pelo defeito. Voltando ao art. 572, do CPB vé-se que ele dita a sanagao (rectius: convalidagéo) da nulidade, mediante a aplicagao dos prineipios da oportunidade, da instrumentalidade das formas e da anuéncia para os casos de: (1) falta de intervencao do Ministério Publico em todos. os termos da agao por ele intentada (agao penal pu- blica) e nos da intentada pela parte ofendida, na agao (2) fornlssbo de Intimagho do réu para a seseho de julgs- mento, pelo tribunal do jari, quando a lei no permi- tir o julgamento a revelia; e omissdo de intimagéo das testemunhas arroladas no rol que deve ser apresentado nos cinco dias que se sucedem a preclusao da decisao de pronancia. 10.11 Regras de calibragao de natureza jurisprudencial Problema mais delicado é saber se sao admissiveis regras de calibragao instituidas pelo Poder Judicidrio. Vale dizer, nesses casos, 0 6rgao julgador, apreciando caso concreto, d& contornos transcendentes a deciso, a fim de que sirva de pa- rametro para o futuro. Trata-se de algo semelhante a um pre- cedente, porém com modo de formulagao geralmente muito mais singelo. E, neste ponto, que reside maior complicagao. Essa atividade de edigao de precedentes, de stimulas e de stimulas vinculantes finda por tornar o sistema hibrido, similar aum realismo juridico, porém muito peculiar. O inconveniente éa dificuldade de se precisar o enunciado vigente e aplicavel & hipotese, o que se agrava pela falta de uniformidade de concei- tos e de critérios para a edicdo dos textos. Daf a importancia de bem definir as fontes do direito processual penal. A jurisprudéncia vem sendo cada vez mais incluida entre as fontes. Todavia, dos enunciados possiveis, o maior desta- que é para as stimulas vinculantes. Os critérios de construgao delas devem ser observados. Caso contrario, a instituigao de regras de calibragao por este instrumento devera estar sujeita a controle de constitucionalidade, do mesmo modo daquelas postas em textos legais A aplicagao da regra de calibragao sé deve houver compatibilidade com a Constituigao de produgio conformidade ‘com os elementos estruturais do sistema jurfdico. Exigéncia prévia para a incidéncia da regra de calibra- ho é a de que sua aplicagéo nfo des4gue em inconstitucio- nalidade. Além desse postulado maior, ela deve preservar as qualidades do sistema jurfdico. A regra de calibrag4o deve se coadunar com 0 postulado de protegao da liberdade do impu- tado, finalidade de sobreposic4o do processo penal. Essa 6tica, por outro lado, é objeto de critica de Afranio Sil- va Jardim, quando entende que hé radicalismo liberal quando se valoriza exageradamente o sistema acusatério puro, apostando na ineficiéncia do processo penal. O jurista aduz que sempre en- tendeu “o processo penal como sendo um instrumento demo- crdtico de que se vale o Estado para aplicar a lei penal ao caso concreto, respeitando os valores cunhados pelo processo civili- zatorio, muitos deles retratados, na Constituigao”, tais como os direitos fundamentais. Nessa senda, assegura que “punir quem. merece ser punido é um valor a ser buscado no processo penal. Entretanto, nao é valioso punir a qualquer prego”.* Veja-se que, embora com outra argumentacao, Afranio Silva Jardim situa o respeito aos direitos fundamentais, como condicao intransponivel para o cumprimento da finalidade punitiva do direito criminal. Essa ideia vem ao encontro da necessidade de controle de constitucionalidade de regras in- fraconstitucionais, especialmente daquelas regras de calibra- cao instituidas para desviar a consequéncia normativa que seria esperada a partir da constatacao de uma nulidade. A ilustrada quebra da consequencialidade encontra seu teto no texto da Constituigao, que delineia o modelo de pro- cesso penal limitador do direito punitivo estatal, Refuta-se, 364, JARDIM, Atrinio Silva. Preficio. In crime ee Rio de Janeiro: ae ae absolutas, mormente quando se vé que tal flexibilizagio, des- provida de critérios objetivos, amplia demasiadamente a con- tingéncia, com aumento do poder discricion4rio judicial, e desconsidera a necessidade de maior rigor na adogéo de uma linguagem formal, conceitual, dos elementos identificadores das nulidades processuais penais. O limite & autopoiesis normativa do sistema das nulidades processuais penais é, portanto, nao s6 0 texto legislativo pro- cessual penal. Mais importante que a enunciagao legislativa é a delimitacao do nticleo de protecao dos direitos individuais processuais penais dispostos na Constituic4o. A justificativa desse proceder é inferida pelo fato de que o quadro de aleato- riedade acaba por relativizar as garantias fundamentais. O limite constitucional para a justificagao retérica do des- vio da consequéncia juridica normal é indispens4vel a relacdo de pertenca da norma individual e concreta produzida no in- terior do sistema juridico. Coloca-se 0 direito processual pe- nal de acordo com 0 escopo maior de imposi¢ao de contornos punitivos ao Estado, a fim de que sejam respeitadas as regras do jogo democratico. Essas disposig6es tém natureza direta ou indireta de nor- mas de primeira geracao, levando em conta 0 ponto de vis- ta de que servem como escudos que tracam os trilhos para a aplicagao do direito penal. A efetividade do direito criminal é alcangada pelo acatamento a Sem respeito as formas construidas por bases empiricas definidas como direito vigen- te, cede-se lugar ao indesejado subjetivismo. form: O ponto de aproximagao entre o defendido por Afranio Silva Jardim e a estruturagdo normativa, com supedaneo no constructivismo légico-semantico, é encontrado na afirma~ ¢4o do jurista, ao dizer nao ser constitucional punir a todo custo.” EEE ores jardin sins cue 2000 mais préximo do teor literal, j4 seria um grande avango para ‘0 respeito aos direitos dispostos na Constituigéo de 1988. To- davia, nfo raras vezes, so vistos subjetivismo exacerbado e produc4o de normas individuais e concretas sem que sequer sejam encontradas justificativas em fragmento de enunciado legislativo ou constitucional. Cabfvel entéo a adverténcia: a vontade do aplicador nao deve suplantar os lindes do sistema. Sem embargo, note-se que é condi¢ao prévia 4 imposi¢4o das regras sancionadoras de um delito, que os é6rgéos da per- secug&o penal nao neguem vigéncia ao direito que estabelece aquelas premissas. O respeito ao padraéo normativo, como se compreende, n&o deve ser desprezado, nao sendo admissivel a construgao de regras de calibracdo que violem direitos fundamentais. Isso significa dizer que, caso nao seja observado estritamente o modelo juridico, deve o sistema entrar em funcionamento para impor medidas de controle aos atos da persecucdo penal. O valor da legalidade, alcado ao patamar de axioma por Luigi Ferrajoli, deve ser estritamente atendido para que o procedimento alcance resultados aceitaveis. A reagao ao deli- to é de ser, portanto, implementada por meio de sistema sub- metido a controle rigido, em face do direito de liberdade que torna peculiar a interpretacao do direito processual penal. Essa ponderacao encontra alguma relacio com o que Afranio Silva Jardim averba ao pontificar que o processo pe- > pode ser “um obstaculo injustificado a aplicagao da lei penal”, devendo, todavia, ter sua aplicagao condicionada “& protecao dos direitos individuais que, embora histéricos, sa0 ". Para o jurista, “a propria democracia nal n, quase que universai 386, FERRAJOLI, Luigi, Direito ¢ razdo; teoria do yarantisme penal. Fla Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Lut Paulo: RT, 2006, p.521-525, ° ahs das técnicas de controle de constttictonalidar de permitiré compreender que o art. 572 do CPP nao é des- provido de utilidade. Muito pelo contrdrio, o seu enunciado (plano da expresso) nao padece, em si, de inconstituciona- lidade, podendo-se considerar, ao menos em parte, objeto de recepcao pela Constituigdo de 1988. Isso porque é possfvel vislumbrar alguma aplicagao cons- titucional das normas construfdas a partir do seu texto bruto. Alias, na parte que aponta o inciso IV, do art. 564 do CPR que se reporta a qualquer outro vicio que ofenda elemento essen- cial de ato processual, o enunciado nao fere, a princfpio, o né- cleo de direitos fundamentais da Constituigao. Como 0 inciso IV, do art. 564 apontado, nao consubstancia nulidade cominada em face de sua abertura linguistica, a dispo- sigdo mais se ajusta a casos de nulidade relativa, cujo elemento essencial defeituoso do ato nao colide com contetido constitu- cional. A regra de calibragao pode incidir de acordo com o per- missivo legal, sem ofensa a estrutura estatica do sistema. Por outro lado, toda vez que a aplicagao das disposigées importar construcéo de norma que mitigue, sem permissao juridica vigente, os direitos processuais penais constitucio- nais, deve o intérprete realizar controle de constitucionalida- de, com 0 objetivo de: (1) declarar a inconstitucionalidade de certo significado normativo defluente de regra de calibragao; ou (2) deci: constitucionalidade ou a inconstituciona- lidade de outro sentido (norma juridica), aplicando: (a) interpretagao conforme a constituigao (dé 87, JARDIM, ‘Arinio Silva. Praises Tn: M Crime pene Rio de Ji ‘ c sake) protegido pela regra infraconstitucional. Em outros termos, regra de calibrag4o nao deve relativizar nulidade absoluta. Admitir 0 contrério é incorrer em interpre- taco incompativel com a Constituigdo. Veja-se que 0 objeto de controle é um ato processual penal viciado, que representa a incidéncia imperfeita de uma norma individual e concreta. Em suma, a convalidagéo de um ato defeituoso dessa es- pécie, por meio de incidéncia de regra de calibragao, pode acontecer se: (1) aessencialidade afetada nao for acompanhada de or- dem de nulificagao pelo proprio texto legal; (2) conferir maior efetividade a a direito fundamental constitucional; e (3) nao diminuir a eficdcia de direito fundamental cons- titutivo do nticleo constitucional do processo penal. 10.13 Aplicacao a caso concreto >, 6 vedada a existéncia de de- sarmonia entre norm: rca de um mesmo fato, o sistema néo pode fomentar tempo, repelir. Caso ocorra situagio como essa, havera deficit de imperatividade em virtude das regras conflitantes envolvidas. A luz do positivismo ju Por exemplo, a nivel de aspecto-relato, 0 ordenamento processual penal contém contradigdes a respeito da (im) pos- sibilidade de decretacao de prisdo preventiva pelo juiz, de ofi- cio, ou seja, sem provocagao: (1) na fase de investigagao preliminar, seria vedada ao juiz essa atuacao de oficio (preventiva-decretagao — art. 311; 312, CPP); @) Fee et a pei con Bagrans on a teor do art. 310, inciso II, do CPR, seria admitido tal proceder (preventiva-conversio); durante o processo, seria permitido o agir de officio, diante de seu poder cautelar (preventiva-decreta- ¢4o ~ arts. 311; 312, CPP). A incompatibilidade no plano do aspecto-cometimento das normas deduzidas pela programacao desses enunciados é cons- tatada pelo exame de diversos julgados. A atuagao de oficio do juiz para converter priséo em flagrante em preventiva conflita com a estrutura acusatéria (art. 3°-A, do CPP) e é orientag4o que confronta os limites do art. 311, do CPR seja na redagao que lhe foi dada pela Lei n° 13.964/2019, seja pelo texto anterior. Se a diccao legal do art. 310 do CPP permite a ilacao em favor da preventiva-conversao ex officio, certo € que esse pro- grama normativo precisa ser interpretado em conjunto com ou- tros enunciados, por intermédio de calibragem ou de controle de constitucionalidade. Também a antinomia do art. 316 do CPR com texto conferido pelo legislador de 2019, nao pode subsistir para que seja admitida redecreta¢ao da prisao preventiva pelo juiz independentemente da provocagao do legitimado a tanto. (3) O STE por sua Segunda Turma, vincou essa questao ao se posicionar sobre a impossibilidade “da decretaco ‘ex officio’ de prisdo preventiva em qualquer situagao (em juizo ou no curso de investigacao penal), inclusive no contexto de audiéneia de custédia (ou de apresentagao)”. Mas nao apenas: na decisao, fi- cou consignado que, “mesmo na hipétese da conversao a que se refere o art, 310, I, do CPP prévia, necessaria e indispensa- vel provocacao do Ministério Publico ou da autoridade policial”, considerando a disciplina introduzida pela Lei n° 13,964/2019.5* Com essa decisao, pode se tornar vidvel reduzir a penum- bra sobre imperatividade do sistema acusatorio, diante d enunciam previsées e de divergéncias na sua aplicagho (aspecto-cometimento). No caso, efeito jurfdico diverso do previsto no art. 310, do CPP deve ter incidéncia para conferir mais justeza e compatibili- dade com a Constituigéo. Sob outra lente, vale lembrar que a introdugéo de es- pagos de consenso significa excecdo 4 consequéncia juridica normal que seria esperada de uma imputag4o penal. Veja-se, por exemplo, o acordo de nao persecugao penal (ANPP), que substitui o desenvolvimento do processo penal consoante o tramite comum e finda por obstar 0 seu infcio, com imposigéo de pena restritiva de direitos. De tal maneira, o ANPP é hipétese de regra de calibra- cao. A expressao é ambigua, porque persecucao penal pode significar inquérito, processo penal e execucdo. Melhor se- ria acordo de nao oferecimento da dentincia. Como antece- dente normativo, sera necessaria a auséncia de recebimen- to da dentncia, ainda que relativa a delito anterior & Lei n° 13.964/2019, na senda do que deliberado pelo STJ.*° O objeto deve ser infracdo penal com pena inferior a quatro anos (art. 28-A, caput, CPP). Também 0 crime nao deve envolver violén- cia ou grave ameaca, atendidos os demais requisitos objetivos e subjetivos gizados em lei. 10.14 Estratégia de resolucao de questoes Vide Site da Editora Noeses: www.editoranoeses.com.br 10.15 Conclusao e préximo capitulo Foi visto que, no nivel do aspecto-cometimento de duas normas juridicas distintas, nao pode haver antinomia. Consis- te em postulado do positivismo jurfdico, O enlace de 389. STJ ~ Quinta Turma ~ HC 607.003-SC ~ Rel. Mis ~ Dje 27 nov, 2020, Sper ds laterprotacdc dar corres oma validaso naa a

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