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Ricardo Marcelo Fonseca Professor da graduacéo e do curso de pés-graduago em direito da UFPR; Doutor em direito das relagdes sociais pela UFPR; Pos-doutor na Universita degli Studi di Firenze, Italia (2003/2004), nde integra 0 collegio dei docenti do curso de doutorado em storia del drito; Pesquisador do CNP; Presidente do IBHD (2007-2011); Procurador federal; Membro do IAP (Instituto dos \ Advogados do Parana); Diretor eleito da Faculdade de Direito da UFPR. Airton Cerqueira Leite Seelaender Doutor em direito na J.W. Goethe-Universtét(Frankfurl/Alemanha); Pesquisador visitante do Max Planck Institut fir europaische Rechtsgeschichte (1994-1997) e Presidente do IBHD (2005-2007); Ex-Procurador do Estado de Sao Paulo; Professor de Historia do Direito e Direito Constitucional na Universidade Federal de Santa Catarina. Organizadores HISTORIA DO DIREITO EM PERSPECTIVA Do Antigo Regime 4 Modernidade | 1? edigdo (ano 2008) | 4? reimpressao (ano 2012) Colaboradores: Airton Cerqueira Leite Seelaender Andrei Koemer Antonio Carlos Wolkmer ‘Anténio Manuel Hespanha Amo Dal Ri Junior Bruno Feitler Carlos Petit Ezequiel Abésolo Gilberto Bercovici Igndcio Maria Poveda Velasco James Walker José Anténio Peres Gediel Curitiba Jurua Editora 2012 José Ramon Narvaez Luis Fernando Lopes Pereira Luiz Edson Fachin Manuel Martinez Neira Marcos César Alvarez Paolo Cappellini Paolo Grossi Peter Oestmann Pietro Costa Samuel Rodrigues Barbosa Silvia Hunold Lara Thomas Simon COMPLEXIDADE E MEIOS TEXTUAIS DE DIFUSAO E SELECAO DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO PRE-CODIFICACAO Samuel Rodrigues Barbosa’ Sumdrio: 1. Complexidade do direito civil pré-codificagao; 2. Meios de difusdo e selecdo; 2.1. Candido Mendes; 2.2. Teixeira de Freitas; 2.2.1. A forma do cédigo; 2.2.2. Sistema; 2.2.3. Validade empirica; 3. Referéncias. Em que sentido pode-se dizer que é complexo o direito civil brasileiro anterior 4 codificag4o? E quais os meios textuais de difusao que possibilitam sua selecao e comunicagao? — Estas duas questdes vertebram a presente investigacao, por enquanto vazadas em conceitos acentuadamente socioldgicos, o que num congresso de historia nao é o melhor expediente para captar a benevoléncia. No entanto, se avizinham de outras contribuigdes com pedigree historio- grafico incontestado, oferecidas desde o I Congresso do IBHD em 2005. Com diferentes aproximagées, indagou-se pelas razdes que explicam o atraso da codi- ficago civil entre nos, ou acerca da persisténcia do jus commune ao longo dos Oitocentos. E claro, como tudo isso tem a ver com o fato determinante da escra- vidao entre nds. Nas duas ultimas décadas, pelo menos, 0 nexo entre direito civil € escravidio se tornou um filao apreciavel da historiografia universitaria, com destaque para as varias teses de doutorado defendidas na Unicamp e UFF*. Em Muitos desses trabalhos, € saliente a importancia do topos “o direito como arena de luta” de Edward Thompson e por conseqiiéncia uma dupla valorizacao: dos Processos de agdes de liberdade (nado apenas como fonte primaria, mas como medium especifico para comunicar os conflitos e exercitar pretensdes) e do judi- “latio (como instituig&o que estrutura as disputas interpretativas acerca do di- ee 1 3 Professor da Faculdade de Direito da USP. Como exemplo representativo, ver LARA, Silvia Hunold; MENDONCA, Joseli Maria Nunes (Orgs.). Direitos e justicas no Brasil. 362 Samuel Rodrigues Barbosa reito civil e da alforria). Deixo em aberto o quanto essa literatura depende, deli- beradamente ou nao, da agenda introduzida com a Constituigao de 88 que aposta no judiciario como a instancia privilegiada para a efetivagdo dos direitos civis — diga-se de passagem que essa agenda do ativismo judicial é cada vez mais con- troversa entre os juristas”. Minha pesquisa aprendeu muito com essa historiografia. Mas vou colo- car na minha fala de hoje 0 acento em outros lugares, como ja sugere a formula- ¢4o das duas questdes que fiz no inicio: sobre a complexidade e sobre os meios textuais de difusio e selec¢do. Quero argumentar de que modo os meios textuais sao solugdes 4 complexidade. 1 COMPLEXIDADE DO DIREITO CIVIL PRE-CODIFICACAO Em 1917, ano da entrada em vigor do Cédigo Civil, Paulo de Lacerda, em balango do periodo anterior, afirmava que: “[o Direito Civil Brasileiro] ndo passava de um aglomerado varidvel de leis, assentos, alvards, resolugdes e regulamentos, suprindo, reparando as Ordenagées do Reino, veneravel monu- mento antiquado, puido pela agado de uma longa jurisprudéncia inculta e incer- ta, cujos sacerdotes lhe recitavam em torno, os textos frios do Digesto, lidos ao lusco-fusco crepuscular da Lei da Boa Razao”. Essa elevada passagem fornece elementos para a definigaio do que cha- mei de complexidade do direito civil: — primeiramente, a abundancia de diferentes tipos de atos legislativos que nao formavam um sistema, mas um “aglomerado varidvel”; — em segundo lugar, a vigéncia das Ordenages Filipinas mediada pelos sacerdotes de uma “longa jurisprudéncia inculta e incerta” apojada no Digesto (cuius merito quis nos sacerdotes appellet) (D.1.1.1.1)"; — e, por fim, a tensdo entre essa jurisprudéncia e a Lei da Boa Razio. Quanto ao aglomerado variavel de atos legislativos, é preciso destacar que, desde pelo menos D. José I, a substituigado da jurisdictio pela potestas le- gislatoria, ou a substituigdo do paradigma jurisdicionalista pelo absolutista ¢ um Sobre os problemas do ativismo judicial, ver LIMA, Martonio Mont’ Alverne Barreto. Jurisdi- ¢4o constitucional: Um problema da teoria da democracia politica. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira de ef al. Teoria da constituigdo: Estudos sobre o lugar da politica no direito constitu- cional, p. 199-261. Talvez. ndo seja ocioso lembrar que “‘jurisprudéncia” aqui tem o sentido de “saber sobre 0 direito” (jurisprudentia) e nao como conjunto de decisdes dos tribunais, sentido mais usual en- tre os juristas brasileiros de hoje. O primeiro sentido permanece em outras linguas: Jurispru- denz, jurisprudence. | | Historia do Direito em Perspectiva 363 caminho sem volta’. E nesse periodo, que se aprofunda a alteragdo decisiva no tempo histérico, destacada por Koselleck®. Emancipado de expectativas escato- Jégicas, 0 futuro é experimentado como contingente. Ou na célebre passagem de Aristoteles que ganha ressonancia, de futuris contingentibus non est determinata ueritas. O horizonte das experiéncias do passado se distancia das expectativas quanto ao futuro. Somente entao, quer pelo prognéstico racional tipico da agao politica, quer com 0 conceito de progresso tipico das filosofias da historia da ilustracao, o futuro pode ser experimentando como novo. Para 0 direito, essa mudanga se manifesta como o fendmeno da positi- vagio (LUHMANN). direito ¢ vivenciado como contingente; vale por uma decisio e nao por sua consisténcia com o direito antigo. O volume e a importancia da legislagdo no século XIX podem ser compreendidos nesse enquadramento maior. Nao obstante, as fontes do direito no Império do Brasil nao representa- ram a consuma¢iio, o remate do projeto de fazer da lei nacional a fonte exclusi- va. Complexidade do direito civil néo quer significar apenas a multiplicidade e contingéncia das fontes legisladas. Vejamos os outros elementos da sintese de Paulo de Lacerda. Em um poema do final do século XVIII, Bocage satiriza a cultura juri- dica do Império portugués: Inda novel demandista Um letrado consultou Que, depois de cem perguntas, Tal resposta Ihe tornou. “Em Cujacios, em Menéquios, Em Pegas, e Ordenagao, Em reinicolas, e estranhos Tem carradas de razao. ‘Sim, sim, por toda essa estante Tem razdo, razdo de mais”. “Ah senhor! (0 homem replica) Té-la-ei nos tribunais?”” s HESPANHA, Anténio Manuel. Cultura juridica européia; HESPANHA, Ant6nio Manuel (Org.). Historia de Portugal. IV — Antigo Regime, p. 121 e ss, MOHNHAUPT, Heinz. Potestas legisi toria und Gesetzesbegriff im Ancien Régime. lus Commune. 4, 1972. p. 188 ¢ ss.; SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. Polizei, Okonomie und Gesetzgebungslehre; LOPES, José Reinaldo de Lima, As palavras e a lei: Direito, ordem e justiga na historia do pensamento juridico modemo, cap. 3. KOSELLECK, Reinhart. Futuro do Passado: Contribuigdo 4 semantica dos tempos histéricos, cap. Le 14, Vide outros poemas similares e comentario em SILVA, Nuno Espinosa Gomes da. Histéria do direito portugués. 364 Samuel Rodrigues Barbosa O letrado do poema consulta néo apenas a Ordenacao, mas autores do direito erudito, o francés Jacques Cujacius (1522-1590), o italiano ae Menochius (1532-1607) e 0 portugués Manoel Alvares Pegas (século XVII)*. A lado desses, ha referéncia a toda uma pléiade de juristas reunidos sob a he de “reinicolas e estranhos”. Todos sao os sacerdotes daquela “longa jurisprudén- cia inculta e incerta” de que falava Paulo de Lacerda. O contexto da satira de Bocage € 0 conflito entre o direito erudito pré-ilustragao e os outros padres de julgamento nos tribunais lusos, isto é, os novos padrées das reformas ilustradas, Para 0 caso portugués (e depois brasileiro), no processo de liquidagao desta jurisprudéncia, um papel especial deve ser reservado para a lei de 18.08.1769, que, desde o comentario de José Homem Corréa Telles no inicio do século XIX, foi conhecida como Lei da Boa Razio. Patrocinada pelo Marqués de Pombal, o principal ministro da Ilustragdo josefina, sua ambicao era redese- nhar o quadro das fontes do direito ao impor limites 4 tradig&o do direito erudito. A Lei da Boa Razio define como fontes 0 direito patrio, os assentos da Casa da Suplicacdo e os costumes. Nos casos omissos, 0 direito romano aparece como fonte subsidiaria, mas nao vale mais como ratio scripta. Impde-se a exigén- cia da consisténcia entre os dispositivos do direito romano com a “boa razio”. 0 direito romano vale non ratione imperii, sed imperio rationis. A express4o “boa razio” nao é criagdo da lei de Pombal, mas com ela ganha outros contornos: passa a sintetizar os principios formalizados no direito divino e natural, e os principios de unanime consentimento do direito das gentes. Para algumas matérias, nem ha que se indagar sobre o direito romano, aplicam-se subsidiariamente os principios da boa raz4o inscritos nas Leis Politi- cas, Econémicas, Mercantis e Maritimas das “Nagdes Christas, illuminadas e polidas”. Pois afinal, os romanos “do Commercio, da Navegagdo, da Aritmética Politica, e da Econémia do Estado, que hoje fazem tao importantes objetos dos Governos Supremos, nao chegardo a ter o menor conhecimento” Para minha argumentacao, é central sublinhar, de um lado, o novo tra- balho colocado pela lei pombalina, o de medir 0 direito romano com a boa ra- 240, de outro lado, a abertura para uma nova literatura doutrinaria e para a nova legislagdo inaugurada com a Ilustra¢ao. Esses dois aspectos aparecem nos novos Estatutos da Universidade de Coimbra. N&o vou esmiugar os quatro passos detalhados que sido sugeridos para se medir aquela consisténcia entre direito romano e boa razio. O fato é que os Estatutos reconhecem a dificuldade desse trabalho e apresentam um caminho mais curto: basta verificar 0 “uso moderno das mesmas leis romanas entre as Na- gdes que habitam a Europa”. Apela-se, pois, para 0 usus modernus pandectarum, tao como expresso na legislacdo e na doutrina européias. Vide verbetes correspondentes em STOLLEIS, Michael (Org.). Juristen: Ein biographischen Lexikon von der Antike bis zum 20. Jahrhundert. ° Lei da Boa Razao § 9. Historia do Direito em Perspectiva 365 Devo salientar que a Lei de Pombal formula uma ambiciosa reforma das fontes do direito, e como tal nao podemos assumir sem mais que ela foi bem- sucedida, Esse € um tema ainda em aberto'”. Ainda que a Lei excluisse da juri digo temporal 0 direito candnico, por entender que 0 pecado pertence “exclusi- yamente ao foro interior e a espiritualidade da Igreja”, sabemos da efetividade das Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bahia em varias matérias até a Republica’. Outro exemplo sdo as abundantes referéncias ao Corpus Juris Ci- yilis no Digesto Portuguez de Correa Telles de 1835, ou no Curso de direito civil brasileiro do Conselheiro Ribas de 1865. Com efeito, Teixeira de Freitas, ao criticar a Lei da Boa Razao afirma: “tudo concorreu, para que os nossos Juristas carregassem suas Obras de mate- riaes estranhos, ultrapassando mesmo as raias dos casos omissos. As cousas tém chegado 4 tal ponto, que menos se conhece, e estuda, nosso Direito pelas leis, que o constituem; do que pelos Praxistas que as invadirao”" Eu diria entdo que, se podemos deixar em aberto a pergunta acerca dos efeitos limitadores da reforma, é possivel afirmar que a Lei da Boa Razio deu ensejo a uma maior complexidade do direito civil. Permitiu a remissio ao direito estrangeiro e conferiu posi¢do de destaque 4 literatura jusracionalista e do usus modernus. Em conseqiiéncia, deixa de surpreender a freqiiéncia, entre os nossos doutrinadores dos Oitocentos, de referéncias aos Cédigos prussiano, francés, portugués; a autores como Heineccius, Stryk, Pufendorf, Savigny, Pothier e nao desaparecem Valasco, Cabedo, Mello Freire e outros —o estudo de como se deu arecepgaio dessas obras por aqui esta para ser feito’. Direito civil complexo em razo dos atos legislativos que néo formam um sistema; complexo pela mediagao de praxistas; complexo pela possibilidade de remissao ao direito codificado e legislado de outros paises. 2 MEIOS DE DIFUSAO E SELEGAO A comunicagio entre ausentes s6 € possivel pelos meios de difusio que fazem chegar as selegdes de Alter a Ego. Nesse sentido, os livros em geral sao meios de difusdo'*. Mas aqui vou me interessar por uma classe muito especial Ver discussio em WEHLING, Amo; WEHLING, Maria José. Direito e justiga no Brasil colonial: © Tribunal da Relago do Rio de Janeiro (1751-1808), p. 447 € ss. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura no Brasil coldnia, cap. 1; SILVA, Maria Beatriz Niza da, Sistema de casamento no Brasil colonial, passim. Consolidagao das Leis Civis, p. XXXII. Sobre a cultura juridica do periodo, ver FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura ica brasileira na segunda metade do século XIX, p. 339-371. LUHMANN, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft, v. I, cap. 2. 366 Samuel Rodrigues Barbosa dos meios de difustio: aqueles livros impressos que sistematizam (com maior ou menor sucesso) 0 direito legislado, que resumem as discusses doutrinarias, livros sobre livros que acabam substituindo esses. CAndido Mendes'* A edig&io de Candido Mendes das Ordenagées Filipinas merece ser it vestigada na sua forma e no seu desempenho como meio de difusdo. Perder informagées valiosas ao toma-la apenas como mais uma edigao das Ordenagdes ou como uma fonte primdria sem mais. Na introdugdo, a edig&o é justificada como “um remédio provisério”, enquanto nao se completa positivamente a espe- rada codificagao do direito civil'®; como tal, tem que responder as necessidades do foro, 4 complexidade que foi mencionada acima. Em razio disso, a primeira caracteristica saliente é 0 abundante material complementar ao texto das Orde- nagées. A edigdo, que saiu pela primeira vez em 1870 em dois volumes in 4°, compila esse material tanto no primeiro volume (com 0 texto das Ordenagées), como no segundo, conhecido por “auxiliar juridico” (alias j4 em circulagao no ano anterior). A primeira estruturagaio da complexidade diz respeito a legislacao “que alterou, declarou ou alargou 0 circulo das suas disposigdes [da Ordenagao]”. No corpo da edi¢&o (primeiro volume), s4o transcritas as “fontes proximas” dos dispositivos: breves remissdes 4s Ordenagées anteriores e a legislagaio. Nos “adi- tamentos” a cada livro das Ordenagées sao transcritos os atos legislativos inte- gral ou resumidamente, servindo de patente comodidade para os agentes juridicos. Muitos dispositivos das Ordenagdes foram revogados pelo acervo legislativo posterior, em especial do século da positivacao. As ricas notas de rodapé retnem uma copia de informagdes: remissdes aos atos legislativos, reaparece a complexidade do direito civil, que é estruturada em notas philologicas, historicas e exegeticas; e, como comentario, por extenso ou em resumo, 0 que expenderdo os nossos Juristas discursando sobre cada um [dos parégrafos das Ordenagées], segundo 0 que nos pareceu mais adaptado, e conveniente a intelligencia daqueles para quem nos disposemos trabalhar. 'S Candido Mendes de Almeida (Maranhdo, 1818 — Rio de Janeiro, 1881) foi _diplomado em Olinda, advogado na Corte, deputado em varias legislaturas desde 1843 e senador em 1871, No centendrio de sua morte, apareceram: VILLACA, Anténio Carlos. O senador Candido Men- des; BASTOS, Aurélio Wander (Org.). Senador Candido Mendes. “Nao somos dos que acreditdo que um Codigo signifique o effeito da decadencia das luzes e da sciencia do Direito, como ja disse alguem, d respeito dos de Roma. Pensamos com outros que a palavra Codigo implica uma idéa de adiantamento, de progresso nos Povos; acreditamos que he a ordem que succede a confusdo, a civilisagdo 4 barbaria”. (p. V) ms Histéria do Direito em Perspectiva 367 Nessas notas se achdo concisa mas claramente enunciadas todas as obras, com indicagdo de tomo e pagina, dos Jurisconsultos antigos ou modernos que com 0 assumpto mais ou menos se ocupardo. Como exemplo, as notas ao titulo XLVIII do livro 4° — “Que o marido nio possa vender, nem alhear bens sem outorga da mulher” — selecionam varias referéncias da doutrina dos século XVI (Alvaro Valasco, Antonio da Gama), XVII (Gabriel Pereira de Castro, Manoel Barbosa, Manoel Alvares Pegas, Belchior Phoebo), XVIII (Paschoal José Mello Freire, Antonio Telles Leitao de Lima), XIX (Manoel de Almeida e Souza/Lobao, José Homem Correa Telles, Manoel Borges Carneiro, Manoel Antonio Coelho da Rocha, Lourengo Trigo de Loureiro, Antonio Ribeiro Liz Teixeira). Esse tipo de comentério doutrinario é preponderante, mas também so encontradas breves remissdes ao Codigo Co- mercial e a um acérd4o do Supremo Tribunal de Justiga brasileiro. Mais extensa éa remissao 4 Consolidagao de Teixeira de Freitas, para 0 que avangamos uma razéo mais abaixo. Vale anotar que a introdugao a edi¢gao vem acompanhada de uma lista de “tratadistas e praxistas” desde 0 século XVI, com indicagdes das principais obras e com pequenas notulas de especial auxilio para nds e muito mais para os contemporaneos com o fardo de manusear a “longa jurisprudéncia inculta e incerta”. Mas ainda ha o valioso segundo volume, o auxiliar juridico, que estrutu- ra a complexidade do direito civil com um conjunto de mecanismos. O principal critério de escolha da colegao parece ser a Lei da Boa Razao. Além do comentario de Corréa Telles que batizou a Lei, encontramos os estilos da Casa da Suplicagao (Lisboa) e do Civil (Porto), compilados a partir de Manoel Borges Carneiro, Jorge de Cabedo e Joao Martins da Costa; bem como os assentos das duas casas. Justifica Candido Mendes que: “Os Assentos da Caza da Supplicagao como os Estylos, tinhao por fim fixar a verdade intelligen- cia da Lei; e tomados na Meza Grande daquelia Caza ou Relagao tinhao, e ainda tem, forca de Lei. Assim se acha consignado na Ord. do liv. I tit. 5 § 3, e na Lei de 18 de Agosto de 1769 § 4”"" Cumprindo uma exigéncia da Lei da Boa Razio'*, o auxiliar juridico traz uma lista com a indicagao dos dispositivos das Ordenagdes e das Leis Ex- travagantes que foram “entendidas e declaradas” nos assentos correlatos. " Preficio ao Auxiliar Juridico, p. VI. © proprio Candido Mendes lembra: “Mando... que os Assentos jé estabelecidos, que tenho determinado que sejao publicados, ¢ os que se estabeleceram daqui em diante sobre as inter- pretagdes das Leis, constitudo Leis inalterdveis para sempre se observarem, como taes, debai- x0 das penas estabelecidas” (Lei da Boa Razao, § 4); “Explorard 0 mesmo Professor [de Di- reito Patrio] se sobre a matéria do mesmo Titulo, de que trata, se derao depois delle algumas Providencias pelas Leis Extravagantes, Alvards e Assentos com forca de Leis”. (Estatuto da Universidade de Coimbra, liv. 2 tit. 6 cap. 3 § 7). 368 Samuel Rodrigues Barbosa Como a lei josefina nao da cabo da literatura doutrinaria como fonte do direito, e isso é tanto mais verdade com o atraso da codificagao civil entre nds, CAndido Mendes sumaria varios tratadistas (de Antonio Valasco a Antonio Cardozo do Amaral) e varios “decisionistas” (de Antonio da Gama Pereira a Joao Rodrigues Cordeiro). Algumas entradas certamente servem apenas como sumiario para a consulta das obras, mas outras apresentam de modo condensado uma topica, esquemas de solucgdo para os casos juridicos. Nesse caso, 0 sumario bem pode substituir a consulta a obra citada. Um outro recurso é a reprodugao dos “Prolegémenos de direito para uso das faculdades e do foro” de Dupin Ainé. Lugares-comuns da pratica foren- se, principios de hermenéutica, recursos mneum6nicos de principios do direito romano ef pour cause da literatura do jus commune estdo 4 mao de qualquer um, dispensando a consulta ao Digesto: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi. L.10, ff. de Justitia et jure. Les est commune praeceptum. L. 1 ff. de Legibus. Privatorum conventio juri publico non derogat. L. 45, §1, ff. eod. tit. Qui tacet, non utique fatetur; sed tamen verum est eum non negare. L. 142, ff. de reg. jur. ie Outro instrumento para estruturar a complexidade do direito civil sio os “Axiomas e brocardos extrahidos da legislagdo brazileira antiga e moderna”. Sao organizados em ordem alfabética, principios juridicos de variadas espécies (maximas axioldgicas, hermenéuticas), bem como verdadeiras regras de solugio. Os exemplos abaixo mostram essa condensagao de regras e principios a partir das Ordenagées e legislacado, mas também da literatura doutrinaria, no caso de Valas- co (século XVI) e do prolifico Lobao (Almeida e Souza): 1, A cada um se dar, o que he seu. Ord. liv, 2 tit. 32 no principio; liv, 5 tit. 6 § 20 e tit. 62 § 3. e 4 e Alv. de 5 de Junho de 1595 e de 29 de Janeiro de 1643 no Prologo e confirmagao da Ord. 21. Venda. — Para ser valida deve ser feita por preco certo. Ord. liv. 4 tit. I] principio. 23. Venda. — Com obscuridade se interpreta contra 0 vendedor. Almeida e Sou- za—Trat. das Casas § 284 e 328. ‘9 Para ilustrar a riqueza de informagao para fins forenses, veja-se as duas notas relacionadas @ esse brocardo por Candido Mendes: “(2) O que se cala, nem confessa nem nega. No mesmo di- reito romano ha excepgées a esta regra, L.38, ff. de jure, L. 13 § 11, ff. de locati. Vide Cod, Civ. Francez art. 1361, e Ord. do liv, 3 tit. 53 § 13. (3) Com tudo, diz Dupin, na Lei 2, § 2 ae soluto matrim, vé-se que a filha que evidentemente ndo contradisser 0 pai, considera-se (er consentido no que este pertender, por quanto nada disse contestando a proposigdo. Dahi vem 0 proverbio: Quem cala, consente”. (p. 513) Historia do Direito em Perspectiva 369 24. Venda. ~ Em dhivida, o prego influe para determinar a quantidade da cousa vendida. Almeida e Souza — Trat. das Casas § 283. 26. Venda. — De predios que tem fructos pendentes, se estes se ndo reservao expressamente, se entendem comprehendidos na venda. Valasco ~ de Partit. cap. 28n, 13. Por fim, fazemos mengdo a uma extensa colegdio de arestos da Casa Su- plicago, que consolida as coletaneas anteriores de Jorge de Cabedo (1604), Belchior Phoebo (1616 ¢ 1625) e Feliciano da Cunha Franga (1755). A Justifi- cativa do senador mais uma vez é “suppomos terem ainda interesse em nosso foro” — 0 que, alias, é sugestivo nesse particular sobre os limites da efetividade da Lei da Boa Razao. Bem se vé como a edigdo das Ordenagdes de Candido Mendes retrata a complexidade do direito civil nos Oitocentos (fontes legisladas portuguesas, bra- sileiras e de outras “Nagées polidas”; estilos e arestos que remontam ao Antigo Regime; a mole da literatura do jus commune, da civilistica do século XIX). Ao mesmo tempo, € o mais importante para o argumento, constitui uma verdadeira biblioteca que simplifica e organiza essa complexidade, uma caixa de ferra- mentas para 0 pratico, servindo como substituto da biblioteca de babel do direito comum europeu, cara e de dificil acesso. 2.2 Teixeira de Freitas Pode ser um truismo dizer que a Consolidagao das Leis Civis nao seja um Cédigo, na medida em que nao é um direito novo. O contrato com o governo Imperial definia o objetivo: “consiste a consolidagiio em mostrar o tiltimo estado da Legislagdo”. Porém, a importancia racionalizadora da Consolidagao tem a ver com caracteristicas codificadoras que estao presentes. Tal meio de difusao e selego da complexidade do direito civil tem, pois, uma importante peculiarida- de: a Consolidagdo fez as vezes de um Cédigo com validade empirica. Este conceito é retirado de Weber que no capitulo da segunda parte de Economia e Sociedade delineia uma definigao de ordem juridica adequada as “ciéncias empi- ticas da ag&o” em contraposicao 4 definig&do usual da dogmitica juridica. En- quanto a dogmatica trabalha com um conceito ideal de validade, a sociologia se ocupa com “o que de fato ocorre, dado que existe a probabilidade de as pessoas Participantes nas agdes da comunidade... considerarem subjetivamente determi- nadas ordens como validas e assim as tratarem, orientando, portanto, por elas suas condutas””®, ” WEBER, Max. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva, v. I, p. 209 8s. Ver ainda o estudo de SCHLUCHTER, Wolfgang. The sociology of law as an empirical theory of valitidy, p. 537-549.

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