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Educação Matemática I

AULA I
A MATEMÁTICA E A SOCIEDADE: DIÁLOGO, RELAÇÕES, OS
PROBLEMAS DO ENSINO E AS ALTERNATIVAS PARA EDUCAR
Professora Dra. Fabiane Fischer Figueiredo

A Matemática como prioridade numa sociedade moderna

A Matemática é o instrumento fundamental para explicar, entender, lidar com fatos e


fenômenos do mundo. Sua importância justifica que se faça a análise de sua presença como
disciplina central nas grades curriculares de todas as séries do ensino fundamental e médio,
não só no Brasil, mas em todo o mundo. Essa análise parte de uma teoria de conhecimento, de
uma reflexão sobre o conhecimento matemático e de sua contextualização. Matemática, como
toda forma de conhecimento, é resultado de um ambiente natural e cultural, isto é, mítico,
religioso, social, econômico, político. Sendo a educação a estratégia desenvolvida pelas
sociedades para possibilitar a cada indivíduo atingir seu potencial criativo e estimular e
facilitar a ação comum com vistas a viver em sociedade, o grande desafio é como formar
matemáticos necessários ao progresso e, ao mesmo tempo, educar toda a população para a
vida criativa, produtiva e integrada a um ideal de sociedade, sem arrogância, sem intolerância
e sem iniquidade.

A espécie humana e o conhecimento matemático

A espécie humana, homo sapiens surgiu há cerca de 40 mil anos e busca,


incessantemente, a “Sobrevivência” e “transcendência”.
Com o aparecimento da espécie humana, foram criadas intermediações entre os fatos
básicos da vida, isto é, entre o indivíduo, o outro e a natureza:
 Entre indivíduo e natureza: instrumentos e tecnologia;
 Entre indivíduo e outro/sociedade: comunicação e emoções;
 Entre outro/sociedade e natureza: produção e trabalho.
Essas intermediações exigem do homem o aprendizado e o acúmulo [ticas] de
habilidades e criatividade para entender e explicar [matema] os fatos e fenômenos, por meio
de experiências resultantes do contato com seu ambiente [etno]. Essas ticas de matema, que
são geradas em diferentes etnos, são organizadas intelectual e socialmente e acumuladas,
memorizadas e difundidas no próprio espaço e tempo, mas também entre ambientes remotos
de espaço e tempo. Essas constituem “conhecimento”, em particular o matemático, sempre
motivado por sobrevivência e transcendência.

Principais motivos do ensino da Matemática

A Matemática comparece como disciplina obrigatória e dominante em todos os


currículos dos níveis fundamental e médio de todos os sistemas escolares. A pergunta que
todos deveriam fazer é “por quê?” Muitos fazem esta pergunta e respondem de várias
maneiras:
 Porque é importante para o dia a dia e sem ela não podemos viver no mundo moderno;
 Porque ajuda a pensar melhor e desenvolve o raciocínio;
 Porque está em tudo. É a matéria mais importante que rege a vida das pessoas.
E assim por diante. A questão “por quê?” deveria estar permanentemente presente na
prática docente. Uma pesquisa sempre interessante, mesmo que tenha sido feita inúmeras
vezes, é sentir a opinião do professor, do profissional, do jovem, do indivíduo comum, sobre
essa questão básica.
Em educação trabalhamos com o futuro, e uma questão interessante para todos aqueles
que estão fazendo educação matemática é elucidar e explicar, confirmando ou negando,
afirmações como essas destacadas acima, que são correntes na opinião popular.
Será que matemática é tão importante no dia-a-dia e sem ela não podemos viver no
mundo moderno? Se assim for, como explicar tanto fracasso e reprovação e o fato de a
maioria da população assumir que “não é boa em Matemática”, e, apesar disso, todos
sobreviverem, alguns com muito sucesso?
Será que aquele que sabe matemática é melhor de raciocínio? Se assim for, como
explicar que alguns eminentes matemáticos fazem tanta bobagem na vida? E o fato de pessoas
consideradas muito espertas e rápidas em raciocínio e decisões se declararem fracassadas nos
estudos de matemática?
A questão dos objetivos da educação matemática é muito complexa e não pode ser
feita sem uma reflexão bem profunda sobre a natureza do conheci- mento matemático
(D’AMBROSIO, 1998).
Pesquisar a opinião dos professores sobre “por que ensinar matemática” e “a natureza
do conhecimento matemático” pode dar uma boa monografia de graduação e, com uma
análise devidamente elaborada, até dissertações e teses.
Há dois objetivos concomitantes na educação matemática, coerentes com o objetivo
maior da educação, destacado acima:
 Identificar talentos e estimular o desenvolvimento de novos matemáticos;
 Estimular o indivíduo a desenvolver sua cria tividade, em qualquer área, e prepará-
lo para a cidadania e vida social.
A prática educativa defronta-se com essa dualidade de objetivos. A dificuldade foi
explicitada pelo cientista John Perry, numa importante reunião da British Association, em
Glasgow:
É imensamente importante que, ao adotar um método de ensino elementar, ele não
seja prejudicial para um jovem, entre mil, que gosta de raciocínio abstrato; mas é
igualmente importante que os demais não sejam prejudicados. (PERRY, 1901, p.11,
tradução nossa).

Referência

D’AMBROSIO, U. A matemática como prioridade numa sociedade moderna. Dialogia, São


Paulo, v.4, p.31-44, 2005.

Diálogo no ensino e na Educação Matemática

Diálogo é estar com o outro, um movimentar-se para o outro. Ao dizer isso, já abordo
o diálogo como movimento. Engajamento e compartilhamento de falas; o diálogo como
participação. Perguntas, respostas e um prolongar de ideias; o diálogo como discussão. Será?
O professor, os alunos, a atividade, as perguntas, as diversas intenções. Será que o diálogo vai
acontecer? Assim é o diálogo visto como incerteza. A comunicação em atividades
relacionadas a cenários para investigação; o diálogo como investigação.
Alrø e Skovsmose (2004) caracterizam o diálogo como forma de comunicação que
ocorre em um ambiente específico de aprendizagem: os cenários para investigação, os quais
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podem se referir à realidade, semirrealidade ou à matemática pura (SKOVSMOSE, 2000).
Um cenário para investigação é planejado para fornecer significado ao que os alunos estão
produzindo na atividade (SKOVSMOSE, 2011). Eles são convidados a explorar hipóteses e
fazer descobertas. A atividade investigativa pode ser realizada em todos os níveis de ensino e
uma mesma atividade pode levar a diferentes descobertas dependendo do nível em que é
desenvolvida. Não se busca resultados genuínos, mas sim que os alunos façam suas próprias
descobertas (SKOVSMOSE, 2011).
Uma vez eles estando engajados no trabalho, o professor não tem como antecipar o
que os alunos descobrirão em sua investigação. Isso acontece porque eles têm liberdade para
escolher o caminho a ser percorrido e agem conforme suas decisões. Algumas perguntas
podem ser formuladas pelo professor, mas outras podem surgir durante a atividade, o que
pode gerar novas possibilidades de investigação. Uma atividade investigativa, portanto, é
caracterizada por um alto grau de imprevisibilidade.
Se os alunos estão engajados ativamente em uma atividade investigativa é porque
aceitaram o convite do professor para realizar a investigação. O convite não pode soar como
uma ordem, caso contrário ele pode ser recusado pelos alunos. O aceite à investigação
depende também das intenções dos alunos naquele momento e da natureza da atividade
(SKOVSMOSE, 2000). Existe uma intenção e uma atitude de curiosidade que move os
participantes. Eles controlam o processo e são responsáveis por conduzir as atividades; trata-
se de uma propriedade compartilhada.
Os rumos de um diálogo são imprevisíveis. Acreditar que, nesse contexto, novas
perspectivas possam ser criadas, implica em não conhecer de antemão que ideias são essas.
Quando se deseja saber o que o outro pensa, pode-se desconfiar de algo, mas não se tem a
certeza do que o outro vai responder. São as diversas respostas e participações verbais e
nãoverbais dos participantes que “alimentam” e “dão vida” ao diálogo. Aprender e investigar
em um cenário dialógico envolve, portanto, correr riscos. A imprevisibilidade neste contexto
– “means the challenge of trying new possibilities” (ALRØ; SKOVSMOSE, 2004, p.122) – e
gera oportunidades de aprendizagem.
Quando se considera o conhecimento que professor e alunos têm a respeito de um
conteúdo matemático específico, uma relação assimétrica entre eles é estabelecida: o
professor sabe mais sobre esse conteúdo que os alunos. O diálogo, porém, não pode ser
influenciado por essa relação. Professor e alunos estão em contato e o que se deseja é que haja
uma relação interpessoal igualitária.
Assim, promover a equidade no diálogo não significa negar a diversidade e as
diferenças, mas sim saber lidar com as mesmas, de forma justa. O professor pode convidar os
alunos para participarem de um diálogo e, para que ele ocorra, os alunos devem aceitar esse
convite. O princípio da equidade tem a ver com o convite ao diálogo. Para promover a
equidade, e, por consequência, a aprendizagem, é preciso que se tente agir de acordo com três
características: coerência, empatia e consideração. Ser coerente significa ser transparente e
verdadeiro em relação ao que se pensa e faz. A empatia do professor aparece quando ele tenta
entender o ponto de vista dos alunos, coloca-se no lugar do outro e tem consciência da
perspectiva do outro. A consideração está relacionada a aceitar e respeitar o outro com quem
se dialoga, sem a intenção de mudá-lo. No diálogo, professor e alunos têm direito à fala e a
serem escutados. As diferenças e a diversidade ao agir e pensar são respeitadas.
Podem ser múltiplas as leituras para o conceito de diálogo. Participação, discussão,
incerteza, movimento, investigação. São interpretações que não pretendem exaurir o conceito,
mas, sim, dizer de possibilidades para o diálogo. Elas estão fortemente relacionadas à pessoa
que diz do diálogo, suas experiências, ao contexto em que ela está inserida e às pessoas com
as quais se relaciona para afirmar sobre diálogo. As interpretações não estão isoladas umas
das outras. Elas possuem aspectos comuns entre si. Dizer do diálogo é transitório, contextual,
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é próprio do sujeito que se envolve com o diálogo, seja em uma pesquisa, seja na prática
docente. O que parece que sempre acreditei é que dialogar é estar com o outro, é escutar
ativamente o outro, é mover-se em direção ao outro.

Referência

MILANI, R. Diálogo em Educação Matemática e suas Múltiplas Interpretações. Bolema, Rio


Claro (SP), v.34, n.68, p.1036-1055, dez. 2020.

Sociedade, cultura e a Matemática

A educação em geral depende de variáveis que se aglomeram em direções muito


amplas: a) o aluno que está no processo educativo, como um indivíduo procurando realizar
suas aspirações e responder às suas inquietações; b) sua inserção na sociedade e as
expectativas da sociedade com relação a ele; c) as estratégias dessa sociedade para realizar
essas expectativas; d) os agentes e os instrumentos para executar essas estratégias; e) o
conteúdo que é parte dessa estratégia.
Embora adequado para o período de transição de uma tecnologia incipiente para uma
tecnologia muito avançada, que é a grande característica dos séculos XIX e XX, ler, escrever
e contar são obviamente insuficientes para a cidadania plena no século entrante. Proporcionar
aos jovens uma visão crítica dos instrumentos comunicativos, intelectuais e materiais que eles
deverão dominar para que possam viver na civilização que se descortina, vai muito além do
ler, escrever e contar. Na verdade, tornam ler, escrever e contar, na concepção tradicional,
algo obsoleto.
Proponho um currículo baseado em literacia, materacia e tecnoracia, que é uma
resposta educacional à responsabilidade de proporcionar aos jovens os instrumentos
necessários para sua sobrevivência e transcendência nos anos futuros, e ao mesmo tempo
tornar reais as expectativas de se eliminarem iniqüidades e violações da dignidade humana,
como primeiro passo para a justiça social (D’AMBROSIO, 1999).
As palavras literacia, materacia e tecnoracia são pouco utilizadas. Acho adequado
propor algumas definições, que ampliam o modo como esses neologismos vêm sendo
utilizados, tanto em português quanto em inglês: literacia é a capacidade de processar informa
ção escrita e falada, o que inclui leitura, escritura, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet na
vida cotidiana (instrumentos comunicativos); materacia é a capacidade de interpretar e
analisar sinais e códigos, de propor e utilizar modelos e simulações na vida cotidiana, de
elaborar abstrações sobre representações do real (instrumentos intelectuais); tecnoracia é a
capacidade de usar e combinar instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio
corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e
situações diversas (instrumentos materiais).
Poucos discordam do fato de a alfabetização e a contagem serem insuficientes para o
cidadão de uma sociedade moderna. Necessárias, até certo ponto, mas insuficientes. Ao
introduzir os conceitos de literacia, materacia e tecnoracia e propor uma nova conceituação de
currículo, acredito estar respondendo às necessidades de uma civilização em mudança.

Referência

D’AMBRÓSIO, U. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino. Educação e Pesquisa, São


Paulo, v.31, n.1, p. 99-120, jan./abr. 2005.

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Matemática, realidade e dificuldades de aprendizagem

De acordo com Machado (1997), o termo Matemática é de origem grega, tendo como
significado “o que se pode aprender”. O autor também faz referência às definições
encontradas no dicionário Aurélio e na Enciclopédia Britânica:
No dicionário Aurélio, matemática é definida como “ciência que investiga relações
entre entidades definidas abstrata e logicamente”. Quanto a definição da
enciclopédia, a matemática é tida como a “ciência que lida com as relações e
simbolismos de números e grandezas e que inclui operações quantitativas e soluções
de problemas quantitativos” (MACHADO, 1997, p.7).
Descartes denominou de Matemática Universal a ciência de modo geral, a qual deve
abranger os primeiros elementos da razão humana, proporcionando o surgimento de verdades
sobre todo e qualquer assunto (MACHADO, 1997).
Machado (1997) remete ao ensino da Matemática como sendo uma tarefa difícil, e as
dificuldades intrínsecas acabam por somar-se à visão distorcida que muitos professores têm a
respeito da disciplina. Considerando esses aspectos, o autor menciona que a Matemática “[...]
se aplica ao real ou, o que é mais grave, rege-o, somente assim poder-se-ia repensar o ensino
da Matemática em um sentido globalizante. Um sentido [...] que possa inscrever tal ensino
numa perspectiva de ação transformadora” (MACHADO, 1997, p.17).
Desse modo, Machado (1997) ressalta que a Matemática, ainda hoje, é ensinada nas
escolas enfatizando a sua linguagem própria. A preocupação centra-se em escrever
corretamente, falar corretamente, ao invés de preocupar-se em favorecer o pensar e o criar. O
autor aponta a falta de compreensão quanto à utilidade da Matemática como a possível
responsável pelas dificuldades crônicas ocorridas no ensino da disciplina.
Corroborando essa ideia, Lara afirma que: “Há muito tempo, a Matemática traz
consigo a imagem de disciplina mais difícil do currículo escolar, efeito disso é considerar
normal a presença de dificuldades tanto no processo de ensino como de aprendizagem” (2004,
p.137). Entretanto, a autora afirma que é preciso colocar sob suspeita esse discurso tido como
verdade absoluta, pois, se existem dificuldades para o estudante aprender, consequentemente,
existem causas para que isso aconteça, em muitos casos, um ensino inapropriado da
disciplina, um ensino ultrapassado e descontextualizado da realidade dos estudantes (LARA,
2004).
Ainda conforme Lara,
[...] o modo como os saberes matemáticos vêm sendo tratados fazem com que a
Matemática passe a ser um corpo fechado de saberes verdadeiros, atemporais e
irrefutáveis, passível então, de transmissão [...] o aluno constitui-se como um mero
receptor e repetidor [...] a maneira como a Matemática aparece em alguns livros
didáticos reflete a imagem de um conjunto de conteúdos ou definições
hierarquizadas e entrelaçadas (2004, p.141).

Observação

O material foi extraído adaptado do artigo (recorte p.355-356):


LARA, I. C. M. de; ÁVILA, L. A. B. Matemática, realidade e dificuldades de aprendizagem:
reflexões acerca do ensino. Espaço Pedagógico, v.24, n.2, Passo Fundo, p.353-370,
maio/ago. 2017.

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