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DA MONTANHA DE MINÉRIO

AO METAL RARO
Os Estudos para Obra
de João Guimarães Rosa
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-Reitor Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
Diretor Flavio de Lemos Carsalade
Vice-Diretora Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
Ana Carina Utsch Terra
Antônio de Pinho Marques Júnior
Antônio Luiz Pinho Ribeiro
Bernardo Jefferson de Oliveira
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Carla Viana Coscarelli
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Helena Lopes da Silva
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João Antônio de Paula
José Luiz Borges Horta
Lira Córdova
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Renato Alves Ribeiro Neto
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rodrigo Patto Sá Motta
Sergio Alcides Pereira do Amaral
Sônia Micussi Simões
Frederico Antonio Camillo Camargo

DA MONTANHA DE MINÉRIO
AO METAL RARO
Os Estudos para Obra
de João Guimarães Rosa
Direitos autorais Anne Caroline Silva
Assistência editorial Eliane Sousa
Coordenação de textos Lira Córdova
Preparação de textos Nanete Neves
Revisão de provas Felipe Magalhães e Íris Ladislau
Coordenação gráfica Fernando Freitas
Projeto gráfico, formatação e capa Cássio Ribeiro
Produção gráfica Warren Marilac
Imprensa Universitária UFMG,
Impressão e acabamento
em janeiro de 2023

© 2023, O autor
© 2023, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor.

____________________________________________________________________________________

C172d Camargo, Frederico Antonio Camillo


Da montanha de minério ao metal raro: os Estudos para Obra de
João Guimarães Rosa / Frederico Antonio Camillo Camargo. – Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2023.

408 p. – (Origem)
Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-423-0262-2

1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967. 2. Literatura. I. Título.


II. Série.

CDD: 809
CDU: 809.933
____________________________________________________________________________________
Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 | CAD II | Bloco III
Campus Pampulha | 31270-901 | Belo Horizonte-MG | Brasil
Tel. +55 31 3409-4650 | www.editoraufmg.com.br | editora@ufmg.br
Para Elisabete
É preciso uma montanha de minério para
poder-se extrair uma grama [sic] de metal raro.
João Guimarães Rosa
SUMÁRIO

FIO(S) DE ARIADNE
Marcos Antonio de Moraes 9

INTRODUÇÃO 15

Capítulo I
CARACTERIZAÇÃO GERAL DOS ESTUDOS PARA OBRA 25

Capítulo II
NOTAS DE TEOR AUTOBIOGRÁFICO OU TESTEMUNHAL
A permeabilidade entre vida e obra 149

Capítulo III
LISTAS DE PALAVRAS/EXPRESSÕES E NOTAS DE PESQUISA
Um dicionário e uma enciclopédia pessoais 211

Capítulo IV
NOTAS DE LEITURA
A presença do outro na formação e prática do escritor 261

Capítulo V
EXERCÍCIOS DE COMPOSIÇÃO LINGUÍSTICO-LITERÁRIOS,
TÍTULOS E MOTIVOS
Os Estudos para Obra como laboratório da criação 323

CONSIDERAÇÕES FINAIS 379

ANEXOS 389
FIO(S) DE ARIADNE

O Dicionário de mitos literários organizado por Pierre Brunel abriga


extenso verbete à deusa grega Ariadne, filha dos reis de Creta, Minos
e Pasífae, cuja história logo vinculamos ao Minotauro, a Teseu e a
Dioniso. Ariadne, apaixonada por Teseu, desvela a ele o estratagema
do novelo para que pudesse encontrar a saída do labirinto, após aba-
ter o monstruoso devorador de jovens que lá habitava. Transgressora,
foge com o amado, quem, no entanto, a desampara na ilha de Naxos,
onde Baco a encontrará desesperançosa e com quem se casa. O autor
do verbete, André Peironye, a partir dos exíguos testemunhos do
mito de Ariadne no período clássico, mostra o seu desdobramento
literário ao longo das épocas. Se a imagem da mulher “abandonada
ou consolada”, figurações de arquétipos da paixão, ganhou sempre
maior relevo, uma terceira ordem simbólica, a da mulher portadora
de um “conhecimento”, despontaria, em principal, a partir do século
XIX. Sob o foco, então, o “sentido do fio entregue por Ariadne”.
Sabedoria, razão, progresso humano (e suas vicissitudes) entram
em pauta. Paradigmaticamente, em Teseu (1946), de André Gide, o
cordel inventado por Dédalo seria “ao mesmo tempo o que permite
10 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

[ao herói] construir o futuro e [...] (o entrave), que o prende e impede


de seguir adiante”.1
O labirinto e as estratégias de orientação em seu espaço evocam
a relação do pesquisador com os arquivos – os chamados fundos
pessoais. Ao se deparar com a variedade da matéria documental,
que reflete a pluralidade das manifestações criativas de um escri-
tor, o observador extemporâneo vive, inicialmente, a experiência
do desnorteamento. O “arquivo”, de fato, tem as suas camadas
(arqueológicas). O locus primeiro da criação, o espaço privado do
escritor, instaura uma dinâmica particular entre o autor e seus
papéis, volumes de sua biblioteca e mesmo objetos. Os gestos sin-
gulares de seu trabalho multiplicam-se em um complexo universo
de significados aparentemente não compartilháveis com terceiros.
O scriptor forja práticas escriturais, apurando-as; parece ter um
mapa seguro dos percursos que julga frutíferos em seu artefazer,
mas o (movediço) terreno do inconsciente é, sabemos, quem,
muitas vezes, dá as cartas. O previsto e o imponderável vigoram
no horizonte dos procedimentos estéticos.
Quando esses documentos (que, por um motivo ou por outro,
sobreviveram ao descarte, materializados em tantos suportes, dis-
criminando-se em tantos gêneros) passam do ambiente privado (o
escritor em seu ambiente) para o espaço público (as instituições de
pesquisa), as técnicas da arquivologia se encarregam de fornecer
subsídios para uma ideal ordenação do acervo que será objeto das
mais variadas consultas, de interesses múltiplos. O impulso de
racionalização tanto realça, na definição de séries e subséries, os
vetores estruturantes do conjunto quanto pode, eventualmente,
apagar importantes liames de significados implícitos. Assim, a
presença de uma carta em meio aos manuscritos de uma obra em
processo determinará um olhar que apreenda os laços entre ma-
térias de natureza tipológica diferenciada. Em uma proposta de
Fio(s) de Ariadne 11

classificação, o mero deslocamento dessa missiva para uma Série


Correspondência, em nome de categorizações estritas (cartas de
um lado, manuscritos de outro), equivale ao apagamento de um
nexo do processo criativo. Consulentes (principiantes), quando
chegam em instituições de pesquisa, raramente já tiveram a opor-
tunidade de refletir sobre as artimanhas do “arquivamento de
si”, definidoras das escolhas do escritor na preservação de seus
papéis, e sobre a (incontornável) artificialidade da organização dos
fundos pessoais, no trânsito entre o privado e o público. Como os
guias e catálogos, sempre sumários, esmaecem as linhas de força
de um acervo (embora a proposta deles seja justamente a de su-
gerir potencialidades), o pesquisador, quando confrontado com
a pletora de documentos que são colocados sob seus olhos, vê as
suas demandas investigativas sob risco de soçobrarem, seja pela
sereia da dispersão, seja pelo aprisionamento na rede embaraçante.
Inúmeros são os (des)caminhos de uma pesquisa em um arquivo
de escritor.
O funcionamento idiossincrático dos fundos pessoais e a
realidade das organizações tipológicas de acervos são questões
teóricas de base na admirável investigação de Frederico Antonio
Camillo Camargo, que resultou em sua dissertação de mestrado
Da montanha de minério ao metal raro: os Estudos para Obra de João
Guimarães Rosa, defendida em 2013, sob orientação da Profa Dra
Sandra Guardini T. Vasconcelos, no Programa de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Na contramão
das propostas de “recortes” acanhados (a fim de que os projetos
de pós-graduação possam ser cumpridos em prazos cada vez mais
exíguos), o pesquisador, graduado em Engenharia da Computação
e Letras, leva a termo um ambicioso mapeamento integral e o es-
tudo de uma das séries documentais mais provocadoras do Fundo
Guimarães Rosa, no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP.
12 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

Fundamentais para se compreender os procedimentos inventi-


vos de um escritor cujo refinamento estético e amplitude reflexiva
seguem surpreendendo os críticos literários, os Estudos para Obra
caracterizam-se pela grande quantidade de elementos textuais e
pela natureza heterogênea: os documentos neles reunidos, segundo
Frederico Camargo, “somam mais de 6 mil páginas”, dispostos em
38 volumes de folhas avulsas (compondo 49 dossiês), 27 cadernos
escolares e 8 cadernetas. Nessas folhas – no que se refere à ativi-
dade do escritor –, transborda uma cornucópia textual de um dos
momentos fortes da fábrica criativa de Guimarães Rosa, a massa
pré-redacional. Vicejam aspectos da gênese de suas obras (exceto
de Magma e Sagarana), planos, listagens, exercícios de invenção e
resíduos de obras por vir. O poder encantatório desse material pro-
duzido e acumulado ao longo de muitos anos, espelho da inquietude
artística e do gosto intelectual do criador de Grande Sertão: Veredas,
reside também em sua beleza. Compulsar os estudos, mesmo que
diletantemente, significa fruir o contato com suportes os mais varia-
dos, grafismos em progresso, cores, riscos, símbolos; surpreende-nos
não a fixidez das letras e dos traços, mas a movimentação latente
das ideias, o mundo de possibilidades efabuladoras.
A apurada síntese descritiva dos Estudos para Obra levada a termo
por Frederico Camargo constitui, antes de mais nada, uma cartogra-
fia segura para futuros pesquisadores da série. O empreendimento
analítico, em sua horizontalidade, permite uma fecunda visada nos
grupos documentais, apresentados em seus temas principais e po-
tencialidades de abordagem. O crítico perspicaz, exímio conhecedor
da obra publicada de Guimarães Rosa, não descuida, tampouco,
de realizar na matéria arquivística a talhada vertical, precisa, de
vigoroso empuxo hermenêutico. Logra também cumprir um con-
sistente corte transversal nos textos ali congregados, enfrentando
a sua heterogeneidade compositiva, para dela haurir seus veios
Fio(s) de Ariadne 13

mais férteis, os traçados imagéticos robustos, as práticas escriturais


recorrentes. Percebe conexões internas nos registros, estabelece
pontes entre manuscrito e obras. Detém-se, substancialmente, nas
vertentes “biográfica”, da “pesquisa” e da “criação” presentificadas
na “montanha de minério” concebida por Rosa. Em outras palavras,
o pesquisador explora as alianças entre anotações biográficas e lite-
rariedade; as diversas práticas escriturais do autor (a elaboração de
“listas”, o registro de leituras etc.), atualizando a discussão sobre o
intertexto; aprofunda o debate sobre os “exercícios de composição
linguístico-literário” do autor mineiro, vistos como um milionário
“laboratório” de suas obras.
Frederico Camargo, em seus consistentes posicionamentos ana-
líticos, elaborados em linguagem fluente, não teme a autocrítica,
nem a dúvida, em terreno tão instável como é o dos estudos dos
manuscritos literários. E não se furta a ousadias interpretativas, em
larga medida, para instigar a reação do leitor, que o crítico considera
um bom companheiro de viagem (seriam os Estudos para Obra “um
imenso diário”? Seriam eles, a partir de Sagarana, “a obra magna e
única de Guimarães Rosa [...], enquanto as narrativas que escreve
são apenas seus capítulos – recortes estendidos dos temas, fórmulas,
enunciados, dados factuais e citações acumulados?”). Nessa trajetó-
ria crítica, dominando a fortuna bibliográfica do autor de Tutameia,
imbui-se de uma postura integradora, colaborativa, reconhecendo
como efetivos interlocutores aqueles que o antecederam no des-
bravamento da inesgotável série documental. Do mesmo modo,
reconhece a contribuição de tantas bases teóricas no enfrentamento
de seu objeto de pesquisa, com elas dialogando, para trazer à tona
produtivas questões da teoria literária, da Crítica Genética, do me-
morialismo, os pressupostos da intertextualidade, a contribuição
da estilística, da psicologia da criação e mais.
14 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

Da montanha de minério ao metal raro: os Estudos para Obra de


João Guimarães Rosa figura, para todos nós, e em particular para os
futuros pesquisadores dessa rica documentação e da obra do criador
de Miguilim, como consistentes fio(s) de Ariadne. Entramos no labi-
rinto – a “fábrica” rosiana, seguimos seus múltiplos caminhos sem
o risco de nos perdermos, somos seduzidos pela heterogeneidade
da documentação e pela espantosa consistência dos projetos de um
autor engajado em um ofício sem sossego. Diferentemente do “fio”
que viesse a cercear nossos passos, impedindo-nos de avançar (o
“entrave” de Gide), este livro, mobilizado pelo senso da partilha
generosa, oferece seguramente muitos outros fios de conhecimento
dos Estudos para Obra, estimulando novas explorações.

Marcos Antonio de Moraes


INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, USP

Nota
1
Pierre Brunel (org.), Dicionário de mitos literários, Trad. Carlos Sussekind, Jorge
Laclette, Maria T. Rezende Costa, Vera Whately, Rio de Janeiro: José Olympio/
UNB, 2000, p. 87.
INTRODUÇÃO

O interesse sistemático pela análise de manuscritos e notas de


trabalho de escritores, com o objetivo de compreender os proce-
dimentos de elaboração de obras literárias, tem início na França,
a partir do final da década de 1960, e leva ao surgimento de uma
nova disciplina na área dos estudos de literatura: a Crítica Genética.
A possibilidade de acesso aos materiais que integram os bastidores
da criação artística erige-se quase em fetiche e apresenta-se repleta
de promessas: vislumbrar, nas diferentes fases da construção de
um texto, o mecanismo de funcionamento do que seria a inspiração
criativa; mapear, desde a primeira anotação até a última versão de
uma peça literária, todas as etapas de sua escrita, na tentativa de
quantificar e descrever um suposto número finito de processos de
composição; descobrir ou confirmar os significados “ocultos” do
texto final, agora desnudados pelas marcas da escritura presentes
nos planos, esquemas, roteiros e rascunhos das obras; formular uma
“estética da produção”. Essas abordagens, com o passar do tempo,
tiveram graus diferenciados de sucesso. É inegável, no entanto, que
o estudo de manuscritos literários e outros prototextos “instaura
um novo olhar sobre a literatura”.1
16 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

Em outro patamar, mas também fazendo parte do grupo de


elementos que orbitam ao redor da construção do texto literário (e,
eventualmente, a condicionam, de alguma forma), encontram-se os
documentos e objetos que fizeram parte da vida e dos interesses
de um autor: a correspondência, os diários, a biblioteca, os recortes
de jornais, outros souvenirs que colecionou etc. Eles, muitas vezes,
servem como testemunhas das etapas, dos propósitos, das escolhas,
dos impasses e das angústias que constituem o processo de compo-
sição de uma obra; não raro, fazem também referência às (ou são,
eles mesmos) fontes e influências que moldaram o trabalho literário.
Atualmente, manuscritos e notas de trabalho, cartas e diários e
outros materiais produzidos e colecionados por escritores têm sido,
com maior frequência, transferidos, por meio de compra ou doação,
para instituições de pesquisa especializadas no gerenciamento e
conservação de patrimônio cultural. Nesses locais, esses bens são
mantidos em maior segurança contra extravios ou desgaste promo-
vido pelo tempo, são organizados, catalogados e acondicionados
adequadamente, e cada instituição, segundo suas normas especí-
ficas, disponibiliza-os para a consulta do público interessado. Em
certos casos, esses acervos são também publicizados de forma mais
ampla, por exemplo, através de exposições.
No Brasil, a Crítica Genética passa a ser adotada a partir de
meados da década de 1980, mas as pesquisas sobre manuscritos
literários e processos de criação de escritores iniciam-se alguns
anos antes, acompanhando a constituição de centros de docu-
mentação literária pelo país: o Arquivo-Museu de Literatura
Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em
1972; o Acervo de Escritores Sulinos da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 1982; o Centro de
Documentação Alexandre Eulálio da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), em 1984. Na Universidade de São Paulo,
Introdução 1 7

seu arquivo mais importante, localizado no Instituto de Estudos


Brasileiros (IEB/USP), é criado em 1968, com a chegada do acervo de
Mário de Andrade.2 A ele juntar-se-ão, em seguida, o acervo de João
Guimarães Rosa, em 1973, e o de Graciliano Ramos, em 1980, só para
citarmos mais dois autores brasileiros de grande apelo acadêmico.
Dois dos primeiros trabalhos sobre acervos de escritores brasi-
leiros, todavia, desenvolveram-se antes mesmo que esses materiais
estivessem depositados em instituições de pesquisa. É o caso dos
estudos de Telê Ancona Lopez, pesquisadora da marginália de
Mário de Andrade na biblioteca do autor, num período anterior
à transferência dessa coleção para o IEB/USP. Também o acervo
de Guimarães Rosa teve história semelhante: Suzy Sperber, para
analisar as anotações presentes nos livros da biblioteca do escritor,
frequentou a própria casa de Rosa, pouco depois da sua morte.
Cronologicamente, o primeiro trabalho acadêmico dado a
público que toma como material de base documentos do acervo
literário de Guimarães Rosa, com o objetivo de “rastreamento de
elementos de cultura popular registrados por Rosa e seu reaprovei-
tamento na sua obra”,3 é Baú de alfaias, de Sandra Guardini Teixeira
Vasconcelos, em 1984. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, a
autora compulsou manuscritos, diários de viagens e materiais de
estudo e pesquisa do escritor mineiro, a maior parte deles classifi-
cado, no arquivo, num conjunto chamado Estudos para Obra. Já no
ano subsequente, Maria Célia de Moraes Leonel, uma das principais
responsáveis, juntamente com Sandra Vasconcelos, pela primeira
organização do acervo de Rosa, defende a tese de doutoramento
Guimarães Rosa alquimista: processos de criação do texto (1985). Seu
intuito também é a “caracterização e análise de alguns processos
de criação do escritor, a partir do confronto entre apontamentos
do Arquivo e textos literários com ele relacionados”.4 Novamente,
os documentos utilizados na pesquisa faziam parte dos Estudos
18 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

para Obra. Maria Célia Leonel, tomando sobretudo os diários de


viagem de Rosa pelo interior de Minas Gerais, realiza uma extensa
e detalhada demonstração da utilização dessas notas na composição
de alguns textos do autor, com ênfase na novela “Buriti”, de Corpo
de baile. Uma observação posta na introdução desse trabalho é de
interesse para a nossa discussão:

Com o levantamento e análise de dados prontos e a redação em sua


fase final, verificamos que o trabalho, apesar do caráter exploratório de
que se reveste, tanto em relação a parte de seu objeto – documentos do
Arquivo Guimarães Rosa –, como em relação à maneira de abordá-lo,
vem ao encontro de estudos efetivados pela crítica genética na França que
avança em suas realizações.5

Percebemos, portanto, que os estudos feitos no Brasil, à época,


sobre manuscritos de escritores e outros “documentos de processo”,6
somente de forma acidental se filiavam à Crítica Genética.
Os métodos e pressupostos dessa disciplina, no entanto, passam
logo a ganhar terreno nos trabalhos realizados sobre os manuscri-
tos de Guimarães Rosa presentes no seu arquivo. Maria Neuma
Barreto Cavalcante, em 1991, analisa o processo de criação do conto
“Bicho mau”, de Estas estórias; Elizabeth Ziani, em 1996, estuda as
diferentes versões de uma narrativa inacabada e inédita intitu-
lada “Remimento”; Cleuza Martins Carvalho, em 1996, discute os
rascunhos e projetos do romance interrompido A fazedora de velas.
Os manuscritos não redacionais serão abordados novamente por
Kátia Bueno Romanelli, em 1995, e Mônica Fernanda Gama, em
2008, agora sob a perspectiva da construção dos textos de Tutameia.
Nesse intervalo, o estudo mais diferenciado sobre os materiais do
arquivo de Guimarães Rosa é o de Ana Luiza Martins Costa, de
2002, que retoma os diários de viagem ao interior de Minas Gerais
e analisa, adicionalmente, um conjunto de notas de leitura de
Homero feitas por Rosa.7
Introdução 1 9

Essa breve retrospectiva que vimos fazendo serve a dois propó-


sitos: o primeiro é contextualizar este trabalho dentro de uma certa
linha de estudos da literatura de Guimarães Rosa: aquela que se
utiliza prioritariamente da documentação salvaguardada em seu
arquivo no IEB/USP – em especial, os manuscritos das obras éditas
e inéditas, as anotações de viagem e as notas de trabalho. Esses
estudos não são numerosos e nem sempre alcançam visibilidade e
importância entre a vasta quantidade de trabalhos produzidos sobre
o autor, como acontece, em larga medida, com muitas das pesquisas
de Crítica Genética, seja qual for a obra ou o escritor de interesse.
Esse fato nos conduz ao segundo propósito: sustentar o argumento
de que, contrastando com a profusão de materiais existentes no
acervo literário de Guimarães Rosa, o volume de pesquisas que o
tomam por base é extremamente diminuto.8
Se considerarmos somente os manuscritos de natureza redacio-
nal do arquivo do escritor, ainda há disponíveis para análise esboços
e diferentes versões de algumas dezenas de narrativas completas
ou inacabadas. Além deles, o conjunto de notas que compõe os
Estudos para Obra, objeto desta pesquisa, foi abordado de maneira
bastante parcial, tendo sido dada preferência, como já mencionamos
de passagem, aos diários de viagem ao interior de Minas Gerais,
às notas pré-redacionais relacionadas a Tutameia e aos estudos
que Guimarães Rosa fez da Odisseia e da Ilíada. Como veremos
mais adiante, esses recortes temáticos, ainda que abordem seções
relevantes da documentação, correspondem a uma fração mínima
do material dos Estudos. Em consequência disso, quantidade não
desprezível do que Rosa pensou, leu, anotou e compôs permanece
completamente desconhecida da grande maioria dos estudiosos e
admiradores de sua obra – “escondida” em caixas de arquivo.
Assim, este trabalho encontra sua justificativa e erige seus
objetivos a partir de dois pontos de apoio: (1) a necessidade de
dar a conhecer, de forma integral, um material volumoso e relati-
vamente inédito, composto e reunido segundo condicionamentos
20 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

muito específicos por um dos maiores escritores brasileiros; (2) a


constatação de que os registros que constituem os Estudos para Obra
podem enriquecer de várias formas o conhecimento que temos de
Guimarães Rosa, de sua obra, de seu processo de criação e da di-
nâmica de sua formação como escritor. Ou, como já afirmou Maria
Célia Leonel sobre os Estudos, há mais de 30 anos:

(...) provavelmente a parte mais rica do Arquivo Guimarães Rosa, possi-


bilitando pesquisas variadas e inovadoras quer voltadas para a investigação
de componentes temáticos, psicológicos, psicanalíticos, sociais etc., quer
centradas nas diferentes etapas de construção do texto, nos procedimentos
de elaboração ou de qualquer outra ordem.9

Esta investigação, portanto, tem como finalidade fazer uma


descrição e avaliação crítica dos Estudos para Obra, procurando
mostrar quais foram suas regras de formação, qual a sua estrutura
e conteúdos, o papel que desempenharam dentro do processo de
criação literária de Guimarães Rosa, a sua relação com as obras
éditas e inéditas e como eles permitem traçar um perfil do escritor
e de seu processo de aprendizagem e formação. Em outras palavras,
queremos fornecer um panorama das práticas de pesquisa, arqui-
vamento e criação de Guimarães Rosa, evidenciados por uma das
partes principais de seu acervo documental.
O tipo de abordagem que propomos encontra inspiração no
trabalho de Ana Luiza Martins Costa, que, ao estudar as cadernetas
de viagem de Rosa, afirma ser seu objetivo “analisar as cadernetas
em si, como um texto, como um modo específico de escrita”;10
e também no alerta de Graham Falconer, quando teoriza sobre
“cadernos de trabalho” de escritores (tipo de material com o qual,
argumentaremos, os Estudos se assemelham): “(...) o interesse dos
cadernos não se limita à pré-história da obra; desconfiemos da
tentação de ler neles apenas aquilo que já sabemos.”11 Esse autor
Introdução 2 1

defende, então, “a possibilidade de um outro tipo de leitura – uma


leitura que considere o caderno como um gênero em si mesmo”.12
Ainda que não adotemos sempre essas diretivas de forma estrita e
radical, elas constituirão o pano de fundo desta pesquisa.
Na verdade, a rigor, devido à sua extensão e complexidade,
não é possível esgotar a descrição dos volumes que integram os
Estudos. Um trabalho que pretende abordá-los na sua integralidade
conseguirá apenas apresentá-los de modo sumário e esquemático,
destacando algumas passagens interessantes e deixando um nú-
mero ainda imenso de registros à curiosidade do leitor, que deverá
buscá-los no contato direto com a documentação. Veremos, além
disso, que muitos dos volumes dos Estudos ficarão a esperar análises
individuais e detalhadas.
Isso nos obriga a esclarecer o nosso método e a delinear o
percurso a ser percorrido neste trabalho. Abordaremos os Estudos
para Obra segundo três perspectivas, sugeridas pela própria con-
figuração do conjunto: (i) a perspectiva biográfica, na medida em
que os Estudos guardam, nas suas notas de teor autobiográfico ou
testemunhal, o registro da trajetória pessoal de Guimarães Rosa, e
do aproveitamento de suas experiências no seu trabalho literário;
(ii) a perspectiva da pesquisa, que se reflete no esforço rosiano de
acumular material bibliográfico e documental para a elaboração de
sua obra; (iii) a perspectiva da criação, onipresente nos papéis do
escritor mineiro, manifestada, sobretudo, no volume extraordiná-
rio de invenções linguístico-literárias de caráter fragmentário que
compõe tais papéis.
O Capítulo I faz uma caracterização geral dos Estudos para Obra.
Serão abordadas questões do seguinte gênero: a maneira como
esse material foi reunido, seu processo de classificação durante a
organização do arquivo, o caráter heteróclito e fragmentário dos
registros, e os tipos de apontamentos que o constituem. Em seguida,
cada um dos volumes que o integram será sumariamente descrito,
22 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

conforme seu conteúdo, contexto de produção e função dentro do


projeto literário de Guimarães Rosa.
O Capítulo II focaliza um dos tipos de registro que constituem
os Estudos para Obra: as notas de teor autobiográfico ou testemunhal
que se espalham assistematicamente pelos volumes de folhas avul-
sas, cadernos e cadernetas. Registros significativos serão analisados,
na tentativa de moldar um itinerário do escritor Guimarães Rosa,
com ênfase nas suas preocupações morais, políticas e estéticas.
Como estudo de caso, faremos um exame mais detido das notas das
viagens que Rosa fez a Brasília, em 1958, das quais resultaram dois
contos de Primeiras estórias: “As margens da alegria” e “Os cimos”.
O Capítulo III ocupa-se da discussão das numerosas listas de
palavras e expressões preparadas por Guimarães Rosa, apontando
seus diferentes formatos e usos. Também aqui serão estudadas as
pesquisas temáticas realizadas pelo autor e seu papel na composição
de narrativas. Tomaremos como meta, além disso, mostrar como
esse material comporta-se a partir de sua comparação com formas
canônicas de organização de informações: o dicionário, a coleção,
o inventário e a enciclopédia.
O Capítulo IV concentra-se na seleção e análise de notas de
leitura profícuas para o estabelecimento de relações intertextuais
entre Guimarães Rosa e outros autores e obras, sejam do campo
literário, sejam de outras áreas de conhecimento pelas quais Rosa
tinha acentuado interesse. Esse tipo de investigação complementa
outro gênero de abordagem que vem sido realizada em acervos
de escritores, incluindo o de Guimarães Rosa – o estudo de sua bi-
blioteca e marginália. No caso de Rosa, essa visada é fundamental,
tendo em vista que o volume de notas de leitura presentes no seu
arquivo é extremamente avantajado.
O Capítulo V apresenta os Estudos para Obra como um verda-
deiro laboratório da criação. Neles, Guimarães Rosa, acima de tudo,
Introdução 2 3

planeja e exercita seu fazer literário, compondo extensas listas de


unidades frásicas de natureza fragmentária a que poderá recorrer,
futuramente, para a escrita de seus textos. Também vislumbramos
os projetos rosianos explícitos nos índices de obras e narrativas
que o autor compõe em diferentes épocas de sua carreira literária.
Ao contrário de muitos trabalhos de Crítica Genética, não é
meu objetivo aqui selecionar e mapear de modo sistemático como
as notas de Guimarães Rosa (sejam elas autobiográficas, de lei-
tura, ou elaborações manifestamente literárias) são aproveitadas
nos seus textos redacionais. Esse tipo de esforço será restrito a um
número reduzido de anotações, nas quais vislumbramos maior
potencial ilustrativo dos métodos criativos do autor. Na verdade,
interessa-me, antes, interpretar, de maneira geral, como os registros
se encaixam dentro de um programa consciente de capacitação
do escritor para o exercício de seu ofício. Também, pelas mesmas
razões apontadas, salvo quando excepcionais ou motivadoras de
análise específica, não me interessam as configurações espaciais
dos apontamentos nas páginas. A própria ortografia instável, erros
de escrita/datilografia e rasuras não serão sempre transcritas ou
indicadas, a não ser quando importantes para a interpretação dos
registros. Quando isso não acontecer, eles serão reproduzidos de
modo que a sua leitura e entendimento sejam facilitados (ortografia
corrigida e modernizada e supressão de inscrições marginais).

Notas
1
Almuth Grésillon, Elementos de Crítica Genética: ler os manuscritos modernos,
Porto Alegre, UFRGS, 2007, p. 19.
2
Os dados sobre as implantações dos centros de documentação, com exceção
daqueles referentes ao Arquivo IEB/USP, são retirados de: Reinaldo Marques,
O arquivo literário como figura epistemológica, Revista Matraga, Rio de Janeiro,
v. 14, n. 21, p. 16, jul./dez. 2007.
24 D A MONTANHA D E MINÉRIO AO METAL RARO

3
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos, Baú de alfaias, 241 f., dissertação (mestrado
em Teoria Literária e Literatura Comparada), Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1984, p. 2.
4
Maria Célia de Moraes Leonel, Guimarães Rosa alquimista: processos de criação
do texto, 349 f., tese (doutorado em Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985, p. ii.
5
Ibidem, p. iii.
6
Cecília Almeida Salles define “documentos de processo” todos os “registros
materiais do processo criador”: Cecília Almeida Salles, Gesto inacabado: processo
de criação artística, 3. ed., São Paulo, FAPESP, Annablume, 2007, p. 17.
7
Maria Neuma Barreto Cavalcante, Bicho mau: a gênese de um conto, 216 f., tese
(doutorado em Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991; Elizabeth Maria Ziani,
Remimento: raízes de uma narrativa inacabada, 161 f., dissertação (mestrado em
Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Uni-
versidade de São Paulo, 1996; Cleuza Martins de Carvalho, A fazedora de velas:
o outro lado da moeda (a gênese do romance em Guimarães Rosa), dissertação
(mestrado em Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996; Kátia Bueno Romanelli,
A álgebra mágica na construção dos textos de Tutaméia, 384 f., tese (doutorado em
Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Univer-
sidade de São Paulo, São Paulo, 1995; Mônica Fernanda Rodrigues Gama, Sobre
o que não deveu caber: repetição e diferença na produção e recepção de Tutameia,
187 f., dissertação (mestrado em Língua e Literatura Francesa), Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2008; Ana Luiza Martins Costa, João Guimarães Rosa, Viator, 270 f., tese (doutorado
em Letras), Centro de Educação e Humanidades, Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
8
Poderíamos citar ainda alguns outros trabalhos desenvolvidos, sem a intenção
de esgotar a bibliografia disponível, mas isso não alteraria significativamente o
quadro exposto.
9
Leonel, Guimarães Rosa alquimista, p. iii.
10
Costa, Guimarães Rosa, Viator, p. 5.
11
Graham Falconer, Le carnet de travail, champ privilégié des études génétiques,
em Gênese e memória: Anais do IV Encontro Internacional de Pesquisadores do
Manuscrito e de Edições, São Paulo: Annablume, 1995, p. 390. No original: “(...)
l’interêt des carnets ne se limite pas à la pré-histoire de l’oeuvre; mefions-nous
de la tentation de n’y lire que ce que nous savons déjà.”
12
Ibidem. No original: “(...) la possibilité d’une autre type de lecture – une lecture
que envisage le carnet comme un genre en soi.”

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