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VALDIR APARECIDO DE SOUZA

(DES)ORDEM NA FRONTEIRA:
Ocupação Militar e Conflitos Socias na bacia
do Madeira-Guaporé(30/40)

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e


Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Campus de Assis, para a obtenção
do título de Mestre em História (Área de
Concentração: História e Sociedade)

Orientadora: Profª. Drª. Laura Antunes Maciel

Assis
2002
2

S729d Souza, Valdir Aparecido de


(Des)ordem na fronteira: ocupação militar e conflitos sociais na
bacia do Madeira-Guaporé (30-40) / Valdir Aparecido de Souza. –
Assis, 2002. 177 páginas.

Dissertação (Mestrado em História e Sociedade) Universidade


Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2002.

1 . Rondônia – ocupação militar 2 . Rondônia – História –


colonização 3 . Conflitos sociais – Rondônia I – Título.

11-338 CDU : 94 (811.1).082/.083

CDU : 325.54 (811.1)


3

DADOS CURRICULARES

VALDIR APARECIDO DE SOUZA

NASCIMENTO 28.04.1963 – Bragança Paulista/SP

FILIAÇÃO Manoel Ângelo de Souza


Therezinha de Lima Souza

1987-1990 Licenciatura em História


Universidade Estadual Paulista – FCL-Assis.

1991-1993 Professor Substituto


Fundação Universidade Federal de Rondônia - Campus de Guajará
Mirim/RO.

1994 Professor Auxiliar IV - Departamento de História


Fundação Universidade Federal de Rondônia – Campus de Porto
Velho/RO.
4

Aos meus pais


por tudo o que me deram ...

À Sônia,
por muito mais ...

Ao Otávio e a Paula
por tudo o que virá ...
5

AGRADECIMENTOS

Este trabalho só foi possível graças à colaboração direta ou indireta de inúmeras


pessoas. Manifesto minha gratidão a todas elas e de forma particular:
À Prof.ª Drª Laura Antunes Maciel, por sua dedicada orientação, confiança,
paciência e profissionalismo. Você me orientou muito além deste trabalho, e faltaria
espaço para expressar a minha gratidão.
Às Professoras Drª Zélia Lopes da Silva e Drª Flávia Arlanch pela grande
contribuição, pontuando os problemas, e indicando novos rumos após a qualificação,
literalmente redimensionando esta pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós Graduação em História e Sociedade da
FCL/Unesp-Assis, em especial ao Prof. Dr. Antônio Celso Ferreira, pelo agradável
convívio e estimulante debate em torno de questões muito pertinentes.
Aos colegas de curso pelo frutífero convívio, em especial à Janete Tanno, pelo
espelho de perseverança e pelo apoio incondicional.
Aos colegas do Departamento de História da UNIR, em especial ao Prof. Dr.
Ednaldo Bezerra de Freitas pelo incentivo, amizade, e apoio durante essa jornada,
auxiliando nos momentos cruciais, obrigado Ednaldo. Ao Prof. Antônio Cláudio Rabello
que deu a força necessária nos momentos fundamentais, tanto na minha partida, quanto
no meu retorno. À Prof. Odete Alice, pela solidariedade e a todos os demais colegas, pelo
apoio e compreensão.
Aos funcionários do Centro de Documentação Histórica de Rondônia, Evandro
Lopes e Lídia pela atenção e dedicação. À Diretora do Arquivo Geral do Estado de
Rondônia e à Nilza Menezes, Diretora do Centro de Documentação Histórica do Tribunal
de Justiça do Estado de Rondônia pela atenção e decidida colaboração ao meu trabalho.
Aos oficiais do Arquivo Histórico do Exército, pela agradável recepção e convívio.
Aos bolsistas Luiz Cleyton, Joiada, Débora, Charles e ao Prof. Dorisvalder Nunes,
Diretor do LABOGEOHPA, pelo apoio. Agradeço também ao bolsista Anderson dos
Santos do Cenhpre pelas colaborações utilíssimas.
À Bibliotecária Luzimar pela dedicação ao trabalho e comprimisso profissional.
Aos revisores Vanda e César, pelos agradabilíssimos momentos de trabalho. Vocês
me despertaram a vontade de escrever mais.
À companheira Sônia, que além das revisões pertinentes, me ajudou em todos os
momentos, sem você, com certeza esse trabalho não existiria.
Á amiga Helena de Jesus Abreu, a qual devo uma parte significativa desse trabalho.
Aos amigos João e Rita, pelos agradáveis encontros familiares, que sejam muitos ainda.
Por último ao programa CAPES/PICDT que possibilitou a minha saída,
financiando 24 meses de trabalho.
Agradeço a todos, que por ventura tenha esquecido, e que de alguma maneira
colaboraram para a conclusão dessa dissertação.
6

“Era uma vez na Amazônia a mais bonita floresta


Mata verde céu azul, a mais linda floresta
No meio de matas caboclos e mágoas
sereias singrando as águas....”
Saga da Amazônia,Vital Farias
7

SUMÁRIO

Lista de Figuras....................................................................................................07

Lista de Tabelas....................................................................................................08

Lista de Abreviaturas............................................................................................09

Resumo ................................................................................................................10

Introdução.............................................................................................................11

Capítulo 1
Sentinelas da terra: Colonos-Soldados e conflitos na colonização da fronteira
Madeira-
Guaporé.................................................................................................................23

Capítulo 2
A fronteira em construção: a criação do Território Federal do Guaporé.............66

Capítulo 3
“Em busca da ordem: a administração do Território Federal do Guaporé”......121

Considerações finais............................................................................................160

Fontes..................................................................................................................165

Bibliografia..........................................................................................................170

Abstract...............................................................................................................175

Glossário.............................................................................................................176
8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 –Croqui das terras em litígio....................................................................30

Figura 2 – Mapa de Localização dos Contingentes e núcleos agrícolas...........45

Figura 3 – Mapa de Criação dos Territórios Federais de Fronteira.................106


9

LISTA DE TABELAS

TABELA 1-Relatório das Despesas da EFMM .............................................. 123

TABELA2- Despesas do Território Federal do Guaporé-Educação................135

TABELA 3- Melhoramentos Públicos em Porto Velho....................................141

TABELA 2 - Despesas do Território Federal do Guaporé-Saúde ...................143


10

LISTA DE ABREVIATURAS

CEF - Contingentes Especiais de Fronteiras

CERCTFF - Comissão Especial de Revisão das Concessões de Terras na Faixa de


Fronteiras

CSN - Conselho de Segurança Nacional

DASP - Departamento de Administração dos Serviços Públicos

EFMM - Estrada de Ferro Madeira Mamoré

MVOP - Ministério da Viação e Obras Públicas

MG - Ministério da Guerra

MA - Ministério da Agricultura

SPI - Serviço de Proteção ao Índio

8ª RM - 8ª Região Militar
11

RESUMO

Este trabalho aborda os vários projetos de ocupação e colonização agrícola


implementados pelo Exército na região de fronteira do vale formado pelos rios Madeira e
Guaporé, entre as décadas de 30 e 40 do século XX. A proposta é analisar a atuação dos
militares e os debates em torno da construção e da administração do Território Federal do
Guaporé, quando foram instalados os primeiros Núcleos Agrícolas e os Contingentes
Especiais de Fronteiras, no atual Estado de Rondônia.
A colonização implementada pelos militares, ancorada na ideologia do “vazio
demográfico” na fronteira, significou um impacto sobre os modos de vida das populações
nativas - seringueiros e índios -, gerando conflitos sociais e étnicos. Confrontando os
interesses das elites regionais e seus projetos para a região com os princípios sobre
segurança e defesa de fronteiras que norteavam a ação do exército na região, busco
recuperar os debates e seus desdobramentos na criação do Território Federal do Guaporé,
nos bastidores do Estado Novo.
Procuro, também, questionar as “mudanças” propagandeadas pelo governo federal
e elites locais, a partir da implantação da estrutura administrativa do Território,
evidenciando as contradições sociais agravadas com a continuidade da política de
concentração de terras e dos seus recursos estratégicos e com a instituição de normas
militarizadas para administrar a sociedade na região.

Palavras-chaves: Rondônia - Territórios Federais – Ocupação de Fronteiras –

Militares – Conflitos sociais


12

INTRODUÇÃO

Os militares têm intensa participação na sociedade guaporense desde as primeiras


décadas do século XX, quando implementaram dois grandes projetos nacionais: a
construção de linhas telegráficas pela Comissão Rondon e a criação de Contingentes de
Fronteira em áreas estratégicas do território. Com a incorporação da ferrovia Madeira-
Mamoré ao patrimônio da União, em 1931, e sua administração por militares, a rede de
ação política e administrativa enfeixada nas mãos do exército ganhou visibilidade e
expressão.

Sob a ideologia de Defesa da Nação implementada pelas Forças Armadas, foram


criados, em 1932, os Contingentes Especiais de Fronteira em três pontos dos vales dos
rios Madeira e Mamoré, na fronteira com a Bolívia. Durante o Estado Novo, sob a política
de Integração de Fronteiras, os militares participaram ativamente do processo que culminaria
com a criação do Território Federal do Guaporé, em setembro de 1943, a partir do
desmembramento das áreas do sudoeste do estado do Amazonas e do noroeste do estado
do Mato Grosso.

Desde então, os militares tiveram papel hegemônico no desenvolvimento


econômico e social da região. A memória histórica atribui a eles a reconstrução da
estrutura produtiva abandonada pelos estrangeiros construtores da ferrovia, a montagem
da infra-estrutura urbana de Porto Velho e de Guajará Mirim e a abertura de núcleos
agrícolas, visando atender a acumulação de capital necessária às elites comerciantes. As
ações voltadas para a fixação das novas elites administrativas na região, oriundas, muitas
vezes, dos meios militares1, foram realizadas diretamente por eles, durante as décadas em
que estiveram à frente da administração do Território Federal do Guaporé. Em 1982, o
território foi emancipado, transformando-se no estado de Rondônia, em homenagem ao
Marechal Rondon.

1 O ante-projeto do decreto-lei de criação dos territórios federais, no auge do Estado Novo, expressa o papel
central das forças armadas na estruturação e administração dos territórios federais. Neste, os governadores,
secretários-gerais e outros cargos deveriam ser ocupados exclusivamente por militares. Além disso,
obrigatoriamente deveria ser criada uma tropa especial, constituída por soldados do exército, à disposição dos
governadores, transformando a segurança pública em missão militar. Uma análise das Fés de Ofício dos
primeiros governadores do território, localizadas no Arquivo Histórico do Exército, e das Certidões de Tempo
de Serviço dos funcionários administrativos do Território do Guaporé, cuja Cópia do Original Datilografado
encontra-se no Centro de Documentação Histórica de Rondônia, permitem verificar a importância do exército
como lugar de formação profissional em variados ofícios e o intenso trânsito de profissionais do exército para
outras funções civis na administração do Território Federal do Guaporé. Secretaria Geral de Segurança Nacional.
Ante-Projeto de Decreto-Lei : Cria novos Territórios Federais e dá outras providência.. Rio de Janeiro, Gabinete
Presidencial.,14 de dezembro de 1938.
13

A região estudada é constituída pelos vales dos rios Guaporé e Mamoré, que
divisam o estado de Rondônia com a Bolívia, na parte noroeste, oeste e sudoeste. Ao norte
e nordeste, é limitada pelo rio Madeira, na divisa com o estado do Amazonas.

A minha escolha se justifica em virtude do interesse em analisar a atuação dos


militares na região, entre as décadas de 30 e 40 do século XX, e os debates em torno da
constituição e administração do Território Federal do Guaporé. Trata-se da região de
colonização mais antiga delimitada pelos vales do Amazonas e Madeira, marcada pela
economia da borracha, onde se instalaram os primeiros núcleos agrícolas militares e os
contingentes de fronteira, ainda nos anos 30. Na década de 50, a região foi atravessada
pela BR 364, que foi aberta sobre as picadas e estradas rasgadas pela Comissão Rondon, e
gradativamente “ocupada” com núcleos de povoamento por meio das estações do
telégrafo. Sua exploração econômica, social e cultural tornou-se mais intensa a partir dos
anos 70, com a instalação de megaprojetos agropecuários, com a abertura de rodovias e
com a migração intensa de trabalhadores rurais em busca de terra.

A penetração dos “colonizadores”, na região estudada, se deu pela foz do


Amazonas no Atlântico. Outra via de entrada se deu com as bandeiras e a descoberta das
minas de ouro em Cuyabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, nas cabeceiras do rio
Guaporé. Para proteger a rota do ouro, entre as províncias do Grão-Pará e Mato Grosso 2,
foi fundada a Vila de Santo Antônio do Alto Rio da Madeira, no início do trecho
encachoeirado do Madeira, e construído o Real Forte Príncipe da Beira, nas margens do
Baixo Guaporé.

No início do século XX, com o extrativismo da seringueira, houve uma penetração


maior dos vales dos rios Guaporé e Madeira. Um dos desdobramentos históricos foi a
invasão do departamento de Pando (oriente boliviano) por brasileiros, subindo o rio
Amazonas e o Purus, que resultou na Questão Acreana 3, resolvida diplomaticamente após
algumas escaramuças. Pelo Tratado de Petrópolis, o Brasil comprou essas terras anexadas
ao território nacional e definiu a construção de uma estrada de ferro entre a parte
navegável do rio Mamoré e a primeira cachoeira do rio Madeira; para facilitar o
escoamento das matérias-primas bolivianas e de suas importações pelo Atlântico. A
concessão desse empreendimento foi dada à Madeira-Mamoré Railway and Company, formada
por capitais ingleses e canadenses, posteriormente a concessionária dos serviços de

2MEIRELLES, Denise. Os Guardiães da Fronteira. Cuiabá, UFMT, 1983.


3PINTO, Emanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território de Guaporé, fator de Integração Nacional. Rio de
Janeiro, Expressão e Cultura, 1993; e TEIXEIRA, Marco e FONSECA, Dante . História Regional (Rondônia). Porto
Velho, Rondoniana, 1998. p. 146.
14

transporte nessa ferrovia. Nas extremidades dos 366 quilômetros da estrada, foram criados
dois entrepostos de cargas que deram origem às cidades de Porto Velho e Guajará Mirim.

Devido à escassez de trabalhadores, foi usada a mão-de-obra estrangeira, reunindo


inúmeras etnias e culturas como antilhanos, barbadianos, granadinos, jamaicanos, indianos,
italianos, espanhóis, portugueses, sírios, chineses, gregos e judeus entre outras. As vilas de
Porto Velho e Guajará Mirim surgiam como um território multifacetado, recriando “ ... na
Amazônia o mito bíblico de uma nova babel do imperialismo.” 4 A historiografia construiu uma
imagem de Porto Velho – ponto inicial da ferrovia e sede dos escritórios, residências e
demais instalações da companhia construtora -, como um território dividido: de um lado, a
cidade ideal da Company e, de outro, a cidade real além da avenida divisória que separava os
dois mundos. A Company era saneada e planejada, com rigoroso controle sobre as classes
trabalhadoras. Nessa urbe utópica tudo era “perfeito” e os operários eram “pacíficos e
ordeiros”. Ao contrário, a “cidade real” de Porto Velho significava a tradição, o atraso, a
raiz de todos os males, era a projeção negativa da cidade ideal.5

Oblíquo ao espaço estrangeiro, encontra-se o projeto republicano de integração do


território nacional via construção das linhas telegráficas, implementadas pela Comissão
Rondon – Comissão Construtora das Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao
Amazonas. Entre 1907 e 1915, Rondon fez o reconhecimento e a fundação de pequenos
núcleos de povoação ao longo da linha telegráfica construída entre Cuiabá e Santo
Antônio do Madeira, local escolhido para sediar os escritórios e acampamentos.6 A
Comissão Rondon criou as novas bases militares na região de fronteira por meio da Seção
Norte do Telégrafo Nacional.

A intensa presença e atuação dos militares do exército garantiu aos mesmos um


lugar de honra na história regional. Aos militares, foram creditadas as realizações
modernizadoras, canalizando os anseios de modernidade das elites locais que os
representaram como heróis. Seus nomes e imagens marcam os espaços da capital Porto
Velho; onde há um busto do Mal. Rondon na praça que também leva seu nome, situado
na linha divisória entre as dependências da administração estrangeira da ferrovia e a área
mais antiga da cidade. O local foi bem “escolhido”, por ser carregado de simbolismo,
significando a posse da região pelo militar desbravador. No bairro Caiari, construído para

4TEIXEIRA, Marcos e FONSECA, Dante . História Regional (Rondônia). P. Velho, Rondoniana, 1998.
5 HARDMAN, Francisco F. Trem Fantasma: A modernidade nas selvas. São Paulo, Cia. das Letras, 1988. O autor
compara o centro urbano restrito ao pátio da ferrovia com a cidade além da linha divisória, também estabelece
um diálogo entre as contradições do discurso elaborado a partir das imagens de Porto Velho (moderna) e Santo
Antônio (colonial).
15

sediar as residências de funcionários da administração do território, está o busto do Cel.


Aluízio Ferreira, primeiro governador do território, na praça de mesmo nome. Se o busto
de Rondon foi instalado no espaço que originariamente era estrangeiro, o do Cel. Aluízio
Ferreira está no espaço que simboliza a modernização, implementada pelos militares, a
partir do Estado Novo. Por fim, mereceu um lugar na cidade a estátua do governador Cel.
Jorge Teixeira, na antiga avenida Presidente Kennedy, região mais nova da cidade. A
avenida foi rebatizada com o nome do homenageado, o último dos governadores militares
do território e o primeiro governador biônico do estado de Rondônia.

A memória construída sobre essa região, reforçada pela historiografia regional,


reservou um lugar de destaque a esses homens. O Mal. Rondon, foi o “herói desbravador”
ligou a região, através do telégrafo, à Capital Federal e aos centros de poder do país. O Cel.
Aluízio Ferreira, o “herói nacionalizador”, além de ser considerado o responsável pela
retomada da região do poder estrangeiro, foi um dos principais atores na criação do
território federal, tornando-se seu primeiro governador. O Cel. Jorge Teixeira, o “herói
federalizador”, último no panteão militar, foi o que deu impulso ao território,
modernizando-o e transformando-o na nova unidade federativa, sendo seu primeiro
governador “biônico”.

Por ser região de fronteira, o aspecto que chama mais atenção, ainda hoje, é o
status conferido aos militares, principalmente ao Exército. Os desfiles de Independência,
em Guajará Mirim, são considerados eventos sociais, nos quais comparecem os hermanos de
la banda. Em contrapartida, no dia da Independência da Bolívia (06 de agosto), há enorme
participação dos civis e militares brasileiros. Os alunos da rede pública cantam em ordem
unida o hino nacional e o hino de Rondônia, antes de iniciar a primeira aula. Os colégios
têm nomes de militares: Mal. Cordeiro de Farias, Maj. Guapindaia, Maj. Amarante, Cel.
Aluízio Ferreira, Cel. Jorge Teixeira, Mal. Rondon, e a lista prossegue.

O jornalista Pablo Pereira, da A Gazeta Mercantil, publicou, em 1999, uma longa


reportagem intitulada “Fronteiras Brasileiras”, focalizando a região fronteiriça de Rondônia
com a Bolívia. Nessa matéria, um dos destaques foi apel “social” dos militares, que vão de
suas atribuições constitucionais:

O povoado de Príncipe da Beira, é tão longe ... que até o real demorou a chegar por lá.
A moeda oficial do Brasil sequer circula entre boa parte de seus 367 moradores ... O peixe
que cai na rede é trocado por mercadorias nas “vendas” locais. Os comerciantes vendem o
peixe aos militares do Pelotão de Fuzileiros de Selva. Baseados na região desde 1932, são os

6 MACIEL, Laura Antunes. A Nação por um fio. São Paulo, Educ/Fapesp, 1999.
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militares que garantem a existência desse pequeno povoado, onde não existe nenhum tipo de
trabalho além da pesca e da roça. O serviço social prestado pelo Exército não se limita ao
atendimento do povoado de Príncipe da Beira. Em toda a faixa da fronteira amazônica os exercícios de
patrulhamento acabam servindo como base para o atendimento às populações ribeirinhas. Nas missões
sempre se incluem médicos, dentistas, sanitaristas e outros órgãos envolvidos nos problemas da
região. 7

A presença dos militares, visível ainda hoje na região, aliada ao p apel preponderante
a eles atribuído pela historiografia regional na construção do estado, marcaram também as
primeiras intenções deste projeto de pesquisa.

Considerando estas evidências, e partindo de pressupostos como o de Swain8, para


quem “ ... as imagens são igualmente enunciados produzidos pelas formações discursivas, e as significações
homogêneas se concretizam nas práticas sociais”, propus, como projeto de mestrado, em 1999,
pesquisar o imaginário social constituído em torno da presença dos militares na região.
Para tal, eu pensava utilizar como fontes a literatura regional, os discursos produzidos pelo
Exército em seus boletins, ordens do dia, relatórios, etc. e, principalmente, a memória oral
da população radicada nos vales do Madeira-Guaporé.

Porém, a amplitude dessa abordagem e o tempo limitado de dois anos de


afastamento, da Universidade Federal de Rondônia, para cursar o Mestrado junto ao
Programa de Pós-Graduação da Unesp, colocaram alguns impasses para a efetivação desta
proposta. Dentre os problemas: a dispersão dos entrevistados que, naquele momento,
ainda não haviam sido identificados; o alto grau de refinamento das discussões em torno
da História Oral; a escassez de fontes oficiais nas instituições públicas em Rondônia, que
dessem suporte à interpretações sobre o imaginário social. Além disso, a dificuldade de
acesso às poucas fontes em arquivos públicos estaduais, que ainda não se encontravam
organizados, impôs o desenvolvimento da pesquisa em outras cidades e instituições,
contribuindo para a reformulação das fontes e questões selecionadas para o
desenvolvimento do trabalho.

Já nos primeiros contatos com a historiografia regional, percebi a existência de uma


abordagem positiva sobre os militares, considerados os responsáveis por todas as
mudanças sociais na região. Esses foram tratados como homens à frente de seu tempo,
eles são personificados como “heróis” centrais que determinaram, com suas ações, os
rumos da região. Essas obras ressaltam o caráter “pioneiro” e “modernizante” dos atores

7 “Fronteiras Brasileiras-Relatório Especial” , Pablo. Pereira. A GAZETA MERCANTIL.. São Paulo, 25 de


maio de 1999, Caderno 1, p. 06.
8 SWAIN, Tânia Navarro. História no Plural. Brasília, Editora UnB, 1993.
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militares, reproduzindo temáticas, periodizações e destacando os personagens criados por


discursos produzidos no interior da instituição militar.

No discurso militar, a Amazônia foi incorporada como estratégia para legitimar o


papel defensivo das Forças Armadas, muitas vezes travestido de assistência social e
estruturação política. No decorrer do século XX, o Exército foi conquistando espaços
político-institucionais, progressivamente, com base na problemática da questão amazônica.
Parafraseando Leirner9, os antropólogos sempre pesquisaram as minorias, deixando à
margem os grupos dominantes. Fator que, segundo Leirner, contribui para ampliar a visão
sobre os grupos marginais, mas que em contrapartida promove um deslocamento dos
atores dominantes, no nosso caso os militares no espaço amazônico. “Talvez o efeito mais
comum disso seja o fato de que, no caso da questão amazônica, simplesmente, quando se fala de militares,
ou se aceita uma visão difusa e genérica trazida pela imprensa, ou se aceita um fato de que um ou outro
livro escrito por um militar – geralmente representa a fala militar”.10 O meu objetivo é justamente
traçar uma via de contato entre a sociedade civil (minorias) e os atores militares na
fronteira. Tentando encontrar uma nova via que se desvie dessa polarização corrente no
trabalho científico, que ora privilegia as instituições em detrimento dos atores reais e ora
privilegia as minorias marginais indígenas, caboclos, posseiros e negros sem estabelecer o
diálogo com os poderes dominantes.

Alguns historiadores regionais e outros como Manoel Rodrigues Ferreira11 elegeram


a “Estrada de Ferro Madeira Mamoré” como mito fundador, a protagonista do enredo
histórico, fato talvez mais grave que a personificação em pessoas. Os autores que
analisaram as migrações e a colonização da fronteira agrícola não deram a mínima atenção
ao período de 30/40. Os mesmos consideram o ponto de ruptura a partir da abertura da
antiga BR-29 (Porto Velho-Cuiabá) no governo de JK, e seus desdobramentos na
ocupação da região.

Por essas razões decidi trabalhar com outros materiais disponíveis para a consulta,
como foi o caso da coleção do jornal Alto Madeira, existente no Centro de Documentação
Histórica de Rondônia- CDHR, em estado regular para a leitura. Nesse Centro, também se
encontram os relatórios encaminhados pelo Cel. Aluízio Ferreira aos seus superiores, nos
diversos cargos que ocupou (seja na administração do 3º Distrito Telegráfico, no comando

9 LEIRNER, Piero C. “O Exército e a Questão Amazônica”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 8, n.º 15,
1995, p. 119-132.
10 LEIRNER, Piero C. Op. Cit. p. 120-121.
11
FERREIRA, Manoel R. A ferrovia do Diabo: A história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo, Editora
Melhoramentos, 1987.
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de contingentes militares ou, ainda, na administração do território). Tive acesso também à


legislação promulgada pela administração do território, reunida em volumes editados pela
Governadoria do Estado de Rondônia em 1990. O trabalho de pesquisa foi moroso pela
obrigatória e indispensável leitura de duas décadas de um periódico bi-semanal, agravados
pelo inconstante funcionamento do órgão.

Grande parte da pesquisa foi realizada no Rio de Janeiro, em instituições como o


Arquivo Histórico do Exército-AHEx, onde localizei as pastas contendo anotações sobre
a trajetória militar do Cel. Aluízio Ferreira e do Ten-Cel. Vicente Rondon, governadores
do Território Federal do Guaporé, entre 1943 e 1947. Realizei também o levantamento
dos periódicos guardados na Biblioteca do Exército, para localizar artigos sobre colônias
militares e/ou sobre questões envolvendo a região de fronteira em Rondônia.

No Arquivo Nacional- AN, procedi ao levantamento da documentação existente


sobre a região e a temática, nos fundos do Ministério da Guerra e Ministério da Justiça e
Negócios Interiores, além de correspondências e outros materiais. Nessa instituição
localizei apenas parte da documentação administrativa produzida pelos sucessivos
governadores do então Território Federal do Guaporé, composta pelos relatórios enviados
pelos governadores ao Ministro da Justiça, referentes aos anos de 1949 e 1954. Apesar de
restritos a esses anos, os relatórios revelam aspectos da produção agrícola, da ocupação
das terras, das construções públicas, da educação, da saúde e funcionamento da Guarda
Territorial.

No Centro de Pesquisas e Documentação da Fundação Getúlio Vargas-


CEPDOC/FGV, localizei o relatório do Cel. Manoel Alexandrino, Inspetor de Fronteira
do Estado Maior do Exército ao Conselho de Segurança Nacional, de 1938, na série
microfilmada do arquivo pessoal de Gustavo Capanema.

Em São Paulo, a pesquisa foi centrada na Biblioteca Central da Faculdade de


Direito da USP, do Largo São Francisco. Nessa, localizei a Revista de Imigração e
Colonização, além de duas teses sobre a ocupação da Amazônia através da colonização
agrícola em moldes familiares e da exploração de pequenas propriedades.

Na Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp/Assis, pesquisei toda a


Legislação Federal do período relativo ao trabalho, fundamental para acompanhar a
estruturação do território e suas sucessivas administrações. No Centro de Documentação e
Apoio à Pesquisa- CEDAP da FCL/Assis, pesquisei o Correio da Manhã, de 1940 a 1943. O
meu objetivo foi inventariar, neste periódico de circulação nacional, as discussões sobre a
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criação dos territórios federais, buscando identificar as discordâncias entre os setores e


grupos que apoiavam, e também quais os interesses que representavam no projeto.

Tomando por base as pistas apresentadas pela documentação consultada, passei a


elaborar algumas questões sobre a participação dos militares na implementação de projetos
na região, que hoje forma o estado de Rondônia, principalmente, na área de ocupação mais
antiga, marcada pela economia extrativista desde o final do século XIX, constituindo a
faixa mais próxima à fronteira em torno dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira e de seus
tributários rios Jacy-Paraná, Candeias e Machado.

O trabalho com as fontes e a tomada de consciência das lacunas documentais


impuseram um outro caminho à proposta inicial. O próprio desenrolar da pesquisa foi
redefinindo outros rumos e reelaborando minha compreensão sobre o tema. No início,
pensava que os militares haviam sido os “agentes da modernidade” na região o que, de
certo modo, apenas reforçava o olhar da historiografia tradicional, ao tomar o “progresso”
como pressuposto teórico e de orientação da vida social. Tal perspectiva desconsiderava as
tensões e conflitos existentes na região e reforçava a memória oficial sobre os militares.
Apesar da tentativa de desmistificar os heróis, eu acabava por valorizá-los com o risco de
reproduzir o mesmo discurso em “graus diferentes” .
Ao longo da pesquisa e, principalmente, com a paciente e acurada orientação da
profª. Laura Maciel, as minhas perspectivas se ampliaram e consegui transpor a abordagem
contemplativa e historicista do passado imóvel. Neste percurso, cheguei a uma
aproximação mais crítica do objeto proposto, buscando evidenciar os conflitos sociais e
étnicos, causados pela desestruturação dos modos de vida das populações nativas. Procurei
focalizar as mudanças, mas não somente como avanços e rupturas dinâmicas, porém com
a devida crítica, ressaltando o alto preço do “progresso” para as sociedades tradicionais.
Além disso, procurei sinais de confronto entre os projetos das elites regionais e as
iniciativas do exército, baseadas nos princípios de segurança e defesa de fronteira.

Tendo em vista as novas problemáticas e perspectivas traçadas, centrei a pesquisa


no jornal Alto Madeira, periódico fundado em 1917 pelo Dr. Joaquim Tanajura, médico e
político, superintendente de Porto Velho e ex-membro da Comissão Rondon. A criação
do jornal se deu justamente durante sua superintendência, quando foi eleito pelo Partido
Republicano Conservador, apoiado pelas oligarquias locais, que eram os patrões
seringalistas e comerciantes. O jornal era financiado pelas elites, formadas pelos coronéis
Paulo Saldanha, em Guajará Mirim, e Otávio Reis, em Presidente Marques (Abunã).
20

Após sua eleição como deputado estadual pelo estado do Amazonas, o Dr. Joaquim
Tanajura passou o jornal ao seu correligionário, o Ten. Cincinato Ferreira, que continuou
com a mesma linha de atuação impressa pelo seu fundador. Voltado para as elites
seringalistas da região dos vales do Madeira-Guaporé, o jornal defende em suas páginas as
iniciativas de colonização militar para a região, entre os anos 30 e 45. O Alto Madeira foi
central para o controle político da região, pois não havia uma imprensa alternativa, que
fosse dissonante da opinião das elites econômicas e políticas.

O jornal Alto Madeira, sediado em Porto Velho, capital regional dos vales e palco
das relações de poder, circulava nas regiões ribeirinhas dos seringais do baixo rio Madeira,
nos vales do rios: Candeias, Jamari, Machado, Jacy-Paraná e em todo o vale do Guaporé,
no trajeto da ferrovia e na cidade de Guajará Mirim. Os colaboradores de Guajará Mirim
elaboravam a coluna “Pelo Guaporé”, enfocando os principais problemas da região de
fronteira. Os colaboradores de Presidente Marques, na fronteira com a Bolívia e o
território do Acre, enviavam as “Notícias de Fortaleza do Abunã”.

A análise da documentação reunida permitiu elaborar esta dissertação em três


capítulos, dispostos de maneira temática e cronológica: o primeiro capítulo analisa os vários
projetos de ocupação e colonização militar nos vales do Madeira-Mamoré-Guaporé iniciados nos anos 30.
Este capítulo trata da ocupação da região por meio da criação de núcleos agrícolas nos
vales do Madeira-Guaporé, implementada pelos militares e amparada num discurso sobre
o “vazio demográfico” da área de fronteira. Objetivando questionar essa visão uniforme e
hegemônica sobre a ocupação, busquei elaborar uma radiografia dos quadros sociais da
região no período, o número de habitantes, a infra-estrutura das cidades e povoações e a
origem dos colonizadores. A intenção foi mostrar a existência de uma ocupação bastante
antiga e os conflitos decorrentes dos processos usados para a expropriação das terras.
Assim, o “vazio” alardeado fazia parte das estratégias para atração e sedentarização de
populações, mas na realidade, o espaço estava ocupado e foi tomado por meio da violência
física e simbólica12.

Busquei também ouvir outras vozes paralelas aos discursos cristalizados das elites e
da historiografia. Nesta abordagem privilegiei as contradições aos discursos estabelecidos
dos seringalistas, dando voz aos povos nativos, aos seringueiros e aos antropólogos
engajados na defesa das populações tradicionais. Apesar da aparente clareza sobre os
conflitos sociais na região, a documentação esconde um “silêncio velado”. Até mesmo nos

12LIMA, Antônio C. S. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis,
Vozes, 1995. Sobre a distinção entre guerra aberta e guerra simbólica, ver pp. 51-52.
21

dias de hoje, as classes populares evitam tecer comentários sobre os conflitos soterrados
na memória.

Acompanho, neste capítulo, as “justificativas” elaboradas pelo governo federal e


exército, para a ocupação agrícola e militar dos vales do Madeira-Guaporé que garantiu a
posse dos territórios fronteiriços e de seus recursos naturais, fontes vitais para a autonomia
nacional e a expansão do mercado interno.

Baseados no modelo do espaço vital, tentava-se delinear um país independente em


relação aos países centrais. As tentativas de colonização pela pequena propriedade familiar,
com os estatutos de base centralizada e militarizada, tendo por modelos as primeiras
colônias militares (1902), orientaram, em certa medida, as experiências de colonização na
região, baseadas no aproveitamento do índio como colono-soldado e sua “transformação”
em trabalhador nacional, incorporado ao Serviço de Proteção ao Índio- SPI.

Enfim, a criação de contingentes especiais nas fronteiras e de núcleos agrícolas em


locais estratégicos, próximos de fortificações militares bolivianas tinha o propósito de
tranformá-los em futuros núcleos de população de fronteira. Para isso, utilizaram-se de
populações excedentes do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, Fortaleza e outras
capitais, além de reservistas do Exército e da Armada.

O segundo capítulo pretende analisar os vários projetos e interesses políticos e econômicos


para a região, os debates – locais e nacionais - sobre a segurança e defesa das fronteiras nacionais e seus
desdobramentos na criação do território federal do Guaporé. Para isso, acompanho as discussões
sobre a criação do Território Federal do Guaporé, quais os grupos de interesse, os
diálogos e conflitos em torno dos projetos, travados entre os grupos locais e regionais, por
meio de artigos e editoriais publicados pela imprensa regional e carioca. Estabeleço o
diálogo entre os discursos publicados no Correio da Manhã e no A Noite, confrontando-os
aos dos grupos e representações locais, identificando o espaço do território e de seus
limites, e também busco identificar os interesses em torno dessas demarcações geográficas
e políticas. A discussão foi centrada no fortalecimento de uma “geopolítica” interna, de
caráter centralista e autoritário, com o Estado Novo e ancorada como substrato ideológico
na geopolítica da Segunda Guerra Mundial.

Ocupar a região, por meio da colonização e da criação do Território Federal do


Guaporé, era uma das metas do Estado Novo e uma reivindicação das elites locais. Porém,
esses projetos, como mencionei, não eram unânimes e homogêneos, havia dissidências
dentro dos poderes locais em relação às riquezas e à arrecadação regional. A tensão entre
22

os glebaristas de Manaus e as elites “nacionalistas” locais perpassa todo o período que


antecede a criação do território e se acirra na Assembléia Constituinte de 1946, a qual
reuniu um poderoso bloco a favor da extinção dos territórios federais. Ainda tenho a
intenção de trazer à tona as contradições, entre o discurso “democrático”, de acesso à
pequena propriedade veiculado pela grande imprensa, e as ações efetivas de manutenção
dos latifúndios no Norte e Nordeste. Elegi algumas questões para nortear a discussão
neste capítulo: em que medida as formas de ocupação defendidas pelos patrões locais eram
complementares às formas praticadas pela União, por meio das forças militares? Como foi
possível combinar interesses ligados à forma de ocupação, através da pequena propriedade
de culturas diversificadas, e o latifúndio extrativista de borracha?

O terceiro capítulo acompanha a montagem da administração do território pela


União, a construção da infra-estrutura e da estrutura administrativa para dar sustentação à
ocupação na região, como nova unidade da federação. Exploro, nesta parte, a estrutura
administrativa criada pela União e implementada pelos governos territoriais e a relação que
se estabelece entre os vários órgãos federais e o governo territorial. Uma das questões que
pretendi acompanhar foi a continuidade da política de ocupação, a partir da criação dos
quatro departamentos para implementar estas ações: Departamento de Saúde, de
Educação, de Obras e da Produção.

Acredito ser possível compreender os programas de Integração Nacional, esses


implementados com a criação dos cinco territórios federais na faixa de fronteira, se
considerarmos a relevância dos debates nacionais em torno da necessidade da União, em
garantir a sua posse. Na opinião da imprensa e das Forças Armadas, era vital para o país
ter o domínio sobre os recursos naturais, considerados estratégicos, ambas visavam uma
política de desenvolvimento nacionalista voltada para a independência em relação aos
países hegemônicos. Boa parte dessa ação foi implementada pelos militares nestas áreas
lindeiras.
Procuro, também, questionar as “mudanças” propagandeadas pelas elites locais e
governo federal, a partir da análise da implantação da estrutura administrativa do
Território, buscando evidenciar as contradições sociais agravadas com a instituição de
normas militarizadas, com a continuidade da política de concentração de terras e dos seus
recursos estratégicos na região.
23

SENTINELAS DA TERRA: COLONOS-SOLDADOS E CONFLITOS NA


COLONIZAÇÃO DA FRONTEIRA MADEIRA-GUAPORÉ

“... os portugueses já nos


ensinaram a colonisar, desde o
Brasil Colônia. Geralmente as
nossas grandes cidades nasceram
assim: em primeiro logar tropa, em
segundo logar a população civil que
se veio aglutinando em torno dela
... “

Cel. Manoel Alexandrino Cunha,


Inspetor de Fronteiras do EME.
Relatório ao Conselho de Segurança
Nacional
24

A região do Madeira-Guaporé (parte da província de Mato Grosso e hoje parte do


estado de Rondônia) foi explorada desde as primeiras bandeiras de Pedro Teixeira (Belém)
e Raposo Tavares (S. Paulo) no século XVII. A exploração da borracha de caucho e de
seringueira teve início no final do século XIX. As áreas de exploração se ampliaram para o
vale do Alto Madeira. Patrões bolivianos e peruanos constituíram vários seringais nessa
região, sendo que os bolivianos dominavam a cadeia econômica, e a empresa Suarez &
Hermanos13 monopolizava o aviamento dos seringais e a exportação de borracha. A
ocupação econômica e demográfica desta área era estrangeira, em sua maior parte.
Portugueses, judeus, bolivianos e peruanos habitavam a Vila de Santo Antônio. A região
do Alto Madeira, próxima à foz do Mamoré com o Madre de Dios, era habitada por
bolivianos e peruanos, além de algumas nações indígenas “não-nacionais”. A exploração
da borracha se dava à margem dos poderes organizados do Estado. As terras da Bolívia
foram invadidas por brasileiros subindo o Purus, e os bolivianos e peruanos, paripassu,
invadiam o território brasileiro pelo Abunã, Yata, e Madre de Dios.14
As terras localizadas entre os vales do Madeira e Guaporé eram, na sua maior parte,
ocupadas por populações indígenas nômades e sedentárias. O art. 64 da Constituição
Federal, de 1891, tornou as terras indígenas “devolutas”, rateando-as entre as oligarquias
regionais mato-grossenses e amazonenses.15
Os exploradores invadiram a região a partir da foz do Amazonas. Outro grupo veio
no rastro das bandeiras, invadindo os sertões do Mato Grosso para a exploração de ouro
em Cuyabá e Vila Bela da Santíssima Trindade na cabeceira do Guaporé. A coroa
portuguesa, para garantir a rota do ouro entre o Grão-Pará e o Mato Grosso, fundou a
Vila de Santo Antônio do Alto Rio da Madeira e o Real Forte Príncipe da Beira. A Vila de
Santo Antônio localizava-se no início do trecho encachoeirado do rio Madeira, local
estratégico para o entreposto de apoio, e o Forte Príncipe, nas margens do Guaporé,
protegia os comboios de ouro escoados para Belém e Portugal dos vizinhos do Vice-Reino
do Peru. 16

13TEIXEIRA, Marcos .e FONSECA, Dante. História Regional (Rondônia). Porto Velho, Rondoniana, 1998. Pp. 107-108.
14Esse movimento de penetração resultou na crise conhecida como questão do Acre. Resolvida de forma diplomática
por meio do Tratado de Petrópolis, no qual a Bolívia cedia o território que lhe pertencia desde o tratado de Ayacucho
de 1867 firmado com o Brasil. O Tratado propunha além da indenização pela concessão da área mais rica do mundo
em goma elástica (Acre), a construção de uma ferrovia que contornasse o trecho encachoeirado do rio Madeira
facilitando o escoamento da produção do oriente boliviano (do Departamento de Beni e Pando) para o Atlântico.
15BIGIO, Elias dos S. Linhas Telegráficas e Integração de Povos Indígenas: As estratégias Políticas de Rondon (1889-1930). Brasília,
Dissertação em História Política e Social do Brasil/UnB, 1996. pp. 127.
16 MEIRELLES, Denise Maldi. Os Guardiães da Fronteira. Cuiabá, UFMT, 1983.
25

Desse quadro de invasões de limites resultou a Questão Acreana 17, resolvida


diplomaticamente por meio do Tratado de Petrópolis – que estabeleceu o pagamento de
dois milhões de libras à Bolívia e a construção de uma ferrovia entre a primeira cachoeira
do Madeira e a parte navegável do rio Mamoré –, para por fim ao litígio. Formou-se a
empresa Madeira Mamoré Railway and Company (MMRC) constituída por capitais ingleses e
canadenses, para construir os 366 quilômetros de ferrovia.
A construção da ferrovia foi iniciada em 1907 e, devido à “escassez” de mão-de-
obra para o empreendimento, a companhia importou trabalhadores de todo o mundo:
portugueses, mexicanos, italianos, chineses, hindus, norte-americanos, peruanos,
bolivianos, colombianos, alemães, ingleses, gregos, espanhóis, franceses e antilhanos,
barbadianos, granadinos, jamaicanos18 e outras nacionalidades com menor participação.
Manoel Rodrigues Ferreira19 mensurou seis mil vítimas consumidas na construção da
ferrovia. Taxa de mortandade altíssima considerando-se o curto prazo e o número de
trabalhadores envolvidos nos trabalhos de construção. Oswaldo Cruz inspecionou a região
para tentar conter as endemias regionais: tuberculose, pneumonia, beribéri, malária e febre
amarela dizimavam os trabalhadores. A exploração exercida pelos seringalistas e dirigentes
da MMRC era semelhante, estes proibiam os fregueses20 e trabalhadores da ferrovia de
cultivarem hortas e roças de subsistência. A restrição à lavoura majorava os seus lucros, a
MMRC, a exemplo dos seringalistas, mantinha a Comissaria (espécie de barracão
sofisticado). Em suas pontas foram criados dois entrepostos de armazenamento e
embarque dando origem às vilas de Porto Velho e Guajará Mirim. Outras vilas foram
instaladas ao longo da ferrovia, por volta de 1912.
Os técnicos norte-americanos, a serviço da Companhia, criaram aquilo que
chamavam de “cidade”. Criaram, também, padrões de conduta profissional e privada para
as diversas etnias de trabalhadores. Segundo Lopes, entre 1908 e 1911 foi registrada a
entrada de 19.500 estrangeiros no porto de Belém, esse número oficial não agrega os
trabalhadores clandestinos do Peru, da Bolívia, da Colômbia e do Brasil. A Companhia

17 PINTO, Emanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território de Guaporé, fator de Integração Nacional. Rio de
Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. TEIXEIRA, Marco e FONSECA, Dante. 2ª ed. História Regional (Rondônia).
P.Velho, Rondoniana, 1998.
18 LOPES, Evandro R. Súditos e Cassacos: Os trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira Mamoré (1907-1931). Porto Velho,

UFRO, Monografia de Bacharelado em História, 1995. p. 8.


19 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A ferrovia do Diabo:A história de uma estrada de ferro na Amazônia. S. Paulo, Editora

Melhoramentos, 1987.
20 Patrões: O responsável pela produção que era financiado pelos aviadores, e que extraía a mais valia do seu freguês

(seringueiro) através da majoração das mercadorias aviadas em seu barracão em troca da produção de borracha pelo
seringueiro. Uma relação baseada na exploração hierárquica e em cadeia pela dívida contraída. O patrão não era dono
do seringal, eram terras devolutas que ia ocupando e terceirizando a exploração aos seus fregueses, uma espécie de
sócio que entrava com a produção em troca das mercadorias de primeira necessidade como alimento, vestuário,
ferramentas, armas e munição. Segundo informações colhidas na imprensa local do período.
26

exercia controle absoluto sobre seus técnicos e trabalhadores em função dos custos e dos
prazos. Exploravam ao máximo os operários para obter maiores lucros, proibindo-lhes a
mínima forma de expressão no trabalho e nas folgas.21
A diversidade de culturas e etnias marcava os espaços de trabalho, descanso e lazer:

Assim é que no auge da construção... havia 5.000 pessoas no povoado e nas frentes de
serviços. Essa diversidade de trabalhadores dava um ar de promiscuidade à sede da ferrovia,
acampamentos e frente de trabalho. Para que a lei fosse respeitada e a ordem cumprida, a
Companhia montou sua própria Polícia em 1910. ... parte da população era de aventureiros e
não havia: “a paz e a garantia prometidas pela Constituição a todo estrangeiro e nacional que
viva no território da República” ... Justificando dessa forma a organização da Polícia da
Companhia ferroviária em fevereiro de 1910. ... Havia também a proibição da comercialização
de bebidas , cervejas, e vinhos, e a entrada de prostitutas na área sob jurisdição da Companhia
ferroviária, ... A forma pela qual se apresentava esse instrumento [de controle], o paternalismo,
era a mais variada. ... destacam-se o Hospital da Candelária; a Comissária e a construção de
habitação para os trabalhadores.22

A construção e o transporte da MMRC eram feitos sob rígido controle, e sua


organização era hierarquizada. A conclusão pela verossimilhança à estrutura dos militares,
implantada posteriormente a partir da crise da ferrovia em 1931, é deveras tentadora.
Lopes analisou a organização e resistência dos trabalhadores contra a exploração que
ocorria concomitantemente às estratégias da MMRC para desarticulá-los.
O controle sobre os trabalhadores, com suas peculiaridades próprias, vinha desde a
primeira tentativa de construção da ferrovia em 1878. Nesse primeiro empreendimento,
um grupo de 218 italianos se rebelou contra os privilégios dos trabalhadores norte-
americanos e irlandeses, esses com salários e alimentação superiores. O desfecho foi
desfavorável aos rebeldes, cujos líderes foram presos na “nova cadeia”, uma gaiola de trilhos
entrelaçados, e o acampamento foi cercado por um grupo de 40 homens armados. Lopes,
ao analisar o excessivo controle sobre as classes trabalhadoras e a intensa exploração da
mão de obra, atualizou a formação social da região. Soprou vida, ao fazer emergir os
conflitos e as desigualdades, construídas no tempo e no espaço local, desmistificando a
pretensa “memória” da ferrovia como símbolo fundante da identidade regional. Lopes
findou por manter um diálogo entre a crítica de Hardman à modernidade, no contexto da
sociedade européia e norte-americana, e o seu texto, revelando o preço da modernidade
para a classe trabalhadora. Hardman23 foi o precursor na crítica ao discurso, de imagens
enaltecedoras das grandes construções do fim do século XIX e início do século XX.

21LOPES, Evandro R. Súditos e Cassacos: Os trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira Mamoré (1907-1931). Porto Velho,
UFRO, Monografia de Bacharelado em História, 1995. p. 8.
22 LOPES, Evandro R. Op. Cit., pp. 11-13.
23
HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade nas selvas. S. Paulo, Cia das Letras, 1986. pp. 125-8.
27

Para Teixeira e Fonseca24, Porto Velho e Guajará Mirim, na primeira década do


século XX, possuíam uma formação social multifacetária. Reiterando a introdução, a
historiografia construiu uma imagem de Porto Velho, como um território dividido entre a
Company ideal e a Porto Velho real.25
Hardman desmistificou a cisão, estabelecendo as relações entre o centro urbano,
restrito ao pátio da ferrovia, com a cidade além da linha divisória, trazendo ao
conhecimento um diálogo entre as contradições internas do discurso elaborado a partir das
imagens de Porto Velho (moderna) e Santo Antônio (colonial).26
A carestia levava à fome crônica e à desnutrição, baixando a resistência dos
trabalhadores. Os americanos, para baixar os custos com a renovação da mão-de-obra,
criaram o Hospital da Candelária, situado entre Santo Antônio e Porto Velho, que foi
inspecionado por Osvaldo Cruz. O hospital era exclusivo aos trabalhadores da ferrovia,
sendo que os moradores além da linha divisória da Company (Porto Velho), Santo Antônio
e demais localidades não tinham assistência, morrendo sem cuidados.27 Dom Pedro Massa,
Monsenhor Salesiano, para amenizar esse quadro, iniciou a criação do Hospital São José
em Porto Velho. As péssimas condições de trabalho, as endemias, a invasão de territórios
indígenas e os conflitos gerados com os nativos agravaram a situação de penúria dos
trabalhadores.
Porto Velho, em 1912, registrava uma população de 800 pessoas28, sem incluir os
milhares de trabalhadores da ferrovia registrados pela literatura historiográfica,29 esses
números indicam não só o êxodo como também a alta taxa de mortandade.30
Em 1914, foi desmembrado de Humaitá o município de Porto Velho; na realidade,
existiam, de um lado, os espaços ocupados e administrados pela Madeira-Mamoré R.C.
equipados com fábrica de gelo, padaria, luz elétrica, água encanada, esgotos tratados, e
força policial privada controlando as dependências e os trabalhadores da ferrovia, e no outro
extremo, a vila de Porto Velho estava sendo formada por mal traçadas vielas, ocupadas
pelos excluídos da ferrovia no espaço da cidade de fato.31 Hardman descreve a rua da Palha
com seus casebres improvisados, seus prostíbulos, também o bairro do Mocambo, do

24 TEIXEIRA, Marcos .e FONSECA, Dante. História Regional (Rondônia). Porto Velho, Rondoniana, 1998. Pp. 142.
25 HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: A modernidade nas selvas. São Paulo, Cia. das Letras, 1986.
26 HARDMAN, Francisco F. Op. Cit. Pp. 125-8.
27 TEIXEIRA, Marco D. "Mortos, dormentes e febris" in Porto Velho conta a sua história. Porto Velho, Secretaria

Municipal de Cultura, Esportes e Turismo, 1998.


28 TEIXEIRA, Marco e FONSECA, Dante. 2ª ed. História Regional (Rondônia). P.Velho, Rondoniana, 1998.
29 FERREIRA, Manoel R. Madeira-Mamoré: A ferrovia do Diabo. S. Paulo, Melhoramentos, 1984. A construtora da

ferrovia teria engajado 21.783 trabalhadores ao todo segundo o autor.


30 T EIXEIRA, Marcos & FONSECA, Dante. Op. Cit. Hipótese levantada pelos autores.
31 FONSECA, Dante R. “Uma cidade à Far West” in Porto Velho conta sua História. Porto Velho, SEMCE, 1998. Para

um painel da cidade de Porto Velho no período ver este artigo.


28

Favela e outros, enfim a cidade marginal.32 Com a criação do município de Porto Velho, o
governo do Amazonas visava somente aumentar sua arrecadação por meio da criação de
tributos municipais, que incidiam sobre a produção, circulação e consumo.
No extremo da ferrovia, foi instalado, em 1912, um posto fiscal em frente ao
povoado boliviano de Guayaramerin. Este se constituiu num entreposto comercial,
recebendo as mercadorias do oriente boliviano pelos rios Mamoré, Madre de Dios e Beni.
Nesse entreposto embarcavam as matérias primas e manufaturas: a produção de goma,
quina, poaia, gado, couro e peles dos departamentos de Beni e Pando. Além disso, era a
única ligação com a cidade de Vila Bela e com todo o vale do Guaporé, repleto de
seringais à margem direita, no lado brasileiro, e à esquerda, no lado boliviano.
O entreposto de Guajará Mirim possuía considerável infra-estrutura: delegacia,
posto fiscal, estação telegráfica, correio, escolas, cinema, com a população em torno de
1000 pessoas. Sírios, libaneses, barbadianos, italianos, portugueses, espanhóis, peruanos e
bolivianos compunham sua população. Além da infra-estrutura criada em função da
ferrovia em seu ponto inicial e final, havia as vilas-estações de Jacy-Paraná, Mutum, Vila
Murtinho e Abunã. Localidades de apoio, nas quais ficavam estacionados os operários da
ferrovia, cuidando da refrigeração das caldeiras e abastecimento de água, e tarefeiros,
fazendo a manutenção dos trilhos ao longo de seu trecho. Foram ao todo 28 estações
estabelecidas em sedes de seringais, aglomerando de 6 a 10 casas residenciais de um lado, e
às vezes de ambos os lados da ferrovia.
Os aglomerados em torno das estações da ferrovia eram, na maior parte,
residenciais; apenas as estações estratégicas tinham armazéns e casas comerciais, como as
de Jaci-Paraná, Mutum-Paraná e Vila Murtinho, próximos à vila de Abunã, que ficavam
em frente ao povoado de Manôa, do lado boliviano. Também havia “povoações” em
Costa Marques, no rio Guaporé e na Foz do rio Jamari.
A apropriação das terras no vale do Madeira-Guaporé foi conflituosa desde o
início da extração da borracha. A maior parte dos proprietários de terras não possuía
títulos de propriedade. A terra não era considerada mercadoria. O valor estava em seus
recursos naturais: seringueiras, essências, óleos medicinais e peles de animais silvestres que
eram as principais fontes de riqueza. A concepção essencialmente extrativista da terra
cunhou a forma de exploração de seus recursos como “colocação”, “estrada de seringa”,
“barracão” e outros. Não havia cercas, as divisas geralmente eram acordadas entre os

32 HARDMAN, Francisco Foot. O trem fantasma: a modernidade nas selvas. S. Paulo, Cia das Letras, 1986.
29

primeiros invasores, estas poderiam ser um rio, uma cachoeira ou uma paisagem destacada
do conjunto, ou quem tivesse o maior poder de “fogo”.
Os primeiros embates em relação à posse das terras se deu entre o gerente geral Mr.
A. L. Bell, da empresa concessionária Madeira Mamoré Railway and Company, e a Intendência
Municipal de Santo Antônio. O Intendente Municipal, Cel. Salustiano Alves Corrêa,
entrou em acordo sobre a demarcação dos lotes na faixa de 300 metros em torno dos 366
quilômetros da linha e 5 mil metros em Porto Velho, Presidente Marques e Guajará Mirim.
A União havia cedido à empresa estas terras por meio do decreto 8776, de 07 de junho de
1911, pelo prazo de sessenta anos. O governo de Mato Grosso, por meio do decreto 394,
de 10 de agosto de 1915, reservou uma “área de 1.800 hectares para patrimônio de cada uma das
povoações de Generoso Ponce, Presidente Marques, Villa Murtinho e Guajará Mirim.” As áreas da
Intendência de Santo Antônio se superpunham a da Companhia.
A MMRC tinha o controle sobre as terras da região. Porto Velho era sua
dependente, pois o abastecimento de água, a eletricidade, os esgotos, as casas e
arruamentos eram basicamente fornecidos pela Company. Pela antigüidade da lei federal em
relação à posterior estadual, o Intendente fez um acordo com a Companhia, mesclando
uma quadra da MMRC e outra do Município e, para identificar as áreas, criaram placas
com suas insígnias. O art. 5º do acordo n.º 37, de 24 de dezembro de 1917, justificou o
consenso “As partes accordantes como único meio de facilitar o desenvolvimento das povoações, que até
então se verifica constantes attritos, entre o Município, a Companhia e a população, ficou de ora
em deante reservado exclusivamente à Municipalidade o direito de aforar os lotes que lhe pertencer, cuidar
do policiamento da população... embelesamento das ruas, hygiene esthetica das
construcções.” 33
Outro caso de disputa de terras entre particulares exemplifica a regra na região. Em
1918, J. Elias Solsol, boliviano, comerciante de Jacy-Paraná, solicitou ação de manutenção
de posse ao Juiz de Direito de Santo Antônio. Segundo o requerente, teria comprado do
governo do Mato Grosso, em 24 de junho de 1918, nove mil hectares de terras devolutas
situadas entre o igarapé Preto e o igarapé Conto de um lado e de outro
limitadas pelo igarapé Cel Rondon. A manutenção de “posse” foi movida contra Miguel

33PROCESSO CÍVEL DE POSSE. Porto Velho, Comarca de Santo Antônio MT, 18 de fevereiro de 1918. Acervo
do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.
30

CROQUI DAS TERRAS EM LITÍGIO SOLSOL E ZUMAETA


31

Zumaeta, Juan Del Castillo e Bernardo Zumaeta, peruanos acusados de praticar


“turbação” 34. O termo regional usado permite constatar o valor atribuído a terra enquanto
riqueza natural.
Oblíquo ao espaço estrangeiro extraterritorial, encontramos outro projeto da
República. A Comissão Construtora das Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso
ao Amazonas, eternizada pelo nome de seu chefe o Mal. Rondon, fazia o reconhecimento
do território e o estabelecimento de núcleos ao longo da linha entre Cuiabá e Santo
Antônio.35 Rondon e seu grupo viam com desconfiança a intensa presença e exploração
econômica das fronteiras da República por estrangeiros. De fato, a região era explorada e
dominada pelo capital estrangeiro.
A Comissão foi criada para solucionar o problema da falta de comunicações com a
capital da República. Esta partiu de Cuiabá avançando a noroeste rumo a Porto Velho e
Manaus, com um ramal até a cidade de Guajará Mirim e outro em Rio Branco, no
território do Acre.36 Rondon representava os interesses das elites regionais, as quais
demandavam a integração de novas áreas. A Comissão Rondon findou por criar as bases
militares na região de fronteira por meio das Seções do Telégrafo Nacional.
A partir de 1907, sua atuação nessa região estabeleceu as bases para um sistema de
comunicações via telégrafo e, ao mesmo tempo, abriu caminho para a progressiva
incorporação das terras indígenas à exploração capitalista. No plano discursivo, a
justificativa era a proteção das fronteiras e dos indígenas. Porém, paralelamente, gestava-se
“um projeto claro para a incorporação dos territórios e integração dos indígenas à sociedade brasileira com o
propósito de usá-los como mão-de-obra”.37
A “descoberta” dos rios, suas nomeações e "rebatismos", figurados como
descobertas “científicas”, foram práticas para forjar a “nação”. A criação da "identidade
nacional" era uma das missões da Comissão, personificada em seu líder. A identidade foi
forjada por meio do reconhecimento do território, da sua exploração in loco e de sua
inclusão no mapa "nacional". O discurso se contradizia internamente ao apontar: o
sertanista [Rondon] "trilhava caminhos que "só haviam [sido] penetrado [pelos] os pioneiros sertanejos,

34 Invasão de posse, colocação de seringueiros, derrubada de matas e extração de látex.


35 MACIEL, Laura Antunes. A Nação por um fio. São Paulo, Educ/Fapesp, 1999.
36 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A ferrovia do Diabo: A história de uma estrada de ferro na Amazônia. S. Paulo, Editora

Melhoramentos, 1987. PINTO, Emanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território de Guaporé, fator de Integração
Nacional. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. TEIXEIRA, Marcos e FONSECA, Dante. 2ª ed. História Regional
(Rondônia). P.Velho, Rondoniana, 1998. As descrições em relação à formação histórica foram extraídas basicamente das obras
anteriormente citadas.
37 BIGIO, Elias dos S. Linhas Telegráficas e Integração de Povos Indígenas: As estratégias Políticas de Rondon (1889-1930). Brasília,

Dissertação de Mestrado em História Política e Social do Brasil/UnB, 1996. Pp. 127.


32

creadores de gado, garimpeiros e seringueiros".38 A identidade seria alcançada pela


“ocupação/nacionalização” das fronteiras.
Um dos objetivos da Comissão Rondon foi o ordenamento dos espaços a partir de
núcleos de atração indígena a cada 90 quilômetros. Construía a soberania do país, nos
confins da República, e a manutenção da integridade do território “nacional”.
Na mesma época, esse território estava sendo explorado pela Comissão Rondon,
que construiu, ao longo da linha telegráfica entre Cuiabá e Santo Antônio do Madeira, um
total de 20 estações telegráficas, que deveriam servir como pontos de apoio para a
ocupação planejada da região. A linha constituiu núcleos de atração indígena em torno dos
postos do telégrafo. O objetivo era formar núcleos de povoamento em Vilhena, Pimenta
Bueno, Presidente Hermes, Pres. Pena (Ji-Paraná), Jaru e Ariquemes, cortando, em seu
trajeto, os vales do Machado e do Jamari. A empreitada desdobrou-se na criação do
Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN)- outra
célula das ações federais na região. O traçado da linha telegráfica veio a se constituir mais
tarde na via de penetração pelo Mato Grosso e na ligação rodoviária ao sul do país. O 3º
Distrito Telegráfico da Seção Norte em Santo Antônio do Alto Rio Madeira fincou as
bases militares na região. Rondon e seu grupo visavam retomar o controle sobre a área de
influência da Madeira-Mamoré Railway and Co. A empresa “alienígena” dominava a região
se constituindo em ameaça à soberania da República.39
Nas décadas de 30-40, entraram levas de migrantes vindos do Mato Grosso pela
picada da Comissão Rondon, formando “povoações” em Vilhena e Pimenta Bueno em
torno dos postos do Telégrafo. Em 1940, o Território tinha uma população de 32.591 hab.
Contraditoriamente, Valverde afirma que a “ocupação” efetiva se deu a partir de 1943 com
o surto da borracha.40
Os seringalistas invadiram o vale do Guaporé do lado boliviano e do lado
brasileiro. Os confrontos entre seringueiros e indígenas resultaram em verdadeiros
massacres, como no rio Pakaa Nova, habitado pelos povos Oro Wari e Arara:

Com o início do segundo “boom” da borracha, nos anos 40, a região de Guajará
Mirim (rios Pacaa Nova e Ouro Preto) foi intensamente ocupada pelas frentes de
exploração. E os ataques realizados pelos seringueiros se tornaram verdadeiros
massacres.
Os seringalistas organizavam expedições muitas das vezes com metralhadoras
compradas em contrabando na Bolívia. Aldeias inteiras foram assim dizimadas. ... da

38.“O Grande Bandeirante”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 30/06/36.


39 Alienígenas: Termo corrente no período de 1920-1940, designava empresas de capital e administração estrangeiros
dentro do país. De uso muito corrente em relatórios, imprensa e correspondência oficial até o Estado Novo.
40 VALVERDE, O. (org). A organização do espaço na faixa transamazônica: Rondônia e regiões vizinhas. R. Janeiro, Fundação

IBGE/INCRA, 1979. Pp 62-3.


33

aldeia Tain Wacaram, dezenas de homens armados chegaram de noite, e pela


madrugada atiçaram fogo nas casas e em seguida meteram bala em quem se movia, a
maioria sendo mulheres e crianças.41

O mesmo processo ocorreria com os Kwaza e os Kepikeriwat no rio São Pedro; os


Kreném, os Abitana e os Waniam no rio São Miguel; os Urucuai, os Aboba, os Puxaca, os
Maba e os Guajeju no rio Corumbiara; os Arikapú, os Aruá, os Jaboti e os Makurap no rio
Branco. Outros, no interior, como os Tupari e os Masaká no rio Apidiá; os Karipuna, os
Pamã, os Karitiana e os Boccas Pretas no rio Jacy-Paraná; os Arikém e os Urupá no rio
Jamari; o povo Jarú no rio Jarú; os Ramarama no rio Machadinho e do lado oriental os
Majubim, os Mialat, os Takawatip, os Apairandé no rio Machado, além de inúmeros outros
povos nas Chapadas dos Parecis. A população indígena do território dos vales foi estimada
entre 10.000 e 50.000 na região, entre os anos de 1930 e 1940, segundo a Revista de Estudos
de Desenvolvimento Regional: Territórios Federais, (Guaporé).42
Essa região é também o berço dos quilombos formados pelas fugas e pela
decadência na exploração do ouro de minas de Vila Bela, que ficava às margens do rio
Guaporé. Os “pretos” 43 do Guaporé se organizavam em sistema comunitário de produção
e distribuição, experiência sui generis na Amazônia.44
Patrões e jagunços dos seringais disputavam esse espaço invadindo terras indígenas
nos vales do rio Jamari e do rio Machado. Os seringueiros viviam nos centros e
colocações, isolados no interior da floresta, presos à escravidão pela dívida “insolvente” no
barracão.45
O “povoamento”, ironicamente, viria se alterar com o término da construção da
ferrovia em 1912/1913. O cultivo da seringueira, em moldes racionais na Malásia, baixou
drasticamente os preços no mercado mundial. Após a 1ª Guerra Mundial e,
posteriormente, com a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, a situação se agravaria
ainda mais. As Séries Estatísticas do Mato Grosso e Amazonas 46 demonstram a saída de mais de
200 mil seringueiros da Amazônia entre as décadas de 20 e 30. O êxodo afetou
diretamente o noroeste de Mato Grosso (vales do Madeira-Guaporé).

41 Conselho Indigenista Missionário-Regional Rondônia. PANEWA ESPECIAL. Porto Velho, CIMI/RO, 2002.
42CAPES. Séries Estatísticas Regionais: Territórios Federais (Guaporé). Rio de Janeiro, INL, 1959.
43 Pretos: Termo utilizado pela imprensa do período para designar ex-escravos fugidos remanescentes de quilombos

que possuíam um sistema de produção e distribuição comunitário. Viviam em pequenos grupamentos de malocas nas
barrancas à margem direita do rio Guaporé. Mais precisamente entre Vila Bela da Santíssima Trindade e Pedras Negras.
44 TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues. Dos campos d'ouro à cidade das ruínas: apogeu e decadência do colonialismo português

no Vale do Guaporé (séc. XVIII e XIX). UFPE, Dissertação de Mestrado, Recife, 1997.
45 TEIXEIRA, Carlos C. O sistema de aviamento e do barracão nos seringais da Amazônia. S. Paulo, USP/FFLCH, Dissertação

de Mestrado em Ciências Sociais, 1988.


46 CAPES. Séries Estatísticas Regionais. Rio de Janeiro, INL, 1959. (Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior).
34

O desdobramento da crise da borracha, foi a falência da administração estrangeira à


frente da ferrovia. Acirrou-se o problema em meados de 1931, quando a Madeira Mamoré
Railway & Co parou por oito dias. O governo federal considerava a ferrovia estratégica
para o controle de fronteira, no extremo oeste, e pólo de irradiação econômica regional.
Ela era a única via de comunicação entre as regiões do noroeste do Mato Grosso e do
oriente boliviano com o rio Amazonas. O Ten. Aluízio Ferreira, Delegado do Governo
Federal e Chefe do 3º Posto Telegráfico das Linhas Estratégicas Seção/Norte, foi
designado para ocupar as dependências da Companhia em julho de 1931. O ato
cristalizou-se no imaginário social como a “nacionalização” da Madeira-Mamoré.
Os articuladores da sua nomeação aguardavam com expectativa a definição de uma
política “nacionalista” para as riquezas do subsolo e segurança das fronteiras.
O problema decorrente da crise, para os grupos na administração das
comunicações, do comércio, transportes e recursos públicos, era o êxodo. Como ocupar
os espaços “vazios”, como implementar o “povoamento”? Essa questão ocupou a
imprensa e os governos do Mato Grosso e Amazonas e recolocava, em novos termos, a
velha justificativa para a atuação da Comissão Rondon, do SPI e da fundação de fortes e
vilas coloniais.
A problemática da ocupação do espaço estava contida nas correspondências entre o
Ten. Aluízio Ferreira47 e o Gen. Rondon em 1929. No memorial a Rondon, ele descreveu
sua experiência e conhecimento sobre a região dos vales do Madeira-Guaporé. O Ten.
Aluízio Ferreira enunciou dois problemas centrais: a ocupação e soberania das fronteiras e a
questão indígena. Em sua opinião, não tardaria o confronto entre os "desbravadores" em
busca do ouro, seringueiras e caucho e os inúmeros povos localizados nos interiores dos
vales, habitando as cabeceiras de seus afluentes. O potencial de conflito na região era
destacado em função das riquezas minerais e vegetais no interior dos vales do Guaporé e
do Madeira. Sua análise sobre o eminente perigo de genocídio justificou a sua contratação
para as Linhas do Telégrafo. Indicou dois núcleos de atração indígena, os quais tão logo

47O Ten. Aluízio Pinheiro Ferreira havia participado em 1924 da Revolta do Forte de Óbidos no Pará, resolveu subir
os rios do vale do Amazonas e se encontrar com os revolucionários no Paraná. Porém seus recursos eram poucos e
conseguiu se refugiar no lado boliviano do rio Guaporé no seringal de Américo Casara como guarda-livros. Foi nesse
período que entrou em contato com a geografia dos vales e com os índios Macurapes. Em 1929 cumprindo pena em
Belém, enviou do cárcere memorial ao Gal. Rondon descrevendo o seu conhecimento e interesse pela geografia e a
etnologia dos vales. Esse memorial foi o passaporte para o Ten. Aluízio Ferreira integrar as forças militares sediadas na
região por meio das Linhas Telegráficas. Em 1930 foi indicado por Rondon para a Chefia do 3º Distrito Telegráfico
Seção Norte em Santo Antônio do Rio Madeira. Com a Revolução é nomeado delegado de Vargas na região dos vales e
do estado do Amazonas, em 1931 fora nomeado diretor da ferrovia administrada pela empresa Madeira Mamoré
Railway and Co. Em 1932 à frente da ferrovia, intercede junto ao Ministro da Guerra para a Criação de 03
Contingentes Especiais de Fronteira, acumulando o cargo de Inspetor dos Contingentes. Era o representante da União,
controlando os órgãos vitais na região. Em 1943 é nomeado o primeiro governador do Território Federal do Guaporé,
35

fossem “civilizados”, deviam ser transferidos ao Forte Príncipe, no Rio Guaporé, onde se
ajustariam “admiravelmente” para a linha divisória com a Bolívia:

Os índios vivem em permanente alerta, nas faixas ribeirinhas, em constante observação ao


movimento das embarcações. Todos os meses são propícios para as revanches de uma guerra
que, como a roda de Ixión, nunca para, com periódicos desfechos de ambas as partes: os
pobres caboclos, perseguidos, martirizados, de um lado; os caucheiros e, mais do que
eles, as desumanas expedições militares bolivianas de outro...
No desespero que o avassala, o aborígene é de uma audácia incrível. ... São decerto esses
índios que todos os verões incursionam até os arrabaldes de Guajará Mirim, cruzando as
cabeceiras do Rio Preto, ainda hoje impenetrável às explorações dos mais destemidos e as do
Pakaás Novas, celebrizado pelas hecatombes nele praticadas contra os silvícolas. ...
Sabe-se que não é aconselhável impor bruscamente ao gentio mudança radical nos
seus atos e costumes. O trabalho deve ser lento, pertinaz, constante, de modo que ele vá
pouco a pouco ingressando no meio civilizado”(... ) Assim, a solução do problema de
proteção aos silvícolas do Guaporé, seria resolvida desta forma: organizar-se-iam dois núcleos de
atração, um no alto rio Branco, onde começa a zona encachoeirada, a oito dias de viagem da boca e
outro no planalto que divide as águas que correm para o Corumbiara e para que suponho ser o Pimenta Bueno.
...Depois de um estágio relativamente curto, os novos colonos seriam transferidos para o
estabelecimento central, que ficaria localizado no Forte Príncipe da Beira, facilmente adaptável
ao patriótico mister.
Assim, a solução do problema de proteção aos silvícolas do Guaporé, seria resolvida desta
forma: organizar-se-iam dois núcleos de atração, um no alto rio Branco48, onde começa a zona
encachoeirada, a oito dias de viagem da boca e outro no planalto que divide as águas que correm para o
Corumbiara e para o que suponho ser o Pimenta Bueno. Os dois postos indígenas, atualmente
organizados no São Miguel e no Pacaás Novos, são insuficientes e não preenchem os fins a
que se destinam. Lutando com escassos recursos, não asilavam os dois 50 indivíduos. E quanto
à pacificação dos bravios, nada podem fazer.49

Sua solução, para “evitar” os conflitos, era atrair os índios dos interiores, liberando
a região cheia de riquezas, “amansando” os “bravios” e suas terras. Conjunto à “limpeza”
do terreno, pretendia iniciar os indígenas na produção agrícola, transformando-os em
índios-soldados-agricultores. Seu projeto era localizar os "novos colonos" no Forte
Príncipe da Beira e guardar a fronteira brasileira praticamente “deserta”, prática
sedimentada no período de Pombal conforme Meirelles.50
O projeto era “proteger” os antigos povos do “inevitável” massacre do progresso.
Colocaram vários povos desconhecidos, por vezes inimigos históricos, sem nenhuma
similaridade lingüística e cultural, coabitando no mesmo posto indígena. Desejavam do
índio apenas o corpo como mão-de-obra, sua sociedade e cultura seriam dissolvidas em
nome da civilização. Prática generalizada entre os militares51, seringalistas e padres
espalhados pela Amazônia. Prezia divide a prática missionária em quatro fases, e em uma
delas, a:

em 1946 se afastou do cargo e se elegeu primeiro deputado federal pelo Território do Guaporé. Foi reeleito em 1950 e
em 1954, neste período indicou todos os governadores para a administração do Território.
49 FERREIRA, Ten. Aluízio P. Relatório à Rondon: Em prol do Guaporé. Belém, 1929. Datilografado. [grifos meus]
50
MEIRELLES, Denise M. Guardiães da Fronteira– Rio Guaporé, Século XVIII. Petrópolis, Vozes, 1989.
36

1- A tradicionalista, que vai de 1939 ao final do Concílio... com o predomínio da missão


clássica, com os batizados em massa, o internato para as crianças indígenas... O objetivo era a
conversão e a integração dos povos indígenas à nossa sociedade [brasileira]. ...
Se os relatos missionários possuem algo de heróico... evidenciam também a limitação desta
prática salvacionista. Boa vontade não era mais suficiente para salvar do extermínio aqueles
povos, mesmo que pudessem ser considerados salvos pelo batismo. A catequese era na
realidade sinônimo de civilização ocidental e o trabalho missionário levava inevitavelmente
estes povos a se integrarem à nossa sociedade. E integração era sinônimo de extermínio
cultural e, muitas vezes, físico.
O objetivo do trabalho era a evangelização e a integração dos povos indígenas... Na
prática muitos destes indígenas, se não perderam a identidade, passaram a viver sérios conflitos
culturais, dado o sistema educacional implantado.52

O “humanitarismo” estava presente nos militares e padres, postura recorrente no


período da doutrina da formação da “nação brasileira”. No fundo, a construção de seus
contrafortes ideológicos se apoia na “metáfora espacial” das fronteiras. Segundo Procópio,
padres e soldados sempre tiveram uma relação muito estreita quanto à conversão e integração
do índio. Para ele, moralmente não há como a Igreja contestar os militares em recrutar
índios para seus batalhões de selva. Os fatos demonstram a semelhança entre o trabalho
do padre e do soldado na Amazônia, não existindo antagonismos entre suas estratégias. O
autor chama atenção para a cumplicidade entre a Igreja e a FAB que mantêm vôos
exclusivos para transportar missionários desde 1940.53
Para Lima54, o SPI apenas atualizou os conceitos civilizatórios da catequese para o
conceito de proteção tutelada. Para o autor, a prática se resume numa transformação da
violência aberta para a violência simbólica. No caso do vale do Madeira-Guaporé, a
violência não foi simbólica como na generalização de Lima. Aqui não houve um cerco de paz.
A violência simbólica foi discursiva, a prática era da violência assumida e “naturalizada”.
Bigio, em sua conclusão, constatou a mesma prática: A Comissão Rondon e o SPI ofereceram
assistência às diversas sociedades indígenas que habitavam Mato Grosso. Porém a história demonstra que
a “atração”, a “pacificação” e a “proteção .. não impediram o processo de extermínio físico ou a
aniquilação cultural dessas sociedades. Ao contrário “... o SPI serviu muito mais para a
incorporação dos territórios indígenas à sociedade brasileira”. 55

51 CASTRO, C. O espírito militar: um estudo de antropologia social na Academia Militar de Agulhas Negras. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1990. Para uma discussão sobre rituais de despersonalização nas academias das forças armadas ver o trabalho do
autor.
52 PREZIA, Benedito A. A história da Missão junto aos Povos Indígenas: 1939-1995. CIMI/Regional Rondônia.
Mimeografado, 1995. pp. 1-5. Grifos do Autor.
53 PROCÓPIO, Argemiro. “Da cruz à espada” in Amazônia: Ecologia e Degradação Social. S. Paulo, Alfa-Omega, 1992.

Pp. 169-170.
54
LIMA, Antônio C.S. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes,
1995.
55BIGIO, Elias dos S. Linhas Telegráficas e Integração de Povos Indígenas: As estratégias Políticas de Rondon (1889-1930). Brasília,
Dissertação de Mestrado em História Política e Social do Brasil/UnB, 1996.
37

O Guaporé boliviano estava ocupado pela agropecuária e extrativismo da quina, da


poaia, do caucho e da seringa. Conforme suas observações, a "fronteira Guaporé-Mamoré-
Abunã, [estava] em completo abandono do nosso lado, quando da banda boliviana existem guarnições
militares em Cobija, Manoa, Villa Bella, Guayaramerin, Fortim do Machupo e Rio Verde."
Pelo lado brasileiro, o acesso pelo rio Abunã à região do Madeira-Mamoré era livre.
Despovoada, não oferecia o menor controle na entrada de cidadãos, embarcações e
mercadorias. Manoa, localizada em território boliviano na foz do rio Abunã e embocadura
com o Madeira, inversamente, era maior e melhor estruturada. Guayaramerin era
entreposto de Riberalta (no Beni) e Baixo Mamoré, apesar de ter 500 habitantes, possuía
uma guarnição de 100 praças armados. Além dos oficiais comandantes do Exército,
possuía também capitania de portos e alfândega. O povoado personificava o estado central
boliviano, com suas unidades administrativas organizadas em departamentos, com forte
presença militar. Guajará Mirim constituído como município no estado de Mato Grosso
em 1928, apesar de ter o triplo da população, não possuía força de fronteira controlando a
movimentação de estrangeiros entrando no Brasil pelo oriente boliviano.56
O Ten. Aluízio Ferreira objetivava a soberania de fronteiras por meio da
colonização agrícola com soldados da própria região, reservistas, índios, nordestinos e
seringueiros. Este projeto vinha ao encontro dos interesses de seringalistas e comerciantes,
às voltas com o problema de mão-de-obra, além de concentrar as ações do poder público
nos ministérios da Guerra, da Agricultura e da Viação e Obras Públicas.
Os militares viam a colonização agrícola como a única opção para “ocupar”,
sedentarizar e fixar pessoas na região. Subliminarmente, tratava-se de deter o controle
sobre o ordenamento do espaço, além de colocar limites aos deslocamentos populacionais
na região. Tratava-se de ocupar, com “pessoas certas” e atividades sedentárias, “os lugares
certos”. Assentado nesses pressupostos, teria início um projeto de ocupação e colonização
da região, sob o controle dos militares. O primeiro núcleo agrícola, "Antenor Navarro", foi
inaugurado entre abril e maio de 1932, em Porto Velho, no km 06 da rodovia Mato
Grosso-Amazonas, por iniciativa da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, já sob a
intervenção do governo federal. O jornal Alto Madeira57 apoiou a iniciativa do Diretor da
EFMM, devido à ausência de capitais privados para sua execução. Isto pode ser

56TEIXEIRA, Marcos e FONSECA, Dante. 2ª ed. História Regional (Rondônia). P.Velho, Rondoniana, 1998. Pp. 147.
57MENEZES, E. “Jornalismo em Rondônia” in Porto Velho conta sua história. Porto Velho, SEMCE, 1998. Segundo o
autor, o jornal Alto Madeira foi fundado em 1917 pelo médico e político, ex-membro da Comissão Rondon, o Dr.
Joaquim Tanajura. A criação do jornal se deu justamente quando fora superintendente do município de Porto Velho,
eleito pelo Partido Republicano Conservador e apoiado pelas oligarquias locais, os patrões seringalistas e comerciantes.
Logo após ser eleito deputado estadual pelo Amazonas, passou o jornal ao seu correligionário o Ten. Cincinato Elias
Ferreira, e assim por diante até chegar às mãos dos Diários Associados. [grifos meus]
38

comprovado no editorial do Alto Madeira, editado no dia 08 de maio: "Governo Federal


forneceu muletas ao mulambo combalido que é o nosso Amazonas, ...e dá-nos a impressão de que o
Amazonas veria melhores dias se o semeassem de centenas desses núcleos".58
Na visão dos seringalistas, a obrigação de salvar a economia era exclusiva do
executivo amazonense. O Ten. Aluízio Ferreira, por meio da ferrovia, veio a intervir na
economia e na política local, apoiado pelas elites na abertura dos núcleos agrícolas, na
construção de casas e no plantio das primeiras safras. A colônia "Antenor Navarro" foi o
resultado da parceria entre a EFMM/3º Distrito Telegráfico e o interventor Álvaro Maia,
do estado do Amazonas. Ambos executando a política de “povoamento/ordenamento”
do governo federal:

Ministro da Viação José Américo diante da exposição do Cap. Aluízio Ferreira concedeu à
EFMM um auxílio para a colonização das margens da via férrea, [g.m.] ficando
determinado a creação de duas colônias agrícolas nos moldes do núcleo agrícola Antenor
Navarro com localização para 30 famílias cada uma, e uma média de 80 trabalhadores. Estas
colônias ficarão situadas uma perto de Guajará-Mirim e a outra perto da vila de Presidente
Marques (Abunã), devendo os serviços para o seu estabelecimento serem iniciados a 1° de
agosto vindouro.59

Os interesses das elites civis e militares se compartilhavam na colonização, visto o


apoio local à política ministerial. A medida federal, acompanhada de verba específica,
oficializou a “ocupação/intervenção” na região pelo governo federal.
Os núcleos agrícolas foram organizados com lotes de 25 hectares, sendo 500m de
frente por 500m de extensão, constituindo minifúndios voltados para culturas anuais:
arroz, feijão, milho e mandioca. O objetivo declarado era o enraizamento do colono
(seringueiros, soldados e os índios “civilizados”) por meio da pequena propriedade.
Considerando um “incentivo” aos antigos servos do barracão, os seringalistas e seus
“aliados” militares esperavam pelos nordestinos espoliados da terra. As elites civil e militar
presumiam a fixação do colono pela posse do minifúndio. O objetivo real era o
barateamento dos gêneros e o aumento do lucro dos comerciantes e seringalistas.
Podemos tomar por exemplo o núcleo agrícola do Iata, estruturado segundo as
normas estabelecidas pela lei federal sobre colônias agrícolas. O sistema funcionava da
seguinte maneira: primeiro o trabalhador era atraído no nordeste pelas agências do
governo federal, e a ele era prometido passagem gratuita, alimentação e assistência médica
gratuita. Aos que eram egressos dos seringais, era necessário uma seleção para poder ter

58“Colonização”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 08 de maio de 1932.


59“A Exposição apresentada pelo Cap. Aluízio Ferreira traz inestimáveis benefícios à região”. ALTO MADEIRA.
Porto Velho, 31 de julho de 1932. Primeira Página. Anexo 02 do Centro de Documentação Histórica de
Rondônia/SECET.
39

acesso aos lotes. Era dada preferência aos homens maiores, casados e com filhos, depois
em ordem decrescente, os de menor idade, os sem filhos, os solteiros e assim por diante.
No início, o colono ficava no núcleo urbano da colônia, aguardando a demarcação dos
lotes. Enquanto aguardava, era aproveitado para construir mais residências para novos
migrantes que chegavam, também para demarcar novos lotes num sistema rotativo
contínuo por mais de dez anos, entre a década de 30 e 40. Quando a família era instalada
no lote, numa casa de madeira coberta com palha, feita geralmente pelos contingentes ou
até mesmo pelos não-assentados, chegava outro para ocupar seu lugar no núcleo urbano e
assim sucessivamente.
A análise de Silva60, sobre o fracasso das colônias agrícolas, comprova esta minha
interpretação. Seu estudo de caso foi o Núcleo Agrícola do Iata (Guajará Mirim). Para a
autora, o declínio deveu-se ao reduzido tamanho dos lotes, impedindo a rotatividade de
culturas e a baixa qualidade das terras. Empecilhos agravados pela ausência de assistência
técnica, na correção do solo e na política de preços, pelo alto custo dos fretes “oficiais” e
outros encargos, onerando e subtraindo os ganhos depreciados dos colonos. Alguns
abandonaram suas terras e voltaram para o seringal, ou foram para o garimpo, ou partiram
em busca de novas “terras férteis”.
Na inauguração dos núcleos agrícolas, foi usado o paradoxal argumento da "falta de
braços" e do "vazio demográfico" em Guajará Mirim e em Presidente Marques: “É preciso
attrahir colonos de outros estados para evitar a deslocação dos que já se encontram situados, não só
para augmentar a população tão reduzida pela falta de occupação como também para incentivar
e encorajar os que aqui se acham desanimados, entibiados, descrentes de melhor futuro.”61 Os espaços
estavam ocupados, porém com populações tradicionais, alheias aos interesses “nacionais”,
não faltava gente. Faltavam “coragem” e “incentivo” aos incapazes que “precisavam” da
tutela dos militares.
O relatório do Ten. Aluízio Ferreira ao Gen. Rondon explicitou, em 1929, a
questão da “falta de braços, “não sucede o mesmo no médio e alto Guaporé, onde as margens são
pontilhadas de barracas dos pretos mato-grossenses, egressos dos mocambos de Vila Bela e aferrados à
vida improdutiva de caçar, pescar e procriar, mas em regra refratários à indústria
gomífera, a única explorada e organizada na região.” 62 Comprova-se pela historiografia63 e

60 SILVA, Francisca A. Iata: Uma tentativa de Colonização (1943-1972). Goiânia, Dissertação de Mestrado UFGO, 1987.
61 “Colonisação”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 17 de agosto de 1932. Primeira página.
62 FERREIRA, Ten. A. Em Prol do Guaporé. Memorial enviado ao Gal. Rondon Belém do Pará, 18/02/1929.
63 TEIXEIRA, M.. Dos campos d'ouro à cidade das ruínas: apogeu e decadência do colonialismo português no Vale do Guaporé (séc.

XVIII e XIX). UFPE, Dissertação de Mestrado, Recife, 1997 e MEIRELLES, Denise M. Os Guardiães da Fronteira.
Cuiabá, UFMT, 1983. Para esta “invenção” do vazio ver os trabalhos destes autores.
40

pelos relatórios militares64 a ocupação dos territórios e a contradição com o discurso


paradoxal de “vazios demográficos” criado pelos segmentos dominantes, moeda política e
econômica em suas mãos.
Os locais escolhidos para a instalação dos núcleos eram estratégicos, do ponto de
vista militar. O núcleo do Iata, no entroncamento e foz dos rios tributários, que vinham da
Bolívia. Os rios Mamoré, Beni, Madre de Dios e Iata eram rotas de trânsito, portas de
entrada franca para o Brasil. O núcleo de Abunã situava-se na foz do rio Abunã com o
Madeira, porteira escancarada ao país vizinho. Considerados pontos estratégicos para a
defesa do território, esses locais foram escolhidos sem levar em consideração a fertilidade
das terras, que foram sequer mencionadas. O núcleo de Poço Doce foi implantado, no dia
17 de Agosto de 1932, próximo à Guajará Mirim entre os km 338 e 346, da EFMM, em
ponto estratégico para a implantação da colônia agrícola, movimentada via de acesso ao
lado “brasileiro”. A descrição contida em 1932 é idêntica à do decreto.65 O decreto
permite avaliar a continuidade do modelo de “ocupação” por meio de colônias.
Pinto66 ressaltou a criação das colônias agrícolas, como ações relevantes para a
criação do território. Traz-nos elementos reveladores do contexto social e de sua visão de
historiador:

As realizações que estavam sendo efetuadas em Rondônia (sic), com a criação de contingentes
militares para instalar colônias agrícolas, escolas, campos de pouso e estradas, demonstravam que o
projeto político da Revolução de 1930, pelo menos nessa região, estava sendo executado. Núcleos de
agricultores haviam sido instalados ao longo da Estrada de ferro Madeira Mamoré, nos lugares
Iata, Poço Doce, Jaci-Paraná e Abunã, bem como ao longo da rodovia Amazonas-Mato Grosso,
entre os quilômetros 8 e 13, e mais adiante, no cruzamento do rio Candeias.

O Ten. Aluízio Ferreira, Chefe do Distrito Telegráfico e Diretor da EFMM, estava


subordinado à política nacional. "O ministro da fazenda encaminhou ao ministro do trabalho uma
carta do major Juarez Távora solicitando à presidência recursos à disposição do Amazonas para localizar
os desoccupados nas colônias agrícolas." 67
Os núcleos agrícolas eram a saída para o extrativismo na década de 30. Os preços
da borracha não compensavam os custos. A agricultura, baseada na pequena propriedade,
baixaria os custos de produção e garantiria uma oferta estável de mão de obra fixada a

64 FERREIRA, Ten. A. Em Prol do Guaporé. Memorial enviado ao Gal. Rondon Belém do Pará, 18/02/1929.
65 “A Exposição apresentada pelo Cap. Aluízio Ferreira traz inestimáveis benefícios à região”. ALTO MADEIRA.
Porto Velho, 31 de julho de 1932. Primeira Página.
66 PINTO, Emanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território de Guaporé, fator de Integração Nacional. Rio de

Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. Pinto foi correligionário do Cap. Aluízio Ferreira, eleito em 1946 como o primeiro
deputado federal constituinte do Território Federal do Guaporé com largo apoio das classes dominantes. O autor foi
seringalista, jornalista, empresário e político apoiava- e apoia atualmente via historiografia- as ações militares e
governamentais de seu ex-padrinho político.
67 “Transcrição Jornal do Commércio de Manáos”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 10 de julho de 1932.
41

terra. A visão das classes dominantes ia ao encontro da política de ocupação de Vargas,


interessado no apoio das oligarquias regionais.
O Estado Novo sistematizou a organização dos núcleos coloniais definindo normas
para a localização de núcleos agrícolas, que “deveria estar em ponto próximo de centro de população
servida por estradas de ferro, rodovia ou companhia de navegação." 68 Foi editado, em outubro do
mesmo ano, decreto dispondo sobre os planos de colonização dos Estados e Municípios69,
estabelecendo os critérios e a localização das áreas. A centralização da distribuição das
terras nas mãos do Conselho de Segurança Nacional foi legitimada pela “ordem
estratégica” explicitada no art. 5º. A competência atribuída ao Conselho de Imigração e
Colonização e às repartições estaduais e municipais não prejudica a do Conselho de Segurança
Nacional, nos casos que lhe são reservados. Em seguida, o decreto-lei 6.ll770 previa a disciplina e
ordem nas colônias em moldes militares. Os administradores centralizavam o poder de
expulsão dos colonos, subjugando-os ao clientelismo político. A ocupação, por meio de
núcleos agrícolas, era uma das estratégias para o controle militar de fronteira:

... O contingente de Porto Velho tem a seu cargo a construcção e a conservação da rodovia de
penetração "Amazonas-Matto Grosso", ... foi justamente para intensificar os trabalhos rodoviários,
que o Contingente de Porto Velho, por aviso n.º 207, de 21 de marco de 1934, teve o seu
effectivo augmentado, na fusão com o Contingente de Linhas Telegráficas. ... Objetiva essa
estrada de rodagem attrahir, pela rapidez de transporte, a colonização em extensa faixa
territorial quase deserta e em terras fertilíssimas ... Além da construcção da rodovia, o
Contingente de Porto Velho auxilia o desenvolvimento do Núcleo Agrícola local, installado no kilometro
9 da estrada de rodagem. Nelle estão estabelecidas 25 famílias de patrícios egressos dos seringaes, em
lotes de 25 hectares, tendo cada uma dellas recebido uma lavoura de 03 hectares em estado de
producção e uma barraca de feitio regional, para moradia.71

Acrescente-se que o Contingente de Fronteiras de Porto Velho havia desbravado


uma área de 50 hectares. Com o apoio do Contingente de Porto Velho, houve significativo
aumento na produção, cujo resultado permitiu a aquisição de máquinas para uma pequena
usina de açúcar, álcool e farinha de mandioca. A proteção à agricultura assemelhava-se a
um ensaio de economia dirigida aos moldes da economia planificada. A deficiência alimentar
era um dos problemas mais graves para a ocupação das fronteiras, fator que diminuía a
resistência física dos habitantes. “E foi por isso que o recrutamento para os Contingentes se procedeu,
entre a população aclimatada.” Só com os habitantes adaptados ao meio, foi possível a

68 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-Lei n° 2009 de 09 de fevereiro de 1940. S. Paulo, LEX Editora S.A., 1964.
69 LEGISLAÇÃO FEDERAL.. Decreto-lei n° 2681. Dispõe sobre os planos de colonização dos Estados e Municípios.
07/10/40. S. Paulo, LEX Editora, 1.964.
70 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei n.º 6117. Regula a fundação dos Núcleos Coloniais e dá outra

providências. 16/12/43. S. Paulo, LEX Editora, 1.964..


71 FERREIRA, Cap. Aluízio. Relatório enviado ao comandante da 8ª Região Militar. 28 de setembro de 1935.
42

construção de rodovias e núcleos agrícolas. Concomitante à ocupação agrícola deveria


ocorrer a ocupação militar para dar o devido apoio à empreitada.
Neste sentido, para garantir a “ocupação” da região, foram criados três
contingentes militares de fronteira em locais estratégicos. O Ministério da Guerra, pelo
aviso n.º 532, determinou que “a creação de contingentes de forças federaes [seria] nas cidades de
Porto Velho, Guajará Mirim e Forte Príncipe da Beira, todos, porém comandados por oficiais".72 Desse
modo, o Ten. Aluízio Ferreira reuniu em suas mãos o poder quase absoluto sobre o
território. A partir do controle político como Delegado do Governo, das comunicações
como Chefe do Posto Telegráfico e do transporte como a Diretor da EFMM, além do
controle militar como Inspetor dos Contingentes Especiais de Fronteira.73
Os contingentes de fronteira foram o meio de atingir três objetivos: 1) vigilância da
fronteira por meio de destacamentos; 2) a ocupação por minifúndios instalados na orla
destes contingentes, utilizando soldados, oficiais, trabalhadores e colonos com as suas
respectivas famílias; 3) “ocupação racional ordenada” do espaço e dos recursos. A opção
pelos minifúndios garantiria o cordão de isolamento nacional, realizado pelo povoamento,
e, liberaria outras áreas para o extrativismo.
O argumento do “baixo custo” justificava, para a opinião pública, os investimentos
na região. Segundo os militares, a administração por oficiais e soldados dispensava as
estruturas burocráticas, economizando os recursos. Os pelotões, consequentemente os
próprios consumidores da produção, propiciariam as condições para apoiar a pequena
produção, por meio da abertura de núcleos agrícolas com vias de escoamento, da
construção de casas para os colonos, e da prestação de serviços médicos e educacionais.
A ação das forças armadas desarticulara politicamente as oligarquias regionais do
Norte, colocando-as cada vez mais em torno de sua órbita, centralizando os recursos dos
Ministérios da Guerra e Agricultura. Prática que significou o fortalecimento das forças
armadas na disputa por recursos federais, em detrimento das elites regionais.
O objetivo era a criação de núcleos populacionais, conjugando produção agrícola
com destacamentos militares. Constituíram núcleos, atraindo os pequenos produtores,
estimulando as trocas, de modo que a colonização agrícola cruza-se com a “relevância” das
fronteiras e o seu “povoamento”. Nesse sentido, os núcleos coloniais significavam
segurança e soberania por meio da “ocupação” ordenada da região.
Os contingentes foram formados por “voluntários” incorporados na região. O
aviso ministerial n.º 518, de 23 de setembro de 1932, criou três Contingentes Especiais de

72 PINTO, Emmanuel P. Rondônia Evolução Histórica. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. grifos meus.
43

Fronteira: o de Porto Velho, composto de um 2º Sargento, dois cabos e trinta soldados; o


de Guajará Mirim; com um 2º sargento, dois cabos e trinta soldados e o de Forte Príncipe
da Beira, com um 2º sargento, dois cabos e quinze soldados, todos comandados por
oficiais comissionados. Em Porto Velho, assumiu o 2º Ten. Zeno Ferreira, e em Guajará
Mirim, o 2° Ten. Manoel Cassiano de Lima.74
O Cap. Aluízio Ferreira, em 1936, em relatório enviado ao comando da 8ª Região
Militar em Belém, focou seus argumentos na questão da segurança das fronteiras por meio
da defesa pelos guardiães estacionados. Aos militares, cabiam os trabalhos de natureza
“social”; abertura de estradas, e de núcleos agrícolas, plantio, saneamento, construção de
prédios federais, de casas para técnicos, de hospitais e de escolas. O relatório explicava os
objetivos dos contingentes e de suas localizações:

A grande faixa fronteiriça, delimitada pelos rios Abunã, Madeira e Guaporé, desbravada e
povoada de longe em longe exclusivamente pela iniciativa particular, jazia abandonada às endemias
regionais, sem assistência médica, sem cuidados hospitalares, exposta às incursões de aventureiros, aberta aos
assalto ao contrabando, sem policiamento. Do lado boliviano, caracterizando-o, estavam estabelecidas
guarnições militares em Cobija, no rio Acre; em Manôa, na confluência dos rios Abunã e
Madeira; em Riberalta, no rio Beni; em Villa Bella, na confluência dos rios Beni e Mamoré; em
Guayaramerin (Puerto Sucre), no rio Mamoré e defrontando a cidade mattogrossense de
Guajará Mirim, ponto terminal da Estrada de Ferro Madeira Mamoré; no Fortim da Orquilla,
no rio Machupo, affluente da margem esquerda do Guaporé. Do nosso lado, só as ruínas
cyclopicas do Forte Príncipe da Beira, para attestar pelos annos afora, o vigor dos nossos
antepassados e a sua extraordinária perspicácia no delimitar a terra conquistada. ... a localização
dos contingentes obedeceu ao critério de estabelecimento em localidades que lhes permitissem, pelas facilidades de
transporte e comunicações e pelos benefícios da civilização, o desempenho da dupla missão que lhes incumbe. Os
de Porto Velho e Guajará Mirim, estão situados nos pontos inicial e terminal da ferrovia
"Madeira-Mamoré"; o do Forte Príncipe da Beira, demora no terço inferior do curso do rio
Guaporé, deserto, até a data de installação do Contingente, pelas incursões e ataques dos ferozes
índios "Mores", mas pacificados desde setembro de 1933. ... Meu parecer é que ainda há duas
localidades que necessitam ser guarnecidas: a villa de Presidente Marques, que é a mesma
estação de Abunã, da Estrada de Ferro Madeira Mamoré e a velha cidade colonial de Villa Bella
de Matto Grosso. Presidente Marques fica em terreno firme, trez milhas a montante da barra do rio Abunã,
que é boliviano na margem direita. O Abunã já foi famoso pelos crimes alli praticados contra a vida
e a propriedade. ... O contrabando, porém, é instituição radicada. O que desce pelas águas do
rio é consignado de procedência boliviana, acreana ou amazonense, conforme o valor das
pautas do fisco estadual, federal ou extrangeiro. ... O descaso dos governos de Matto Grosso e
do Amazonas pela região, é absoluto. A localisação de um Contingente de fronteira, em Presidente
Marques, seria útil. ... Villa Bella, no alto Guaporé, antiga capital da província de Matto Grosso
abandonada e ficando a localidade habitada quase que exclusivamente por negros. ... Não
existe [alli] hoje, senão ruínas e o remanescente de uma população negra, attestando o antigo
fastígio da decantada Villa Bella, população que se vinga dos horrores da escravidão, dormindo
e vivendo na madraçaria há quase dois séculos. Villa Bella a dois passos da linha de fronteira, está
em completo abandono. ... A organização de um Contingente militar em Villa Bella, com effectivo igual
ao do de Guajará Mirim e subordinado ao comando da 8ª Região Militar, viria remediar, com
immensas vantagens, os males apontados. ... Providência elementar, indispensável e urgente, é a
creação immediata de uma colônia militar no Forte Príncipe da Beira. Esse estabelecimento não só
marcaria, com a sua creação, um padrão de soberania para a nossa fronteiras, como seria também a

“A creação de contingentes federaes”. ALTO MADEIRA. 21 de Setembro de 1932, Pg. 2.


73

MENEZES, Esron P. Forças Militares do Exército em Rondônia. Apostilados do autor. Centro de Documentação em
74

História de Rondônia/Secretaria de Cultura Esporte e Turismo- CDHR/SECET.


44

sentinella e garantia das colônias agrícolas que se fundassem e da assistência e protecção á


população aborigene.75

A dupla missão dos contingentes seria a de manter a vigilância sobre a faixa


territorial de fronteira e a soberania sobre as fronteiras com a Bolívia, o território do Acre
e o Amazonas. Os Contingentes de Fronteira foram estacionados em pontos estratégicos.
O Contingente de Forte Príncipe controlava o fluxo dos rios bolivianos Machupo, Baures
e Itonamas, tributários do Guaporé. O Contingente de Guajará Mirim controlava a foz do
Mamoré, vindo do interior da Bolívia, juntando-se ao Guaporé, ao Beni Madre e ao de
Dios, desaguando no Mamoré. O Contingente de Porto Velho estacionou no ponto inicial
da ferrovia, controlando o fluxo de mercadorias e pessoas neste entreposto.
Concomitante à criação destes, solicitou ao Comandante da 8ª RM a instalação de
outros contingentes em Presidente Marques - e outro em Vila Bela, distante 25 dias de
Guajará Mirim- onde instalou a colônia agrícola de Abunã para garantir a ocupação desse
delta divisor com a Bolívia, o território do Acre e a bacia do Purus no Amazonas. Os
pontos escolhidos demostram a intenção de controlar o tráfego de pessoas e mercadorias
das nascentes do rio Guaporé até Porto Velho, ponto inicial da navegação à jusante do rio
Madeira.

FERREIRA, Cap. Aluízio. Relatório enviado ao comandante da 8ª Região Militar. 28 de setembro de 1935. pp. 01-5 e 9-11.
75

Arquivo do CDHR/SECET-RO.
46

Esta mentalidade estratégica de ocupação se estendeu até a criação do território em


1943. Através do decreto-lei n.º 135176, o parágrafo único apontava o objetivo das colônias
a serem implantadas: criar núcleos de população nacional nos trechos das fronteiras situadas defronte
das zonas ou localidades prósperas de país vizinho, bem como nos daquelas onde haja vias ou facilidades
de comunicação (rios navegáveis, estradas ou campos) que dêem franco acesso ao território brasileiro. O
decreto confirmava as sugestões propostas pelo Cel. Inspetor de Fronteiras, Manoel
Alexandrino, inclusive os locais indicados para a instalação de colônias.
A organização e a administração seriam competência dos militares e pressupunham
um contingente militar para vigilância da fronteira e policiamento da colônia. Deviam ser
criados os seguintes serviços: colonização, saneamento, hospitais, estocagem, escolas e
assistência técnica na agricultura, pecuária e mineração. O administrador [chefe militar]
centralizava o comando dos colonos militares; reservistas do Exército, da Armada, dos
Corpos de Polícia e Bombeiros; além destes foram contemplados os flagelados, os índios,
os funcionários civis e pessoal extranumerário, estavam todos sujeitos ao regime da
colônia. Reforçando o regime militar, os civis eram obrigados a freqüentar cursos de
"Formação de Trabalhadores", com as seguintes finalidades: “ desenvolver as condições físicas dos
trabalhadores; familiarizá-los com os serviços coloniais, adaptando-os às atividades que escolherem ou lhes
forem destinadas. Outro parágrafo explicitava outras intenções e projetos: “Serão
incorporados de preferência, os colonos que precisarem ser submetidos a regime profissional e
disciplinar”.
As ações objetivavam instrumentalizar a “ocupação” das fronteiras de forma
ordenada, à manu millitare, da caserna às raias da “nação”. O administrador era o chefe
supremo, e organizava os núcleos igual a um destacamento militar. Não havia a menor
possibilidade de organização dos colonosem associações e cooperativas, porque o
Ministério da Guerra centralizava a tutela sobre as colônias.77
A outra missão foi a garantia ao “povoamento/invasão”, por meio dos "serviços
sociais", na construção da infra-estrutura e proteção aos colonos, soldados e índios
agricultores. A sua prática objetivava a fixação e localização dos povos indígenas e
caboclos como trabalhadores nacionais, seguindo as orientações do positivismo

76LEGISLAÇÃO FEDERAL.. Decreto-lei n.º 1351 de 16/01/1939. S. Paulo, LEX Editora SA, 1964. pg. 312
77Para uma leitura dos problemas dos núcleos agrícolas ver Francisca Silva a mesma credita a falência do modelo pelo
reduzido tamanho das terras e a falta de assistência técnica e esgotamento do solo. Alcir Lenharo responsabiliza o
fracasso pela imposição de regime disciplinar[militar] imposto aos colonos e à sua dificuldade de adaptação. In op. Cit.
47

“integracionista” do SPI. 78 As justificativas “sociais” foram relevantes na exposição do


Cap. Aluízio Ferreira ao seu comandante. Segundo ele, os contingentes militares se
constituíam em embriões de desenvolvimento e apoio à “ocupação”: demarcação dos
minifúndios, instrução, saneamento, comunicação e transportes. Justificava a atração e
fixação das populações caboclas para evitar o êxodo e garantir a mão-de-obra para os
seringalistas , também, para garantir a “nacionalização” das fronteiras:

Por outro lado, urgia providência que, se não evitasse, pelo menos attenuasse, o
despovoamento alarmante da zona, ... víamos, quotidianamente, os últimos rebutalhos dos
nossos patrícios, abandonarem, num verdadeiro êxodo, os aldeiamentos que em épocas mais
prósperas, construíram ao peso de mil sacrifícios. ... que o recrutamento fosse feito na região de
estacionamento, visando aproveitar a população aclimatada. ... os trez contingentes
auxiliam os serviços regionaes de communicações e transportes, de par com a disseminação da
instrução e trabalhos de saneamento, ... fixando definitivamente a posse da terra e
attenuando, senão evitando, a infiltração da língua, usos e costumes do pais visinho..79

A rodovia Amazonas-Mato Grosso, exemplo do "serviço social", era uma moeda


política forte. Graças ao “povoamento”, por meio da colonização agrícola, e à
“necessidade” de “ocupação”, o Contingente Especial de Fronteira de Porto Velho teve
seu efetivo aumentado para cem soldados em 1938. O objetivo foi dirigir a ocupação
econômica, aldeando os vários povos às margens da fronteira, reforçando a prática
“saneadora” do espaço. Nos núcleos de maior concentração de “civilizados” (caso das
vilas às margens da EFMM, de Guajará Mirim a Porto Velho propensas aos conflitos
interétnicos), a consolidação destas áreas “amansadas” se deu pela criação de infra-
estrutura na educação, saúde, comunicação e transporte para o escoamento de matérias
primas, criando as bases para a ocupação “civilizada”, mantendo o controle das terras na
faixa de fronteira.
A má fama de insalubridade do extremo oeste amazônico percorreu o Nordeste à
“boca pequena”, tornando impossível o “povoamento” com soldados e trabalhadores
daquela região abastecedora de mão-de-obra barata para o sul e para o norte.80 A
circunscrição compulsória e o engajamento no Exército, foram as estratégias para a
ordenação espacial das populações caboclas. A arregimentação da população “aclimatada”
atenuou a evasão dos colonos, caboclos e soldados. Neste período o SPI passara ao
Ministério da Guerra, a cúpula das Forças Armadas queria a “despolitização” dos praças
diante das “divergências ideológicas” internas às instituições militares. A saída foi a criação

78 PINHEIRO, Niminon S. VANUÍRE – Conquista, Colonização e Indigenismo: Oeste Paulista 1912-1967. Assis, UNESP,
Tese de Doutorado em História e Sociedade, 1999. Para uma leitura entre as similaridades com outras regiões ver
especificamente o capítulo “Bugreiros e militares na conquista dos territórios indígenas” op. cit. Pp. 79-114
79 FERREIRA, Cap. Aluízio. Relatório enviado ao comandante da 8ª Região Militar. 28 de setembro de 1935.
48

do cidadão-soldado, cada “brasileiro” seria um militar de reserva treinado para o combate


no caso de conflito.
Segundo Lima, este momento de aproximação e de maior incorporação de militares
ao SPI foi gerado pela concepção de nação das FA. Esta deveria ser preparada para o
envolvimento na defesa nacional. O Gal. Manoel Rabelo, porta voz do grupo do Gal.
Rondon, foi o articulador junto ao Gal. Góis Monteiro para a passagem do SPI à pasta da
Guerra. A circunscrição de caboclos e índios no papel de guarda de fronteiras foi um
pequeno passo.81
Na conferência de 1936 na Sociedade de Amigos de Alberto Torres, o Cap. Aluízio
Ferreira justificou aos militares presentes e demais autoridades ministeriais que "O critério
da localização desses contingentes, visa principalmente a caracterização da fronteira, objetivando ainda a
protecção da população indígena, largamente disseminada alli." 82 Os contingentes viriam a dar o
amparo necessário em termos de saúde e segurança à radicação tanto dos colonos,
soldados agricultores e índios na fronteira do país. A “proteção” aos índios era capital
político nas mãos das elites militares, dos comerciantes e seringalistas mas, sua
preocupação de fato, era a “falta de braços” dos egressos dos seringaes fixados nos núcleos
agrícolas.
Bigio83 observou que o SPI, comandado por militares, foi criado com o intuito de
reverter o cativeiro do seringal ao qual os vários grupos estavam submetidos. Esse foi o
resultado da ocupação da região de Príncipe da Beira pelos Contingentes transformando
os “ferocíssimos” Morés e índios “pacificados”, desde 1933. A mesma situação repetiria-se
com a instalação da colônia agrícola do Iata na foz do rio Yata, território ocupado
tradicionalmente pelos povos Oro Wari (Pakaás Nova), Arara e Kawahiwa (Karipuna)
antigos habitantes em constante conflito com os colonos e trabalhadores da ferrovia.
Conforme Silva84 a colônia agrícola de Arara formada de 20 famílias foi dizimada por
grupos que ela não conseguiu identificar. Os militares à exemplo dos seringalistas
“amansavam” a terra e colocavam os colonos na frente de batalha com os antigos
ocupantes/invadidos, mantendo acirrados os conflitos na região:

80 FREITAS, Liége de. O poder arregimentador do Estado. Assis, UNESP, Dissertação de Mestrado em História e
Sociedade, 2000. Para uma leitura mais aprofundada do imaginário nordestino a respeito da região.
81 LIMA, Antônio C.S. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes,

1995. Ver o capítulo “Nacionalização das Fronteiras”, pp. 266-285.


82 “Interessante conferência do cap. Aluízio Ferreira na Sociedade dos Amigos de Alberto Torres.” ALTO MADEIRA.

Porto Velho, 05 de abril de 1936.


83BIGIO, Elias dos S. Linhas Telegráficas e Integração de Povos Indígenas: As estratégias Políticas de Rondon (1889-1930).

Brasília, Dissertação de Mestrado em História Política e Social do Brasil/UnB, 1996. Pp. 127.
84SILVA, Francisca A. Informação baseada em comunicação pessoal mantida em 08 de agosto de 2002.
49

É muito viva na memória dos Ururam Tchen, uma das linhagens dos Pakaa-nova, os
ataques não só aos seringueiros mas também a Estrada de Ferro Madeira Mamoré e, a
população da região diz que para reprimir os ataques dos índios à estrada de ferro a
Companhia eletrocutava os trilhos.
Assim podemos concluir que a estrada Madeira-Mamoré, que não só matou muitos
Homens Brancos mas, também como todo empreendimento na Amazônia, contribui para o
aniquilamento dos índios.85

O “humanitarismo positivista” foi trágico, os relatórios militares que pesquisei


silenciam sobre a escravização de nações inteiras nos seringais do rio Guaporé, do rio
Colorado, do rio Branco, do rio Negro Ocaia, rio Cautário, São Miguel, Cascata, Machado,
Corumbiara, Pimenta Bueno, Apidiá, Jamari, Candeias, Roosevelt antes ocupados por
populações paulatinamente dizimadas por “expedições” de seringalistas. O povo Oro Win
foi vítima destas “justas vinganças”. A justificativa alegada pelos seringalistas foi a ferocidade
dos índios contra os seringueiros:

“O primeiro massacre relatado ocorreu nos anos 40 nas proximidades da Aldeia SãoLuiz.
Ele foi realizado pelos dois irmãos seringalistas João e Luiz Danta que alegavam que os índios
flechavam os seringueiros. Muitos índios morreram e os que sobreviveram se afastaram. .. O
segundo massacre ... foi no igarapé Teteripe no seringal do Alkindar que era dono do alto
Cautário... O terceiro ocorreu na cabeceira do rio Pacaa Novas, organizado pelo seringalista
Manoel Lucindo da Silva.”86

Os seringueiros espoliados pelos seringalistas, foram transformados em vítimas dos


índios e, muitas vezes, usados como seus algozes. O regime de castigo impostos ao
seringueiro como o tronco, vivendo isolado e vigiado pelos jagunços, foi esquecido. As
“expedições” de jagunços e seringueiros organizadas pelos seringalistas tinham requintes
de perversidade: índias grávidas “tiveram suas barrigas abertas e crianças de peito atiradas para o
alto e aparadas na ponta de terçados.”87 Os “sobreviventes” [homens adultos] eram geralmente
levados como escravos aos seringais, reatualizando as práticas dos bandeirantes e capitães-
do-mato88, contando muitas vezes, com a assistência de índios aculturados (caboclos).
Essa prática de aproximação e “pacificação” de grupos indígenas se configura
como uma “guerra de conquista”, comportando todos os elementos de sua estrutura,
sendo utilizada em diferentes momentos e regiões; Segundo Lima essa guerra prevê que

85 SANTOS, Omar Landi. Pakaás Nova. Campinas, Unicamp, Monografia , 1980. O autor foi chefe do Posto de Pakaás
Nova. Seu trabalho tem mais tom de denúncia, sem pretensões teóricas.
86 -Conselho Indigenista Missionario- Regional Rondônia. PANEWA ESPECIAL. Porto Velho, Abril de 2002. pp. 56-

58.
87 Conselho Indigenista Missionario- Regional Rondônia. PANEWA ESPECIAL. Porto Velho, Abril de 2002 pp. 57.
88 BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. S. Paulo, Brasiliense, 1985. Empresto o conceito de história

enquanto reatualização alegórica do conflito do presente em “Sobre o conceito de História” .


50

... parte dos povos nativos, cujos territórios são invadidos por organizações militares
conquistadoras, a elas devem se aliar/fundir, tornando-se integrantes dos seus efetivos,
maximizando as forças invasoras. ... Deve-se, contudo, ressaltar...a multiplicidade de formas de
escravidão.
... a história imortalizou os “Joãos Ramalhos” e “Caramurus”... a partir do SPI
encontram-se relatos da pacificação dos Kaingang, ..., unânimes em qualificar de heroína a índia
Vanuíre, vinda do Paraná para atuar junto aos “pacificadores”...
A conquista implica em fixação de parte do povo conquistador nos territórios adquiridos
pela guerra. Este processo se amplia após a vitória militar, configurando um maior afluxo de
população originária das unidades sociais invasoras. Tal envolve o desdobramento da
organização militar conquistadora em uma dada forma de administração, para gerir a
exploração sistemática do butim, e a transmissão de alguns elementos culturais e valores
principais do invasor. ... melhor seria , pedindo licença ao arsenal psicanalítico para o uso de
uma analogia, vê-la gerada por uma guerra sublimada, presente a retórica, ausente a violência da força
física.89

O Cap. Aluízio Ferreira não expôs no discurso proferido no Rio de Janeiro, a


conflituosa realidade do processo “civilizatório” na região do Madeira-Guaporé,
gerenciada pelos militares. Porta voz do governo federal no projeto de incorporação das
fronteiras ele contava com o apoio da classe dominante local. Confirmou-se o discurso
positivista da construção das raias da “nação” pela ação “civilizatória” na Sociedade
Alberto Torres.90
A colonização agrícola foi uma prática para atender as necessidades dos
seringalistas com o discurso levemente “maquiado” de atração de trabalhadores rurais sem
terra. A preocupação com a “ocupação” foi recorrente nos discursos e projetos, porém os
interesses eram imediatos e focalizados para as classes dominantes. Ainda foi uma
tentativa de resolução de vários problemas. Primeiro uma saída para os conflitos entre os
índios e os posseiros, seringueiros e seringalistas. O Ten. Aluízio Ferreira, Chefe do Posto
Telegráfico via a "destribalização” como a única forma de “proteger” os indígenas aos
moldes do SPI. A sobrevivência dos índios seria possível pela sua aculturação, impondo-
lhes uma função social e enquadrando-os na estrutura social no papel de colono-soldado.
O extrativismo nos postos de atração de Pakaás Nova e Três de Maio, no rio Mamoré, era
realidade desde 1925. Os encarregados de posto “incentivavam” os índios à exploração da
castanha e da borracha, mais tarde com a alta da borracha os encarregados se tornaram
seringalistas esbulhando as terras em torno dos postos do SPI. 91

89 LIMA, Antônio C.S. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes,
1995. Especificamente o capítulo 1- A Conquista como modalidade de Guerra. Pp. 44-63.
90 PINHEIRO, Niminon S. VANUÍRE – Conquista, Colonização e Indigenismo: Oeste Paulista 1912-1967. Assis, UNESP,

Tese de Doutorado em História e Sociedade, 1999. Em relação ao SPI e os militares na “pacificação” e “integração” do
índio à nação ver este trabalho, ainda sobre a expansão do capital sobre as áreas dos kaingang no centro-oeste paulista.
Pp. 79-114.
91 PROCESSO CRIME n.º 11/49. Indiciado João Freire de Rivoredo. Comarca de G. Mirim. 14 de abril de 1945.

Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. .


51

Por outro, era uma forma de ordenamento do espaço promovendo uma “faxina
étnica e genocida”92 em áreas abastadas de matérias primas e riquezas minerais. O
procedimento de deslocar os povos dessas regiões e treiná-los como sentinelas, mostrou-
se um método eficaz para os militares com seu projeto de “ocupação”. Os índios
desarticulados enquanto etnias e culturas foram “integrando-se” como colonos e soldados
na fronteira. A prática do reordenamento das terras indígenas estava “naturalizada” nesse
período. Rondon, ao aceitar a Direção do SPI, descreveu ao Ministro da Agricultura a
mudança dos índios Paresí para outras terras, na tentativa de torná-los criadores de gado,
de modo que não precisariam mais caçar; era o prelúdio do ordenamento espacial na
região, liberando as terras originárias do povo Paresí.93 Assim, o Delegado de Vargas
ressuscitou, a reunião das etnias sobreviventes dos vales dos rios Branco, Colorado,
Corumbiara, Mequens, Sotero, Pakaa Nova e outros, no Posto do SPI “Ricardo Franco”,
próximo ao Forte Príncipe da Beira no rio Guaporé.
Segundo Meirelles94 a construção da fronteira do Guaporé por meio do aldeamento
de índios foi uma experiência implementada no século XVIII pelo Marquês de Pombal. As
diferentes temporalidades, contextos históricos e abordagens de cada período impedem a
comparação dos dois momentos, porém indicam a semelhança e reapropriação de práticas
em um outro contexto histórico. As coroas ibéricas, diferentemente dos militares
positivistas, viam o índio como vassalo, nações vassalas em seu hábitat natural. Mantinham
os índios nos espaços sem tê-los como escravos, e sim “ como guardiães naturais da fronteira”.95
Para a autora, a significativa mudança em relação aos índios do Vale do Guaporé se deu
com a exploração da borracha. Os índios, a partir daquele momento, passaram a ser
considerados empecilhos ao desenvolvimento da economia extrativista e as suas terras
passaram a ser disputadas pelo seu alto “valor de uso” adquirido pela demanda de
borracha gerada nas indústrias dos países centrais.
Entre indas e vindas, a política federal de colonização das fronteiras estava sendo
gestada. O Chefe do Posto Telegráfico equacionou os conflitos em terras indígenas com a
estratégia de “ocupação ordenada” e soberania militar. Por meio de uma ação resolveu
dois problemas interligados simbioticamente. “Protegendo” os índios, garantiu a
“povoação” do interior dos vales e defendeu as fronteiras. O Ten. Aluizio Ferreira
preocupava-se com a “ocupação” da fronteira com a Bolívia. O projeto era transformar os

92 PRADO, Eduardo. Eu vi o Amazonas. R. Janeiro, Dep. Imprensa Nacional, 1952.


93
BIGIO, Elias dos S. Linhas Telegráficas e Integração de Povos Indígenas: As estratégias Políticas de Rondon (1889-1930). Brasília,
Dissertação de Mestrado em História Política e Social do Brasil/UnB, 1996. Pp. 158.
94
MEIRELLES, Denise M. “Exército de Índios: De Gentios à Vassalos” in Guardiães da Fronteira– Rio Guaporé, Século
XVIII. Petrópolis, Vozes, 1989. PP 141-152.
52

índios em “soldados agricultores” “preservando-os fisicamente”. A “integração” dos


“primitivos”, na visão positivista, era o supremo e honroso objetivo. A manutenção de seu
modo de vida feria os “ideais” de civilização no “deserto” de Levi-Strauss. A cultura
autóctone foi encarada como quisto de atraso que não merecia ser preservada.
“Ignoravam” os desdobramentos do etnocídio praticado levando à extinção da cultura e
ao genocídio completo dos indivíduos e dos povos indígenas.96
No discurso era visível parte da “bem intencionada” tutela sobre as nações
indígenas. Porém, deu ênfase à soberania, à ordem, ao abandono das fronteiras, à
criminalidade e ao contrabando. No modelo militar da ordem social baseada na hierarquia
e disciplina do Exército,97 os índios tinham de ser “organizados” com hierarquia e
disciplina rígida do preparo militar e dos seringais. O cientista político Egon Heck em
busca da compreensão do pensamento militar, abre seu texto com o dístico do Gal.
Frederico Rondon “O índio é um soldado nato. A tribo é uma organização paramilitar”. Para o
autor, é inconciliável um regime democrático com a existência de forças armadas, pois
estas possuem formas institucionais de comando originárias de sociedades autocráticas,
baseadas na hierarquia e na antiguidade. Esse paradoxo personificado nos militares tende a
“aumentar as dificuldades quando esses outros são sociedades diferenciadas, étnica e culturalmente, ... O
pensamento militar é marcado pela idéia de segurança. Neste aspecto, a questão da segurança passa a ser
não apenas uma questão do sistema militar, mas de toda a sociedade.”98 Apesar de sua análise ser do
período recente, encontramos o mesmo arcabouço nas décadas de 30 e 40.
A “ocupação” partia dos órgãos do estado nacional na região, como o Posto
Telegráfico. Através do jornal Alto Madeira fomentaram discussões pensando as questões
pertinentes aos vales do Madeira-Guaporé. A classe dirigente expunha suas demandas em
memoriais publicados na coluna "Pelo Guaporé", representando os interesses dos
comerciantes e seringalistas.
O discurso “nacionalista”, em relação à fronteira era semelhante ao dos militares. A
oligarquia visava obter auxílios do governo federal, pois tinha pouca representatividade
junto aos governos estaduais e suas distantes capitais. Vale lembrar que as bancadas do
Amazonas ou Mato Grosso estavam distantes e que a autoridade mais próxima, era o
Chefe do 3º Posto Telegráfico - Seção Norte das Linhas Estratégicas Mato Grosso-
Amazonas em Santo Antônio do Alto do Rio Madeira. Coincidiram os interesses na

95MEIRELLES, Denise M. Op. Cit. pp. 150.


96 PINTO, Emmanuel P. Rondônia Evolução Histórica. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. pp. 129.
97 LENHARO, Alcir. Colonização da Amazônia, Nordeste e Centro Oeste.. Campinas, Edunicamp, 1984. O autor credita o

fracasso dos projetos de núcleos agrícolas ao modelo de disciplinarização militar imposto aos colonos.
53

“defesa” das fronteiras, figurada em nacionalismo. A crise estava no auge, após a quebra
da bolsa de Nova York, acentuando o “nacionalismo” das elites comerciantes e
seringalistas.
A coluna “Pelo Guaporé” remeteu a construção da “identidade nacional” à colônia.
Reviveu os mitos militares de Ricardo Franco, engenheiro “construtor” do Forte Príncipe
da Beira, nas margens do Guaporé e do governador da província Ten. Cel. Mello e
Cáceres. Assim, “heróis” do passado remoto foram ressuscitados em defesa da “nação”. A
estes foram agregados o Gal. Rondon e o Maj. Amarante, mártir/herói que veio a falecer
vítima de uma endemia, “tragado” pelo meio hostil da fronteira em nome da “civilização”.
Nessa coluna, não são mencionados as centenas de escravos, presidiários e degredados
políticos consumidos na construção destes estandartes “nacionais”. Seus calabouços (Forte
Príncipe da Beira) ironicamente conservam, em mural, o registro escrito do desespero das
“maiorias silenciosas”.
O apelo “nacional” surtiu efeito e, em 1931, o governo provisório contratou o
coronel “de barranco” Paulo Saldanha (ex-gerente dos seringais da Guaporé Rubber e
Julio Müller, subsidiárias da falida Madeira Mamoré Railway and Co)99 para explorar a
navegação do rio Guaporé. O trajeto ia de Guajará Mirim, no Mamoré, à Vila Bela de
Mato Grosso, no Guaporé, ponto final da EFMM, interligando a fronteira com a estrada
de ferro Madeira-Mamoré, a conexão para Manaus e Belém. O autor do memorial
comparou o Cel. Paulo Saldanha ao Ten. Cel. Mello e Cáceres:

E assim, o Forte erigido por Cáceres, com intuitos militares, defensivos da Capitania, que
pretendera aproveitá-lo para fins comerciais, em benefício da “Companhia de Navegação”, a
que dava irrestricto amparo do seu poderio, tornará à sua importância antiga, não mais pelo
que possa valer, como obra de fortificação, já inteiramente antiquada, sinão pela excellência do
sitio, onde se alteou, graças ao esforço de centenas de artífices, que diligenciaram argamassar-
lhe o arcabouço, por maneira a fazê-lo resistir a acção corrosiva dos agentes naturaes. As
esplêndidas condições locaes estão a reclamar o estabelecimento de um núcleo colonial, de
preferência constituído por brasileiros, que ali possam contribuir, com seu trabalho e civismo,
para impedir a desnacionalização do valle guaporeano, onde já as brizas andinas beijam a bandeira
brasileira, outrora ausente daqueles ares, em que só trimulava a boliviana.100

A exploração econômica do "coronel" Saldanha, subsidiada pela União, foi


projetada como símbolo de posse da “nação”. O poder central boliviano representado
pelas brisas andinas “já encontra na fronteira as bandeirolas brasileiras” das embarcações de
Saldanha que singravam os rios fronteiriços imbuídos de guardar as fronteiras “nacionais”.

98 HECK, Egon. Os índios e a caserna. Políticas Indigenistas dos Governos Militares. Campinas, Dissertação de Mestrado em C.
Políticas do IFCH, 1996. Especificamente o capítulo “Militares assim pensam”. Pp. 27-30.
99 TEIXEIRA, M. e FONSECA, D. História Regional (Rondônia). Porto Velho, Rondoniana, 1998. Pp. 146.
54

No discurso do jornal, estão ausentes os conflitos ocasionados pelo


“povoamento/invasão” promovido pelos seringalistas, induzindo a concluir pela
inexistência na região de “colonizadores/invasores” e nações espoliadas de suas terras.
Construções discursivas paradoxais mascaram o conflito generalizado entre patrões,
seringueiros e nações indígenas. Populações com várias formações sociais lutando em
defesa de seu habitat espoliado duas vezes, no conflito direto e sua desintegração e no
silêncio da “lacuna” temporal. Além da navegação, Saldanha havia herdado os seringais no
vale do Guaporé, principal fonte de riquezas.
O clientelismo das relações pessoais combatido antes de 1930 perpetuou-se no
"auxílio" aos governos mais frágeis. O funcionalismo do Amazonas com vencimentos
atrasados, por um ano, foi um deles. A insolvência do Amazonas atingiu 19 mil contos de
réis, reflexo da crise do mercado internacional em relação às matérias primas locais. A
política de Vargas ia de encontro às demandas das frágeis elites do norte que buscavam
apoio de militares como o Maj. Juarez Távora, que defendeu o perdão da dívida ao
Amazonas e outros incentivos, por meio de créditos da União para a exportação das
matérias-primas regionais.101
As matérias do Alto Madeira reproduziam especulações apologéticas dos resultados
dos núcleos agrícolas. Divulgava dados da produção de dez toneladas de açúcar, vinte de
arroz, cinqüenta de mandioca, toneladas de milho, feijão e demais gêneros colocados no
mercado de Guajará Mirim e Porto Velho. Em 1948 o Banco do Brasil implantou linhas
de financiamento e crédito agrícola. Porém, a ocupação por meio da colonização agrícola
foi uma realidade efêmera e contraditória ao observarmos as notas da "Agência Nacional".
O empréstimo era garantido pela safra e em última instância pela “posse” do imóvel.102
Conjuntamente às iniciativas oficiais voltadas para os colonos, havia incentivos aos
ferroviários da EFMM para sua fixação ao longo do trecho da ferrovia. A direção da
ferrovia mantinha escritórios em Manaus agenciando trabalhadores em Belém por meio da
companhia de transportes fluviais Amazon River. O título da "matéria/propaganda" era
tentador: A caminho de um "inferno verde" que offerece trabalho e conforto. Aos migrantes
destinados ao trabalho na ferrovia foi prometido: direito à assistência médica e hospitalar,

100“Coluna Pelo Guaporé”. ALTO MADEIRA. Estado do Amazonas, Porto Velho- 13/Abril/1932. Primeira página.
Acervo do Centro de Documentação Histórica de Rondônia da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado de
Rondônia daqui por diante utilizarei o termo CDHR/SECET.
101 “O Major Juarez Tavora: As suas impressões do Norte e particularmente da Amazônia”. ALTO MADEIRA.

Amazonas - Porto Velho, 08 de Maio de 1932. pg.02. CDHR/SECET.


102 SILVA, Francisca A. Uma tentativa de Colonização: Colônia Agrícola do Iata (1943-1972). Goiânia, Universidade Federal

de Goiás, Dissertação em Ciências Sociais, 1986. Conforme Francisca Araújo o Núcleo do Iata resistiu até 1972,
quando a maior parte de seus colonos resolveu abandonar as terras justamente pela falta de assistência técnica na
55

internações e remédios gratuitos, educação, plano de previdência, e terras grátis para a


lavoura, nas proximidades dos acampamentos. O objetivo de fixação à região nas raias da
“nação” se evidenciam pelas exigências feitas aos trabalhadores: todos deviam ser casados
pois aos solteiros era interditada a possibilidade;103 além disso, incentivaram a radicação
por meio da pequena produção familiar de excedentes para os mercados regionais.
O governo de Vargas no Estado Novo “regulamentou” o controle da “ocupação”
das fronteiras. O decreto-lei n.º 1164 dispunha sobre as concessões de terras e vias de
comunicação na faixa de fronteiras. A margem de 150 km reservada à colonização devia
obrigatoriamente ser revista pelo C.S.N.104 Os estados divisores de fronteiras perderam a
autonomia e jurisdição sobre suas porções lindeiras, pois estas áreas ficaram sob o controle
direto da União.
A distribuição das terras seria da seguinte forma: a) a praças reservistas do Exército e da
Marinha, ou das polícias militares; b) a militares reformados ou funcionários públicos aposentados. O
Art. 8º demonstra a preocupação com as faixas fronteiriças e a ocupação tutelada pela
União, esclarecendo os pormenores da “nacionalização” de fronteiras: c) a predominância de
brasileiros natos na razão de 80%, d) que a educação seja ministrada em língua brasileira e e)
a exclusividade do pequeno comércio e do comércio ambulante a brasileiros natos. O art. 19 tratava
da administração das áreas de fronteira, redefinindo as “concessões” feitas pelos estados e
municípios. Estas ficaram sujeitas à revisão de uma comissão especial nomeada pelo
Presidente da República, vedando qualquer negociação sobre as mesmas sem a anuência
do gabinete presidencial.
A partir de 1938 o Estado Novo impôs gradualmente uma legislação rígida em
relação às áreas de fronteira. Visou, em específico, os estrangeiros que tinham o controle
sobre imensos latifúndios na faixa de 150 km de fronteira, como os comerciantes
estrangeiros que dominavam a atividade extrativista explorada em extensas áreas devolutas
“usurpadas” às populações tradicionais. Estabeleceu a cota máxima de 20 % de agricultores
estrangeiros estabelecidos na faixa de fronteira. O decreto lei n.º 1.545 de 1939 105 no seu
art. 7º dispunha sobre as atribuições “extras” do Ministério da Guerra no controle, na
formação ideológica, reunião de informação, alistamento militar dos descendentes de

recuperação do solo. Levando a uma concentração fundiária por parte de pessoas alheias ao núcleo transformado em
pastagens.
103 “ A caminho de um "inferno verde" que offerece trabalho e conforto”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 12 de

junho de 1938. Artigo transcrito de "A TARDE" de 02 de junho de 1938,.Belém-PA. CDHR-RO/SECET.


104 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei n.º 1164 de 18 de março de 1939. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pg. 104
105 LEGISLAÇÃO FEDERAL.. Decreto-lei n.º 1545. Dispões sobre a adaptação ao meio nacional dos brasileiros descendentes de

estrangeiros. 25 de agosto de 1939. S. Paulo, LEX Editora, 1.964.


56

estrangeiros (de preferência distante dos pais), válidas para as áreas de fronteira. O decreto
regulamentava a prática cívica de estrangeiros nas fábricas, comércio e núcleos coloniais.
Em 1942 Vargas foi mais incisivo em relação aos estrangeiros, autorizando o
Ministério da Agricultura a desapropriar lotes ou “áreas de terras” onde houvesse
concentração de estrangeiros contrária ao interesse e defesa nacionais para a formação de núcleos
coloniais. O Maj. Torres Homem, Secretário da Comissão Especial de Revisão das
Concessões de Terras na Faixa de Fronteiras – CERCTFF notificou a revisão das
concessões de terras na região nos prazos estabelecidos pelo C.S.N.106 A propriedade e a
produção foram centralizadas nas mãos do C.S.N. As medidas arbitrárias abalaram os
alicerces das classes dominantes locais. O Cel. Joaquim Cesário, representante das elites
proferiu palestra tecendo críticas à política de fronteiras decretada por Vargas, condenando
a fixação de apenas 500 hectares para cada seringalista.

Esse favor em vez de consolidar na terra o ocupante dela, vem despejar violentamente velhos
moradores, e deles privar o trabalho de anos, no desbravamento da região na abertura e
colocações indispensáveis ao serviço da indústria extrativa da borracha, castanha e óleos
vegetais, única fonte de renda compensável que lhes prende à terra e garantem a
independência. ...
Se a lei federal teve o objetivo de garantir a segurança das nossas fronteiras deixando
entregue ao governo o domínio exclusivo da grande faixa devoluta, isso facultará com
melhores vantagens uma possível invasão, em terras “desertas”, desabitadas, ... 107

O Cel. Cesário se pronunciou em defesa dos comerciantes e seringalistas


estrangeiros, grandes latifundiários na faixa fronteiriça de 150 km e que não possuíam
título da terra em função das leis restritivas impostas por Vargas. Caso de Ernest Keller,
alemão, outrora Cônsul em Guajará Mirim que foi deportado e teve seus bens repassados
ao Governo do Território.108
O Cel. Joaquim Cesário não representava os colonos, com lotes de 10 à 30 hectares
e nem se pronunciava em nome dos seringueiros, que não tinham propriedade. A
exigência para o reconhecimento de posse de terra devoluta, era a comprovação do uso
como os plantios regulares, criação de animais e bens imóveis, desde 1850. Ao seringueiro
era proibido plantar, pescar ou criar animais, pois criava certa “independência” do
barracão. Também não se referia aos povos indígenas, alijados de suas terras, reduzidos
em aldeamentos nos postos do SPI de “Pacaas Nova”, próximo de Guajará Mirim, no rio

106 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Autoriza a desapropriação de lotes ou áreas de terras nos Núcleos Coloniais. DL 5.153 de 31 de
dezembro de 1942.. S. Paulo, LEX Editora, 1.964.
107 “O Homem e a Terra. Cel. J. Cesário”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 26 de setembro de 1942.
108 PROCESSO DE ALIENAÇÃO DE BENS DE ERNESTO KELLER. Guajará Mirim, 1942 Acervo do Centro

de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Cx. 42..


57

São Miguel e “Ricardo Franco” entre a embocadura do rio Mamoré boliviano e o Forte
Príncipe da Beira.
No vale do Guaporé boa parte dos seringalistas era de procedência estrangeira,
gregos, alemães, sírios, judeus, peruanos e bolivianos, formando a camada dominante da
sociedade guaporense. O seqüestro dos seringais cultivados da Malásia pelos japoneses
durante a 2ª Guerra Mundial foi a tábua de salvação das elites. O governador do território
Maj. Aluízio Ferreira tinha o apoio dos grandes seringalistas. As questões legais ficaram em
“suspenso” em nome da economia de guerra. A situação melhorou bastante para as classes
dominantes decadentes, foram ressuscitados em “novos patrões” sob a tutela do Estado
Novo.
O governo federal tentou “humanizar” a exploração do seringueiro emitindo um
pacote de leis que, aparentemente, visava protegê-lo. Imperava nas relações de exploração
uma realidade diversa: “Este é um aspecto, dos muitos, que a vida dos seringais nos apresenta, com
seus problemas complexos. As leis sociais do Brasil não conseguiram ainda sobrepujar a lei da
‘jungle’”.109 O jornalista do Diário Carioca protestava contra as injustiças praticadas pelo
Tribunal de Segurança Nacional, que apesar das provas e conhecimento das mazelas
sofridas pelos seringueiros não tomavam as providências necessárias. Nos seringais,
mesmo com a intervenção governamental, se mantinha a tradicional espoliação de índios e
seringueiros.
Desenhava-se a política de Segurança Nacional de Vargas em relação às fronteiras,
iniciando-se com inspeções às fronteiras e aos contingentes militares. O segundo passo foi
a regulamentação da faixa de fronteira de 150 km adentro. Finalmente, a criação de
territórios federais de fronteira de norte a sul. A ação de Vargas em relação à região foi em
primeiro lugar a instalação de contingentes de fronteira. Em segundo lugar, a
regulamentação das áreas de fronteira e sua “ocupação” por meio de núcleos agrícolas. Por
último, a intervenção direta pelo governo federal com a criação dos territórios federais.110
Theogenes Lima, jornalista do “A noite” fez apologia, à iniciativa de criação das
companhias militares de Vargas. Segundo ele, foi uma medida extremamente inteligente
deslocar oficiais, sargentos e soldados com suas famílias para as áreas fronteiriças.111
Excluindo as razões militares de “ocupação”, as principais “vantagens” foram para as
classes dominantes civis e militares.

“109A tragédia dos seringais”. ALTO MADEIRA.. Porto Velho, 04 de Março de 1943. Extraído do Diário Carioca.
110 “A nova divisão territorial do Brasil”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 28 de Fevereiro de 1940. Extraído do "O

ESTADO DE MATTO GROSSO". 1ª pg. CDHR/SECET.


111 “Companhias de Fronteiras”. ALTO MADEIRA. Porto Velho 30 de junho de 1940. 1ª pg. CDHR/SECET.
58

O mesmo estado de exceção imposto à sociedade nos centros do país pelo Estado
Novo, apoiado pelos militares, permitiu aos mesmos abusar de seu poder em localidades
marginais. Do início dos anos 30 até a criação do Território do Guaporé houve vários
casos de abuso e violência por parte dos militares. Foram casos de espancamento112, lesão
corporal, agressão, brigas e arruaças. Outro aspecto muito visível nos inquéritos
envolvendo militares foi a tradicional e histórica promiscuidade entre o público e o
privado. Os mesmos utilizavam-se de seu poder de violência para benefício pessoal,
reproduzindo as relações entre o Estado e os poderosos.113 Nos bastidores e na lembrança
de suas vítimas não possuíam a aura de heróis construída pela memória “oficial”.
Oblíqua e paralela, a posse dos recursos minerais não deve ser secundada. As
facções do Exército “observadores” da região Amazônica consideravam de extrema
importância a pesquisa dos recursos minerais. Conjugavam o binômio, exploração aurífera
com colônias agrícolas indígenas para garantir a “ocupação” do solo e a posse do subsolo. Em
sua concepção os minérios eram essencialmente estratégicos para a “nação”.
Rondon114 proferiu a conferência Rumo ao Oeste, na qual abordou a importância da
prospeção de ouro na região de Pimenta Bueno e conclamou à união de esforços entre os
Ministérios da Fazenda, Agricultura e da Guerra para sua exploração. O resultado foi a
formação de uma comissão de engenheiros de minas dentro da 4ª Companhia do 4º
Batalhão Rodoviário em 1940. Lima conclui que o SPI passou a ser um carreador de
verbas para além do “humanitarismo” com os índios. Dos hum mil e seiscentos contos de
réis enviados em 1942 ao SPI, trezentos e vinte e nove contos foram para a prospeção de
ouro no rio Urucumaquam (cabeceiras do Pimenta Bueno) e quatrocentos contos foram
para a rodovia Cuiabá-Vilhena.115 A fachada do SPI foi o “humanitarismo” na proteção aos
índios.
O jornal "O Estado do Pará"116 tornou público a descoberta da província aurífera
de Urucumacuan, situada entre as estações telegráficas de Pimenta Bueno e Vilhena. O
grupo interessado na exploração era representado pelos generais Manoel Rabello e
Cândido Rondon. Foi organizada em 1940 uma expedição sob o comando do major
Aluízio Ferreira, Diretor da EFMM e Inspetor dos Contingentes de Fronteira. A

112 DENÚNCIA DA PROMOTORIA DE G. MIRIM POR AGRESSÃO E ABUSO DE PODER POR MILITARES.
G. Mirim, 17 de fevereiro de 1941. Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do
Estado de Rondônia. livro I, pp. 23-24.
113 FOUCAULT, M. Microfísica do poder. R. Janeiro, Paz e Terra, s/d.
114RONDON, Gen. Cândido. Rumo ao Oeste. Conferência no DIP. Rio de Janeiro, Agência Nacional, 1940.
115
LIMA, Antônio C.S. Um Grande Cerco de Paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes,
1995. Especificamente o capítulo “Colonização, preservação e integração” pp. 286-289.
116 “Explorações auríferas no rio Urucumacuan, no noroeste de Matto Grosso”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 21

de agosto de 1940. pp. 03. CDHR/SECET. Extraído do "O ESTADO DO PARÁ" de 14 de agosto de 1940.
59

“ocupação” por meio das colônias agrícolas indígenas foi o meio de garantir a posse sobre os
minérios. Especulo se as razões para a ocupação ter sido feita por meio de colônias agrícolas
indígenas, não seria porque dessa forma aumentaria a esfera de influência do Gal.
Rondon?117 A área estava sob a jurisdição do Mato Grosso criando a necessidade de
garantir ao SPI o controle sobre a região.118 As riquezas “inexploradas” estavam sendo
disputadas nos bastidores entre as forças políticas regionais do estado do Mato Grosso e
forças armadas.
Noutro momento o progresso e ocupação foi creditado ao presidente por ocasião
de sua visita à região.119 A ideologia da "Marcha para o Oeste" veio à tona vinculando sua
genealogia à “nacionalização” da EFMM em 10 de julho de 1931. A região sem expressão
econômica e política, foi visitada pelo Chefe da “nação”. Enfatizou-se a atuação do Maj.
Aluízio Ferreira pelo seu método de “ocupação/invasão”.

A citação novamente era remissiva/genealógica das realizações na construção de


aeroportos, rodovia Mato Grosso-Amazonas, ensaios de colonização e saneamento, e na
construção de casas para operários. Buscava sobretudo “sensibilizar” o presidente para as
dificuldades da região, visando a fixação do homem à terra na “Marcha para o Oeste”.
Cobrando soluções para o crônico problema do “vazio demográfico” e da "falta de
braços" para a acumulação dos segmentos dominantes. As elites eram omissas ao
desenvolvimento e cobravam iniciativas do poder público. Para estas, a única saída para o
progresso eram os investimentos do estado. Segundo relatório do Cel. Insp. Manoel
Alexandrino:

Os comerciantes esses sim, vivem satisfeitos. Apesar de estrangeiros primam em


demonstrar grande amor ao Brasil. Mas esses sujeitos, nem individualmente, nem associados,
tomam a menor iniciativa de alcance social em benefício daquela população que para eles é
apenas um fator de trabalho e não fator econômico. Não invertem um único real em

117 PINTO, Emanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território de Guaporé, fator de Integração Nacional. Rio de
Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. O autor anexou em sua obra o manifesto do descobrimento das Minas de
Urucumacuan registrada em cartório no Rio de Janeiro em 25 de Maio de 1934. pp. 181-184 (Anexo 2).
118 PINHEIRO, E. À sombra de Rondon e Juarez. S. Paulo, Edicon, 1985. O Cel. Enio Pinheiro relatou que ao traçar a

estrada entre o povoado de Vilhena e Pimenta Bueno fez uma grande volta desviando das jazidas minerais alí
localizadas por Rondon.
119 “Presidente GETULIO VARGAS”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 11 de Outubro de 1940. 1ª pg. CDHR-

RO/SECET.
60

proveito das cidades em que vivem e onde enriquecem e nem cogitam de abandonar aquela
região.120

Duas décadas após, em 1953 o governador Cel. Ênio Pinheiro- afilhado político e
sangüíneo empossado pelo deputado federal Cel. Aluízio Ferreira- criou a Colônia
Agrícola do Bate-Estaca, no município de Porto Velho 121. A criação de colônias agrícolas
tornou-se efetiva desde a "nacionalização", estendendo-se pelas décadas seguintes, todas sob
influência direta ou indireta dos elementos militares. A produção agrícola como veremos no
capítulo 3 foi crescendo gradativamente em relação ao extrativismo. A Colônia do Iata
resistiu com os “parcos” recursos até 1972, quando foi decretado o seu golpe final com a
desativação da EFMM.122 A Colônia do Candeias se tornou “albergue” da Grande Porto
Velho e a Colônia dos Japoneses, por contar com apoio do Consulado Japonês em
Manaus, foi uma das sobreviventes.
O Regimento Interno das Colônias – RIC, foi criado em 1947 pelo Departamento
de Produção Terras e Colonização para evitar os conflitos entre os colonos e o
administrador. Redigido de cima para baixo, seu escopo era o decreto de 1939 da criação
das colônias militares.123 Este à exemplo do decreto que regulamentava as colônias
militares conferia poderes absolutos ao administrador- comandante- da Colônia indicado
diretamente pelo governador. Segundo depoimento de ex-colonos do Iata, em pesquisa de
campo junto aos remanescentes da comunidade, o administrador era cargo de confiança
do governador e detinha poderes arbitrários extrapolando à vida privada das pessoas.124
Segundo Silva, o RIC só fora criado em 1947 pelo Departamento de Produção
devido aos conflitos entre os colonos e o administrador do núcleo. Entre as proibições estabelecidas
pelo regulamento, destacava-se o impedimento para “estabelecimento de casa de comércio ou
indústria, sem prévio consentimento da Div. de Prod. Terras e Colonização. É proibido o colono ser
comerciante ou exercer outra profissão, que possa prejudicar suas atividades agrícolas”.125
Os dados do Serviço de Geografia e Estatística do Território do Guaporé,
produzidos na década de 50 permitem acompanhar as dificuldades de sobrevivência dos
núcleos agrícolas, seu enraizamento e volume de produção. Nestes dados é visível o

120. ALEXANDRINO, Cel. Manoel. Relatório Reservado da Inspetoria de Fronteiras do Estado Maior do Exército ao Conselho de
Segurança Nacional. 1938- pg.04. Arquivo do CEPEDOC-FGV- Caixa Gustavo Capanema.
121 COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Decretos dos Governos Territoriais 1944 à 1981. Porto Velho, Governadoria

do Estado de Rondônia, 1990. Arquivo da Biblioteca da SEPLAN.


122 SILVA, Francisca A. Uma tentativa de Colonização: Colônia Agrícola do Iata (1943-1972). Goiânia, Universidade Federal

de Goiás, Dissertação em Ciências Sociais, 1986.


123 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei n.º 1351 de 16/01/1939. S. Paulo, LEX Editora, 1.946. pg. 312
124 SOUZA, Sônia R. Iata: Em busca da identidade. Porto Velho, SEDUC-RO/PLANAFLORO-BIRD, 1996. O Sr. Jorge

Assunção, diretor do colégio Presidente Dutra à época da pesquisa, citou o caso de triângulo amoroso entre colonos. O
administrador expulsou os colonos e suas respectivas famílias, alegando medida disciplinar para outros colonos.
61

crescimento na relação produção/oferta da produção de arroz, batata doce, banana, cana


de açúcar, feijão, farinha, milho e mandioca, geralmente formadas por culturas anuais. A
presença de banana, coco, cana, laranja, bovinos, e aguardente são indicativos da fixação
de colonos anterior a 1943. O texto de Silva sobre o Núcleo do Iata esclarece sobre a
dinâmica das colônias agrícolas: “ ... o Governo do Território pode criar uma série de dispositivos
legais concernentes à estrutura das colônias agrícolas, que na época já existiam, mas apenas
como pequenos núcleos de cultivo agrícola de subsistência. Com os incentivos
governamentais, a agricultura do Território saiu do estágio de subsistência para o comercial126 na região.
O último registro de criação de novas colônias é de 1953, quando foi criada a Colônia 13
de Setembro (dos Japoneses) em Porto Velho.
A pesquisa de Silva focaliza-se na explicação das causas da decadência do modelo
de colônias agrícolas na fronteira, centrando seu estudo na experiência do Núcleo do Iata.
A sua intenção foi tentar compreender a dicotomia entre o objetivo do governo territorial
em desenvolver uma agricultura comercial e o assentamento aleatório sem pesquisas do
potencial agrícola da região. Segundo a autora o “cultivo num mesmo local durante três ou quatro
anos seguidos, causava diminuição na produção”. Uma das causas prováveis que foge à percepção
de Silva é que o local não era tão aleatório, e sim era ponto estratégico para o controle da
fronteira. O núcleo foi criado na embocadura do rio Yata que vinha do interior do Pando,
entrada franca para a região do Madeira.
As terras, segundo Silva, eram dadas verbalmente, os colonos tinham o “direito” de
trabalhar na terra, mas não de vendê-la. Surgem as contradições do projeto, se este visava a
agricultura comercial, quais as expectativas dos colonos em produzir sem a garantia da
propriedade da terra? Silva evidencia as questões: “A administração do núcleo era uma espécie de
intermediária entre o governo e o colono. Considera-se assim, que, nesse início de colonização, o colono era
não um proprietário de terras, mas sim um ‘empregado’ temporário do governo territorial.”127
Apesar do Departamento de Produção prever a mecanização do plantio pelo
empréstimo aos colonos, visando o aumento da produção “planejada” para o mercado, as
técnicas empregadas eram tradicionais, com a derrubada da mata com machado e depois a
queimada, plantio na enxada e a colheita manual.
O Regulamento garantia o fornecimento gratuito de sementes e outros insumos. A
partir dos anos 50 o governo passou a “vender” as ferramentas, pesticidas e sementes aos

125
SILVA, Francisca. Uma tentativa de colonização: A Colônia Agrícola do Iata (1943-1972). Goiânia, Dissertação de
Mestrado UFGO, 1987.
126 SILVA, Francisca. Op. Cit. pp. 30-33.
127 SILVA, Francisca. Uma tentativa de colonização: A Colônia Agrícola do Iata (1943-1972). Goiânia, Dissertação de

Mestrado UFGO, 1987.Pp. 59.


62

colonos. Nesta fase ocorreu outra prática que evidencia a forma de “planejamento”.
Passou-se a produzir de forma “diferenciada” nas “terras do governo” situadas no núcleo
urbano da colônia. A forma mecanizada utilizando tratores e arados na preparação do solo
era exclusiva para a atender o consumo das elites burocráticas civis e militares: “Esta
produção se destinava a atender um pequeno número de consumidores tido como especial destacando-se,
sobretudo, os funcionários públicos que desempenhavam funções de primeiro escalão no governo do
Território”128. Os colonos continuavam a produzir na base da enxada. Silva, em sua análise,
considerou os problemas enfrentados para a efetivação de um núcleo de pequenos
produtores:

Para manter o controle ... e para evitar que os colonos se sentissem no direito de
usufruir de parte desta produção, o administrador adotou o sistema de pagamento diário
[assalariamento] ao lavrador. ... É necessário ressaltar que a pretensão do D. P. ao tentar
modernizar as técnicas de cultivo na área do núcleo não significou desprezo para com os
colonos. ...
Independente da idéia de modernizar a agricultura da região, o governo continuou empenhado em
apoiar o crescimento da colônia. ...
Fora da época de colheita, a administração do núcleo coordenava uma outra atividade
econômica com fins lucrativos para o Território. Trata-se da extração de lenha e de madeira
de “lei”. Aqui, a forma de pagamento ao colono era também a de diária. ... Vale frisar que a
atividade de extração de lenha e de madeira ficava restrita somente à administração do
núcleo. ... Entende-se também, que a medida restritiva da administração sobre a extração de
madeira se fazia apenas em relação aos lucros, haja vista que as madeiras de lei, encontradas nas
áreas dos lotes de colonos eram extraídas e vendidas à administração por um preço de diária do colono.129

Observar as “práticas diferenciadas”, modernas e assalariadas visando o lucro, é


fundamental para compreendermos o sentido das colônias agrícolas para o Território do
Guaporé. As contradições entre o Regulamento que previa a organização de cooperativas
dos colonos versus a real situação de uma administração excludente e centralizada. O
investimento em maquinário para a “produção especial” do núcleo concorrendo com a
baixa produtividade do colono, com o plantio tradicional baseado na queimada e no
esgotamento do solo. Excluindo os colonos dos meios eficazes para a produção abundante
para o mercado. A marginalização do agricultor aos benefícios da tecnologia se constituiu
num dos elementos de desarticulação da produção como fator de expulsão da colônia.
Ainda segundo Silva, o governo expandiu a área de cultivo com novos
assentamentos para poder manter o ritmo de crescimento da oferta e a queda dos preços
dos produtos. A medida visava “compensar” a falta de investimentos em assistência
técnica ao colono.

128 SILVA, Francisca.Op. Cit.. pp. 96.


129 SILVA, Francisca.. Op. Cit.. PP . 97-100.
63

Aliada a esse quadro, temos a “falsa relação de propriedade” e a exploração dos


colonos pelo governo. Essa relação se evidencia na proibição de retirada de madeira de
“lei” e de lenha, no pagamento de diárias, proibindo ao colono vender a madeira, pois o lote
não era seu. O Governo do Território explorava a mão-de-obra dos colonos, de forma
predatória, visando “lucros” com o desmatamento acelerado e a expulsão dos colonos
dinâmica que resultou na concentração fundiária e na introdução da pecuária.
Sem mencionar as promessas de educação e saúde aos colonos quando, na verdade,
os médicos visitavam o posto do núcleo apenas uma vez ao ano. Além disso, o posto médico
era afastado dezoito km das linhas onde residiam os colonos. Também o escoamento da
produção era deficitário pois, no final da década de 40, apesar de ter uma produção
considerável, o Núcleo do Iata possuía apenas dois caminhões para atender cerca de 2019
habitantes, entre colonos assentados e aguardando assentamento.

Os maiores problemas enfrentados pela administração consistiam em manter a conservação


das estradas e conseguir condução para transportar os produtos dos colonos... o número de
caminhões tornou-se por demais deficiente; para fazer a feira de toda colônia, só era possível
transportar os produtos de apenas duas estradas por semana. Ainda assim, esse transporte não era
atendido satisfatoriamente; as mais das vezes ficavam cargas nas margens das estradas.
O primeiro grande impasse surgiu quando um número de aproximadamente 80 colonos ...
optaram por duas paradas do trem mais próximas de seus lotes. Passaram a se chamadas de
pontos “clandestinos” da saída de produtos agrícolas.
O segundo impasse surgiu em virtude da tentativa do administrador transferir a feira de
Guajará Mirim para o núcleo do Iata. 130

Segundo Silva a preocupação do administrador era condizente com os objetivos


“oficiais” da colônia. Exerciam controle total sobre os colonos, forma disfarçada de
exploração da mão-de-obra tratando-a nominalmente como “pequeno proprietário”. A
feira em Guajará Mirim trouxe prejuízos às elites burocráticas porque os colonos burlavam
o controle e trocavam seus produtos, por alimentos manufaturados e ferramentas
diretamente com os comerciantes. A embrionária “resistência” colidia com os interesses
da administração da colônia. Esta, para poder ter o controle quase absoluto sobre a
produção e o consumo dos colonos, mantinha estoques de alimentos enlatados, charques e
ferramentas para “revenda”, e aí podemos acarear a proibição do comércio contida no
RIC de 1947 com estes mecanismos de controle.
O governo “comprava” todos os produtos da colônia e fixava o preço bem abaixo
para os colonos e os “revendia” aos comerciantes de G. Mirim, aos seringalistas e aos
comerciantes bolivianos. O governo era o “atravessador oficial” do negócio sem investir
em insumos para melhorar a produção. Aumentou a produção pela ampliação das áreas

130 SILVA, Francisca.. Op. Cit. pp. 107-109.


64

cultivadas, atraindo novos colonos pelo artifício dos “benefícios sociais”. O golpe de
misericórdia ao sistema foi a entrada dos “marreteiros” 131, que compravam os produtos
por preços bem acima dos fixados pelo governo. Os colonos, enfim, tinham a
possibilidade de revender sua produção ao preço de mercado, aos atravessadores.
É interessante fazer uma analogia à economia do seringal. Duramente criticado
durante o segundo “boom” da borracha, o “sistema de barracão” implantado com as
colônias agrícolas foi revigorado em nova roupagem. Do extrativismo do látex à
agricultura, os padrões de exploração se mantiveram semelhantes. Aumentava-se a área do
seringal e fixava-se o preço do produto espoliando o produtor pelo monopólio da compra.
O trabalho de Silva traz anexos muito importantes para compreendermos o
esvaziamento das colônias e sua conseqüente concentração fundiária. São vários ofícios
dos colonos entregando as terras para o Administrador e, de outro lado, várias solicitações
de autorização para ocupação dos lotes devolvidos com a criação de gado. O governo
implantou um modelo perverso redundando no esgotamento do trabalhador, das terras e o
seu desencanto pela “pequena propriedade”.
Os dados oficiais existentes sobre a colônia agrícola de Iata referem-se somente à
1954 e indicam uma capacidade de produção muito elevada. A resumida relação de itens
básicos à sobrevivência subiu para a diversidade de 32 itens, pressupondo a fixação,
diversificação, bem como a estruturação de um mercado local.132
A partir dos anos de 1946 e 1947, as matérias publicadas no Alto Madeira são
otimistas com a implantação de colônias agrícolas e os resultados alcançados. Divulgaram
os dados da produção de dez toneladas de açúcar, vinte de arroz, cinqüenta de mandioca,
de milho, feijão e demais gêneros colocados no mercado de Guajará Mirim e Porto Velho.
Os números são “sedutores” se forem tomados em sua forma pura, mas se
olharmos a partir de um ponto de vista um pouco mais atencioso, veremos que o aumento
na oferta de produtos significou concomitante uma maior exploração da mão-de-obra dos
colonos e consequentemente uma acumulação acentuada nas mãos dos comerciantes-
seringalistas. A ocupação do espaço pelos núcleos coloniais ironicamente favoreceu as
elites civis e militares.
O Serviço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) divulgou nota pelo
Alto Madeira revelando os objetivos das colônias agrícolas nacionais: "Dada a sua
proximidade de Manaus, o futuro núcleo está destinado a solucionar, em grande parte, o problema do

Espécie de atravessador, trocava manufaturados ou comprava a produção para revender nas cidades de G. Mirim e
131

Porto Velho.
65

fornecimento dos latifúndios..." 133 O Estado Novo tinha por objetivo um consórcio entre os
latifúndios e a pequena produção contradizendo o discurso da “Marcha para o Oeste” de
criar o novo brasileiro por meio da pequena propriedade. A partir da política de "mercado
artificial" implementada, o preço da borracha foi "garantido" pelo estado, sendo
compensador para os seringalistas "abrirem mão" do tempo do seringueiro. Com o preço
garantido, o "menor" custo de produção, aumentou proporcionalmente suas margens de
lucro. A partir da política de preços "estáveis" o seringueiro pode praticar a caça, pesca,
roçado de um hectare pelas regras do contrato-padrão, práticas proibidas a “ferro e fogo”
durante o primeiro ciclo da borracha.

132SERVIÇO DE ESTATÍSTICA E GEOGRAFIA DO TERRITÓRIO. Síntese da Evolução do Território nos Anos de


1943-1954.. 1954. Cópia dos originais localizados no Arquivo Nacional -RJ.
133 “Colônia Agrícola no Amazonas”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 30/mai/1943. Nota oficial Serviço do

DIP.
66

A fronteira em construção:

A criação do Território Federal do Guaporé

... Nós, os bandeirantes de Rondônia,


Nos orgulhamos de tanta beleza.
Como sentinelas avançadas,
Somos destemidos pioneiros
Que nestas paragens do poente
Gritam com força: somos brasileiros!
Nestas fronteiras, de nossa Pátria, ...
Trecho de “Céus de Rondônia”
De: Araújo Lima.
67

Este capítulo aborda os projetos políticos e administrativos para a região Noroeste do estado
do Mato Grosso e seu desdobramento com a constituição do Território Federal do Guaporé, em 1943.
Estas discussões tiveram início na década de 30 e caminharam paralelas às discussões do
executivo federal por meio do Conselho de Segurança Nacional e dos ministérios mais
próximos às questões sobre a redivisão territorial do Brasil. A Conferência do Capitão Aluísio
Ferreira na Sociedade de Amigos de Alberto Torres, no Rio de Janeiro, em 1936, parece assinalar
o início das discussões a respeito dos territórios de fronteira e a problemática da segurança
nacional. A partir do golpe de 37, em pleno Estado Novo, a campanha pela criação de
territórios de fronteira foi bem mais ostensiva. O Ministro da Viação e Obras Públicas,
Cel. Mendonça Lima, visitou a região no início de 1938, inaugurando a linha aérea entre
Cuiabá, Porto Velho e Rio Branco. Até então, nenhuma autoridade de alta patente havia
verificado as condições da fronteira in loco. Outro fator que reforçou a idéia da criação do
território foi a “oficialização” da campanha “Marcha para o Oeste”, em 1938. Dois anos
depois, o próprio presidente Vargas, durante visita à Amazônia, anunciaria as principais
metas da Marcha: a ocupação do território por meio da pequena propriedade e do
saneamento da região.
Pretendo abordar a discussão sobre o desmembramento das áreas do sudoeste do
estado do Amazonas e do noroeste do estado do Mato Grosso, região compreendida no
raio de ação política e administrativa da ferrovia Madeira-Mamoré, subordinada ao
Ministério da Viação e Obras Públicas e da Inspetoria de Fronteiras e da Seção Norte do
Telégrafo Nacional, ambos subordinados ao Ministério da Guerra. Durante a década de
30, esses órgãos foram as bases reais da administração federal na região. Pretendi
identificar quais os grupos interessados, quais as motivações às discussões, quais os
diálogos e embates travados entre os grupos locais e regionais por meio da imprensa em
torno dos projetos. Para isso, explorei os artigos publicados por jornais cariocas de
circulação “nacional” como Correio da Manhã e A Noite, confrontando os diálogos e
contraposições dos grupos, cruzando as representações elaboradas por estes periódicos e
os projetos de lei editados pelo governo Vargas.
O diretor e jornalista, Geraldo Rocha 134, proprietário do jornal A Noite, editou entre
1936 e 1942 as colunas “Marcha Para o Oeste” e “Territórios de Fronteira”. Nessas, temos

134
SODRÉ, Nelson W. História da Imprensa no Brasil.R. Janeiro, Paz e Terra, 1978. As transcrições

contidas no jornal Alto Madeira creditam o nome do jornal como “A Nota”, porém não encontramos

referência a esse periódico no Rio de Janeiro. Conforme o autor, Irineu Marinho em 1911 fundou o jornal A
68

a interlocução entre as aspirações locais, suas contraposições regionais e a expressão de


setores da capital federal, bases de apoio ao Estado Novo e sua política expansionista
interna. O imperialismo brasileiro135 pregava a soberania da Nação sobre seus limites
territoriais, conquistados no período colonial e, até então, pouco explorados
economicamente, segundo os idealizadores desta política.
Neste sentido, este capítulo tem o objetivo de se aproximar da discussão teórica
travada em torno da questão espacial e das migrações no Brasil, e ainda analisar a
formação do território e de seus limites, identificando quais os interesses em torno dessas
demarcações geográficas e políticas, e as articulações entre a administração local e o
governo federal.
Dentre os objetivos “oficiais” do governo Vargas no período, um deles foi
impulsionar a ocupação do território através da colonização e do povoamento. Esses
projetos não eram unânimes e homogêneos, pois havia resistência dentro dos poderes
regionais, encravados nas Assembléias Legislativas do Mato Grosso e do Amazonas, em
relação às riquezas naturais e à arrecadação fiscal regional. As elites agrárias desses estados,
por meio de seus representantes na Câmara Federal, combateram o autoritarismo de
Vargas em relação à criação dos territórios. Os parlamentares articularam a oposição ao

Noite, que logo passou o controle para Geraldo Rocha. O jornal é considerado getulista por Sodré devido ao

seu período de intervenção estatal.

AIZEN, N. Era Uma Vez Duas Avós.... 9.ª ed. Rio de Janeiro, EBAL, 1995. Segundo o autor (Diretor da

Editora Brasil-América S.A., desde 1966) em 1944, pressionado por problemas de importação de papel de

imprensa (naquele tempo, ainda não havia o nacional), José Aizen vendeu o Grande Consórcio de seu grupo

ao jornal A Noite, então pertencente às Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, is to é, ao Governo.

CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. A Vida de Nelson Rodrigues. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. P.106.
Segundo o biógrafo de Nelson Rodrigues, Vargas após o golpe em 1930, fechou diversos jornais pelo país,

justamente aqueles que eram contrários ao golpe e seu regime de governo. “Foram invadidos ‘Crítica’, ‘A

Noite’, o ‘Jornal do Brasil’, ‘O País’, ‘A Notícia’, ‘Vanguarda ’e ‘Gazeta de Notícias’” . “Durante o tempo

em que esteve preso [Mário Rodrigues- pai de Nelson], foi ajudado financeiramente, nessa época, por

Geraldo Rocha (proprietário do jornal A Noite, concorrente do Correio da Manhã).”

CAPELATO, Mª Helena R. “Propaganda política e controle dos meios de comunicação” in Dulce Pandolfi (org).
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro, FGV, 1999. pp 171. Para maior esclarecimento quanto à imprensa no
período Vargas consultar o artigo acima.
135 VARGAS, G. A Nova Política Econômica. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938.
69

projeto de desmembramento das unidades federativas, em territórios de fronteira, pelo


Estado Novo.
O Glebarismo:

foi o movimento cívico que, depois de 1930, desfraldou a bandeira do Amazonas para os
amazonenses. Os homens públicos que exerceram o governo daí em diante –exceção de dois
interventores federais do período ditatorial- foram, em conseqüência, todos amazonenses. (...)
Até então, os homens que comandavam a política, a vida intelectual e econômica eram, na sua
quase totalidade, de fora. A criação dos territórios federais de Rondônia e Roraima, provocou
mal-estar, desfalcou o estado em área e população. Os municípios de Porto Velho e Boa Vista
passaram àqueles territórios.136

Ao que parece, este era um movimento regional, de caráter federalista, articulado


pelos políticos amazonenses, que atacou a ilegitimidade constitucional do projeto de
criação dos territórios federais de fronteira. O movimento foi combatido pelo Alto
Madeira, cuja contra ofensiva seguiu os ditames da grande imprensa nacional, por meio de
artigos “isentos”, publicando pareceres jurídicos favoráveis à medida, dando apoio
incondicional às posturas centralizadoras do governo federal, em relação ao
desmembramento de áreas estaduais, para a formação de territórios nas regiões de
fronteira.137
A concepção de “espaço vital” e a necessidade de garantir a posse de recursos
naturais para a indústria, visando a conseqüente expansão do mercado interno, imperavam
junto às forças armadas brasileiras, fosse pelo contato com a missão alemã, a qual treinou
boa parte das altas patentes de oficiais138, ou fosse pela necessidade de expansão do capital
no país. O pensamento ratzeliano 139 se difundiu além das forças armadas, como no caso da

136 Site da Universidade Federal do Amazonas. www.fakul.br/htm.


137
Para expor os vários projetos que se desdobraram na criação do território devemos focar duas questões
para a compreensão: primeiro, as mudanças ocorridas nas relações de poder a partir de 1930. Em
segundo, as concepções acerca do território geradas no contexto científico.
Com Vargas, houve uma reacomodação nas relações entre os estados da federação. Com a quebra da hegemonia
de S. Paulo e Minas Gerais novos grupos entraram em cena como Rio Grande do Sul e estados nordestinos.
Porém, apesar desses novos atores, as relações sociais pouco se alteraram. Melhor, houve alterações, mas ficaram
circunscritas aos centros de poder. Vargas passou a compor com os que o apoiaram e sua política foi
intervencionista.
A centralização se deu a partir da criação de “novos” quadros burocráticos, o mais evidente deste foram o as
forças armadas. Nesse painel, os militares, até então alijados das decisões passaram a “colaborar” com a política
centralista de Vargas. Foi o caso dos tenentes interventores nos estados subordinados e o aumento dos efetivos e
seu reaparelhamento. A estrutura do estado se renovou, mas foi mantido o estado patrimonialista redirecionado
para a expansão capitalista através do incentivo à poupança interna e criação da infra-estrutura na siderurgia,
metalurgia, petróleo e águas.
138 CASTRO, Celso. Militares e Política: um estudo sobre cultura e ação política. R. de Janeiro, Jorge Zahar, 1999. Para

uma leitura mais aprofundada sobre a formação do alto comando das forças armadas.
139 Estes setores seguiam o pensamento de Friedrich Ratzel, compreendiam o espaço como a própria Nação e

objeto primordial da geopolítica. O espaço ocupado por um povo era sua principal referência para a constituição
da nação, em detrimento da língua, cultura e passado comum. Concebiam o território como espaço orgânico, o
"espaço vital" na expressão e tradução dos teóricos brasileiros. O território era negado enquanto espaço político,
fruto das relações sociais conflitantes e historicamente constituídas para ser visto como espaço ambiente natural.
A teoria de Darwin exerceu grande influência sobre as concepções de Ratzel, este fez uma leitura do espaço a
partir da biologia darwiniana. Para Ratzel, a seleção natural se extrapolou para a seleção social, seleção planetária
70

Sociedade Brasileira de Geografia e do Conselho Nacional de Geografia, embriões


originários dos vários órgãos de pesquisa e planejamento do período Vargas: IBGE,
Superintendência de Valorização da Economia Amazônica e Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas.
O extremo oeste ou noroeste brasileiro sempre foi uma preocupação para o Estado
e, principalmente, para as Forças Armadas, em especial o Exército. Fato observável se nos
reportarmos ao início da República, a partir das prerrogativas da Comissão Construtora
das Linhas Telegráficas, as quais passaram a incorporar a nomenclatura “Estratégicas”
para o trecho compreendido entre Mato Grosso e Amazonas. Segundo Maciel, na primeira
década do séc. XX, começava a se "delinear, no interior do Ministério da Guerra, noções que
incorporavam a idéia de expansão do conhecimento sobre o território, formando uma consciência geográfica
da Nação, criando os instrumentos para sua ordenação e controle e para a defesa da soberania brasileira
em face dos países limítrofes".140 Nos primeiros anos da República, a preocupação era com a
integração política dos sertões e não com os sertanejos. O discurso era da "civilização"
contra a barbárie, no qual o sertão representava a nação a ser conquistada, a natureza
hostil era representada pelas dificuldades de acesso, e pelas inúmeras nações indígenas e
populações brancas isoladas e arredias que habitavam o extremo oeste brasileiro. Para se
“gerar o corpo” da Pátria, fez-se necessário o seu reconhecimento, o seu mapeamento,
tanto físico quanto humano, palmilhando e reconhecendo trechos sob os olhares do
Estado brasileiro, corporificados pelo Exército. Lembremos que, “nacionalizar” as nações
(sic) indígenas e os trabalhadores nacionais, dispersos nas margens de rios e seringais,
significou assegurar o controle sobre o território. A estratégia estava baseada na tradição
da terra ser de direito daquele que a tivesse ocupado; o princípio do uti possidetis utilizado
desde o império. Batizando as tribos indígenas como "seres nacionais" e "caboclos" de
nacionalidade indefinida- nas áreas de fronteira era comum o trânsito de trabalhadores
bolivianos e peruanos- se obtinha o "direito" de posse daqueles territórios de fronteira.
Porém, o quadro não era tão claro e objetivo assim, uma vez que, no período se
processou uma transição, um deslocamento da percepção do sertão. No início da
República, o litoral era sinônimo de civilização moderna, pensamento influenciado pelas
capitais européias, consideradas centros do saber e da razão iluminista e, principalmente,
positivista. O sertão era percebido como uma oposição, terra sem lei, terra de "ninguém",
o "vazio" a ser domado e controlado pelo Exército, o “inferno verde”, como era

na qual as nações mais aptas tinham a “necessidade de preservação”. Para poder cumprir seu “desígnio natural”
deviam ocupar o território das outras "espécies-nações" mais frágeis.
71

denominada a Amazônia. Entre os anos 30 e 40, houve uma inversão dos conceitos sobre
a Amazônia e o extremo oeste. O sertão "desconhecido", projeção de todos os aspectos
negativos do país, terra de índios bravios, de trabalhadores indolentes, inversamente,
passou a ser o espaço ideal para a “renovação” da identidade nacional. Essa versão era
construída, contrapondo a decadência do litoral, “contaminado” pelas ideologias européias
do fascismo, do comunismo e do liberalismo, acusadas de principais responsáveis, pelas
crises econômica, social e política das populações litorâneas.141 O sertão, por sua vez,
surgia como o espaço dos ideais de nação, da brasilidade em estado de puro potencial, um
movimento de se auto encontrar e se recriar, o renascimento interno do ser nacional. O
espaço tornou-se uma das principais metáforas da identidade e da nação, em alguns
momentos sinônimos.
Havia a disputa entre o pensamento positivista das Forças Armadas de construir
uma "nação", através da integração do território, e a contradição reinante de uma
hegemonia liberal, visando “desarticular” essas regiões para controlar o Estado (o caso das
oligarquias exportadoras). Panorama alterado, a partir de 1930, com a ascensão das
oligarquias “dissidentes”, personificadas por Vargas. A estratégia de Vargas foi a de
"conciliação" com as oligarquias do Norte: Mato Grosso, Amazonas e Pará. A década de
30 oscilou entre o discurso oficial da integração, sem uma prática efetiva, e a letargia pura e
simples.142
A construção das balizas da "nação", na região do Madeira-Guaporé, se deu através
da atuação marginal de alguns ministérios como da Agricultura, da Guerra e da Viação. Às
pequenas elites locais- sem capital, portanto, dependentes dos grandes aviadores que
financiavam a exploração da borracha, só restou a esperança na política de favores do
governo federal, maximizando as mínimas iniciativas.
Porém, a ocupação das fronteiras era uma preocupação anterior a 1930. As
Sociedades de Geografia surgiram anteriormente a esse período e já haviam proposto o
balizamento da "nação", por meio do controle das fronteiras nacionais, a partir do seu
conhecimento, ou seja, da razão a serviço do controle.

140 MACIEL, Laura Antunes. A Nação por um Fio: Caminhos, práticas e imagens da "Comissão Rondon". São Paulo,
EDUC/FAPESP, 1998. pp. 170.
141 STERCI, Neide. O mito da democracia no país das bandeiras. Rio de Janeiro, PPGAS/MN, Dissertação de

Mestrado em Antropologia, 1972. As considerações sobre a inversão do conceito de sertão foram tomadas de
empréstimo desta autora.
142 VELHO, Otávio. Capitalismo Autoritário e Campesinato. S. Paulo, Difel, 1978. LENHARO, Alcir. Colonização e

Trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-0este. 2ª ed. Campinas, Edunicamp, 1986. Série Pesquisas. As conclusões
trabalhadas por mim se baseiam nas críticas feitas por Velho e Lenharo.
72

Reichardt143 apontou o perigo da exaustão das fontes de matéria prima pela qual,
em breve, passariam as grandes potências, já que a escassez determinaria uma corrida em
direção aos vales dos rios amazônicos, os do Congo e os das Índias. Tais vales, vistos
como reserva futura de energia, deveriam ser incorporados ao patrimônio nacional, fator
que colocaria o país na corrida energética. Afirmava que as fronteiras deveriam possuir
territórios "tampões", a exemplo dos estados tampões na Europa central. Defendeu a
formação dos Contingentes Especiais de Fronteira e, principalmente, a ocupação através
de núcleos coloniais e núcleos indígenas, tornando o colono e o índio verdadeiros
colonos-soldados na defesa das fronteiras, espécie de sentinelas avançadas e porteiros da
"nação". A exposição de Fairbanks, em seu concurso à cadeira de Economia Política na
Escola Politécnica144, revela as mesmas preocupações com relação ao despovoamento do
Brasil e ao interesse das grandes potências em nossas riquezas. Pregou a ocupação das
fronteiras através de minifúndios, visto que para ele a segurança nacional seria alcançada
com a ocupação agrícola.
Esses ideólogos dialogavam entre si e criticavam agressivamente os conceitos
marxistas de estado e luta de classes. O pensamento “acadêmico” estava pautado no
temor das ideologias vindas do leste europeu. Havia uma desconfiança em relação ao
expansionismo soviético, o qual atormentava as social democracias da Europa ocidental,
EUA e boa parte do pensamento autoritário brasileiro.
Os ideólogos foram autores e atores de estado, extrapolando o âmbito das idéias.
Foi o caso de Everardo Backheuser, general do Exército Brasileiro, e de Artur Hehl Neiva,
intelectual orgânico e membro do Conselho de Imigração e Colonização. Nessas instâncias
burocráticas, as discussões sobre os conflitos sociais eram bem visíveis, apesar de
aparecerem de modo cifrado no cenário de ocupação e povoamento dos enormes "vazios"
demográficos. Hehl Neiva fez uma conferência, no Instituto Nacional de Ciência Política,
no final de 1941, em que realiza um balanço da questão do povoamento e
desenvolvimento regional durante os 11 anos do governo Vargas. O discurso deixou
evidente dois elementos importantes para esta discussão: os problemas do desemprego e
da atração da cidade sobre o campo, principalmente para a cidade do Rio de Janeiro, que
sempre atraiu imigrantes, trabalhadores e ex-escravos do interior e de outros estados. Hehl
Neiva, remissivamente, citou o Manifesto de Vargas, comemorativo do primeiro
aniversário da "Revolução":

143REICHARDT, H. Canabarro. A Geopolítica e a consciência geográfica da nação. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio,
19 de janeiro de 1947.
73

'Ao Departamento Nacional de Povoamento coube ... encaminhar para as atividades


industriais ou agrícolas do interior do país, metodicamente, com as necessárias cautelas para
evitar insucessos, a massa que, sobretudo aqui no Centro, se formou quase que subitamente,
ameaçadora dos sem trabalho, que as condições econômicas vieram afetar'145

Havia ainda a questão do povoamento dos enormes espaços a serem colonizados


por imigrantes que vieram para o Brasil fugidos da crise econômica na Europa. O
problema para o governo era os imigrantes que traziam consigo o seu passado de
trabalhador organizado, com suas experiências de lutas e reivindicações trabalhistas e
salariais. Esses não eram interessantes para o “país”, principalmente, num regime de
estado autoritário. Hehl Neiva fez apologia à política de restrição e ordenamento da
imigração de Vargas. Para o conferencista, o presidente tinha se antecipado aos problemas
sociais que estavam se esboçando: "Quero me referir aos perigos, para a nacionalidade, da entrada
de estrangeiros que, num mundo onde as questões sociais provocavam uma fermentação explosiva,
poderiam desejar transportar para nosso país suas ideologias exóticas, inadaptáveis ao nosso meio sob todos
os pontos de vista."146 Os trabalhadores estrangeiros representavam perigo para os industriais
e suas relações de produção, porém, Neiva sutilmente, deslocou o problema para a
“nacionalidade”. O autor concebia a sociedade como um corpo, a "nação" como um
organismo biológico vivo, correndo o risco de vir a ser contaminado pela "fermentação"
explosiva. A questão incômoda, de fato era o surgimento do operariado “independente”,
organizado pelo Partido Comunista, sendo a personificação in loco das ideologias exóticas,
sob o controle de outras agências, fora da órbita da política corporativista do governo.
Essa abordagem maniqueísta servia aos interesses daqueles que estavam no poder e
que defendiam, a todo custo, um projeto populista e corporativista, visando escamotear as
tensões sociais. As ações “preventivas” da sindicalização compulsória foram comuns,
pregando a "emancipação" dos trabalhadores sob a tutela do estado. Assim, o estado
criava a "nação" por meio da ocupação do território, do espaço vital e do controle da
sociedade por meio da política trabalhista. Uma "nação" subordinada aos interesses do
estado, dependente e tutelada de reformas "pelo alto".
Nesse sentido, o "imperialismo brasileiro"147 foi uma busca do "espaço vital",
principalmente para a refundação da moderna "nação" brasileira e não somente para a

144 FAIRBANKS, João Carlos. Geopolítica Povoadora. Tese de Concurso à Cadeira de Economia Política. São Paulo,
Gráfica Revista dos Tribunais, 1939.
145 NEIVA, Arthur H. “Getulio Vargas e o problema da imigração e da colonização” in Revista de Imigração e

Colonização. N.º 03, abril de 1942. Pp 28-29.


146 Idem. pp. 31.
147
VARGAS, G. A Nova Política Econômica. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938.
74

sobrevivência do estado. Porém, como apontou Lenharo148, a mistificação do corpo da


"nação", através da conquista do Oeste, visava sobretudo deslocar os conflitos sociais
utilizando-se de soluções paliativas para a enorme demanda social. Para desviar-se da
reforma agrária e evitar o confronto direto com as oligarquias regionais, deslocava-se os
excedentes do campo para novas áreas como a Amazônia e o Centro-Oeste. Para desfocar
as demandas urbanas da nova classe operária insurgente, foram tomadas medidas tutelares
impedindo a organização autônoma desses segmentos, com o estado à frente, buscando
conciliar a conquista das regiões "despovoadas" com o "saneamento" das capitais
litorâneas. A “Marcha para o Oeste” era o substrato para o populismo autoritário,
evocando figuras mitológicas como os bandeirantes, para deslocar as demandas sociais
emergentes. As reivindicações socias de reforma urbana, agrária, melhores salários,
regulamentação da jornada de trabalho, benefícios sociais como educação e saúde eram
prementes naquele Brasil que se urbanizava. A modernização era "inevitável", mas deveria
ser dirigida pelo estado. As fronteiras foram “instituídas” no horizonte ideológico de uma
luta de conquista, na busca da identidade no sertão, do novo trabalhador nacional, do
novo homem do campo, como pequeno proprietário “amparado” pela assistência técnica
do Estado. A ciência messiânica tentava redimir o caboclo da economia de subsistência e
do latifúndio, orquestrada pelas mãos do estado providencial. A modernização do
trabalhador numa terra nova, a conquista do sertão como o encontro da "terra prometida",
a terra da "promissão". Os discursos de Vargas eram bastante emblemáticos e carregados
dessa simbologia redentora:

... Retomando a trilha dos pioneiros que plantaram no coração do Continente, em vigorosa e épica
arremetida, os marcos das fronteiras territoriais, precisamos de novo suprimir os obstáculos, encurtar
distâncias, abrir e estender as fronteiras econômicas, consolidando definitivamente os alicerces da
Nação.
O verdadeiro sentido de brasilidade é a marcha para o Oeste. No século XVIII, de lá jorrou o caudal
de ouro que transbordou na Europa e fez da América o Continente das cobiças e tentativas
aventurosas. E lá teremos de ir buscar: dos vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e
fartas; das entranhas da terra, o metal com que forjar os instrumentos da nossa defesa e no nosso
progresso industrial ...149

Enfatizando termos como pioneiros, o presidente definia o novo bandeirante e


conclamava o povo a se juntar a ele e buscar sua identidade em direção às fronteiras
nacionais, para consolidar a "nação". O discurso era uma "naturalização" da sociedade,

148 LENHARO, Alcir. Colonização e Trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-0este. 2ª ed. Campinas, Edunicamp,
1986. Série Pesquisas. Aqui retomo a análise de Lenharo tomando de empréstimo o seu conceito de
"desterritorialização" que outros autores como Esterci denominou de "reterritorialização". Ambos conceitos
visavam explicar esse deslocamento ideológico implementado pelo governo Vargas.
149 NEIVA, Arthur Hehl. Getulio Vargas e o problema da imigração e da colonização in Revista de Imigração e

Colonização. N.º 03, abril de 1942. Pp 45-46.


75

biotipificação no qual o território era sinônimo do "corpo" social e da subjetividade do


indivíduo. Haveríamos de nos reproduzir e nos ressuscitarmos nos vales férteis,
haveríamos de renascer para a "terra prometida" de culturas variadas e fartas. Implicitamente
o discurso tentava negar a tradição da monocultura brasileira para exportação, reafirmando
a policultura assentada na pequena propriedade e na formação do mercado interno. Ao se
referir às entranhas, pregava a modernização do parque industrial e a modernização do novo
trabalhador. Desvinculado das relações agrárias e sob o tacão dos coronéis, o operário
urbano moderno seria forjado na têmpera dos metais. O fortalecimento de nossa defesa estava
no subsolo de nossa cultura, devendo ser negada e refeita a partir das próprias entranhas
e não de idéias exóticas, contaminadoras da pureza interior e do interior do país. Das
"entranhas", no interior de nossas fronteiras, viria o metal para alimentar a nossa
modernização através do trator, "revolucionando" o campo e as relações de produção.
Condicionou-se a expansão da técnica e da ciência aplicada a modernização da economia
do país e a posse de nossas fronteiras e das nossas “entranhas”. A ocupação seria
estratégica na visão dos ideólogos e das forças armadas. O sertão era o nosso "espaço
vital", sustentáculo do corpo vivo do estado nacional.
A instrução militar, baseada na hierarquia, forjou "bons brasileiros", “soterrando”
os conflitos, o consenso e a disputa, enfim, tudo que remetesse à idéia de organização e
reivindicação. As forças armadas desde a República eram consideradas as escolas do
civismo a serviço da mãe-pátria, das gerações descendentes, nas quais formava o sujeito
como soldado-cidadão. Sendo domesticados para obedecer às ordens superiores,
reproduzindo na sociedade o modelo apreendido no serviço militar. Outro fator relevante
era que o exército e a marinha supriam as carências da instrução escolar, alfabetizando, em
suas unidades, os seus praças. No período do Estado Novo, o Exército foi “engajado” por
Vargas na campanha de erradicação do analfabetismo no país, e, principalmente, no vale
do Madeira-Guaporé, fundando, construindo e mantendo várias escolas civis.
Os nordestinos engrossaram esse contingente de sentinelas ao serem promovidos a
“soldados da borracha”150, durante a Segunda Guerra Mundial. O termo tinha conotação
simbólica e real, pois foi regulamentado o adiamento da incorporação ao serviço militar
pelo decreto 5.225, de 1942. Os coronéis de barranco, até então caudilhos políticos,

150MATIAS, Francisco. Pioneiros: ocupação humana e trajetória política de Rondônia. P. Velho, Ed. Maia, 1997. Segundo
o autor haviam duas categorias de seringueiros: os arigós, tidos como aventureiros, eram voluntários no corte da
seringa e os “soldados da borracha” eram recrutados, eram alistados no Exército, o engajamento para servir no
front da Itália era compuklsório para os reservistas, como segunda “opção” podiam se alistar como soldados da
borracha para o esforço de guerra. Pp. 119.
76

acrescentavam o papel de chefes militares, controlando a produção e os dados dos


incorporados à “Batalha da Borracha”.
A EFMM subordinada ao Ministério da Viação e Obras Públicas e a Inspetoria dos
Contingentes Especiais de Fronteira subordinada ao Ministério da Guerra, constituíram-se
nas células do estado nacional no extremo Oeste. O Território Federal do Guaporé,
significava, para o governador Maj. Aluízio Ferreira, a materialização dos trabalhos
iniciados pela Comissão Rondon – os criadores das bases militares na região.
A criação do Território Federal do Guaporé deixa de ser uma ruptura, como aponta
o historiador Pontes Pinto151, cuja cronologia remonta ao Tratado de Tordesilhas. O
referente da ruptura é a integração nacional da fronteira, daí o recorte colonial. Em seu
trabalho, estruturado na linearidade temporal, a ocupação do espaço constitui-se em
processo auto-elucidativo. Assim, a criação do território se insere no contexto do
expansionismo colonial português e, recentemente, dentro do imperialismo americano.
Encontramos a mesma abordagem em Amazônia Porto Velho, de Amizael Silva152.
Os autores citados, apesar de suas singularidades, compartilham uma visão episódica da
história, valorizando os atos políticos de atores, enquanto instauradores de rupturas, como
se as localidades fossem os sujeitos históricos: "A criação do território deu-se em 1943 e, para o
município, a transformação da região em território foi de grande valia, pois Porto Velho,
tornando-se sede do território foi beneficiado. ... " 153 A criação do território dinamizou as ações
executadas desde a "nacionalização" da EFMM em 1931, porém, não significou mudanças
no cenário social.
Na década de 1920, com as sucessivas crises da borracha, do grande êxodo dos
"fregueses", abandonando os seringais e retornando ao nordeste, esboçava-se a
constituição de uma identidade local. A interação entre os comerciantes do setor
extrativista em Guajará Mirim, no Mato Grosso, e Porto Velho, no Amazonas, foi
propiciada pela EFMM. A estrada, após a "nacionalização", passou a desempenhar a
função de posto avançado dos Ministérios da Viação, da Agricultura e da Guerra,
corporificados na figura de seu diretor, o Cap. Aluísio Ferreira. A clareza da crise e do
alijamento político em relação às oligarquias de Cuiabá e Manaus resultou no apoio
incondicional desses comerciantes às iniciativas do governo federal. Segundo Pontes Pinto,
a zona circunscrita à EFMM estava desamparada pelos dois estados, estrangulada pela

151 PINTO, Emanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território de Guaporé, fator de Integração Nacional. Rio
de Janeiro, Ed. Expressão e Cultura, 1994.
152SILVA, Amizael Gomes da. Amazônia Porto Velho: Pequena História de Porto Velho. 2.ª edição. Porto Velho,

Palmares, 1994.
153 SILVA, Amizael Gomes da. Op. Cit.
77

inanição política: “... Por estarem situados distantes dos centros de decisão de Manaus e Cuiabá, os estados do
Amazonas e Mato Grosso não dispunham das condições financeiras necessárias para prestar assistência aos
municípios de Porto Velho, Santo Antônio e Guajará Mirim”.154
O jornal Alto Madeira retratou o descontentamento das elites locais, que se sentiam
exploradas e sem assistência das oligarquias regionais do Mato Grosso e Amazonas.
Ficavam distantes das capitais e não tinham peso político, eram somente fonte de
arrecadação. O Alto Madeira descreveu a visita do major Juarez Távora à Manaus, o qual
constatou a inadimplência do Amazonas para com o funcionalismo, em onze meses de
salários atrasados. Távora propôs ao governo federal o perdão da dívida do Amazonas
para o saneamento de suas contas. Em plena crise fiscal, as elites amazônicas não tinham
meios para dar assistência à região do Madeira-Guaporé155. Outro exemplo, que permite
visualizar a constituição de uma identidade local, deu-se com a inauguração do Núcleo
Agrícola "Antenor Navarro", em maio de 1932.

Está ao alcance de todos verificar que uma das portas de sahida para o Amazonas da
tormenta economica em que se debate é o fomento intensivo da agricultura. Também é obvio
que o capital particular nas condições actuaes não se abalança, mesmo sob vantajosas
condições de crédito ou garantias, a servir de alicerce para iniciativas que no Amazonas sempre
fracassaram. Assim dessas premissas resta-nos a contingência de aguardar a acção do Estado [União], para a
consecução da experiência que nos deve salvar.
Em nosso estado, esta fez-se sentir sob a formula velha de fundação de núcleos agrícolas.
Entretanto, por mais falha que nos possa parecer esse emprego de capital, sem a ajuda de técnicos, sem a
preparação do colono, não deixa de traduzir a única forma que pareceu viável ao Governo Federal para fornecer
muletas ao mulambo combalido que é o nosso Amazonas.156

As elites locais tinham clareza da ineficácia da implantação de colônias agrícolas


sem o acompanhamento de assistência técnica e treinamento ao pequeno produtor.
Porém, não lhes restava alternativa a não ser ter "esperança" nos investimentos feitos pelo
governo federal. Pontes Pinto mitificou o discurso oficial da “necessidade” de Criação do
Território, no qual convergiam as dificuldades das elites locais com os “interesses de
defesa nacional” do governo federal;

A absoluta falta de assistência do governo do Mato Grosso à região situada ao Norte do


estado, desagradava os habitantes das sedes dos seus municípios mais distantes. Guajará Mirim,
por exemplo, progredia sem contar com os investimentos de infra-estrutura na sua área
urbana. Os benefícios que vinha recebendo provinham da ferrovia que tinha ali sua estação
terminal. A sociedade local, em 1937, demonstrando o descontentamento que sentia pela
omissão do governo estadual aos seus problemas, endereçou ao presidente da República um
abaixo-assinado pedindo a criação de um território federal naquela fronteira.157

154 PINTO, Emmanuel Pontes. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território Federal do Guaporé como Fator de
Integração Nacional. R. de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. pp. 233.
155 ALTO MADEIRA. Porto Velho, 08 de maio de 1932. Pp 02.
156 ALTO MADEIRA. Porto Velho, 08 de maio de 1932. pp. 03.
157PINTO, Emmanuel Pontes. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território Federal do Guaporé como Fator de

Integração Nacional. R. de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. Pp. 144.


78

O meu objetivo aqui não é reforçar o discurso oficial, endossando a argumentação


“irrefutável da necessidade” de criação do território de fronteira do Guaporé. Porém, não
encontramos nas fontes consultadas, pronunciamentos contrários desses comerciantes.
Pouco organizados politicamente, sem expressão alguma junto às oligarquias regionais,
logicamente, a adesão ao interventor era inevitável. Pontes Pinto mencionou discretamente
as contradições em torno da criação do território, comentário que, apesar de sutil, foi-me
valioso, por explicitar as contradições do processo e evitar as armadilhas da
“unanimidade” das fontes. Defendendo a “necessidade” da criação do território, utilizou o
parecer do Gen. Firmo Freire em sua argumentação: ' ... Esta necessidade, em 1937, foi
mantida, "no interesse da defesa nacional", de modo tão preponderante que ficou apenas dependendo de
uma lei ordinária, federal, sem atentar para as possíveis objeções regionais.”158 São as
“possíveis objeções regionais” o meu objeto. As pequenas elites comerciantes não
desejavam a tutela do governo federal, mas esta era a única saída para sua sobrevivência.
Não aprovavam, com certeza, as ações do Cap. Aluízio Ferreira indiscriminadamente, e
divergiam do governo federal em relação à revisão nas concessões de terras devolutas na
faixa de fronteira.
As “objeções” se manifestaram no Glebarismo, movimento bairrista que surgiu com
a intervenção federal em 1930 e ainda sobrevive nos dias de hoje. O deputado federal
constituinte Severiano Nunes (UDN) foi o seu articulador, ele e seus seguidores desejavam
o fortalecimento das oligarquias tradicionais da capital, adversárias dos grupos políticos
herdeiros do Estado Novo, formados em torno do PSD, tendo o ex-interventor, Álvaro
Maia, como um dos seus principais líderes.
O frágil grupo da UDN do Amazonas havia sido alijado do governo de Álvaro
Maia. Parafraseando Miceli, citado no texto de Braga,

“No Amazonas, Pará e Maranhão, a bancada pessedista comportava prepostos do Poder Central que
haviam assumido uma gama variada de encargos, inclusive aqueles Interventores que haviam se
saído relativamente bem no trabalho de conciliar as facções dirigentes locais, seus ajudantes-de-
ordens militares ou civis que haviam se incumbido de missões militares espinhosas, e mais
alguns elementos da magistratura federal que, tanto por essa razão como pelo fato de serem
por vezes originários dos Estados por onde haviam sido eleitos, estavam em situação vantajosa para
enfrentarem a campanha eleitoral” (MICELI, 1985 : 570). 159

158PINTO, Emmanuel Pontes. Op. Cit. pp. 157.


159BRAGA, Sérgio Soares.Quem foi quem na Assembléia Nacional Constituinte de 1946 :um perfil socio econômico e regional
da Constituinte de 1946. Campinas, Dissertação (Mestrado) — Depto de Ciência Política do IFICH/UNICAMP,
1998. p. 175.
79

as novas elites burocráticas estavam em situação vantajosa em relação às elites tradicionais.


Elas tentavam, por meio do “Glebarismo”, mobilizar as classes populares, defendendo o
federalismo e sendo contrárias à qualquer desmembramento de seus territórios estaduais.
Teciam fortes críticas ao período do Estado Novo e julgavam inconstitucionais as
intervenções do governo federal em suas jurisdições territoriais.
Houve outro momento conflitante na política regional, entre a Assembléia do
Amazonas e Cunha Mello, senador amazonense no congresso federal, ligado ao Gen.
Cândido Rondon. O objeto da discórdia foi a concessão, pelo legislativo do Amazonas, de
um milhão de hectares de terras à colonização japonesa em 1936. Cunha Mello, em seu
repúdio à concessão de terras pelo poder legislativo, ameaçou no plenário votar contra o
governo do Amazonas. Além de manifestar seu desagravo, “sugeriu” que o projeto só
fosse votado após o pronunciamento do Estado Maior da Guerra e da Marinha, pois o
assunto era de interesse da segurança nacional. 160
Diversos setores civis e militares apoiavam a política de "integração" da economia
interna do governo Vargas. Na visão destes setores, a integração se daria por meio da
regionalização da produção, voltada para a indústria doméstica. A autonomia dos estados
constituíra-se numa ameaça ao projeto do governo federal, sendo o discurso "nacionalista"
utilizado como lastro ideológico pela imprensa, em apoio ou repúdio, às intenções do
governo federal. A "Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro, de tendências liberais, defendeu
a autonomia da bancada amazonense e preconizou a liberdade econômica na questão da
colonização japonesa. Para este periódico, as terras deviam ser "livres" para o avanço do
capital nacional ou estrangeiro.161 Esses pronunciamentos não tinham conotação
ideológica, pois federalismo e centralismo eram conceitos “pendulares”, utilizados de
acordo com os interesses imediatos. Empenhando “Grandes aplausos ao senador Cunha
Mello”, o jornal Alto Madeira valorizou sua postura "nacionalista": “A Liga de Defesa
Nacional convidou o senador Cunha Mello para fazer uma conferência sobre concessões de terras e
correntes imigratórias japonesas.... Grande corrente na Camara e nos meios militares acompanham e
applaudem com enthusiasmo, a attitude do senador Cunha Mello”.162

160 ALTO MADEIRA.” Concessão de Terras à imigração japonesa”. Porto Velho, 29 de julho de 1936. Matéria
extraída do A NOITE do Rio de Janeiro.
161
ALTO MADEIRA. “Um milhão de hectares de terras para uma empreza nipponica. Espera-se que o Sr.
Cunha Mello combata a concessão”. Transcrito do jornal "O Estado do Pará" e “Gazeta de Notícias” do Rio de
Janeiro, 05 de junho de 1936.
162 ALTO MADEIRA. Porto Velho, 14de outubro de 1936. Pp. 02.
80

As oligarquias regionais eram contrárias à intervenção do governo federal sobre


“suas” terras no Amazonas. Porém, essa “oposição” era minoritária diante da burocracia
instalada por Vargas. A imprensa carioca potencializou seu apoio ao governo federal,
“divulgando” e levando, ao domínio público, as discussões que ocorriam nas sessões do
senado. Era bastante visível o apoio das Forças Armadas, em especial o grupo reunido em
torno de Rondon, à criação dos territórios de fronteira no interior. Esses setores cobraram
do governo Vargas uma postura nacionalista em relação à ocupação da Amazônia,
especialmente nas áreas de fronteiras.
No Rio de Janeiro, mereceram destaque as posições dos jornais “A Noite”, com a
coluna “Territórios de Fronteira”, mantida pelo jornalista Geraldo Rocha 163, grande
“divulgador oficial” dos vales do Madeira-Guaporé e da atuação do Cap. Aluísio Ferreira.
Entre 1931 e a criação do território em 1943, Rocha escreveu um total de quinze artigos,
posicionando-se sobre a concessão de terras, ocupação militar e criação de território
federal nas fronteiras. As pequenas elites seringalistas locais estavam "sintonizadas" com a
imprensa carioca, manauense e paraense. As matérias publicadas na imprensa carioca,
tecendo comentários sobre a região do Madeira-Guaporé, eram devidamente transcritas
pelo jornal Alto Madeira de Porto Velho.
O primeiro artigo transcrito do “ A Noite” para o jornal "Alto Madeira", em 1936, foi
"A sentinella do Oeste". O título era uma referência ao contingente de fronteiras, ao
capitão diretor da EFMM e à própria EFMM. Segundo Rocha, a EFMM havia perdido seu
sentido econômico, porém, fazia-se necessário mantê-la pelo seu papel indispensável
como centro de vigilância das fronteiras do extremo oeste. Para convencer Rocha do "progresso"
transformador após a "nacionalização", o Cap. Aluísio Ferreira teria apresentado provas
incontestes de suas afirmações, exibindo quadros econômicos e, principalmente,
fotografias164. A partir destas "provas ", Rocha divulgou os trabalhos dos ferroviários da
EFMM e dos soldados dos Contingentes Especiais de Fronteira:

E Aluízio Ferreira, para convencer-me das esperanças da minha


mocidade, exibiu-me quadros, mostrou-me photographias. Os seus quadros
serviram para me mostrar o quanto é capaz o espírito de sacrifício de nossa
gente, quando movida por um ideal.

163
CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. A Vida de Nelson Rodrigues. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. P.106.
“Durante o tempo em que esteve preso [Mário Rodrigues- pai de Nelson], foi ajudado financeiramente, nessa
época, por Geraldo Rocha (proprietário do jornal A Noite, concorrente do Correio da Manhã).”
164 Sobre as imagens como documentos “incontestáveis” da veracidade, do acontecido e do real representado,

ver capítulo de Laura Maciel: "Clichês do Sertão" in op. Cit.


81

Graças à elle [Cap. Aluízio Ferreira], a linha telegráfica construída


pela Comissão Rondon, ligando o Amazonas ao Mato Grosso, através dos
sertões, está se transformando em estrada rodoviária de penetração. Núcleos
coloniaes de "trabalhadores nacionais" à margem da linha e nos pontos em que as
nossas fronteiras carecem de vigilância. E tudo isso feito à custa de enthusiasmo e
dedicação patriótica. 165

A “divulgação” feita pelo cap. Aluísio Ferreira foi um dos passos decisivos para a
criação do território de fronteira. Primeiro, foi uma prestação de contas ao grupo de apoio
dentro do Exército Nacional. Segundo, por conseqüência, sua exposição conferiu
visibilidade à região; até então suas ações haviam sido locais e isoladas. Concomitante à
propaganda na imprensa “nacional”, agregou-se a estratégia de sensibilizar os meios
oficiais para a “existência” daquelas fronteiras. Estes elementos podem ser constatados
nos relatórios do diretor da EFMM, enviados ao Gen. Rondon, nos quais ressaltava as
possibilidades de “aquecimento” da ferrovia que se daria por meio da exploração da bacia
petrolífera do vale do Beni e seu escoamento para o Atlântico. Estes dois produtos
tornaram-se de grande interesse para os grupos militares “nacionalistas”: o petróleo
boliviano e as prováveis riquezas minerais- ouro, diamante e metais nobres- existentes nos
vales do Madeira-Guaporé. O diretor da EFMM suspeitava da existência de petróleo na
região, deduzindo que fosse a continuidade “natural” dos lençóis das planícies bolivianas.
Segundo o Cap. Aluízio Ferreira, a exploração e o transporte do petróleo boliviano iriam
“reaquecer” a ferrovia, revertendo o déficit da EFMM, em conseqüência da crise da
borracha:

Ela [EFMM] porém se reerguerá quando for posssível a exploração industrial e


consequente transporte pela região da Madeira-Mamoré, das jazidas petrolíferas da Bolívia, na
bacia do rio Beni, na província do Caupollican. ... não nos parece exagerada a existência de
vários centros abastecedores de óleo mineral, computando mesmo nesse número as fontes que
se revelarem intra-fronteiras nacionais. 166

Rocha mistificou o Gen. Rondon como o grande "civilizador", em "A catechese


leiga". O artigo retratou os embates entre os kaingang e os trabalhadores da ferrovia
Noroeste e, segundo o autor, os técnicos e diretores aconselharam o extermínio dos
selvagens. Mas, "surgiu" (sic) Rondon em defesa dos índios, comprometendo-se a fazer a

165“A sentinella do Oéste”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 06 de Maio de 1936. 1ª pág.
166FERREIRA, Maj. Aluízio. Trecho de um Relatório. Pp. A-62 e A-63. Documentos Pessoais-Caixa do Cel. Aluísio
Ferreira. Arquivo do CDHR.
82

aliança com os kaingang, para que eles não constituíssem obstáculo à penetração da
estrada. Mais rica é a descrição romântica "indianista" do Gen. Rondon. Para o autor, a
"conquista" sobre os índios e a natureza seria alcançada por homens que, em sua
genealogia, traziam nas veias o sangue dos "bravos"167:

Rondon é um mestiço de índio, nascido nos campos de Matto Grosso, que depois de um curso
brilhante na Escola Militar, conquistará pelo seu talento as insígnias de official e uma cathedra
de professor.
A nostalgia do matto, proveniente do seu subconsciente racial, foi mais forte que os aconchegos da
civilização. Rondon abandonou a cathedra, abandonou o conforto das cidades, offerecendo-se
ao governo para construir linhas telegráficas nos sertões agrestes de Matto Grosso. Era o
pretexto para viver entre os bugres e defender a sua raça. ... O tenente Rabello, ... respondia às
agressões com palavras de paz. Devolvia as flechas carregadas com presentes. E Rabello conseguiu pacificar os
kaingangs.
O padre, o espiritualista, quando se sacrifica pela propagação de sua fé, visa uma recompensa de além
túmulo. Manoel Rabello e Rondon ... tinham como recompensa única a consciência do
cumprimento de um dever para com a pátria e a humanidade.
A obra de Rondon foi muito mais espinhosa que a de Nóbrega e Anchieta os primeiros catequizadores...
Os nossos sertanistas militares tiveram de enfrentar o índio com um passado de quatrocentos
anos de injustiças e atrocidades.168

Esse artigo parece destoar um pouco do propósito inicial desse capítulo, mas é
apenas uma primeira impressão e, através dele, temos pistas sobre a linha do jornal em
relação à região. O autor/proprietário declarou-se um discípulo do positivismo militar de
Rondon e de seus companheiros. Rocha retratou Rondon como cidadão comum, índio
que, através da inteligência, adquiriu conhecimento e tornou-se um grande "estadista". O
autor sonhava com o prêmio Nobel da Paz para Rondon, ressaltando a possibilidade de
avançarmos na evolução social. Se Rondon indígena sem origem aristocrática chegara à
General por meio dos estudos, logicamente, outros “indivíduos” como índios e
trabalhadores comuns, dispersos pelo sertão, também seriam capazes de evoluir
"culturalmente". Na imagem construída pelo jornal, temos vários elementos de análise. O
Rondon republicano personificava o novo homem desatrelado do passado colonial e
oligarca. Os generais Rondon e Manoel Rabello eram abnegados "missionários
catequistas", divulgando a fé positivista entre os índios e os contendores, sacrificando suas
vidas em nome da evolução social e política dos "caboclos", integrando-os como
civilizados à pátria e à cultura moderna.

167 Faço esta menção, pois o Cap. Aluízio Ferreira fora retratado da mesma forma na imprensa local, valores
como a ascendência indígena, a aclimatação à região e a carreira militar eram apresentados como sinônimos de
conhecimento, técnica e inteligência e sobrevalorizadas.
168 “A Catechese Leiga”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 17 de maio de 1936. Transcrito do A NOITE. Grifos

meus.
83

Outro aspecto importante era sua visão [Rocha] sobre o avanço da civilização. A
conquista violenta do espaço, baseada no conflito entre as partes não existia. Enquanto os
índios atacavam com flechas, "os mediadores" respondiam com "palavras de paz". A
conquista, na visão de Rocha, foi "pacífica", "civilizada", mascarando a superioridade
técnica e bélica entre os contendores. No jogo de forças, o "bem" estava do lado dos
"pacificadores", lutando com inimigos sem "instrução", verdadeiros bárbaros, “feras
inocentes” domesticadas com presentes. O sentimento pejorativo de "menoridade", de
"inferioridade", projetado pelo autor sobre estas populações, foi por demais evidente.
Tratavam os conflitos como um desígnio, um "destino manifesto" dos civilizados para
com os ignorantes, uma filantropia a serviço da humanidade, negando o caráter de guerra,
termo mais apropriado para descrever o conflito.169
Conforme localizei na imprensa, essas discussões tiveram início com a Conferência do
Capitão Ferreira na Sociedade de Amigos de Alberto Torres, em 1936. Essa conferência parece
constituir um marco separador entre o período de 1931/1936 – a “nacionalização” da
EFMM, porém marcado por ações “isoladas” do seu diretor da EFMM - e 1938, quando a
presença do governo federal passou a ser mais constante, por meio de intervenções
diretas, até a criação do território em 1943.
A realização da conferência reorientou a “exploração” da região, até então
“desconhecida” pelas autoridades civis e militares. O Cap. Aluízio Ferreira, após a
exposição, conseguiu agendar a visita de altas patentes militares: no início de 1938, o Cel.
Mendonça Lima, Ministro da Viação e Obras Públicas visitou a região e, no final do
mesmo ano, foi a vez do Inspetor de Fronteira do Estado Maior do Exército, Cel.
Alexandrino Cunha que, com suas comitivas, foram presenças fundamentais para dar
visibilidade à região do Guaporé. A partir do relatório “sugestivo” do Cel. Alexandrino
Cunha ao Estado Maior do Exército, o Conselho de Segurança Nacional elaborou o
anteprojeto de criação do território federal de fronteira e, paralelamente, inúmeros artigos
refletindo a temática foram divulgados na imprensa carioca.
Inicialmente, as matérias sobre os territórios de fronteiras foram espaçadas. Com o
golpe de 37 (auge do Estado Novo), a campanha pela criação de territórios de fronteira
tornou-se mais ostensiva na imprensa carioca. No início de 1938, o Ministro da Viação e
Obras Públicas, Cel. Mendonça Lima, fez a primeira viagem de inauguração da linha aérea

169LIMA, Antônio C. S. Um grande cerco de paz. Petrópolis, Vozes, 1995. Ver a discussão sobre o conceito de
conquista especificamente o capítulo "A conquista como modalidade de guerra", já analisado no primeiro
capítulo desta dissertação.
84

Cuiabá- Porto Velho- Rio Branco, até então, nenhuma autoridade de alta patente havia
“reconhecido” oficialmente a região in loco.
Foram publicadas várias matérias pelo Alto Madeira, logo após a viagem de
“reconhecimento” do Ministro da Viação Cel. Mendonça Lima. A criação de um território
federal de fronteira já era insinuada no início de fevereiro de 1938: "... o governo lhe entregou,
ao mesmo tempo, a direcção da Madeira-Mamoré e o comando da Companhia de Fronteiras, e vae agora
confiar-lhe um território autônomo naquellas paragens em que elle se tornou o chefe que todos servem,
porque amam"170. Porém, o anteprojeto do Conselho de Segurança Nacional só seria
elaborado algum tempo depois, em dezembro de 1938. Os jornais, no entanto, já
noticiavam os rumores sobre o desmembramento dos estados do Amazonas e Mato
Grosso, articulado nos bastidores dos gabinetes.
No artigo "Tudo por um Brasil forte, coheso, indivisível: 'O Glebarismo' -modalidade feroz do
regionalismo inconseqüente"171, que ataca o movimento bairrista, alguns pontos merecem ser
destacados: primeiro, uma parte das oligarquias amazonenses de oposição, representadas
na sua bancada estadual, se opunha à intervenção do governo federal no estado. Segundo,
em decorrência disso, os jornais eram os únicos espaços de contestação possíveis no
estado de exceção e a imprensa passou a ser o campo privilegiado do embate político.
Porém, o estado detinha o monopólio das informações, por meio da censura,
determinando o jogo de forças. As oligarquias regionais manifestavam-se, via imprensa
local, mas, os formadores de opinião “nacional” ou apoiavam, incontestavelmente, o
regime autoritário imposto por Vargas, a exemplo do jornal A Noite, de Geraldo Rocha,
ou não conseguiam furar o controle imposto pelo DIP- Departamento de Imprensa e
Propaganda.
Seu ataque às "dissidências" regionais, as quais se formaram no bloco do
"Glebarismo”, resultou na repercussão negativa do movimento amazonense na capital
federal. O eco das manifestações amazonenses contrárias à criação dos territórios de
fronteira havia criado "confusão" entre a opinião pública carioca. O jornalista defendeu o
centralismo autoritário imposto pelo Estado Novo. Para esse, a criação dos territórios não
era uma questão pertinente às elites regionais, mas devia ser considerada "sob o prisma dos
altos interesses da nação inteira"; o problema para mim é questionar a qual conjunto de
"nação" o autor se referiu. O autor imputava o conflito à "sobrevivência" das oligarquias

170 “Capitão Aloysio”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 23 de fevereiro de 1938. Transcrito do A NOITE do
Rio de Janeiro de 10 de fevereiro de 1938.
171 “Tudo por um Brasil forte, coheso, indivisível: ‘O Glebarismo’ – modalidade feroz do regionalismo

inconsequente”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 06 de março de 1938. Extraído do A NOITE de 24 de


fevereiro de 1938.
85

amazonenses que permaneciam no poder, as quais, apesar de sua debilidade, colocavam


entraves à "modernização". Rocha acusava o Glebarismo de insuflar a desordem pública em
Manaus, ressaltando que elas se utilizariam de sua impunidade para praticar atos violentos
contra os aliados do governo federal: "incendiários das residências de seus adversários políticos, na
certeza da impunidade e que teve essa circunstância um incentivo a todos os desmandos".
Segundo Rocha, as elites regionais buscavam resguardar para elas o direito
adquirido sobre o monopólio das terras, pois o Amazonas havia sido "demarcado". Rocha
se contrapôs a essa argumentação, alegando que o estado não possuía uma população
"nativa", pois fora, obra da colonização dos "bandeirantes cabeças-chatas nordestinos". Sua
intenção foi de derrubar a tradição histórica baré, alegada pelo Glebarismo “nativo”,
alicerçado na visão de que o Brasil era um país sem fronteiras internas e indivisível, "uma só
terra e uma só gente".172 O “Glebarismo” dos latifundiários "manauaras" precisava ser
extirpado em nome do progresso, da razão e da "ciência de estado". Para o autor, "os
territórios de fronteira, eram necessários scientificamente ao Brasil como Estado e como Nação". A
modernização do espaço, por meio da "ciência geopolítica", portanto “acima” das
questões políticas, foi apontada como solução para sobrepujar a tradição do latifúndio.
Esse discurso despolitizava as questões sociais, baseado na ideologia positivista,
privilegiando a ciência como campo neutro e objetivo, “acima” das relações sociais e
políticas. A imprensa, submissa à ditadura, defendia o projeto “modernizante” do governo
Vargas.
Como apontou Messias da Costa, a "modernização" das regiões de fronteira se deu
num contexto de autoritarismo e centralização, em pleno regime ditatorial do Estado
Novo.
O regime político imposto ao país é marcadamente autoritário e centralizador. Não apenas
em relação às classes populares e seus movimentos, mas também centralizador em relação à força
política das oligarquias regionais, estaduais e locais. Servia-se delas, é verdade, cooptando-as para seus
projetos através de favores e fisiologismos de toda ordem. Entretanto, a política e a vida nacionais,
passavam a gravitar em torno do governo central, na forma do Executivo (órgão supremo do
Estado) e personificado na figura do ditador. 173

Além do mais, o art. 13 do Decreto Lei 5839 dispunha que as rendas e os tributos
devidos aos estados desmembrados em territórios seriam, obrigatoriamente, transferidas à

172 PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro, FGV, 1999. Segundo Angela de Castro
Gomes em seu artigo "Ideologia e trabalho no Estado Novo", o nordestino e o Nordeste tinham a atribuição
ideológica no período de "guardiães da unidade brasileira", de "reservatório da nacionalidade", de região que
podia verdadeiramente reavivar o espírito de brasilidade do Sul desnacionalizado.
173COSTA,Wanderley M. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil: a "montagem" do território brasileiro. São Paulo,

Ed. Contexto/USP, 1988 (Coleção Repensando a História). Sobre a geopolítica como "ciência" mistificadora das
relações sociais ver a crítica de Messias. p. 45.
86

União.174 As oligarquias estaduais "dissidentes" relutavam em perder o monopólio sobre


as terras do Amazonas e Mato Grosso e, consequentemente seu poder de barganha e sua
"arrecadação", que mesmo sendo deficitária, pois incidia sobre áreas de fronteira com a
Bolívia, verdadeiras portas abertas ao contrabando. Por outro lado, havia as pequenas
elites locais175 "desamparadas" pelas oligarquias estaduais. O jornal “A Noite”, de cunho
nacionalista e atrelado à situação, foi o porta voz, na capital federal, dessas elites
"nacionais" instaladas na fronteira oeste do país.
O leitmotiv da propaganda nacionalista de Geraldo Rocha foi a ideologia da
Marcha para o Oeste. No artigo "Construindo um Brasil", o autor situou o Cap. Aluízio
Ferreira como discípulo herdeiro de Rondon, relatando toda sua trajetória de militar,
apoiada nos bastidores pelo grupo do general. Retrocedendo a um tempo mítico,
comparou-o a Ricardo Franco, engenheiro militar responsável pela construção do Real
Forte Príncipe da Beira, no vale do Guaporé, no período das reformas pombalinas. A
intenção foi de constituir um mito em vida, a associação a Rondon era real,
contrariamente, a associação com Ricardo Franco era a-temporal. O engenheiro militar da
colônia foi o “construtor” do forte, balizando as fronteiras com a coroa da Espanha. O
autor tentou transferir ao cap. Aluízio Ferreira qualidades "históricas" como: a defesa
nacional na linha de fronteira e a posse do território pelas "construções".
Porém, o mais importante, nessa matéria, foi seu caráter de propaganda. O autor se
reportou a um "film" exibido pelo Cap. Aluízio Ferreira. A divulgação e a mensagem do
filme se confundiam, uma vez que era divulgado com a “neutralidade” de um
documentário. Mas, ao mesmo tempo, conferiu visibilidade ao seu conteúdo, promovendo
a região de fronteiras. O filme foi de fundamental importância na campanha de criação do
território. Rocha sedimentou a idéia da criação do território no imaginário do leitor e da
opinião pública da capital, através das imagens veiculadas pelo seu jornal. A criação do
território federal ganhava legitimidade, pois ali estava sendo "construído" o Brasil176.

E o "film" corria na tela, mostrando ruas e praças, substituindo as samaúmeiras e as


castanheiras gigantes que, em um cerrado compacto, fechavam o horizonte e obscureciam o
céo, constituindo uma espessa abóbada de 50 a 60 metros de altura.

174
LEGISLAÇÃO FEDERAL.. “Dispõe sobre a administração dos Territórios Federais do Amapá, do Rio
Branco, do Guaporé, de Ponta Porã e do Iguassú”. Decreto n.º 5839 de 21 de setembro de 1943. S. Paulo, LEX,
1.964. pp. 359-364.
175 Eram comerciantes e seringalistas que pagavam imposto às oligarquias regionais de Cuiabá e Manaus,

duplamente, sem o mínimo de retorno dos estados.


176 MACIEL, Laura Antunes. A Nação por um Fio: Caminhos, práticas e imagens da "Comissão Rondon". São Paulo,

EDUC/FAPESP, 1998. Para esta discussão em torno do material publicitário veiculado no formato de
documentário científico, portanto neutro e imparcial ver a crítica feita por Laura Maciel no capítulo "Uma
Câmara em Busca da Nação".
87

Casas de alvenaria substituíram os toscos ranchos de sapé ou os "tapirys".


Noutro tempo, quatro ou cinco enfermeiras americanas e seis ou oito pretas de Barbados,
eram as únicas representantes do bello sexo que circulavam entre os 6.000 homens ...
E hontem, centenas de meninas, uniformizadas e bem dispostas, marchavam no "film",
mostrando que já não tem razão de ser a phrase de Ruy Barbosa, classificando a terra ... "de
sítio, onde não se nasce, não se vive, apenas se morre!"
... E no "film", funccionam engenhos e turbinas de assucar. E soldados brasileiros evoluem,
sadios, abrem estradas, fundam núcleos agrícolas, fazem exercícios gymnásticos e aprendem a
amar e defender a Pátria, fixando no solo fronteiriço populações brasileiras, protegendo-as
contra as endemias e dando-lhes motivo de orgulho da raça a que pertencem e do Governo
que os conduz.
...Vi surgir no film , a cidade que sonhei com ruas arborizadas, praças, casas de alvenaria,
quartéis confortáveis, soldados evoluindo, campos de aviação, crianças aprendendo a amar a
Pátria, um Brasil Novo, ...177

Esse artigo é exemplar da propaganda oficial pró criação do território federal na


fronteira do Guaporé. Possui vários elementos emblemáticos e vou me deter,
pormenorizadamente, em alguns. Primeiro, a discussão recorrente, no iluminismo e
positivismo, entre natureza e razão. O autor defendia a modernização, a humanização
contra a natureza hostil ao comparar o Cap. Aluísio Ferreira ao Gen. Rondon e ao Cap.
Ricardo Franco, ambos construtores da civilização contra a natureza. Segundo, a questão
do saneamento, ao recordar a escassez de mulheres no período da administração
estrangeira, comparando-a ao período narrado. Inferiu a conquista ao meio hostil pela
capacidade de reprodução, "centenas de meninas uniformizadas e bem dispostas". Futuras
“matrizes” reprodutoras, educadas na "ordem", "vestidas”, “civilizadas" e bem adaptadas,
bem alimentadas e potencialmente saudáveis, contribuindo para o "povoamento".
Privilegiou a melhoria nas condições de higiene e saneamento básico. Se haviam meninas,
logo havia famílias estáveis recebendo um mínimo de assistência médica e sanitária.
Observe-se que, num primeiro momento, a contraposição era em relação ao reduzido
número de mulheres, as seis ou oito "pretas" barbadianas, e as quatro ou cinco americanas,
e americanas insuficientes para o "povoamento". Na visão do jornalista, o quadro humano
havia evoluído, pois, a partir daquele momento, formavam-se as "novas mulheres
nacionais". Terceiro, refere-se a soldados sadios, abrindo estradas, campos de aviação e
fundando núcleos coloniais, fixando no solo fronteiriço “brasileiros”, protegendo-os
contra as endemias. Valorizou o caráter defensivo da nação com o estacionamento de
tropas na fronteira e, ao mesmo tempo, a defesa pelo povoamento e colonização,
ressaltando as obras de infra-estrutura como abertura de estradas, aeroportos, colônias
agrícolas e trabalhos de saneamento. Por último, o elemento que englobava os anteriores

177 “Construindo um Brasil”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 10 de abril de 1938.Artigo de Geraldo Rocha
transcrito do jornal "A Nota ", Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1938.
88

ao frisar as recorrentes imagens de crianças no filme, sugerindo a "construção de um novo


Brasil", naquelas paragens.
A propaganda continha vários objetivos: atrair populações "excedentes" para a
região, estimular a aspiração à pequena propriedade pela "oferta" de terras para colônias
agrícolas; e, principalmente, exercer "pressão" sobre o governo para a criação do território
de fronteiras. Concluiu o artigo com estas palavras: "O "film" de Aloysio Ferreira merece a
attenção dos governantes do Brasil e dos filhos desta terra, que se interessem pelo seu evoluir." 178 Note-se
a invocação nacionalista do discurso, consignando o sentimento de "nação" ao "território".
A expectativa do autor foi de estender essa identidade “nacional” aos rincões da fronteira.
Se não foi de todo alcançada, foi ao menos pretendida.
O discurso publicitário de Rocha, gradualmente, ultrapassou a divulgação das obras
e realizações na região, adquirindo um tom de pressão ao governo federal. Este aspecto
pode ser notado no texto "Territórios de Fronteira", no qual destacou o esforço humano e
financeiro para a construção da EFMM e o potencial petrolífero do Vale do Guaporé
boliviano, riquezas em potencial que gerariam uma disputa entre os países desenvolvidos
pelo espaço fronteiriço brasileiro. Denunciando a falta de uma política "estratégica" na
questão das fronteiras, por parte do Ministério das Relações Exteriores e, criticando o
poder público pelo abandono da fronteira noroeste, afirmou que "toda a vasta região, que
confina com a Bolívia, jaz, até agora, deserta e inaproveitada". O autor ratificou as soluções
encaminhadas pelo governo central porém, na sua opinião, as ações deveriam ser
multiplicadas e "dinamizadas". Entre as soluções, destacou o fato do governo federal ter
confiado a EFMM e os Contingentes Especiais de Fronteira a uma administração militar,
com condições objetivas de disciplina, burocracia, e hierarquia, para manter a EFMM e a
região em pleno desenvolvimento. Solução que atendia dois princípios: a ocupação e o
saneamento feitos pela União sem "onerar" os cofres públicos com o aparelhamento de
uma burocracia civil:

Além disto, a sua Companhia Regional é um modelo de tropas de occupação de ínvias regiões ...
Os soldados são encarregados de abrir estradas de penetração; fazem lotes; desbravam o terreno;
realizam a primeira plantação, e nella o capitão Aloysio Ferreira localiza cada família, assegurando assim a
producção de gêneros necessários à subsistência dos occupantes da região.
Outr'ora, aquella fronteira, quer do lado do Brasil, quer do da Bolívia, importava tudo quanto
necessitava para viver...
Hoje, o beri-beri desappareceu com a alimentação fresca, abundante e vitaminada à disposição dos
habitantes.
O homem se estabilizou, e os confins pátrios estão sendo habitados por brasileiros, que asseguram o "ut possidetis" de
regiões que nos legaram os que nos precederam.
Aloysio Ferreira, é o dictador absoluto daquellas terras. É o único representante da autoridade, em
contacto com as populações.

178
“Construindo um Brasil”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 10 de abril de 1938.Artigo de Geraldo Rocha
transcrito do jornal "A Nota ", Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1938.
89

Mato Grosso longínquo, separado por mezes de viagem daquella região, não dispõe de recursos
materiaes para desenvolvê-la, nem de elementos para tornar efficientes as suas autoridades, em zonas
virgens, pobres de comunicações.
Urge pois, a creação de Territórios fronteiriços, que occupados por militares da envergadura de
Aloysio Ferreira, elevem a missão do nosso Exército, assegurando a integridade de nosso solo e
desbravando, para a Civilização, os férteis rincões das nossas fronteiras, abrindo os caminhos
futuros da nossa expansão.
Mato Grosso, Amazonas, Pará são regiões demasiado vastas para as populações reduzidas
que as occupam.
Estas imensas unidades administrativas, occupando territórios fronteiriços constituem um
perigo para a segurança nacional.
Devemos proteger as nossas fronteiras desertas, dividindo-as em Territórios, com a sua jurisdição entregue ao
Exército Brasileiro.179

O artigo suscita várias interpretações; primeiro, o governo utilizava a imprensa


situacionista como o “A Noite”, - jornal de apoio a Vargas180 - para arrebanhar adesões e
colocar em prática o seu programa de desmembramento de áreas do Amazonas e Mato
Grosso. Essa estratégia procurava neutralizar as resistências regionais que invocavam os
princípios constitucionais em favor dos estados formados por áreas oriundas das antigas
províncias e, que desde a República, garantiram a sua autonomia no monopólio e no
controle sobre as terras, bem como a arrecadação e sua administração nos limites de cada
estado.
"Coincidentemente", em 1938, o Cel. Manoel Alexandrino, Inspetor de Fronteiras
do Estado Maior do Exército, "visitou" os vales do Madeira-Guaporé e enviou seu
relatório ao Conselho de Segurança Nacional, sugerindo a criação de um território federal
na região. Ainda, nesse ano, o Conselho de Segurança Nacional elaborou o anteprojeto de
Criação dos Territórios Federais, em sua concepção muito semelhante às sugestões
contidas no relatório do Cel. Inspetor Manoel Alexandrino. O teor do anteprojeto de
decreto-lei era estritamente de execução militar, os quadros e a administração previstos
para os territórios eram hierarquizados e centralizados nas mãos do futuro governador,
necessariamente, um militar do Exército.181 Sua discussão e circulação eram restritas aos

179
“Territórios de fronteira”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 30 de março de 1938. Artigo de Geraldo Rocha

transcrito do A NOITE do Rio de Janeiro de 14 de fevereiro de 1938. AIZEN, N. Era Uma Vez Duas Avós....

9.ª ed. Rio de Janeiro, EBAL, 1995. Segundo o autor (Diretor da Editora Brasil-América S.A., desde 1966)

em 1944, pressionado por problemas de importação de papel de imprensa (naquele tempo, ainda não havia o

nacional), José Aizen vendeu o Grande Consórcio de seu grupo ao jornal A Noite, então pertencente às

Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, isto é, ao Governo.

180CAPELATO, Maria Helena. “Propaganda política e controle dos meios de comunicação” in Dulce Pandolfi
(org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro, FGV, 1999. Para maior esclarecimento quanto à imprensa no
período Vargas ver o artigo da autora. pp 171
181 Essa discussão sobre a estrutura militar contida no anteprojeto já foi abordada no primeiro capítulo.
90

meios militares e Ministérios da Guerra e Viação e Obras Públicas, sob a rubrica


“Confidencial” e “Reservado”.
Nesse sentido, os artigos serviam à "desqualificação" das administrações e bancadas
dos estados de Mato Grosso e Amazonas, de modo a legitimar, perante a opinião pública,
as propostas centralizadoras e as iniciativas de divisão do território nacional. Não se
tratava de um ataque frontal ao latifúndio estruturado pelas oligarquias nos dois estados. O
jornal justificava sua postura baseando-se na incapacidade das oligarquias em administrar
seus "imensos" territórios e desenvolvê-los a contento. Dentro deste espírito, em abril de
1938, A Noite publicou o artigo "A Transformação da região Madeira Mamoré em Território
Federal: Moção de apoio dos habitantes de Guajará Mirim ao presidente da República" –em que
reproduzia um abaixo-assinado dos comerciantes e trabalhadores de Guajará Mirim,
encaminhado ao presidente Vargas em 21 de março de 1938, solicitando a transformação
da região do Madeira-Guaporé, pertencente ao Mato Grosso, em território federal.

Habitantes de Guajará Mirim informados que vossencia baseado artigo sexto nova
Constituição Brasileira pretende desmembrar região Madeira Mamoré para transformá-la
território federal visando assim sagrados interesses defeza nacional correm pressurosamente à
sua presença para lhe hypothecar absoluta solidariedade na execução dessa patriótica medida...
Confiados a vossencia de facto creará território federal zona Madeira Mamoré a grande
aspiração de todos seus habitantes...182

Sobre esse documento, apresento algumas questões: qual o interesse em tornar


público, para os leitores cariocas, umareivindicação assinada por aproximadamente 50
pessoas, sem representatividade no cenário "nacional", sem força política, ou poder
financeiro? Como e porque um anteprojeto proposto pelo Conselho de Segurança
Nacional, de circulação restrita, chegou à mídia? Como a imprensa e os"simples
moradores" da minúscula cidade fronteiriça tinham conhecimento da criação dos
territórios federais? A estratégia do governo me parece ter sido a de "plantar" a discussão
na imprensa, manipulando a opinião pública a favor dos seus projetos.183 O texto do
abaixo-assinado é curioso e, ao mesmo tempo, enigmático. O documento foi subscrito
pelas diversas categorias: promotor de justiça, juiz, coletores federais, escrivães,
funcionários públicos em geral, ferroviários e operários da EFMM, prelado religioso e,
majoritariamente, comerciantes e seringalistas.

182 “A transformação da região Madeira Mamoré em Território Federal: Moção de Apoio dos habitantes de Guajará Mirim ao
presidente da República” ALTO MADEIRA. Porto Velho, 20/abr/1938. Transcrito de A NOITE de 02/abril/1938.
183 PINTO, Emmanuel Pontes. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território Federal do Guaporé como Fator de Integração

Nacional. R. de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. Sobre os vários projetos de redivisão territorial ver a abordagem do autor
pp. 135.
91

Os textos subsequentes seguem a mesma linha, conferindo uma maior abrangência


e tratando de todas as fronteiras nacionais. O autor apoiou a criação de territórios de
fronteira administrados por militares do Exército. Num estilo evolucionista, comparou
Guajará Mirim, visitada somente com escolta, devido aos ataques indígenas, com a cidade
após a "nacionalização" da EFMM. Na sua visão, a cidade, antes palco de batalhas agora
possuía casas confortáveis, hospitais, escolas e quartéis, endossando a criação do território
de fronteira. Guajará Mirim seria finalmente "civilizada", mas para essa "civilização"
florescer em todo o seu “potencial”, havia de ser criada uma unidade federal, administrada
pela União.

É imprescindível a creação de territórios fronteiriços, dirigidos por militares, em toda a orla de limites
com os paizes extrangeiros, actualmente inexplorada.
Do Amapá até o Acre, pela linha fronteiriça, estamos cercados de “terras de ninguém”.
Aloysio Ferreira, director da Estrada de Ferro e comandante do contingente militar, tem
sua efficiência entorpecida pela falta de mandato estadoal sobre autoridaddes judiciarias ou
policiaes da região.184

Somente os militares, na visão de Rocha, conquistariam o desenvolvimento


almejado, pois eram os únicos que reuniam condições de enfrentar as crises econômicas e
de abastecimento. Enfatizou o esforço e a capacidade dos soldados e oficiais do Exército
personificados no Cap. Aluísio Ferreira. Este fez ressurgir na fronteira, a figura do
soldado-cidadão, transcendendo o seu papel puramente militar. Os soldados lavravam a
terra e criavam as infra-estruturas necessárias à ocupação e à colonização da região. Na
opinião de Rocha, todas essas ações haviam sido fundamentais, porém, eram
"emperradas" pela falta de poder de execução do Cap. Aluísio Ferreira. Fazia-se necessário
um mandato “estadual” sobre autoridades judiciárias e policiais. O autor exigia poderes
discricionários para o capitão atuar além das esferas da EFMM e dos Contingentes
Especiais de Fronteira. Poderes para determinar a distribuição das terras devolutas, a
criação de impostos sobre comercialização e circulação de mercadorias, de produção
agrícola, enfim, subordinar a justiça através das instâncias jurídicas e policiais:

A transformação do trecho limitrophe, banhado pelo Guaporé, pelo Madeira e pelo Mamoré, em
um território federal, multiplicaria o esforço dos moços militares,...
As colônias militares, dirigidas por officiaes, dispondo de amplos poderes, e da livre escolha do
Governo Central, representarão o aproveitamento dos territórios desertos, a posse efetiva de
terras, e a utilização de riquezas latentes consideráveis com que a natureza pródiga dotou o
solo inexahaurível do Brasil!185

184“Territórios de fronteiras”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 19 de Outubro de 1938. Artigo de Geraldo Rocha
transcrito do A NOITE, Rio de Janeiro, sem data.
92

Mais uma vez defendeu a austeridade militar com disciplina, ordem e hierarquia,
combinadas a uma administração centralizadora nas mãos do comandante militar, para os
vales do Madeira-Guaporé. Aliás, estendeu esse modelo de administração das áreas de
fronteiras para outras regiões criticando o domínio da companhia Matte Laranjeira, no sul
do Mato Grosso, região que também deveria ser transformada em território federal, para
que não se tornasse um "enclave" dentro da "nação brasileira". A solução indicada era o
governo federal se apoderar da região e entregá-la à administração do Exército.
A proposta do autor, nesse artigo, se dividiu em três ações diferenciadas e
imbricadas. Primeiro, propunha o desmembramento dos estados na região de fronteira.
Segundo, propunha que a administração dessas áreas de fronteira deveria ficar nas mãos
do Exército. Por último, a ocupação por meio de colônias agrícolas e extrativistas, de
caráter militar, aproveitando soldados-cidadãos sob comando do Exército. A posse efetiva
seria garantida pela tropa de defesa e a ocupação do solo, consequentemente,
implementada por ela. A defesa seria garantida pelas armas, ocupação e produção, prática
usual para a fixação desses Contingentes Especiais de Fronteira à região. Através da
fixação a terra pela pequena propriedade, a defesa pela ocupação estaria garantida. Assim,
a integração econômica estava embutida nos ideais de ocupação das fronteiras, sob a tutela
do governo federal, representado pelo Exército, que fixaria os colonos e criaria um
mercado interno.
Em "Política Continental", último artigo dessa série, o jornalista deixou
transparecer o seu "conhecimento" estratégico sobre as fronteiras com a Bolívia. Criticou a
construção da ligação entre Corumbá e Santa Cruz pela ferrovia Noroeste do Brasil, com
objetivo deligar a região ao porto de Santos, pois o custo do frete ferroviário era muito
superior ao hidroviário. Enfatizou que o petróleo boliviano - situado no vale do Beni a 500
quilômetros de Porto Velho - seria escoado com mais facilidade e custo de apenas 10%, se
fosse construido o óleoduto até Porto Velho, terminal onde se instalariam destilarias,
servindo ao mercado interno e à exportação pela facilidade de escoamento, através de
navios com capacidade de 6.000 toneladas.
As ações de intervenção direta se deram a partir de 1937, em virtude de Vargas ter
dado o golpe de estado, fechado o congresso e instalado o Estado Novo. O golpe resultou
num hipertrofiamento do Executivo, o qual passou a deter plenos poderes sobre a política
nacional. Aliás, a política autoritária, em nome da "segurança nacional", fora veículada pela
imprensa local desde 1936, reforçando o "nacionalismo" voltado à ocupação. Desde

185 “Territórios de fronteiras”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 19 de Outubro de 1938. Artigo de Geraldo Rocha
93

setores da imprensa getulista, como o jornal A Noite, até jornais de Belém, que concediam
espaço ao Gen. Rondon, figura de imagem sólida junto à opinião pública, não deixavam
duvidas sobre sua posição. Esse quadro "favorável" ao autoritarismo foi construído
deliberadamente, pois a imprensa oposicionista a Vargas havia sido empastelada em nome
da "segurança nacional". O panorama "favorável" foi veiculado por meio de imagens
positivas pela imprensa de Manaus, "A caminho de um "inferno verde que offerece trabalho e
conforto num estado onde o funcionalismo está em dia". 186 Propagandas de atração de mão-de-obra
divulgavam as vagas existentes na EFMM e ofereciam passagens de navio gratuitas até
Porto Velho. Elencavam as melhores condições de trabalho da época: jornada de oito
horas, sábado remunerado e horas extras pagas na forma de gratificações especiais. A
partir de 1938, a EFMM passou a ter dotação orçamentária da União, possibilitando uma
série de "melhorias": a atração pelos salários, a construção de casas para operários,
ferroviários e militares e a construção da usina termoelétrica. A propaganda foi
acompanhada de ações concretas implementadas pelo Estado Novo por meio da EFMM.
Os intelectuais regionais seguiram o rastro da imprensa "nacionalista", como foi o
caso do doutor Ramayana de Chevalier, autor da obra Fronteira, abrangendo a região do
Noroeste Matto-grossense: MAMORÉ-GUAPORÉ.
Em entrevista concedida ao jornal A Tarde, de Manaus, Chevalier posicionou-se
defendendo o desmebramento e menosprezando as perdas dos estados do Amazonas e
Mato Grosso. Segundo ele, o Amazonas nada perderia, pois o desmembramento afetaria
as maiores partes do Mato Grosso. O autor mensurou as perdas do Mato Grosso na
importância de cento e cincoenta contos anuais. As perdas deviam ser relevadas em nome
do "imperativo patriótico", pois, a desanexação da região do Madeira-Guaporé era do
interesse de milhares de brasileiros. Ele referia-se aos poucos habitantes que viviam em
Porto Velho, Guajará Mirim e espalhados em suas vilas no traçado das linhas telegráficas
pelo sertão matogrossense. A estrutura militar já implantada na região era apresentada
como o lastro que conferia consistência e legitimação à criação do território federal. A
criação do território, segundo o autor, era uma “necessidade” para o bem da própria
"nação", ação objetiva de integrar, de fato, aquela área ao restante do país. Exaltou o
modelo de ocupação, implementado pelo exército por meio dos núcleos agrícolas,
louvando a atuação das tropas que povoavam e criavam a infraestrura necessária à fixação
do homem:

transcrito do A NOITE, Rio de Janeiro, sem data.


94

Não conheço elemento mais adiantado de civilização, no nosso paiz, que esses
estabelecimentos militares extendidos ao longo de nossas immensas e despovoadas lindes.
Comandados pelo cap. Aluísio Ferreira, que é, lá por aquelas bandas, controlador do serviço de
Linhas Telegráficas, diretor da estrada de ferro e chefe dos contingentes fronteiriços, realizam
aqueles soldados uma imensa obra de patriotismo...
Os exércitos coloniaes, num território deshabitado como o nosso e nesta hora trágica de
apprehenções para os povos fracos, representam a legítima posse do nosso patrimônio legado
pelos ancestraes e do qual não poderemos desfazer sem incorrermos no mais repellente crime
contra a unidade nacional.187

O jornal carioca Gazeta de Notícias creditou a "“Marcha para o Oeste”, não a Vargas,
mas invocou a figura do Gen. Rondon, já mitificada naquele momento e os feitos da
"Comissão Rondon": a descoberta dos rios, suas nomeações e "rebatismos",
configurando-os como descobertas científicas. A criação da "identidade nacional" era o
legado da Comissão personificada no seu líder, o Gen. Rondon. Se Rondon foi o
descobridor, o devassador de regiões "desconhecidas", o próprio jornal se contradiz ao
apontar que o sertanista "trilhava caminhos que "só haviam [sido] penetrado [pelos] os pioneiros
sertanejos, creadores de gado, garimpeiros e seringueiros". Contradições à parte, o mais importante
desta matéria foi o enfoque ideológico, representando o "reconhecimento oficial" do
Brasil pela Comissão Rondon. Os "descobrimentos" de Rondon foram se incorporando à
"nação", por meio dos conteúdos pedagógicos da rede pública de ensino primário e
secundário. A partir das imagens veiculadas pela Comissão e de suas "descobertas", se
elaborava o conceito subjetivo de "nação" pela "conquista" do território:

Este território hoje integrado nas cartas com o chrisma justo de Rondônia, foi totalmente
reconhecido pelas expedições chefiadas pelo ilustre militar brasileiro.
Os estudantes das nossas escolas primárias e secundárias percorrem hoje, em suas
pesquizas, as quadras em que estão representados os cursos dos rios, as direcções das serras e
os novos povoados desco bertos pelo General Rondon.
Há nessa obra gigantesca a substanciação do princípio de civilização há pouco formulado
pelo Presidente Getúlio Vargas; A Marcha para o Oeste.188

Os objetivos da empreitada de ocupação do extremo Oeste eram outros. Porém, a


imprensa os enfeixavam como se fossem seqüência imediata de um e outro momento,
atrelando Rondon a Vargas. O "reconhecimento" estratégico e político da região de
fronteira, nos primeiros anos republicanos, tinha por objetivo "abrir" a área para permitir a

186 “A caminho de um "inferno verde" que offerece trabalho e conforto num estado onde o funcionalismo está
em dia”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 20 de junho de 1938.Transcrito do jornal A TARDE. Manaus, 02 de
junho de 1938.
187 “Um grande livro sobre a fronteira NOROESTE DO BRASIL”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 02 de março

de 1938. Extraído do “A Tarde”, Manaus, 19 de fevereiro de 1938. Chevalier era médico e escritor e publicara o
livro Fronteira em Manaus, ao que tudo indica estava ligado aos interventores federais e não ao Glebarismo.
188“Um pioneiro da marcha para o Oeste”. ALTO MADEIRA.. P. Velho, 17 de agosto de 1938.Transcrito do jornal "A
Gazeta de Notícias" do Rio de Janeiro, de 31 de julho de 1938.
95

ocupação e exploração de reservas naturais: ouro, diamantes, madeiras nobres e outros


produtos. Havia a preocupação com o domínio estrangeiro; um dos argumentos utilizados
por Rondon para levar os fios do telégrafo à região da EFMM. Sob argumentos de
necessidade de "reconhecimento" e de localização de "trabalhadores nacionais", para a
“guarda” das riquezas naturais, a Comissão Rondon propiciou a expropriação de
territórios indígenas e abriu caminho para a intensificação da exploração capitalista.
No período Vargas, buscava-se a integração econômica, por meio do controle
imediato, através da administração direta do governo federal. Os recursos naturais e as
riquezas do subsolo passariam ao controle do estado e daí poderiam ser explorados,
contribuindo para o crescimento da economia industrial insurgente no país. Os recursos
naturais seriam aproveitados de maneira racional, através de empresas financiadas pelo
estado, quadro este, conceituado como a "redivisão regional" do trabalho na economia
interna brasileira189. No segundo momento com Vargas, deu-se a "ocupação" para a
exploração, de fato, e a integração à economia interna "nacional", por meio do estado
autoritário e interventor na economia.
Paralela aos discursos ideológicos veiculados pela imprensa carioca e regional de
Belém e Manaus, temos a criação da Comisssão Especial de Revisão das Concessões de Terras na
Faixa de Fronteiras, para estudar e propor a regulamentação das terras devolutas na
fronteira. Essa foi criada para ser um instrumento de intervenção federal direta junto ao
governo dos estados detentores de áreas de fronteira.
A criação dessa Comissão de Revisão foi seguida de uma série de ações, direcionando
o foco para a região de fronteiras. Uma delas fora a expedição ao vale Madeira-Guaporé
feita pelo Cel. Manoel Alexandrino, Inspetor de Fronteiras à serviço do Estado Maior do
Exército. Cabe ressaltar que tal Comissão e a Inspetoria de Fronteira estavam diretamente
ligadas ao Conselho de Segurança Nacional, pela sua Secretaria Geral, subordinada ao
Palácio do Catete. Consubstanciando a propaganda, a Secretaria Geral de Segurança
Nacional elaborou, em dezembro de 1938, o anteprojeto de decreto-lei, objetivando a
criação dos novos Territórios Federais. Reforçando a concepção da ocupação como forma
estratégica de segurança do estado brasileiro e regulamentando, no papel essa visão, o governo
Vargas editou o decreto-lei n.º 1164, em 18 de março de 1939 190, que dispunha sobre as
concessões de terras e vias de comunicação na faixa de fronteira - num raio de 150
quilômetros, reservado para colonização – as quais deviam ser obrigatoriamente

189 OLIVEIRA, Francisco. Elegia pra uma Re(li)gião. 3ª ed. R. de Janeiro, Paz e Terra/CEBRAP, 1981. Pp. 73-89.Para esta
discussão ver especificamente o capítulo "Expansão capitalista no Brasil e desenvolvimento regional desigual".
190 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei n.º 1164 de 18/03/39. S. Paulo, LEX, 1.964. pg. 104
96

reanalisadas pelo Conselho de Segurança Nacional. Os estados, divisando as fronteiras


com outros países, perderam sua autonomia e jurisdição sobre aquelas porções lindeiras,
passando essas áreas ao controle direto da União. Fora dado mais um passo para o
desmembramento das terras pertencentes aos estados fronteiriços e sua transformação em
territórios federais.
O anteprojeto de criação de territórios federais foi de 1938, mas a discussão vinha
sendo enunciada por Geraldo Rocha no jornal carioca A Noite, desde 1935.191 Na
distribuição das terras deveria ser dada preferência a praças reservistas do Exército e da
Marinha, ou das polícias militares; a militares reformados ou a funcionários públicos aposentados.
O Art. 8º demonstrava a preocupação com as faixas fronteiriças por meio da ocupação
tutelada pela União, esclarecendo os pormenores da política de nacionalização de
fronteiras, propondo a predominância de brasileiros natos na razão de 80%, e que a educação seja
[fosse] ministrada em língua brasileira, além de garantir a exclusividade do pequeno comércio e do
comércio ambulante a brasileiros natos. O art. 19 tratava ainda da administração das áreas de
fronteira pela União, definindo a revisão das concessões de terras devolutas, feitas pelos
estados e municípios. Estes ficaram sujeitos à comissão especial nomeada por Vargas, a
qual proibia qualquer negociação sem a anuência da Comissão de Revisão.
Em período relativamente curto- os relatórios sobre a inspeção de fronteiras são de
1938- foi elaborado o anteprojeto de criação de territórios federais nas fronteiras. Os
relatórios ao Conselho de Segurança Nacional foram o embrião do anteprojeto de criação
dos territórios, seguido da promulgação de decretos, preparando o terreno para a
consecução do projeto. No dia 16 de junho, três meses após a regulamentação das
concessões de terras na faixa de fronteiras, foi editada nova medida conjugada às políticas
do poder executivo federal para as fronteiras, por meio do decreto-lei n.º 1351192. Nesse,
o Presidente criou colônias militares de fronteiras em pontos escolhidos pelo Conselho de
Segurança Nacional, subordinadas diretamente ao Ministério da Guerra.
A imprensa de Manaus, antecipadamente, divulgou, em 1940, a Criação dos
Territórios de Fronteira: Amapá, Rio Branco, Iguaçu e Guaporé. Adiantavam os jornais
haver sido consignada verba específica de quarenta mil contos de réis para esse fim.
Paralelamente, o governo federal tomou medidas de infra-estrutura, visando "modernizar"
a região e integrá-la ao mercado "nacional". Em 1940, foi instalada a Delegacia Seccional
do Recenseamento, transformada posteriormente em agência do Instituto Brasileiro de

191 As transcrições contidas no jornal Alto Madeira creditam o nome do jornal como “A Nota”, porém não encontramos
referência a esse periódico no Rio de Janeiro. Conforme Werneck Sodré o jornalista Geraldo Rocha era proprietário do jornal
getulista A NOITE.
192 LEGISLAÇÃO FEDERAL Decreto-lei n.º 1351 de 16/01/1939. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pg. 312
97

Geografia e Estatística. Essas medidas não alteravam a realidade do isolamento, mas ao


menos evidenciavam a "presença" do governo federal por meio dos recenseadores e da
burocracia, esses instalados para o censo de 1940. Os habitantes "engrossaram" o total da
população brasileira, suscitando a idéia de que, se fossem "contados", passariam a existir.
De alguma forma ganhavam visibilidade além da região para as esferas nacionais. As elites
locais receberam a estrutura da Delegacia do Recenseamento com muita expectativa,
relacionando o censo à necessidade de conhecimento da região pelo governo Vargas.
Aguardavam a intervenção nas áreas da educação, da assistência médico-sanitária e da
ordem pública. Desejavam a solução do saneamento, pelo combate ao alto índice de
mortalidade infantil. As elites creditavam à insalubridade o fracasso do crescimento
vegetativo e sua conseqüente “falta de braços” para a exploração. Esperavam políticas
compensatórias para o grande êxodo sofrido entre as décadas de 20 e 30. Pediam
incentivos à abertura de núcleos agrícolas, por meio de investimentos diretos na concessão
de passagens de navio aos sertanejos para virem do nordeste.
A manchete da criação dos territórios foi estampada no jornal O Radical, do Rio de
Janeiro, e sua cópia foi publicada pelo O Estado de Matto Grosso, sediado em Cuiabá193,
divulgando a criação de dez territórios de fronteira: Amapá e Óbidos seriam
desmembrados do estado do Pará; Rio Branco, Rio Negro e Solimões do estado do
Amazonas; Acre, Guaporé, Jauru e Maracaju do estado do Mato Grosso e Iguaçu
desmembrados de porções de Santa Catarina e Paraná. Paralelamente, o jornal O Globo
publicou a promoção do Maj. Aluízio Ferreira, com direito a foto, consignando sua
ascensão na carreira militar ao relevante papel como "pioneiro real da marcha para o Oeste".194
O jornal situava a imagem do Maj. Aluízio Ferreira como "precursor" da campanha da
"“Marcha para o Oeste”". Relacionou diretamente a sua atuação administrativa na
"integração" da região à economia "nacional", com a sua promoção militar. O jornalista
Roberto Greba, do Correio da Noite, divulgou matéria similar. O autor relacionou a atuação
do Maj. Aluízio Ferreira ao lema ideológico denominado por ele de "Rumo ao Oeste".195 A
integração se deu por meio da propaganda e das ações.
Em outubro de 1940, a visita de Vargas à região, inaugurando as "obras"
construídas pelos ferroviários da EFMM e soldados dos Contingentes Especiais de
Fronteira objetivava dar visibilidade ao programa da Marcha para Oeste. A impressão de

193
“A nova divisão territorial do Brasil”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 28/ev/1940. Extraído do “O Estado do Matto
Grosso”. Cuiabá, sem data. Extraído do “RADICAL”. Rio de Janeiro, 14/fevereiro/1940.
194 “Telegramas”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 17/mar/1940. Extraído do “O Globo”. Rio, 13/mar/1940.
195 “Elogios á obra de penetração na hinterlândia do Major do exército”. ALTO MADEIRA. Transcrito do jornal Correio da

Noite de 11 de abril de 1940.


98

Vargas teria sido muito "positiva" e, ao assistir ao desfile dos alunos do Grupo Escolar
Barão do Solimões, dos ferroviários da EFMM e dos militares da 3ª Companhia de
Fronteira teria exclamado: "Isto aqui já é um Território Federal".196 Vargas, em entrevista à
Agência Nacional em Porto Velho expôs sua satisfação, dando origem ao famoso dístico
identitário "Sinto que neste recanto longínquo da Pátria cada operário é um soldado e cada
soldado um operário que trabalha e vive pela grandeza do Brazil. Concito-vos a não
esmorecerdes porque dais à todos, nesta florescente região da Amazônia, um exemplo de capacidade e
devotamento ao trabalho." 197 Vargas teceu comparações entre a EFMM de antes e a de após a
“nacionalização”. Segundo suas palavras, esta havia sido a demonstração do imperialismo
dentro de nossas fronteiras, sendo uma parte da "nação" praticamente fora de "controle",
e da "ordem" nacional. Em contraste, a administração “nacional” do Estado Novo vinha
cumprindo seu papel político e social para o Brasil, “integrando” os "trabalhadores
nacionais" (estes, na maior parte, eram barbadianos, gregos, italianos, espanhóis e
bolivianos) ao regime trabalhista vigente para o restante do país. Ironicamente, os
ferroviários desmascararam as contradições do discurso presidencial ao desfilarem
trazendo ao peito faixas reivindicando a jornada de oito horas. Na realidade, trabalhava-se
de 12 à 16 horas diárias na ferrovia, o que também colocava em cheque a propaganda de
“atração” feita pelo Maj. Aluízio Ferreira em 1938. No dia 12 de outubro, Vargas recebeu
Dom Umberto Valdez, cônsul boliviano, e o mesmo congratulou o presidente pela
encampação da EFMM. Informou que o oriente boliviano havia aumentado o volume das
suas exportações após a "nacionalização".198 A nacionalização citada pelo cônsul foi
estendida a uma das maiores companhias de navegação fluvial do mundo. A "Amazon
Steam Navigation Co Ltd" e a "Amazon River" foram transformadas no Serviço de
Navegação do Amazonas e Portos do Pará (SNAPP), revitalizando a navegação e
modernizando os serviços portuários. Segundo Matias, o presidente foi insistentemente
assediado pelas elites locais, “a visita estendeu-se por três dias, príodo em que o presidente ouviu de
comerciantes e líderes políticos uma só reivindicação: a criação do Território Federal do Guaporé. 199
A viagem do presidente reafirmou o projeto de setorização regional da economia
brasileira e utilizou a figura do "nordestino", como conquistador da floresta, dos rios e da
terra, ratificando a ocupação do solo amazônico por "trabalhadores nacionais".
Entretanto, houve uma mudança de diretrizes. Desde o primeiro "boom" da borracha, no

196 GOVERNO DE RONDÔNIA. Secretaria de Educação e Cultura.Calendário Cultural 1981/1985. S.Paulo, Imprensa
Oficial do Estado S/A, 1985.
197 “O Discurso do Presidente da República”. ALTO MADEIRA.. Porto Velho, 16 de outubro de 1940.
198 “Tratando dos problemas brasileiro-bolivianos” ALTO MADEIRA. P. Velho, 30/out/1940. Transcrito do jornal "O

Globo" de 12/out/1940.
199
MATIAS, Francisco. Pioneiros: ocupação humana e trajetória política de Rondônia. P. Velho, Ed. Maia, 1997. Pp. 88.
99

século XIX, havia sido praticado o extrativismo baseado no conhecimento empírico


passado entre os extratores. Vargas propôs um redirecionamento na exploração dos
recursos naturais; a Amazônia seria ocupada em "moldes racionais", amparada pelos
órgãos nacionais de pesquisa, e sua exploração ficaria sob controle direto do governo
federal. Essa "nacionalização" foi concretizando-se a partir de ações como a criação do
Instituto Agronômico do Norte (sede em Belém), que tinha a finalidade de pesquisar e
produzir seringais nos moldes da Ford, na bacia do Tapajós. Vargas considerou a carência
de "técnicas", de produção e de saneamento os maiores problemas para a ocupação dos
"imensos espaços vazios". Reafirmou a divisão regional do trabalho, dada a "vocação" da
Amazônia à produção de matérias primas vegetais e minerais para as indústrias de base do
eixo Rio-São Paulo e para o esforço de guerra.
A "intervenção" federal com políticas de ocupação foi crescendo de forma
cumulativa. Desde 1936, o governo federal chamava para si o controle sobre a ocupação
na região de fronteira e no estado do Amazonas, o que pode ser observado pelo artigo
veiculado pelo Alto Madeira: "Technicos norte-americanos visitarão o Amazonas". Nesse, o
ministro da agricultura Fernando Costa solicitava a assessoria do interventor Ruy Araújo
junto à "Comissão Norte-americana" em visita à Porto Velho. A comissão havia sido
encarregada de pesquisar as seringueiras dos vales do Madeira-Guaporé, sendo que o
objetivo era a mensuração de seu potencial para o cultivo de seringueiras em moldes
"racionais", como na Malásia. Além disso, a comissão iria colaborar na criação do Instituto
Agronômico do Norte em Belém, planejado para ser uma célula de "desenvolvimento"
local, por meio do à pesquisa agronômica e mineral.
O governo federal concomitante a essas ações aprovou, em setembro de 1941200., o
projeto e o orçamento para a construção de um porto flutuante na cidade de Porto Velho.
Na década de 30, as ações federais implementadas pelos ministérios da Agricultura, Viação
e Guerra passavam pela execução da EFMM. Nesse caso, o governo federal ampliou sua
"intervenção" direta nas economias do Amazonas e do Mato Grosso, considerando pois,
que, toda a produção extrativista de Guajará Mirim passava pelos postos fiscais do Serviço
de Navegação da Amazônia e Portos do Pará, alijando as receitas do Mato Grosso. O
abastecimento dos vales do Madeira-Guaporé era feito pelas praças de Manaus e Belém,
sendo tributados duplamente pelo Amazonas e Mato Grosso, fato que se constituía numa
das causas do descontentamento das populações dos vales do Madeira-Guaporé com os

200 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto n. 7.884 de 22 de setembro de 1941. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pp. 465.
100

respectivos governos. Esta situação política era favorável para o fortalecimento das ações
do governo federal.
Todavia, o principal fator catalisador das intervenções federais foi a necessidade de
guerra que imprimiu um "desenvolvimento" oportunista, acelerado e fugaz. Com os
Acordos de Washington, em 1942, a EFMM retomou suas funções a partir do crescimento da
exploração da borracha, principalmente a oriunda das regiões bolivianas dos vales do Rio
Beni e Abunã. Para "sustentar" e "transportar" esse crescimento relâmpago da exploração
da borracha, a Ruber Development (subsidiária do governo americano) financiou o
"reaparelhamento" da EFMM, recuperando seu material rodante em razão do maior
volume de cargas, ampliando seus depósitos em virtude do aumento dos estoques de
borracha e do aprovisionamento de gêneros básicos repassados aos "soldados da
borracha".201 Para Lenharo, esse crescimento fugaz na Amazônia como um todo foi
consequência do oportunismo propiciado pela “Batalha da Borracha”, pois em sua análise
o governo Vargas tinha apenas um discurso ideológico sobre o vale amazônico:

O oportunismo da empreitada aclara-se ainda mais quando se vê que a exploração da


borracha é apresentada como se fosse uma empresa planejada para executar a colonização da
Amazônia e alcançar o desenvolvimento da região. Se algum planejamento houve nesse caso, refere-se
tão somente à maneira como o trabalhador nordestino mantinha-se explorado e cercado, com poucas alternativas
de sobrevivência, entre elas a de migrar “encaminhado” pelas intenções de regime. 202

O abastecimento direto aos "soldados da borracha", implementado em conjunto


pelo governo federal e subsidiárias americanas203, simulava "dissolver" as "velhas" relações
de servidão pela dívida. Deixando de lado o "altruísmo", o objetivo era o aumento da
produção de seringa, por meio do "crescimento" da exploração pela incorporação de
novas áreas, utilizado como um "chamariz" às migrações nordestinas, visando o aumento
da oferta de mão-de-obra. Os relatos sobre a malária, escravidão, ataques indígenas, fome
e outros revezes haviam se espalhado como pólvora no nordeste. O governo federal para
atrair os nordestinos, tentou “reverter” essa imagem negativa, criada no primeiro ciclo da
borracha, por meio de propaganda combinada a “melhorias reais” nas condições de

201 LENHARO, Alcir. Colonização e Trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. 2ª ed. Campinas,
Edunicamp, 1986. O presidente Vargas decretou adiada a incorporação militar dos “soldados da borracha” que
comprovassem estar “servindo” nos seringais. O engajamento para servir no front na Itália era compulsório para
os reservistas, como segunda “opção” podiam se alistar como “soldados da borracha” para o esforço de guerra.
Para oficializar a condição militar, o DL 5225 de 1º/set/1943 criou o “Batalhão da Borracha”. pp. 94-5.
202 LENHARO, Alcir. Colonização e Trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. 2ª ed. Campinas,

Edunicamp, 1986. p. 91-2.


203
MATIAS, Francisco. Pioneiros: ocupação humana e trajetória política de Rondônia. P. Velho, Ed. Maia, 1997. Segundo
o autor, a Ruber Development Company era encarregada de abastecer os seringais enquanto que a Fundação
Rockfeller mantinha o Serviço de Saúde Pública-SESP, em tese para atender aos “soldados da borracha”. pp. 84-
5.
101

trabalho. Os investimentos no abastecimento de gêneros básicos e a "intervenção" nas


relações de trabalho buscavam o barateamento da produção, objetivando com isso
"quebrar" a cadeia de exploração, a qual estavam sujeitos os "soldados da borracha".
Porém, esse “investimentos” foram paliativos para o problema real, localizado nas formas
de expropriação do trabalho e da terra.
À medida que o Estado Novo inseriu o país na 2ª Guerra e no mercado
internacional, suas ações no plano interno foram sendo "centralizadas". As medidas
"intervencionistas" foram mal recebidas pelos seringalistas, apesar de que o "contrato-
padrão" em si não resgatava o seringueiro das garras dos “generais da borracha” [coronéis de
barranco]. Segundo Costa Sobrinho, o “novo contrato” foi inspirado nos velhos
"regulamentos" dos seringais. Apesar de ser "regido" pelo estado, refletia os interesses das
classes exploradoras,

... Na cláusula 4ª. Ao parceiro era negado o direito de negociar livremente a parte que lhe cabia
do produto. Essa condição que [anteriormente] era imposta pelos patrões agora assumia foro
de legalidade. A cláusula 5ª reforçava a submissão do "parceiro" ao ameaçar com ação policial e
judicial, inclusive com a perda do produto. A cláusula 10ª amarrava o trabalhador ao possível
débito, cerceando-lhe o direito de ir e vir.204

Ele ressalta que as antigas relações de trabalho e de produção permaneceram quase


que imutáveis. Segundo ele, o não cumprimento ao contrato de trabalho pelos seringalistas
era a regra na Amazônia Ocidental: "As elites empresariais reagiram de modo violento a essa forma
de intervenção estatal, questionando os alicerces dessa nova política, em nome da própria sobrevivência da
economia da Amazônia".205 A intervenção estatal simulava desarticular o sistema de
exploração vertical em cadeia, no qual a base produtiva era o seringueiro. Os
"investimentos" feitos para alterar as velhas relações foram insuficientes e ineficazes.
Conforme Costa Sobrinho, o abastecimento direto pelos governos brasileiro e americano
foi desastroso. Dessa forma, o sistema do "barracão" foi ironicamente revigorado, apesar
do crescimento rápido e curto da exploração da borracha para servir aos Aliados206.
As ações de Vargas reforçaram o projeto de incorporação da região ao mercado
interno. Criando o Banco de Crédito da Borracha formado por 40% de seus ativos de
capitais americanos visou o controle dos preços. Pelo Decreto-lei 4.451, de 09 de julho de
1942, estabeleceu a "exclusividade" do Estado nas operações de compra e venda do

204 COSTA SOBRINHO, Pedro V. Capital e Trabalho na Amazônia Ocidental. S. Paulo, Cortez/Rio Branco, UFAC,
1992. Pp. 87.
205 COSTA SOBRINHO. Op. Cit. P. 89.
206COSTA SOBRINHO, Pedro V. Capital e Trabalho na Amazônia Ocidental. S. Paulo, Cortez/Rio Branco, UFAC,

1992. Para uma leitura mais aprofundada sobre as intervenções do estado no seringal consultar especificamente
pp. 56~90.
102

produto, contrariando as prerrogativas da liberdade de comércio daquelas elites. O


governo federal utilizou várias formas de controle da economia e da política regional, pelo
Decreto-lei n.º 4.841 regulamentou as relações de trabalho e de produção entre os
“soldados da borracha” e os patrões, estipulando regras “econômicas” e “jurídico-
trabalhistas” para as elites locais, ou impedimentos à sua livre iniciativa. Segundo Costa
Sobrinho, este decreto conferiu poderes de intervenção ao Banco de Crédito da Borracha
(BSB) junto às elites seringalistas:
.
.. ampliou a intervenção do Estado na economia extrativa. O artigo 2º assegurava aos seringueiros a
continuidade de suas atividades pelo prazo de seis anos, e impedia a transferência, cessão ou
venda da exploração do seringal sem prévia anuência do Banco. No seu artigo 3º, dava poderes
ao Banco de Crédito da Borracha para intervir nos seringais desativados e designar prepostos para
promover a exploração regular da borracha.
... no seu artigo 9º anunciava que as relações entre seringalistas e seringueiros seriam reguladas
pelos contratos-padrão aprovados pelo Banco de Crédito da Borracha S.A.207

Com medidas “populistas”, o Estado Novo subordinou as elites produtivas ao seu


poder centralizado, a cláusula 7ª que trata das inovações nas relações, "garantia" ao
“soldado da borracha” o cultivo de um hectare de terra, alterando ilusoriamente as
relações de trabalho, pois a medida visava baratear o custo de produção. Ponderando que
a base da exploração era a majoração dos artigos manufaturados necessários para o dia a
dia, que a aquisição no barracão era "compulsória" e que ao seringueiro não era permitido
nem plantar nem caçar, foi um pequeno avanço nas relações sociais.
O governo federal, concomitante ao discurso de "conquista" do Oeste e de
"povoamento" da Amazônia, tomou medidas práticas. O presidente do DASP –
Departamento de Administração do Serviço Público -, Luiz Simões Lopes, em junho de
1942, enviou a Vargas a Exposição de Motivos n.º 1.174, em resposta à solicitação de parecer
no processo de transformação da EFMM em entidade autárquica- subordinada desde 1931
ao Ministério da Viação e Obras Públicas- com personalidade jurídica própria de direito
público, ou seja solicitando autonomia política e financeira. Primeiro, o parecerista negou a
autarquização da E. F. Central do R. G. do Norte, da Viação Cearense e Viação Férrea
Federal Leste Brasileiro. Depois, argumentou em defesa da EFMM, num parecer de sete
páginas, ressaltando as “características especiais” da estrada:

“Inteiramente diverso dos outros, é porém, o caso de que trata o presente processo; na
multiplicidade de seus aspectos difere a Madeira-Mamoré das outras estradas de ferro da
União: pode-se afirmar até, sem receio de contestação, que bem poucas ferrovias do mundo se
apresentam com características tão especiais quanto esta. (...)
Vale insistir na singularidade dessa estrada de ferro, cujos trilhos sulcam uma longínqua região de
nossa pátria, enormemente afastada dos grandes centros litorâneos e que estava a exigir uma

207COSTA SOBRINHO, Op. Cit.1992. pp. 83-4.


103

maior atenção do Estado, porquanto, desde a sua inauguração, ... até hoje, vêem as suas funções
se desdobrando e ultrapassando os objetivos visados por uma simples ferrovia.
Conforme tenho a honra de expor à V. Ex., Senhor Presidente, constatei, ... a) seu valor
estratégico como posto avançado da defesa das fronteiras; b) centro irradiador de atividades
civilizadoras, disseminador de cultura; na sua característica de eixo vital de um sistema coordenado
de transportes conjugados, com visível preponderância das vias fluviais; e, sobretudo, fator de
coesão da unidade nacional, (...)
Compete-lhe a tarefa de, devidamente socorrida pelo Governo Federal, revitalizar um imenso
espaço do território pela eclosão de células de atividades nas quais se torne produtivo o esforço humano;
melhorar as condições de vida de populações dispersas no afastamento da selva tropical; fixar
o homem ao solo ubérrimo e assisti-lo contra as asperezas regionais, o rigor climatérico, a
carência alimentar, a malária, o tifo, o impaludismo, o beribéri, etc”.208

Seguindo a sua linha de raciocínio, apontou os “problemas” da EFMM em relação


ao seu papel “desenvolvimentista”. Para ele, a solução passava pela pequena produção
familiar da cultura de vários gêneros, voltada ao “mercado local”, considerado fator
essencial de fixação do homem a terra. Os “agravantes” para o papel “progressista” da
EFMM eram a falta de vias de comunicação e transporte para o escoamento da pequena
produção local. Estes problemas e a baixa remuneração do trabalho eram os
impedimentos à fixação do homem em nossas fronteiras geopolíticas.
O parecerista considerava os “soldados da borracha” heróis anônimos, entregues à
própria sorte nas mãos dos “generais da borracha”. O governo Vargas interveio nessa
relação, “arbitrando” a desigualdade de forças entre as classes, visando fins políticos e
econômicos, pois, as relações de trabalho pouco ou nada se alteraram com a maior
“presença” dos poderes públicos. Ironicamente, os poderes executivo e judiciário
legitimaram- por meio do Governo do Território e das Promotorias Públicas- as
desigualdades sociais, e mantiveram o status quo vigente. O parecerista do DASP, por
conta dos “problemas” de ordem política e financeira da ferrovia, propôs como solução
definitiva, a criação de uma “área geográfica” para sua atuação. Ou seja, o governo federal
encontrou uma saída que privilegiou o seu controle sobre a região:

“No entender deste Departamento é chegada a hora de solucionar integral e


satisfatoriamente o problema, aplicando-se à região e aos serviços lá existentes um sistema de
administração especial, isto é, transformar a E. F. Madeira-Mamoré em entidade autárquica, dando-
lhe o apoio de uma base territorial com limites a serem definidos posteriormente.
Ter-se-ia, pois um Território Federal sustentado por dotações orçamentárias anuais... Em outras
palavras, à zona sobre a qual se exercem as atividades da Estrada de Ferro, aplicar-se-ia um
sistema de administração colonial em moldes autárquicos, capaz de assegurar à região, possibilidades
futuras de desenvolvimento econômico.
... À Estrada de Ferro caberia, a exploração industrial, não de suas linhas, como o Serviço
de Navegação do Rio Guaporé e outros locais, todos reunidos na mesma entidade, ao passo
que, ao Território, seria atribuída a tarefa de cuidar dos relevantíssimos problemas de
organização, colonização, saneamento, assistência social e econômica aos produtores e
trabalhadores.
Essa articulação entre uma entidade autárquica de natureza industrial e uma zona geo-
econômica, organizada sob a forma de Território Federal, teria praticamente o valor de:

208COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Porto Velho, Governadoria do Estado de Rondônia, 1990. Anexo
2 –Exposição de Motivos n.º 1.174 de 17 de junho de 1942.. pp. 257-260.
104

a)concentrar disponibilidades financeiras; b) aumentar o potencial construtivo; c)reduzir os


custos das operações; d) alargar o campo das atividades; e)intensificar a administração regional,
permitindo prontas decisões; g) permitir cuidar dos problemas locais com mais acertos,
segundo ordem de urgência e uma melhor aplicação dos recursos; h) coordenar as forças de
produção regionais, segundo os impositivos do meio ambiente; i) sistematizar, sob o duplo
aspecto estratégico e econômico, a ação administrativa num extenso setor da fronteira; j)
melhorar as condições de vida da população local, valorizando, simultaneamente, o homem e
a terra.209

Ao invés de conceder a autonomia à EFMM, o governo federal criou um território


de fronteira para a empresa administrar, desta forma o projeto discutido desde 1935,
através de notas em jornais como A Noite, tomou corpo. O anteprojeto elaborado em
1938, pelo Conselho de Segurança Nacional; extrapolou os meios militares e foi retomado
pelo Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), órgão civil incumbido
da reforma administrava do país. A questão estratégica permaneceu o argumento central,
sendo escopo de base à ocupação e desenvolvimento, por meio da fixação do homem ao
solo e da garantia de seus “direitos constituídos”, automaticamente, consideradas a União
garantiria a posse efetiva sobre o solo e sua defesa. A partir da eclosão das pequenas
propriedades, células de defesa do país, suplantaria-se o modelo de ocupação pelos meios
bélicos. No momento que o pequeno proprietário se sentisse “dono” daquela terra,
engajaria-se como “soldado” na defesa de seu patrimônio particular; assim acreditavam os
militares e os reformadores. O presidente do DASP indicou os alicerces para a
organização e futura administração do território:

“Diante disso, Senhor Presidente, consideradas simultaneamente as exigências das


condições locais, os superiores interesses da Nação e o imperativo de sobrevivência da própria
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré impunha-se a transformação do seu regime administrativo sob novas
diretrizes, na forma de sugestão que tenho a honra de indicar à aprovação de Vossa Excelência:
1º - Conceder personalidade própria, de natureza autárquica, à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré; 2º -
Criar, nessa longínqua região, um Território Federal, dando desse modo expressão objetiva aos sábios
dispositivos dos artigos 6º e 31 da Constituição de novembro de 1937; 3º- Atribuir ao governador
do novo território, nomeado, em comissão, o encargo de dirigir a Estrada de Ferro, a fim de que todo o
conjunto funcione, harmônica e eficientemente, num sistema de íntima articulação de forças,
visando atingir as vantagens da unidade de direção e evitar onerosos paralelismos de chefia; 4º
Por à disposição do governador as tropas de fronteira nele existentes para todos os fins, inclusive agrícolas,
como atualmente acontece; 5º-Conceder os recursos necessários para atender às despesas de manutenção
do novo Território Federal, devendo ainda ser-lhe ainda atribuídos, em cada exercício, no orçamento
geral da União, recursos para os programas aprovados por V. Excelência; 6º - Conceder à Estrada de Ferro
a subvenção correspondente aos déficit previstos nos orçamentos industriais aprovados por V.
Excelência; 7º - Instituir a obrigatoriedade de apresentação de um plano administrativo,
rigorosamente elaborado em função das necessidades mais urgentes da região no que diz
respeito principalmente aos problemas de saneamento, transportes, colonização, organização econômica e
controle da produção, assistência social e educação.210

209 COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Porto Velho, Governadoria do Estado de Rondônia, 1990. Anexo
2 –Exposição de Motivos n.º 1.174 de 17 de junho de 1942. pp 261-262.
210 COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Porto Velho, Governadoria do Estado de Rondônia, 1990. Anexo

2 –Exposição de Motivos n.º 1.174 de 17 de junho de 1942. pp 264-265.


105

O Diário Oficial da União publicou, de forma resumida, o teor da exposição de


motivos de Simões, sendo a justificativa para a autarquização da EFMM pautada na
excepcionalidade da ferrovia, diferenciando-se de outras ferrovias pertencentes à malha
ferroviária administrada pela União: pela sua localização considerada estratégica como posto
avançado na defesa das fronteiras; por ser trecho vital na comunicação dominada pelos fluxos
fluviais entre os vales do Guaporé e do Madeira, ambos diretamente tributários do rio
Amazonas, também por ser considerada via de "interligação" entre as fronteiras e as praças
de Manaus e Belém comunicando-se com o resto do Brasil via litoral; e por se constituir
fator de coesão da unidade nacional, extrapolando as suas funções de transporte, tendo por
encargo a colonização de suas áreas marginais; e também pelo saneamento e a assistência médico-
sanitária. A ferrovia ainda foi citada por seu papel "social", com objetivos de fixar o homem à
terra e assisti-lo contra as "asperezas" regionais.211
Para alcançar esses objetivos, fazia-se necessária a sua autarquização acompanhada
de dotação orçamentária própria, pois os rendimentos da EFMM eram minguados frente
aos "vultosos" investimentos necessários para a educação, saúde, produção e transporte. A
reivindicação de autarquização da EFMM foi o passo decisivo na estruturação da criação
do território. A transformação de sua figura jurídica ampliou a atuação político-
administrativa desenvolvida desde o ano de 1931 pelo Maj. Aluízio Ferreira, diretor da
EFMM, à frente da administração regional. Segundo Simões, a ferrovia devia se constituir
em embrião administrativo para as ações do governo federal. Entretanto, se observarmos a
atuação dos Contingentes Especiais de Fronteira e a EFMM, relativamente em menor
escala, pois na prática, o Maj. Aluízio Ferreira vinha implementando seu papel político
muito antes. O parecerista sugeriu a constituição de uma "área geográfica" de atuação da
EFMM conjunta à sua autarquização. O ato "institucional" foi a formalização de uma
realidadde já existente, pois o "território", circunscrito à atuação política da EFMM, estava
integrado aos poderes federais há uma década. Simões apresentou proposta clara,
direcionando para a criação da área do território sob administração direta do governo
federal, "Ter-se-ia pois um território federal sustentado por dotações orçamentárias anuais, à semelhança
nas suas grandes linhas do que se fez com o Acre, mas com uma particularidade no entanto: a de ter
como verdadeira espinha dorsal a referida via férrea." 212

211 DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. 20 de julho de 1942. Seção I, n.º 1.174. Cópia Arquivo Nacional-Lata 101
Min. Da Justiça e Negócios Interiores. Série Territórios Federais.
212 JORNAL OBSERVADOR ECONÔMICO DO PARÁ. 1941.
106

Uma matéria publicada no Alto Madeira reforçou as particularidades da criação do


território de fronteira. Segundo o artigo, "o governador dirigiria a ferrovia e teria à sua disposição

Mapa 3 – Criação dos Territórios Federais. FONTE: IBGE.

as tropas de fronteiras existentes no território, as quais [tropas] além dos encargos normais, teriam os
relativos à agricultura."213 Ampliou os poderes do Maj. Aluízio Ferreira, confirmando as
ações desenvolvidas desde a "nacionalização" da EFMM, "institucionalizando" a política
"colonizadora", e realçando o caráter político da ocupação, feita através da implantação de
núcleos agrícolas pelas tropas federais. A ação dos militares na criação de infra-estrutura:
abertura de aeroportos, estradas de comunicação, construção de hospitais, escolas e
fundação de núcleos agrícolas corroborou o "renascimento do exército colonial",
propagado pelo Maj. Aluízio Ferreira.
O “mosaico” de informações era recortado pelas elites locais, visando apoiar as
ações federais. Ações que lhes interessavam mais de perto: como a manutenção das tropas
de fronteiras, a ocupação através dos núcleos agrícolas e, principalmente, o
desmembramento das áreas pertencentes às oligarquias regionais, enfim, a constituição de
um Território Federal de Fronteira.
As correspondências oficiais entre o Diretor da EFMM e o Presidente do DASP no
período, permitem inferir que, progressivamente, a criação do território passou a ocupar o
centro das atenções. O Maj. Aluízio Ferreira enviou, em agosto de 1942, agradecimentos
ao Presidente do DASP por sua exposição ao presidente da República e informou os
107

passos iniciais para a autarquização da ferrovia e da criação do território. Esclareceu haver


recebido instruções do Ministro da Viação para apresentar uma minuta de autonomia da
EFMM, do mesmo modo que “anteriormente, também por determinação superior, eu prestara
informações ao Conselho de Segurança Nacional, na redação do anteprojeto de decreto criando os
Territórios Federais do Amapá, Rio Branco, Guaporé e Iguassu.”.214 O major sugeria ao presidente
do DASP alterações nos limites geográficos, estabelecidos no anteprojeto do Conselho de
Segurança Nacional. Segundo ele, os limites fixados até a margem esquerda do rio Abunã,
interporiam uma “cunha” de terras do estado do Amazonas entre o território a ser criado e
o território do Acre, “com todos os inconvenientes administrativos, políticos e estratégicos, o que
impedirá a continuidade dos territórios federais [na faixa] de fronteiras”. O Maj. Aluízio Ferreira
persistiu em suas “sugestões” junto ao presidente do DASP, recomendando a adoção da
fórmula administrativa contida no anteprojeto do Conselho de Segurança Nacional cujo
artigo 5.º determinava que os territórios federais fossem “comandados” pelo Alto
Comissariado da Administração Territorial (posto de alta patente do Exército ou Marinha)
e não pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, como propôs Simões. O major, em
sua “proposição”, representava interesses ligados diretamente ao Estado Maior do
Exército, e todas as suas “sugestões” visavam o controle pelo Exército, em vez do
controle civil:

A tropa de fronteira seria constituída pelo Exército Colonial, organizado segundo


disposições que lhe permitissem o trabalho continuado de amansar o sertão, policiar as populações e
contribuir para o progresso dos novos núcleos de civilização. ... Finalizando e ainda com a devida venia,
quero lembrar um nome capaz de governar o novo território e de dirigir, no novo regime, a
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: o do major Joaquim Vicente Rondon. É um oficial que tem
feito brilhante e rápida carreira; traz no sangue a energia do desbravador e no nome a
responsabilidade de severas tradições.215

A defesa dos interesses do Exército, feita pelo diretor da EFMM ao presidente


Vargas216, foi corroborada em outro ofício. O Maj. Aluízio Ferreira realçou a necessidade
do controle militar sobre os territórios, como enunciado no anteprojeto do Conselho de
Segurança Nacional de 1938. Ele sugeriu a “flexibilidade” por parte da União no controle
orçamentário, devido as “dificuldades” de comunicação, reivindicação que significava

213 “Vai ser creado o nosso Território”. ALTO MADEIRA.. Porto Velho, 23 de julho de 1942. Para uma leitura
mais aprofundada sobre as "prerrogativas sociais" das tropas do Exército na região consultar o primeiro capítulo
às pág. 64~80.
214
FERREIRA, Maj. A. Ofício enviado à Luiz Simões Lopes, Presidente do DASP. Porto Velho, 04/ago/1942.
EFMM-MVO.P
215 FERREIRA, Maj. A. Ofício enviado à Luiz Simões Lopes, Presidente do DASP. Porto Velho, 04/ago/1942.

EFMM-MVO.P
216 FERREIRA, Maj. A. Ofício ao Presidente Vargas. Ministério da Viação e Obras Públicas/EFMM. Porto Velho,

21/jan/1943.
108

liberdade de ação na sua administração. Em defesa dos interesses das forças armadas, o
diretor da EFMM “lembrava” ao presidente que os cargos de “dirigentes territoriais” eram
de interesse estratégico para a Nação. O major apoiou-se no Estatuto dos Militares que
previa o “desvio” dos mesmos para a administração pública, segundo as necessidades das
forças armadas.
Havia, no período da Segunda Guerra Mundial, um quadro interno e local favorável
à nova divisão geopolítica do Brasil, porém, grande parte da discussão já estava posta
desde o início da década de 30. Segundo Pontes Pinto, a divisão do território era uma
necessidade de crescimento das elites nacionais ligadas à industrialização, representadas
por geógrafos, militares, civis, cientistas, sociólogos, humanistas e entidades privadas e
públicas:

As mais importantes propostas relacionadas à partilha da Nação, ..., foram apresentadas em


1933, por Everardo Backheuser (geógrafo), Maxchado Guimarães (geógrafo, Segadas Vianma
(militar), Juarez Távora (militar) e pela Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. ...
A Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, ... foi mais além, propondo a criação de 10
territórios nacionais fronteiriços: dois no estado do Pará –Amapá e Óbidos; quatro no estado
do Amazonas – Rio Branco, Rio Negro, Solimões e Acre; três no estado de Mato Grosso –
Guaporé, Jauru e Maracaju; um entre os estados de Paraná e Santa Catarina – Iguaçu. A
justificativa para a criação dos territórios fronteiriços especificava que assim seria incentivado o
povoamento, a nacionalização e a defesa das raias nacionais...217

O decreto-lei n.º 5812, de 13 de setembro de 1943, criou os seguintes territórios


federais de fronteira: Amapá, formado por terras pertencentes ao estado do Pará; Rio
Branco, por terras ao norte do estado do Amazonas; Guaporé, por terras desmembradas
do noroeste do Mato Grosso e uma pequena porção do Amazonas; Ponta Porã, também
desmembrado da parte sudoeste do Mato Grosso; e Iguaçu formado por terras do Paraná
e Santa Catarina.
O decreto-lei nº 5.839, de 21 de setembro deste mesmo ano, regulamentou a
administração dos territórios da seguinte forma: o Território do Amapá foi dividido entre
os municípios de Amapá (capital), Macapá e Mazagão, todos formados com áreas do Pará.
O Território do Rio Branco entre Boa Vista (capital) e Catrimani, em terras do estado do
Amazonas. O Território do Guaporé foi dividido em quatro municípios, Lábrea, formado
pelas terras dos municípios de Lábrea e Canutama e Porto Velho (capital), com a área do
mesmo município de Porto Velho, todos do estado do Amazonas; o município de Alto
Madeira, formado pelas terras da antiga vila de Santo Antonio; e por último, Guajará Mirim,
formado pelo município de Guajará Mirim e parte do município de Mato Grosso (Vila

217
PINTO, Emmanuel Pontes. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território Federal do Guaporé como Fator de
Integração Nacional. R. de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993. pp. 135.
109

Bela) todos do estado do Mato Grosso. O Território de Ponta Porã foi dividido em sete
municípios, Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã (capital) e Dourados com as áreas de seus
respectivos municípios; Maracajú foi formado por áreas de Maracaju e Nioaque; Bonito
formado por parte de Miranda; e Porto Esperança, com parte de Corumbá, todos do
sudoeste do estado do Mato Grosso. O Território do Iguaçu foi dividido em Foz do Iguaçu
que anexou parte de Guarapuava; Clevelândia, com terras do mesmo município; e
Manguerinha, formado por parte de Palmas, todas pertencentes ao Paraná; e por último,
Xapecó, pertencente ao estado de Santa Catarina.
Dias depois, o Correio da Manhã publicou extenso artigo do professor Feijó
Bittencourt sobre a “constitucionalidade” da criação dos territórios, defesa que indica
haver críticas e resistências a tal ato. Como estratégia para emprestar legitimidade à fala e
avaliação do jurista, o artigo destacou seu extenso currículo:

A propósito do aspecto constitucional, digamos nacional, da creação dos 5 territórios


federais ouvimos o dr. Feijó Bittencourt, nome acatado em todo o país pelo seu saber de
constitucionalista e de historiador e que, além de ser um dos secretários do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, é professor de direito constitucional na Faculdade Nacional de Direito,
como livre-docente na Escola do Estado Maior do Exército e na Escola Amaro Cavalcanti.218

A interpretação do jurista alicerçou-se em critérios ideológicos, forjando uma


interpretação em que caso as áreas fronteiriças não alcançassem o “desenvolvimento social
ideal”, a União poderia desmembrá-las sem ferir direitos das unidades federativas. Para
comprovar sua tese, ele travou uma longa discussão entre “autonomia” e “soberania”, já
que, para ele os estados tinham autonomia, mas, não soberania. Fundamentou-se no
princípio de que a autonomia estadual era uma conquista política a partir do
desenvolvimento social. O estado tinha legitimidade se fosse autogovernado por suas
classes sociais organizadas. Segundo ele, as regiões desmembradas não possuíam as
mínimas condições de se autogovernar, mantendo-se à margem da “economia nacional”
com suas classes sociais débeis. A alegação econômica e social para o desmembramento
feriu o princípio constitucional de autonomia dos estados, superpondo-se violentamente
aos atores constituídos historicamente. O espaço, na visão dos governantes “juristas”, era
desprovido de seu caráter histórico, podendo ser regulamentado pela técnica, pela ciência,
pela razão econômica, em nome da “integração nacional”. Bittencourt apoiou o governo
autoritário condenando os “entraves” constitucionais;

218 “O aspecto constitucional da criação dos cinco territórios”. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, 16 de
setembro de 1943. Artigo de Feijó BITTENCOURT, pp. 3. Cópia microfilme CEDAP-UNESP/Assis.
110

É necessário afastar da organização política nacional esta ficção de direito constitucional,


esta falsa prática de princípios que na realidade nada regulam. É necessário reconhecer o que
não tem expressão de Estado-membro para no Brasil se o considerar como território. ...
A Federação consultou o interesse desses grupos locais instituindo-os com expressão
própria e estabelecendo equilíbrio político entre eles, visto ser a maneira de todos influirem.219

O jurista considerou a constituição muito idealista para a nossa realidade,


precisando ser “aparada”. Paradoxalmente, buscava a legitimação das medidas arbitrárias
do governo federal, baseado no “consenso político”, conseguido junto aos grupos locais.
Como havia observado anteriormente, as incipientes elites locais, em crise, desejavam a
tutela ampla e irrestrita do governo federal.
Com a convocação de uma Assembléia Constituinte, em 1946, as vozes caladas
durante o Estado Novo recuperaram seu poder. A partir do fortalecimento da democracia
liberal, as ações do período ditatorial foram discutidas e revistas, sendo que, a criação de
territórios federais, foi uma delas. Para as oligarquias regionais destes estados, o
desmembramento de suas áreas significou perdas reais na queda da arrecadação de suas
alfândegas e na diminuição do capital político com a diminuição de seus currais eleitorais.
Segundo as elites regionais, o governo federal havia capitaneado essas perdas, pois, além
dos recursos da União para projetos de assistência, elas perderam o controle sobre um
montante considerável de verbas federais. Já as elites locais dos vales do Madeira-Guaporé
defenderam com todas as suas forças a permanência dos territórios federais, considerando
o retorno à dependência de Cuiabá e Manaus um golpe fatal à sua sobrevivência.
Em função das perdas regionais, os senadores e deputados constituintes do
Amazonas: Severiano Nunes (UDN), Álvaro Maia (PSD), Leopoldo Peres (PTB) e
Valdemar Pedrosa (PSD) além de constituintes de outros estados, como os udenistas
baianos: Manoel Novais, Luis Viana, Dantas Junior, Nestor Duarte, Aliomar Baleeiro, Rui
Santos, Clemente Marini, Albérico Fraga, e Rafael Cincorá; os udenistas cearenses:
Egberto Rodrigues, Fernandes Távora, Gentil Pinheiro Barreira, Paulo Sarasate Ferreira
Lopes; os udenistas catarinenses: Tomás Fontes e Tavares Amaral. E, mais: Erasto
Gaertner da UDN do Paraná, Coelho Rodrigues do Piauí, Armando Fontes do PSD do
Paraná, Lino Machado do PR do Maranhão, e Raul Pila do PL do Rio Grande do Sul
apresentaram a emenda ao projeto de Constituição: “Ficam extintos os Territórios do Guaporé e
Rio Branco, reincorporados aos Estados do Amazonas e Mato Grosso as circunscrições destacadas desses
Estados para a formação daqueles Territórios.” Os conflitos submersos, sob a truculência do

219 “O aspecto constitucional da criação dos cinco territórios”. CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, 16 de
setembro de 1943. Artigo de Feijó BITTENCOURT, pp. 3. Cópia microfilme CEDAP-UNESP/Assis.
111

Estado Novo, vieram à tona. Os constituintes revisionistas representavam os interesses


das oligarquias centrais, subtraídas de seu poder pelas ações populistas de Vargas.
O jornal Alto Madeira articulou intensa campanha pela manutenção dos territórios
federais, junto aos constituintes “engajados” na questão. Esse movimento, a exemplo do
abaixo-assinado de 1937 endereçado a Vargas, veio amalgamar a identidade “guaporeana”;
comerciantes, seringalistas, funcionários públicos e militares perceberam que seus
interesses eram distintos e estavam em rota de colisão com os das oligarquias
matogrossenses e amazonenses. O sentimento de identidade local já vinha se esboçando
desde a “nacionalização” da EFM, quando o Alto Madeira observou o conflito entre as
elites locais e sua dependência em relação às oligarquias de Manaus e Cuiabá. O poderio
das elites regionais era proveniente de seu papel de mediadora entre os grandes
financiadores estrangeiros e a economia de seus estados.
A falta de capital em função do modelo econômico implantado na economia da
borracha, foi um dos obstáculos para a “ocupação” e para o “desenvolvimento” da região.
A célula básica da economia era o aviamento no barracão, resultando na acumulação
infinita da mais valia nos países centrais. A permanência dos territórios “alimentados” pela
União, era a condição fundamental para a “manutenção” e fixação das populações, pois
não havia como desenvolvê-los sem o “auxílio” das “sobras das fortunas do sul”. Esses
termos teriam sido utilizados pelo ex-governador, Cel. Aluízio Ferreira, em audiência com
o presidente Gen. Dutra: “A Marcha para o Oeste, senhor Presidente, seria um amontoado de
palavras vãs, se não correspondesse a um processo de valorização do homem e produção de riquezas. Vimos
pedir à V. Excia. Meios que nos permitam mobilizar as sobras da fortuna existente no Sul, no
sentido de atenuar o extremo pauperismo do Norte.”220

Com o final dos Acordos de Washington em 1946, e extinção de subsídios diretos à


produção e ao comércio da borracha, bem como o fim do preço artificial, a crise voltou a
rondar e a política populista de “integração das fronteiras” em nome da segurança nacional
deu seus últimos suspiros. A articulação do Cel. Aluízio Ferreira junto ao Gen. Dutra
visou a “manutenção” do populismo de fronteira, contando com os recursos advindos da
arrecadação comercial e industrial do sul do país.
Pode-se afirmar a existência de uma “Campanha pela não extinção dos Territórios”, que
contava com “manifestações” dos grupos locais aos deputados constituintes, aos militares
de alta patente, ao Ministério da Justiça, ao presidente Dutra, à imprensa carioca e às
associações de classes do Rio de Janeiro. O Alto Madeira, no período, publicou em todos
112

os números a coluna “Pela Não Extinção dos Territórios”, relacionando os telegramas


enviados às diversas autoridades, suplicando a intervenção junto aos constituintes, a
militares e ao presidente Gen. Dutra:

Brigadeiro Lisias Rodrigues - O diretório udenista no Território do Guaporé lança


veemente apelo ao ilustre militar afim de intensificar por todos os meios legais a justa
propaganda pró continuação dos Territórios Federais que tanto incremento vem trazendo aos
trechos lindeiros do País, outrora em completo abandono. ...
Ministro Carlos Luz – Ministério da Justiça – Rio: O diretório da UDN no Território do
Guaporé, auscultando o pensamento unânime do povo desta região, apela para o profundo
espírito democrático de Vossa excelência, no sentido de interceder junto ao Governo da
Nação, a favor da continuação dos Territórios Federais, visto os mesmos estarem preenchendo
com franca precisão a finalidade social e patriótica com que foram criados. Pelo Diretório Dr.
João Fernandes. ...
General Eurico Gaspar Dutra – Presidente da República – Rio. Apelando à V. Excia. O
anseio das classes conservadoras [UDN] pela manutenção dos Territórios, esperamos que
nossa justa aspiração seja coroada de êxito, satisfazendo plenamente propósitos do povo desta
região. Pela Associação Comercial do Guaporé. Júlio Cantuária. ...221

As manifestações partiram tanto de populares: ferroviários, soldados dos


Contingentes Especiais de Fronteira e seringueiros, bem como de setores das elites:
Maçonaria, Igreja Salesiana, representada no prelado Monsenhor Dom Pedro Massa,
Associação Comercial do Guaporé, etc. Não havia distinção ideológica em se tratando da
manutenção do território, naquele momento constituiu-se um “consenso” entre as classes.
Tais manifestações demonstraram a capacidade de organização e de pressão acima das
prováveis diferenças: “ Nesta capital tem havido numerosas demonstrações de protesto, partidas de
todas as entidades sem cor política, unidas num brilhante movimento de uniformidade e cohesão na defesa
comum.” 222 Segundo o artigo, o povo de Porto Velho se reuniu na praça General Rondon e
manifestou por meio de seus oradores o descontentamento pela “medida impatriótica”
dos constituintes. Os chefes políticos arrebanharam a massa. No palanque da
“Permanência” estavam a UDN, o PSD e o PCB, além do representante dos ferroviários,
o engenheiro Araújo Lima, dos comerciantes o seringalista Julio Cantuária e, em nome da
mulher guaporense, Nilce Silva. A multidão, após os discursos de repúdio aos “traidores”,
se dirigiu numa longa passeata para a residência oficial do governador, o Ten-Cel. Joaquim
Vicente Rondon, que se comprometeu a representar os interesses dos “guaporenses” junto
às autoridades federais. As manifestações foram de culto cívico, com direito a banda da
Guarda Territorial, e os discursos foram transmitidos pela rede de alto falantes espalhada
pela cidade.

220“GrandePlano de Recuperação da Amazônia”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 02/mai/1946.


221“Pela
não Extinção dos Territórios”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 25/abr/1946.
222
“É desejo dos Guaporenses permanecerem guaporenses”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 25/jun/1946.
113

O Brigadeiro Lisias Rodrigues, presidente da Viação Aérea de S. Paulo,


respondendo ao apelo dos udenistas de Porto Velho, publicou na imprensa carioca um
artigo em defesa da permanência dos territórios. Sua argumentação “genealógica”
retrocedeu às capitanias, criticando a estrutura de divisão política do Brasil em unidades
federativas. Segundo ele, a redivisão territorial do país era necessária para a segurança,
bem como para a “coesão” política em áreas subordinadas à União. A sua genealogia
territorial reportou-se a Varnhagem, Pimenta Bueno, Backheuser e Oliveira Viana até a
constituição da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, todos “engajados” na divisão
científica e “racional” do país contrariando o jogo político. O brigadeiro “demonizou” os
constituintes favoráveis à extinção dos territórios, rotulando as oligarquias regionais de
“fruto dos preconceitos estultos do arrivismo e do regionalismo estadual”; a sua crítica se endereçava
ao Glebarismo amazonense. 223
A imprensa paraense, contrária à extinção dos territórios, organizou o “Plebiscito
para os Territórios”. A defesa do jornal Folha do Norte sedimentava-se nas mudanças sociais,
advindas com a transformação da região do Madeira-Guaporé em território federal. Na
sua visão, a criação do território alavancou um “sensível” progresso na área: do
saneamento, pela melhoria da assistência médica e sanitária, crescimento do setor
educacional, ampliação e melhoramento das vias de transporte, comunicação fluvial e
rodoviária, produção de gêneros de primeira necessidade e regularização do
abastecimento. A mesma defesa foi feita pela cadeia dos Diários Associados e pela imprensa
carioca, através dos jornais e agências de notícias: Agência Meridional, A Noite e Jornal do
Comércio, unânimes na defesa da permanência dos territórios federais. A Folha Carioca
classificou a criação dos territórios como uma das maiores realizações de Vargas,
associando os territórios ao seu capital político. O periódico comunista Tribuna Popular
defendeu com sua peculiaridade a permanência dos territórios federais, dando ênfase à
questão da soberania nacional sobre as áreas de fronteira e alertando para os prováveis
riscos do imperialismo norte americano na Amazônia.
Paradoxalmente à emenda de extinção dos territórios proposta na Constituinte, o
presidente Gen. Dutra nomeou a Comissão de Estudos dos Negócios Estaduais
subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, para encontrar soluções aos
problemas dos territórios e às “reivindicações” de suas populações. O Alto Madeira
reproduziu da Agência Nacional de Notícias as aspirações dos territórios:

223
“O problema dos Territórios Federais na Constituinte”. ALTO MADEIRA. P. Velho, 25/abr/1946. p. 2-4
114

1.º - Prosseguimento dos planos iniciados de assistência sanitária e educativa, de fomento


da produção, de exploração das riquezas ainda em estado de potência e de povoamento
orientado e auxiliado pelo governo.
2.º - Desenvolvimento do sistema de comunicações, pela construção de estradas, campos
de pouso e estação de rádio ligando núcleos de população que facilitará a fixação do homem
no solo e a circulação das riquezas; pela navegação fluvial e aérea nas regiões em que o tráfego
for deficitário. ...
7.º Estabelecimento de uma rede de postos de assistência médica, centros de saúde e
hospitais capazes de cobrir em seu raio de atividades toda a população, empreendendo tenaz
campanha contra a malária, verminose, bouba, avitaminoses e doenças regionais.
8.º - Instalação de postos de fomento agropecuário nas sedes dos municípios, dotados de
técnicos especializados em plantios de sementeiras e equipamentos mecânicos, afim de
assistirem aos pequenos agricultores e criadores com seu auxílio e facilitarem a rápida
transformação da indústria extrativa ambulante em cultura sistematizada.
9.º - Assistência direta do governo federal aos produtores regionais para a abertura de
mercados internos e externos mediante propaganda oficial. (Os produtos da Amazônia, tais
como a borracha e a castanha, que constituem fatores decisivos de sua economia, sempre
foram abandonados. Quando a intervenção do Estado se fez sentir sempre foi com seu
prejuízo). 224

As classes “organizadas” do Território do Guaporé, ao contrário dos constituintes


de Manaus e Cuiabá, desejavam com ardor a manutenção da subvenção federal constituída
pelas “riquezas do sul”. O Cel. Aluízio Ferreira havia indicado as necessidades ao
presidente Gen. Dutra, uma vez que os investimentos da União eram os poucos recursos
que circulavam na região. As iniciativas do diretor da ferrovia haviam sido bem recebidas,
pela incipiente elite seringalista, em virtude do estrangulamento econômico e conseqüente
obscurecimento político. Os profissionais liberais e trabalhadores em geral engrossaram o
pedido de proteção e tutela, demonstrando a falta de hegemonia e a extrema dependência
do governo federal. Os médicos de Porto Velho enviaram telegramas ao senador Otávio
Mangabeira e a todos os constituintes baianos, representados pelo deputado Luiz Viana,
suplicando à bancada que apoiava a emenda pró extinção dos territórios a mudarem seus
votos. A “Colônia Baiana” era formada de: engenheiros, agrônomos, advogados,
ferroviários, estatísticos e, majoritariamente, a categoria dos médicos. Pediam, em última
instância, a realização de um plebiscito junto às populações.
As classes populares também se manifestavam contrárias às emendas que
propunham a extinção dos territórios federais. Os seringueiros, operários, agricultores e
trabalhadores residentes nos altos rios Jamary e Gi-Paraná enviaram, em 23 de junho de
1946, um abaixo-assinado ao presidente Gen. Dutra. Nesse argumentaram que, eles como
soldados da “Batalha da Borracha” haviam desempenhado papel relevante para a pátria,
portanto, o seu patriotismo lhes garantia o direito de pleitear a “assistência” como
compensação.225 As várias categorias, desde os profissionais liberais aos trabalhadores,

224 “Recomendado aos Ministérios primazia para as Aspirações das Populações dos Territórios Federais”. ALTO
MADEIRA. P. Velho, 27/jun/1946.. Transcrito da Agência Nacional- Central, Rio de Janeiro.
225
“Repulsa coletiva a um projeto impatriótico” ALTO MADEIRA. P. Velho, 23/jun/1946.
115

exigiam a “integração” prometida pelo governo federal com a “Marcha para Oeste” e com
a criação do território, em 1943.
As emendas de extinção dos territórios foram apresentadas basicamente pela
bancada do Paraná e Santa Catarina. O constituinte Lauro Lopes do PSD do Paraná, no
dia 14 de junho de 1946, justificou seu voto pela extinção criticando e afirmando que o
Território Federal do Iguaçu havia se constituído em “ninho de afilhados” do executivo
federal, filhos da “ditadura”. Sua exposição convenceu definitivamente outros
constituintes, como o deputado Armando Fontes, seu companheiro de bancada. O Alto
Madeira em sua matéria: “Toma vulto a idéia impatriótica”, acusou a bancada sulista de
“traição”, demonstrando, de forma dramática aos “guaporenses”, o clima de revisionismo
da Assembléia Constituinte.
Como mencionei, os interesses em relação à existência dos territórios federais
foram conflitantes. De um lado, a onda democratizante restaurou o poder das oligarquias
regionais alijadas durante o Estado Novo, tentando recuperar a arrecadação de suas áreas
desmembradas e seus redutos eleitorais, principalmente, em virtude da aproximação das
eleições diretas para o executivo estadual. De outro, as populações dos territórios queriam
manter os “subsídios” do governo federal. Alguns setores das forças armadas relutavam
em perder seu poder em redutos nos quais tinham adquirido grande visibilidade. Esse foi o
caso do Cel. Aluízio Ferreira, único candidato eleito deputado federal pelo Território do
Guaporé. Segundo Matias, no “período compreendido entre 1947 e 1964 os deputados federais eram
detentores da maior parcela do poder político no Território, influenciavam decisivamente na nomeação de
governadores e, principalmente, na exoneração”.226 Engrossando o movimento pela permanência
dos territórios, o senador Gen. Magalhães Barata, eleito pelo PSD do Pará, endossou a
criação dos territórios pelo Conselho de Segurança Nacional e Estado Maior do
Exército.227 O Gen. Rondon, em julho de 1946, enviou alguns telegramas ao Ten-Cel.
Joaquim Rondon, governador do território, informando sobre os contatos mantidos por
ele com o Ministro da Viação e com o Diretor de Engenharia, e que nesses contatos havia
solicitado a liberação de recursos para a construção da rodovia Porto Velho-Vilhena.
Segundo o Gen. Rondon, a rodovia era do máximo interesse para o Território do Guaporé
e para o Mato Grosso. Uma das primeiras ações do governador, Ten-Cel. Joaquim
Rondon, foi percorrer a linha telegráfica, sobre a qual foi construída a rodovia de Porto
Velho até o posto telegráfico de Vilhena. Era visível a influência de certos setores do

MATIAS, Francisco. Pioneiros: ocupação humana e trajetória política de Rondônia. P. Velho, Ed. Maia, 1997. p.100.
226
227“Um crime contra o Brasil: A Extinção dos Territórios”. ALTO MADEIRA Extraído do RADICAL.
23/jun/1946.
116

Exército e das Forças Armadas como um todo, na criação e administração do Território


Federal do Guaporé.
Para compreendermos a negociação que se travava nos bastidores da constituinte, é
necessário nos atermos às questões político-partidárias que estavam em jogo e os
interesses imediatos dos que “perderam” com o Estado Novo. Nos estados onde as elites
políticas estavam sedimentadas a exemplo do Paraná e de Santa Catarina, o Território de
Iguaçu era um enclave do governo federal interpondo empecilhos aos projetos políticos e
econômicos dessas elites. A favor da extinção do Território do Iguaçu foi apresentada
emenda por oitenta e cinco constituintes. Severiano Nunes da UDN do Amazonas e
Clemente Mariani da UDN da Bahia propuseram um adendo à emenda, estendendo a
extinção aos demais territórios. A partir do expressivo número de constituintes que
apresentaram as emendas para a extinção do Território do Iguaçu, ficou evidente a
organização das bancadas do Sul e sua relativa força na Assembléia Constituinte.
A extinção do Território do Iguaçu foi articulada em separado dentro da
Constituinte pelas bancadas do PSD e da UDN do Paraná e Santa Catarina. Esse último
foi um dos estados em que o PSD sagrou-se vitorioso, além de contar com Nereu Ramos,
o Presidente da Constituinte, diretamente ligado ao Gen. Dutra. Porém, a emenda quefoi
mais veemente defendida pela bancada paranaense, foi a de Munhoz da Rocha, do PR, que
apresentou a emenda n.º 325, determinando a extinção do território do Iguaçu e a
reintegração aos estados do Paraná e Santa Catarina, a qual foi aprovada em plenário e
transformada no art. 8°, das “Disposições Transitórias”. Assim, ele ocupou a tribuna para
pronunciar discursos enfocando o tema da extinção dos territórios federais e refutar vários
argumentos favoráveis à manutenção dos mesmos e exigindo a imediata restituição aos
Estados do Paraná e Santa Catarina das áreas desapropriadas durante o Estado Novo.
Munhoz da Rocha foi seguido por Lauro Lopes, João Aguiar, Gomy Junior , Flávio
Guimarães, Munhoz de Melo, Roberto Glasser, Aramis Ataíde e Fernando Flores, todos
da bancada pedessista, além de Erasto Gaertner, da UDN. Por Santa Catarina temos os
senadores Ivo D’aquino, Nereu Ramos, Aderbal Silva, Altamiro Guimarães, Hans Jordan,
Orlando Brasil, Otacílio Costa, Roberto Grossenbacker, Rogério Vieira do PSD e Tavares
D’Amaral e Tomás Fontes da UDN.
Como eu havia apontado, a extinção do território do Iguaçu foi negociada em
separado, visto não haver unanimidade e tampouco fidelidade partidária à questão dos
territórios federais. Como exemplo, Agrícola Paes de Barros- udenista do Mato Grosso-
reivindicou a extinção dos Territórios do Iguaçu e de Ponta Porã, e teceu críticas à política
117

territorial do Estado Novo, e acusou Vargas “de tentar transformar-se no Imperador do Brasil,
cognominado Getúlio I, o Pai dos Pobres”, e de ser o principal responsável pelo
desmembramento das áreas dos Estados para a criação dos territórios. Ele apresentou a
emenda n.º 1.197, extinguindo os territórios criados durante a ditadura e elevando o
Território do Acre a estado, no que foi seguido pelos correlegionários senador Vespasiano
Martins e os deputados João Villas Boas e Dolor de Andrade. Também endossaram a
emenda de extinção de Ponta Porã e Iguaçu; os constituintes: Martiniano de Araújo e
Ponce de Arruda, do PSD. Sendo que, o udenista João Villas Boas apresentou a emenda nº
3.630, a qual obrigava a União a indenizar os estados do Amazonas e Mato Grosso pela
incorporação do Acre ao território nacional. Já Dolor de Andrade, também da UDN, foi
favorável à extinção dos Territórios do Guaporé e Ponta Porã e apresentou a emenda
3.593, obrigando a União a pagar, por trinta anos, um terço da receita anual aos estados
desapropriados. Ele foi seguido pelo pessedista Ponce de Arruda que apresentou a emenda
nº 768, extinguindo todos os territórios federais criados, a qual foi rejeitada em bloco pelo
plenário, e quando derrotado apresentou a emenda de nº 832, determinando a extinção
dos Territórios do Guaporé e Ponta Porã, que também não foi aceita na íntegra. A
extinção dos territórios de Iguaçu e Ponta Porã fazia parte do acordo interpartidário de
apoio ao Gen. Dutra, formado pelo PSD/UDN/PR. A negociata foi denunciada por
Argemiro Fialho, do PSD do Mato Grosso, que se posicionou contrário ao acordo
interpartidário, não apresentando nenhuma emenda exigindo a extinção dos territórios
fronteiriços de Ponta Porã e Guaporé e também não votou com seus colegas de bancada.
Na sua atuação constituinte, foi oposição ao grande acordo interpartidário dentro da
legenda pessedista.
Como vimos, as bancadas constituintes, da UDN, PSD e PR dos estados do Mato
Grosso, Santa Catarina e Paraná incluíram a extinção dos territórios desmembrados de
seus limites políticos dentro do acordo interpartidário e conseguiram reaver suas áreas
confiscadas. Os udenistas baianos, cearenses, paraíbanos, pernambucanos e maranhenses
votaram pela extinção dos territórios de Iguaçu e Ponta Porã, como contrapartida do
acordo. O bloco udenista era encabeçado pelo deputado baiano Clemente Mariani,
nomeado Ministro da Educação e Saúde Pública pelo Gen. Dutra, como resultado do
acordo interpartidário. Praticamente toda a bancada udenista do nordeste votou pela
extinção dos territórios do Iguaçu e Ponta Porã, mas rejeitou as emendas que extinguiam o
Guaporé, Rio Branco e Amapá.
118

Estava de fora do acordo o líder do Glebarismo, Severiano Nunes, da UDN do


Amazonas, que mesmo aliando-se a bancada do PSD na defesa dos interesses regionais dos
grupos dominantes, não obteve sucesso. Nunes focou sua atuação na crítica à criação de
territórios durante o Estado Novo e na defesa da reintegração aos estados de origem.
Apresentou a emenda de n.º 2.764, extinguindo os Territórios do Rio Branco e Guaporé,
as duas grandes perdas do estado, que foi rejeitada em plenário. O pessedista Pereira da
Silva encampou a extinção dos Territórios do Rio Branco e do Guaporé, e requereu
destaque para a emenda n.º 2.764, de Severiano Nunes. O aliado pessedista apresentou a
emenda n.º 1.287, exigindo que a União indenizasse os estados desapropriados, que
também foi rejeitada.228 Esse quadro de perdas políticas e territoriais demonstra o
isolamento da bancada amazonense na Constituinte e sua fragilidade perante o governo
federal.
Porém, havia também os defensores da permanência dos territórios. Os pessedistas
Hugo Ribeiro Carneiro e Castelo Branco, ambos do Acre, travaram “acalorados” debates
contra os correlegionários pessedistas do Paraná. Eles defendiam a permanência de todos
os territórios federais, inclusive Iguaçu e Ponta-Porã. Ribeiro Carneiro apresentou, além
disso, a emenda 643 propondo a criação do território de Brasópolis no Brasil Central. Eles
foram apoiados pelo Gen. Magalhães Barata, senador pedessista do Pará, o qual defendeu
a permanência dos territórios do Guaporé, Rio Branco e Amapá. O Gen. Barata era um
dos signatários vitoriosos com a criação de currais eleitorais no Território do Amapá,
arrebanhados no seu período como interventor durante o Estado Novo. A citação de
Miceli, usada por Braga, esclarece um pouco mais sobre as relações de poder na região
Amazônica:

"No Amazonas, Pará e Maranhão, a bancada pessedista comportava prepostos do poder


central que haviam assumido uma gama variada de encargos, inclusive aqueles Interventores
que se saíram relativamente bem no trabalho de conciliar as facções dirigentes locais, seus
ajudantes-de-ordens militares ou civis que haviam se incumbido demissões políticas espinhosas
e mais alguns elementos da magistratura federal que, tanto por essa razão como pelo fato de
serem por vezes originários dos Estados por onde haviam sido eleitos, estavam em situação
vantajosa para enfrentar a campanha eleitoral" (MICELI, 1986:570) 229

Segundo Miceli, a permanência dos territórios fronteiriços amazônicos não ia


contra os interesses das novas elites, pois essas eram prepostos do governo federal na

228 BRAGA, Sérgio. Quem foi quem na Assembléia Nacional Constituinte de 1946:um perfil socio econômico e regional da
Constituinte de 1946. Campinas, Dissertação em Ciência Política - IFCH/Unicamp, 1998. pp. 182-94
229
MICELI, Sérgio. in BRAGA, Sérgio S. Quem foi quem na Assembléia Nacional Constituinte de 1946 :um perfil socio
econômico e regional da Constituinte de 1946. Campinas, Dissertação (Mestrado) — Depto de Ciência Política -
IFCH/Unicamp, 1998. pp. 427.
119

região norte. Para as elites vitoriosas era necessária a manutenção dos territórios de Rio
Branco, Amapá e Guaporé. E, por outro lado, não foi objeto de interesse das bancadas
udenistas do nordeste e pessedistas do sul.
A criação do Território Federal do Guaporé, com sua estrutura administrativa, foi
uma das metas do Estado Novo, coincidindo com a reivindicação das elites locais. As
elites locais viam na existência do território a única forma de sobrevivência da falida
economia extrativista, baseada no barracão, no latifúndio e na exportação. Sonhavam com
a injeção de recursos por parte do governo federal, promovendo o desenvolvimento e
resgastando a economia da letargia. Mas, as coincidências de interesses entre seringalistas e
governo federal podem ser maiores, se considerarmos que também o governo central não
“objetivava”, de fato, implantar a colonização baseada na pequena propriedade, mas sim,
“desviar” os conflitos agrários do sertão nordestino e conflitos urbanos das grandes
capitais para o “Extremo Oeste”.
Foram muitas as convergências entre os projetos de ocupação, através da pequena
propriedade de culturas diversificadas, e o latifúndio extrativista. Os patrões viam a
pequena propriedade como a base para a sobrevivência do latifúndio, numa relação
simbiótica, na qual os sistemas de produção dependeriam recíproca e mutuamente um do
outro, e sem conflitos (corporativismo). Quando os preços do látex reagiram por causa da
Batalha da Borracha, os seringalistas e comerciantes tiveram bons lucros com a grande
oferta de mão-de-obra barata estocada nos núcleos agrícolas. Além disso, os núcleos
agrícolas barateavam os custos de produção das mercadorias adquiridas pelos patrões,
majorando seus lucros e acelerando a acumulação local. Recordemos que, a maior parte
das queixas das elites seringalistas ao Cap. Aluízio Ferreira era solucionar o problema da
“falta de braços” e da ocupação dos “espaços vazios”.
A criação do Território Federal do Guaporé insere-se no projeto de integração
política e econômica arquitetado por Vargas, enquanto um passo necessário na integração
ao mercado mundial. A “vocação” do país orientava para a inserção na economia mundial
pela produção de matérias primas abundantes, pela grande disponibilidade de terras e das
imensas reservas naturais inexploradas na fronteira. A Criação do Território Federal do
Guaporé não foi movimento de ruptura, e de mudança, como analisada pela historiografia
regional230. Primeiro, não foi um ato de Vargas como o grande político, mas uma

230 PINTO, Emmanuel P. Rondônia Evolução Histórica: A Criação do Território Federal do Guaporé como Fator de
Integração Nacional. R. de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993.
SILVA, Amizael G. Para elucidar essa colocação ver as obras de e. Ambos autores vêem na Criação do Território
o fator de integração nacional por excelência, a partir do qual a região passaria por uma série de mudanças no
sentido da "evolução" como o próprio título da obra reforça.
120

necessidade de integração da região aos mercados interno e internacional. Essa


necessidade deu-se em face das demandas reprimidas, originadas pelo surgimento de uma
classe operária, constituída a partir dos imigrantes e do êxodo dos trabalhadores do
campo, demandando cada vez mais, novas áreas de colonização, e em função do
surgimento de uma burguesia nacional, utilizando quantidades cada vez maiores de
matéria prima. Também foi motivada por um quadro de crises externas, contraindo as
exportações brasileiras, fato que forçava por sua vez uma política de nacionalização da
produção e de estímulo ao crescimento do mercado interno. Vargas projetou, no aumento
da renda do trabalhador rural, a expansão do mercado doméstico para os produtos da
burguesia nacional em expansão.
Havia uma relação próxima entre o golpe do Estado Novo e a efervecência das
discussões sobre as áreas de fronteira. O golpe de 37 foi apoiado pelo alto comando das
Forças Armadas, sendo eles os principais interessados na posse de recursos naturais
localizados nas áreas de fronteira. A criação dos territórios federais, sob a administração
do Exército, foi a compensação pelo apoio manifesto pelas Forças Armadas ao Estado
Novo, aumentando seu poderio dentro das estruturas do estado nacional.
121

“Em busca da ordem: a administração do Território Federal do

Guaporé”

A creação do Território do Guaporé compreendido na região de G. Mirim, é


um ato do Governo Federal que veio incrementar toda a vida social política e econômica da
região da bacia do Rio Madeira, dando a coletividade uma nova fase de vida, a fim de
soerguer do estado de paralisação e atraso que vivia até então o seu povo. É o seu gesto de
felicitações, como uma parcela da Justiça nesta Comarca, que faço ao digníssimo Presidente
da República.

Dr. Salustiano Alves Correia, Promotor de Justiça.


Primeira Ata após a criação do Território Federal do
Guaporé (G. Mirim, 01/outrubro/1943)
122

No dia 16 de novembro de 1943, tomou posse, no Ministério da Justiça no Distrito


Federal, o 1º governador do território, Maj. Aluízio Pinheiro Ferreira. No seu discurso de
posse, confessou não ter elaborado um plano de governo. As metas foram formuladas
pelo gabinete da Presidência (subordinado ao Palácio do Catete). Ressaltou, também, a
continuidade dos trabalhos executados desde 1931, como diretor da Estrada de Ferro
Madeira Mamoré.
Segundo o Maj. Aluízio Ferreira, a letargia impôs à EFMM o papel de embrião das
ações do governo federal. Teria fundado os contingentes militares de fronteira,
objetivando conter o êxodo dos trabalhadores “mansos” 231 dos seringais e dos núcleos de
povoação, para isso criaram a infra-estrutura, abrindo núcleos agrícolas dando início à
abertura da Rodovia Amazonas-Mato Grosso, no trajeto do picadão de Rondon (Porto
Velho-Presidente Pena). Segundo o major, a rodovia vinha cumprindo o seu papel
povoador, por meio de colônias agrícolas, com o objetivo de fixar o homem a terra.
Também, como forma de atração e sedução dos “mansos”, foram criadas escolas e postos
de saúde pelo interior, em pequenas localidades à beira dos grandes rios como o Jamari e o
Machado.
A hipótese confirma-se nos relatórios do superintendente da EFMM, Joaquim de
Araújo Lima, ao Ministério da Viação e Obras Públicas. Nomeado pelo Cel. Aluízio
Ferreira, ele o substituiu num dos postos chaves do Território. Segundo o novo
superintendente, toda a infra-estrutura urbana, criada no período de 1938 até 1944, fora
executada pela EFMM e Contingentes, com recursos da ferrovia, utilizando a mão de obra
de seus operários e dos soldados:

1939 - Construção do Grupo Escolar Barão do Solimões em Porto Velho; Construção da garagem
para caminhões; Primeiro grupo de casas geminadas; Construção do Prédio da Usina Termo Elétrica.
1940 - Visitando Porto Velho em outubro de 1940 o Sr. Presidente da República (Vargas)
inaugurou a 12, quarenta e uma casa residenciais, sendo quinze isoladas para funcionários e nove grupos de
casas geminadas para operários e trabalhadores, além de oito casa em quatro grupos geminados para
funcionários; Foi construído também um logradouro público (Praça General Rondon); Construiu-se
uma fossa céptica no prédio do Grupo Escolar.
1942 - Prosseguiu o serviço de obras novas, sendo iniciada outras: 9 residências para funcionários na
quadra 7 do bairro Caiari (concluídas neste ano); 20 residências para operários em dez grupos geminados,
ocupando toda a quadra 1; Foram concluídas 5 residências para funcionários em G. Mirim.
1943 - A 29 de novembro foram inauguradas 20 casas construídas em alvenaria de tijolos, com todos os
requisitos exigidos pela técnica moderna de construção..
1944 - Neste ano ficou pronto o forno intermitente para olaria, com capacidade para 100 mil tijolos
simples por dia.232

231 Manso: Termo regional usado como referência aos nordestinos “amansados” , adaptados às endemias e
perigos da região, bem como às relações de trabalho. O termo era usado também para designar índios
incorporados ao extrativismo e suas relações de dependência e submissão.
232 “Edição dedicada ao Território do Guaporé”. REVISTA PARÁ AGRÍCOLA INDUSTRIAL E

COMERCIAL. Belém, Janeiro de 1946, ANO XIV, n.º 168 - O artigo é fruto de relatório ao Ministério da
Viação publicado pela revista.
123

É óbvio que esse relatório e também o discurso do Maj. Aluízio Ferreira eram
expostos no superlativo, afinal, estavam prestando contas ao governo federal. Devemos
ter o discernimento de que estas matérias eram encomendadas, justamente, para enaltecer
a administração da EFMM e divulgar uma imagem “ideal” para o resto do país. Porém,
apesar do certo distanciamento que devemos conservar, podemos usá-las como fontes
primárias para a nossa análise. Até 1937, a EFMM havia se sustentado, investindo suas
“sobras” na infra-estrutura: como por exemplo, a abertura dos núcleos agrícolas Antenor
Navarro, Candeias e Iata, além de postos médicos e escolas, da rodovia Amazonas-Mato
Grosso, saneamento básico e urbanização nas vilas ao redor da ferrovia, em Porto Velho
e Guajará Mirim. A partir de 1938, a EFMM passou a receber dotação da União, através
do Ministério da Viação e Obras Públicas, o que ocorreria regularmente até 1944. Abaixo,
as despesas com as obras realizadas na região "governada" pela EFMM.

Tabela 1 - Relatório das Despesas da EFMM


Ano Discriminação Despesas
Parciais
1938 Rodovia 799.656,30
1939 Usina Termo Elétrica c/ casa 1.599.595,30
Rodovia 999.679,80
1940 Construção de residências 1.101.138,30
Rodovia 699.399,40
1941 Construção de residências 1.499.808,00
Rodovia 998.956,40
1942 Rodovia 996.844,80
1943 Construção de residências 1.498,988,80
Aquisição Grupo Diezel-Eletric p/G. 993.449,40
Mirim 1.198.765,90
Rodovia
1944 Construção de residências 1.998.467,70
Rodovia 1.597.594,20

FONTE:PARÁ AGRÍCOLA INDUSTRIAL E COMERCIAL.. ANO XIV, n.º 168 - Belém, janeiro de
1946.

Pelo volume aplicado pela ferrovia em obras de infra-estrutura nos anos anteriores
à criação do território, pode-se deduzir que as agências do governo federal existentes na
região foram sua base de fomento. A Secção Norte do Telégrafo e a EFMM vinham
atuando no atendimento de várias das necessidades da população e assumiram a
responsabilidade da administração em caráter informal. A criação do Território pode ser
entendida como resultante da presença do estado nacional, por meio das estações
telegráficas- coordenadas pelo Distrito Telegráfico- células de povoamento espalhadas em
124

seu trecho e também da atuação da estrada de ferro na construção de rodovias, escolas,


residências e postos de saúde.
Araújo Lima, o novo diretor da EFMM, comparou o quadro de crise em meados de
1931 ao quadro do início da década de 40. Este fornece-nos uma referência da região neste
ínterim, "Completamente diverso é o quadro apresentado em 1944 quando oitenta e sete (87) novas
residências estavam ocupadas por ferroviários, casas modernas, de tijolos, com água encanada, esgoto,
instalação elétrica, fogão de ferro e instalações sanitárias higiênicas. Além destas construções muitas
outras... ... ".233 Com a "nacionalização" da Madeira Mamoré Railway and Company, em
julho de 1931, e a criação dos Contingentes Especiais de Fronteira, em 1932, a presença
do governo federal se fez mais atuante.
Como apontei anteriormente, esse era o discurso oficial reproduzido pela
historiografia regional. Porém, meu objetivo neste capítulo é demonstrar que a tão
propalada “mudança” foi mais na quantidade, no volume de exploração sobre os recursos
naturais e no açambarcamento sobre as terras e corpos da populações nativas. Mas, não
houve uma mudança nas estruturas sociais, uma melhora na qualidade de vida das classes
populares como um todo. Houve uma aceleração na acumulação capitalista, apoiada pelas
estruturas governamentais.
A historiografia e a memória oficial expressam o olhar das elites locais. Para essas,
a criação do território representou o momento da “integração nacional” e significou seu
retorno à cena social. É necessário repensarmos o custo desta incorporação à “nação”.
Fazer um balanço sobre os significados do “progresso” é hoje um compromisso com as
“minorias” atuais, com o conhecimento e com a democracia a ser construída.
Na mesma edição da revista também foi reproduzida a prestação de contas ao
governo federal pelo governador Maj. Aluízio Ferreira, informando dos 90 quilômetros
construídos e 180 quilômetros traçados para execução da rodovia iniciada pelos
Contingentes Especiais de Fronteiras de Porto Velho. Segundo o Maj. Aluízio Ferreira, os
núcleos agrícolas, criados em 1932, com apoio do Ministério da Viação e Obras Públicas,
haviam prosperado. O núcleo de Porto Velho era o mais próspero, devido ao apoio dos
Contingentes Especiais de Fronteiras.
Segundo a PARÁ AGRÍCOLA 234, o governador teria fixado as metas essenciais
nos três primeiros anos. Os setores destacados na primeira administração do Maj. Aluízio
Ferreira foram “estruturados”, para receber o fluxo de migração, previsto para a nova

233 “Edição dedicada ao Território do Guaporé”. REVISTA PARÁ AGRÍCOLA INDUSTRIAL E


COMERCIAL. Belém, janeiro de 1946. ANO XIV, n.º 168.
234 Idem.
125

Unidade Federal. A agricultura, a saúde pública, a educação pública e particular e os


transportes eram os principais. Três meses após assumir o cargo de governador do
território, o Maj. Aluízio Ferreira editou o decreto n.º 2, estabelecendo a Organização
Administrativa do mesmo; por meio deste, foram criados a Secretaria Geral (Assessoria
Administrativa do Governador) e os órgãos executores235:
I-Departamento de Saúde (D.S.);
II-Departamento de Educação (D.E.);
III-Departamento de Produção (D.P.);
IV-Departamento de Obras (D.O)

Porém, apesar das declarações do Maj. Aluízio Ferreira, a organização


administrativa do território só fora regulamentada pelo decreto-lei nº 7.772, de 23 de julho
de 1945, quando o Maj. Aluízio Ferreira já estava em seu segundo ano de governo. Ou
melhor, a autonomia do governador era relativamente nenhuma, pois, estava subordinado
diretamente às normas do governo federal. Conforme o parágrafo 2.º do artigo 3.º do
Decreto-lei n.º 5839, que em linhas gerais descrevia a administração dos cinco territórios
federais, até mesmo o Secretário Geral e Chefe de Gabinete eram nomeados
exclusivamente pelo presidente da República.236 Também estabelecia as competências do
governador, como expedir decretos e demais atos relativos à administração territorial, bem
como previa nomear e demitir os prefeitos dos municípios e organizar uma guarda
territorial. O primeiro ato do Maj. Aluízio Ferreira foi a Criação da Guarda Territorial e o
segundo foi a Organização da Administração do Território. Apesar de não abrir brechas
para a livre administração territorial, o governo federal concentrou grande soma de poder
nas mãos do governador. O Decreto Lei 6626, em seu artigo 3º, alterou a resolução
anterior de nº 5839, no tocante às tropas do Exército, as quais ficariam à disposição do
governador para manter a ordem e somente em caso excepcional, necessitaria de
autorização do comandante da Região Militar.237
Essa foi a estrutura inicial criada para administrar o território, composta por órgãos
executivos. O poder judiciário dos territórios, subordinado e submetido diretamente ao

235 COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Decreto n.º 2 de 25 de fevereiro de 1944 In Decretos dos Governos
Territoriais de 1944 à 1981(excertos). Porto Velho, Governadoria do Estado de Rondônia, 1990. Vol. II, pp. 22
236 LEGISLAÇÃO FEDERAL.. “Dispõe sobre a administração dos Territórios Federais do Amapá, do Rio

Branco, do Guaporé, de Ponta Porã e do Iguassú. Decreto n.º 5839 de 21 de setembro de 1943. S. Paulo, LEX
Editora, 1.964. pp. 359.
237
LEGISLAÇÃO FEDERAL. “Dá nova redação aos arts. 10, 11 e 14 do Decreto-Lei n. 5839, de 21 de
setembro de 1943”. Decreto-Lei n. 6.626 – de 24 de junho de 1944. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pp. 218.
126

Palácio do Catete, viria a ser estruturado, em seguida, a partir dos decretos-lei emitidos
pelo Gabinete da Presidência238.
A agricultura era a ponta de lança do governo territorial para a região. Por meio
dela, pensavam alavancar o crescimento econômico, as cidades, as povoações, o comércio
e o desenvolvimento da sociedade como um todo. A agricultura progredia lentamente e,
para dinamizá-la, o governador estruturou o Departamento de Produção, com a “ finalidade
de promover o fomento da produção animal e vegetal do Território e a colonização de terras”; com a
seguinte organização burocrática: Art. 13. Para Cumprimento das atribuições definidas no
artigo anterior, o D. P. compõe-se de:
I - Serviço de Fomento da Produção (S. F. P.);
-Campos de Criação (C. C.);
-Estações e Postos Experimentais (Et. e P. E.);
II- Serviço de Terras e Colonização (S. T. C.)
-Núcleos Coloniais (N. C.).239

Em seguida, foi regulamentado, pelo decreto territorial nº 17, o Regimento do


Departamento da Produção240. A centralização estava presente no regimento,
reproduzindo as estruturas dos quartéis, escolas, estradas e postos de saúde durante o
período em que o Maj. Aluízio Ferreira fora diretor da EFMM e Inspetor dos
Contingentes Especiais de Fronteiras. O artigo 7.º nos esclarece sobre esta característica
comum desde o período da "nacionalização" da EFMM: "O D. P., dirigido por um Diretor, é
imediatamente subordinado ao Governador". O artigo 5º determinava que aos " ... órgãos de
que se compõe o D. P. funcionarão perfeitamente coordenados, em regime de mútua colaboração
com as demais dependências do Território, sob a orientação do Diretor." Na estrutura interna, o
Serviço de Fomento da Produção era um órgão de assessoria técnica aos projetos, fazendo
a divulgação de pesquisas e métodos de produção e colheita nos hortos, campos de monta,
campos de sementeiras e outras dependências do Departamento de Produção, além das
atribuições de geografia estatística da produção do território.
O Serviço de Terras e Colonização deveria se responsabilizar pela avaliação dos
títulos de propriedades emitidos anteriormente pelos governos estaduais, confrontando
com a legislação vigente, pela regularização de terras no território, pela organização do

238 COSTA, Wanderley. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo, Ed. Contexto/Edusp,1988. (Coleção
Repensando a Geografia) pp. 46.
239
COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Decretos dos Governos Territoriais de 1944 à 1981. (excertos). Decreto
Territorial n.º 17 - Aprova o Regime do Departamento da Produção.Porto Velho, Governadoria do Estado de
Rondônia, 1990. Vol. II. pp. 57.
127

arquivo das terras públicas do território, negociando com os grandes proprietários para
regularizarem a sua situação em relação às terras devolutas. Além dessas funções, deveria
estudar o potencial agrícola de terras para a instalação de núcleos coloniais, levando em
consideração a situação topográfica, as vias de escoamento existentes, o clima, a
periodicidade de chuvas, a localização, se próxima a nascentes e demais outros fatores. O
Serviço de Terras era a ligação entre o território, colonos e proprietários.
Ao Departamento de Produção, foi atribuída a instalação de campos de produção e
seleção de seringueiras, arroz, milho, feijão, cana de açúcar, mandioca, fumo, fibra,
mamona e outros vegetais de ciclo vegetativo reduzido. Caberia ao Departamento de
Produção a instalação de campos de pesquisas para o estudo de forragens nativas,
adaptadas ao clima e ao solo para as fazendas de criação e usinas de beneficiamento dos
produtos, como forma de os colonos e agricultores pagarem as sementes, inseminação e
outros subsídios oferecidos, além de baratear os custos.
A meta era ampliar a produção agrícola inexistente no território, voltada para o
mercado. A maior parte do espaço era “ocupada” por populações nativas: índios,
seringueiros, castanheiros, e ex-escravos descendentes dos quilombos no Guaporé,
embrenhados nas densas florestas equatoriais. O objetivo do DP era disseminar os núcleos
coloniais e incentivar o fluxo de populações como alternativa para a crise das elites
seringalistas.
Agricultura familiar, em lotes de 25 hectares, dispostos próximos, estimulava a vida
social pelo convívio "facilitado" entre os colonos. Os núcleos urbanos deveriam ter escola,
posto de saúde, açougue e igreja. Os núcleos deviam, se possível, ser situados próximos a
um porto do Rio Madeira, do Guaporé ou do Mamoré ou de armazém de mercadorias e
das estações ferroviárias.
Objetivamente, o governo do território visou o aumento da oferta de gêneros de
primeira necessidade para atenuar a carestia nas cidades de Porto Velho e Guajará Mirim.
Sua economia estava assentada em entrepostos comerciais da borracha boliviana e dos
vales do Guaporé do Mato Grosso. O quadro resultava no demasiado encarecimento do
custo de vida dos trabalhadores, envolvidos nos serviços de transporte, estocagem e
comércio dos produtos dos vales interiores. A falta de produção de gêneros básicos
constituía-se em elemento inibidor da acumulação dos comerciantes, forçando uma alta
nos salários. Os núcleos agrícolas foram alternativas para a acumulação, sob o comando
das elites militares, além de cumprir desígnios mais gerais em nível nacional, como atrair a

240 Idem. pp. 57.


128

migração e “desviar” os conflitos agrários no nordeste, dissolver conflitos e tensões nos


centros urbanos em função do inchaço e atrair a “reserva de nacionalidade” para fazer
frente à presença estrangeira nas áreas de fronteiras.
Segundo a PARÁ AGRÍCOLA, o governador, Maj. Aluízio Ferreira ,distribuía
recursos aos agricultores colonos para incentivar a produção, fora criado o Serviço de
Navegação do Madeira para baixar os custos de transporte entre Manaus e Porto Velho.
Os ribeirinhos transportavam gratuitamente sua produção de cereais, leguminosas e frutas
no trajeto entre o Lago Cuniã e Porto Velho. Também, a EFMM subsidiava o transporte
aos colonos assentados nos núcleos localizados ao longo da linha como o caso do núcleo
do Iata, de São Carlos, de Generoso Ponce e Presidente Marques. Apesar dos “incentivos”
e as promessas de educação e saúde aos colonos do Iata, os médicos visitavam o posto do
núcleo uma vez por ano, e o mesmo ficava distante dezoito km d as linhas onde moravam
os colonos.
Os “incentivos” aos núcleos coloniais se estendiam aos reservistas de 1.ª categoria
da Aeronáutica e da Marinha 241 que tinham o mesmo direito aos lotes em núcleos coloniais
concedidos aos reservistas do Exército242. Em 1946 o decreto-lei n.º 9.157 restabelecia as
Secções de Fomento Agrícola, do Ministério da Agricultura, nos Territórios Federais do
Amapá, Rio Branco, Guaporé, Ponta Porã e Iguaçu.
Como salientamos, o Departamento de Produção e o Serv. De Terras e
Colonização serviram para legitimar o latifúndio nas áreas de fronteira. O latifúndio
permaneceu intocado, o acesso a terra foi o carro chefe, o leitmotiv do engajamento
ideológico do Estado Novo. A julgar pelos inventários de bens das famílias abastadas de
Porto Velho, pouco se alterou na estrutura fundiária e relações de trabalho na Amazônia
Ocidental. O processo 137, relacionando os bens de um único membro da família Alvares
Afonso 243, desmistifica de forma precisa o discurso da pequena propriedade. Somente o
falecido proprietário, José de Souza Martins Alvares Afonso, detinha em seu poder algo
em torno de 140 mil hectares de seringais e castanhais. Mas, o fato que salta aos olhos é
justamente essas terras terem sido registradas nos anos iniciais da instalação do Território
Federal do Guaporé. Confirmando-se assim as prerrogativas do Serviço de Terras e
Colonização de regularizar os latifúndios em terras devolutas, conflitando com o papel de
agente distribuidor das terras na região. Porém, pode-se observar que a terra, até 1954, era

241 LEGISLAÇÃO FEDERAL.. Decreto-lei n.º 9.225 de 02 de maio de 1946. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pp.
358
242 LEGISLAÇÃO FEDERAL.. Decreto-lei n.º 844 de 09 de novembro de 1938. S. Paulo, LEX Editora, 1.964.

pp. 514-515.
129

bem de uso, as “benfeitorias” vêm em primeiro lugar na descrição dos bens a serem
divididos, fator que remete ao conceito da terra enquanto recurso natural ilimitado.
Os relatos de ex-seringueiros (soldados da borracha)244 confirmam os documentos
oficiais. Mas, a grande diferença é que as mesmas terras sem valor comercial e sim com
valor agregado pelas benfeitorias, paulatinamente, passam a se constituir no mercado de
bens imóveis na região. O depoimento de Manoel Patrício, 68 anos, ex-soldado da
borracha, narra com detalhes as formas de apropriação do mercado de terras:

Aí foi o tempo que, isso aí era do Zé Maria Branco, e , tomava de conta né? Aquela do
doutro Claúdio, doutor advogado do Rio Grande do Norte. Então da Lagoa dos Patos até
General Carneiro, era do doutor Cláudio, e do lado de cá, era do doutor Castro o diretor geral
da MIBRASA. Então desse lado aí, ninguém podia entrar, só mesmo pra caçar, mas não podia
tirar nem cabo de vassoura que não consentia, e , do outro lado ninguém podia fazer
derrubada porque era do doutor Claúdio. Era um lugar preso né? Então eu fiquei morando. Aí
um dia Zé Maria Branco chegou e disse: Ah!! O senhor veio pra cá? Como é que p senhor veio
pra cá? Aí eu disse: Ah! Eu vim pra cá porque eu não tinha onde morar, e vim ficar aqui. Ele
disse: Eu estou vendo que o senhor tá aqui no meio, do terreno, eu quero que o senhor guarde
esse terreno aqui. Não deixe ninguém invadir, que eu vou cercar o terreno, e , lhe dou um
terreno aqui no meio. Mas o senhor guarda. Não deixe ninguém invadir o terreno.245

Finalmente, a terra se convertia em mercadoria após a constituição do Território


Federal do Guaporé, regularizando os latifúndios, permitindo a adaptação da propriedade
ao mercado de bens imóveis com fins especulativos, pois, as melhorias de valor principal
passam a ser secundárias no mercado de terras. A cerca finalmente se instalava nas terras
do Território Federal do Guaporé.
Pela grande oferta de terras “desocupadas”, conviviam o latifúndio e a pequena
propriedade numa relação de interdependência. O jornal Alto Madeira divulgou nota do
DIP, explicitando os objetivos das colônias agrícolas: "Dada a sua proximidade de Manaus, o
futuro núcleo está destinado a solucionar, em grande parte, o problema do fornecimento dos
latifúndios..."246 O Estado Novo visou um consórcio entre a pequena produção e os
latifúndios. Sutilmente, o colono acreditava ter a “posse” de um naco de terra, se
comparado aos milhares de hectares dos seringalistas, porém, “fora” das terras dos

243 MANDADO DE AVALIAÇÃO PROCESSO Nº 137. Juizo de Direito da Comarca de Porto Velho, 06 de
Julho de 1954. Arquivo do Centro de Documentação do Tribunal de Justiça de Rondônia, Porto Velho.
244
MATIAS, Francisco. Pioneiros: ocupação humana e trajetória política de Rondônia. Porto Velho, Ed. Maia, 1997.
Segundo o autor haviam duas categorias de seringueiros: os arigós, tidos como aventureiros, eram voluntários no
corte da seringa e os “soldados da borracha” eram recrutados, eram alistados no Exército, o engajamento para
servir no front da Itália era compulsório para os reservistas, como segunda “opção” podiam se alistar como
soldados da borracha para o esforço de guerra. Pp. 119.
245 MANOEL PATRÍCIO. Entrevista condedida à Anderson de Jesus dos Santos. Projeto Nordestino na Amazônia –

História Oral de Vida com Soldados da Borracha. Porto Velho, CNPq/CENHP, 2001.
Projeto de Constituição do Acervo do Centro de Documentação Histórica doTribunal de Justiça de Rondônia.
246 “Colônia Agrícola no Amazonas”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 30 de maio de 1943.Nota oficial extraída do

Serviço do DIP.
130

coronéis. O colono tinha a falsa impressão de “independência”. Sua pequena produção,


por não contar com um sistema de escoamento tinha o acesso dificultado aos mercados.
Acabava por ser expropriado pelo próprio governo - “atravessador” dos
comerciantes/seringalistas. Esses, a partir da 2ª Guerra, tinham os preços da borracha
garantidos pelo governo. As elites seringalistas exploravam duplamente o colono e os
seringueiros: primeiro, ao se apropriar, a custo ínfimo da pequena produção, e segundo,
ao repassá-la a um preço excessivamente majorado. Configurava-se “planejada” pelo
Governo do Território, único comprador das colheitas que fixava os preços abaixo do
custo de produção. O Governo do Território financiava a acumulação das elites locais,
numa clara política de concentração de renda.
Contradizia o discurso da “Marcha para o Oeste” ao pregar a criação do “novo
brasileiro”, por meio da pequena propriedade. Lenharo analisa o discurso populista de
Vargas, no qual prometia acesso a terra para as classes populares, sem deixar de atender os
interesses econômicos das oligarquias regionais, “(...) basta lembrar que a ocupação da
Amazônia acabou por ter sua ênfase na batalha da borracha, um plano oportunista e
imediatista de deslocamento maciço de trabalhadores nordestinos para a Amazônia que nada fez para
deter a exploração dos seringalistas sobre os seringueiros; pelo contrário, o projeto retomou esta
forma de exploração e confirmou-a.247
As medidas de intervenção eram ambíguas em relação à "Marcha para o Oeste”, na
fundação de colônias agrícolas nacionais: do Amazonas, Goiás e Mato Grosso e de
núcleos coloniais. Observamos que a criação do Território Federal do Guaporé e dos
núcleos agrícolas não foi uma política de valorização da pequena propriedade, enquanto
célula vital na constituição de um mercado interno, visando suplantar o latifúndio. Foi ao
contrário, planejada para a "manutenção" dos latifúndios do Nordeste e da Amazônia. A
política “transformadora” foi apenas um instrumento discursivo de fomento à ideologia
“integracionista” do Estado Novo. Efetivamente, as relações de produção e propriedade
na Amazônia Ocidental permaneceram inalteradas.
Outro setor dito fundamental para a administração territorial era a educação
pública, dando continuidade às metas e iniciativas anteriores à criação do território. Desde
os anos 30, os contingentes de fronteira e os ferroviários da EFMM vinham construindo e
organizando estabelecimentos de ensino, como a Escola localizada em Forte Príncipe da
Beira e a Escola de Jaci-Paraná, ambas abertas à comunidade em geral.

LENHARO, Alcir. Colonização e Trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-0este. 2ª ed. Campinas, Edunicamp,
247

1986. Pg. 46.


131

No período, o acesso à educação pública era novidade na sociedade guaporeana. A


educação disponível era privada, em colégios mantidos pelos salesianos e acessível apenas
aos filhos da elite. Os bem nascidos também poderiam optar pelos internatos de Belém,
Manaus e Humaitá dada a carência de estabelecimentos no Guaporé. Aos desafortunados
que eram a maioria não havia escolha alguma. Para a população miserável e analfabeta, a
escola pública significava uma possibilidade de ascensão social. A educação primária era
ministrada nos Contingentes de Fronteira para praças e soldados. A “formação” escolar
dos soldados era uma forma de estender a educação às camadas populares.248 A inserção
dos militares na educação era projeto do governo Vargas. O Estado Maior do Exército,
afinado com as políticas de “democratização” do ensino aos brasileiros declarava
oficialmente o apoio à Cruzada Nacional de Educação através, do aviso n. º 37, do dia 20
de janeiro de 1937. O 13 de maio de 1888, dia da Abolição, foi comemorado em todo o
país com a inauguração de uma escola para analfabetos junto a cada unidade do Exército.
Desse modo, os militares buscavam conjugar liberdade e educação, demonstrando
a crença nos estágios de Comte desde a proclamação da República.249 A construção da
liberdade se daria pelo acesso à cultura escrita e ao sistema oficial de ensino.250 O Cap.
Aluízio Ferreira, durante o período de doze anos em que foi diretor da EFMM inaugurou
doze escolas "mixtas", com recursos do Ministério d a Viação e Obras Públicas ao longo da
linha. A educação promoveria mudanças no panorama social. Ao mesmo tempo que
construíam as escolas, os militares atuavam como professores:

Às 6 horas- Hasteamento da bandeira nacional e da Escola na fachada principal do edifício


de sua sede.
Às 7 horas- Salva de 21 tiros . Hymno Nacional e da Bandeira, cantados pelos alumnos da
Escola Nocturna "Santos Dumont".
Às 8 horas- Missa campal celebrada pelo vigário da Prelazia Salesiana de Porto Velho,
Rev.do Antônio Carlos Peixoto.
Às 9 horas- Desfile militar dos alumnos da Escola Nocturna "Santos Dumont", sob a direcção
do Cabo Manoel Luiz Ferreira, instructor da Escola.
Às 14 horas- Parte Recreativa e Sportiva.251

Por ocasião da visita de inspeção do Cel. Manoel Alexandrino Cunha ao quartel do


Forte Príncipe da Beira no rio Guaporé, em 1938, o jornalista Jayme Távora do "Correio
da Noite", do Rio de Janeiro, que acompanhava a expedição descreveu cerimônia
semelhante:

248 “Notícias de Guajará Mirim”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 01 de Abril de 1936.
249 CASTRO, Celso de. Os Militares e a República: Cultura e Ação política. Rio de Janeiro, Zahar, 1999. pp. 63-70.
250 DUTRA, Gen. Gaspar Relatório da Guerra: 1938. R.de Janeiro, Ed. Bibliex, 1938. Acervo do Arquivo Histórico

do Exército. Palácio Duque de Caxias, R.de Janeiro.


132

Espera-nos, ainda uma cerimônia commovedora: a inauguração de uma escola construída pelos
soldados, sem ônus para o Governo e da qual é professor um soldado, - diz o Capitão Aluízio, ao convidar
o Coronel Alexandrino a proceder à inauguração.
A commoção já lhe embarga a voz. Conhece e ama aquela boa gente. Palavras simples e
sinceras da autoridade que tantas amizades soube conquistar aqui, exaltam a significação do
ato. Declara inaugurada a escola.252

A atuação de soldados e oficiais na construção, inauguração, administração e


docência nas escolas públicas foi recorrente durante os primeiros anos após a criação do
território. Durante a "Cruzada Nacional de Educação", houve a cooperação entre várias
esferas de poder. A prefeitura de Porto Velho, em 1941, criou duas escolas municipais,
uma em Hueporanga, sob o nome "Duque de Caxias" e outra na Ilha dos Periquitos,
denominada "Getúlio Vargas", ambas custeadas com o soldo dos soldados da 3ª
Companhia Independente de Fronteiras, localizadas em Porto Velho.
Desde a fundação das Escolas Militares no Rio de Janeiro, a educação, em
detrimento da guerra, foi sobrevalorizada dentro das forças armadas. A ascensão pelo
estudo, por mérito e desempenho escolar ao contrário de pertencimento à aristocracia
rural. Este foi um fator significativo na formação da visão cultural, social e política dos
militares. Castro, em Os Militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política 253 discute a
importância da educação positivista para a proclamação da República: os ideais da
liberdade individual, a ascensão pelo mérito, as oportunidades iguais compensando os
atrasos e desigualdades sociais.
A experiência dos alunos das escolas militares, seu espírito de corpo, sua
valorização da educação talvez ilumine a nossa compreensão sobre seus posicionamentos
em relação ao ensino laico, o empenho e o engajamento de militares na Cruzada Nacional
da Educação.
A instrução, a inteligência e a capacidade de administrar eram conceitos legítimos
defendidos pelos militares. Os valores pessoais e não de ascendência ou títulos eram
valiosos. A pátria brasileira renasceu livre da influência alienígena.254 A maioria das elites
locais não possuía ascendência familiar, logo a riqueza, a educação e a inteligência eram
vistas como forma legítima de distinção social.

251 “15 de Novembro em Jacy Paraná” ALTO MADEIRA. Porto Velho, 06 de Novembro de 1935. Arquivo do
Centro de Documentação Histórica de Rondônia-SECET/RO.
252 “Uma Excursão ao Forte do Príncipe”. ALTO MADEIRA, Porto Velho, 20 de julho de 1938. Transcrita do

"CORREIO DA NOITE" , Rio de Janeiro.


253 CASTRO, Celso de. Os Militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política. R. Janeiro, Editora Zahar,

1998. A autor é antropólogo e pesquisador do CEPEDO/FGV e do Museu Nacional.


254 Alienígena: Termo corrente no período de 20-40, designava empresas de capital e administração estrangeiro

dentro do país. Uso corrente em relatórios, imprensa e correspondência oficial até o Estado Novo.
133

A “força de vontade” e a soberania de fronteiras não foram suficientes para sanar


os déficits educacionais na região e o quadro da educação não era dos mais promissores. A
criação do território e a definição de minguadas verbas para o ensino público tiraram o
setor da inércia, mas não alteraram significativamente a carência de escolas e professores.
Segundo Benevides, apesar dos “esforços” do governo territorial, a educação não era
prioridade,

Cogita o Governo de por em prática em largo plano de edificações escolares. Não


contando, porém, no momento, com operários e material suficiente, pois outras obras de
maior urgência estão em curso, o Governo lançou nesse sentido um apelo aos cidadãos
guaporenses de maior destaque social e melhor situação financeira.255

Além da falta de prédios e professores havia a dificuldade de manter a criança na


escola, pois os pais não tinham as mínimas condições de bancar os filhos patrioticamente256
numerosos na escola. Não havia ensino médio, fator desestimulante ao ensino básico, por
falta de perspectivas de continuidade. Havia gerações inteiras nas fronteiras sem nenhuma
perspectiva de estudo e trabalho. A criação do Território e a instalação de uma
administração federal na região foram apresentadas como elemento detonador de
mudanças na área da educação. Segundo o Alto Madeira, após a instalação da Divisão de
Educação, o território contava com 24 escolas primárias espalhadas pelo interior, porém
boa parte destas escolas já haviam sido construídas no período da EFMM. Na capital,
existiam 02 grupos escolares com 1.939 alunos matriculados. Havia o fornecimento de
merenda, vestuário, calçado, livros e o material didático.
O problema não era apenas a falta de escolas para atender toda a demanda, mas a
necessidade familiar do braço infantil nas tarefas produtivas e domésticas. As elites tinham
opção; para os rapazes, o Colégio Dom Bosco e para as meninas, o Colégio Maria
Auxiliadora, ambos da Ordem Salesiana. Podiam ainda estudar nos educandários de
Manaus, Belém, Humaitá ou no Rio de Janeiro, fato comum até hoje.
O artigo 1º na alínea de n.º III organizava o Departamento de Educação e o artigo
10 regulava suas atribuições e competências, "O D.E. tem por finalidade manter e elevar o nível
de ensino nos núcleos de população já fixados, desenvolvendo a rêde escolar à medida que outros forem
criados, e coordenar os esforços da educação com os do fomento da produção." Havia
uma estrutura educacional nos núcleos de população, nas vilas em torno da ferrovia, nos
núcleos agrícolas, nas cidades de Guajará Mirim e Porto Velho.

255 BENEVIDES, Marijeso A. Os novos Territórios Federais. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1946.pp. 146-8.
134

Outro ponto a destacar é a proposta de se conjugarem os esforços da educação com os da


produção. A ênfase recaía na educação, prática voltada para a produção agrícola, uma
instrução voltada para a agricultura, com a finalidade da ocupação da fronteira. A
produção de gêneros e seu cultivo em moldes racionais, garantiria o sucesso do
empreendimento. O artigo 11, do decreto territorial n.º 2, estruturou o Departamento de
Educação com duas seções: O Serviço de Ensino Primário e Normal, formados pelo
Centro de Ensino e Escolas, e o Serviço de Ensino Profissional formados pelas Escolas e
Aprendizados. A criação do Território otimizou as ações do governo federal dando
continuidade às políticas encabeçadas pela EFMM e pela Inspetoria dos Contingentes de
Fronteira.
Apesar da ênfase discursiva sobre a prioridade dada à educação, foram
insignificantes os gastos com Educação Pública, nos dois anos que se seguiram à criação
do território:

Tabela 2 - Despesas do Território Federal do Guaporé


Natureza Ano de 1944 Ano de 1945
Administração Geral *89.000,00 228.000,00
Saúde 17.000,00 25.000,00
Fomento 6.000,00 -
Serviços Industriais 21.000,00 -
Serv.de Utilid. Pública 102.000,00 102.000,00
Encargos 57.000,00 161.800,00
Segurança Pública 28.000,00 130.000,00
Educação 35.000,00 73.000,00
Outros - 59.000,00
Total das Despesas 355.000,00 778.800,00
Porcentagem Educação 9,8 % 9,4 %
*Valores expressos em Unidade de Cruzeiros (Cr$)257

A educação não adensou os investimentos, estes foram carreados para as áreas da


Segurança Pública, Serviços de Utilidade Pública, Administração Geral e Encargos. Esses
serviços de utilidade pública envolveram 800 profissionais militares, porém, se
acrescermos a 2.ª Cia Rodoviária Independente, os funcionários do Departamento de
Obras e os funcionários das Prefeituras Municipais de Porto Velho e Guajará Mirim, esse
número ultrapassa a casa dos mil.

256 Família patrioticamente numerosa, termo veiculado pelo Alto Madeira referindo-se à missão povoadora da
família na região. Ter muitos filhos era um comportamento valorizado pela sociedade local, por aumentar as
chances do crescimento vegetativo e estabelecer grupos humanos no “vazio” demográfico em virtude do êxodo.
257 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário Estatístico do Brasil. Ano VIII-

1947. Conselho Nacional de Estatística.


135

O ten.-c.el. Joaquim Vicente Rondon, em 1946, construiu o Grupo Escolar "Simon


Bolívar", em Guajará Mirim e o Grupo Escolar "Duque de Caxias", em Porto Velho.
Em 1947, em substituição ao ten.-c.el. Joaquim Rondon, foi nomeado o Cel.
Frederico Trotta, o “construtor” da Escola "Cel. Frederico Trotta” em Porto Velho e
também de uma escola em Guajará Mirim, em Vila Murtinho e em Jaci-Paraná. O Cel.
Trotta deu início ao Curso de Alfabetização de Adultos noturno no Grupo Escolar "Barão do
Solimões" e ainda criou o Curso Normal Regional "Carmela Dutra". A primeira dama, Profª.
Laudmia Trotta, Superintendente do Departamento de Educação258, implantou o curso
para "preparar pessoal docente capaz de difundir instrução e educação por todo o Território, guiando a
infância de hoje para que possa ser útil no futuro"259. O curso deu impulso ao ensino básico na
região, oferecendo condições de continuidade nos estudos aos adolescentes de baixa
renda.
Por meio da Div. de Obras, com recursos mínimos do Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos, foram concluídas 09 escolas rurais. Destas, quatro situavam-se em:
Presidente Pena (Ji-Paraná), Ariquemes, Limoeiro (trecho das linhas telegráficas), Pedras
Negras e Costa Marques (Baixo Guaporé). As outras localizavam-se ao longo da ferrovia;
em Jaci-Paraná, em Abunã, no Núcleo Agrícola do Iata e em São Carlos, na confluência do
Jamari com o Madeira. O governo do Território cobria a os gastos com a construção, o
INEP custeava apenas o transporte e a mão de obra. O governo fornecia a pedra, o tijolo,
a areia, telhas e cimento.
O ensino privado, apesar de atender à minoria privilegiada, também foi
incentivado. Na Organização Administrativa do Território Federal do Guaporé, o artigo
7.° abriu os precedentes: "A Divisão de Educação tem por finalidade: número III- organizar, manter
e auxiliar, quando de iniciativa privada, surgirem instituições complementares do ensino ou que visem
o desenvolvimento cultural da população.".260 Ao cruzamos as leis com os dados referentes aos
"Melhoramentos Públicos", na conta denominada Subvenções, com gastos de Cr$
118.000,00 261, pelo montante gasto e os baixos percentuais destinados à educação pública,
deduzimos que a soma comportava “investimentos” no setor privado.
Os gastos da EFMM após a criação do território permitem observar uma
administração “partilhada” com a administração federal, também nas obras. A rodovia de

258 MENEZES, Esron P. Retalhos para a História de Rondônia. Porto Velho, Alto Madeira, 1983.
259 COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Legislação Federal referente aos Territórios e à Amazônia. “Decreto n.º
47. 19 de fevereiro de 1947 (excertos)”. Porto Velho, Governadoria do Estado de Rondônia, 1990. Vol. I
260 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto Lei n.º 7.772 de 23 de julho de 1945. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pp.

291.
261
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário Estatístico do Brasil. Ano VIII-
1947. Conselho Nacional de Estatística.
136

penetração Porto Velho-Pres. Pena à Vilhena continuou sendo construída pelos


Contingentes Especiais de Fronteira. A EFMM manteve a construção de moradias para os
funcionários, estendendo para burocratas de outros órgãos como a Guarda Territorial.
Segundo Araújo Lima, diretor da EFMM, no ano de 1943 (criação do Território) foi
inaugurado um grupo de 20 casas residenciais para acomodar os técnicos do Território do
Guaporé. Em 1944, a EFMM prosseguia seu plano de construções: casas para os Chefes
de Divisão do Governo do Território, forno para a “Olaria do Território”, para aumentar
a capacidade para 100 mil tijolos/dia.
A EFMM tinha, em 1940, o papel que anos depois seria assumido pela Divisão de
Obras do território. O Maj. Aluízio Ferreira solicitou autonomia técnico-financeira,
exigindo liberdade nos gastos e investimentos. Citou o caso das Linhas Telegráficas
submersas no mato por falta de manutenção. Criticou a paralisação na contratação de
pessoal em função do rigor da legislação federal e trabalhista. Na minuta ao Dr. Victor
Tamm (Ministério da Viação e Obras Públicas) argumentava ser a EFMM uma ferrovia
especial e sua administração deveria seguir o modelo da Rede Paraná-S.Catarina.
Utilizando a renda na manutenção dos serviços, atribuindo-lhe no orçamento uma verba
especial para a execução do programa de obras,:

"A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para atingir verdadeiramente a sua finalidade, que é,
em última análise, o povoamento da zona lindeira, a fixação do homem ao sólo, a posse objetiva da terra,
necessita de completa autonomia. ... Somos de parecer que em serviços desta natureza o chefe
deve ter autoridade para mobilizar com rapidez todos os meios necessários ao perfeito
desempenho da sua missão". 262

O diretor da EFMM propôs ainda a encampação dos serviços portuários e de


navegação nas bacias dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé, para incrementar as relações
comerciais com a Bolívia. Com a Criação do Território, a situação se inverteu. Ao invés de
autonomia, a EFMM- Decreto-lei n.º 8.780, de 22 de janeiro de 1946 - passou a ser
administrada pelo governo do território. Porém, manteve os recursos do governo federal
para o seu custeio; ato que na prática, ampliava os recursos alocados para o Território
Federal do Guaporé. A EFMM era o suporte à implantação do território, nas mãos do
governador.
O decreto que organizou a estrutura administrativa para o território do Guaporé
definiu os objetivos da Divisão de Obras: estudar, projetar, executar ou fiscalizar todas as

262FERREIRA, Cel. Aluízio. Minuta ao Dr. Victor Tamm - Ministério da Viação e Obras Públicas. Porto Velho-AM, 05
de julho de 1941. Grifos meus.
137

obras de construção e conservação de rodovias, portos, aeroportos, edifícios e instalações.


A Divisão era composta de:

I - Serviço de Estudos e Projetos


- Seção de Projetos e Orçamentos
- Seção de Concorrência e Controle
II - Serviço de Edificações e Instalações
- Seção de Reparos e Conservação
- Olaria
III - Serviço de Rodovias, Portos e Aeroportos
- Seção de Conservação Permanente
- Seção de Equipamentos e Viaturas

As relações entre a União e os territórios se explicita, no número IV do artigo 6°,


avalizando o governo do território a: favorecer a iniciativa privada auxiliando a realização de obras
que concorram para a melhoria das condições de vida da população, especialmente no conforto e higiene das
habitações. 263 A administração do Território, representando Ministérios, investia não
somente na infra-estrutura de utilidade pública, o estado financiava as classes dominantes
na fronteira. Evidencia a forte presença do estado nas parcerias estabelecidas com as elites
locais para o povoamento. Em nome do “vazio” e da necessidade de ocupação, todos os
esforços deveriam ser coordenados e dirigidos sob a batuta do governador do território.
Os fins da ocupação justificavam a centralização, anulando a possibilidade de oposição ou
orientações radicais dos trabalhadores e excluídos sobre os projetos.
A ampliação e expansão das competências podem ser percebidas na atuação dos
Contingentes Especiais de Fronteiras envolvidos na colonização, saúde, abertura de
estradas e educação, porém, não possuíam instrução de tiro. A Guarda Territorial era
incumbida da produção agrícola, dos serviços de drenagem, limpeza, saneamento e
construção, e também de segurança. E, quando faziam seus serviços de natureza policial e
militar eram requisitados pelos garimpos, seringais e madeireiras da iniciativa privada264.
Faziam-se muitos convênios entre vários órgãos federais na construção do
território, esses ocorriam entre órgãos ligados aos ministérios: a EFMM ao Ministério da
Viação e Obras Públicas, os Contingentes Especiais de Fronteiras ao Ministério da Guerra
e os núcleos agrícolas ao Ministério da Agricultura Indústria e Comércio, constituindo-se
como uma prática freqüente desde a “nacionalização” da EFMM e que veio a se
consolidar com a criação do território. A Olaria de Porto Velho foi implantada pelo

263 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei n° 7.772 de 23 de julho de 1945. O número IV se refere ao artigo 6º
deste decreto. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. pp. 291.
264 “Edição Especial sobre o Território de Rondônia.” REVISTA VÉRTICE. São Paulo, 1972 - Ano 4 n.º 10.
138

governo do Território, suprindo, precariamente, as necessidades do "Plano de Obras" para


a cidade. Executava um "Plano de Fomento à Construção Particular" com resultados muito
“positivos” dentro da "fraca possibilidade de produção de tijolos do Governo", ou seja, o
Departamento de Obras excedia as construções públicas e também atuava na construção
civil. Por esta razão, estariam ampliando a Olaria e instalando uma Serraria junto ao pátio
da EFMM265. Este exemplo nos é significativo, pois se trata do feixe de relações entre os
órgãos dos ministérios, do governo do Território e a iniciativa privada. Essa relação já foi
abordada no primeiro capítulo quanto ao caso do núcleo do Iata. O governo do território
era o grande financiador da acumulação na região.
O Cel. Aluízio Ferreira, em entrevista no final de seu governo 266, sequer mencionou
o Departamento e a Divisão de Obras. A estrada construída sobre as linhas do telégrafo e
suas estações de apoio à ocupação do interior do território foi o centro da entrevista que
ressaltou o esforço de sua execução com verbas da EFMM e mão-de-obra dos
Contingentes Especiais de Fronteiras. Segundo ele, em 1944, foram iniciados os trabalhos
de abertura da estrada de São Carlos ao vale do Rio Branco, no trecho da ferrovia
Madeira-Mamoré, na altura do km 52 que faria a ligação com a estação ferroviária de Jacy
Paraná. O objetivo era o escoamento da produção de borracha, no vale interior do rio
Jacy-Paraná, tributário direto do Alto Madeira. Relatou também o programa de
urbanização de Porto Velho, por meio do saneamento e de esgotos e por fim do
calçamento das ruas centrais e subúrbios.
As omissões do Maj. Aluízio Ferreira nos dão pistas sobre a constituição e atuação
dos órgãos criados no Território Federal do Guaporé. Estes eram desdobramentos de uma
política pragmática anterior ao processo de estruturação do território, implementada por
meio da administração da ferrovia, da Seção Norte do Telégrafo Nacional e dos
Contingentes de Fronteira.. A criação do Território foi resultante da atuação de vários
ministérios, personificados na figura do Cel. Aluízio Ferreira.
Diferente desta postura, foi a entrevista do governador Ten. Cel. Joaquim Rondon,
segundo administrador do território. Esse relatou as dificuldades de se construir a infra-
estrutura, devido as chuvas impeditivas da construção de residências e prédios públicos e a
urbanização da capital:

265 Edição Especial do Guaporé”. REVISTA PLANÍCIE- n.º 27. s/local, 1946. Centro de Documentação
Histórica de Rondônia - CDHR/SECET caixa 48.
266 Edição dedicada ao Território do Guaporé”. REVISTA PARÁ AGRÍCOLA INDUSTRIAL E

COMERCIAL. ANO XIV, n.º 168 - Belém, janeiro de 1946.pp 03.


139

"Associem-se tais óbices com a pobreza de elemento humano,


principalmente em qualidade, sem esquecer a baixa capacidade do
operário deturpado pela endemia palúdica, e ter-se-á o quadro doloroso que
o Governo tem diante de si, ao enfrentar o inconcusso problema do povoamento que é
o mais importante de todos que interessam um plano administrativo na
região Amazônica.267

Do mesmo modo que o Maj. Aluízio Ferreira, o novo governador criticava a rigidez
burocrática da União, em relação aos gastos e às prestações de contas dos territórios. A
verba era repassada entre julho e agosto e a prestação de contas teria de ser feita até
novembro. A administração teria três meses para construir edifícios, residências para o
setor civil e estradas em tempo escasso. Apesar disto, a Div. de Obras construiu entre
1946 e1947, um total de 15 casas para trabalhadores da EFMM e casas de luxo, com 12
aposentos, para as elites administrativas. Construiu o pavilhão para o Serviço de Rádio-
Comunicação do território, dois pavilhões para a Guarda Territorial, abriu nove estradas
de comunicação com os campos agrícolas. Durante o ano de 1946, foram concluídas dez
casas populares, duas do tipo médio e em construção três grandes e a Residência do
Governador. As obras públicas estavam paradas, em função do "programa de fomento à
construção particular" que havia comprometido toda produção de tijolos da Olaria do
Território. A Div. de Obras instalara outra “Olaria Pública” em Guajará Mirim, para
atender à demanda da construção civil ,principalmente, às demandas das elites.
Em 1944, foi constituída, em Porto Velho, a 2ª Cia. Rodoviária Independente do
Exército,268 com a missão de prosseguir a abertura da estrada Porto Velho- Presidente
Pena- Vilhena, com 90 km já construídos, pelos Contingentes Especiais de Fronteiras de
Porto Velho em parceria com os ferroviários da EFMM, estrada que a partir de então,
passou diretamente ao Exército e ao Ministério da Guerra, [comandada pelo Maj. Ênio
Pinheiro].
A primeira estrada, nos limites interiores do território, construída pela 2ª Cia.
Rodoviária, foi a de Santo Antônio, num percurso de 07 km para escoar a produção
agrícola para Porto Velho. A segunda, foi de penetração no promontório divisor das
bacias do Candeias e Ji-Paraná , na localidade de S. Carlos até Porto Velho. A outra partia
de Guajará Mirim na fronteira e até Pres. Pena, cruzando o picadão aberto pela Comissão
Rondon, na altura de Vila de Rondônia e daí até Vilhena. A única ligação terrestre com o
sul seria por meio de uma estrada, ligando Porto Velho à Cuiabá. A cidade de Porto

“Edição Especial do Guaporé”. REVISTA A PLANÍCIE n.º 27. s/local, 1946 - Centro de Documentação
267

Histórica de Rondônia - CDHR/SECET caixa 48.


140

Velho, sede da administração federal do território, não teve um contraste em termos de


melhoramentos urbanos:

Tabela 3 - Melhoramentos Públicos em Porto Velho


Melhoramentos Beneficiados Sem Benefícios Total
Ruas – Pavimentação 01 39 40
Iluminação 30 10 40
Água encanada 24 26 40
Esgotos 10 30 40
Hospitais 70 leitos - 01
FONTE: IBGE. Séries Retrospectivas, (1945-46.). 1970. 269

No entanto, esse quadro é progressista, se compararmos à Porto Velho descrita por


diversas fintes nos anos 20. Fonseca tece uma comparação entre a modernidade
encrustrada na ferrovia MMRC e a cidade real “inchada”, sem a mínima estrutura. “Uma
cidade à Far West”. O autor compõe esta imagem da cidade:

O povoamento fora da área do pátio ferroviário ocorreu de forma desordenada. ...


enquanto uma multidão de anônimos ocupava esses terrenos com moradias construídas a
partir de materiais disponíveis na floresta, que circundava a cidade. Dessa forma surgiu o
"centro" e os embriões dos primeiros bairros da cidade, muito significativamente denominados
Favella e Mocambo, pois reportam-nos a sua composição social. Contudo, mesmo na parte
central desse lado da cidade, a rua de maior movimento comercial era denominada rua da
Palha, em referência ao material predominante nas suas construções.270

Hardman foi no mesmo percurso comparando a modernidade européia e norte-


americana que mascaravam a face dos subúrbios e rincões do restante da cidade. Usou a
mesma analogia entre o microcosmo da Company (dos pátios da ferrovia) e a cidade de
Porto Velho explicitando o fascínio e as contradições: “... uma grande fábrica de gelo
produzindo mais de uma tonelada por dia – o gelo, esta mercadoria tão útil quanto
evanescente na selva tropical, sua transparência e frio esfumaçante sendo motivo de
encantamento dos que tocam ou possuem, como em Fitzcarraldo. Tomando por outro plano,
focaliza-se o lado leste da rua da Palha, onde se amontoam em palhoças de trabalhadores em atividades ou
já demitidos.” 271
O saneamento sempre fora uma das questões problemáticas em Porto Velho. As
primeiras tentativas de construção da ferrovia, em 1870, pela P. T. Collins, esbarrou na

268 LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei 6498 de 13 de maio de 1944. Cria a 2.ª Companhia Rodoviária
Independente. S. Paulo, LEX Editora, 1.964. Pg. 168.
269 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Anuário Estatístico do Brasil. Conselho

Nacional de Estatística. Ano VIII. Rio de Janeiro, 1947.


270 FONSECA, Dante R. “Uma Cidade à Far West: Tradição e Modernidade de Porto Velho” in Porto Velho Conta

a Sua História. Porto Velho, MEC/Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo, 1998. pp. 51.
141

malária. Segundo Oswaldo Cruz (1910), a beribéri ceifava democraticamente a todos, do


trabalhador, nas piores condições de higiene, aos médicos, engenheiros e burocratas. O
sanitarista relatou as aberrantes desigualdades. A morte rondava os operários, expostos às
condições subumanas de trabalho. Perversa era a fome, agravante das endemias,
impedindo o “povoamento”.
Para amenizar os problemas: fome e doenças tropicais, a administração do
território deu continuidade à implantação de núcleos agrícolas, agora subordinados ao
Departamento de Produção. Para o saneamento, tratamento e prevenção das endemias
estruturou o Departamento de Saúde. O saneamento vinha sendo tentado desde a
construção da EFMM, a partir da vinda de Oswaldo Cruz e Belisário Pena. Tomar o
saneamento como problema é cair no enredo da memória oficial. Porque os nativos não
eram acometidos pelas endemias? A resposta talvez seja o modo de vida e as condições de
trabalho dos trabalhadores, vitimados pela baixa resistência imposta pelo intenso ritmo de
construção da ferrovia. A intensa exploração os impedia de cultivarem lavouras para
sustento e os salários eram integralmente comprometidos com o endividamento junto à
Comissary- sistema de barracão imposto pela MMRC. Não ingeriam a alimentação básica
que fosse condizente com as reais necessidades fisiológicas, fator desencadeante de suas
debilidades. Lembremos que, ainda em 1940 trabalhavam de 12 à 16 horas por dia e
quando da visita de Vargas exigiram do presidente o cumprimento das leis trabalhistas,
uma ficção na EFMM e nos seringais.
Vargas fez do saneamento da Amazônia um dos estandartes do seu programa
"Marcha para o Oeste" na ocasião. O resultado foi o convênio entre governo federal e os
estados do Pará e Amazonas, por meio do decreto nº 8.449, de 20 de dezembro de 1941,
para execução do Plano de Saneamento da Amazônia. Apesar das “iniciativas”, com a
migração nordestina as doenças se agravaram pela sua disseminação. Em 1944, o governo
territorial adquiriu o Hospital S. José, em Porto Velho, e o abasteceu com pequenos
estoques de remédios deficitários pela grande demanda, e também ampliou ambulatórios,
enfermarias e número de leitos272.

271HARDMAN, Francisco F. Trem Fantasma: A Modernidade Nas Selvas. S. Paulo, Cia das Letras, 1988.
272“As realizações do Governo do Território do Guaporé”. REVISTA PARÁ AGRÍCOLA.. Belém, janeiro de
1946- ano XIV n.º 168. Edicção dedicada ao Território do Guaporé.
142

Tabela 2 - Despesas do Território Federal do Guaporé


Natureza Ano de 1944 Ano de 1945
Administração Geral *89.000,00 228.000,00
Saúde 17.000,00 25.000,00
Fomento 6.000,00 -
Serviços Industriais 21.000,00 -
Serv.de Utilid. Pública 102.000,00 102.000,00
Encargos 57.000,00 161.800,00
Segurança Pública 28.000,00 130.000,00
Educação 35.000,00 73.000,00
Outros - 59.000,00
Total das Despesas 355.000,00 778.800,00
Porcentagem Saúde 4,8 % 3,2 %
Fonte: IBGE. Anuário Estatístico do Brasil. Ano VIII-1947. Conselho Nacional de Estatística.

Em comparação aos gastos destinados a obras de infra-estrutura dos Serviços de


Utilidade Pública (18%) e de Segurança Pública (14%), a inversão na saúde foi inferior ao
da educação. Mesmo com o apoio do serviço médico dos Contingentes Especiais de
Fronteiras e Distrito Telegráfico, atendendo as populações carentes, os investimentos
diretos no setor foram ínfimos.
O decreto territorial nº 2, de 25 de fevereiro de 1944, criou o Departamento de
Saúde, com a finalidade de promover e executar as atividades relacionadas à saúde pública
e saneamento, composto da seguinte forma:

I-Serviço de Saneamento e Malária:


- Postos Itinerantes;
II- Centro de Saúde;
III- Assistência Técnica;
IV- Hospital São José;
V- Posto de Saúde de Guajará Mirim;
VI- Postos Sanitários.

A Div. de Saúde deveria pesquisar as condições sanitárias, elaborar planos de


assistência médica e social, manter estabelecimentos indispensáveis ao plano de saúde:
postos e centros, hospitais, maternidades e postos de puericultura, fiscalizar as atividades
de empresas particulares na assistência médica e social. O Departamento de Saúde tinha
por objetivo compensar o déficit na saúde, deixado com a falência da Madeira Mamoré
Railway and Co.
Foram construídos postos de saúde à beira dos rios Jamari e Machado e ao longo
da ferrovia. Posto Ludma Trotta, Maternidade Laudmia Trotta, construção da
Maternidade Darcy Vargas, em Porto Velho e o Posto de Saúde do Abunã, na divisa com
143

a Bolívia. Foi construído o Hospital das Clínicas Infantil, em Porto Velho, um posto em
Pedras Negras, no Alto Guaporé, no Núcleo do Iata., em Candeias (margens do rio
Candeias do Jamari), em Costa Marques, no Guaporé, e em Tabajara, no rio Ji-Paraná. O
objetivo implícito era tentar fixar os trabalhadores na região, na tentativa de conter o
êxodo.
Apesar da construção de postos e escolas, não era oferecido os serviços
prometidos. Os médicos geralmente visitavam os postos dos núcleos uma vez por ano. Os
depoimentos de ex-seringueiros, alcunhados por Santos273 de “sobreviventes da fartura”,
conflitam com o discurso oficial. Em muitos, é elementar o casuísmo e o oportunismo nas
ações do governo territorial, como no caso do sobrevivente José Maria dos Santos que narra
o relato de um gerente de seringal, sobre o descaso com os “soldados da borracha” e o
ínfimo valor que as autoridades territoriais davam às suas vidas:

Zé Pereira da Silva o Pernambucano ... foi dizer pra nós em 48:


- Oxente! Levei 40 brabo.
Que chamavam brabo os arigós.
- E escapou oito ... o resto tava sangrando aqui na boca do rio Ouro Preto.
Morria e enterrava. Hoje tem uma colocação denominada Boca Larga ... por causa do
carioca .. que tinha a boca larga e morreu no lugar por que não sabia remar ... Quando
encontraram cavaram com remo ... jogaram um bocado de terra e folha em cima e vieram
embora ... lá apodreceu ou os urubus tiraram ele pra fora e comeram.
Assistência não tinha ... depois foi que pareceu a SESP ... naquele tempo era por conta do
americano ... que só dava um saquinho com 100 Etebrina ... o camarada tomava e às vezes cortava o
impaludismo. Cortava mas intoxicava o fígado ... com qualquer coisinha já ia também.274

A realidade cotidiana era um pouco diferente da oficial. Os seringueiros


denunciavam os patrões junto à Promotoria de Guajará Mirim, por abandono e maus
tratos, geralmente redundando no falecimento dos trabalhadores. Foi o caso da acusação
contra Paulo da Cruz Rodrigues, dono do seringal Água Branca, responsabilizado pelas
mortes de Ambrózio Manoel dos Reis, Manoel Severino e um terceiro mencionado apenas
por Lauro, em conseqüência da escassez de alimentação, remédios e assistência médica:

... mais positivo nas acusações que faz ao denunciado, quanto à falta de assistência e
alimentação aos seringueiros que trabalham em “Água Branca”, citando um seringueiro, de
nome Lauro, que morreu completamente abandonado digo, à mingua de tudo, e que “só” foi
enterrado cinco (5) dias depois de falecido, ... Cita ainda o caso de outros seringueiros falecidos
à mingua de tudo, e que deixaram saldo como o tal Lauro, ... Essa testemunha não só faz
referências ao dito abaixo assinado, dirigido ao Governador [denúncia].275

273
SANTOS, Nilson. Seringueiros da Amazônia: os sobreviventes da fartura.. S. Paulo, Tese Doutorado em Geografia
Humana FFLCH/USP, 2002.
274 SANTOS, Nilson. Op. Cit. Depoimento de José Maria dos Santos. Pp. 227.
144

As denúncias juntadas às críticas de Silva276, aos serviços de saúde prestados aos


colonos do Iata, refletem as contradições entre o discurso e a prática. Os seringalistas, por
sua vez, alegavam não serem culpados, já que o Serviço de Saneamento não distribuía
medicamentos aos seringalistas e nenhum médico teria ido aos seringais.
Nesse “jogo de empurra”, decodificamos os seguintes elementos: o governo do
território, visando sanear o “vazio demográfico”, promovia campanhas de atração,
seduzindo as classes populares com promessas de saúde, educação, aposentadoria, terras e
outros benefícios. O governo federal prometia contratos justos com assistência trabalhista
e jurídica e os seringalistas apenas aguardavam os “iludidos” para o bote. A omissão dos
seringalistas, em relação à falta de estrutura por parte do território, o desobrigava de pagar
o trabalho devido. Os seringueiros falecidos não deixavam descendentes conhecidos, a
situação liberava os seringalistas das obrigações trabalhistas “indicadas” pelo governo
federal.
A justiça, para abrandar o lado dos seringalistas, acusava o governo do território e o
governo federal pelo abandono dos seringueiros, elementos atenuantes da
responsabilidade das elites. Às vezes, chegava ao exagero de desqualificar as vítimas ou as
testemunhas. Casos ocorridos na comarca de Guajará Mirim, mais precisamente no
seringal localizado no igarapé Água Branca, nas cabeceiras do rio Pacaás-Novos:

Infelizmente cumpre confessar que o seringueiro vive entre nós abandonado geralmente, e
que desse abandono a principal culpa cabe, exclusivamente aos poderes públicos. É sabido que muitas são as
promessas feitas aos seringueiros pelos agentes do poder público, empenhados em obter a necessária
corrente imigratória para os seringais. Entretanto essas promessas nem sempre foram geralmente
cumpridas, e razão assiste aos seringueiros para afirmar que vivem inteiramente abandonados,
entregues a si próprios ou aos mais vivos ou menos fortes sentimentos de humanidade de seus patrões. ...
Como provado ficou, jamais médico algum da União ou do Território percorreu ainda os seringais
desta região...
Realçou o Dr. Promotor Público que as testemunhas deixaram transparecer a quasi
inimizade existente entre elas e o denunciado, que lutou muito nesta cidade para poder pagar
os saldos devedores aos depoentes. Realçou a contradição entre elas, referente a alguns pontos
da denúncia. ... deixou também claro o Dr. Promotor Público não ser grande a culpa do
denunciado ...277

Como se isso não bastasse, juiz e acusador público aceitavam testemunhas que
nunca estiveram próximos ao local, mas que por serem pessoas influentes na sociedade do
Guaporé, sempre eram chamadas para a defesa dos seringalistas. As testemunhas

275 LIVRO DE SENTENÇAS DO ANO DE 1946 DA COMARCA DE GUAJARÁ MIRIM. Sentença nº 39.
Guajará Mirim, 08 de fevereiro de 1946. Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do
Estado de Rondônia, Porto Velho.
276
SILVA, Francisca A. Iata: Uma tentativa de Colonização (1943-1972). Goiânia, Dissertação de Mestrado em Ciências
Sociais, UFGO, 1987.
145

“coringa”, comerciantes tais como: Omar Morhy, Manoel Boucinhas de Menezes e


Manoel Manussakis, tinham interesse pessoal nos processos, visto que, se seus clientes
seringalistas fossem julgados culpados e presos, não poderiam quitar suas dívidas. Costa
Sobrinho, analisando os maus tratos cometidos pelos seringalistas, afirma ser a regra geral
na Amazônia. O autor baseia-se nas análises de Roberto Santos em História Econômica da
Amazônia, e Pedro Martinello em sua tese A “Batalha da Borracha” na Segunda Guerra Mundial
e sua conseqüências para o Vale Amazônico, e apesar de seu trabalho enfocar o território do
Acre, são inúmeras as semelhanças com a realidade do Território Federal do Guaporé, na
década de 1940. Martinello descreve, “As condições de vida e trabalho tornavam-se ainda piores em
decorrência da má qualidade dos alimentos fornecidos, muitos deles apodrecidos, mas, assim
mesmo, aviados ao freguês. ... tendo por agravante a precária cesta alimentar, eram responsáveis por
mais de 20% da mortalidade entre os trabalhadores.”278
Se o patrão fosse “bom”, os trabalhadores tinham “sorte”, o contrário também era
verdadeiro e grave. Um acordo “tácito”, entre as elites militares e civis, mantinha esse jogo
de exploração absoluta da mão de obra, legitimada pela Justiça do Território. Os juizes
estipulavam para os crimes de espancamento, tortura e assassinato penas “brandas”, como
o pagamento de multas irrisórias. A exemplo do caso do julgamento de João Antônio de
Oliveira e sua esposa Júlia Rivera, acusados pelo assassinato do seringueiro Ary Pereira dos
Santos.279 O promotor fez a “defesa” dos réus, descaracterizando o crime de maus tratos e
abandono, chegando às raias do absurdo na imputação do crime à vítima, este era o
“valor” do seringueiro no Território Federal do Guaporé. Segundo testemunhas, Ary
Pereira dos Santos, havia sido espancado e mutilado pelo casal. e foi trazido pelos
mesmos, do seringal para Guajará Mirim já moribundo acometido de infecção grave em
virtude dos castigos corporais sofridos. Apesar de instalarem-se à bordo de um barco
grande e seguro, os acusados “trouxeram” o seringueiro doente em uma pequena canoa,
em pleno período das cheias, quando a correnteza é muito forte. Alegando ignorância
quanto à possibilidade da canoa virar com o moribundo sozinho dentro dela., informaram
que não tiveram cuidado em levá-lo para dentro do barco maior e nem de prestar-lhe

277 LIVRO DE SENTENÇAS DO ANO DE 1946 DA COMARCA DE GUAJARÁ MIRIM. Sentença nº 39.
Guajará Mirim, 08 de fevereiro de 1946. pp. 50 frente e verso. Acervo do Centro de Documentação Histórica do
Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.
278
COSTA SOBRINHO, Pedro V. Capital e Trabalho na Amazônia Ocidental. S. Paulo, Cortez/Rio Branco, UFAC,
1992. pp. 44.
279 LIVRO DE SENTENÇAS Nº 23 DO ANO DE 1946 DA COMARCA DE GUAJARÁ MIRIM. Sentença

nº 42. Guajará Mirim, 15 de fevereiro de 1946. pp. 56-68 frente e verso. Acervo do Centro de Documentação
Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.
146

qualquer assistência.280 Assim, apesar de todas as evidências, o promotor desqualificou


como crime o acontecido, haja vista o desaparecimento do corpo de Ary, tragado pelas
água.
O Diário Carioca denunciou, em 1943, como escândalo nacional “A Tragédia dos
Seringais”. Segundo esse, no seringal “Palmeiras” um grupo de seis seringueiros fugiu do
cativeiro e foi perseguido pelo patrão que reuniu vinte homens armados, atacando-os à
bala, resultando em mortos e feridos. O jornal acusava o Tribunal de Segurança Nacional
por se omitir no caso, já que não realizou exame de corpo delito e tampouco investigou o
paradeiro de um desaparecido. O Tribunal de Segurança Nacional se declarou
incompetente para julgar o caso e pediu o arquivamento do processo alegando não serem
imputáveis os agressores:

O fato a que se refere esse julgado merece ser descrito, pois vem mostrar um dos mais
tristes aspectos da vida dos trabalhadores nos seringais, para onde o coordenador [Vargas] está
levando massas de brasileiros.
Este é um aspecto, dos muitos, que a vida dos seringais nos apresenta, com seus problemas
complexos, as leis sociais do Brasil não conseguiram ainda sobrepujar a lei da “jungle”.281

Na Assembléia Constituinte de 1946, vários deputados, a maioria da bancada


udenista do Ceará, denunciaram o massacre, pelo Estado Novo, de 23.000 seringueiros
nordestinos em toda a Amazônia. Organizaram uma denúncia dentro da Constituinte, aos
Interventores Federais, responsáveis pela “Batalha da Borracha”, leia-se Álvaro Maia no
Amazonas, Gen. Magalhães Barata no Pará e o governador Maj. Aluízio Ferreira no
Território do Guaporé, tal movimento ficou conhecido como “campanha alarmista”.282
Aliás, com a criação do Território Federal do Guaporé, juizes, promotores e
delegados alcançaram certa “independência” em relação às instâncias superiores, pois
ficavam subordinados diretamente às estruturas administrativas do Território. Voltando ao
acordo tácito entre as elites burocráticas (civis e militares) e elites econômicas, o
depoimento do ex-seringalista Manoel Lucindo, de Guajará Mirim, é muito esclarecedor
quanto às relações cotidianas entre poder público e privado. O objeto alvo da
“promiscuidade” entre os poderes foi sempre os trabalhadores dos seringais coagidos à
exploração absoluta por formas “legais” e extra-legais:

280
LIVRO DE SENTENÇAS Nº 23 DO ANO DE 1946 DA COMARCA DE GUAJARÁ MIRIM. Sentença
nº 42. Guajará Mirim, 15 de fevereiro de 1946. pp. 56-68 frente e verso. Acervo do Centro de Documentação
Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.
281 “Tragédia dos Seringais”. ALTO MADEIRA. Porto Velho, 04/mar/1943. Extraído do DIÁRIO CARIOCA.
282
BRAGA, Sérgio Soares.Quem foi quem na Assembléia Nacional Constituinte de 1946 :um perfil socio econômico e regional
da Constituinte de 1946. Campinas, Mestrado em Ciência Política do IFICH/UNICAMP, 1998. Pp. 240; 433.
147

Aqui conheci o Dr. Melo e Silva, era um juiz daqui. Ele liberou os presos da cadeia para
trabalhar, ... mas os presos não queriam trabalhar, nem para fugir prestavam. Devido a
necessidade de gente, eu disse: Dr. Arranje mais dez homens destes. Ele disse: quanto for preciso, a
cadeia estava muito lotada, eu levei os presos para o seringal e eles fizeram muita borracha, chegou o ponto do
banco me financiar um bilhão. ... Algumas vezes eu trazia os presos, mas aqueles cabras não
prestavam nem para fugir (risos).
Para conseguir que os presos fossem trabalhar no meu seringal, eu dizia: Dr. Melo, eu estou
precisando de gente, o senhor me arranja desses homens. Desses bandidos? Ele dizia: esses
bandidos não prestam nem pra fugir. Eu dizia: quero homem que seja criminoso, porque o
criminoso tem coragem para matar os outros, quem tem coragem para matar, tem coragem
para trabalhar. O juiz [Melo e Silva] ficava recebendo o salário deles. Ele combinava com o Dr. Cruz que
era Promotor de Justiça. Esses gostava de dinheiro. Eu fiz muita borracha, eram muitas gândoa cheia de
borracha. 283

A partir do depoimento do ex-seringalista, vemos que a exploração avançava além


dos seus limites institucionais e também que todo o aparato policial fazia parte do jogo,
pois o Delegado era o Assistente da Guarda Territorial Cap. Manoel Alípio. A lei em todos
os seus níveis estava “comprometida” com a acumulação de riquezas na fronteira.
À mão-de-obra indígena cativa nos seringais somavam-se os detentos, geralmente,
condenados por crimes “comuns”: homicídio em função de brigas, desavenças pessoais e
ciúme. Porém, esses crimes “desfocam” os conflitos das relações de produção, poque
convenientemente, os seringalistas estavam ausentes. Os conflitos eram administrados
pelo “gerente de seringal”, usando da violência aberta contra índios, caboclos e
seringueiros. Os gerentes de seringais eram freqüentemente alvos de rebeliões, tocaias,
traição e combates corporais, além de assassinatos.
Todo o cuidado é pouco na análise dos processos, senão caímos nas armadilhas do
documento. Os processos trazem formas de resistências “pouco convencionais”, como
brigas e tocaias contra os gerentes, portanto, é um equívoco tomarmos conceitos e
pressupostos como conflitos de classe, impossíveis de ser generalizados para todas as
relações de exploração e tentarmos interpretar uma realidade singular. Temos de elaborar
questões pertinentes aos documentos e tentar minimizar nosso olhar dedutivo, do
contrário, é enorme o risco de sermos enredados pelos nossos pressupostos.
As ações do Maj. Aluízio Ferreira e os decretos-lei do governo federal se cruzavam
incentivando a “ocupação” do território. Governar significava: governar para cidadãos
republicanos "inexistentes", ou seja, o imperativo era governar para povoar e povoar para
governar. As populações indígenas, os caboclos e ex-escravos do Guaporé estavam de fora
das estatísticas dos “trabalhadores nacionais” ou “cidadãos da república”. Atrás dos
bastidores, havia uma guerra “civil” silenciosa a essas populações: no trabalho escravo ou

MANOEL LUCINDO. Entrevista concedida à Nilza Menezes. Guajará Mirim, 2000. Projeto de Constituição do
283

Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Tondônia, Porto Velho,
2001.
148

no extermínio pelas epidemias, levadas “ingenuamente” pelos cidadãos “nacionais”. Era


comum a dizimação aberta de tribos indígenas pelas expedições organizadas pelos
seringalistas.
A criação dos Contingentes Especiais de Fronteiras foi fundamental para a
realização dos “serviços de utilidade pública” no território. O Maj. Aluízio Ferreira
comparou os contingentes de fronteira ao renascimento do exército colonial, utilizando a
estratégia da “ocupação” da região e a fixação de células de povoamento pelos sertões.
No Forte Príncipe da Beira, às margens do Guaporé, o Contingente de Fronteiras se
transformou em colônia militar na década de 30. Além de outros serviços, os Contingentes
Especiais de Fronteiras construíram campos de pouso em Porto Velho, Guajará Mirim e
Forte Príncipe da Beira.
O Maj. Aluízio Ferreira assumiu o governo do território no dia 24 de janeiro de
1944, e após vinte dias, editava o primeiro decreto criando a Guarda Territorial. A
continuidade da “guerra de ocupação” refletiu-se nas atribuições e competências da
Guarda Territorial: "A G. T. é uma corporação de caráter civil de que o Governador disporá para a
manutenção da ordem do Território e como mão de obra na execução de trabalhos públicos.”284
Ao cruzarmos as matérias da revista OBSERVADOR DO PARÁ com as memórias do ex-
Guarda Territorial Esron Menezes285, evidencia-se a característica da Corporação como
uma frente de trabalhos. O Cel. Aluízio Ferreira igualmente se refere à Guarda Territorial,
enquanto renascimento do exército colonial só que brasileiro subordinado diretamente ao
governador.286
A intenção de vivificar um exército que criasse a infra-estrutura para o
“povoamento” foi acentuada. Tão significativo quanto o esforço de construção do
território, era imperativa a manutenção da ordem pública. O artigo 5º, do Decreto
Territorial n.º 1, expõe a prática do exército colonial: "Os guardas serão encarregados dos
serviços de vigilância, manutenção da ordem, construção e conservação de edifícios, estradas e
caminhos, e, em geral, de todos os trabalhos de responsabilidade pública, relacionados com o saneamento,
transporte, povoamento, colonização e incremento da produção do Território." As atribuições
vinculadas à segurança, aparentemente eram poucas se comparadas com as de caráter

284 COLEÇÃO DAS LEIS DE RONDÔNIA. Decreto n.º 1 de 11 de fevereiro de 1944. Decretos dos Governos
Territoriais de 1944 à 1981. (excertos) Porto Velho, Governadoria do Estado de Rondônia, 1990. Vol. II. Pp. 21-
2.
285 “Coluna História Antiga”. ALTO MADEIRA.. Porto Velho, 1982. Esron P. de Menezes é historiador e foi

contemporâneo do Cel. Aluízio Ferreira, foi seu Ajudante de Ordens, Correlegionário Político, Chefe dos
Bombeiros e amigo pessoal.
286“Edição Especial do Guaporé”. OBSERVADOR ECONÔMICO DO PARÁ . Belém, 1945.
149

social. A Guarda Territorial, a partir da criação do Território se somaria à atuação dos


Contingentes Especiais de Fronteiras.
Na década de 30, a estrutura de saneamento, educação, transportes, vias de
comunicação, aeroportos, rodovias e postos de saúde fora implantada pelos militares dos
Contingentes. O número de Guardas Territoriais criados, seiscentos, para uma população
de 4.500 pessoas, entre Porto Velho e Guajará Mirim287, perfazia 14% da população
urbana, número elevado para as tarefas de “manutenção da ordem”.
Entre as exigências para ingressar na Guarda Territorial, estavam as de "ser
reservista e casado”, reforçando a fórmula adotada para os colonos nos núcleos coloniais e
para os engajados nos Contingentes Especiais de Fronteiras e, também era importante que
o Guarda Territorial tivesse passado pelo treinamento "militar".
Nos relatórios de Araújo Lima288 e do Cel Ribamar Miranda289 ao Ministério da
Justiça e Negócios Interiores, ficava claro o papel desempenhado pela Guarda Territorial.
Segundo o relatório de Araújo Lima, no exercício de 1946, a Guarda Territorial deu início
à construção de pavilhão, construção de cercados em torno do Quartel da Guarda
Territorial, construção do barracão de máquinas, construção de baias no Quartel. Pelas
informações, a Guarda Territorial possuía máquinas para os trabalhos de construção,
abertura de estradas, limpeza e saneamento. Oficinas destinadas à confecção de calçados,
fardas e a carpintaria, atendendo órgãos do Governo Territorial. O governador relata os
incomensuráveis Serviços Externos da Guarda Territorial, dada a quantidade e a
variedade de serviços:

Em todas as construções públicas os elementos da G.T. tomam parte; construção de estradas, limpeza
e conservação de ruas, roçagem, abertura de valas, carga e descarga de navios, extração de
lenha, madeira e palha, transporte de material, policiamento e enfim, trabalhos de toda natureza
que lhes são confiados. ... Pequenos destacamentos se encontram em diversas localidades do
interior, aí exercendo as suas atividades, quer na manutenção da ordem, quer trabalhando nos mais
diversos serviços. ... Seus especialistas - pedreiros, carpinteiros e motoristas - estão constantemente em
serviço externo. Grande número de seus elementos se acha destacado em várias localidades. ...
De 19 de julho [1948] a esta data [1949], podemos apresentar os seguintes trabalhos
executados pela Guarda Territorial: Construção do pavilhão do Armazém Reembolsável e da
Banda de música ... as telhas, caibros e ripas estão sendo custeados pelo Armazém
Reembolsável.
Construiu-se um barracão ... destinado ao abrigo das máquinas rodoviárias. Construiu-se a cadeia pública
provisória e um barracão de palha destinado à cozinha dos presos e outro maior, destinado a
uma oficina para trabalho dos presos. ... Forneceu-se lenha para a Escola Normal "Carmela Dutra" e
os Grupos Escolares "Duque de Caxias" e "Barão do Solimões". Colocou-se com a Prefeitura, fornecendo

287 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICAAnuário Estatístico do Brasil. Ano VIII, ,


1947. Conselho Nacional de Estatística.
288 LIMA, Governador Araújo. Relatório do Território Federal do Guaporé ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. 04

de janeiro de 1949. Acervo do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.


289 FREITAS, Cap. Eng. José O. Síntese da Evolução do Território nos Anos de 1943-1954. Serviço de Estatística e

Geografia do Território. Administração Governador Cel. Miranda, 06 de agosto de 1955. Arquivo Nacional –Rio
de Janeiro.
150

pedreiros para os trabalhos de conclusão do mercado e trabalhos do Viaduto "Guapindaia". A


G.T. tripulou os trens para transporte de todas as pedras empregadas na construção do "Hotel de Porto Velho"
e "Palácio do Governo". Esse material foi transportado pela estrada de ferro Madeira-Mamoré. ...
A G.T. forneceu elementos para a instalação do encanamento de água, da bomba e das instalações para
a cidade. Para a construção da lage de concreto no edifício da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a Guarda
concorreu com 37 homens ... A aplicação de D.D.T., feita pelo S.E.S.P. [Serviço Estadual de
Saúde Pública], emprega elementos da G.T., tanto na capital como no interior.
É rara a repartição pública que não tem elementos da G.T. à sua disposição. 290

A Guarda Territorial participava diretamente da construção do território,


prestando serviços a todos os Departamentos. Fornecendo lenha e dedetizando escolas do
Departamento de Educação. A Guarda Territorial formou profissionais especializados
para diversos cargos: Guarda Medicador, Guarda Aspersor291, Guarda Sanitário292 ou
Prático de Farmácia,293 para o Departamento de Saúde.
Segundo a VÉRTICE Especial, os membros da Guarda Territorial eram os Heróis
Anônimos da Amazônia, conferindo-lhes o título de bandeirantes, atualizando as imagens da
expansão colonial:

VERDADEIROS BANDEIRANTES

Nos idos de 1944, os bravos homens da Guarda Territorial atuaram como verdadeiros
Bandeirantes, adentravam na selva Amazônica a fim de prestarem seus serviços aos
seringueiros, aos garimpeiros, e a todos que deles necessitassem. Inúmeros soldados
tombaram, não em lutas ferozes como nos Campos de Batalha da Itália. Não. Os inimigos
dos soldados eram muito mais perigosos do que os treinados soldados de Hitler. Por que eles aqui
lutavam contra um inimigo muito mais poderoso, muito mais difícil de ser localizado, os
inimigos que os atacavam sem tréguas numa batalha sem quartel, eram Malária, Tifo,
Beribéri, Tuberculose entre outros ... nem médicos existia nos locais onde os bravos
bandeirantes de Guarda de Fronteira prestavam seus serviços oferecendo suas vidas para
salvar as das populações civis.

SERVIÇOS PRESTADOS

... no setor rodoviário foram feitas as seguintes estradas: 2 de novembro - Tabajara com
22 km (cerca de 18 pontes); Porto Velho-Humaitá; Abunã-Fortaleza, feita para dar
escoamentos aos seringais; Colônia do Iata-G. Mirim; Estrada dos Tanques- Areia Branca
entre outras. ... desobstrução dos afluentes do rio Guaporé, para que neles fossem feito o
serviço normal de navegação; Campo de Aviação de Forte Príncipe e do Aero Clube de
Porto Velho. Gastavam 60 dias à pé de Porto Velho à Pimenta Bueno e mais 30 para
chegar à Vilhena, onde se realizava as frentes de serviço. ...

290
LIMA, Governador Araújo. Relatório do Território Federal do Guaporé ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. 04
de janeiro de 1949. Acervo do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
291 Afonso Scerati egresso da 3ª Companhia Independente de Fronteiras se engajou na Guarda Territorial como

Guarda-Aspersor. Livro de Registro de Tempo de Serviço. Nº 03. Arquivo Geral do Estado de Rondônia.
292 Bernardo Crispim da Silva egresso da 3.ª Cia de Fronteiras se engajou na Divisão de Saúde como Guarda-

Sanitário. .Livro de Registro de Tempo de Serviço. Nº 03. Arquivo Geral do Estado de Rondônia.
293 Waldemar Saldanha da Gama egresso do 27.º Batalhão de Caçadores se efetivou como Prático de Farmácia no

Governo do Território no Departamento de Saúde. . Livro de Registro de Tempo de Serviço. Nº 03. Arquivo Geral do
Estado de Rondônia.
151

EM P. VELHO

Serviço de saneamento, construção do Palácio do Governo e a maioria dos prédios


onde se localizam os serviços públicos, todo o posteamento antigo da cidade e respectivo
abastecimento à usina de energia movida à lenha, abertura de ruas, quartéis e todo o
serviço de estiva, carga e descarga de navios era feita pelos soldados da Guarda.294

Neste momento, tecemos um paralelo com a história oficial. Era real a estruturação
do estado “nacional” na fronteira. Mas, vamos aos bastidores do cotidiano, aos cenários
que ficaram de fora da historiografia autorizada. A “manutenção da ordem” ia além dos
conflitos explícitos, se fazia até mesmo antes da irrupção daqueles.
O Relatório do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de
Rondônia permite apreender o funcionamento da Justiça na Comarca de Guajará Mirim,
nas décadas de 40-50: “Essa década permaneceu sem Juiz, ficando a Comarca de Guajará Mirim sob
o comando do Capitão Alípio [Comandante da Guarda Territorial] que exercia a função de
delegado, juiz, promotor e dono da cidade e das almas que ali viviam”.295
Os militares do Exército e da Guarda Territorial com a criação do Território
Federal do Guaporé, ocupavam o papel da “justiça local”. Justiça feita para manter a
“ordem” da produção de riquezas, como podemos observar pelos depoimentos e
acusações de ex-seringueiros. Havia conflitos, porém “resolvidos” pela coação violenta,
extra-econômica e extra-jurídica. Como relatam ex- soldados da borracha sobre a atuação
do Delegado e Comandante da Guarda Territorial, Capitão Manoel Alípio da Silva:

Mas ali com o Capitão Alípio o cara sofria ... ele pegava uma marreta de borracha pro cara
quebrar pedra ... o cabra passava dia e noite batendo naquela pedra ... chegava e perguntava:
_Quebrou a pedra meu camarada? Não? Então guarda ele.
Era muita formiga de fogo ... aí botava pra capinar ... quando a formiga batia ele dizia:
_Não mata as bichas ... isso aí é minhas crias. Não Mata!
Era muito malvado ... o cara capinando ali na formiga de fogo e o outro quebrando pedra
com a marreta de borracha e nunca que quebrava. Quando saía do xadrez tava todo doído e
com a mão inchada. Não tinha advogado ... o advogado era ele ... se o patrão chegasse e dissesse
assim:
Prende o Davi e só solta ele no dia que o motor [barco de grande porte] for sair.
Se faltasse 20 dias ia ficar lá dentro do xadrez. No dia da saída é que ia solto. 296

No tempo do velho Alípio ... o seringueiro malandro que baixava e não queria pagar a
conta do patrão ... ia com o delegado. O velho Alípio dizia:
- Você deve ao Manussakis?
- Devo sim senhor ... mas não vou mais pra lá ... porque tem muito índio.
Começava a remendar ... aí o velho Alípio dizia:
- É meu camarada ... tem que ver um caminho pra conseguir: tu vai procurar um
seringalista pra garantir tua conta ... ou vai pagar pro Manussakis lá no seringal ... ou vai lá prá
serra tirar lenha pra estrada de ferro até pagar a conta.

294 Edição Especial sobre o Território de Rondônia. REVISTA VÉRTICE. São Paulo, 1972 - Ano 4 n.º 10.
295 CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE RONDÔNIA.
Relatório da catalogação dos processos no período de 1912 a 1969. Porto Velho, 2001.
296 SANTOS, Nilson. Seringueiros da Amazônia: sobreviventes da fartura.. S. Paulo, Tese de Doutorado em Geografia

Humana FFLCH/USP, 2002. Depoimento de Davi de Souza. pp. 171.


152

Se aqui tinha índio lá [na serra] era a matriz .. aí dizia logo:


- Você não é cego ... não é aleijado ... não é paralítico ... você tem condição de pagar. Você
vai escolher.
E o cabra tinha que pagar a conta. Pagava ou não baixava ... o gerente dizia:
- Veja você ... é ordem do Manussakis ... não pode baixar enquanto não pagar a conta ... você não
vai baixar mesmo não.297

Eu conheci o Capitão Alípio, era homem justiceiro, mas não era uma pessoa má, era um
justiceiro.298

O papel da Guarda Territorial ia muito além das funções policiais. Eles exerciam o
cargo de “supervisores” da produção para os seringalistas. Mantinham os seringueiros e
trabalhadores urbanos sob controle violento, tortura, prisão e outros artifícios “legais”. A
Justiça controlava os “distúrbios” e “reivindicações” ,indiciando seringueiros por liderar
greves no seringal. Para todos os efeitos, não havia greves, era apenas uma reclamação
contra o “aumento abusivo” dos preços das mercadorias. Eram outras as formas de
resistência no cotidiano, como os duelos e combates corporais, mas a constante
“vigilância” por parte da Justiça os colocava de sobreaviso.299
Era comum também o abuso de poder por parte dos soldados e oficiais do
Exército e da Guarda Territorial, bem como das Forças Estaduais do Mato Grosso. Casos
de espancamento, agressão gratuita e de vinganças pessoais mascaradas de ação policial
fazem parte dos processos judiciários contra os militares. Era comum também a disputa
pelo poder de repressão entre membros da Guarda Territorial e soldados do Exército.
Eram vistos como autoridades policiais locais e demarcavam espaços de convivência a
exemplo de gangs modernas.300
Paralelamente, os índios continuaram a ser escorraçados de suas terras. O Maj.
Aluízio Ferreira, defensor das populações autóctones, em 1929 não tocou mais no assunto.
Os problemas de invasão aumentaram, com a alta “forçada” da borracha, em função da
guerra. A inconseqüente migração em massa para os seringais agravou os conflitos entre
os povos nativos e os “soldados da borracha” vindos atrás do Eldorado prometido pelo
governo do território e governo federal.
A exploração se intensificou ao extremo que até funcionários do Serviço de
Proteção aos Índios, como o encarregado do posto “Ricardo Franco”, João Freire de
Rivorêdo e seus auxiliares. Rivorêdo usando de seu cargo e poder junto aos indígenas,

297SANTOS, Nilson. Op. Cit. Depoimento de Francisco Nilo Pessoa. pp. 231.
298MANOEL LUCINDO. Entrevista concedida à Nilza Menezes. Guajará Mirim, 2000. Projeto de Constituição do
Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia, Porto Velho, 2001. pp. 04.
299LIVRO DE SENTENÇAS Nº 24 DO ANO DE 1947 DA COMARCA DE GUAJARÁ MIRIM. Autos de

Inquérito indiciando Francisco Jacinto da Silva.. Guajará Mirim, 06 de novembro de 1947. Acervo do Centro de
Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.
153

passou, com a ajuda de seus subordinados, a dizimar populações inteiras sob sua
“proteção”, para poder açambarcar suas terras e se apossar de sua mão-de-obra. Merece
destaque a forma como o Promotor Público desqualificou as testemunhas de acusação,
justamente as partes interessadas no desfecho do caso:

Das restantes [testemunhas] três nós desistimos e isso porque, realmente só


estamos desistindo de uma, eis que as restantes duas, são selvícolas e portanto relativamente,
aliás, incapazes, além de serem, na aberrante prova que servio de base a denúncia,
ditas vítimas dos acusados...
Crescencio Mundé, é dito “mentiroso e perseguidor de mulheres”, é índio e como
tal incapas, possuidor das qualidades, assim como dos defeitos próprios aos selvícolas...
Maria Luiza, outra selvicola, é dita pelas testemunhas, como estimada e querida
de todos, não havendo razão para o quanto alega...
O proprio inspetor Meirelles, dito inimigo de Rivoredo, faz referências a um
umbigo de boi, que Rivoredo possuia para espancar indios, mas o tal UMBIGO
não aparece ...301

Num processo criminal de 50 páginas, o acusador público, em tese o “defensor”


das vítimas, desqualifica, em duas páginas, as testemunhas por serem índios e, portanto,
“incapazes” de testemunhar. João Freire de Rivorêdo, de funcionário do SPI, se constituiu
como seringalista na região do posto que antes comandava. Nesse processo criminal, ele e
três subordinados foram acusados de chacinas contra tribos inteiras para açambarcar suas
terras. Bastou o depoimento das testemunhas “coringas”, para que o processo fosse
impronunciado, cabendo o arquivamento por falta de provas. Ressalto que as testemunhas
de defesa depuseram em vários outros processos a favor dos seringalistas. Pessoas muito
“respeitadas” e também fornecedoras e credoras dos seringalistas, seus depoimentos
“inocentavam” os patrões de quaisquer crimes.
O caso do seringalista Manoel Lucindo esclarece um pouco mais sobre a questão
indígena após a criação do Território Federal do Guaporé. Lucindo foi o primeiro
latifundiário na história do país que foi a julgamento pelo crime de genocídio, praticado
contra povos indígenas na década de 1980. Lucindo foi condenado a 15 anos de prisão por
genocídio, pelo fato de atirar contra membros de uma etnia com o intuito de dizimá-los.
Em razão da idade avançada cumpre pena domiciliar. Todos os crimes aconteceram pela
negligência do SPI.

300 INQUÉRITO POLICIAL Nº 28/51. PROC. 28/51. Guajará Mirim, 30 de abril de 1945. Acervo do Centro de
Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.
301 PROCESSO CRIME N.º 11/49. Comarca de Guajará Mirim. 14 de abril de 1945. Acervo do Centro de

Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.


154

Os seringais que eu tinha, ficava ali no Pacaas Nova. Na época, tinha muitos índios na
região, nem os peruanos conseguiram amansá-los. Hoje muita gente me calunia, dizem que
eu matei caboclos. ...
Os indígenas não trabalhavam, eles só matavam para roubar, matavam para roubar
machados. Eu nunca trouxe um homem flechado. Nós íamos armados para a mata, cada um
com espingarda ou com metralhadora, essas armas eram usadas para matar caça.
Hoje eu não frequento muito a igreja, porque ele [Bispo] me botou na reportagem,
disseram que eu era bandido dos inocente, dos caboclos da mata. Ele ganhou para fazer
isso, deram não sei quanto para ele. 302

Os índios serviram de “bucha de canhão” para os interesses das elites militares


como Rondon, o qual defendia a organização de colônias agrícolas indígenas nas áreas de
riquezas minerais, justamente, para montar a guarda sobre o rico subsolo da região sul do
Território do Guaporé.303 Os “ataques” indígenas eram tratados pelas autoridades militares
e policiais como crimes comuns. Constituía-se a criminalização dos conflitos inter-étnicos
(caso de polícia), desfocando a sobreposição de seringais e províncias minerais sobre áreas
indígenas. Os seringalistas “caçavam” com metralhadoras, mas no caso de um seringueiro
flechado era feita toda a reconstituição da arma e do corpo delito. Era comum nos
processos, geralmente arquivados por falta de provas, a indução à culpa do agressor e a
exacerbação da “maldade” dos índios.304
O discurso da construção da “nação” disseminou-se entre as classes populares em
detrimento de outras nações constituídas no espaço disputado. O seringueiro era a
infantaria da “integração” nacional das fronteiras. Ele não tinha consciência de seus
opressores diretos: comerciantes, seringalistas e burocracia militar. Os depoimentos de ex-
seringueiros são importantes para uma noção panorâmica do contexto violento nas
décadas de 30 e 40 do século XX. Segundo Davi de Souza, ex-soldado da borracha
aposentado:

O Damasceno andou muito atrás de índio aqui ... ele diz que nunca matou índio não...
mas eu falo que ele matou ... que ele era mateiro305 ... DAMASCENO JÁ ANDOU MUITO!
Mas agora chega no Pacaás Nova ... num lugar de caboclo306 ... eles recebe na casa dele
melhor que o civilizado.307

Quando nós entremos aqui ... encontremos muita dificulidade ... muita fera ... muito índio
... entonse nós tivemos essas travessias com os companheiro. ...

302 MANOEL LUCINDO. Entrevista concedida à Nilza Menezes. Guajará Mirim, 2000. Projeto de Constituição do
Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia, Porto Velho, 2001.
303 303 “Explorações auriferas no rio Urucumacuan, noroeste do Matto Grosso”. ALTO MADEIRA. Porto

Velho, 21 de agosto de 1940. Extraído do “O ESTADO DO PARÁ”.


304 INQUÉRITO POLICIAL Nº 47/51. Ataque Indígena. Guajará Mirim, 08 de dezembro de 1947. 26 páginas.

Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Porto Velho.
305 Espécie de bugreiro, misto de pacificador de índio com agenciador de mão de obra escrava.
306 Índio civilizado na etimologia regional. Também conhecido como “manso”.
307 SANTOS, N. Seringueiros daAmazônia: Sobreviventes da Fartura. S. Paulo, Tese de Doutorado em Geografia Humana,

USP , 2002.Depoimento de Davi de Souza. Pp 171.


155

Já vi foi gente flechada ... morto por modo de flecha ... ninguém trabalhava tranqüilo ... 308

Mas antigamente a relação com os índios era terrível ... o índio era o maior inimigo do
seringueiro ... e o seringueiro o maior inimigo do índio ... como eu falei antes a gente tinha
um mundo na nossa cabeça ... na cabeça do seringueiro o índio que era o invasor ... o índio é que
tinha que se mandar e ir pró centro da mata ... ir pra longe e deixar ali pra gente. O
seringalista dizia que só acreditava que tinha índio no seringal dele se o
seringueiro chegasse com a orelha de um. Então gerava conflito ... e os índios
vinham pra defender seu território e matavam ... como houve muitos crimes bárbaros ... do
índio matar uma família inteira de seringueiro.
Quando acontecia um caso desse gerava revolta ... o seringalista mobilizava a expedição ...
pegava 15 – 20 homens armados até os dentes ... e um mateiro bom pra procurar a aldeia pra matar
tudo.
Tinha a estratégia de atacar os índios às seis horas da manhã ou seis da tarde que tava
todo mundo em casa. Quando os índios começava a sair ... em cada boca de caminho ficava dois
vigia que atiravam.
Alguns índios que reagiam ... jogavam flecha contra aquele que tava atirando. Depois de
matar muitos ... roçavam a roça dos índios ... eles sempre tiveram milho e mandioca ... e
tocavam fogo nas casas que era pros índios irem embora.
Tinha grupo de índio que quando tava vendo que iam morrer todos: se entregavam. Ao
invés de fugir pra mais longe eles se entregavam no barracão pedindo paz ... isso aconteceu aqui no
São Luiz ... no Ribeirão ... no Jaci.309

Os seringueiros espoliados pelos seringalistas não tinham discernimento sobre sua


condição social. Projetavam seus problemas e suas péssimas condições de existência na
natureza ao seu redor: nas feras e nos índios, naturalizados como animais perigosos. Eles
incorporaram o discurso dos seus opressores, fossem militares ou seringalistas. Quando
um índio flechava um seringueiro, os “invadidos” eram generalizados como “selvagens”.
Os seringalistas se apropriavam dos ataques para mobilizar seus próprios jagunços e
desfocar o conflito entre ele e os seringueiros. Baseado na “legítima defesa” livrava-se de
seringueiros e índios, aumentando seus domínios extrativistas.
O índio foi visto como o inimigo comum, visível, o invasor, invertendo o direito
natural e a concepção de posse da terra. O discurso civilizatório subverteu os papéis, de
vítima do seringalista o seringueiro passou à vítima dos índios. A figura do índio
cristalizou-se no imaginário das classes populares como “bárbaro”, cruel e selvagem.
Paradoxalmente os povos indígenas não aparecem como sujeitos nem no discurso oficial,
nem na memória, e nem na historiografia. É como se nunca houvessem existido.310
Aparecem como antropófagos na historiografia e nas liturgias. A memória “oficial” das
instituições enaltece o papel civilizatório das classes dominantes, dos militares e dos
padres. Os povos indígenas são caracterizados como seres exóticos, num espetáculo dos

308 SANTOS, N.Op. Cit..Depoimento de Francisco Nilo Pessoa. pp. 224-6.


309 SANTOS, N. Op. Cit. Depoimento de José Maria dos Santos. Pp. 247–8.
310 BOSI, A. Dialética da Colonização. S. Paulo, Cia das Letras, 1992. Sobre o Indianismo na literatura, as qualidades de

bravura e co ragem etc. Ver também PANDOLFI, Dulce. Repensando o Estado Novo. Sobre a ideologia da miscigenação.
156

limites humanos na “fronteira”, e por outro lado, são estigmatizados como um grande
“entrave” para a civilização.
Os índios personificavam o mal, o estorvo, a sua presença significa empecilho à
incorporação de suas terras ao mercado capitalista e à produção. A visão positivista da
“integração” ou extermínio não era exclusiva à região do Madeira-Guaporé no período.
Pinheiro analisou o processo de açambarcamento das terras Kaingang, no Oeste Paulista,
durante a abertura da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, quando suas terras foram
divididas entre os latifundiários e bugreiros. As práticas “legítimas” de extermínio possuem
bastante verossimilhança apesar das distâncias continentais.

Consequentemente, vítimas do processo, ou entraves a ele, os indígenas, com suas


nuanças peculiares, pouco apareceram, pois foram vinculados às necessidades das frentes
de expansão capitalista, necessidades da elite dirigente do país, isto é, de família e grupos
responsáveis pela alocação e controle dos recursos públicos. O humanismo do SPILTN
aliava-se de certa forma à essas interpretações, resolvia o “problema indígena”, removia o
obstáculo à invasão e conquista, facilitando a recomposição do espaço sob o domínio do
estado, mascarando a violência.311

O Cap. Aluízio Ferreira defendeu o engajamento militar dos índios312 e caboclos,


“os soldados deveriam ser arregimentados na própria região e aclimatados à Amazônia”, revelando as
intenções de contenção do êxodo e a “liberação” das áreas habitadas pelos milhares de
nativos. Justificou a prática do engajamento “compulsório” em função das dificuldades de
adaptação dos não-índios313 à região: escassez de alimentos, clima úmido, as endemias e
epidemias.
Para Lima, os militares positivistas, defensores do progresso e de civilização
arrogavam a si a tarefa de “civilizar” os sujeitos e grupos marginais, integrando-os à
“nação”. O objetivo era a redução/homogeneização de todas as diferenças entre caboclos,
grupos étnicos e lingüísticos, sertanejos, caipiras, colonos e operariado imigrante à
representação única de “identidade nacional” (brasileiro). O SPI considerava os índios
incapazes da “auto inserção”, por isso tinham de ser tutelados. Essa visão se cristalizou no
imaginário dos militares enquanto “catequistas laicos”, unificadores da “nação”.314 O

311 PINHEIRO, Niminon S. VANUÍRE – Conquista, Colonização e Indigenismo: Oeste Paulista 1912-1967.Assis, UNESP,
Tese de Doutorado em História e Sociedade, 1999.
312 HECK. Egon D. Os índios e a caserna – Políticas Indigenistas dos governos militares – 1964-1985. Campinas, Unicamp,

Dissertação de Mestrado em Ciências Políticas, 1996.Sobre a ausência da questão indígena tanto na história do brasil
como na história militar ver a crítica do autor. pp.11.
313 Os nordestinos eram tratados pejorativamente por brabos. O termo regional significava incapaz de sobreviver na

região, se embrenhar nas florestas, cortar seringa e outros afazeres braçais. Baixa resistência às endemias e ao clima
quente e úmido.
314 LIMA, Antônio C. S. Aos Fetichistas, Ordem e Progresso. R. de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Antropologia do

PPAMN, s/d Apud HECK, Egon D. op. Cit. Pp.21


157

jornalista Geraldo Rocha reforçava essa mentalidade do período, o mesmo escreveu um


artigo sobre os generais Rondon e Manoel Rabello intitulado de a “Catequese Leiga”.
A prática pode ser observada ao se cruzar estas informações e o decreto-lei nº
7.772, de 23 de julho de 1945. Neste, a Guarda Territorial foi desvinculada do Gabinete do
Governador, reforma implementada pelo Ten-Cel. Joaquim Rondon, em 1946, ao criar, no
seu artigo 8°, a Div. de Segurança e Guarda com as seguintes incumbências:

I- ter a seu cargo os serviços de polícia judiciária e administrativa, preventiva e


repressiva;
II- manter a ordem e a tranqüilidade públicas no Território;
III- garantir o exercício dos direitos individuais assegurados na
Constituição e nas leis;
IV- cooperar por intermédio da Guarda Territorial, na execução do
programa de obras públicas da administração territorial;
V- colaborar com as autoridades federais incumbidas da vigilância da
faixa de fronteiras.

Os incentivos à “ocupação ordenada”, por meio da criação do território, eram a


política do governador Cel. Aluízio Ferreira, em sintonia com o governo federal. No
decreto315 ,regulamentando a organização e a administração do território, havia um artigo
específico, estimulando servidores públicos a se fixarem nos territórios federais: "art. 16.
Aos militares que forem mandados servir na administração dos Territórios serão concedidas as vantagens
asseguradas por lei ao exercício da comissão militar nas regiões de fronteira; garantidas as mesmas
vantagens aos funcionários pertencentes a outros quadros da administração federal.". A União
incentivava a fixação dos quadros burocráticos nos territórios de fronteira. Possivelmente
os funcionários estabelecidos no litoral transferiram-se para as fronteiras, em função de
compensadoras gratificações.
Periódicos do R. de Janeiro divulgaram as “facilidades” para as esposas de militares
e servidores nas áreas de fronteira. Elas tinham o direito a acompanhar o cônjuge sem
perder seus empregos.
À criação do Território do Guaporé, seguiram-se outros decretos presidenciais
concentrando o poder do executivo federal no Estado Novo. Foi redimensionado os atos
do 1º governador, sem alterar os principais objetivos de “ocupação”. Esta seria por meio

315LEGISLAÇÃO FEDERAL. Decreto-lei n.º 5839 de 21 de setembro de 1943..P. Velho, LEX Editora, 1.964.
P 404.
158

da produção agrícola, da “assistência” médica e social gratuita, do ensino público, da


comunicação e escoamento necessários à fixação das populações no espaço fronteiriço
visado.
Como disse o Juiz de Direito de Guajará Mirim, no dia 04 de janeiro de 1944:

Esta é a primeira audiência que se realisa no advento do novo regime político deste
Território do Guaporé, liberto agora das peias e nefasta administração do governo do
Mato Grosso, sente-se satisfeito em congratular-se com os seus jurisdicionados e
serventuários da Justiça pelo auspicioso acontecimento tanto quanto para o seu primeiro
governador foi nomeado, pelo chefe da Nação, o Senhor Major Aluísio Ferreira, criterioso
cidadão, honrado Militar, competente administrador e infatigável obreiro do bem, homem
assim talhado para fazer a grandesa de prosperidade de toda essa região sempre
abandonada pelas administrações dos governos a quem pertencia. 316

O Território do Guaporé teve “infindáveis” anos de prosperidade, e acumulação de


riquezas. O Juiz se esqueceu de mencionar os custos do progresso: devastação, genocídio,
exclusão social, inchaço urbano, falta de assistência médica, economia de ciclos (borracha,
ouro, cassiterita, diamantes, soja, gado) e quais seriam os beneficiários.

Considerações finais

No lugar que havia mata,


hoje há perseguição

316TERMO DE AUDIÊNCIA. DA 1.ª SESSÃO APÓS A CRIAÇÃO DO TERRITÓRIO. Guajará Mirim, 04 de


janeiro de 1944. Acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia,
Porto Velho.
159

grileiro mata posseiro


só prá lhe roubar seu chão
castanheiro, seringueiro
já viraram até peão
afora os que já morreram
como ave-de-arribação
Zé de Nana tá de prova,
naquele lugar tem cova,
gente enterrada no chão:
Pois mataram o índio,
que matou grileiro,
que matou posseiro,
disse o castanheiro,
que o estrangeiro
tomou seu lugar.

Saga da Amazônia
Autoria: Vital Farias
160

Este trabalho abordou os vários projetos de ocupação e colonização agrícola,


implementados pelo Exército na região de fronteiras do vale dos rios Madeira-Guaporé,
no atual estado de Rondônia, entre as décadas de 30 e 40 do século XX. Uma das minhas
preocupações foi analisar a atuação dos militares juntamente com os debates em torno da
construção e da administração do Território Federal do Guaporé, quando foram instalados
os primeiros Núcleos Agrícolas e os Contingentes Especiais de Fronteira.
Entre 1931 e final da década de 1940, o Exército dominava a cena social,
participando ativamente no ordenamento da sociedade local, devido sua forte presença na
região fronteiriça. Em 1932, foram criados os Contingentes Especiais de Fronteira, cujo
papel era a construção de obras de infra-estrutura. Posteriormente, por meio da política de
“Integração das Fronteiras” do Estado Novo, atuaram decisivamente na criação do
Território Federal do Guaporé em 1943.
Paulatinamente, os militares foram amealhando a hegemonia econômica, política e
social, anteriormente exercida pela elite comerciante, herdando ainda a infra-estrutura
urbana de Porto Velho e Guajará Mirim e a correspondente parcela de poder pertencente
aos estrangeiros. Ao mesmo tempo protagonizaram o papel de “salvadores”, os heróis que
“ressuscitariam” o período da Belle Epóque amazônica, na construção de bairros modernos
com água encanada, esgotos e energia elétrica. No discurso militar, a Amazônia foi
incorporada como estratégia para legitimar o papel defensivo das Forças Armadas, muitas
vezes travestido de assistência social e estruturação política. No decorrer do século XX, o
Exército foi conquistando espaços político-institucionais progressivamente, com base na
problemática da questão amazônica.
Apoiada pelas elites locais, a atuação militar assentava-se no discurso do “vazio
demográfico” existente na fronteira, e significou um impacto sobre os modos de vida das
populações nativas - seringueiros e índios -, gerando conflitos sociais e étnicos. Este
discurso omitia, porém, os reais interesses de acumulação e constituição de um exército de
reserva "inexistente" na região, transformando os “braços” que lá haviam, de modo a
“domesticá-los”, para que não resistissem à exploração. Diante disso, o interventor da
ferrovia, representando as classes “conservadoras”, atraiu para a região os nordestinos.
Paralelamente à atração, os seringalistas organizavam expedições em nome de “vingança”, as
quais na verdade tinham como objetivo real desestruturar o modus vivendi dos indígenas e
incorporar suas terras e sua mão-de-obra, no papel de subservientes trabalhadores ao
processo produtivo. Assim, a idéia de um “vazio” legitimou a expropriação das terras e o
genocídio das nações indígenas, as quais, ao contrário do discurso oficial, eram numerosas,
161

estimando-se cerca de 10.000 e 50.000 indivíduos entre os anos 30-40.317 Ao vencido,


impôs-se um duplo silêncio: o real pela redução física e cultural e o discursivo pela
ausência total na memória regional, cabendo-lhes apenas o papel de antagonizadores da
civilização.
Para alguns setores do Estado Maior do Exército, a colonização das fronteiras só
obteria êxito se fosse consorciada em bases militares por meio de contingentes militares,
visando obter equilíbrio geopolítico sob o ponto de vista militar, econômico e social. A
“ocupação” da região caminharia para a criação de “unidades de fronteira que vigiariam e
povoariam, visando a transformação do soldado em reservista colono, como também o
aproveitamento do nosso sertanejo e silvícola em misteres agrícolas de povoação, de modo a
radicá-los ao mesmo solo do batalhão de fronteiras”.318
Seguindo este receituário, o comando de fronteira foi estruturado para a construção
de casas, escolas, postos médicos, hospitais, olarias e abertura de estradas, com o objetivo
de implementar o “povoamento”. Prevendo ainda a defesa e a sustentação da produção,
“garantindo” mercado para os seus produtos. A “ocupação” visava, antes de tudo, o
controle sobre a fronteira e a exploração dos recursos estratégicos, bem como serviu de
subterfúgio para a “liberação” das terras indígenas. Assim, pode-se compreender porque as
dificuldades da empreitada de “ocupação”, pois somente poderiam ser superadas pelo Exército, o
qual possuía a logística para tutelar a economia regional.

Confrontando os interesses das elites regionais e seus projetos para a região com os
princípios sobre segurança e defesa de fronteiras que norteavam a ação do exército na
região, busquei recuperar os debates e seus desdobramentos na criação do Território
Federal do Guaporé, nos bastidores do Estado Novo. Pretendi acompanhar os vários
projetos e interesses políticos e econômicos para a região, os debates – locais e nacionais - sobre a segurança
e defesa das fronteiras nacionais e as justificativas para a criação do território federal do Guaporé.

Acompanhando as discussões sobre a criação do Território Federal do Guaporé,


busquei identificar quais os grupos de interesse, os diálogos e conflitos em torno dos
projetos, travados por meio de artigos e editoriais publicados pela imprensa regional e
carioca - principalmente pelo Correio da Manhã e A Noite -, confrontando-os com os
grupos e representações locais, articulados em torno do Alto Madeira. Foi possível
identificar que, a discussão foi centrada no fortalecimento de uma “geopolítica” interna, de

317 CAPES. Séries Estatísticas Regionais: Territórios Federais (Guaporé). Rio de Janeiro, INL, 1959.
318 Cel Manoel Alexandrino, idem, pg. 39-42. grifos meus.
162

caráter centralista e autoritário com o Estado Novo, e ancorada como substrato ideológico
na geopolítica da Segunda Guerra Mundial.

É, no interior dos debates nacionais em torno da necessidade da União garantir a


posse das regiões de fronteira e de seus recursos naturais, estratégicos para uma política de
desenvolvimento, de orientação nacionalista de independência em relação aos países
hegemônicos, que se pode compreender os programas de Integração Nacional,
implementados com a criação dos cinco territórios federais na faixa de fronteira, a criação
de Colônias Agrícolas nessas áreas, e a promulgação de leis que regulavam as ocupações
nestas regiões.

Ocupar a região, por meio da colonização e da criação do Território Federal do


Guaporé, era uma das metas do Estado Novo e uma reivindicação das elites locais. Porém,
esses projetos, como mencionamos, não eram unânimes e homogêneos, havia dissidências
dentro dos poderes locais em relação às riquezas e à arrecadação regional.
Note-se que o projeto autoritário do Estado Novo em relação aos territórios de
fronteira, não era hegemônico pois houve resistência por parte das oligarquias de Manaus
e Cuiabá, exportadoras de borracha, representadas nas Assembléias Estaduais. Algumas
estavam bem organizadas, como no caso do Glebarismo, movimento contrário à política de
fronteira imposta pelo Estado Novo. Essas questões são centrais para a compreensão dos
projetos federais na região. De um lado, o centralismo autoritário de Vargas, nomeando
interventores para o Norte e cooptando toda oposição para seu governo, e de outro, a
necessidade de garantir os recursos naturais para a indústria voltada para a expansão do
mercado interno.

Ao fazer um balanço entre os discursos políticos da imprensa, da historiografia e as


fontes, verificamos que as “mudanças” tão alardeadas significaram apenas uma
dinamização na produção e acumulação nas mãos das elites, e não significaram mudanças
qualitativas na estrutura social, nas relações de poder e de produção. Inversamente, muito
pouco significou para a democratização do acesso a terra e gerou, ao contrário,
expropriação e exclusão, levando ainda à redução da população nativa. O objetivo
principal foi “limpar” o terreno para a acumulação capitalista assentada na exploração
extrema da mão-de-obra.
Dos núcleos agrícolas criados no período, podemos informar que o Iata entrou em
decadência após a desativação da ferrovia, sendo que os lotes foram abandonados e aos
poucos transformaram-se em fazendas de criação de gado. A Colônia de Candeias tornou-
se uma cidade “albergue” da grande Porto Velho, sendo que a única sobrevivente foi a
163

Colônia dos Japoneses, graças a subsídios do consulado japonês, com sede em Belém. A
colonização, se analisada de um ponto de vista liberal, consolidou-se, a terra finalmente se
converteu em “mercadoria”, enquanto servissem de garantia nos financiamentos
bancários.

A natureza sempre foi tratada como recurso ad infinitum das oligarquias locais,
utilizadas ao sabor de seus interesses privados. Neste contexto, as terras passaram ao
controle federal, ato justificado em nome do desenvolvimento “nacional”. A noção de
território enquanto patrimônio da Nação, foi o conceito básico na política de ocupação
das fronteiras. A estrutura fundiária permaneceu intacta, do latifúndio exportador da
borracha ao da pecuária para o mercado interno. Os povos indígenas sofreram uma
depopulação intensa, foram escravizadas ou reduzidas nos postos do SPI, alguns criados
ainda por Rondon como o Posto Rodolfo Miranda, no trecho da linha telegráfica em
Ariquemes, e outros como o posto de Ricardo Franco, nas margens do rio Guaporé, e o
de Pacaás-Nova próximo à Guajará Mirim, o de Riozinho, no trecho da BR-029 e muitos
outros espalhados pelo novo Território Federal do Guaporé.

Pode-se afirmar que os contingentes militares, as colônias e a ferrovia foram o


“embrião” para as ações federais. Aos militares, coube ordenar o espaço, abrir caminhos à
penetração, “limpando” as áreas de interesse comercial e deslocando os legítimos donos e,
supostamente, “isolando” os conflitos. A eles coube também criar a estrutura
administrativa e organizar o governo territorial, articulando as políticas nacionais para a
região de fronteira. Os contingentes militares iniciais ampliaram-se, gradativamente, em
estrutura física e burocrática. Atualmente, o contingente de Porto Velho é a 17ª Brigada de
Infantaria de Selva; e os contingentes de Guajará e Forte Príncipe transformaram-se em
Batalhões Especializados de Fronteira e, atualmente, são Batalhões de Infantaria de Selva.
O objetivo deste trabalho foi trazer para a discussão a formação social e política de
uma região, “idealizada” como paraíso, porém baseada na violência, na exclusão e no
assistencialismo, comuns à sua formação autoritária. Esta sociedade conserva suas
desigualdades nos discursos de “integração”, convertidos em capital eleitoral, mas que
mascaram outras faces da realidade. A propaganda de “atração” se modernizou e conta
com outros meios de eficácia pela violência aberta, porém, velada e, até certo ponto
“natural”, contra as populações tradicionais e inclusive pela memória que confere
legitimidade às desigualdades.
13

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23

ABSTRACT

This work boards lots of agricultural occupation and colonization’s projects


implemented by the Army, on the frontier área of the valley formed by the Madeira
river and Guaporé river, between the decades of 30 and 40 of the XX Century. The
proposal is to analyse the militaries’ performance and the debates about the
construction and administration of Guaporé´Federal Territory, when there were
instaled the first Agricultural Nucleus and the Especial Frontier Contingents, at the
actual Estate of Rondônia.
The colonization, implemented by the militaries, anchored on the ideology of
“demography empty” at the frontier, meant an impact on the native population´s ways
of live – rubber tree workers and indians- producing lots of social and etnical conflicts.
Confronting the regional elite’s interests and its projects on the principles about safety
and frontier defence has guided the Army’s action in the area, I try to recuperate the
debates and their consequences on the creation of Guaporé’s Federal Territory, on the
wings of the New Estate.
I also try to discuss the “changes” diffused by the federal government and local
elites, from the establishment of the Territory”s administrative structure, evidencing the
social contradictions aggravated with the continuity of the lands’ concentration politics
and its strategic resources and with the institucion of militarized rules to administrate
the regional society.

KEY WORDS: Rondônia- Federal Territories- Frontiers’ Occupation-


Militaries- Social Conflicts
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GLOSSÁRIO

Alienígenas: Termo corrente no período de 1920-1940, designava empresas de


capital e administração estrangeiros dentro do país. De uso muito corrente em
relatórios, imprensa e correspondência oficial até o Estado Novo.

Brabos: Os nordestinos eram tratados pejorativamente por brabos. O termo


regional significava incapaz de sobreviver na região, se embrenhar nas florestas, cortar
seringa e outros afazeres braçais. Baixa resistência às endemias e ao clima quente e
úmido.

Caucho: Árvore de grandde porte, nome científico Castiloa ulei, Extraí-se látex a
partir da derrubada e não do corte como a seringueira.

Colocação: Centro das estradas de um seringueiro. Local onde é fixada a barraca


do seringueiro, sua base.

Família patrioticamente numerosa: Termo corrente, veiculado pelo Alto


Madeira, referindo-se à missão povoadora da família na região. Ter muitos filhos era um
comportamento valorizado pela sociedade local, por aumentar as chances do
crescimento vegetativo e estabelecer grupos humanos no “vazio” demográfico em
virtude do êxodo.

Manso: Termo regional usado como referência aos nordestinos “amansados”,


adaptados às endemias e perigos da região, bem como às relações de trabalho. O termo
era usado também para designar índios incorporados ao extrativismo e suas relações de
dependência e submissão. Ainda índio civilizado na etimologia regional.

Marreteiro: Espécie de atravessador, que trocava manufaturados ou comprava a


produção para revender nas cidades de Guajará Mirim e Porto Velho.

Mateiro: Aquele que fixava as estradas e colocações de seringueiras. Espécie de


bugreiro, também misto de pacificador de índio com agenciador de mão-de-obra.

Patrões: O responsável pela produção que era financiado pelos aviadores, e que
extraía a mais valia do seu freguês (seringueiro) através da majoração das mercadorias
aviadas em seu barracão em troca da produção de borracha pelo seringueiro. Uma
relação baseada na exploração hierárquica e em cadeia pela dívida contraída. O patrão
não era dono do seringal, esse era formado de terras devolutas que ia ocupando e
terceirizando a exploração aos seus fregueses. O freguês (seringueiro), era uma espécie
de sócio que entrava com a produção em troca das mercadorias de primeira
necessidade: alimentos, vestuário, ferramentas, armas e munição.

Pretos: Termo utilizado pela imprensa do período para designar ex-escravos


fugidos remanescentes de quilombos que possuíam um sistema de produção e
distribuição comunitário. Viviam em pequenos grupamentos de malocas nas barrancas
à margem direita do rio Guaporé. Mais precisamente entre Vila Bela da Santíssima
Trindade e Pedras Negras.
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Soldado da Borracha: Haviam duas categorias de seringueiros: os arigós, tidos


como aventureiros, eram voluntários no corte da seringa e os “soldados da borracha”
eram recrutados, eram alistados no Exército, o engajamento para servir no front da
Itália era compulsório para os reservistas, como segunda “opção” eles podiam se alistar
como “soldados da borracha” para o esforço de guerra.

Turbação: Invasão de posse, colocação de seringueiros, derrubada de matas e


extração de látex em terras já ocupadas por grileiros.

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