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Aprovada por:
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________
Prof. Dr. (a) (orientador) Ely Souza Estrela
_______________________________________________
Prof. Dr. (a) Lídia Maria Pires Soares Cardel
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Charles D’Almeida Santana
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Suplente Alicia Ruiz Olalde
________________________________________________
Prof. Dr. (a) Suplente Wellington Castellucci Júnior
JANEIRO / 2009
4
AGRADECIMENTO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE TABELAS
RESUMO
Helvécia, distrito de Nova Viçosa, está localizado no extremo sul da Bahia e desde
2005 foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares, como área remanescente de
quilombo. O modo de organização econômica desta comunidade, associado às
dimensões sócio-culturais está imbricado à lida/propriedade/posse das terras que no
passado remoto fizeram parte da Colônia Leopoldina. A eucaliptocultura se encontra
em franca expansão no extremo sul baiano e esta atividade se faz presente em
Helvécia desde os anos de 1980. À época de sua implantação, houve por parte de
integrantes da comunidade, a esperança de que estaria se iniciando um tempo de
progresso e conquistas sócio-econômicas. Com o passar dos anos, as fraturas entre
o prometido e o realizado começaram a se fazer visíveis, implicando na experiência
de “desmantelamentos” da vida de muitos camponeses, e na tessitura de tensões,
resistências e negociações. A pesquisa indica a existência de diferentes projetos
coexistindo em Helvécia, sugerindo a complexidade das relações entre os próprios
membros da comunidade e entre estes e os representantes da eucaliptocultura.
Também fica perceptível a mudança na composição de forças entre os
representantes destes projetos após o reconhecimento do distrito como área
remanescente quilombola. O objetivo deste trabalho é discutir as condições sociais e
as relações simbólicas dos homens e das mulheres de Helvécia, após o
desenvolvimento do agronegócio no distrito. A partir da realização de entrevistas,
analisou-se narrativas e silêncios tecidos pela memória de habitantes do distrito a
respeito do que significava viver naquele lugar antes da implantação da
eucaliptocultura e como estes indivíduos foram obrigados a se (re)inventarem e a se
(re)organizarem, através de estratégias diversas, para viver com o eucalipto.
ABSTRACT
Helvécia, district of Nova Viçosa, is located in the extreme south of Bahia and since
2005 was recognized by Cultural Palmares Foundation, as a Quilombola remaining
area. The economic organization way of this community, coupled with socio-cultural
dimensions is imbricated to labor / property / possession of land which in a remote
past was part of Leopoldina colony. The eucalyptus culture is booming in the
extreme south of Bahia but this activity has been present in Helvécia since the
1980s. At the time of its deployment there was ,from members of the community, the
hope that it would bring a time of progress and socio-economic achievements. Over
the years, the fracture between the promised and the accomplished started to
become visible, implying in the experience of "dismantling" the lives of many
peasants, and the arising of tensions, resistance and negotiations. The research
indicates the existence of different projects coexisting in Helvécia, suggesting the
complexity of the relationship between the community members themselves as well
as between them and the representations of the eucalyptus culture.It is also
noticeable the change in the composition of forces between the representations of
these projects after the recognition of the district as a Quilombola remaining area.
The aim of this research is to discuss the social and symbolic relationship of men and
women of Helvécia, after the development of agribusiness in that district. From
interviews applied, both narratives and silences produced by the memory of
inhabitants of the district about what meant living in that place before the deployment
of the eucalyptus culture and how these individuals were forced to (re) invent and to
(re) organize themselves, through various strategies, to live with the eucalyptus.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................. 13
INTRODUÇÃO
Uma estrada “antiga”, de terra batida, estreita, ladeada por eucaliptos, que
estão enfileirados, organizados, vicejantes e prontos para serem cortados,
empilhados e enviados através de caminhões capazes de armazenar e transportar
toras e mais toras da branca madeira até diferentes portos, rumo a outros cantos do
mundo.
Uma estrada principal, “nova”, ladeada por eucaliptos que não se fazem de
rogados, e aparecem em diferentes tamanhos e portes como a dizer que aquele
caminho é, natural e definitivamente, deles.
Espaços de ausência nas beiras das estradas. Não mais tantos sítios, não
mais jaqueiras frondosas, não mais fartura de gado, não mais casas avarandadas.
Silêncios e eucaliptos, eucaliptos e máquinas coletoras, eucaliptos, homens e
máquinas. Não há mulheres.
Espaços de existência na beira da estrada. Um pequeno sítio, jaqueiras
tímidas e frondosas, algumas reses, algumas casas, uma varanda. Possibilidades de
confrontos e conflitos se insinuam no meio das estradas.
Homens e mulheres vivem nos povoados que se situam às margens das
estradas por onde circulam as carretas que transportam o eucalipto. Eles buscam
recolher, das mais variadas formas, algumas sobras que se desprendem da riqueza
do eucalipto, que passa, cada vez mais rápido, rumo aos seus destinos, seus
distantes portos de desembarque.
Espaço de vivência para além das estradas e seus eucaliptais. Lugares
plenos de histórias, histórias que sugerem outro jeito de viver e lidar com a terra,
com o ritmo do tempo, com as relações de sociabilidade. Homens e mulheres.
Também eles já estavam ali e ali permanecem. Permanecerão?
A composição desses elementos sugere a existência de tensões não só na
beira da pista, mas dentro das casas, das igrejas, das vendas, enfim dos lugares de
convívio.
É neste feixe de possibilidades, de leituras de lugar, que está situado o distrito
de Helvécia, pertencente ao município de Nova Viçosa-BA, a 958 km de Salvador
tendo a BR 418 e a BR 101 como rodovias de acesso. A princípio, o que chama a
atenção neste distrito, não é uma singularidade, mas sim o fato de o mesmo, como
14
tantos outros na região, ter sido, de certa forma, tomado pela plantação de eucalipto.
Entretanto, uma observação mais cuidadosa deste lugar nos faz ver suas
idiossincrasias, e nos revela a existência de uma comunidade predominantemente
afro-brasileira, reconhecida desde 19 de abril de 20051 como área remanescente de
quilombo, que, diante de desmantelamentos estruturais, busca se organizar a partir
de ações individuais e coletivas no sentido de continuar a existir.
Segundo dados preliminares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), referentes à elaboração do censo de 2006,2 a população total do distrito de
Helvécia é de 4.298 habitantes, divididos entre 1.690 na área urbana e 2.608 na
área rural.
A partir das falas de pessoas que residem naquele distrito é possível
identificar dimensões do cotidiano que revelam o significado do viver com o eucalipto
em Helvécia, suas expectativas e conflitos. Essas falas também apontam os
imbricamentos deste cultivo com os projetos governamentais que defendem o
agronegócio em detrimento dos outros modos de viver pautados nas atividades
agrícolas associadas a outras, não agrícolas, utilizadas para complementação da
renda, com o intuito de manter a condição de agricultor.3
Meu interesse de pesquisa sobre essa comunidade deu-se a partir de
contatos com ela estabelecidos, em razão de trabalhos orientados e desenvolvidos
por mim, juntamente com alunos dos cursos de turismo, pedagogia e letras,4 desde
o ano de 2003. Estes primeiros contatos foram feitos a partir de leituras sobre
Helvécia, nos raros materiais escritos existentes a que tive acesso à época, visitas à
comunidade e conversas informais com alguns de seus membros.
Neste período, já se concretizara no Brasil e na Bahia uma tendência de
valorização da cultura afro-brasileira, com uma espécie de exaltação de tudo aquilo
que se lia, se via e se dizia relacionado às tradições africanas. Em consonância com
este movimento, o debate a respeito da importância das comunidades quilombolas
suscitava estudos acadêmicos e ganhava espaço na mídia e na agenda política,
com repercussões sobre o fazer legislativo.
1
Reconhecimento através da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, portaria nº 7 de
6 de abril de 2005, publicado no Diário Oficial da União, de 19 de abril de 2005.
2
Informações obtidas no escritório do IBGE em Teixeira de Freitas - Bahia.
3
Maria José Carneiro. Pluriatividade da agricultura no Brasil: uma reflexão crítica. CPDA/UFRRJ.
4
Integro o colegiado de Turismo da Faculdade do Sul da Bahia – FASB em Teixeira de Freitas e fui
convidada a ministrar aulas no curso de formação de professores em exercício – PROESP de
licenciatura em Letras da UNEB Campus XVII de Eunápolis.
15
5
É comum os habitantes de Helvécia se referirem às empresas responsáveis pelo plantio de
eucalipto no distrito, quais sejam Aracruz e Bahia Sul Suzano e Celulose, como “as firmas”.
6
Arthur Ramos apud Flávio dos Santos Gomes. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades
de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
18
lugar as “sociedades africanas” dos nagô, cabinda, congo, hauçá, benim, calabar,
moçambique, rebola e gêge,7 que para ali foram trazidos à época da Colônia
Leopoldina.
Muitas das falas foram no sentido de essencializar aquela comunidade. Era
como se no momento em que descêssemos do ônibus todo um repertório “afro”
fosse se descortinar para nós através de ritmos, pratos “típicos” e uma plasticidade
associada àquele mundo, traduzida na beleza de homens e mulheres que estariam
com seus cabelos trançados e enfeitados com contas coloridas.
Falava-se de Helvécia como se aquela comunidade tivesse sido formada por
escravos fugitivos que lutaram para reconstruir Estados Africanos no Brasil. Assim,
entre os alunos havia a idéia de que naquele lugar eles iriam encontrar
“sobrevivências africanas”8 ainda intocadas. Neste sentido, havia, por exemplo, uma
curiosidade em relação a como seria a caracterização lingüística da comunidade de
Helvécia, associada, no imaginário de muitos dos alunos, ao “falar crioulo”.9
Observei que um tema era recorrente nas conversas, a religiosidade afro.
Havia ali, naquele grupo, uma expectativa velada e/ou revelada de que
encontraríamos vários membros da comunidade adeptos dos cultos afros e que
estes estariam dispostos a falar sobre suas crenças e rituais.
Todas essas observações convidaram-me a fazer uma pequena intervenção
no sentido de alertar para o fato de que aquele era um espaço historicizado e,
portanto, não se tratava de um lugar morto, parado no tempo como se fosse um
cenário de filme ou novela de época. Havia ali indivíduos vivendo o seu tempo,
aquele tempo em que nós também estávamos. Ainda assim, qual foi o choque
destas pessoas ao descerem do ônibus e se depararem com carros de som tocando
axé music e arrocha.
Ficamos ali por todo o dia e comecei a reparar a existência de outros ônibus,
além do nosso, com placas que indicavam lugares os mais diversos: Belo Horizonte,
Vitória, entre outros. Percebi, através de conversas informais, que havia, além de
turistas que vieram conhecer uma área remanescente quilombola, também pessoas
7
Guia para formação de processo. Fundação Cultural Palmares – Reconhecimento da Comunidade
Negra Rural de Helvécia – Nova Viçosa – Bahia, fls 41.
8
Flávio dos Santos Gomes. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro, século XIX. Ed.rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 11.
9
Antes da viagem a Helvécia, havíamos lido em sala de aula o texto produzido por Dante Lucchesi e
Alan Baxter, Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia, disponível em
http://www.vertentes.ufba.br/helvecia.htm.
19
naturais de Helvécia que não mais moravam no distrito e estavam ali a passeio para
visitar amigos e parentes. Elas faziam questão de dizer que eram de Helvécia e
acentuavam, nas suas falas, um sentimento de orgulho.
Curioso observar que quando uma das alunas perguntou onde era que se
localizava o terreiro de candomblé obteve como resposta um taxativo: “Isso não
existe aqui”, indicando que este era um terreno interdito que não se deixaria ver ou
ao menos não se deixaria ver de pronto. Ainda não entendendo o que estava
acontecendo, a estudante resolveu buscar mais informações sobre essa temática e
passou o dia fazendo a pergunta para qual obtinha sempre a mesma resposta. Até
que ao se aproximar de algumas jovens que não eram de Helvécia encontrou uma
resposta diferente, qual seja, havia sim um terreiro e este se localizava em uma
determinada saída de Helvécia, a “estrada velha”. Para satisfazer a curiosidade, que
a essa altura já havia sido despertada em todo o grupo, resolvemos fazer o caminho
de volta através da tal estrada passando pelo vilarejo denominado “Espora Gato”,
pertencente ao município vizinho, Caravelas.
O novo trajeto, de fato, deixou ver a existência de um terreiro. Este foi
identificado a partir de elementos que compuseram a descrição feita para a
estudante que integrava o nosso grupo. Após a constatação e conversas tecidas a
partir daí, continuamos a viagem pela “estrada velha”.
A estrada era bem mais estreita que a via principal e ladeada por eucalipto. À
medida que o ônibus andava, mais e mais plantios de eucalipto apareciam e
tínhamos a impressão de estar dentro de uma cerca viva. Este sentimento de estar
enredado por eucaliptos começou a me fazer pensar nas falas das pessoas que
moravam naquele distrito, principalmente como era para elas viver com tal cultivo.
Naquele momento começava a se desenhar algumas das indagações que
pretendo abordar nesta pesquisa, como: em que medida as relações entre os
membros da comunidade e as empresas que plantam eucalipto foram tecidas a
partir de expectativas e conflitos? Como os habitantes de Helvécia se organizavam
para viver com o eucalipto? Como lidaram com as tensões envolvendo as questões
da propriedade da terra? Até que ponto a eucaliptocultura influenciou a comunidade
no processo de busca de reconhecimento de uma identidade quilombola? Em que
medida eles utilizaram, frente à eucaliptocultura, mecanismos de resistência no seu
fazer cotidiano? De quais formas a memória da comunidade se compõe e
estabelece relações com seus elementos identitários? A existência dos
20
10
Maria Odila Leite da Silva Dias. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica da São Paulo, São Paulo, EDUC, nº 17, p. 231, 1998.
11
José Graziano da Silva, Mauro Eduardo Del Grossi. O novo rural brasileiro. Este texto é parte de
uma pesquisa mais ampla denominada “Projeto Urbano” (www.eco.unicamp.br).
12
Edward P Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP, 2001,
p. 245.
22
não se mora e não se está vivendo o dia-a-dia do lugar. Mostrar isso por intermédio
de gráficos bonitos e enfeitados é muito fácil.”13
Exatamente por não acreditar que as mudanças econômicas analisadas de
forma pontual e descoladas da realidade sociocultural, através, por exemplo, de
“gráficos bonitos e enfeitados”, possam dar conta da complexidade existente nas
relações sociais, bem como por entender, a partir das leituras de Maria Odila Leite
da Silva Dias,14 que o estudo do cotidiano seja de fundamental importância para que
se compreendam as tensões sociais, é que se pretende, nesta pesquisa, ir além da
descrição do impacto econômico da eucaliptocultura no distrito de Helvécia. De
modo a buscar, dentro dos limites possíveis, conhecer um pouco das experiências
destas mulheres e homens que têm um sentimento de pertencimento em relação à
Helvécia, analisando de que forma a implantação de uma atividade econômica
monocultora e agroexportadora se relaciona e/ou se fricciona com os costumes
existentes naquilo que diz respeito não só ao universo do trabalho, mas também no
que é experienciado por essas pessoas nos seus mais variados espaços de
atuação. E que no dinamismo histórico faz ver suas transformações quando se
pensa no aqui-ontem e no aqui-hoje.
Convém dizer que a problematização do cotidiano de Helvécia, que ora se
pretende fazer, não tem a pretensão de, através das memórias e entrevistas
realizadas, dar conta de reconstruir o passado. Estou ciente de que esta é uma
tarefa inexeqüível, por outro lado, acredito que através das entrevistas realizadas,
bem como de sua análise, seja possível conhecer, por assim dizer, uma “nesga”
deste passado, visto que estou entendendo aqui a memória como uma construção.
Assim, o depoimento individual não é “solto”, sua memória está impregnada de
dimensões da vida coletiva.
Pierre Nora, ao escrever a respeito da memória, traduz suas potencialidades
e limitações dentro de uma atividade de pesquisa ao afirmar:
13
Roseli Ricardo Constantino, Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – DETAQ.
14
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
23
15
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revistas do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História. PUC-SP, n° 10, p. 9, dez./ 1993.
16
Idem.
17
E. P. Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981, p. 15.
24
18
Maria Aparecida de Moraes Silva. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: UNESP,
2004.
19
Maria Odila Leite da Silva Dias. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea.
Projeto História, op. cit., p. 233.
25
de violência, pois a esses episódios são atribuídos valores que variam em razão do
referido contexto e que não aparecem numa análise puramente quantitativa.20
Não se trata, por exemplo, de fornecer dados sobre a quantidade de terra que
pertencia aos habitantes de Helvécia e que hoje pertencem às empresas produtoras
de eucalipto. O que nos preocupa é conhecer em que medida tais aquisições foram
pautadas em ações que constituem atos lidos e tidos pela comunidade local como
agressivos e/ou violentos.
Interessa-nos saber, por exemplo, como as pessoas se sentiram ao terem
seus espaços, antes conhecidos e individualizados, agora homogeneizados pelo
plantio do eucalipto. A fala a seguir dá uma pista dessa, por assim dizer, sensação,
20
Edward P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, UNICAMP,
2001.
21
Entrevista concedida à autora pela Sra. Célia Maria Silva Zacarias, em 15 de março de 2007.
22
José Graziano da Silva. Terra para quem nela não trabalha. Portal da Fundação Perseu Abramo.
Debate Programa para o Campo nº 7, 1989. www2.fpa.org.br. Acesso em novembro 2008.
26
23
João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna.
In: História da vida privada no Brasil: Contrastes da intimidade contemporânea. Volume 4, São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, p. 575.
24
Maria Aparecida de Moraes Silva. A luta pela terra – experiência e memória. São Paulo: UNESP,
2004. Coleção paradidáticos.
27
29
Michel de Certeau. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 41.
30
James C. Scott. Formas cotidianas da resistência camponesa. Revista de Ciências Sociais e
Econômicas, Universidade Federal de Campina Grande, Programa de Pós-graduação em Sociologia,
vol. 1, n° 1, p. 11, jul./dez. 1982 .
29
31
Nesta dissertação estou usando o termo proprietário de terra no sentido dado pela comunidade de
Helvécia, tendo eles, ou não, titulação da terra.
32
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 38.
30
Na elaboração desta pesquisa, faz-se uso, entre outras, de fontes orais, não
por creditar ineditismo às mesmas, mas por compreendê-las como de vital
importância no processo de conhecimento das experiências vivenciadas em uma
comunidade em que o uso da oralidade é relevante como maneira de expressão.
Pressupõe-se que a partir das falas e silêncios, lembranças e esquecimentos dar-se-
á dizibilidade e visibilidade àquilo que os entrevistados compuseram como
significativo para sua história e do seu lugar, podendo traduzir ou indicar tensões
nas relações cotidianas dessa comunidade com os diversos segmentos
responsáveis pelo desenvolvimento da eucaliptocultura.
Tal opção traz em si a indicação de que não se espera coletar a partir das
entrevistas apenas meras informações ou dados quantitativos a respeito da
atividade produtora de eucalipto no distrito de Helvécia. Acredita-se na existência de
uma ligação enriquecedora entre oralidade, tradição e experiência, traduzida na
construção de narrativas, nas quais, “o narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes”.33 Esta tessitura, existente na troca de
experiência de pessoa para pessoa, possibilita o relato de saberes construídos em
um tempo passado, nem sempre passíveis de uma comprovação no tempo
presente. Talvez resida aí a riqueza de se ouvir o outro falar sobre o seu viver,
comunicando aquilo que se encontra para além do relato, aquilo que está no
universo do sentido, vivido, experienciado.
No trabalho com fontes orais os textos são produzidos a partir do diálogo
entre entrevistador e entrevistado, sendo sempre uma relação dialógica, em que se
deve predominar a delicadeza e a sensibilidade de ouvir.34 Esta tarefa foi por vezes
árdua, no sentido de exigir uma escuta ao mesmo tempo participativa e de algum
modo solitária. Entretanto, a verdadeira aridez no trato com este tipo de fonte eu
pude sentir quando, após as inúmeras escutas e transcrições, comecei a selecionar
o que seria incluído no meu texto. Neste momento, por várias vezes, me senti
deixando de levar em consideração exatamente aquilo que havia me proposto desde
o início, ou seja, conhecer o que aquelas pessoas tinham a dizer de suas
33
Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 201.
34
Paul Thompson. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
31
experiências de vida dentro da problemática que elegi como objeto de estudo. São,
pois, as minhas escutas e os meus olhares que aqui serão apresentados.
A partir das conversas com os entrevistados é que pude aprender algo sobre
aquele lugar e sobre o significado de se viver ali com todas as questões e limitações
que estão postas, pela implantação da eucaliptocultura numa área remanescente
quilombola. Nisto consiste meu problema de pesquisa. Aquele lugar passou então a
ser para mim um espaço de aprendizagem, de conhecimento. Eu estive ali sempre
para aprender com aquelas pessoas, porque de fato só elas expressam em suas
memórias aquilo que eu precisava conhecer para, minimamente, tentar responder às
perguntas que havia formulado.
Ao fazer, anteriormente, menção à idéia de dizibilidade e visibilidade daquilo
que foi composto pela memória dos entrevistados não estou pensando em fazê-lo
partindo da premissa de que serei eu a estar dizendo ou fazendo vê-los; ao
contrário, foi exatamente a partir daquilo que os entrevistados disseram e/ou
silenciaram e daquilo que eu pude ver nas oportunidades em que estive em Helvécia
que fui construindo tal texto, o que implica reconhecer que não há ninguém melhor
do que os habitantes de Helvécia para falar sobre o significado de viver a realidade
da eucaliptocultura naquele distrito. Aquelas pessoas têm suas vozes, por vezes
dissonantes, seus rostos e jeito de viver, da sua forma narram suas histórias, e,
certamente, não reúno condições de atuar em nome daquela comunidade, pela
razão óbvia de que eles próprios se nomeiam e se dizem de forma clara, não
precisam de alguém alheio para falar por eles. Então, a que me refiro quando falo
em dizibilidade e visibilidade? Penso na possibilidade de, tendo acesso ao meio
acadêmico e aos mecanismos de divulgação, que este meio enseja fazer uso destes
com o intuito, aí sim, de que aquilo que está sendo (re)construído em Helvécia,
pelos seus habitantes, possa ser conhecido por outras pessoas.
Na realização desta pesquisa entrevistei vinte e três pessoas, destas, duas
residem em Teixeira de Freitas (BA), duas em Teófilo Otoni (MG) e dezenove em
Helvécia. Os entrevistados, em sua maioria, eram ou tinham sido pequenos
proprietários e/ou posseiros naquele distrito. Destes, alguns tinham vendido suas
glebas para as empresas de eucalipto ou para atravessadores.
Foi de fundamental importância para a realização das entrevistas o fato de,
antes do desenvolvimento da pesquisa, ter conhecido pessoas de Helvécia. Em
razão deste meu conhecimento prévio fui acolhida na comunidade e apresentada a
32
Bahia Sul Celulose respondeu a todos eles, enviou artigos produzidos por
pesquisadores sobre a atuação da empresa na região e dados a respeito das ações
de responsabilidade social desenvolvidas no Extremo Sul Baiano. Entretanto, em
relação às perguntas a respeito da atuação especifica da empresa em Helvécia,
alegou não ter as informações discriminada por distrito, mas sim pelo município.
Mesmo estas, quando solicitadas, não foram enviadas pela empresa.
Estabeleci contatos, através de carta enviada pela minha orientadora, com o
Centro de Documentação e Memória da Suzano Bahia Sul e Celulose, localizado em
São Paulo. Em resposta, tive as minhas questões encaminhadas novamente para
um representante da empresa que atua diretamente no Extremo Sul da Bahia. Este
funcionário sinalizou com a possibilidade de uma conversa futura, que não
aconteceu. Como o tempo para desenvolver a dissertação era exíguo, busquei
conhecer as vozes dessas empresas através das informações que as mesmas
divulgam em seus sites oficiais e através de jornais. Se por um lado a não realização
destas entrevistas, pelos motivos apresentados, constitui um hiato nesta pesquisa,
por outro, os silêncios podem sugerir algum tipo de dificuldade destas empresas em
falarem de suas atuações no distrito de Helvécia.
As fotografias, produzidas nas atividades de campo foram utilizadas não
como dados objetivos, uma reprodução fiel da realidade. Elas são construídas.
Como afirma Mauro Guilherme Pinheiro Koury, citado por Ariosvaldo da Silva Diniz:
35
Ariosvaldo da Silva Diniz. A iconografia do medo. In: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.).
Imagem e memória: ensaios em Antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, p. 114.
34
36
Marc Bloch. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
35
37
Jacques Le Goff. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 47.
38
Alistair Thomson. Recompondo a Memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias., Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, p. 57, 1981.
37
Essa flexibilização, por assim dizer, daquilo que se rememora não implica em
si um problema para a presente pesquisa, ao contrário, para este estudo ela é parte
intrínseca do objeto analisado. Essa característica contribuiu para o entendimento de
situações como, por exemplo, a venda de uma terra realizada num tempo passado
ter sido interpretada como um negócio vantajoso e justo, para depois passar a ser
entendida e sentida como um equívoco, uma vez que a pessoa se sentia lograda.
Buscar compreender quais ponderações foram levadas em consideração para uma
e outra sensação, pela mesma pessoa, pode significar uma riqueza de
interpretações das experiências que a composição da memória oferta aos
pesquisadores.
A proposta deste capítulo é apresentar, através da memória dos
entrevistados, entendida aqui como um dos objetos da história,39 como era viver em
Helvécia antes da implantação da eucaliptocultura. Desde já esclareço que não
entendo este tempo anterior como desconectado daquilo que se processou em
Helvécia na década de 1980. Interessa-me aqui ver como os habitantes daquele
distrito conjugaram em suas práticas diárias e em seu sentir as mudanças e
permanências que ali se processaram.
39
Jacques Le Goff. História e memória, op. cit., p. 49.
40
A expressão comércio está sendo utilizada nesta fala para significar o lugar de Helvécia.
38
É pouco provável que essa fala possa ser entendida sem que se tenha
acesso a outras informações, afinal o senhor Manoel Peixoto começou sua narrativa
sobre Helvécia nos anos 1940, para, através de elementos da arquitetura que ele
buscou na memória, retroceder ao século XIX, aos tempos da Colônia Leopoldina.
Talvez seja, então, o caso de nos aproximarmos da Helvécia desses tempos,
a partir de alguns dados que, ao dialogarem com aquilo que foi falado pelo senhor
Manoel Peixoto, possam contribuir para o entendimento deste lugar, afinal, como
afirma Jacques Le Goff, “a dialética da história parece resumir-se numa oposição –
ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado)”.42
Esta aproximação com os tempos da Colônia Leopoldina foi feita com o intuito
de conhecer um pouco do universo trazido pela memória das pessoas entrevistadas.
Estes tempos foram apresentados de forma não linear. O entrevistado buscava
naquilo que ouviu dizer algo significativo em sua construção de memória. Na fala de
alguns, os tempos do cativeiro apareciam, às vezes inclusive como uma negação –
“não tinha vivido nele e não lembrava dele” –, entretanto aquele tempo havia
existido, um tempo passado integrante da história presente daquele lugar. Por
vezes, ele surgia na construção do imbricamento passado/presente, na expressão
“cativeiro remunerado” utilizada para dizer de como muitos moradores de Helvécia
se sentiram em relação ao tratamento que lhes foi dispensado pelas empreiteiras
acionadas pelas empresas produtoras de eucalipto, no processo de terceirização,
comum na atualidade. Os recortes feitos sobre estes velhos tempos colaboraram
para que eu pudesse indagar/compreender algumas dessas construções, que se
compuseram, não de forma neutra, em razão do diálogo passado/presente estar
associado a pares de valores,43 entre eles, por exemplo, atraso/progresso,
tranqüilidade/insegurança.
Os hiatos entre os tempos da Colônia Leopoldina e o distrito de Helvécia
estão sendo entendidos aqui não como uma falta, mas como algo intrínseco à
própria dinâmica da pesquisa no campo da história que tem como matéria
fundamental o tempo. Este tempo histórico, segundo Le Goff, não se encerra no
41
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
42
Jacques Le Goff. História e Memória, op. cit., p. 8.
43
Idem.
39
tempo cronológico, “o tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho
tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta”.44
Brasil, século XIX, período colonial, ano 1808. É neste contexto que D. João
VI assina um decreto permitindo a concessão de sesmarias a estrangeiros que
estivessem dispostos a vir residir no Brasil. Até então a doação de sesmarias estava
restrita a portugueses e colonos brasileiros.
44
Idem, p. 13.
45
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/dim251808.htm, in Brasil Leis etc. Coleção das
Leis do Brasil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, p. 166.
46
Não se levava em consideração, em razão de uma postura etnocêntrica, que essas terras já
estavam povoadas pelos nativos que aqui viviam antes da chegada dos portugueses.
47
Henrique Jorge Buckingham Lyra. Colonos e colônias – uma avaliação das experiências de
colonização agrícola na Bahia na segunda metade do século XIX. Dissertação de mestrado em
Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1982, p. 25.
40
Foi ao longo das margens do rio Peruípe, doze léguas acima de Nova Viçosa,
na então comarca de Caravelas, no Extremo Sul da Província da Bahia, que a
Colônia Leopoldina se localizou, a partir da doação de cinco sesmarias de mata
virgem, e cada uma das sesmarias correspondia a meia légua quadrada.48
Além dos suíços e alemães, outros estrangeiros se faziam ver no espaço da
Colônia Leopoldina. Tratava-se de africanos que foram utilizados como mão-de-obra
escrava. Segundo Henrique Lyra, essa foi a única colônia estrangeira instalada na
Bahia no século XIX a fazer uso deste tipo de mão-de-obra.49 Lyra esclarece que
havia, neste período, uma proibição quanto à utilização do trabalho escravo nas
colônias agrícolas em razão das pressões que estavam sendo feitas, neste sentido,
pela Inglaterra.
Em contraposição a esta proibição, a Colônia Leopoldina, ao invés de ter
desempenhado, unicamente, a função agrícola de subsistência, utilizando mão-de-
obra familiar e livre, acabou por se destacar no cenário regional como colônia de
produção cafeeira para exportação.
A historiadora Albene Menezes em reportagem veiculada pelo Correio da
Bahia, intitulada “Pioneiros agrícolas”, destacou o uso da mão-de-obra escrava
como tendo sido de fato um diferencial da Colônia Leopoldina, posto que as demais
colônias teuto-brasileiras à época sobrevivessem fazendo uso do trabalho familiar,
enquanto que na Colônia Leopoldina, segundo dados da referida reportagem, “além
dos europeus, se ocupavam do trabalho agrícola naquelas fazendas cerca de dois
mil escravos”. Na mesma matéria, Menezes afirma textualmente que a Colônia
Leopoldina era “Subvencionada, em parte, pelo governo do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves, [e que] a iniciativa pioneira se caracterizou como um
empreendimento agrícola privado que em 1858 somava 40 fazendas de café, com o
mérito de exportar da Bahia as primeiras levas do produto”.50
Os dados relativos à produção de café (cf. tabela 1) corroboram esta
informação e podem nos ajudar a entender por que os estrangeiros, que eram agora
proprietários daquela terra e moradores daquele lugar, ao erguerem suas casas no
século XIX, fizeram-no de tal maneira que a arquitetura refletisse e se harmonizasse
com a produção econômica de café em larga escala que ali se realizava.
48
Idem.
49
Idem, p. 25-26.
50
http://www.correiodabahia.com.br/reporter/noticia_impressao.asp?codigo=99634, Jornal Correio da
Bahia, Pioneiros agrícolas, 8 de fevereiro de 2004. Acesso em 29 de abril de 2008.
41
Tabela 1
PRODUÇÃO DE CAFÉ DA COLÔNIA LEOPOLDINA 1836-185351
ANOS SACAS DE 60 kg.
1836 6.610
1842 8.570
1848 Entre 16.158 e 17.138
1851 17.138
1853 24.483
51
Henrique Jorge Buckingham Lyra , op. cit., p. 26.
52
Henrique Jorge Buckingham Lyra , op. cit., p. 26.
53
Sérgio Milliet. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e
social do Brasil. 4 ed. rev. e ampl. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1982, p.
21.
42
54
Robert Avé-Lallemant. Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859. 1º volume. Trad. Eduardo de
Lima Castro Rio de Janeiro: Instituto Nacional do livro, Ministério da Educação e Cultura, 1961, p.150-
151. Coleção de obras raras VII.
55
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
56
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
43
[...]
57
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 67. Acervo SEPLAN – CAR, CAB, Salvador.
58
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 79. Acervo SEPLAN – CAR, CAB, Salvador.
59
Este nome foi dado, pelos colonos, em homenagem à imperatriz D. Leopoldina.
44
Fora destas fazendas nomeadas tem vários sítios lavrados por índios
e outras pessoas com suas próprias famílias, mas que são tão
pequenos que não merecem nem podem ser lembrados aqui, como o
dono muda de instante em instante, e as propriedades brasileiras já
por fim não entram nesta enumeração.
João Conrado Lang
Doutor em Philos e Medicina60
Acredito que agora seja possível alcançar o sentido relativo a uma das
declarações do senhor Manoel Peixoto:
60
Arquivo Público do Estado da Bahia, Colonos e Colônias, maço 4607, Salvador (grifo da autora).
61
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
62
Robert Avé-Lallemant, op. cit., p. 151.
45
aos suíços”.63 Leio essa repetição final como uma espécie de comprovação daquilo
que o narrador, a princípio, apresentou como incerteza.
Interessa-me agora ressaltar algumas pistas fornecidas pelo documento
direcionado ao Ilmo. Senhor Doutor Juiz de Direito. Fica visível, nesta fonte, a
existência de pessoas vindas de diferentes lugares da Europa, o que nos sugere,
por um lado, uma composição social na Colônia Leopoldina um tanto quanto
matizada, diversificada e européia; por outro, o documento esclarece que nessas
propriedades a mão-de-obra utilizada era escrava, o que estrangeiriza ainda mais
aquele espaço.
Tal interpretação fica mais fortalecida se fizermos o cruzamento dessas
informações com os dados apresentados anteriormente (cf. tabela 1), em que se
pode notar que a Colônia Leopoldina cumpriria, em meados do século XIX, a função
de produtora de café voltada para a exportação.
O documento, ao se referir à vocação da Colônia Leopoldina como uma área
de produção que fazia uso da mão-de-obra escrava, mostrou-a em consonância com
o modelo econômico escravista típico do Brasil no período.64 Havia ali, então, o
desenvolvimento de uma atividade que atendia aos interesses da política de
exportação imperial, qual seja a produção cafeeira.
Entendendo-se que tal produção ficava a cargo dos escravos, é curioso
observar seu significativo aumento no ano de 1853. Este crescimento foi da ordem
de 7.345 sacas, entre os anos de 1851 a 1853, ou seja, um incremento de
aproximadamente 43% na produção. A curiosidade a qual me refiro diz respeito ao
fato de que em 1853 já se haviam passado três anos da implantação da lei que
proibia o tráfico de escravos para o Brasil, estabelecida em 1850, e ainda assim
tivemos na Colônia Leopoldina o crescimento da produção de café, que a princípio
estaria associada à utilização da mão-de-obra escrava. O dado pode indicar que
além do tráfico inter-regional e do contrabando de escravos que passaram a existir
após a proibição estabelecida pela lei Euzébio de Queiróz, a mão-de-obra de outras
pessoas, livres e/ou libertos, pode ter sido utilizada pelos proprietários estrangeiros
da Colônia Leopoldina para tocar seus empreendimentos.
Ainda neste sentido, gostaria de chamar a atenção para a informação que se
encontra no último parágrafo do documento assinado por João Lang, que oferece
63
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
64
Apesar da existência de pressões inglesas em sentido contrário.
46
informações a respeito de outros personagens que também tinham seu lugar nesta
história, mesmo que, segundo o seu redator, não fossem “dignos” de ser nomeados.
Fora destas fazendas nomeadas tem vários sítios lavrados por índios
e outras pessoas com suas próprias famílias, mas que são tão
pequenos que não merecem nem podem ser lembrados aqui, como o
dono muda de instante em instante, e as propriedades brasileiras já
por fim não entram nesta enumeração.
João Conrado Lang
Doutor em Philos e Medicina65
65
Arquivo Público do Estado da Bahia, Colonos e Colônias, maço 4607, Salvador (grifo da autora).
66
Henrique Jorge Buckingham Lyra, op. cit., p. 27.
47
que naquele espaço outras pessoas viviam, tinham seus pequenos sítios e
produziam não para atender aos ditames da pauta de exportação, mas, muito
provavelmente, para atender às suas necessidades cotidianas relacionadas à
subsistência. Trata-se do pronunciamento feito em 1861, pelo então presidente da
Província da Bahia, ao anunciar que “A Colônia Leopoldina no Sul não existe mais,
pois que está toda transformada em fazendas de café de ricos proprietários,
quase todos estrangeiros”.67
Contrapondo-se a esta afirmação que indica a dissolução da Colônia
Leopoldina, a Ata de eleição de 6 de novembro de 1898 faz referência à seguinte
situação: “Na sala da escola mista da Colônia Leopoldina primeira e única seção
eleitoral deste distrito com 58 eleitores...”68 Interessa-nos aqui frisar que ainda no
ano de 1898, um documento registra a existência da Colônia Leopoldina e indica
que na mesma se localizava uma seção eleitoral, portanto era um local reconhecido
pelo poder instituído à época. Sinal de que a Colônia existia, senão com o seu
estatuto e função originais, mas pela sua distinção.
O próprio reconhecimento da Colônia Leopoldina por parte do poder central
da Província diferia daquilo que se registrava através de atos oficiais desta mesma
instância do poder no local.
A Colônia Leopoldina existia, e para além do cultivo de café, havia ali, como
podemos ver pelas análises apresentadas até o presente momento, a insinuação da
existência de camponeses que lavravam a terra em pequenos sítios.
Teria sido então a partir desta Colônia, ou melhor, de uma das áreas que
pertencia a ela, que se originou o distrito de Helvécia. Este é apresentado no PDU
2004 da seguinte maneira:
67
Henrique Jorge Buckingham Lyra, op. cit., p. 28 (grifo da autora).
68
Cartório de Helvécia, Livro 01, Contratos Diversos, fl 18. Helvécia – Bahia.
69
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 50-51. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
48
ritmo do cativeiro nas roças do café, a partir do “ouvir dizer”,70 com o trabalho árduo,
vivido no presente, nas empreiteiras de eucalipto.
Confrontos entre diferentes modelos econômicos permeando suas vidas e de
seus antepassados foram apontados nas falas, bem como a existência de
acomodações e resistências na relação entre tais modelos. Nesta composição,
alguns lugares do distrito de Helvécia foram trazidos pela memória de sua população
quando estes falaram do processo de transformações engendradas pela
implantação da eucaliptocultura, e daquilo que isso significou em suas vidas.
Pierre Nora, ao discutir a relação sobre memória e história, nos fala sobre a
aceleração do tempo na contemporaneidade e de como esta aceleração, no ritmo
das transformações que ocorrem em todo o mundo, teria sido responsável pelo fim
do equilíbrio associado a idéias de tradições e costumes, a ponto mesmo de indicar
uma ruptura com o passado. Neste tempo de rupturas, em que a memória se
apresenta de forma esfacelada, e diante das mudanças constantes que trazem em si
a possibilidade de que algo desapareça, os lugares assumem um papel importante,
pois, ainda segundo Nora, “o sentimento de continuidade torna-se residual aos
locais”.71
David Harvey,72 por sua vez, ao discutir a compressão espaço-tempo e as
articulações do tempo e espaço com as relações de poder, assinala que por mais
que as elites construam uma noção de tempo e espaço pautada na
homogeneização, as minorias inventam, constituem temporalidades mistas com a
emergência de situações novas ou a valorização de tempos tradicionais.
Em Helvécia, traços arquitetônicos distintos corroboram a pujança da antiga
Colônia Leopoldina no processo de construção da memória do distrito. Refiro-me
aqui ao cemitério São Pedro. Este “lugar de memória” apresenta-se, nesta pesquisa,
como um indicativo da importância daquele espaço em tempos passados. Desta
maneira, ganhou ares de “cemitério histórico”, sendo descrito no PDU 2004 como
70
Michael Pollak. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol., 5, nº 10,
1992.
71
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Revistas do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História, PUC-SP, nº 10, p. 7, dez. 1993.
72
David Harvey. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15. ed.
São Paulo: Loyola, 2006.
49
73
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 73. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
74
Adequação do PDU 2001 Nova Viçosa, não há numeração de páginas. Acervo Seplan – CAR,
CAB, Salvador.
75
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, op. cit., p. 22,
76
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
50
77
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 73. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
51
78
Pierre Nora. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, op. cit., p. 12.
79
Roland Barthes. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 127.
52
80
Lei orgânica do Município de Nova Viçosa – Bahia. Artigo 98, § 2, item VII, 30 de dezembro de
1989, p. 47.
53
Esta foto, além de revelar vestígios de um túmulo, bem como raízes expostas
e plantas rasteiras que dele se assenhoreavam, sugere a presença de uma ferida,81
uma memória não respeitada, sufocada pelo descaso.
Ao levantar a lápide posta no chão ao lado do túmulo, pudemos notar a
seguinte inscrição: Carlos Krull – 1890 (cf. figura 4). Aquele era um registro da morte
de alguém, provavelmente alguma pessoa que possuíra laços de parentesco com
Ernesto e Francisco Krull, proprietários hanoverianos que, como nos informou João
Conrado Lang, em documento apresentado no início deste capítulo, haviam se
instalado nas bandas do norte do rio Peruípe na então Colônia Leopoldina, em
outros tempos, nos tempos ainda do século XIX.
81
Roland Barthes, op. cit.
54
Mas não somente este século estava encerrado ali. Naquele lugar de morte,
em que os muros já não eram mais inteiros, havia também fragmentos de outro
tempo. O registro feito através da fotografia (cf. figura 4) traz a possibilidade de
junção de tempos que na cronologia estariam irremediavelmente apartados.
Entretanto, “o tempo fotográfico recompõe o tempo da memória, alheio ao tempo
cronológico. São instantâneos irregulares e arbitrários ligados e separados pelo
esquecimento”.82 Assim, a ação do senhor Jorge, ao levantar a lápide, com o
objetivo de que eu pudesse registrar o que nela estava escrito, possibilitou, num
átimo, que se revelasse o tempo esmagado,83 no qual o tempo do passado,
82
Miriam Lifchitz Moreira Leite. Morte e a fotografia. In: Mauro Guilherme Pinheiro Koury (Org.).
Imagem e memória: ensaios em Antropologia visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. p. 44.
83
Roland Barthes, op. cit.
55
associado aos rituais de enterros dos mortos de Helvécia, foi comprimido ao tempo
do registro da fotografia e ao tempo presente de quem a olhava.
Quando da colocação desta lápide, no século XIX (cf. figura 4), ela era um
objeto. Entretanto, no momento do registro fotográfico ela não era mais o mesmo
objeto, ela comunicava a existência, em outros tempos, de um integrante da família
Krull, Carlos Krull, que fora enterrado naquele lugar. A inscrição na pedra servia
como suporte a uma sobrecarga da memória. Desta maneira, este “arquivo de
pedra”,84 segundo expressão de Le Goff, existente no cemitério São Pedro, ao tornar
pública e sustentar a durabilidade daquela memória lapidar, funcionou como um
antídoto ao esquecimento.
E não só os “arquivos de pedra” continuavam a fazer lembrar aquele lugar. Ali
foram enterradas pessoas que compuseram a história da Colônia Leopoldina bem
como a memória do povo de Helvécia. E por mais que o local estivesse abandonado
pelo poder público e cercado pela produção de eucalipto, aquele ainda era um
espaço revisitado pelas lembranças de seus moradores no processo de composição
de suas vidas:
Meu avô foi enterrado lá, minha avó foi enterrada lá... Minha família
quaes tudo foi enterrado lá, que nós morava na roça... botava o
caixão numa vara de bambu, e botava no ombro, né? Um numa
ponta outro na outra. Levava pra lá. A nossa família quaes tudo foi
enterrado lá. Agora, dos meus tio pra cá, tá enterrada aqui. Eu tinha
vontade de ir lá, mas quem me leva...85
Essa narrativa foi construída por dona Maria da Conceição, conhecida desde
pequena como dona Cocota, parteira que, segundo informação dada por Gilsineth
Joaquim Santos, e confirmada pelo sorriso largo de dona Maria, “aparou mais de
trezentas crianças” na região. Ela nasceu no ano de 1908 em uma roça nas
proximidades de Helvécia e falava do Cemitério São Pedro como um espaço com o
qual a vida de sua família estava intrinsecamente relacionada: “Minha família quaes
tudo foi enterrado lá...”
Ao recompor essas memórias, a entrevistada manifestou o desejo de voltar a
encontrar aquele lugar onde estavam enterrados seus ascendentes. Ao ser
84
Jacques Le Goff, História e Memória, op. cit., p. 428.
85
Entrevista concedida à autora por dona Cocota, em 14 out. 2007.
56
86
Essa informação foi passada para dona Cocota pelo sr. Jorge Ferreira da Silva, que estava
presente no momento da entrevista.
87
Maria Isaura Pereira de Queiroz. Relatos orais: do ‘indizível ao dizível‘. In: Olga de Moraes Von
Simson (Org.). Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais,
1988.
88
Havia, segundo informações de membros da comunidade, um projeto de transformar uma das salas
do prédio da antiga estação em um museu.
57
de Helvécia. Foi a partir daquilo que o seu pai, sua mãe e sua avó lhes contaram
que o entrevistado compôs a seguinte narrativa:
Ele contava para nós, eles não teve registro, não teve data deles,
nem nada, veio da África, parece que veio lá da África, mas não
89
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
90
Paul Zumthor. Perfomance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.
91
Alistair Thomson. Recompondo a Memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias, op. cit., p. 57.
58
92
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
93
Alistair Thomson. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História oral e as
memórias. Debate, Proj. História, São Paulo, (15): 80, abr. 1997.
59
94
Michael Pollak. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, p.
204, 1992.
95
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
96
Michael Pollak. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, p.
201, 1992.
97
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
60
[...] que muita gente possuía terra, aqui em Helvécia. É um fato assim
que a gente não sabe nem explicar, como que os negros daqui de
Helvécia conseguiram ter posse dessas terras, como que eles
conseguiram, que eram cativos e depois da abolição, não sei como é
que deu isso, aí. Muita gente. Meu avô fala que quem foi chegando
primeiro foi marcando os pedaços: Isso é meu, isso é meu e foi
tornando dono. Então tem muita gente que tem terra e assim
plantava de tudo um pouco, né? Na época de feijão plantava feijão,
época de abóbora plantava abóbora e nessa época também o clima
ajudava, então as pessoas viviam de uma certa forma bem, que pelo
menos uma alimentação boa eles tinha... então assim, eram felizes,
né? Eram felizes que faziam o que gostava de fazer.99
Talvez este hiato tenha sido preenchido na memória das pessoas de Helvécia
buscando um fio condutor entre o fim do cativeiro e a posse das terras.
98
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
99
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
61
Ah, mais aqui era muito bom, porque, antes, tudo que você plantava
dava, é feijão, abóbora, milho, amendoim, cebola, batata, na horta e
tal, basta roçar o lugarzinho, queimar, plantar. Dava cada uma
abóbora!101
100
Entre os quais, aqueles realizados por Walter Fraga, Wlamyra Albuquerque e Sidney Chalhoub.
101
Entrevista concedida à autora pela ra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
62
passado,102 e completar a frase com a afirmação “Dava cada uma abóbora!”, como
se fosse uma espécie de convite da narradora para a visualização de imagens
saudosas de fartura e qualidade dos alimentos produzidos em tempos distantes.
Outras narrativas, neste sentido, foram apresentadas pelos entrevistados. A
fala a seguir do senhor Manoel Norberto, pode nos ajudar a conhecer um pouco
mais dos laços de sociabilidade das pessoas, em Helvécia, nos momentos de
trabalho com a terra, de produção cotidiana:
104
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out 2007.
105
Edward P. Thompson. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 271.
106
Entrevista concedida à autora pelo senhor Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
107
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
64
108
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
65
109
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil – As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 139.
110
Carlos Rodrigues Brandão. O afeto da terra. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999, p. 63.
66
111
Raymond Williams. O campo e a cidade – na história e na literatura. Trad. Paulo Henrique Britto.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 377.
112
Entrevista concedida à autora por dona Cocota em 14 out. 2007.
67
Ah minha filha se eu falar isso com você, você vai até chorar. Por
que minha filha, igualmente eu. Oh meu Deus do céu. Eu fui prá roça
né? Quarenta ano que eu moro na roça, quarenta e dois anos, né? Ai
eu criei meus filhos tudo foi na roça, né? Meus filhos andava nove
quilometro de lá da roça pra qui, pra vim estudar. E aí foi uma vida
mermo de... só eu podia güentar, e güentei. Por causa de quê? Por
eu queria viver, fazer uma família. Por que hoje, ninguém num aceita
isso, o que eu passei, né? Então foi uma vida assim na roça, de
capinar, não existia trator. O trator era nos mermo, com nossa
enxada. Estocar a terra, plantar, depois colher, ir prá Posto da Mata
de pé, vender as coisas, né? Ia e voltava com filho enganchado do
lado. Então foi assim.113
Neste registro, o trabalho na terra aparece como sendo uma tarefa árdua.
Morar na roça, para além daquela imagem idílica que por vezes é atribuída a este
universo,114 requereu esforço, implicou sacrifícios, não só da entrevistada como
também dos filhos: “Meus filhos andava nove quilômetro de lá da roça pra qui, pra
vim estudar”. Ainda sobre as exigências do ritmo de trabalho na roça e das
implicações deste ritmo no seu trato para com os filhos, dona Maria de Jesus, em
outro ponto da entrevista, disse: “[...] fui uma mãe assim carrasca por que eu não
tinha tempo de colocar meus filhos no colo. O colo dos meus filhos era a rede... hoje
nós estamos no céu.”
113
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria de Jesus Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
114
Raymond Williams. O campo e a cidade – na história e na literatura, op. cit.
68
Estas foram memórias de uma mulher que viveu e construiu sua família a
partir do trato com a terra. Dona Maria de Jesus mostrou como as tarefas por ela
desempenhadas exigiam força e garra. Ela teria agüentado todas as situações que
aquele viver lhe exigia em nome de um projeto de vida que estava associado à sua
vontade de “fazer uma família”.
Essas narrativas que, a princípio, podem parecer dissonantes, são na
verdade enriquecedoras para essa pesquisa, na medida em que contribuem para
que a comunidade de Helvécia seja vista como diversa, não homogênea, não
monocromática.
Assim, pode-se ver, por algumas das narrativas analisadas, que lembrar dos
tempos de trabalho na roça não se resumia a falar de bons tempos. Aquele também
fora um tempo de dureza, de rusticidade no trato com os filhos pequenos. A labuta
na terra não era uma lida fácil, o trabalho segundo o ritmo da natureza exigia a
presença de mãos firmes na enxada, com exigências de esforço físico e de
abdicações, como, por exemplo, do ato de embalar os filhos no colo.
Estas dissonâncias não dizem respeito somente à memória dos tempos
anteriores à eucaliptocultura. Elas aparecem também em ações do tempo mais
recente quando, apesar das pressões existentes, alguns dos camponeses de
Helvécia se recusaram terminantemente a vender suas terras às empresas de
eucalipto, enquanto outros, de pronto, o fizeram.
Curioso observar que após falar das “treitas” da vida em Helvécia, dona
Cocota disse: “Mais eu gosto daqui... Já fui em Caravelas, já fui em Teófilo Otoni, em
Nanuque 4 anos, 4 anos em Belo Horizonte, trabalhando. Mais num esqueço daqui,
né?”
Ao comparar algumas das falas, analisadas anteriormente, de Faustina, de
Jorge, de Célia e do senhor Norberto, foi possível verificar que elas tinham em
comum uma memória construída a partir do trabalho realizado nas terras de suas
famílias. Dona Cocota trouxe um dado novo a respeito da relação do trabalho na
terra: “[...] E trabalhava pra gente e pros outros, tinha que trabalhar pros outros pra
gente ter o que comer, né?” Talvez resida aí uma das chaves para entender por que
aquelas lembranças não podem ser traduzidas unicamente pela construção “Ah,
mais aqui era muito bom”, talvez seja importante não perder de vista, como disse
Dona Cocota, que “Ah minha filha a vida aqui é treita”, ainda mais se levarmos em
69
consideração o que nos disse Raphael Samuel: “Há verdades que são gravadas nas
memórias das pessoas mais velhas e em mais nenhum lugar.”115
Ah, era maravilhosa! Era bom demais, hoje em dia para mim não tem
grande prazer não, festa em Helvécia era superior, para mim, para
outras pessoas, eu não sei dizer que cada um tem uma natureza,
né? E agora diminuiu bastante, dá muita gente, mas não é como era.
Não, não é não. A gente farreava tranqüilo, não tinha problema de
confusão e hoje em dia... quando dava dia de sábado de meio dia
para tarde, chegava era quantidade de gente, aquela influência. Hoje
em dia não, vem gente de fora, de Vitória, esse cantos, mas para
mim não é igualmente era não.119
115
Raphael Samuel. História local e história oral. Rev. Bras. de Hist. São Paulo, v. 9 n. 19, p. 230,
set.89/fev. 90.
116
Secretaria da Cultura e Turismo. Coordenação de Cultura. Guia Cultural da Bahia: Extremo Sul.
Salvador: A secretaria, 1997, v. 3. Acervo Cedic – Centro de Documentação e Informação Cultural
sobre a Bahia, Salvador, Bahia.
117
. Idem, v. 3, p. 153-155.
118
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
119
Entrevista concedida à autora pelo r. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
70
121
Entrevista concedida à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
122
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
72
Ponta de areia
123
Milton Nascimento, LP Milton Nascimento, Emi Odeon, 1969.
124
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 49. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
125
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 49. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
73
de linha, caldeireiro, torneiro;126 como também poderia ter sido um indício de que,
àquela época, os homens viajavam mais enquanto as mulheres ficavam esperando
por eles e quem sabe pelas novidades que eles pudessem trazer como fruto de suas
andanças.
Deste tempo há rememorações e fragmentos, partes destes estão
concretamente expostos no prédio da estação onde a escrita com indicação do ano
de inauguração da mesma, 1897, teima em mostrar que aquele espaço de
passagem, que outrora serviu de local para embarques e desembarques, fez parte
de diferentes tempos da história do distrito.
Há indício de que desde o momento da proposição de construção da estrada
de ferro Bahia e Minas já havia, em torno da mesma, toda uma expectativa em
relação aos dividendos que esta poderia gerar para a região. Em relatório feito pelo
então presidente da Província da Bahia, dr. Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, em
maio de 1879, encontramos o seguinte argumento em defesa da construção da
referida estrada:
126
Conforme documento mimeografado, intitulado “Estrada de Ferro Bahia e Minas”, sem número de
página, encontrado nos acervos da Associação Cultural Ferroviários Bahia e Minas, situada na rua
Júlio Costa, 61, bairro São Diogo, Teófilo Otoni, Minas Gerais.
127
Benedito P. Ralile. Monografia histórica de Caravelas. Salvador: Tipografia São Miguel, 1949, p.
60.
128
Benedito P. Ralile, op. cit., p. 61.
74
parece, muitos dos ex-cativos permaneceram nas terras vizinhas das antigas
plantações de café, praticando uma cultura de subsistência, em que foram
sucedidos por seus descendentes.129 Para essas pessoas que estavam vivendo a
crise da produção cafeeira, a chegada da estação no km 74 foi bem vinda, e desta
maneira, “A vila de Helvécia passaria a viver em função da estação da ferrovia Bahia
e Minas, inaugurada em 1897”.130
A estação de Helvécia era, entre as que se encontravam na Bahia, a mais
sofisticada da estrada de ferro Bahia e Minas,131 sendo composta por um edifício
“com planta regular, constituída por dois corpos justapostos: o da direita, térreo,
servia de armazém, enquanto que o da esquerda, assobradado, abrigava a
administração e estar dos passageiros”.132 Este prédio seguia os padrões de
arquitetura européia, com telhado de planos inclinados recobertos com telhas
francesas
135
Pierre Nora. Entre memória e História – a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo, (10)
dez. 1993.
136
Idem, p. 7.
137
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
138
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
76
Helvécia... que eu sou filho lá de Helvécia. Ah, era o lugar que tinha
mais negro, então tinha a estação de Helvécia, quando chegava lá
era a merma coisa, pegava um bocado de passageiro e vinha
embora, pra Posto da Mata, depois Argolo,... Naquela época que a
Bahia e Minas tinha movimento, negrão não ficava desempregado.140
139
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
140
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
77
141
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
142
Bruno Dias Bento. As matrizes e a fundação: A companhia de commercio e navegação do Mucury
& a estrada de ferro Bahia e Minas. Um breve estudo da formação do Vale do Mucuri. Monografia
apresentada ao Programa de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006, p. 135.
78
Assim foi que “O trem, [...] trem de ferro” dinamizou a economia local,
incrementando o comércio interno de produtos agrícolas ao mesmo tempo em que
empregou membros da comunidade. A partir desta ferrovia, os habitantes de
Helvécia passaram a exportar farinha de mandioca para o porto de Caravelas e para
o interior de Minas Gerais.144 Esta dinâmica tornou-se estável ao longo de décadas.
Esta idéia de movimento na praça e no tempo da estação, do km 74, que
apresentei ao longo deste tópico, foi tecida pelos entrevistados, tendo sido, pois,
realizada por eles em suas lembranças a partir dos parâmetros de suas
experiências, daquilo que eles entendiam por movimento, dinamismo comercial.
Uma informação a respeito do ritmo da locomotiva usada naquela época pode
contribuir para relativizar essa idéia de dinamismo e movimento:
143
Entrevista concedida à autora pelo sr. Amadeu Deolindo em 23 maio 2008.
144
Dante Lucchesi; Alan Baxter. Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia,
Disponível em http://www.vertentes.ufba.br/helvecia.htm.
145
40 anos da colonização japonesa no Extremo Sul da Bahia, Teixeira de Freitas, Bahia, s.a., s.ed.,
1997, p. 58.
79
[...] naquele tempo, tinha o pai de, ele já é falecido, chamava Oraldo,
o pai de Dalvo, então o camarada poderia levar quantidade de
farinha que ele comprava todinha, era farinha, dendê, arroz de casca,
isso tudo ele comprava, quando já teve quantidade aí ele pegava
gente para carregar tudo no ombro, colocava na estação, agora para
levar para o estado de Minas para poder vender, Teófilo Otoni,
nesses cantos. Já hoje em dia...146
146
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
147
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
80
precisavam”, indicando, no decorrer de sua fala, ter havido ali mais negros do que
“famílias de brancos”.
Como a residência do sr. Manoel Peixoto, onde realizei a entrevista, estava
localizada nas proximidades do prédio da estação, ele fez uso constante da
linguagem corporal, e ao falar, indicava com as mãos o movimento comercial dos
tempos de outrora, quando os negros traziam, nos sábados e domingos, as
mercadorias por eles produzidas para serem realizados os negócios de compra e
venda, logo ali em frente de sua casa, na praça da estação. Aquele lugar foi um
“foco” de comércio dos negros.
Enquanto a farinha produzida pelos camponeses, que chegava à praça em
cestas148 ganhava novos ares através dos trilhos da ferrovia Bahia e Minas, o fruto
de sua comercialização circulava no distrito de Helvécia, sendo gasto ali com objetos
de necessidade que não eram produzidos a partir da lida na terra. Uma loja
comercial daquela época, provavelmente a mais sortida, pertencia ao pai do senhor
Manoel Peixoto, e a descrição que ele fez dela pode nos ajudar a compreender
como aquelas pessoas que vendiam seus produtos agrícolas na praça da estação
se organizavam para adquirir algumas das mercadorias de que necessitavam:
148
É provável que o sr. Manoel Peixoto, ao falar de cestas, estivesse se referindo aos panacúns, que
são de fato uma espécie de cesta que se prende ao lombo dos animais, muito utilizado para
transportar mercadorias.
149
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
150
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
81
esta precisava de seus serviços. “As casas, como de praxe na época, foram
construídas dentro da faixa de domínio da estrada e hoje ocupam o leito da rua.”151
Após a desativação da estrada de ferro, as casas, construídas pela
Companhia de Estrada de ferro Bahia e Minas para abrigar seus funcionários,
permanecem habitadas pelos moradores de Helvécia.152
Mas o tempo da ferrovia foi também lembrado pelos entrevistados no seu
ocaso, e junto com este uma série de reminiscências pode nos ajudar a entender
como a desativação da ferrovia Bahia e Minas, e mais precisamente da estação do
km 74, foi sentida pelos sujeitos daquele lugar,
151
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 71. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
152
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 71. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
153
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
154
Milton Nascimento e Fernando Brant. “Ponta de Areia”. LP Milton Nascimento, Emi Odeon, 1969.
82
poderiam contar com o trem de passageiro. Foi preciso, então, buscar em seu
repertório outras ações, andar a pé, pegar carona, reinventar-se em Helvécia.
155
Entrevista concedia à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
83
156
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 66. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
157
Entrevista concedida à autora pelo Sr. Manoel Peixoto em 14 de agosto de 2007.
84
Ainda nesta mesma reportagem, o jornal A Tarde trouxe alguns dados, todos
eles fornecidos pelo coronel Dalmo Leme Pragana e pelo chefe do Escritório
Regional da Flonibra no Estado, o ex-prefeito da capital baiana, Clériston Andrade, a
respeito da implantação da eucaliptocultura no Extremo Sul baiano. Chama a
atenção o teor persuasivo constante dos argumentos utilizados pelas autoridades
responsáveis pelo empreendimento. Analisei aqueles que pareceram relevantes em
158
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
159
A entrevista coletiva foi realizada no dia 25 de fevereiro de 1976, em Salvador, na sede da
Associação Baiana de Imprensa – ABI.
160
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
85
161
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
162
Idem.
86
163
Idem.
164
Daniel Silvestre. Seminário Internacional do Processo de Articulação e Diálogo, s.l., s.ed., s.d.
165
Idem, p. 2.
166
Idem, p. 2.
87
167
José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999). Tese de doutorado em
administração, Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 85.
168
Maurício Otávio Mendonça Jorge apud José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e
convenções: a dimensão político-institucional das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose
S. A. (1990-1999). Tese de doutorado em administração, Escola de Administração, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 85.
169
Resumo público de certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A. unidade de Mucuri, p.
5.
88
170
http://www.aracruz.com.br/show_arz.do?act=stcNews&menu=true&id=12&lastRoot=8&lang=1,
Quem somos, último acesso em fevereiro de 2008.
171
José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999), op. cit., p. 94.
172
Ibidem.
173
José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999), op. cit.. p. 85.
174
Jornal A Tarde, 30 de junho de 1989, geral, p. 2, Fábrica de celulose trará mais ICMS para o
Estado, Arquivo do Instituto Geográfico Histórico da Bahia, Salvador – Bahia.
89
oportunidade foi dito que a fábrica seria instalada na cidade de Mucuri, no Extremo
Sul baiano.
Na solenidade de entrega da licença, em que também estavam presentes o
vice-presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Bernardo Spiegel, e Darlan
Dantas, diretor do Bndes,175 o governador Nilo Coelho, ao dirigir-se ao presidente do
grupo Suzano de Papéis, Leon Feffer, assim se pronunciou:
175
Idem.
176
Idem.
177
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
178
A imagem do abraço foi utilizada para fortalecer o significado da idéia de receptividade por parte
da comunidade de Helvécia à época da implantação da eucaliptocultura.
90
[...] Até meu pai mermo deu de trabalhar fora. Aí passou, já chegou
outra firma de eucalipi, que é aquela que antigamente chamava...
Fronibra,179 hoje é a Bahia Sul. Essa Fronibra ajudou os habitantes
de Helvécia mais ainda, nossa senhora, como foi bom! Que não
ficava ninguém parado dentro de Helvécia. Aí mexia com a roça,
mexia com a firma. Trabalhava na roça, trabalhava na firma. Eu
mermo era uma. Trabalhava, quando dava na folga assim do sábado,
minha mãe falava assim: – Agora vamos lá pra roça plantar
mandioca. Nós se mandava, eu e minhas primas.. Aí foi lutando, foi
lutando até que não passava mais dificuldade, que passava muita
dificuldade... depois dessas firma cada um tinha seu lugarzinho de
ganhar seu pão, né? E graças a Deus.180
179
A entrevistada refere-se à Flonibra.
180
Entrevista concedida à autora pela sra. Célia Maria Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
181
Na fala da entrevistada faz-se referência às firmas Rio Doce e Flonibra como se elas não tivessem
ligação, entretanto como já foi explicado no corpo do texto a Flonibra pertencia ao grupo do Vale do
Rio Doce.
91
cotidiano daquelas pessoas. Elas já não mais podiam decidir suas rotinas levando
em consideração somente elementos e as correspondentes exigências do tempo
das tarefas domésticas, tal qual conceitua Thompson (Tempo e disciplina do
trabalho), como mencionado no primeiro capítulo. Elas, agora, estavam diante de
outra temporalidade, regida pelo relógio, na qual suas atividades anteriores estavam
sujeitas aos intervalos de folga definidos por este. Essa nova configuração insinua,
senão uma perda de controle do tempo por esses trabalhadores, posto que também
o tempo da natureza lhes impunha normas, ao menos uma necessidade de
adequação destes trabalhadores ao tempo de trabalho organizado pelas firmas, sem
que houvesse, por parte destas, necessariamente, algum tipo de respeito ao tempo
da natureza ao qual aqueles trabalhadores estavam acostumados. Esta situação
acabava repercutindo, de alguma forma, sobre a autonomia destes nas suas
organizações de sociabilidade diárias, ligadas, por exemplo, aos costumes
associados aos horários de dormir, levantar, alimentar-se.
Desta maneira, aquele quadro que a princípio sugeria harmonia, “Trabalhava
na roça, trabalhava na firma”, com integração entre mudanças e permanências, ao
ser olhado em suas nuances nos convida a ver alguns elementos que possivelmente
contribuíram para gerar dúvidas, incertezas.
O que trago aqui como questionamento é: será que o procedimento descrito
por Célia pôde ser adotado pela maioria dos pequenos proprietários ou posseiros de
terra? Como isso foi possível se, como informou182 o coronel Dalmo Leme Pragana,
presidente da Flonibra, havia a necessidade de aquisição por parte da empresa de
uma grande parcela de terra para o plantio do eucalipto?
Quando a entrevistada fez menção à questão da posse da terra, ela nos
deixou uma pista ao dizer que “Aí já veio o comentário logo do pessoal querendo
vender as terra. Meu pai falou assim: não, a minha eu não vendo não, a minha é pra
nós trabalhar [...]”. Tal argumento me levou a deduzir que ao tecer sua memória e
afirmar que as pessoas continuavam trabalhando na roça e nas firmas, “Até meu pai
mermo deu de trabalhar fora”,183 ela se referia não só a sua realidade familiar, visto
que tal afirmação indica que além do seu pai havia um movimento de outras
pessoas daquela comunidade em direção ao trabalho nas firmas. Ao reelaborar sua
182
Em entrevista concedida ao jornal A Tarde em 26 de fevereiro de 1976, em matéria intitulada:
Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares. Arquivo do jornal A Tarde, Salvador – Bahia.
183
Deduzi que “trabalhar fora” referia-se ao trabalho na firma de eucalipto, pois a entrevistada
anteriormente estava falando exatamente sobre a chegada da empresa na comunidade.
92
Podemos observar, a partir desta fala, que houve uma ampla expectativa por
parte da comunidade em relação à vinda das empresas de eucalipto, mesmo sendo
presumível que, diferentemente daquilo afirmado pela Roseli, nem todos tenham
aderido à vinda das empresas.
Esclareço que, quando se deu a chegada das empresas de eucalipto em
Helvécia, Roseli era uma criança, pois, em 2005, ao proferir o depoimento citado,
deveria ter aproximadamente trinta anos. Assim é bem possível que sua afirmação
seja resultado de outras memórias que lhes foram apresentadas ao longo da vida.
Como essas memórias chegaram até Roseli a partir de diferentes falas, e
levando-se em consideração que as palavras são “multimoduladas”185 e que,
portanto, nelas existem elementos que traduzem outros tempos, é de se esperar
que por mais que Roseli Constantino tenha se esforçado para dar conta da
completude das falas a que teve acesso sobre o tempo da implantação da
eucaliptocultura em Helvécia, algo tenha lhe escapado, pois é provável que além de
ter deixado de levar em consideração uma ou outra fala a respeito da implantação
da eucaliptocultura em sua comunidade, o sentido das palavras proferidas àquela
época não necessariamente correspondesse ao sentido das mesmas palavras no
tempo da construção do depoimento proferido pela declarante. Assim, a fala de
Roseli Constantino não dá conta de elaborar uma assertiva que ofereça uma visão
exata e completa do sentimento de sua comunidade, visto que “Tudo que dizemos
tem um “antes” e um “depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem
escrever.186 No caso em questão, pessoas podem ter dito coisas, naquele tempo de
implantação da eucaliptocultura que traduzissem um sentimento de não euforia e
não aquiescência ao referido projeto, entretanto, à margem de suas falas, outros
textos podem ter sido escritos.
A ênfase que Roseli deu a determinados aspectos deve ser lida como própria
daquele contexto, afinal, ao participar como depoente na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados, ela tinha, como é regra na
184
Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia, pedagoga e
professora daquela comunidade. Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – DETAQ.
185
Expressão utilizada por Stuart Hall, na obra A identidade cultural na pós-modernidade, para indicar
que o significado das palavras não é fixo.
186
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 41.
94
187
Abordada no item “Tempo da estação – Estrada de ferro Bahia e Minas”, do primeiro capítulo, a
partir da narrativa do senhor Amadeu Deolindo.
188
Entrevista concedida à autora pelo sr. Antônio Simões em 23 maio 2008.
95
Isso foi assim uma das piores coisas que acho que aconteceu em
termos de economia,... quanta cidade pro lado da Bahia que morreu
em decorrência disso. Cidade que acabou.189
[...] pensou que não chegou a firma. Foi comprando a troco de nada,
e o pessoal, eles falavam muitas vezes que pudesse vender que ia
ser bom, comprando, né? O pessoal, que ia ser bom para as
pessoas, que ia ter muito trabalho. No início empregou muita gente,
até eu trabalhei na colheita, eu e meu esposo trabalhamos. O melhor
salário daquela época, há vinte e sete anos atrás, há trinta, era da
Fanibra [Flonibra]. E aí quando pensou que não, foi trazendo as
máquinas foi dispensando o pessoal, e aí? Tem máquina que
enquanto mil pessoas faz o serviço de um dia, a máquina faz
sozinha, com um homem só manobrando ela. E foi desempregando
todo mundo [...].192
Faustina Zacarias nos traz, a partir da construção “pensou que não chegou a
firma [...] empregou muita gente [...] pensou que não, foi trazendo as máquinas [...] E
foi desempregando todo mundo [...]”, a sua leitura de diferentes tempos históricos e
de seu significado para os moradores de Helvécia. É também possível interpretar
189
Entrevista concedida à autora pelo sr. Antônio Simões em 23 maio 2008.
190
Enciclopédia dos municípios brasileiros. Planejada e orientada por Jurandyr Pires Ferreira,
presidente do IBGE, supervisor da edição Dyrno Pires Ferreira, 2 de julho de 1958, Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, XX volume, p.140. Acervo Cedic – Centro de
Documentação e Informação Cultural sobre a Bahia, Salvador, Bahia.
191
O processo de venda das terras será abordado no próximo item deste capítulo.
192
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
96
uma idéia de descontrole por parte daquela que fala sobre o processo de introdução
da novidade, uma idéia de aceleração desenfreada na implantação da firma:
enquanto ela pensa, a firma chega. Essa construção dá uma indicação de distância
entre o tempo da firma e o da comunidade. A firma ainda bem nem chegou e já
empregou, já trouxe as máquinas e já desempregou. Tem-se aí a idéia de
compressão do tempo na pós-modernidade de que fala David Harvey.193
A fala de Faustina Zacarias também nos deixa entrever que a euforia e
certezas do primeiro tempo memorado deram lugar a dúvidas e incertezas à medida
que as pessoas venderam suas terras, “a troco de nada”, o que indica que o dinheiro
adquirido com a venda das terras, diferentemente daquilo que possa ter sido
imaginado à época, não foi nenhuma fortuna e foi corroído ao ser usado para
atender aos apelos consumistas de compra de uma casa, de utensílios domésticos e
coisas do gênero.
Também os empregos gerados não atenderam às expectativas,
intencionalmente alimentadas pelos defensores das empresas ao afirmarem, como
já foi dito, que “Não haveria população suficiente na região para ocupar as vagas de
emprego que seriam geradas”.194
Diante desta situação, a comunidade viu-se obrigada a deslocar-se de seu
lugar em busca de alternativas de emprego e sobrevivência. Esses deslocamentos
ocorrem tanto para destinos próximos do distrito, como a cidade de Nova Viçosa e
Teixeira de Freitas, como para centros mais distantes, entre os quais Vitória,
Salvador, São Paulo e Belo Horizonte.
O aumento destes deslocamentos nos últimos anos indica entre outros
aspectos que, além de “sobrar gente”195 no local e faltar vagas, o “progresso”, aqui
entendido com o sentido que as pessoas lhes davam e que estava associado à
melhoria da qualidade de vida, geração de empregos e maiores ganhos salariais,
não se realizou a partir deste desenho, ao contrário, fez parte dele a expulsão da
gente que sempre viveu naquele lugar.
193
David Harvey. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 15.
ed. São Paulo: Loyola, 2006.
194
Fala proferida pelo presidente da Flonibra, Coronel Dalmo Leme Pragana, em reportagem do
jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976. Arquivo
do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
195
Faço uso desta expressão em contraponto à afirmação feita por Pragana no sentido de que não
haveria população suficiente na região para ocupar as vagas de emprego que seriam geradas.
97
Este questionamento, “Se há realmente uma melhora, onde ela está?”, nos
faz pensar que aquilo que foi prometido pelas firmas não atendeu ao que foi
esperado pela comunidade. Foi diante desta realidade que os habitantes de
Helvécia agiram. Alguns, como afirmou Roseli Constantino, saíram de Helvécia e
foram construir suas vidas em outros lugares. Outros ficaram e tiveram de se
organizar para continuar a viver naquele distrito. Estes habitantes, em geral, já não
eram mais proprietários ou posseiros de terra e também não eram funcionários das
firmas, era preciso, pois (re)inventar-se, ocupar novas posições, novos espaços nas
relações sociais.
Por outro lado, é importante problematizar a fala da senhora Roseli
Constantino. Como afirma Ely Souza Estrela197 os deslocamentos198 das pessoas de
um lugar para outro também estão associados a projetos de vida, a escolhas; assim,
o ir para um novo lugar dá-se, por vezes, com o intuito de adquirir recursos, inclusive
para manutenção da vida camponesa. Também a busca de novas experiências,
principalmente para os jovens, na ânsia de “conhecer o mundo”, incrementa os
deslocamentos.
Reduzir o processo de deslocamento dos camponeses de Helvécia como se
fora uma espécie de conseqüência da eucaliptocultura traduz uma explicação
simplista da realidade. Este cultivo, contribuiu para o incremento dos processos de
196
Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia, pedagoga e
professora daquela comunidade. Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
197
Ely Souza Estrela. Os sampauleiros : cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas/
FFLCH/USP/Fapesp/EDUC, 2003.
198
A opção pelo uso da expressão “deslocamento” está relacionada ao fato de este termo, segundo
Ely Souza Estrela, estar associado à idéia do constante ir e vir das pessoas.
98
deslocamentos, mas em última instância não foi seu definidor. As pessoas não
atuam na construção de suas histórias apenas reagindo, elas agem, tomam
iniciativas com o objetivo de atenderem a seus próprios anseios.
A respeito deste questionamento, nos contatos que estabeleci, através de
telefonemas e e-mail com a Suzano Papel e Celulose, obtive um artigo intitulado
“Estudo da sustentabilidade regional da produção industrial de eucalipto no Estado
da Bahia”. No caso deste estudo, os autores, após apresentarem uma série de
conclusões feitas por pesquisadores da universidade de São Paulo e da Federal de
Viçosa, afirmam que o eucalipto não seca nem empobrece o solo, minimizando,
assim, os problemas ambientais muitos vezes atribuídos a esta monocultura. Os
autores desenvolvem o artigo dizendo, em linhas gerais, que os problemas com o
eucalipto são inerentes a toda monocultura e que o maior desafio da eucaliptocultura
na atualidade se encontra nas questões políticas e sociais.199
Nas conclusões que apresentam, afirmam, a partir de dados
macroeconômicos, que no Estado da Bahia a cultura do eucalipto não é nociva, ao
contrário, “[...] as cidades estão conseguindo melhoras com a presença dessa
espécie vegetal”.200 Entretanto, seus autores deixam uma pista, algo que tenciona a
conclusão apresentada:
199
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no Estado da Bahia, p. 7 (sem ano, sem editora, enviado
para mim por e-mail da Suzano).
200
Idem, p. 14.
201
Idem, p. 14.
99
Então foi nesse período... que o comércio ficou fraco, muito fraco, aí
depois desse período que Teixeira começou a crescer com a BR
101, Posto da Mata também, então eles foram desenvolvendo e aqui
foi caindo, foi caindo e ficou mesmo fracassadíssimo mesmo. Então
a terra sem valor, depois que já passamos bastante, bem no fim de
oitenta a principio de noventa começou a falar em, não sei se foi a
Aracruz, acho que foi a Aracruz primeiro, essas empresas aí. A Bahia
Sul que hoje é Suzano, Suzano e Aracruz. Começaram a ter noticia
que eles iam investir aqui na região. Então alguns fazendeiros de lá
100
Este relato diz da existência de uma situação que pode ser apresentada em
diferentes momentos. Em primeiro lugar, os moradores de Helvécia que labutavam
com a terra tinham experienciado perdas significativas no que diz respeito ao seu
modus vivendi. Tais perdas se acumularam em um período relativamente longo, indo
desde o momento da desativação da estrada de ferro Bahia e Minas, em 1966, se
acentuando com a construção da BR 101, em 1972, e persistindo pelos anos
seguintes, pois, como disse o entrevistado, “Teixeira começou a crescer com a BR
101, Posto da Mata também, então eles foram desenvolvendo e aqui foi caindo, foi
caindo e ficou mesmo fracassadíssimo mesmo”.
Por seu turno, fazendeiros da região de Aracruz (ES), informados da
necessidade de amplas glebas para a implantação da eucaliptocultura, passaram a
comprar terras em Helvécia objetivando promover a especulação, “começaram a vir
para cá, começaram vir e comprar terra”.
A venda de terra em Helvécia não foi feita somente para fazendeiros vindos
de outros lugares, também representantes diretos das empresas responsáveis pelo
agronegócio do eucalipto compraram terras. Isto ocorreu em um tempo em que os
moradores de Helvécia sabiam, porque experimentavam uma depressão econômica,
que suas terras estavam desvalorizadas no mercado. Deste modo, acredito que esta
situação também tenha contribuído para o desfecho que se deu com o processo de
venda das terras, para aqueles que não eram daquela comunidade, por um valor
“baratíssimo, né?”
A observação, feita anteriormente, tem o intuito de alertar para que não se
faça uma leitura das atitudes dos moradores de Helvécia que efetivaram a venda de
suas terras por valores, hoje entendidos como insignificantes, como se aqueles
tivessem agido de maneira equivocada. Pode ter acontecido que na época da
transação comercial das terras, os vendedores tenham, a partir dos dados de que
dispunham e das pressões que sofriam, analisado aquela atitude como a mais
acertada e propícia dentro do contexto, uma vez que surgiam oportunidades de se
realizar negócio com áreas até então pouco cobiçadas.
202
O entrevistado referia-se à cidade de Aracruz – Espírito Santo.
203
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
101
204
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
205
Jornal A Tarde, 26 de fevereiro de 1976. Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
206
José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e convenções: a dimensão político-institucional
das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose S. A. (1990-1999), op. cit., p. 92-93.
102
de terras é tão essencial ao êxito do projeto que o Governo deverá concentrar nela
todos os esforços, utilizando meios objetivos e realistas, inclusive
desapropriação...”207
Este não foi o caso em Helvécia, uma vez que não haja registro de
desapropriação de terra. Entretanto, outros mecanismos foram utilizados para
aligeirar o processo de venda das glebas de maneira a garantir às empresas
grandes áreas de terras contínuas.
Ora, se levarmos em consideração que muitos dos homens e mulheres de
Helvécia tinham sobre seu domínio pequenas e médias áreas, isso significa dizer
que, para que se desse, por parte das empresas de eucalipto, a obtenção de terras
contínuas, foi necessário que o processo de venda fosse realizado não por um, ou
outro camponês, mas sim pela sua coletividade. Assim, os mecanismos utilizados
para convencer diferentes indivíduos constituíam um repertório variado, que oscilava
desde propostas aparentemente generosas, para aqueles poucos camponeses que
possuíam as escrituras das terras, até a divulgação incisiva dos códigos legais do
Brasil que associam a garantia da propriedade das terras à aquisição de titulação.
A este respeito, o senhor Manoel Peixoto, dando prosseguimento a sua
narrativa, apresentou o seguinte relato:
207
Maurício Otávio Mendonça Jorge apud José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e
convenções: a dimensão político-institucional das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose
S. A. (1990-1999), op. cit., p. 93.
208
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
103
209
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
210
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago 2007.
104
211
Jornal A Tarde, Produção de celulose vai ter um bilhão de dólares, 26 de fevereiro de 1976.
Arquivo do jornal A Tarde, Salvador, Bahia.
105
vida no campo, pois como nos alerta Raymond Williams,212 é preciso lembrar
sempre que os ”bons tempos de antigamente” quando estudados também
apresentam suas dificuldades e relações de exploração. Cabe também recordar
Pierre Bourdieu quando ele alerta que “a força do costume jamais anula
completamente o arbitrário da força”. 213
Diferente daquilo que se poderia supor, em razão da já sabida incidência de
conflitos violentos na luta pela propriedade da terra no Brasil, Maria Aparecida de
Moraes Silva214 chama a atenção para o fato de que este processo, descrito no
parágrafo anterior, também ocorria através daquilo que ela denominou violência
escondida e legal, em que o Estado, detentor do monopólio da elaboração e
promulgação das leis, as fazia em defesa de projetos de modernização que
implicavam a expropriação de terras e destruição de parte do campesinato brasileiro.
No instante em que os posseiros do distrito de Helvécia começaram a
perceber que as terras estavam se valorizando, deram-se conta também de que não
possuíam os registros das mesmas. Como afirmou o senhor Manoel Peixoto, muitas
delas “fruto de heranças”. Regulamentar tais posses implicava gastos e para isso
era necessário ter recursos. Ora, muitos desses posseiros se viram em uma situação
na qual, não tendo dinheiro para regulamentar suas posses, sentiam-se ameaçados
de perder as terras, pois, na Lei, a terra tinha de ser documentada.
A partir das falas dos moradores de Helvécia, no período em questão,
percebe-se que ali estava se constituindo uma situação na qual “O medo de ficar
sem as terras fez com que os camponeses as “vendessem”, a qualquer preço
[...]“,215 na verdade, “baratíssimo”, como disse o senhor Manoel Peixoto.
Esta configuração legal não foi feita de forma a deixar ver sua parcialidade. O
fato é que tal legislação acabava por atender e legitimar os interesses dominantes,
posto que para as empresas e fazendeiros o custo com a regulamentação da
propriedade era viável. Ao contrário, as leis davam a entender que eram imparciais
e, por isso mesmo, dignas de serem proclamadas legítimas. Sua eficácia, no sentido
de atender aos interesses dominantes, por vezes residia, paradoxalmente, na sua
capacidade de parecer não defendê-los. Neste sentido, Thompson nos alerta:
212
Raymond Williams. O campo e a cidade – na história e na literatura, op. cit.
213
Pierre Bourdieu. Meditações Pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 115.
214
Maria Aparecida de Moraes Silva. Errantes do fim do século. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1999.
215
Idem, p. 46.
106
218
Pierre Bourdieu. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.207.
219
Ibidem.
108
220
Resumo público de certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A., unidade de Mucuri, p.
14 (grifo da autora).
109
221
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Peixoto em 14 ago. 2007.
222
Maria Aparecida de Moraes Silva. Errantes do fim do século, op. cit., p. 46.
223
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil – As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
111
Diante da ameaça de perder as terras, visto que muitas não eram tituladas, a
possibilidade de vendê-las, acreditando nas promessas das empresas de que
poderiam permanecer nelas, pareceu uma boa alternativa.
Tais propostas, ainda segundo o entrevistado, foram feitas a partir de códigos
comuns aos negócios realizados pelos camponeses de Helvécia. Desta forma, esta
combinação não constava em documento escrito, tendo sido empenhada a partir da
palavra dos contratantes. O narrador, senhor Sérvulo, assim nos contou o
desenrolar da história:
224
Idem, p. 138.
225
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
226
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007 (grifo da autora).
112
Foi a partir das experiências que aquelas pessoas tinham nos seus acordos e
negócios cotidianos que elas se relacionaram com os estranhos recém-chegados.
Estes traziam consigo novos códigos, novas regras de conduta social,227 em que
valia o que estava escrito e registrado em cartório.
Essa composição, venda de terras e permanência dos antigos posseiros nas
mesmas era algo impossível de atender a uma das necessidades prementes ao
desenvolvimento do agronegócio no Extremo Sul da Bahia. Refiro-me à necessidade
da separação entre o trabalhador e os meios de produção,228 condição para a
relação capitalista se constituir plenamente.
Uma das condições primeiras para o estabelecimento da atividade
relacionada à eucaliptocultura, em Helvécia, consistia exatamente em comprar as
terras dos camponeses da região, transformando-os em trabalhadores com
necessidade e possibilidade de vender sua mão-de-obra para as empresas.
Essa transformação espacial contribuiu também para que ocorresse a criação
de novas necessidades para aquela comunidade, estabelecendo-se inclusive uma
dependência entre antigos camponeses e os representantes do capital. Tal fato nos
revela a dependência que se alicerçava na relação social que ora se apresentava,
em que não tendo mais a propriedade da terra e dos instrumentos para realizar seu
labor, restava aos camponeses negociar seu trabalho como possibilidade de troca
por salário.229
Em Helvécia, os camponeses, ao venderem suas terras, perderam, em
grande medida, sua condição autônoma. Agora, para garantir a sobrevivência,
teriam que vender sua mão-de-obra aos representantes do agronegócio. Como esta
situação foi sentida pelas pessoas daquela comunidade?
227
José de Souza Martins. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1991.
228
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil – As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político, op. cit., p. 158.
229
Idem.
230
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
113
Não era nada disso que a gente pensava, tipo que agente foi assim,
comprado, hoje eu me sinto, se eu tivesse com a minha terra hoje, eu
não venderia e nem deixava o meu irmão ao lado vender também,
porque eu me senti comprada, não a terra, nós todos e era muita
terra, até chegou ficar organizada nossa terra já estava bem
pequena, mas não era pouca não.231
Quando a entrevistada nos disse que não foi a terra que foi comprada, mas
sim ela própria, talvez estivesse nos dizendo exatamente aquilo que Martins nos
convidou a pensar na obra Os camponeses e a política no Brasil – As lutas sociais
no campo e seu lugar no processo político. A liberdade de ser dessa narradora
estava intrinsecamente relacionada ao fato de ela ter o domínio sobre uma gleba, o
que na prática significava que a mesma era capaz de, fazendo uso de sua força de
trabalho, gerar os produtos necessários à sua sobrevivência, à sua vida. Ao passar à
condição de não mais possuir terras, mesmo que isto tenha ocorrido a partir de
transações comerciais de compra e venda legitimadas pelo campo jurídico, Faustina
Zacarias expõe a dor da perda que não se restringe ao bem material, mas sim a
todo um conjunto de práticas associadas à lida com o campo. A narradora, por fim,
reforça sua indignação atribuindo a toda uma coletividade o seu sentimento, uma
vez que agora não lhes resta muitas opções, a não ser vender-se enquanto mão-de-
obra, talvez por isso a enfática afirmação “eu me senti comprada, não a terra, nós
todos”.
Outra possibilidade, considerando o contexto no qual o distrito de Helvécia
está inserido, seria uma releitura de outros tempos. Neste sentido, fiquei me
indagando a respeito do significado que teria para alguém construir uma narrativa
em que afirma ter se sentido comprada? Afinal, essa parece ser uma construção
231
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007 (grifo da
autora).
114
. Certamente por isso, o senhor Norberto não vendeu sua terra, hoje cercada
pelas empresas de eucaliptos ou por aqueles proprietários rurais que aderiram à
prática do fomento.
232
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
233
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil – As lutas sociais no campo e seu
lugar no processo político, op. cit., p. 166.
115
2.2 “DESMANTELAMENTOS...”
produtiva e de práticas culturais, e estas não foram respeitadas por aqueles que ali
chegaram para implantar o agronegócio do eucalipto.
A existência de relações de troca foi vista pelas empresas produtoras de
eucalipto como prova do atraso em que vivia aquela comunidade. Isto consistiria em
mais uma razão para a introdução de novos formatos de investimentos portados, à
época, pelas firmas.
Sobre a desvalorização dada à agricultura de subsistência, é ilustrativo do
contexto sociopolítico e econômico da época o trecho da matéria “Agricultura
brasileira II – Pesquisa, tecnologia e os desafios”, do Caderno Econômico do jornal
A Tarde, 6 de janeiro de 1980, no qual o cientista Paulo de Tarso Alvim afirmou:
235
Jornal A Tarde de 6 de janeiro de 1980, Caderno Econômico, “Agricultura brasileira II – Pesquisa,
tecnologia e os desafios” p. 8. Arquivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
117
236
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
118
Outro dado que pode contribuir para que se entenda as relações existentes
naquela comunidade diz respeito aos arranjos feitos por seus habitantes no sentido
de orquestrar, em seu cotidiano, ações que dessem conta de dialogar com as
necessidades que lhes eram apresentadas.
Oh minha filha. Nem toda vez vendia as coisas, foi logo no início que
abriu essa estrada, essa estrada 21,237...nóis pegava essas coisas,
trocando minha filha as coisa, trocando, por um pouquinho de arroz,
um pouquinho de feijão, um pouquinho de óleo, pedaçinho de sabão.
Não vendia tudo, não dava pra trocar tudo, nóis ia pra Posto da Mata
vender, aí porta em porta vender. Voltava com aquela feirinha que já
trocou, com aquela mixaria de dinheirinho pra poder ir passando a
vida até...238
Parece visível que a prática da troca, que foi abordada neste tópico como
sendo de vital importância para a vida cotidiana daqueles homens e mulheres no
sentido de adquirirem aquilo que lhes era necessário para viver, tinha seus limites,
“não dava pra trocar tudo”, e também “Nem toda vez vendia as coisas”, em Helvécia.
Naquela situação de desmantelo era preciso buscar novas maneiras de agir. Havia
agora um novo caminho, uma nova estrada, a BR 101, e por ela um grupo de
pessoas se deslocava, “nóis ia pra Posto da Mata vender, aí porta em porta vender”,
para que se pudesse amealhar aquilo que se fazia necessário à sobrevivência da
família.
Estas exigências cotidianas de trabalho intenso, nas reminiscências de dona
Maria de Jesus, duraram até certo período. Ela, ao continuar sua narrativa, disse:
“Voltava com aquela feirinha que já trocou, com aquela mixaria de dinheirinho pra
poder ir passando a vida até... quando deu pro meu marido empregar.” Quando
indaguei em que lugar o seu marido se empregou, a entrevistada respondeu: “Na
Suzano.” Este emprego, que foi conseguido de forma árdua, “foi uma luta, foi uma
luta prá empregar também”, na memória da entrevistada, esta ocupação do cônjuge
foi responsável por amainar as suas labutas diárias. Fiz tal interpretação a partir da
entonação que a mesma deu a palavra “até...”, como se após aquele momento
tivesse inaugurado um novo tempo em sua vida.
Essa análise ajuda a compreender um pouco da complexidade existente na
comunidade de Helvécia, como em todo sistema social, visto que as transformações
237
A entrevistada referia-se à BR 101.
238
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria de Jesus Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
119
239
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
240
Daniel Silvestre. Seminário Internacional do Processo de Articulação e Diálogo, s.l., s.ed., s.d., p.
22.
120
Este camponês, ao dizer que “ninguém planta nada” retira qualquer dúvida
sobre a participação (ninguém) dos membros da comunidade e a reminiscência das
velhas práticas (nada). E o motivo para esta inexistência completa foi uma mutação:
“[...] tudo virou eucalipto.”
O somatório dessas duas parcelas teve como produto a expressão “acabou”.
Sem aquela relação social com a terra, muitos dos antigos camponeses
daquela comunidade passaram a necessitar cada vez mais da possibilidade de
empregos e salários para que pudessem adquirir as mercadorias necessárias,
muitas das quais, inclusive, em um passado presente em suas memórias, eram por
eles produzidas ou então lhes eram ofertadas pelos vizinhos de propriedade.
241
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 51. Acervo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
121
242
Diferentemente daquilo que é afirmado, o Bate-barriga não deixou de existir em Helvécia. Para
saber mais sobre o Bate-barriga, ver a dissertação A dança Bate-barriga em Helvécia, um espaço
fabricante de performances afrodescendentes no Extremo Sul da Bahia, desenvolvida pelo professor
Valdir Nunes dos Santos na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
243
Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação Quilombola de Helvécia, pedagoga e
professora daquela comunidade. Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
122
244
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
123
Neste texto ficou claro, a geração de empregos era tida como certa. Não se
tratava, pois, de indicar uma possibilidade, mas sim de divulgar uma certeza.
Os jornais de circulação local no Extremo Sul baiano, igualmente, noticiavam
a importância da chegada das empresas de eucalipto e mostravam como estavam
incrementando a oferta de empregos na região.
245
Jornal A Tarde, 23 de junho 1989, Caderno de Economia, Acervo Instituto Geográfico Histórico da
Bahia, Salvador.
246
Jornal Alerta, Medeiros Neto, Ano V, nº. 46, 25 de novembro a 10 de dezembro de 1991, p. 2.
Arquivo jornal Alerta, Teixeira de Freitas, Bahia.
124
247
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
248
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
249
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
250
VIII recenseamento geral 1970, série regional, volume I, tomo XIII. Arquivo IBGE Teixeira de
Freitas (BA).
125
5.066 homens e 4.943 mulheres.251 Por sua vez, os dados da década de 1990
trazem informações conjuntas de situação de residência e gênero (cf tabela 2).
Tabela 2
HELVÉCIA – NOVA VIÇOSA (BA), 1991
POPULAÇÃO RESIDENTE POR SEXO E SITUAÇÃO252
HOMENS MULHERES
Urbana Rural Urbana Rural
759 7.154 776 6.865
Apesar de não haver, nas fontes consultadas, uma padronização dos dados
que o IBGE disponibiliza sobre a população de Helvécia, é possível afirmar que a
maioria dos moradores de Helvécia se encontrava na área rural, e, como foi visto na
análise de documentos apresentados ao longo desta dissertação, as empresas de
eucalipto compraram terras naquele distrito para que pudessem desenvolver o
agronegócio. Essa conjunção implicou aquilo que chamei de desmantelamentos,
bem como a posterior necessidade de estas pessoas se empregarem para
conseguir sobreviver.
Desajustes foram sendo sentidos por aquela comunidade, estes implicaram
novos arranjos, reajustes inventados cotidianamente por aquelas pessoas que
viviam em Helvécia.
Se já não mais podiam contar com o sistema de troca de mercadoria que foi
afetado em razão da produção agrícola de subsistência ter sido seriamente
comprometida pelo uso das terras para o plantio da monocultura do eucalipto, essas
pessoas, em razão das necessidades que lhes eram impostas, começaram a exigir
das firmas que lhes oferecessem alternativas para que pudessem adquirir aquilo que
lhes era vital para a sobrevivência.
As expectativas de muitos dos habitantes de Helvécia em relação à satisfação
de necessidades inerentes às suas vidas passaram a ser associadas àquelas
empresas que ali chegaram na década de 1980 com todo um discurso de progresso
e desenvolvimento da comunidade: “[...] porque a população do lugar eles gritam por
emprego, eles quase não acreditam mais no trabalho da terra, entendeu, eles
251
IX recenseamento geral do Brasil, censo demográfico dados distritais. 1980, volume I, tomo 3,
número 13. Arquivo IBGE Teixeira de Freitas (BA).
252
http://www.ibge.gov.br/home/ , http://www.sidra.ibge.gov.br/
126
253
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
254
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
255
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007
256
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 51. Arquivo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
127
257
Entrevista concedida à autora pela sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
128
258
Segundo dados do Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da
Bahia (Cepedes).
259
Roseli Ricardo Constantino, Depoimento n. 1595/05 de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
260
Maria Cristina Wissenbach. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo
(1850-1880). São Paulo, HUCITEC, 1998, p. 27.
261
Resumo Público de Certificação da Suzano Bahia Sul Papel e Celulose S.A., da unidade de
Mucuri, 14 de dezembro de 2004, p. 5
262
Jornal A tarde, 23 de junho de 1989, Caderno de Economia, Acervo Instituto Geográfico Histórico
da Bahia, Salvador.
129
263
Entrevista concedida à autora pela Sra. Faustina Zacarias Carvalho em 14 ago. 2007.
264
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira em 14 ago. 2007.
130
[...] serviço por aqui era meio difícil, mais era na Bahia e Minas, mas
custava empregar as pessoas, só daqueles que já estava. Mas hoje
em dia serviço apareceu, não trabalha quem não quer. Agora o
problema do serviço de antigamente, tanto faz de roça ou outro tipo
de serviço, se o camarada poderia está até com oitenta ano, se ele
teve coragem para trabalhar e fosse ele trabalhava. Já essas firmas
não aceita mais o camarada de sessenta, setenta anos, né? Criança
pior, mulher só se for para trabalhar no escritório, mas no campo a
firma não aceita. Numa parte melhorou e na outra não, em
265
Refiro-me aqui de forma mais precisa à reportagem veiculada no Caderno Econômico do jornal A
Tarde de 6 de janeiro de 1980, em que o cientista Paulo de Tarso Alvim defende a idéia de que se
deva criar no Brasil pólos agroindustriais com produção voltada preferencialmente para o mercado
externo, contando, para isso, com medidas governamentais de incentivo.
131
266
Povoado localizado nas proximidades do distrito de Helvécia.
267
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
268
40 anos da colonização japonesa no Extremo Sul da Bahia. Teixeira de Freitas, Bahia, s.a., s.ed.,
1997.
132
Em Helvécia hoje está difícil, está difícil, que nem era antes não.
Antes era verdura, amendoim, pimentão, melancia, tomate, era
caminhão mais caminhão. Era caminhão mais caminhão, melão,
pepino, saia de tudo aqui, o que você pensava sai daqui, tinha um
grupo de japonês ali... hoje só tem eucalipto, né? Que plantava de
tudo, inclusive eu estudava de manhã e depois de meio-dia vinha o
trator de lá do japonês, deslocava de lá para vim buscar os meninos
que estudavam de manhã, trabalhava de tarde e os que estudavam
de tarde ele trazia, e aí eu trabalhava como menino. É lá que eu tive
oportunidade de aprender alguma coisa, trabalhando com os
japoneses...269
269
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira em 14 ago. 2007.
270
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
271
Pe. José Koopmans. Além do eucalipto: o papel do Extremo Sul. 2. ed. Revisada e atualizada.
Teixeira de Freitas: Centro de Defesa dos Direitos Humanos, 2005, p. 74.
133
esposos e filhos provessem para seu lar. Conflitos, abertos ou ocultos, em relação
às repartições das decisões cotidianas da família272 podem ter sido formados, porém
a este respeito nas entrevistas prevalece o silêncio.
Isso significou a entrada de uma menor quantidade de dinheiro nas casas das
famílias da comunidade de Helvécia, ao mesmo tempo em que havia tido no distrito
uma diminuição de produtos agrícolas básicos para a sobrevivência de seus
moradores. A vida de fartura aparecia agora como lembrança:
[...] todo mundo alimentava bem, não tinha essa miséria que tem hoje
não. Tem nego aí que diz, não vejo, mas tem gente que fala que tem
nêgo passando fome por causa que não tem alternativa nenhuma.
Principalmente para as mulheres que é sozinha, não tem serviço
para as mulheres sozinhas, empregos não tem empresa
nenhuma aqui que pega mulher para trabalhar, não tem
nenhuma, antigamente tinha, mulher não ficava parada, ia
trabalhar para os japoneses, ia trabalhar. Na época tinha um
fazendeiro que mexia muito com pé de mamão que ele tinha loja
em Campinas, trabalhava um monte de mulher na roça de
mamão, hoje não tem mais, ninguém ficava parado, hoje você vê a
maioria das mulheres que não tem um serviço, o que emprega aqui
mesmo hoje mesmo é a prefeitura, mas só trabalha quem é
concursado... mas hoje, para trabalhar aí em Helvécia hoje não
tem empresa nenhuma que pega mulher para trabalhar.273
272
Michelle Perrot. Os excluídos da história – operários, mulheres, prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 2001.
273
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira em 14 ago. 2007.
134
[...] porque setenta e quatro por cento das terras de Helvécia são
ocupadas com plantio de eucalipto e pertence a Aracruz, então tem
uma dívida muita grande conosco, a firma tem uma dívida muito
grande, plantou no início, ofereceu muitos empregos, muitos
empregos foram dados, de repente as pessoas foram todas
mandadas embora, né? Ah você não serve mais, não serve mais e
aí essa situação está até o dia de hoje...274
Para que uma fazenda mais bonita que aquela, eu morei lá, hoje
você pode, doutor é Antônio Alfredo, o povo era de Minas Gerais,
Teófilo Otoni, eu morei lá quase dois anos, era uma fazenda bonita,
criava muito gado, muita galinha, muito pato, eu recolhia tanto ovo de
cocar em um dia que eu ficava besta, falava: “Meu Deus seu Alfredo
onde o senhor vai levar esse tanto de ovo?”, “Vou levar para Teófilo
Otoni e vocês pegam e comem e dá para quem quiser.” Era desse
jeito. Hoje,... o filho dele pegou e vendeu, hoje você passa lá e é só
eucalipto. Essa fazenda aí, do japonês, né? Era muita verdura,
274
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
275
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2 ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1995, p. 20.
135
276
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Henriqueta Ambrósio em 15 ago. 2007.
277
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2 ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
278
Michelle Perrot. Os excluídos da história – operários, mulheres, prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 2001.
279
Entrevista concedida à autora pela sra. Elzira Peixoto em 14 de ago. 2007.
136
passando fome, vamos dar uma ajuda. Mas é pessoa que tinha e foi
na conversa dos outros, que existe muita gente boba ainda.280
O senhor Sérvulo falou sobre um pouco daquilo que não era tranqüilidade e
deixou implícito que aquela situação, “A maioria do povo está passando
necessidade”, atingia pessoas que, em um passado recente, tinham possuído terras.
Havia, segundo sua narrativa, uma relação entre a venda das terras, o subseqüente
plantio de eucalipto e aquela situação de penúria para a “maioria do povo”. Ele
traçou um paralelo entre a atividade agrícola existente no distrito antes e depois da
eucaliptocultura. Este teve como eixo os benefícios gerados por uma e outra
atividade. Ficou claro que o eucalipto trouxe benefícios. Entretanto, para o
entrevistado, estes se concentraram nas mãos daqueles que plantaram: “[...] só
melhorou para quem plantou, que entra o dinheiro. Só para ele e pronto, e aí a
comunidade está passando necessidade.”
As benesses não foram pulverizadas, distribuídas na comunidade, como nos
tempos em que os donos de terra no distrito, inclusive muitos japoneses, faziam
cultivos agrícolas variados: “plantava feijão, era roça de mamão, tinha de tudo, de
tudo, quando chegava com quinze dias ele fazia pagamento do povo aqui na rua,
rolava dinheiro, [...].” Dinheiro que provavelmente circulava nas vendas, nos bares,
na compra de roupas e sapatos para os dias de folguedo, nos lances dados nos
animados leilões de frango assado, realizados no último domingo de setembro,
quando da festa de Nossa Senhora da Piedade – padroeira de Helvécia. Ocasião
em que a população do distrito recebia/recebe parentes e amigos que chegavam
das mais diversas cidades do Brasil.
Na narrativa, o senhor Sérvulo não fez menção à existência de penúrias antes
da eucaliptocultura. Entretanto esta ausência deve ser relativizada. Moradores de
Helvécia já haviam passado necessidades, entretanto, elas não foram descritas
talvez porque, contrapostas à situação atual, o passado estivesse sendo lido pelo
entrevistado de uma forma idílica.
Nesta fala há também uma pista de como os laços de sociabilidade existentes
são acionados, através das informações veiculadas na comunidade, no sentido de
ajudar os conhecidos: “– Ah fulano está aí passando necessidade, está passando
280
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
139
fome, vamos dar uma ajuda.”281 Viver com o eucalipto também era conviver com
antigos moradores de Helvécia que, por não terem mais nem terra nem trabalho,
experienciavam privações básicas de sobrevivência e passaram a contar com a
solidariedade de integrantes da comunidade para viverem. Pois, como disse o
senhor Sérvulo, “ou que vive bem ou que vive mal, todo mundo precisa de viver,
né?”
Um questionamento possível, a partir daquilo que nos foi apresentado pelo
senhor Sérvulo, seria por que, em Helvécia, camponeses que ainda possuem terras,
ao invés de continuarem a plantar os produtos agrícolas dos tempos de fartura, vivo
nas memórias, estão plantando eucalipto? A informação, elaborada através de uma
indagação feita pelo senhor Milson Silva Zacarias, jovem residente em Teixeira de
Freitas, filho de filhos de Helvécia, ligado àquele distrito por laços afetivos, diz algo
sobre este questionamento:
Ele parte do pressuposto de que as pessoas de Helvécia, que ainda têm suas
terras, almejem ganhar dinheiro, aderindo desta maneira ao plantio do eucalipto, “o
único jeito de fazer um bom dinheiro”. Ainda segundo o entrevistado, esta realidade
seria responsável pela “cidadezinha” estar sendo engolida pelos eucaliptos.
Quanto à afirmação “rola muito dinheiro no eucalipto”, esta será aqui
analisada, em relação ao distrito de Helvécia, com cuidado, em razão de alguns
elementos. Em primeiro lugar, nas pesquisas de campo, não pude observar
manifestações exteriores de riqueza. Nos espaços privados, destacava-se a
simplicidade dos equipamentos mobiliários e eletro-eletrônicos, bem como dos
meios de transporte e comunicação. As edificações recentes, construídas depois da
chegada do eucalipto, em nada se aproximam da idéia de opulência. Existe uma ou
outra construção residencial que se destaca, seja pelo tamanho, seja pelo estilo,
mas isto é uma exceção. Em geral as casas de alvenaria são simples e ainda
281
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
282
Entrevista concedida à autora pelo sr. Milson Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
140
Este mesmo jovem que nos falava das mudanças, identificadas na tendência
de plantar eucalipto por donos de uma “terrinha”, também experienciou a sensação
de permanência, pois a gleba que pertenceu aos seus avós maternos, diferente
daquilo que acontecera com as terras do avô paterno, continuou nas mãos de sua
família, como fruto de herança. Ela não foi vendida, apesar das ofertas feitas pelas
firmas de eucalipto. Fato que, pelo visto, envaidece e orgulha a família Zacarias. 284
A respeito da suposta “escolha” dos camponeses pelo plantio de eucalipto em
detrimento de outros cultivos, um camponês relatou
283
Entrevista concedida à autora pelo sr. Milson Silva Zacarias em 15 mar. 2007.
284
A entrevista com o sr. Milson Zacarias foi realizada na presença de sua mãe e esta manifestou,
assim como o filho, orgulho por ainda possuir terras em Helvécia.
141
285
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
142
perder a sua terra, para sua terra não ser hipotecada... então ele
falou: – Hoje eu tenho eucalipto lá cem hectares, duzentos mais
novas, cem hectares mais velha. Diz ele que depois de um período
de dois anos a Aracruz paga dois por cento ao ano por hectares, aí
ele falou: – Jorge eu estou ganhando por ano trinta mil, sem fazer
nada, ganhando sem fazer nada. Só que ele é um cara que ele, ele
cria o boi dentro do eucalipto, então ele não acabou, só que ele não
mexe com a agricultura mais, então a vantagem do eucalipto é isso.
Ele mesmo e o filho dele que cuida do eucalipto, só vai ter mão-de-
obra a partir do corte. Aí como é que fica? Como é que a pessoa
sobrevive? Não tem como.286
286
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
287
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
143
288
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007 (grifo da autora).
144
289
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Ricardo Constantino em 15 ago. 2007.
290
Gertner et al (1997) e Kenny (1997). In: José Célio Silveira Andrade. Conflito, cooperação e
convenções: a dimensão político-institucional das estratégias sócio-ambientais da Aracruz Celulose
S. A. (1990-1999). Tese de doutorado em Administração, Escola de Administração, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2000, p. 67.
291
Em razão do agravamento da crise mundial, há uma onda de temor no Extremo Sul baiano, uma
vez que a Aracruz Celulose já sinalizou o rompimento dos contratos de fomento. Caso isso ocorra, os
camponeses dependentes unicamente da eucaliptocultura entrarão em ruína.
145
Por outro lado, havia, nas relações de mercado, mais do que a demanda pelo
crescimento da eucaliptocultura. O incremento da competitividade no mercado
internacional estabeleceu novos padrões de regulação, nos quais “a unidade não é
mais propriedade privada individual, mas o seu coletivo, que é o território”.292
O maior incremento a esta prática, em substituição a compras de terras, após
o reconhecimento do distrito como área remanescente de quilombo, tanto pode está
ligado ao fenômeno capitalista, de se apropriar da renda da terra sem ter sua
propriedade, como sugerir uma estratégia das empresas de se esquivarem do
enfrentamento direto com os habitantes de Helvécia que, a partir daquele momento,
passaram a ter amparo das leis no sentido de, independente de terem ou não a
titulação individual da terra, poderem continuar vivendo nas mesmas.
A respeito das relações estabelecidas na atualidade entre empresas e
comunidades, José Graziano da Silva afirma:
292
José Graziano da Silva. A globalização da agricultura. Palestra proferida no Centro Nacional de
Pesquisa de Monitoramento e Avaliação de Impacto Ambiental (CNPMA) da Embrapa. Jaguariúna,
24/4/97. Publicado em Silveira, M. e S. Vilela (eds.). Globalização e a Sustentabilidade da Agricultura.
Jaguariuna: Embrapa Meio Ambiente, 1998. p. 7.
293
Idem, p. 9.
146
James Scott faz uma crítica aos estudos sobre camponeses que valorizam
unicamente as atuações destes, quando elas implicam algum tipo de perda
significativa para o Estado ou para a ordem vigente. Por aquilo que foi apresentado
até o momento, é possível afirmar que as ações dos camponeses em Helvécia nas
suas relações com o agronegócio do eucalipto não implicaram obstáculos que
comprometessem o desenvolvimento dos projetos das empresas que ali atuam
desde 1980. Entretanto este dado não deve ser motivo de recusa em se realizar
estudos dos camponeses como sujeitos históricos que participam no processo de
construção de sua realidade, transformando-os, como também nos alerta Scott, em
meros “[...] contribuidores mais ou menos anônimos para as estatísticas sobre
densidade populacional, impostos, migração da mão-de-obra, propriedade de terras
e a produção agrícola”.295
Outra maneira de não registrar os camponeses como sujeitos históricos pode
ser encobrindo as fissuras existentes entre os seus projetos de vida e os das
empresas de eucalipto através de estudos que, ao fazer uso de análises macro,
acabam por desconsiderar os indivíduos. Seria o caso, por exemplo, de autores de
294
http://www.suzano.com.br/suzano/responsabilidade_social/balanco_social.pdf
295
James C. Scott. Formas cotidianas da resistência camponesa. Revista de Ciências Sociais e
Econômicas. Universidade Federal de Campina Grande, Programa de Pós-graduação em Sociologia,
vol. 1, n° 1, p. 11, jul./dez., 1982.
147
Um camponês de Helvécia, senhor Kemi Krull, após falar dos bons tempos e
de suas memórias sobre as festas e a fartura do comércio na localidade, rememorou
o tempo da eucaliptocultura. Falou de sua labuta na terra e das dificuldades do
tempo de agora, da “dureza do cotidiano”:298
296
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no estado da Bahia, s.l., s.ed., s.d., p. 4 (material
enviado pela Suzano Papel e Celulose, por e-mail, para a autora).
297
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 11.
298
Idem, p. 18.
148
dois sacos ou um, quer dizer, nessa parte aí caiu, muito, muito, muito
mesmo. Nem roça está existindo mais né? Acabou tudo, acabou tudo
rapaz [dirigindo-se a um senhor que estava presente durante a
entrevista], tudo, tudo, todo lado que a gente olha é só eucalipto, mas
vamos dizer que está bom né? Que serve também né? Porque
vamos dizer, se eu vender dois, três sacos de farinha, quem vai
comprar essa farinha é o povo que trabalha na firma, quer dizer que
de qualquer maneira eu estou ganhando dinheiro que a pessoa está
ganhando na firma.299
299
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
149
ativéssemos a olhar apenas esta primeira foto, poderíamos fazer uma leitura
uso.
figura 6). Uma vara de bambu, utilizada como suporte para pendurar apetrechos,
amarrada com um frouxo nó, várias cordas de embira dispostas na trave central, um
trave, um feixe de tábuas junto ao esteio central, entre outros objetos que parecem
sustentação do galpão, teriam utilidade precisa na lida com os animais, nas amarras
Helvécia. Passaríamos a ver, a partir do uso dessas lentes sensíveis, que estes
objetos podem ser representados por um sistema, com suas funções precisas e
no processo de produção da farinha, feita pelo senhor Krull e sua esposa, vale
300
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
301
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
152
vivia nos tempos da estação, nos tempos do comércio “promissor”, e que diante de
uma impossibilidade real, no presente, de transformar aquela situação, os
camponeses ajustavam suas ações às circunstâncias existentes. Scott afirma que
essas adaptações possuem um caráter pragmático, o que significa que as mesmas
não implicam a exclusão de certas formas de resistência, ao mesmo tempo em que
se adaptar “não implica um consentimento normativo daquelas realidades”.302
Continuando sua narração, o senhor Krull, alinhavou a dificuldade em
comercializar não só a partir da desativação da estrada de ferro Bahia-Minas como
também devido à inexistência de roças na região. Sua fala explicitava sua
experiência: “[...] nem roça está existindo mais né? Acabou tudo, acabou tudo
rapaz,303 tudo, tudo, todo lado que a gente olha é só eucalipto, [...]”304
É bom que se informe que o entrevistado que afirma que acabou tudo e diz
que olhando só se vê eucalipto, estava fazendo uma descrição do ambiente no qual
ele se encontrava quando da entrevista. O encontro com o senhor Kemi Krull se deu
na sua pequena e isolada propriedade, cercada pela plantação de eucalipto. A
constatação de que “acabou tudo” é indicativo da solidão em que ele se encontrava.
Acabou o contexto de pequenas propriedades que compunham a sua vizinhança. A
sua gleba de terra, pelo simples fato de ter se mantido naquele lugar, adquiriu a
condição de elemento extraordinário.
Ao mesmo tempo em que o senhor Krull é exemplo de permanência, é
também testemunha ocular das mudanças. O impacto da magnitude destas foi
sentido por ele de tal forma que a sua manifestação sobre o assunto suprime um
dado essencial, qual seja, o fato de que ele é a prova viva de que nem tudo havia
acabado.
Por outro lado, caberia uma indagação. Em certo sentido, o senhor Kemi Krull
não teria razão quando afirma que tudo acabou? Responder a esta questão implica
compreender o que é esse “tudo” por ele mencionado. Já foi indicado que ele é um
“resto”, quando antes ele era uma parte no interior de um modelo vigoroso de laços
sociais, econômicos e culturais. Portanto, a sua permanência em condição de
isolamento tal como passou a ser deve ser interpretada também como sinal de que
302
James C. Scott. Formas cotidianas da resistência camponesa, op. cit., p. 18.
303
Esclareço que no dia da entrevista com o senhor Kemi Krull, fui levada até a sua roça pelo senhor
Jorge, que, sendo de Helvécia, me apresentou e acompanhou a referida entrevista, daí em sua fala o
senhor Kemi Krull ter se referido a um “rapaz”.
304
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
153
[...] mas vamos dizer que está bom né? Que serve também né?
Porque vamos dizer, se eu vender dois, três sacos de farinha, quem
vai comprar essa farinha é o povo que trabalha na firma, quer dizer
que de qualquer maneira eu estou ganhando dinheiro que a pessoa
está ganhando na firma.305
305
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
306
Paul Zumthor. Perfomance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000, p. 19.
154
Fica calado. Filho que vem com bestagem, eu não dou. Filho, no dia
que filho de ser pai eu mudo dessa vida. Eu fui filho, eu não atentou
meu pai. Ah, que botar, aqui não bota. Bota batata, bota mamão,
bota abacaxi, bota o que for, mas, eu trabalhei quinze anos, eu
trabalhei encostado do viveiro [referia-se a um viveiro de mudas de
eucaliptos], eu não trouxe uma muda de eucalipto para o meu
lugar, eu não vou viver de pau, eu vou viver de alimento. Chega
lá tira meus coco, panho uma coisa que eu quero, mas é coisa de
alimentar, não dou não, não dou não, meus filhos plantou uma
areazinha lá, trouxe duas caixas de eucalipto, botou lá, disseram que
era para fazer cerca, mas eu não dou liberdade, eu ensinei vocês o
que presta, o que não presta vocês aprenderam [...]307
O entrevistado não cogitava a venda de suas terras, “Filho que vem com
bestagem, eu não dou”. Ele nem mesmo queria em sua gleba a presença de plantios
de mudas de eucalipto, nem para o uso da madeira como cerca. O senhor Norberto
apresentou sua terra como o seu lugar de produção de alimentos e foi enfático ao
dizer “eu não vou viver de pau”.
Havia uma indicação de que aqueles homens queriam demonstrar que
estavam vivos e eram eles que comandavam as suas vidas e garantiam a segurança
dos seus descendentes, atuando conforme ensinamentos recebidos de seus
progenitores. Essa era uma resistência saboreada como sendo um ganho, “uma
memória da resistência e da coragem que pode servir para o futuro”308.
Igual eu, tenho pouca leitura, já tenho uma experienciazinha que meu
pai sempre falava com a gente: – Olha você tem que crescer,
trabalhar para ter suas coisas, não vai na conversa de ninguém. [...]
Olha quando o meu pai morreu, eu estava com dezessete anos de
idade, graças a Deus nunca saí de cima da terra que ele deixou para
nós, até hoje estou com ela e eu estou com setenta e sete anos,
estou em cima dela. Vou lá pego meu trator, vou lá para a roça,
trabalho. Tem o meu genro, nós sempre trabalha junto, pego um
animal vou juntar o gado no campo e dessa maneira. E se não tiver
como é que vai fazer? Fica pior, meu neto chega aqui, tudo chega
307
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007 (grifos
da autora).
308
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 11.
155
aqui, fala: – Ah eu vou na roça hoje! Mas por causa de quê? Que tem
alguma coisa lá e se não tivesse? Fica difícil, fica difícil.309
309
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino.Filho em 15 ago. 2007.
310
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino.Filho em 15 ago. 2007.
311
Entrevista concedida à autora pelo sr. Servulo Constantino.Filho em 15 ago. 2007.
312
Entrevista concedida à autora pelo sr. Gabriel Cercílio Monteiro em 15 ago. 2007.
156
Quando perguntei ao senhor Gabriel se ele havia vendido muita terra para as
empresas de eucalipto, antes que ele tomasse a palavra, o senhor Sérvulo se
antepôs, respondendo: “Vendeu, ele tinha para mais de quarenta alqueires313 de
terra não era? Mas ele ainda ficou arranjado, está com dois alqueires de terra,
dentro da rua, ele estava bem, terra boa, lá na Jacutinga.”314 Ao ouvir do amigo
aquele comentário, o senhor Gabriel, com voz que indicava constrangimento, disse:
“Estando com saúde está bom, o ruim é ficar doente e morrer, não é?”315
Esse diálogo pode ser interpretado como uma espécie de acerto de contas
entre as duas posições antagônicas aqui indicadas. Inicialmente, é possível que
tenha cabido ao senhor Gabriel a posição daquele que zomba, diante da resistência
do amigo Sérvulo em não vender a sua terra, em se recusar a fazer um “excelente
negócio”. Imediatamente após a venda, o senhor Gabriel estaria cheio de razão.
Posteriormente, houve a inversão de papéis. Isto consiste no que chamei de acerto
de contas.
No que tange às semelhanças entre as experiências do senhor Krull, do
senhor Sérvulo e do senhor Norberto, é perceptível, a partir das respostas dadas,
que eles apesar das idades avançadas, continuavam atuando diretamente em suas
propriedades e desenvolvendo a prática agrícola.
A narrativa a seguir fala da variedade da produção agrícola, mas está
centrada no tempo presente, no tempo da eucaliptocultura:
313
Na Bahia o alqueire corresponde a 19.36 hectares.
314
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
315
Entrevista concedida à autora pelo sr. Gabriel Cercílio Monteiro em 15 ago. 2007
316
Entrevista concedida à autora pelo sr. Kemi Krull em 15 ago. 2007.
157
317
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
318
Pergunta feita pela pesquisadora no decorrer da entrevista com o sr. Manoel Norberto Henrique de
Sena em 14 out. 2007.
319
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007 (grifos
da autora).
158
A caneta, a qual o entrevistado se referia, era sua enxada. Curiosa alusão ele
fizera, ao ser entrevistado por alguém da universidade, a respeito do orgulho que
tinha de sua caneta, com a qual ele limpava, revirava a terra, abria sulcos, preparava
a terra para acolher as mudas de abacaxi, as raízes de maniva. Sua “caneta” dizia
de si, daquilo que o senhor Norberto era e fazia, tanto que, após a entrevista, que
ocorreu em Helvécia, fui levá-lo em sua propriedade e, ao chegar à sua casa, ele
abriu a porta, pegou a enxada, que estava atrás da porta, e me apresentou com
orgulho a “sua caneta” (cf. figura 10).
320
José de Souza Martins. Sociologia da fotografia. São Paulo: Contexto, 2008.
159
para lavar os pratos, e nos falava também da ausência de água encanada. Outra
ausência aparece nesta imagem, não havia lâmpadas, a energia elétrica não havia
chegado àquela pequena propriedade. A existência de uma única cadeira dizia da
ausência de outros integrantes da família do senhor Norberto, da solidão daquele
camponês nos momentos de refeição, de oração. O espaço central daquela casa
nos fazia ver a importância do sagrado, do divino, na vida de seu dono. Na parede
várias imagens de santos, na mesa, coberta por uma toalha branca, um oratório
rústico com duas imagens de santos, além de símbolos cristãos como uma cruz. Um
copo com água, tampado com um pires, logo à frente do oratório, talvez sugerisse a
presença concomitante de outros símbolos, outras crenças. A força do divino estava
presente no cotidiano daquele camponês, assim como havia aparecido nas falas do
senhor Krull e do senhor Sérvulo. Do outro lado da mesa um filtro de barro e sobre
ele um copo. Li essa organização como sendo as fontes de alimentação daquele
homem. Naquela mesma parede, lado a lado, havia o lugar da comida, das suas
crenças, e da água.
Alguns instrumentos de trabalho, como a enxada e uma bota apropriada para
a lida no campo (cf. figura 11), estavam dispostos atrás da porta, que era a fronteira
com a terra, com a labuta.
Figura 11 – Instrumentos de trabalho de um camponês, outubro 2007
321
Entrevista concedida à autora pelo sr. Manoel Norberto Henrique de Sena em 14 out. 2007.
322
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 24.
161
[...] Hoje em dia se vê o... É, é até feio a gente falar. Hoje o pessoal...
saindo assim de noite, pegando esses eucalipto, por causa de quê?
Por causa do eucalipto. Se não fosse os eucalipto. [...] Hoje os
quintal tudo cheio de forno aí vira essa fumaceira. Essa fumaça tá
fazendo o quê? Causando o quê? Uma doença. Dentro do Comércio,
cheio de fumaça, né? De calvão. Por causa de quê? Por causa do
eucalipto.326
323
Edward P. Thompson. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 23.
324
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Conceição, dona Cocota, em 14 out. 2007.
325
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Conceição, dona Cocota, em 14 out. 2007.
326
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria de Jesus Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
162
327
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
163
O que seria feio até de falar, segundo a senhora Maria de Jesus, não estaria
associado àquele vestígio que o senhor Jorge deixou entrevisto ao dizer “Agora sou
contra o camarada entrar lá na área deles, [...]”?
Percebi, nas atividades de campo, que o facho passou a constituir, nas
franjas da eucaliptocultura, um elemento importante no desenvolvimento de uma
outra atividade econômica, o fabrico do carvão, que estava sendo realizada, não
sem obstáculos, por integrantes da comunidade. Como esta atividade, que havia
mudado a paisagem dos quintais das casas de Helvécia, se imbricava no cotidiano
daquele lugar? Quem eram essas pessoas que produziam carvão? Elas obedeciam
às regras, “Então, se deu pega, agora se não deu, não pega”, de aquisição do
facho? Como eram tecidas as relações entre os representantes das empresas
produtoras de eucalipto e a comunidade quando o assunto era a apropriação do
facho?
O senhor Jorge comentou a este respeito:
Quando corta na área [em que a madeira já havia sido retirada pelas
empresas] pega sem problemas. Anteriormente, antes estava
sendo... eles estava mandando, quando topava um trator com facho
eles mandava descarregar. O pessoal da Visel que toma conta da
área mandava descarregar, mas depois que houve esse conflito em
Juerana, aí foi liberado.328
328
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
329
Edward P. Thompson. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
164
retirada do facho foi reprimida pelas empresas, “quando topava um trator com facho,
eles mandava descarregar”, e tal repressão, no vizinho distrito de Juerana, incitou a
população a reivindicar o seu direito, nos moldes que atendessem aos anseios de
continuarem produzindo carvão.
Ainda segundo o entrevistado, o conflito ocorrido em Juerana produziu a
liberação da retirada do facho também em Helvécia. Isto sugere que aquele não
havia sido um conflito delimitado somente ao distrito de Juerana, se assim o fosse,
porque as empresas teriam agido daquela maneira? Teriam elas ciência de que,
também em Helvécia, a retirada do facho era uma arena de tensões, de conflitos
velados, desenvolvidos em ações sorrateiras durante a noite? A suposta liberação
não seria uma tentativa de amenizar essas tensões, com o intuito de evitar outra
“grande reivindicação”?
Essa suposta liberação do facho nos faz lembrar Scott,330 quando ele fala
sobre a possibilidade de os camponeses, mesmo em revoltas fracassadas, obterem
pequenos ganhos. Através, por exemplo, de breves pausas feitas pelas empresas
em relação às novas regras por elas impostas.
A senhora Maria Sérvulo Henriqueta nos disse algo mais desta composição
entre aquilo que era liberado, pelas empresas, e aquilo que era tomado, por
membros da comunidade:
esta liberação era vedada, ocorrendo, pois, a retirada do mesmo sem a autorização,
de forma sorrateira, “[...] o povo pegando madeira escondido”. Havia, ainda, uma
terceira possibilidade, em que integrantes da comunidade entravam sem autorização
nos plantios de eucalipto e retiravam dali, não o facho, mas sim a madeira que ainda
não havia sido cortada pelas empresas, “Agora sou contra o camarada entrar lá na
área deles, que eles plantam, vai lá e corta, porque teve custo ali332”.
Havia ainda um outro mecanismo, usado para transformar o eucalipto em
facho. Colocar fogo nos eucaliptais. A comunidade sabia que a madeira afetada
pelas chamas não mais serviria para as empresas, e era ideal para ser transformada
em carvão.
Normalmente este tipo de ação acontecia em áreas de plantio de eucalipto
que pertenciam às firmas.
Nas atividades de campo, fiquei intrigada com a existência de muitas áreas
em que havia o plantio de eucalipto sem nenhuma cerca delimitando a plantação, e
normalmente eram áreas enormes. Também observei a existência de plantios que
estavam cercados, em áreas com medidas variadas. O senhor Jorge me explicou
que a existência ou não das cercas dizia da propriedade da terra. Terras cercadas
pertenciam a particulares que plantavam eucalipto através do sistema de fomento ou
ainda de forma autônoma. As plantações sem cerca pertenciam às empresas,
Aracruz ou Suzano. Com base nesta informação, deduzo que a retirada dos fachos,
quando não autorizada, devesse ocorrer com mais freqüência nas áreas não
cercadas, uma vez que a existência de cercas dificultaria, um pouco mais, o
desenvolvimento daquele tipo de atitude.
Além disso, este tipo de atitude talvez sugerisse uma prática alicerçada na
sensação de que roubar o grande, empresas de eucalipto, fosse visto com
complacência; já roubar o fraco, pequenos proprietários, fosse visto com reprovação.
Não tenho conhecimento da existência de registros a respeito da quantidade
de facho retirada por integrantes da comunidade das plantações de eucalipto
pertencentes às empresas, Aracruz e Suzano. Acredito que eles não existam. Talvez
a falta de dados possa ser explicada em razão de esta ação ser praticada quase
sempre na calada da noite, por vezes de forma individualizada e sempre sem que
332
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
166
Se pegar vai para a cadeia, se pegar vai para a cadeia, como já foi,
vai para a cadeia entendeu? O povo apanha de teimoso. Quando
eles liberam, né? Menos mal, mas quando não libera, eles pega e
bota na cadeia. [...] Já foi gente, umas pessoas que já pagou cinco
mil, né? Como aí menino... já foi preso, um magrinho.334
333
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
334
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
168
Teve que pagar com os bens que na verdade nem foram adquiridos
com essa atividade de carvão, que muita gente já tinha tratores, teve
sua moto, então antes né? Teve essas coisas às vezes trabalhando
na terra, antes de mexer com carvão e aí, quando veio essa
atividade de trabalhar com carvão, nessa ilusão de que carvão
estava dando dinheiro, né? Muita gente parou de trabalhar na terra e
foi trabalhar com carvão e aí veio a Caema, né? Eles pegavam a
madeira à noite, pegava o pessoal aí roubando madeira, que na
verdade estava roubando, né? Pegando escondido, pegando
madeira escondido e aí prendia, leva o trator lá, apreendia o trator,
moto... e para tirar era a maior dificuldade. Tem gente que está lá
com trator até hoje enferrujando no pátio da Aracruz, mas não
consegue tirar. Quer dizer, para soltar, para sair da cadeia era cinco
mil reais, seis e, para pegar os trator esses trem eles não devolvem
não, quem não tem esse dinheiro vai tirar de onde? Só se vender as
terras, né?335
335
Entrevista concedida à autora pela sra. Maria Sérvulo Henriqueta em 15 ago. 2007.
336
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
169
337
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
338
Queimadas criminosas já destruíram mais de 30 mil m3 de eucalipto da Suzano e Aracruz
Celulose. Caema, Caerc e PC empenhadas no combate aos incendiários. Alerta, ano 21, número
831, 7 a 11 nov. de 2007, p. 7 (jornal semanal fundado em 1 de julho de 1987, circulação nas
principais cidades do Extremo Sul).
170
[...] Velhas, as casas velhas aqui. [...] Fala em botar uma polícia aqui!
Fala em botar uma polícia aqui! Todo mundo briga prá tirar, por que...
prá poder ficar... sabe, aqui, eles quer viver esse lugar aqui como se
fosse, vou falar português claro ... igual verme, só tá vivo quando tá
no produto... Eles quer que Helvécia seja isso. Helvécia não pode
crescer. Eles briga pra não chegar ninguém aqui trazendo nada prá
melhorar isso. Eles quer que isso fica ... não sei... pior que o tempo
dos escravos [...]341
339
Entrevista concedida à autora pela sra. Cecília Joseph Bastos em 15 ago. 2007 (grifos da autora).
340
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no estado da Bahia, op. cit.
341
Entrevista concedida à autora pela sra. Cecília Joseph Bastos em 15 ago. 2007.
171
[...] a maioria não tem nada mesmo, está queimando esse carvão
para sobreviver. Porque pai, não tem, porque vendeu as terras. E
muita gente, às vezes a pessoa que tem [terra], às vezes com o sol
desse desanima, não dá para plantar nada, a pessoa joga a semente
debaixo da terra e não tira nada, é prejuízo. Aí a pessoa ver esse
negócio de carvão, parte para o carvão é aí que na hora o bicho
pega para o lado deles, porque parte para o carvão, [...] achando
que vai dar dinheiro e como às vezes dá, quando a Aracruz libera,
libera o facho. Liberava, que hoje também não libera, quando chega
liberar não dá nada, acho que é aí que eles partem para pegar
madeira e dá esse problema todo.342
Produzir carvão funcionava também como uma alternativa para quem estava
sem terra e sem emprego, vivia em um distrito no qual as opções de trabalho eram
reduzidas e, muitas vezes, exigia estudos e qualificações não disponibilizadas pelo
poder público para os membros da comunidade, como era o caso em Helvécia.
É isso mesmo. Que tem muita gente que não tem estudo, né? Agora
mesmo aqui, quantas pessoas saíram da prefeitura, daqueles que
estavam trabalhando, quantos eram... saíram umas oito pessoas,
estava vinte e tantos anos trabalhando na prefeitura. Os vereadores
não correm atrás de nada para ajudar esse povo.343
342
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
343
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
172
Celulose. Caema, Caerc e PC empenhadas no combate aos incendiários. Alerta, ano 21, número
831, 7 a 11 nov. de 2007, p. 7 (jornal semanal fundado em 1 de julho de 1987, circulação nas
principais cidades do Extremo Sul).
173
por empresas de carvão, por ladrões ou por grupos criminosos organizados. Não se
levanta a possibilidade de que esse tipo de ação também esteja sendo desenvolvido
por pessoas que, longe de estarem ganhando milhões, tiveram suas vidas alteradas
pela prática monocultura do plantio de eucalipto e, tendo sido, posteriormente,
alijadas do processo de produção da eucaliptocultura, manifestem sua insatisfação,
ao mesmo tempo em que desenvolvem atividades econômicas alternativas em
busca da garantia de sua sobrevivência.
Essas ausências e a não existência de dados quantitativos a respeito da
retirada, não autorizada, do facho em Helvécia, não apagam o que está sendo feito
por alguns membros da comunidade. Mesmo que suas investidas na calada da
noite, de forma individualizada, sem armamentos, não ganhem as manchetes de
jornal, suas ações reverberam no cotidiano daquele lugar.
Este modo de resistência não é insignificante, havendo inclusive uma
associação entre as empresas de eucalipto e instituições ligadas ao Estado, no caso
a Caema, para proteger as empresas produtoras de eucalipto.
Outro indício da relevância desta forma de resistência aparece no fato de que
a produção de carvão no distrito de Helvécia esteja sendo coibida: “[...] agora
mesmo aí já não está entrando caminhão aqui para pegar carvão, o que aconteceu,
não está entrando e aqui o povo está tudo com o carvão queimado para vender pra
quem? Está parado aí passando necessidade.”345
Quando indaguei porque o caminhão não estava mais entrando em Helvécia
para comprar o carvão produzido pela comunidade local, o senhor Sérvulo titubeia,
para logo dizer: “Não sei o que aconteceu..., uns falam que a fábrica está muito...
está fazendo limpeza.” Em seguida, deixa de ser lacônico e informa:
Essa noite eu ouvi falar que é a firma que está travando, já para
poder o povo parar. Vão baixar até trinta reais para poder o povo
parar de tirar o carvão, e a pessoa vai viver de quê? Roubar vai
roubar. Só o povo mesmo que está botando o pobre para a rua para
roubar.346
345
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007.
346
Entrevista concedida à autora pelo sr. Sérvulo Constantino Filho em 15 ago. 2007 (grifos da
autora).
347
James C. Scott. “Formas cotidianas da resistência camponesa”, op. cit., p. 23.
174
348
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
349
Kobena Mercer apud Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit., p. 9.
175
350
Sra. Roseli Ricardo Constantino em Depoimento n. 1595/05, de 18/10/2005, na Comissão de
Meio Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – Detaq.
176
remanescente quilombola, [que] está se perdendo a cada dia”, passou a ser o único
caminho: “Estamos então tentando resgatar a nossa cultura, a nossa história.”
Ao identificar a comunidade de Helvécia como uma cultura quilombola
associando o crescimento do distrito a ações agregadas ao “resgate” cultural e
histórico, a senhora Roseli Constantino, talvez, estivesse dando uma pista de como
se processara a construção de uma estratégia de preservação da identidade e da
memória coletiva daquele lugar.
Compreendendo-se a identidade como definida historicamente, isto é,
construída ao longo do tempo,351 e com espaços para fissuras e discordâncias,
havia/há em Helvécia, apesar do reconhecimento oficial como área remanescente
quilombola, o que poderia indicar uma pretensa unidade, outras identidades, outros
sentimentos de pertença que não necessariamente atendem ao modelo esperado
como típico ou tradicional de uma comunidade quilombola, segundo, por exemplo,
as expectativas dos poderes públicos e de alguns integrantes dos espaços
acadêmicos.
Neste construir, houve espaço para diferentes processos identitários, o que
significa dizer que o ser quilombola em Helvécia foi/é lido por alguns de seus
membros como uma fantasia, uma inverdade, enquanto que para outros ser de
Helvécia se traduz no fato, para eles vivido e, portanto, inquestionável, de ser
quilombola.
Além dessa possibilidade de diferentes processos identitários defendidos por
distintos sujeitos históricos, Hall nos convida a perceber a complexidade desta
fluidez identitária quando afirma que “o sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente”.352 Com esta afirmação, o autor desloca a existência de uma diversidade
identitária para um sujeito particular, tendo este a possibilidade de se reconhecer
como pertencente a várias identidades, sem que exista a necessidade de uma liga,
uma concordância entre elas. Assim, um sujeito, no seu fazer-se, pode assumir para
si identidades diversas e inclusive contraditórias.
351
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade, op. cit..
352
Idem, p. 13.
177
353
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 15 ago. 2007.
178
gente”. Ainda segundo ela, foi também a partir do convívio com um pesquisador 354
do Rio de Janeiro que Helvécia foi apresentada a integrantes do distrito, como tendo
“todas as características de uma comunidade de quilombo”. Diante desta
constatação, feita por alguém de fora, e da provocação no sentido de que a
comunidade de Helvécia pedisse o reconhecimento através da Fundação Cultural
Palmares, deu-se início ao processo que resultou no efetivo reconhecimento de
Helvécia como área remanescente de quilombo.
Em relação aos trâmites legais355 para que se desse este reconhecimento, o
primeiro documento, ao qual tive acesso, data de 21 de setembro de 2000, quando
foi encaminhado a então presidente da Fundação Cultural Palmares, senhora Dulce
Maria Pereira, a seguinte solicitação, assinada pelo procurador da República Márcio
Andrade Torres:
354
A partir de dados coletados em outras entrevistas, pode-se afirmar que a sra. Regina Constantino
referia-se ao antropólogo Tomas Martin Ossowicki, que desenvolveu, em Helvécia, suas pesquisas
de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
355
Solicitei à Fundação Cultural Palmares o acesso ao material sobre o processo de reconhecimento
de Helvécia como área remanescente quilombola e recebi uma cópia impressa dos diversos
documentos que constam deste processo.
356
Ministério Público Federal, Procuradoria da República Ilhéus – Bahia. OF./PRM/IOS/BA nº
702/2000, Ilhéus, 21 de setembro de 2000. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da
Comunidade Negra Rural de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 04.
179
[...] acho que foi em dois mil e dois, nós tivemos aqui um
acontecimento muito bom, aconteceu aí o quinto encontro do da
Semana Zumbi e aí nós estávamos assim ligados com as pessoas
de várias localidades, da rede de vários lugares, de Comuruxatiba,
de Caravelas, de Eunápolis e vários lugares, que foge da mente e aí
a gente passava para eles, conversava e depois eles viam para cá
mesmo, procuravam conversar com a gente, nós passávamos para
360
eles sobre esses conflitos, o que nós estávamos vivendo...
357
Fundação Cultural Palmares, ofício nº 1104/2000 – PRES/GAB/FCP/MinC, Brasília, 11 de outubro
de 2000. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fl.05.
358
Fundação Cultural Palmares, Coordenação Nacional de Comunidades Remanescentes de
Quilombos, memorando nº 90/2000, 10 de novembro de 2000. In: Fundação Cultural Palmares,
Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 02
359
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
360
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
180
361
Rede Alerta Contra o Deserto Verde. Fomento Zero – por que dizer não ao plantio de eucalipto?
Publicação FASE, Espírito Santo, 2003, p. 21.
362
Pedido de reconhecimento como comunidade remanescente quilombola, Helvécia, 23 de outubro
de 2004. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fls. 09 e 10.
181
363
José Maurício Andion Arruti. As comunidades negras rurais e suas terras: a disputa em torno de
conceitos e números. Dimensões – Revista de História da Ufes. Vitória: Universidade Federal do
Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, nº 14, 2002.
364
Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em 5 de outubro
de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2002, p.159.
365
José Maurício Andion Arruti. As comunidades negras rurais e suas terras: a disputa em torno de
conceitos e números, op. cit., p. 246.
366
Idem, p. 248.
367
Idem, p. 248.
182
368
Ata da Associação Quilombola de Helvécia fl. 3, Helvécia – Bahia.
369
Ata da Associação Quilombola de Helvécia fl. 3, Helvécia – Bahia.
370
Conforme dados constitutivos do Depoimento n. 1595/05, de 18/10/2005, na Comissão de Meio
Ambiente Sustentável da Câmara dos Deputados – DETAQ.
183
Helvécia se relacionaram com as novas experiências que eles tiveram, inclusive com
o conhecimento do teor do artigo. Arruti, em estudos sobre o processo de
reconhecimento de outras áreas quilombolas, alerta para a importância de se
compreender que
371
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola.
Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 41.
372
Eliane Cantarino O’Dwyer. “Remanescentes de quilombo” na fronteira amazônica: a etnicidade
como instrumento de luta pela terra. In: Clóvis Moura (Org.). Os quilombos na dinâmica social do
Brasil. Maceió : EDUFAL, 2001, p. 305.
184
liberdade de ir e vir em busca do nosso próprio sustento. [...] Somos impedidos, [...]
de caçar, pescar e tirar lenha nas nossas próprias terras.373”
Ainda a respeito da importância do Estado, Arruti alerta para o risco de se
supervalorizar o seu papel neste processo de territorialização: “[...] desconsiderando
que as coletividades organizadas antecedem a tal objetivação e podem ser as
propositoras de uma auto-objetivação,”374 ou seja, as transformações relacionadas
ao processo de territorialização como, por exemplo, aquelas relativas à identidade, à
unificação política e à adaptação cultural podem ter antecedido a territorialização
feita pelo Estado. Para Arruti, ainda que o Estado seja a figura central neste
procedimento de territorialização, na medida em que é o Estado que certifica, ou
não, uma área como sendo remanescente de quilombo, ele não deve ser visto como
o único agente importante neste processo de reconhecimento. Integrantes da
comunidade de Helvécia se organizaram na construção de sua identidade
quilombola.
Partindo do pressuposto de que a identidade é relacional,375 os homens e as
mulheres de Helvécia se sabiam pertencentes àquela comunidade no momento em
que, nas suas relações cotidianas, vivenciavam situações em que ficava visível, a
partir do contato com o outro, as semelhanças que poderiam sugerir a idéia de
pertencimento, reconhecimento de si. Da mesma forma, também nas relações com
os outros é que foram observadas e identificadas as diferenças e a idéia de não-
pertencimento, não-reconhecimento de si em determinadas atitudes, jeitos. Sendo a
construção identitária relacional, ela se dá na observação, no diálogo e no convívio,
nem sempre tranqüilo, com o outro.
Assim os habitantes de Helvécia viram chegar ao seu lugar novos sotaques,
vindos de outras regiões do Brasil, pessoas acostumadas com outro ritmo de
trabalho, marcado pelo horário das firmas e não pelo ritmo da natureza. Pessoas
que desconheciam o significado religioso dos ofícios em Helvécia, não sabiam do
costume de soltar fogos para avisar/comemorar o nascimento de uma criança, o
373
Pedido de reconhecimento como comunidade remanescente quilombola, Helvécia, 23 de outubro
de 2004. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fls. 09 e 10.
374
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola, op.
cit., p. 42.
375
Raymond Ledrut apud Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-
racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, p. 40.
185
376
Informações dadas à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 13 ago. 2007.
377
José de Souza Martins. A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1991.
378
Erik Erikson apud Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-
racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, p. 41
186
379
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 15 ago. 2007.
380
Na época em que realizei as entrevistas, alguns dos membros da AQH eram pessoas que
atuavam como professoras(es) na escola João Martins Peixoto.
187
para que a gente tenha, digamos, aliados né? Nessa luta aí por uma Helvécia
diferente né?”381
Assim, por mais que as condições internas, expressas na fala da entrevistada
– valorização da história local, transformações engendradas pela monocultura do
eucalipto, desilusões quanto às expectativas de emprego e ascensão social –
tenham se somado a circunstâncias externas – aprovação do Artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias na Constituição de 1988, criação do
programa Brasil Quilombola pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, aprovação da Lei 10.639/2003 –, alinhavadas de forma a “reforçar
uma consciência de identidade”,382 esta situação não impediu que membros daquela
comunidade se posicionassem de forma contrária ao processo de reconhecimento.
Comunicado da AQH:
HELVÉCIA AGORA É QUILOMBO!!!
O Governo Federal reconheceu
HELVÉCIA
Como
Comunidade Remanescente de Quilombo
no dia 6 de abril de 2005384.
381
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 15 ago. 2007.
382
Erik Erikson apud Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-
racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, p. 41.
383
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 35
384
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 37.
188
Ave Maria, foi uma revolta para aqueles que acham que ia ser
poderoso em Helvécia, uma meia dúzia, que Helvécia ia ser mudada,
que Helvécia quem tinha suas casas não podia vender. Chegou
pessoas, sei lá, pessoas da nossa cor, [o entrevistado referia-se a
ser negro] pessoas do nosso nível [provavelmente referia-se à
condição de pequeno proprietário de terra] sair fazendo abaixo-
assinado aí dentro de Helvécia, falando que se Helvécia fosse
quilombola não ia ter escola, não ia ter energia, que ia cortar isso
tudo, para as pessoas assinar, quem tinha suas casas não poderia
vender, se você fosse vender sua terra você tinha que vender para
um que era da comunidade não podia vender para outra pessoa que
era de Posto da Mata, se você fosse embora tinha que largar sua
casa aí. Mas falou tanta coisa...385
A reação ao “comunicado” deixou ver que aquele não era um projeto de toda
a comunidade. Além disso, dúvidas em relação àquilo que aconteceria com a
propriedade da terra e os direitos individuais sobre as mesmas foram levantadas por
“uma meia dúzia” de pessoas, “aqueles que acham que iam ser poderoso em
Helvécia”. Este grupo, segundo a fala de outros entrevistados, não era assim tão
pequeno, e se organizou através da confecção de um abaixo-assinado com o intuito
de negar aquilo que lhes havia sido comunicado. Eles não se reconheciam como
remanescentes de quilombo, mas, por outro lado, se sabiam pertencentes à
Helvécia. Aquele foi um tempo de tensão.
Hoje a nossa Associação, ela está mais ou menos com umas doze
pessoas, por aí, pode ter mais algumas, mas aparece de vez em
quando, logo quando surgiu a Associação ela tinha um número muito
bom de pessoas, mas a opressão ela foi tanta da população e os
falatórios eram tantos e nem todo mundo tem esse sangue guerreiro,
né? De lutar até o fim, de ir até o fim, [...] então a maioria por medo
afastou, [...] o inicio foi doloroso demais, foi muito doloroso, nós
éramos apontados na rua, né? Como pessoas que vai roubar terra
dos outros, [...], teve pessoas que chegou até dizer que muitas de
nós, ia acontecer com nós o que aconteceu com Chico Mendes,
então era um sofrimento muito grande para as nossas famílias, para
nossos filhos [...]386
385
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
386
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
189
387
Entrevista concedida à autora pela sra. Jilsimere Joaquim Santos e Silva em 14 ago. 2007.
190
Alguns elementos deste texto deixam claro que a AQH tinha conhecimento
dos descontentamentos que ele provocaria. Havia neste panfleto uma apresentação
sucinta daquilo que tinha sido decidido no campo jurídico, através da elaboração do
Artigo 68. Tal decisão foi apresentada como uma conquista, e a população de
Helvécia teria “o direito e a chance de usufruir da Lei Federal”. A questão da terra
apareceu em negrito, ocupando, no papel, lugar de destaque, o mesmo que assumiu
nas conversas, nos burburinhos, nos debates e nos embates feitos nas vendas do
distrito, na igreja, na AQH. O texto dizia da não-exclusão, mas não foi suficiente para
acalmar os ânimos e garantir a tranqüilidade aos moradores de Helvécia. As dúvidas
ganharam as ruas, as casas, os espaços de sociabilidade.
A senhora Roseli Constantino, líder da AQH, a respeito da relação entre a
comunidade e a associação que assinou o panfleto, comentou:
388
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 37.
191
389
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
390
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007
391
Panfleto da AQH. In: Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural
de Helvécia, Nova Viçosa/BA, fl. 37.
192
392
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
393
Maria de Fátima Araújo Di Gregorio. Memória Coletiva: estratégias de preservação da identidade
cultural dos imigrantes italianos em Itiruçu – BA, 1950-2000. Salvador: EDUNEB, 2003.
193
394
Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 8 ed. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.
395
Stuart Hall. Da Diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, ed. UFMG, 2003, p.
233.
194
Helvécia foram folclorizadas396 por este grupo. Segundo Selim Abou, citado por
Jacques d’Adesky, um dos caminhos trilhados pela história oficial, para
homogeneizar e enfraquecer o sentimento de identidade de um grupo, consiste
exatamente em uma ação que “[...] tenta folclorizar sutilmente as heranças culturais
dos grupos étnicos dominados, enfraquecendo seu sentimento de identidade e seu
poder de contestação”.397
Essa espetacularização do outro pelos canais oficiais pode ser aqui ilustrada
através das informações que o guia de turismo do município de Nova Viçosa398 traz
a respeito de Helvécia.
Neste documento, Helvécia é descrita como se fora um patrimônio histórico
pronto para ser degustado por turistas que quisessem conhecer elementos típicos
do Brasil colonial bem como provar das maravilhas do exotismo daquela cultura
negra, traduzido, entre outras coisas, numa dança associada ainda ao tempo do
cativeiro, denominada de bate-barriga.399
Parte da população de Helvécia, ao ter, nas suas relações com o outro, o
diferente, percebido que estava sendo preterida e desqualificada, seja através dos
sinais econômicos e/ou de status social, fez uso de um discurso juridicamente
reconhecido400 no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,401
para fazer valer suas reivindicações coletivas, associando à questão da identidade
quilombola a possibilidade de garantia da propriedade das terras bem como daquilo
que estaria associado a esta propriedade e que dizia respeito a práticas do seu
cotidiano.
Foi naquele contexto de transformações originadas “pela intervenção de
forças externas e da configuração de um novo campo de relações de poder e
396
A expressão “folclorizada” está sendo utilizada aqui no sentido de espetacularização, em que
práticas culturais existentes em Helvécia foram lidas por pessoas que não são daquele lugar como se
fossem espetáculos, apresentações.
397
Jacques D’Adesky. Pluralismo étnico e multi-culturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil, op.
cit., p. 42.
398
Publicado pela Secretaria de Turismo e Meio Ambiente da Prefeitura de Nova Viçosa no ano 2000.
399
Guia de turismo do município de Nova Viçosa, Secretaria de Turismo e Meio Ambiente da
Prefeitura, 2000.
400
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola, op.
cit.
401
Constituição da República Federativa do Brasil, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002, p.159.
195
402
Eliane Cantarino O’Dwyer. “Remanescentes de quilombo” na fronteira amazônica: a etnicidade
como instrumento de luta pela terra. In: Clóvis Moura (Org.) Os quilombos na dinâmica social do
Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001, p. 301.
196
[...] ameaças nós tivemos por conta disso, mas a gente tem um ano
já que se deu e eu vejo que hoje já está havendo uma abertura,
porque a gente está levando a informação, até a gente deu uma
recuada que no inicio estava bem tenso mesmo ameaças, nós
sofremos e hoje a gente vê que a Comunidade ela quer benefícios,
né? E ela percebeu que através da Associação, Helvécia pode
melhorar, até na televisão mesmo eles têm escutado pessoas que
vêm de outras comunidades, de outros lugares e falam que é uma
coisa boa, então a gente já vê essa abertura por parte de muita gente
em está aderindo, né? A Associação, mas ainda há uma resistência
por parte de muitos, não só aquelas pessoas que possui terras, mas
pessoas que não têm nem onde morar também, mas que não aceita
ser Quilombola e eu acredito que isso é falta de conhecimento
mesmo, né? Então estamos tentando trabalhar nesse sentido de
fazer um trabalho mesmo de formiguinha, de estar sentando com as
pessoas e explicando o que é, a gente tem um material aqui até
riquíssimo, a gente tem levado, mostrado para as pessoas para estar
lendo, para se informar melhor sobre a Associação.407
Esse reconhecimento para nós é importante por isso, que nós vamos
estar trabalhando com essa nova geração, a importância de você ser
406
Jacques D’Adesky, op. cit., p. 41.
407
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
198
408
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007
409
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola, op.
cit, p. 82.
410
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
199
411
Entrevista concedida à autora pela sra. Jilsimere Joaquim Santos e Silva em 14 ago. 2007.
200
A vistosa placa (cf fotografia 12) não encobre a realidade cotidiana dos jovens
de Helvécia, que após concluírem a oitava série413 ou param de estudar ou, para
terem acesso à escola de 2º grau, acordam às cinco horas da manhã e percorrem
aproximadamente 24 km até o distrito de Posto da Mata, muitas vezes em ônibus
com condições precárias de segurança.
Ressalto o ano de realização da reforma feita na escola João Martins Peixoto,
2007, posterior ao reconhecimento do distrito de Helvécia como área remanescente
de quilombo, ocorrido em 2005. O questionamento que estou propondo é o seguinte:
porque a Suzano Papel e Celulose, instalada em Helvécia desde os anos 80, que
tem como meta “[...] incentivar programas voltados para o desenvolvimento regional
e a incentivar e promover ações, com ênfase nas áreas de educação [...],”414 iniciou
a reforma da única escola existente no distrito de Helvécia apenas no ano de 2007?
Haveria contribuído para isso a existência de algum novo elemento na composição
de forças estabelecida entre a comunidade de Helvécia e a empresa? A comunidade
de Helvécia teria contribuído de que forma para que se desse o estabelecimento
412
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
413
Série que equivale ao nono ano.
414
http://www.suzano.com.br/suzano/responsabilidade_social/balanco_social.pdf
201
415
Jorge Emanuel Reis Cajazeiras, José Carlos Barbieri e Dirceu da Silva. Estudo da sustentabilidade
regional da produção industrial de eucalipto no estado da Bahia, op. cit., p. 8 (material enviado pela
Suzano Papel e Celulose, por e-mail, para a autora).
416
Idem.
202
para a área da saúde, onde vai ser construído um novo posto e esse
que existe vai ficar funcionando como a creche.417
É provável que este novo posto esteja sendo pensado de forma a ser melhor
equipado e possa contar com mais profissionais da saúde. Ressalto a menção feita
à necessidade e possibilidade de criação de uma creche no distrito, e entendo que
ela indica uma nova dinâmica de trabalho, diferente daquela realizada nas roças,
nas quais as crianças acompanhavam seus pais na labuta da terra.
No trabalho de campo, uma entrevistada falou do seu sentimento de
estranheza em relação à maneira como as empresas de eucalipto passaram a lidar
com a comunidade após o reconhecimento desta como área remanescente de
quilombo. Ela se referiu de forma específica à Aracruz Celulose:
417
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Ricardo Constantino em 15 ago. 2007.
418
Entrevista concedida à autora pela sra. Gilsineth Joaquim Santos em 15 ago. 2007.
203
Não, não aqui em Helvécia. Eu, por exemplo, não perco aqui nessa
região. Não perco em lugar nenhum, porque mesmo com o eucalipto
204
você sabe mais ou menos a área que você está e quem mora aqui
não perde no eucalipto não, e crianças também no eucalipto não tem
caso nenhum de perdimento de ninguém no eucalipto perdido não.
Aqui, aquele que é daqui que vai embora, quando volta que... essa
área, aí sim pode perder, se ele não for com alguém que conhece...
igual mesmo, aqui tem uma estrada que vai para Nova Viçosa, você
entra aqui por dentro e vai sair lá em Nova Viçosa , na estrada do
boi, eu perdi um dia, porque eu cheguei passei o eucalipto
estava grande quando eu cheguei a área estava toda cortada e
estrada tudo do mesmo jeito, falei – Agora, como é que eu vou
fazer? De noite, estava vindo de Nova Viçosa, estava eu e os
meninos todos no carro. Aí eu parei, parei e olhei desci e falei, – Não,
estou perdido. Voltei cheguei no lugar e falei – É aqui. ...falou, – Ah,
você vai dormir no eucalipto. Falei – Não, pode ficar tranqüilo, não
vou dormir no eucalipto não. Essas áreas todinha aí já trabalhei,
puxando madeira e já vi como é que é o esquema né?
Pesquisadora – Se você que conhece tanto...
Senhor Jorge Ferreira – Perdi. E quem não conhece não adianta
nem entrar, que se entrar fica perdido se não tiver alguém que
conhece, agora as pessoas daqui não têm dificuldade nenhuma
quase para falar que vai perder não, a não ser aquele que sai, fica
um tempo fora e depois volta419
419
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007 (grifos da autora).
420
Alessandro Portelli. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo (14): 31, fev.
1997.
421
Raymond Williams. O campo e a cidade – na história e na literatura. Trad. Paulo Henriques Britto.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
205
422
Entrevista concedida à autora pelo sr. Jorge Ferreira da Silva em 14 ago. 2007.
423
João José Reis, Eduardo Silva. Negociação e conflito – a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 7.
206
424
Pedido de reconhecimento como comunidade remanescente quilombola, Helvécia, 23 de outubro
de 2004. In; Fundação Cultural Palmares, Reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia,
Nova Viçosa/BA, fl. 10.
425
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007 (grifos da
autora).
207
Olha com a Suzano a gente não tem muito contato, mas desde que
nós pedimos o reconhecimento a Aracruz já nos procurou, dias após
a minha ida à Brasília, ...começou as ligações, a ligar lá para casa,
querer dialogar. Mais de vinte anos de empresa na região, eles
nunca vieram, essa vinda dela a partir do reconhecimento... tem nos
procurado sempre e nos colocando em uma situação muito
complicada, porque enquanto que a Associação, a gente sabe que
Associação é contra né? Essa monocultura, mas aí a comunidade
por aquilo que eles prometem...426
426
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
427
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
208
[...] a gente não sabe com que interesse eles estão fazendo isso,
toda vez que eles marcam uma reunião, falam assim: – Chama as
meninas da Associação, né? A gente vai, aí quando chega lá é
aquela briga né? Vereador brigando e tal – Ah tem que ser em
Helvécia, tem que ser em Helvécia [referindo-se à implantação do
viveiro de eucalipto]
[...] E aí a gente fala assim: – Gente será que no meio dessa reunião,
eles não vão falar, não querem jogar o povo contra a gente né? – Ah,
não pode ser em Helvécia porque Helvécia é terra de quilombo, não
pode mais plantar esse tipo de atividade aqui em Helvécia. Então por
isso estamos com medo disso de ser uma jogada da empresa né?
Para tentar acabar com a Associação, ninguém nunca vai saber o
que está querendo né?429
428
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
429
Entrevista concedida à autora pela sra. Regina Constantino em 14 ago. 2007.
209
eucalipto que atuam na região ações que fizessem ver a sua propalada
responsabilidade social. Corrobora esta análise, por exemplo, a criação da
Associação Arte Helvécia, parceria da Aracruz Celulose com artesãs da cidade para
a construção de “produto socialmente justo e ecologicamente correto, [...] com
resíduos florestais de eucalipto e sementes da região”.430 Destaco aqui o fato de
esta associação ser composta apenas por mulheres, alijadas do campo de trabalho
em razão dos “desmantelamentos” ocorridos no distrito. Essas, possivelmente, antes
da criação da Associação Arte Helvécia, pela Aracruz Celulose, talvez constituíssem
um grupo insatisfeito, inclusive propenso a participar de movimentos de resistência
e/ou questionamento ao projeto das empresas de eucalipto.
Jornais locais veiculam matérias divulgando ações das empresas em
Helvécia, destacando a geração de empregos para integrantes da comunidade.
430
Conforme material de divulgação da Associação Arte Helvécia entregue à autora em outubro de
2007.
431
Aracruz oferece cursos de capacitação em Helvécia. Alerta, ano 21, número 867, 26 a 30 de março
de 2008, p. 4.
210
432
José Maurício Arruti. Mocambo – Antropologia e História do processo de formação quilombola.
Bauru, op. cit., p. 82.
211
433
Entrevista concedida à autora pela sra. Roseli Constantino Ricardo em 14 ago. 2007.
434
Entrevista concedida à autora pela sra. Malzinéia Henriqueta Ambrósio em 14 ago. 2007.
212
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para aquelas pessoas, a casa não era entendida como um espaço exíguo,
cumprindo apenas a função de abrigar os integrantes da família. As casas eram
construídas nas glebas, provavelmente com quintais ou terreiros amplos, nos quais
amigos e parentes se reuniam para festejar, brincar, dançar. Todos estes fazeres e
saberes estavam imbricados a esta de dimensão de lar.
Por seu lado, a atividade da eucaliptocultura necessitava de grandes
extensões de terras contínuas para que pudesse ser realizada. Diante deste
impasse uma série de ações protagonizadas por diferentes agentes sociais foi sendo
tomada no sentido de garantir a aquisição destas terras pelas empresas de
eucalipto.
No que tange a ações de apoio de integrantes daquela comunidade no
momento da chegada das empresas de eucalipto no distrito, a pesquisa revelou que
elas foram realizadas com base em informações e códigos que eles partilhavam, e
que nas relações estabelecidas esteve presente a violência simbólica, expressa no
436
poder “de uma ordem dominada por forças enfeitadas de razão”, como aquelas
que agiam através da propagada necessidade de existência da titulação de terras
para que o camponês pudesse ser reconhecido como proprietário legal das
mesmas.
435
Depoimento n. 1595/05, de 18/10/2005, na Comissão de Meio Ambiente Sustentável da Câmara
dos Deputados – DETAQ, dado pela senhora Roseli Ricardo Constantino, integrante da Associação
Quilombola de Helvécia, pedagoga e professora daquela comunidade.
436
Pierre Bourdieu. Meditações Pascalianas.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 101.
215
437
Pierre Bourdieu. Meditações Pascalianas.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.102.
438
José Sérgio Leite Lopes (Coord.). A ambientalização dos conflitos sociais – participação e controle
público da poluição industrial. Rio de Janeiro: Relume Dumará, UFRJ, 2004.
216
439
Adequação do PDU 2004 Nova Viçosa, p. 51. Arquivo Seplan – CAR, CAB, Salvador.
217
440
José de Souza Martins. Sociologia da fotografia. São Paulo: Contexto, 2008.
219
Este pé de eucalipto não caiu de forma acidental, e também não foi derrubado
pelos membros da comunidade, ou ao menos não o foi por suas próprias mãos. Ele
tombou, porque foi cortado. Sua queda sobre o muro do cemitério, esta sim foi
casual. Este corte se deu no momento em que, através de diversas pressões e
negociações, membros da comunidade manifestaram seu descontentamento e
insatisfação com o fato de os cemitérios de Helvécia, tanto o São Pedro quanto o do
Sertão, estarem enterrados pelo eucaliptal. As falas de integrantes da comunidade
foram contundentes, e sinalizaram que aquilo para eles era um acinte. Só então a
empresa Aracruz Celulose, responsável pelo referido plantio, ordenou o corte de pés
de eucalipto que estivessem em um raio de 50 m dos cemitérios de Helvécia. Leio
esta ação como um indicativo de que as falas dos habitantes daquela comunidade
não puderam ser totalmente ignoradas. Por outro lado, paradoxalmente, a falta de
cuidado da empresa em não reparar de imediato o muro do cemitério, retirando de
dentro dele o pé de eucalipto que tombara, é um indício de sua postura de
resistência em reconhecer e agir de forma a respeitar os direitos da comunidade.
Esta imagem (cf. figura 14) revela outra possibilidade de análise. O fato da
comunidade não reparar, ela mesma, o muro do “cemitério do sertão”, não sinaliza
também uma forma de resistência? Deixar aquela marca da invasão expressa por
220
441
Clifford Geertz. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora
S.A., 1989, p. 25.
221
FONTES E REFERÊNCIAS
ARQUIVOS E BIBLIOTECAS
Cartório de Helvécia
FONTES IMPRESSAS
Lei orgânica de Nova Viçosa, Câmara Municipal de Nova Viçosa, Nova Viçosa (BA)
FONTES ORAIS
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Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )