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arquiteturas

da ancestralidade
afro-brasileira
O Omo Ilê Agboulá
Um Templo do Culto aos Egum no Brasil
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
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Vice-reitor
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FACULDADE DE ARQUITETURA
Assessor do reitor
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Pasqualino Romano Magnavita
Fábio Macêdo Velame

arquiteturas
da ancestralidade
afro-brasileira
O Omo Ilê Agboulá
Um Templo do Culto aos Egum no Brasil

Salvador
edufba • ppgau
2019
2019, Fábio Macedo Velame.
Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA.
Feito o depósito legal.
Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
projeto gráfico
Gabriela Nascimento
revisão
Mariana Souza
normalização
Marcely Moreira

Sistema Universitário de Bibliotecas - UFBA

Velame, Fábio Macêdo


Arquiteturas da ancestralidade afro-brasileira : O Omo Ilê Agboulá: um
templo do culto aos Egum no Brasil / Fábio Macêdo Velame. - Salvador :
EDUFBA, 2019.
296 p. : il.
ISBN 978-85-232-1937-6
1. Arquitetura - Influências africanas - Bahia. 2. Arquitetura étnica - Bahia.
3. Candomblé - Itaparica, Ilha de (BA). I. Título.
CDD - 720.96
CDU - 72:259.4

Elaborada por Evandro Ramos dos Santos CRB-5/1205

Editora filiada à:

EDUFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina
Salvador - Bahia CEP 40170-115 Tel: +55 (71) 3283-6164
www.edufba.ufba.br
edufba@ufba.br
Odete Dourado, filha de Oxóssi,
em admiração, amizade, companheirismo,
e agradecimento a sua generosidade em ajudar-me
no meu Odú, que Babá Iaô sempre te traga flores
na alvorada do Aiê.

Salvador, 2019
agradecimentos

À Prof.ª Dr.ª Odete Dourado por ter aceitado o desafio fazendo questionar a relação entre terreiro e cidade,
deste trabalho, pelas orientações e observações precio- como o culto projetava-se para a rede de convívio so-
sas, pelos questionamentos e críticas pertinentes e ins- cial no espaço urbano de Ponto de Areia, na esfera do
tigadoras, e pelo estímulo dado no percurso deste tra- cotidiano. Ao amigo e antropólogo Dr. Vilson Caetano,
balho. Além disso, por sua inestimável contribuição na Babalorixá do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá L´oke,
minha formação acadêmica, notadamente, de reflexão que me ajudou nos primeiros contatos com o universo
e crítica, e acuidade científica. do terreiro Omo Ilê Agboulá, por ocasião dos trabalhos,
Ao Prof. Dr. Julio Braga, nacionalmente respeitado por ele coordenados, de reconhecimento do patrimô-
no tema, profundo conhecedor do culto e da realidade nio afro-brasileiro de terreiros de candomblé no Brasil,
social, cultural e econômica da Sociedade do Culto aos num convênio entre o Centro de Estudos das Populações
Egum do Omo Ilê Agboulá por ter aceitado o meu pedi- Afros e Indígenas Americanas (Cepaia), órgão integrado
do de composição da banca de avaliação. Visto que sua à Universidade Estadual da Bahia (UNEB), e Fundação
presença foi de fundamental importância, uma vez que Cultural Palmares (FCP), no qual me acolheu com gran-
contribuiu de forma central com observações, críticas, de receptividade, inserindo-me nessa luta. Trabalho
sugestões e proposições extremamente ricas e perti- esse, levado com grande paixão, dedicação, podendo
nentes para o desenvolvimento deste trabalho; por sua ser resumido em uma única palavra: uma causa.
seriedade, atenção, cuidado e ajuda nos equívocos e la- À amiga e historiadora Cecília Soares, Ialorixá do
cunas, fazendo-me observar o candomblé com outros terreiro de candomblé Maroketu, companheira de tra-
olhos, como uma realidade distinta da África, como balho de reconhecimento do patrimônio afro-brasileiro
uma realidade autônoma e singular. Ao Prof. Dr. Ângelo de terreiros de candomblé no Brasil, pela sua recepti-
Serpa, por ter aceitado também o meu pedido de com- vidade, incentivo e observações pertinentes ao longo
posição da banca de avaliação, cujas observações e crí- dessa trajetória. Ao saudoso Prof. Ubiratan Castro,
ticas me fizeram refletir sobre questões conceituais e historiador cuja gestão na presidência da FCP possibi-
teóricas ao longo do trabalho, reformulando-as, e me litou a construção do Projeto de Reconhecimento do
Patrimônio Afro-Brasileiro de Terreiros de Candomblé substancialmente para a montagem do processo de
no Brasil, no qual fui colaborador e cujo produto foi tombamento nacional do terreiro. A toda a equipe da
encaminhado para o Instituto do Patrimônio Histórico FCP, na Bahia, pela receptividade e apoio recebido no
e Artístico Nacional (Iphan). desdobramento dos trabalhos de pesquisa.
À Fundação Pierre Verger pela liberação do uso Ao Amuixã Agostinho dos Santos Neto, o Beto, pela
das imagens, sobretudo o empenho realizado pela atenção e ajuda no trabalho de campo, seja no cadastro
Sr.ª Roberta no tratamento das imagens fornecidas arquitetônico do terreiro, seja no revelar o entorno e o
dos Egum no Brasil e África e de lideranças do Omo povoado de Ponta de Areia e o universo desta socieda-
Ilê Agboulá, assim como a atenção dada pela Prof.ª Dr.ª de. A Laércio dos Santos, Alabá do Ilê Babá Onilá no Rio
Angela E. Luhning. de Janeiro e Ojé Abá do Omo Ilê Agboulá, que recebeu com
À Federação Nacional dos Cultos Afro-Brasileiros braços abertos este trabalho que integrou o processo de
(Fenacab), que luta há anos pelos direitos dos mem- reconhecimento do terreiro junto à FCP e, notadamen-
bros do candomblé e dos terreiros, sendo um centro te, por sua luta, com veemência, para a manutenção da
de resistência e ação na busca do direito de exercício tradição do culto aos Egum tanto na Bahia quanto no
de liberdade religiosa, principalmente, na época atual, Rio de Janeiro. Ao Ojé Abá Agostinho dos Santos que me
com a pressão dos cultos neopetencostais, pela aten- recebeu e me zelou no espaço do terreiro, abrindo as
ção prestada. À Sociedade de Estudo da Cultura Negra portas do conhecimento deste universo, revelando-me
no Brasil (Secneb), pelo acesso ao seu material biblio- a casa dos filhos de Agboulá e me inserindo na comuni-
gráfico, livros, audiovisuais, documentários, discos de dade de Ponta de Areia.
vinis – com as músicas das festas do Omo Ilê Agboulá –, Ao Alabá e amigo Balbino Daniel de Paula por sua
e CD-ROM sobre o culto aos Egum. A toda a equipe téc- paciência, interesse, atenção e apoio a esta empreitada e
nica do Cepaia que desenvolveu e realizou o projeto causa, sendo que me recebeu com entusiasmo e grande
de reconhecimento dos terreiros de candomblé como sabedoria, preenchendo, uma a uma, as minhas ques-
patrimônio cultural afro-brasileiro para a FCP,, do tões, inquietações e angustias, dentro do que é possível
qual fiz parte, pelo acesso e o acompanhamento dos ser dito e revelado, e pela sua luta particular e heróica
processos de reconhecimento. Ao Iphan pelo aceite pela manutenção da casa, da comunidade de Ponta de
da utilização no processo de tombamento federal do Areia e da sociedade dos Egum. Ademais, pela parceria
Omo Ilê Agboulá, de informações, fotos, mapas, cadastros no acompanhamento, ajuda e colaboração contínua de
arquitetônicos, entrevistas e plantas, produzido por fornecimento de material de pesquisa para a instrução
mim e que integram esse trabalho, que contribuiram do tombamento do Omo Ilê Agboulá pelo Iphan.
Desejo expressar os mais profundos e sinceros agra- No dia 25 de novembro de 2015, o conselho consul-
decimentos a toda a sociedade de culto aos ancestrais tivo do Iphan, reunido em Brasília, aprovou por unani-
afro-brasileiros do culto aos Egum do Omo Ilê Agboulá, midade o tombomento do terreiro de culto aos Egum
que me acolheram no seu mundo, de forma gentil e – o Omo Ilê Agboulá – como patrimônio cultural do Brasil.
afável, compreendendo a importância que representa a Agradeço ao Núcleo de Apoio Editorial - NAPE do
realização deste trabalho no panorama da arquitetura PPGAU, ao colegiado do PPGAU, assim como a sua coor-
na Bahia. Assim como do reconhecimento da importân- denação atual composta pelos Professores Rodrigo Baeta
cia de cada um de seus membros na cultura nacional e Glória Cecília pela disponibilização dos recursos do
que este trabalho se propõe. PROAP-PPGAU para viabilização da publicação desse livro.
sumário

INTRODUÇÃO … 15

1 O OMO ILÊ ABOULÁ COMO UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA NO TEMPO … 33


Histórico dos terreiros de culto aos Egum no Brasil … 35
Histórico do Omo Ilê Aboulá … 43
O Omo Ilê Aboulá como construção de um mundo afro-brasileiro … 55
O Omo Ilê Aboulá como habitar a terra – o aiê … 59

2 OS ESPAÇOS DO OMO ILÊ AGBOULÁ … 67


O Espaço Sagrado … 69
O Espaço Sagrado Privado … 70
O Ilê Auô … 71
Os assentos dos Orixás da rua e do mato vinculados ao culto dos Egum … 85
O Orixá Onilê e os Egum … 89
O Orixá Iroco e os Egum … 95
O Orixá Ogum e os Egum … 100
Espaços da Mata Sagrada e os Egum … 105
O Espaço Sagrado Público … 114
O Ilê Exu … 115
O Ilê Iá Ebé … 122
O Ilê Orixá … 127
O Barracão … 134
O Espaço Livre Sagrado … 165
Espaço Profano … 169
A Antessala do terreiro … 169
Muro Verde … 172

3 OS TEMPOS DO OMO ILÊ AGBOULÁ … 179


Os tempos sagrado e profano … 181
O cotidiano dos membros do culto aos Egum no espaço urbano … 182
Uma festa de Babá Egum … 188
A festa da Bandeira … 226
A festa dos Presentes … 233
A festa da Retirada da Bandeira … 258

4 CONCLUSÃO – O OMO ILÊ ABOULÁ COMO UM OPÁ DE TIJOLOS … 263


A questão central … 265
Uma arquitetura afro-brasileira … 268
O belo na arquitetura do Omo Ilê Agboulá … 270
A morte e os Egum … 272
O Omo Ilê Agboulá como um opá de tijolos … 274

REFERÊNCIAS … 277
GLOSSÁRIO … 283
PROPOSTAS ARQUITETÔNICAS … 287
A CASA DE BABÁ EGUM
Fábio Macêdo Velame

Quem é o dono desta casa? não tem chave alguma!


É o meu pai. Está em todos e,
Meu pai Babá Egum. não fala com ninguém!

Babá mora aqui, Babá é um errante!


está em mim, Um nômade no Aiê.
habita em meus irmãos, Um viajante do Orum,
repousa em meu filhos,
dorme em meus netos. Um eterno pelegrino presente no:

Babá Egum, Corpo,


passeia pelas ruas com minhas pernas, Gestos,
nada no mar com meus braços, Olhar,
pesca com minhas mãos, Respiração,
dorme na rede com meu corpo, Voz,
mata a fome com minha boca, Atitudes,
sacia a sede com minha garganta. Decisões,
Posturas,
Babá Egum. Vida,
Está em todos os lugares e Lembrança,
não passa por lugar nenhum! E, na Saudade,
Está em todos os lares e, de seus filhos.
introdução

O presente trabalho trata da arquitetura do terreiro de relações, articulações, organização, funcionamento e


candomblé Omo Ilê Agboulá, um templo da Sociedade de transformações.
Culto aos Egum, situado no povoado de Ponta de Areia,
1
Na África, os Egum eram os ancestrais masculinos
na Ilha de Itaparica. Para tanto, elege como ponto cen- que representavam descendências nobres, reis, dinas-
tral a relação cultura-arquitetura, buscando compreen- tias reais e famílias nobres, pais fundadores das cidades
der como a cultura negra em sua dimensão religiosa, e linhagens, guerreiros, sacerdotes e outras lideranças
especificamente do culto aos Egum, se relaciona e con- que tinham conseguido, durante a vida, certo prestígio
diciona a arquitetura de um dos seus templos, o Omo e poder. O culto dos Egum na África, segundo Renato da
Ilê Agboulá, caracterizando a sua formação, construção, Silveira, tinha um caráter plurifuncional, possuía fun-
ções constitucionais, políticas, judiciárias, de contro-
le da moralidade pública e do comportamento social,
1 Existiam na África, entre as sociedades Iorubás, diversas socie-
dades secretas masculinas e femininas. As masculinas eram: a controle religioso, assim como funções econômicas,
Sociedade Secreta de culto aos Egungum, ou Egum, representava
linhagens, clãs, famílias, dinastias reais, protegia cidades e regiões,
sociais, militares, e artísticas:
sagrava os reis, em suma, eram os ancestrais ilustres que tomavam
forma corporal e voltavam do mundo dos mortos para ter com seus Constitucionalmente, os chefes das linhagens, que
descendentes, com os seus filhos, assim como equilibrar o poder
e a influência feminina na sociedade Iorubá. As femininas eram: também eram sacerdotes do culto dos ancestrais fa-
Sociedade Ialodé, voltada para a discussão pública dos assuntos miliares, eram membros obrigatórios da sociedade
civis entre as mulheres, resoluções de questões comerciais e jurí- Egúngún. Os festivais anuais do culto dos mortos eram
dicas. Ialodé também era o título mais honorifico que uma mulher
poderia receber e que a colocava instantaneamente à frente das de- momentos privilegiados, nos quais as linhagens de-
mais mulheres, era a cabeça, a líder das mulheres, representava monstravam, publicamente a lealdade ao rei. Por
as mulheres de sua sociedade no palácio real, no conselho e nos
tribunais; Sociedade Obóni, uma complexa sociedade, instituição dentro dessa rede de relações, em Oyó a Sociedade
religiosa e política que abrangia mulheres representantes de vários Egúngún representava particularmente o poder so-
níveis da sociedade Iorubá, e que contrabalançava o poder dos reis; cial masculino [...] O Alápinnì estava acima do Alágbà,
Sociedade Geledé, voltada para o culto das mães anciãs, das velhas
feiticeiras; Sociedade Eleéko era uma sociedade antiga Iorubá, vol- sumo sacerdote dos diversos terreiros Egúngún, era
tada ao culto da divindade feminina Oba. (SANTOS, 1998, p. 115) uma chefia de carácter mais político, mas ligada ao

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aparelho de Estado, enquanto que o Alágbà, que ti- estão Alare, Agbegijo e Alarinjo, o qual só se apresen-
nha relações diretas com os chefes das linhagens e tava dançando. (SILVEIRA, 2006, p. 427, grifo nosso)
dos bairros urbanos, era o líder ritual, com vínculo
mais direto com a sociedade [...] Além da cerimônia Roger Bastide destaca o caráter econômico, social e
anual de todos os adeptos do culto em uma dada re- religioso do culto aos Egum, que tinham também as fun-
gião, o Odun-Égún, os eguns participavam de certas
ções de receber as primeiras colheitas, realizar a bênção
cerimônias costumeiras das linhagens praticantes do
dos campos para a semeadura, cuidar dos moribundos e
culto dos mortos, como batizados, funerais, ou ceri-
ir à residência das pessoas que estavam morrendo:
mônias abertas a toda a comunidade, reconciliações,
lavagens e inaugurações [...] Por outro lado, frequen-
As grandes festas agrícolas nos países iorubás, a da
temente os eguns dos obás marchavam à frente dos
plantação, a da ‘desconsagração’ das primeiras co-
exércitos dirigindo-se aos combates, como por exem-
lheitas, são feitas sempre com evocação dos eguns.
plo Alakoro, egúngún Sàngó em Oyó. Babayemi cita
Essa primeira função da bênção dos campos pelos
os casos do Imperador Atiba de Oyó, que comandou
antepassados e das oferendas das primícias aos mor-
seu Exército na batalha de Epo vestido com roupas
tos parece ter desaparecido na Bahia. Efetivamente,
egúngún, e do Obá de Ibadan, Olúyole, que costumava
nessa cidade, a grande festa dos eguns (ojé-messé, ilé
liderar suas tropas com a máscara e a vestimenta do
nhanga ou nibi egum anangua) – que é uma cerimônia
seu egum. [...] Certas categorias sociais que desem-
privada – tem lugar no dia 2 de novembro, dia dos
penhavam funções econômicas e terapêuticas impor-
mortos, por sincretismo com o catoliscismo. Do mes-
tantes também tinham seus eguns próprios, como
mo modo que os diablitos de Cuba, a sociedade dos
Olóògun, patrono dos curandeiros herbonistas, ou
eguns ia outrora às casas onde havia mortos ou mo-
Láyèwú, também Egúngún Ode, patrono dos caçado-
ribundos. Mas essa função também desapareceu em
res [...] Os entertainers, artistas de teatro e circo, nas
nossos dias. As cerimônias não podem se realizar nas
cidades de Oyó e do norte também tinham seus an-
moradias particulares, e sim somente no interior dos
tepassados ilustres divinizados, que desempenhavam
candomblés ou na ilha de Itaparica. (BASTIDE, 2001,
um papel tremendamente visível, incrementando o
p. 136)
lazer público. Tais eguns, chamados de ‘trikster egun-
gun’ na literatura anglo-saxônica, eram cantadores,
Na Bahia, o culto aos Egum perdeu essas atribui-
dançarinos, saltibancos, especialistas na percussão
dos tambores bàtá e dùndún, apresentavam-se regular-
ções em virtude da escravidão, que desestruturou suas
mente em frente ao palácio, nos mercados e outros relações sociais, econômicas e políticas. Aqui, o culto
lugares abertos para divertir a população. Entre eles aos Egum passou por transformações, modificações e

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acréscimos. Cirscuncreve-se, atualmente, à evocação Arquitetura é aqui definida como edificar lugares,
dos ancestrais ilustres afro-brasileiros da sociedade e entendendo o lugar como aquilo que acolhe, reúne, in-
de alguns Egum africanos, que foram preservados para tegra e dá uma morada, numa estância e circunstância,
fornecer conselhos, orientações, caminhos para os vi- em sua simplicidade, ao jogo em espelho do mundo,
vos, os seus descendentes em seu fluxo de vida, em seus entre terra, céu, mortais e divinos, mediante a articula-
problemas cotidianos, eventuais, específicos de cada ção e organização de seus espaços, sendo estes regidos
um ou de toda a sociedade. por uma cultura formada e constituída, por um sistema
Para o desvelamento e compreensão da arquitetura simbólico singular, que veiculam concepções e signifi-
do terreiro, do templo em si mesmo, torna-se funda- cados próprios. Os terreiros2 de candomblé3 de Egum
mental a compreensão do que o gerou, o que possibili-
tou a sua existência, a sua criação e, conseqüentemente,
2 Segundo Juana Santos: “o terreiro, termo que acabou sendo sinô-
aquilo que o articula e o organiza como espaço, como nimo da associação e do lugar onde se pratica a religião tradicional
africana. Esses terreiros constituem verdadeiras comunidades que
arquitetura e, posteriormente, aquilo que o conserva, o apresentam características especiais. Uma parte dos membros do
preserva e o desenvolve através de suas transformações, terreiro habita no local ou nos arredores do mesmo, formando às
vezes um bairro, um arraial ou um povoado. Outra parte de seus
lhe mantendo vivo, ou seja, a sua cultura. Entende-se, integrantes mora mais ou menos distantes daí, mas vem com certa
aqui, cultura dentro da concepção da Antropologia regularidade e passa períodos mais ou menos prolongados no ter-
reiro, onde eles dispõem às vezes de uma casa ou, na maioria dos
Hermenêutica ou Antropologia Interpretativa de [...] um casos, de um quarto numa construção que se pode comparar a um
padrão de significados transmitidos historicamente, compound”. (SANTOS, 1998, p. 32)
3 Na Bahia, o termo “candomblé” foi se ampliando em significados
incorporados em símbolos, um sistema de concepções
ao longo do século XX. O candomblé foi mencionado por Nina
herdadas expressas em formas simbólicas, por meio Rodrigues quando tratou da ação policial no ano de 1826 no qui-
lombo do Urubu, liderado pela negra Zeferina, que se localizava
das quais os homens comunicam, perpetuam e desen- na área que hoje corresponde ao bairro de Pirajá. Assim, Nina
volvem seu conhecimento e suas atividades em relação Rodrigues se remete ao quilombo: “[...] se mantinha com o au-
xílio de uma casa de fetiche da vizinhança, chamada a Casa do
à vida. (GEERTZ, 1978, p. 103) A cultura não é um po- Candomblé”. (RODRIGUES, 2005, p. 90) Pierre Verger se refere à
der, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os utilização do termo “candomblé” pelos próprios membros do Iyá
Omo Axé Aira Intilé (Casa Branca) com base num artigo do Jornal
acontecimentos sociais, os eventos, as circunstâncias, da Bahia, de 03 de maio de 1855, que se remetia a uma reunião
os comportamentos, as instituições ou os processos. nessa casa: “[...] Foram presos e colocados à disposição da polícia
Cristovão Francisco Tavares, africano emancipado, [...] que estavam
A cultura é um contexto, algo que pode ser descrito no local chamado Engenho Velho, numa reunião que chamavam
de forma inteligível, ou seja, descritos com densidade de candomblé”. (VERGER, 2002, p. 29) O termo candomblé foi
definido por Arthur Ramos como uma substituição dos batuques,
através de seus símbolos interpretáveis. que eram as danças de agrupamentos de escravos realizados aos

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são os lugares onde a sociedade, ebé (a comunidade do aos Égún mais elevados na hierarquia, os Égún-
terreiro), preserva o cuidado, o culto aos mortos ilustres àgbà. É nesse espaço que os Égún aparecem pu-
que pertencem à sua sociedade afro-brasileira singular. blicamente para receber as oferendas, dançar,
Considera-se a sua arquitetura como uma recriação cantar, benzer, dar mensagens, enfim ‘visitar’e
dos africanos e de seus descendentes no Brasil. Trata- festejar ao lado de seus descendentes. Esse espaço
se de uma arquitetura afro-brasileira de uma socieda- também é composto de uma área aberta situada
de específica de culto aos seus ancestrais ilustres, uma entre o grande salão e o Ilé-awo, a casa do segredo
arquitetura única, singular, particular, sem qualquer da terceira unidade. Nessa área aberta se encon-
paralelo e similar na África. tra um montículo de terra onde está fincada uma
Os autores que tratam com maior destaque a arqui- vara de àtòrì ritualmente preparada. Trata-se de
tetura dos terreiros de candomblé de Egum são Juana Onilè, representação coletiva dos patronos da ter-
Santos e Júlio Braga. Juana Santos divide a arquitetura ra, que cada ‘terreiro’ Égún deve possuir. Onilè é
do terreiro de candomblé de Egum em três partes: um Irúnmalè adorado pelos Elégun, sacerdotes dos
Égún. Sempre deve ser o primeiro a ser venerado
1) Um espaço público, freqüentado sem restrições
e o primeiro a receber as oferendas.
por iniciados e fiéis, compreendendo uma parte do
grande salão onde são realizados rituais públicos. 3) Um espaço privado onde só os iniciados em úl-
timo grau, os Òjè, têm acesso. Neste espaço, en-
2) Um espaço semiprivado transitado unicamente
contra-se o Ilé-awo, com o Ìgbàlè, comumente
pelos iniciados de todas as categorias sem dis-
chamado Bàlè ou Lésànyin, onde se encontram
tinção e onde às vezes um não-iniciado pode ter
os ‘assentos’ individuais de alguns Égún-àgbà e o
acesso se está acompanhando de um sacerdote do
grande ‘assento’ coletivo Opa-kòko ao pé do qual
culto. Compreende a outra parte do grande salão,
se enconta o Ojúbo. (SANTOS, 1998, p. 124, grifos
onde estão o trono e as cadeiras correspondentes
do autor)

Consideramos lacunar essa abordagem sintética


domingos e autorizados pelos seus senhores, como sendo: “Termo
que primitivamente significava dança e instrumento de música e,
elaborada por Juana Santos para caracterizar o espaço
por extensão, passou a designar a própria cerimônia religiosa dos do terreiro de candomblé de Egum por três motivos bá-
negros”. (RAMOS, 1972, p. 359) A palavra candomblé é, atualmen-
te, segundo Julio Braga: “Nome pelo qual é conhecida, na Bahia, a sicos.
comunidade religiosa afro-brasileira”. (BRAGA, 1995, p. 128) Estas Primeiro, porque ela elege três espaços como os
sociedades são autônomas. São unidades singulares onde cada um
segue o seu curso, sua vida, sem a interferência dos demais. “essenciais” de um terreiro de Egum, não levando em

{ 18 }
consideração todos os inúmeros espaços, construções e É no lessém que se guardam os acessórios litúrgicos
elementos naturais do terreiro, que são também impor- utilizados durante a realização dos diferentes rituais.
tantes, embora em outro grau ou nível, pois todos eles O ilê auô – a casa do segredo, a casinha ou, simples-
mente, a casa de egum, como é mais comumente
são sagrados e se relacionam, direta ou indiretamente,
chamada – é a construção mais importante entre as
com os três primeiros,bem como entre eles. Cada ele-
existentes num terreiro-de-egum. Costuma-se edificá
mento do terreiro, por menor que seja, possui a sua
-la na área mais reservada do terreiro, nas imedia-
importância e uma função específica dentro do culto e ções da entrada dos fundos do barracão, por onde
do templo. circulam apenas os eguns quando vão dançar, e os
Segundo, porque, nestes três espaços listados, di- ojés que estão atuando durante a celebração de uma
versos elementos e aspectos existentes neles não são cerimônia religiosa. Trata-se de edificação de chão
abordados, detalhados e explorados, pois veiculam im- batido, para permitir o contato direto com a terra (de
portantes dimensões simbólicas das concepções de seu onde nascem os eguns). A casinha comporta uma di-
visão que separa a parte onde estão as representações
mundo e do culto aos ancestrais propriamente ditos.
simbólicas dos eguns agbás (os mais velhos e que ali
Terceiro, porque vincula e restringe a sua arquitetu-
são venerados), da ante-sala onde ficam os ojés e
ra e espacialidade a uma relação entre espaços públicos,
onde também se realiza grande parte dos ritos inter-
semiprivados e privados, apesar de importante e inova- nos do culto aos ancestrais. Este é, também, o espaço
dora por abordar questões de relações de hierarquia e de socialização, em cujo local os assuntos inerentes
acessibilidade no candomblé e sua arquitetura. Esta vi- à comunidade religiosa são tratados. Com efeito, as
são não aborda os diversos e múltiplos fatores e elemen- principais decisões dos líderes são sempre definidas
tos que coexistem e se relacionam para organização e na casa de egum, nesta área estritamente reservada
articulação de seus espaços. aos ojés. O barracão, onde se realiza a maior parte das

Júlio Braga avança na abordagem da arquitetura do cerimônias públicas, representa a maior área cons-
truída de um terreiro-de-egum. Dividido em duas
terreiro de candomblé de Egum, ampliando a sua com-
áreas principais, a mais interna é o espaço sagrado
plexidade de relações e fatores. Para isso, ele realiza
por excelência, onde os eguns dançam e às vezes
uma descrição e explicação de sua espacialidade atra-
permanecem durante a cerimônia. Somente os ojés
vés de seus elementos simbólicos que veiculam signifi- podem circular livremente nesta área, assim mesmo
cados, rituais, relações de gênero, hierarquias, relações quando estão realizando ou participando de alguma
sociais, relações topológicas – de posição – entre os seus atividade religiosa. Por ocasião de festa pública, um
elementos: fiel poderá ser ali chamado por qualquer motivo. Não

{ 19 }
obstante, só irá acompanhando e protegido por um de Orixá,4 embora ambos tenham uma mesma origem
ojé que o defende de eventual contato com a roupa nagô.5
sagrada dos eguns, pois esta não pode ser tocada por
pessoa alguma. A outra área, da frente do barracão,
4 Os Orixás são as divindades nagôs que foram reunidas na Bahia
embora não seja destinada ao uso profano, por opo- pelos escravos em um panteão, tendo no terreiro o seu lar, dis-
sição à do fundo, não se inclui no âmbito do sagrado tinto do seu culto na África, onde cada cidade e região cultuavam
uma determinada e específica divindade. Os Orixás são essencial-
tal como ocorre em relação a primeira, considerado
mente as energias em estado puro e concentrado da natureza. Os
espaço ritual. Esta parte de uso público é que estabe- autores que se debruçaram com maior vemência e destacaram a
lece a separação por sexo – homens do lado direito de importância da arquitetura dos terreiros de candomblé de Orixás,
notadamente da nação Ketu foram Pierre Verger, Roger Bastide, e
quem entra e mulheres do lado esquerdo -, tal como Juana Santos. Pierre Verger traçou, no Daomé (em Pobé e Holi),
em qualquer terreiro de candomblé jêje-nagô. Esta estudos minuciosos dos templos vernaculares africanos, com uma
descrição detalhada (VERGER, 2002, p. 89), entretanto coloca a
divisão do espaço do terreiro de Babá-Aboulá é, em li-
arquitetura numa posição de sustentáculo para o rito. Para Roger
nhas gerais, idêntica à de outros terreiros-egum. Nos Bastide, os terreiros de candomblé na Bahia constituem uma África
dias de festa, o público é mantido no espaço que lhe é reinventada, edificando uma espacialidade nova, mas mantendo
suas principais relações geográficas e locacionais como elas eram
reservado, e entre esses espaços se interpõem os ojés na África, sendo uma África em miniatura, pois sua configuração
ou outros membros iniciados da seita que também é o resultado de uma junção de ritos e deuses cultuados em dife-
rentes cidades estados na África como Oxossi em Ketu, Xangô em
tenham direito de ali estar, separando o mundo dos
Oyo, Oxum em Ijexá, Oxalá em Ilê Ifé [...]. (BASTIDE, 2001, p. 74)
vivos daquele em que estão os mortos. (BRAGA, 1995, Todavia, Bastide defende a forma e a espacialidade arquitetônica
p. 36) dos terreiros de candomblé como sendo uma mera transposição
de referências geográficas em relação ao “original” na África, ba-
seado na comparação da realidade destes espaços na Bahia com
A despeito desta abordagem, apesar do avanço con- os templos das cidades e florestas africanas. Juana Santos caracte-
riza o espaço do terreiro de candomblé como sendo constituído de
siderável que vai muito além de classificações e enqua- dois espaços: o espaço urbano e o espaço do mato. Juana Santos
dramentos, a arquitetura do templo de culto aos Egum coloca a área urbana e de mata como sendo duas áreas distintas,
duas áreas qualitativamente opostas, estabelecendo uma dicoto-
continua lacunar, pois, ainda não se leva esta descrição mia entre elas, uma polarização. (SANTOS, 1998, p. 33) Esta classi-
em busca dos significados e relações para os demais ficação de espaço de mata e urbano é, porém, lacunar, pois ambas
as áreas são sagradas, o que possibilita o fluxo de axé.
elementos, espaços e construções do terreiro, que com- 5 A terminologia nagô, no princípio, remetia apenas a um grupo de
põem sua totalidade, além de não se aprofundar a des- descendentes iorubás da cidade de Ifé, sendo estendida, logo após,
de maneira ampla, pelos Jêje (daomanianos de língua Fon) e pelos
crição dos espaços mencionados. franceses, que administravam a região (Benim), a todos os povos
A arquitetura dos terreiros de candomblé de Egum iorubás, sendo a nomeclatura recebida e herdada por todos os io-
rubás da Bahia, qualquer que fosse a sua origem geográfica (Ketu,
é diferente da arquitetura dos terreiros de candomblé Sabé, Oio, Ebá, Ebado, Ixejá, Ibo-Ibo, Abeokuta, Ifé...). Portanto, o
termo nagô era como os franceses designavam todos os negros de
fala iorubá da Costa dos Escravos trazidos ao Brasil durante o ciclo

{ 20 }
Os terreiros de candomblé de Orixá, das nações6 constituem um lugar, um templo afro-brasileiro singu-
Ketu, Nagô e Ijexá, são os lugares onde as sociedades, lar, que veicula todo um complexo de significados im-
ebé, conservam e renovam o cuidado, o zelo e o culto pregnados de concepções de um mundo próprio, aonde
das entidades sobrenaturais, as suas divindades nagôs, os mortos vêm para socorrer, orientar e conduzir os ca-
os Orixás. Já os terreiros de candomblé de Egum, como minhos dos vivos. O Omo Ilê Agboulá, objeto do nosso
já foi dito, são os lugares onde a sociedade, ebé, preser- estudo, encontra-se localizado no Alto do Bela Vista, no
va o cuidado e o culto aos seus ancestrais ilustres, os povoado de Ponta de Areia, no município de Itaparica,
mortos da comunidade. na Bahia. É a morada dos mortos e estada dos vivos. É
A arquitetura do Omo Ilê Agboulá constitui, na sua constituído e organizado por uma sociedade formada
materialidade, uma arquitetura simples, singela e por uma família extensa, composta de laços consan-
“pobre”, com formas retangulares, construídas com güíneos – parentescos – e também religiosos – vincu-
materiais triviais como blocos e telhas cerâmicas ou lados ao culto dos Egum. Essa família extensa vive, na
de fibrocimento, sem acabamentos. Todavia, o Omo Ilê atualidade, numa difícil realidade de pobreza, com di-
Agboulá é uma construção coletiva no tempo, é vivo e ficuldade de sobrevivência e manutenção mínima das
dinâmico, está em constantes transformações, tornan- condições básicas e dignas de vida.
do-se a sua arquitetura extremamente complexa, uma Ela é constituída por alguns poucos pescadores – os
vez que cada espaço, construção e elemento natural sacerdotes mais velhos –; alguns poucos funcionários
públicos da prefeitura de Itaparica; sua grande maioria
da escravidão do Benim no século XIX, oriundos da fronteira da vive, porém, de trabalhos temporários – os homens ge-
Nigéria com o Benim, do centro e do sul do Benim (antigo Daomé)
e do sudoeste da Nigéria. Segundo Vivaldo da Costa Lima: “[...] o
ralmente assumem postos de pedreiros, carpinteiros,
termo nagô no Brasil seja inspirado naquele correntemente em- caseiros ou ambulantes, e as mulheres de empregadas
pregado no Daomé para designar os iorubás de qualquer origem”.
(LIMA, 1977, p. 15) domésticas –, que ocorrem geralmente nos períodos de
6 O conceito de nação de candomblé foi definido por Vivaldo da veraneio – nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro
Costa Lima como: “[...] padrão ideológico e ritual dos terreiros de –, ficando o resto do ano sem trabalho, tendo que so-
candomblé da Bahia”. (LIMA, 1977, p. 21) O conceito de nação tem
um carácter simbólico, ideológico e político baseado na tradição breviver com qualquer serviço ou atividade que apare-
religiosa e ritual cuja origem é as diversas etnias africanas. As
ce eventualmente. A pobreza assola a comunidade de
quatro nações básicas do candomblé na Bahia são: Ketu (origem
nagô); Ixejá (origem nagô); Angola (origem bantu); Jêje (origem forma forte e violenta.
daomeniana). Elas podem ser diferenciadas pela maneira de tocar
os atabaques – com as mãos ou varetas –, pelos idiomas utilizados
O Omo Ilê Agboulá também constitui uma forma de
nos cânticos, pela música e ritmo, pelas vestes litúrgicas, aspectos luta contra essa situação de penúria e pobreza, pois
dos rituais, pelos nomes das divindades, etc.

{ 21 }
possibilita, enquanto arquitetura de um lugar, a ma- O Omo Ilê Agboulá estabelece todo um processo de
nutenção de uma etnicidade – embora sujeita às trans- continuidade histórica, de conservação de uma tradi-
formações do tempo desse seu mundo extremamente ção afro-brasileira única, como conhecimento herdado
dinâmico e vivo, e às suas relações com a sociedade e transmitido, com suas transformações, de geração a
mais ampla. geração; assim como as táticas de resistência e sobrevi-
A etnicidade relacional é aqui definida como sendo vência coletiva.
uma construção de uma diferença étnica pelos diversos O Omo Ilê Agboulá possibilita um religar-se à ances-
membros do culto com relação à sociedade mais ampla tralidade, fortalecendo os laços de ajuda mútua e man-
de Itaparica, instaurada pela concepção do sentimen- tendo a sua característica básica, bem como as relações
to de pertencimento à sua sociedade religiosa de culto essenciais de seu aspecto patriarcal no cotidiano, no
aos Egum. Esta diferença étnica origina uma profunda dia a dia do povoado de Ponta de Areia, seja através do
e forte noção de família extensa, que funciona como respeito, seja na observância às vontades e os conselhos
laços de solidariedade entre seus membros, que funda- dos ancestrais da sociedade.
menta e alicerça um sentido forte e profundo de au- A escolha desse terreiro para o desenvolvimento
toestima, valorização, orgulho, dignidade, bem como desta pesquisa se deve ao fato de ele ser o herdeiro
de honra cristalizada e marcada pela singularidade, dos terreiros de candomblé de Egum do século XIX e a
unicidade e especificidade do universo cultural em que matriz de todos os terreiros de Egum do século XX no
estão imersos. Brasil. Ele recebeu não apenas os rituais, as músicas,
É nesse aspecto que se encontra a importância do os fundamentos, ou seja, a tradição do culto aos Egum,
culto aos Egum. Ele é o elemento de coesão grupal da mas também toda uma linhagem de ancestrais sejam
comunidade, de manutenção e fortalecimento de um eles africanos ou afro-brasileiros que pertenciam aos
caráter singular, de uma diferença cultural e de luta terreiros de Egum do século XIX. Atualmente, é refe-
pela vida e sobrevivência material de seus membros. rência para todos os demais membros dos terreiros de
Uma forma específica de ser e estar no mundo através Egum no país, pois, embora sejam esses independen-
da conservação dos valores tradicionais afro-brasileiros tes, para lá os Ojés – sacerdotes do culto – sempre vol-
da sociedade de culto aos ancestrais em suas relações tam quando têm algum problema com algum Egum ou
sociais, hierarquias, hábitos e práticas tanto dentro Exu de Egum, procurando os sacerdotes mais velhos e
quanto fora do terreiro. experientes do Omo Ilê Agboulá para resolver os seus pro-
blemas. Por ser, para os membros da família extensa

{ 22 }
do culto aos Egum do povoado de Ponta de Areia, o seu de acesso minimizou a sua visibilidade no cenário dos
ponto de referência, é o seu centro irradiador de pro- estudos das religiões afro-brasileiras.
teção, segurança, um porto seguro, pois é o lugar, por Essa dificuldade é mencionada por Bastide para ex-
excelência, da imanência do sagrado, já que é a mora- plicar e justificar o seu não aprofundamento dos estu-
da de seus pais, avós, bisavós de ancestrais longínquos dos relacionados ao culto dos Egum na Bahia, nos anos
que vieram da África, além de ser o lugar de contato e de 1950. Também, Pierre Verger restringiu as suas abor-
abertura para o além. O Omo Ilê Agboulá é o elemento dagens a fotografias de membros do culto e de Egum,
central e fundamental para eles, quer seja no seu po- tanto na Bahia quanto na África, sem um trabalho siste-
voado, quer seja no mundo onde habitam e que rege matizado específico sobre o culto nos anos que se suce-
o seu cotidiano. O dia a dia deles vincula-se intrinseca- deram ao pós-guerra, quando veio para o Brasil em 1946
mente ao culto aos Egum, que possui no Omo Ilê Agboulá e durante a década de 1950 em seus estudos comparati-
a sua morada. vos entre a África e a Bahia.
O culto – e, notadamente, o Omo Ilê Agboulá – é um Este trabalho visa contribuir para o preenchimento
dos poucos que reverenciam e cultuam os seus ances- dessa lacuna, buscando entender como a cultura religio-
trais ilustres, mantendo periodicamente o contato com sa de culto aos ancestrais ilustres, os Egum, se relacio-
esses, que extrapola a relação religiosa e abrange a di- na com a arquitetura de um dos seus templos, o Omo Ilê
mensão social e urbana no cotidiano. Observa-se, po- Agboulá, além de buscar estabelecer como este templo se
rém, que tem sido ele muito pouco estudado no cenário relaciona com o povoado de Ponta de Areia no que tange,
dos cultos afro-brasileiros. Isso se deve ao fato de ele ter em particular, ao andamento e à condução do fluxo da
sido constituído até pouco tempo por uma sociedade vida cotidiana, do dia a dia e dos acontecimentos even-
secreta, de difícil acesso e contato. Vem a ser um dos tuais e fortuitos de seus membros.
poucos exemplares remanescentes no Brasil das socie- Este trabalho também tem como objetivos: contri-
dades secretas que constituíam as sociedades iorubás, 7
buir na ampliação do conhecimento sobre o culto dos
que sobreviveu ao cativeiro durante a escravidão e, pos- Egum, em sua totalidade; bem como identificar as ca-
teriormente, às perseguições policiais. Essa dificuldade racterísticas arquitetônicas e espaciais do terreiro de
Egum: Omo Ilé Agboulá, que lhe atribuem uma diferença,
7 O termo Iorubá, segundo Pierre Verger, designa um grupo lingüís- peculiaridade e especificidade, lhe dando uma unicida-
tico de milhões de africanos que ocuparam algumas regiões do an-
tigo Daomé (atual Benim) e da Nigéria que compartilhavam uma
de e singularidade.
cultura e tradição de mesma origem, nascida na cidade de Ifé, mas
que não constituía uma unidade política.

{ 23 }
A arquitetura dos terreiros de candomblé, seja de naturais, objetos e suas diversas temporalidades em
Orixá ou de Egum, sempre foi mencionada ou aborda- suas festividades, rituais, e no seu cotidiano; entrevis-
da nos estudos antropológicos, todavia apenas como um tas qualitativas e um ensaio projetual para o templo.
grande pano de fundo, um mero cenário, um apêndice Para conseguir efetuar este trabalho de pesquisa de
onde ocorre o fluxo da vida do candomblé. campo junto à sociedade de culto aos Egum, cujo aces-
A fatualidade, concretude e materialidade dos ter- so até então era extremamente difícil, tive que traçar
reiros de candomblé, por assim dizer, a sua arquite- quatro estratégias básicas.
tura torna-se um objeto que necessita ser revelado, A primeira estratégia consistiu na busca de articula-
descortinado, desocultado, desvelado e, principalmen- ções com instituições que trabalhassem com patrimônio
te, compreendido, não em meras descrições, síntese de cultural afro-brasileiro e que estivessem dispostas a tra-
comparações geográficas e classificações ocultadoras. balhar na manutenção, conservação desta casa de culto
Mas sim, na busca da sua realidade, dos significados, das afro-brasileiro, com reconhecimentos ou tombamentos,
definições, dos conceitos e dos sentidos de cada espaço, notadamente a FCP. Nesse sentido, foram oferecidos a
elemento natural e construído em si mesmo e nas suas essa instituição os meus serviços de arquiteto, sem ônus
diversas relações com os demais em suas temporalida- financeiro e de recursos para a elaboração de um mate-
des, em sua totalidade. rial arquitetônico para a manutenção do Omo Ilê Agboulá.
Com vistas à concretização dos objetivos propos- Portanto, empregaria a legitimidade, seriedade, re-
tos, foi realizada a pesquisa com a utilização de fontes conhecimento, prestígio e o apoio da instituição como
primárias e secundárias, com procedimentos metodo- estratégia de inserção no terreiro e em sua sociedade.
lógicos vinculados à base teórico-conceitual-filosófica Essa articulação viabilizou tanto o meu trabalho de pes-
fenomenológica. Foi realizada: revisão crítica da biblio- quisa quanto um material técnico – cadastros e plantas
grafia existente sobre a arquitetura dos candomblés de técnicas, memorial descritivo, levantamento fotográfi-
origem nagô, tanto os de Orixá e principalmente os de co e projeto arquitetônico – que pode também, enquan-
Egum; a fatualidade do templo do Omo Ilê Agboulá, atra- to uma contribuição da minha pesquisa, ser utilizado
vés de uma descrição densa e dinâmica, com o levan- tanto pela instituição em suas intervenções conserva-
tamento cadastral arquitetônico – plantas de situação, tivas quanto pela sociedade de culto aos Egum, na bus-
plantas baixas, cortes, fachadas e levantamento topo- ca recursos para as reformas e para os seus projetos
gráfico –, assim como com o levantamento fotográfi- sociais. Coincidentemente, estava começando o proje-
co de todos os seus espaços, construções, elementos to piloto de Reconhecimento do Patrimônio Cultural

{ 24 }
Material e Imaterial Afro-Brasileiro, um convênio da que serviria para o próprio uso da comunidade – nota-
FCP com o Iphan e Cepaia, sob a coordenação do an- damente para as crianças e adolescentes –. Fi-lo ainda
tropólogo Prof. Dr. Vilson Caetano, e do Prof. Ubiratan atentar para a relevância do meu trabalho, como ar-
Castro de Araújo, então presidente da FCP. quiteto, para agilizar o processo de reconhecimento e
O projeto de Reconhecimento do Patrimônio para o tombamento nacional, já que estes materiais fo-
Cultural Material e Imaterial Afro-Brasileiro realizou o ram confeccionados e entregues também para o Iphan.
reconhecimento de cinco terreiros, sendo um deles o
8
Consegui estabelecer um acordo prévio com ele, de
Omo Ilê Agboulá. Ofereci-lhe os meus serviços de arquite- acordo com o qual seriam discutidas no trabalho apenas
to e apresentei-lhe o meu trabalho de mestrado e as di- as coisas autorizadas por ele.
ficuldades do início da pesquisa, recebendo apoio total A terceira estratégia consistia em buscar uma apro-
da referida instituição e de seu coordenador. Em função ximação com os outros sacerdotes do culto, os Ojés mais
do trabalho desenvolvido para o Omo Ilê Agboulá, acabei velhos. Aliei-me ao braço direito do Alabá, o Ojé Abá
realizando os trabalhos de arquitetura dos outros ter- Agostinho dos Santos, que detém, atualmente, o con-
reiros listados no projeto. trole cotidiano do terreiro e é o responsável pela conser-
A segunda estratégia seria buscar uma articulação vação de seu espaço físico. Para tanto, desenvolvi todo
com o líder religioso da casa, o Alabá Balbino dos Santos. um trabalho de campo de arquitetura – cadastros arqui-
Inicialmente, expliquei-lhe as minhas intenções, pro- tetônicos e levantamento fotográfico –, principalmente
pósitos, finalidades, tanto os de pesquisa quanto os de com ele e alguns outros membros do culto, sendo por
ajuda no reconhecimento da casa pela FPC e do tomba- ele acompanhado, zelado, cuidado, conduzido. Era ele,
mento nacional pelo Iphan. nessa etapa, que me explicava cada coisa, construção
Entreguei-lhe então o projeto de pesquisa, mos- e espaço da casa, até os limites onde eu pudesse saber.
trando não só a importância do trabalho para o Omo Ele se empenhava em ajudar diretamente no tra-
Ilê Agboulá em termo de visibilidade como também balho de levantamento físico da casa. “trabalhávamos
juntos” e, depois do “expediente”, íamos almoçar e con-
8 Sendo realizados na primeira etapa do projeto, nos terreiros de versar sobre a casa, o culto, as “histórias”, os “casos”, os
Candomblé Maroketu da nação Ketu (Salvador - Bahia); Abassá de
“acontecidos” do terreiro, da sociedade e do povoado
Ogum da nação Ketu (Salvador - Bahia); Mokambo – Onzo Nguzo
za Nkisi Dandalunda ye Tempo da nação Angola (Salvador - Bahia); de Ponta de Areia junto com outros Ojés e Amuixãs. Ele
Manso da nação Angola (Salvador - Bahia); e o Omo Ilê Agboulá
do culto aos Egum (Itaparica – Bahia). Ficando a segunda etapa
possibilitou e viabilizou o meu trânsito na casa sem
para São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia (Recôncavo e problemas.
Salvador).

{ 25 }
A quarta estratégia seria passar, no mínimo, um Esses aspectos e pontos serão abordados, pontual-
ano e meio indo a todas as festas públicas da casa – ob- mente, quando determinadas explicações de aspectos
servação participante –, visando tanto à familiarização internos da arquitetura do templo só puderem ser
de minha presença na comunidade como levar seus lí- compreendidas e efetuadas quando vierem a se relacio-
deres a sentirem o comprometimento e seriedade do nar com a localidade de Ponta de Areia, seus aconteci-
meu trabalho. Preocupei-me, fundamentalmente, com mentos históricos e processos sociais. Também, esses
a apresentação paulatina, sistematizada de todos os aspectos serão abordados quando o culto aos Egum e o
produtos e etapas dos trabalhos desenvolvidos, como Omo Ilê Agboulá determinarem e regerem o andamento
uma forma de “prestação de contas” e “controle” deles e a condução do fluxo da vida cotidiana, do dia a dia
para com o andamento dos trabalhos. e dos acontecimentos eventuais e fortuitos dos mem-
Todavia, durante o processo de pesquisa de campo, bros do culto aos ancestrais no povoado de Ponta de
percebeu-se a necessidade de recortes temporais e es- Areia, na sua relação terreiro-cidade. Em suas relações
paciais no tema proposto. Convém salientar e destacar concomitantes entre o sagrado e o profano, o público
que, no presente trabalho, não serão mais abordadas, e o privado, e, também, nas condutas éticas, morais,
como estava previsto inicialmente, todas as relações e comportamentais e corporais em suas atitudes, deci-
vínculos complexos do culto aos ancestrais, os Egum, sões, posturas e relações sociais que se dão no povoado,
bem como o seu templo, o Omo Ilê Agboulá, com o po- pois se relacionam e são reflexos da vida religiosa no
voado de Amoreiras, a cidade de Itaparica e a ilha como interior do terreiro do Omo Ilê Aboulá.
um todo. 9

ilha com a privatização de espaços sagrados e as mudanças tanto


9 A relação terreiro-cidade, em sua totalidade e complexidade (no do terreiro quanto dos seus membros, que moravam em sua vizi-
âmbito do aberto), não será objeto de estudo no presente trabalho, nhança; as perseguições dos cultos e igrejas petencostais, o jogo
mesmo compreendendo e até destacando a relação intrínseca e dos territórios entre os evangélicos e o povo de santo com as táti-
indissociável entre ambos, sendo um tema para um outro traba- cas arquitetônicas, espaciais, temporais, legais e institucionais dos
lho acadêmico a ser desenvolvido posteriormente, devido a sua membros do culto aos Egum; o sagrado nas casas dos membros
complexidade, amplitude, riqueza, pluralidade e diversidade de do terreiro, os assento de Exu Bara; todas as festas sagradas e pro-
acontecimentos e relações incompatíveis em tempo e porte para fanas nos espaços públicos do povoado; o cemitério municipal de
um trabalho de mestrado. Não serão estudados aqui de forma pro- Itaparica; as relações e a rede de terreiros de Egum e deles com
funda e sistematizada, abordando toda a sua complexidade, sendo as diversas nações – Ketu, Angola, Jêje... – no povoado e na ilha
apenas pontualmente citados, mencionados e apontados ao longo de Itaparica; as diversas relações entre os espaços públicos, semi
do trabalho para explicar pontos e aspectos da arquitetura e vida -públicos, e privados do povoado de Ponta de Areia – ruas, vielas,
do templo, os estudos de: reminiscências do sagrado pelo povoa- praças, mercearias, vendas, bares, praia... – com as relações de
do, oriundas da mudança do terreiro em suas linhas de fuga das hierarquia litúrgica e de gênero dos membros do culto aos Egum
perseguições policiais; os processos de especulação imobiliária na na vida social da comunidade.

{ 26 }
Assim, no primeiro capítulo: “O Omo Ilê Agboulá Orixá, dos outros terreiros de Egum e dos templos
como uma construção coletiva no tempo”, são aborda- africanos. Esse capítulo se divide em duas seções:
dos os históricos dos terreiros de culto aos Egum do “O espaço sagrado” e “O espaço profano”.
século XIX e XX, destacando os períodos de fundação A primeira seção, “O espaço sagrado”, é organizado
e fechamento das casas, as suas genealogias, suas re- em duas subseções: “O espaço sagrado privado” e “O
lações e sucessões, tal como os papéis desempenhados espaço sagrado público”. Em “O espaço sagrado priva-
pelos seus fundadores e líderes. Em seguida, trata o do” se trata, de forma detalhada, os elementos naturais
histórico do templo Omo Ilê Agboulá, com suas mudan- e construídos em si mesmos e nas suas relações entre
ças da Moreira –local de sua fundação – para o Barro eles e com outros elementos dos demais espaços que
Vermelho e deste para o Bela Vista, em Ponta de Areia, compõem o terreiro, a saber: o Ilê Auô – os assentos dos
no município de Itaparica, em virtude das perseguições Orixás da rua e do mato vinculados ao culto dos Egum
policiais e da especulação imobiliária, assim como das –, o Orixá Onilê e os Egum, o Orixá Iroco e os Egum, o
suas táticas de resistência. Depois, o Omo Ilê Agboulá Orixá Ogum e os Egum; o espaço da mata sagrada e os
é tratado como uma construção no tempo, como um Egum. O espaço sagrado público, da mesma forma, foca
esforço de gerações, de resistências, de existências, de cada elemento arquitetônico e espaços, buscando de-
eternas mudanças, transformações, devires outros. E, socultar, desvelar, compreender e interpretar cada um
por fim, aborda-se o Omo Ilê Agboulá como uma forma destes elementos, em particular e em suas relações. São
peculiar de habitar a terra, como uma forma de conser- eles: o Ilê Exu; o Ilê Iá Ebé; o Ilê Orixá; o Barracão; e o espa-
vação de uma maneira singular de existência através do ço livre sagrado. A segunda subseção, “O espaço profa-
cuidado com o templo. no”, trata as atividades nele desenvolvidas, seu carácter
O segundo capítulo: “Os espaços do Omo Ilê de antessala do terreriro, e o seu invólucro e elemen-
Agboulá” discute a organização da arquitetura do ter- to de fechamento e proteção, o muro verde. Nesse se-
reiro, em sua singularidade e unicidade. Trata des- gundo capítulo se busca, portanto, compreender como
se terreiro em específico como ele é hoje em dia, na esta arquitetura e espaço são organizados, concebidos
sua configuração atual, contemporânea, enquanto e articulados; como são produtos, resultados, frutos e,
uma “paralisação” ou “estabilização” momentânea ao mesmo tempo, desocultador, desveladores de uma
do fluxo, em um instante fenomenológico percepti- cultura baseada na concepção de mundo e no sistema
vo, longe de análises comparativas profundas, exaus- dinâmico de um culto afro-brasileiro, do culto aos an-
tivas e excessivas com a arquitetura dos terreiros de cestrais ilustres, os Egum.

{ 27 }
O terceiro capítulo, “Os tempos do Omo Ilê Agboulá”, no interior do terreiro e fluem pelas ruas do povoado de
aborda as diversas temporalidades da sociedade de cul- Ponta de Areia com todas as etapas do ritual.
to aos Egum. Para tanto, o presente trabalho foca, pri- Buscam-se em todas elas as relações dos tempos
meiramente, o cotidiano, o dia a dia, o fluxo da vida, sagrados e profanos simultâneos com os espaços, cons-
assim como as atividades eventuais e esporádicas dos truções e elementos da arquitetura do terreiro e dos es-
membros da sociedade de culto aos Egum tanto dentro paços sagrados e profanos do povoado de Ponta de Areia.
do Omo Ilê Agboulá quanto nas ruas do povoado de Ponta Tratando os tempos sagrados e profanos não como ca-
de Areia. Em seguida, aborda uma festa pública de culto tegorias polarizadas e dicotômicas, mas coexistentes e
aos Egum, em todas as suas etapas, com a mobilização simultâneas, que acontecem ao mesmo tempo tanto no
de seus membros, seus preparativos no interior do ter- interior do templo, o Omo Ilê Agboulá, quanto no povoado
reiro, os ritos iniciais e, detalhadamente, a festa pública de Ponta de Areia. Na conclusão, “O Omo Ilê Agboulá como
propriamente dita. Logo após, trata a festa dos presen- um opá de tijolos” encerra a exposição, apresentando e
tes às divindades das águas, com o cortejo que começa demonstrando as conclusões obtidas com este trabalho.

{ 28 }
BABÁ BAKABAKÁ
Fábio Macêdo Velame

Babá BakaBaká!

Babá brasileiro.
Negro ligeiro.
Ancestral pioneiro.
Primeiro Babá Egum Brasileiro,
que encontrou acolhimento
nos braços dos mais velhos,
dos Babá africanos guerreiros.

Babá BakaBaká!

Que ligou a
terra ancestral com a morada atual,
o afago africano com o desterro baiano,
Oyo a Itaparica,
o rei ao escravo.

Que uniu as duas margens do Atlântico


para trazer os
Babá Egum africanos
para cuidarem daqueles
Babá Egum brasileiros
que chegam na morada dos desterrados
da vida.
Babá Alapalá
Gilberto Gil

Aganju Alapalá
Xangô Aganjú
Alapalá, Alapalá Xangô
Alapalá Alapalá, Alapalá
Xangô Alapalá
Aganju Xangô
O filho perguntou pro pai Aganju
Onde é que está o meu avô Alapalá
O meu avô onde é que está? Egum espírito elevado ao céu
O pai perguntou pro avô Machado alado
Onde é que está meu bisavô Asas do anjo aganjú
Meu bisavô onde é que está? Alapalá
Avô perguntou pro bisavô Egum
Onde é que está tataravô Espírito elevado ao céu
Tataravô onde é que está? Machado astral
Tataravô Ancestral do metal
Bisavô Do ferro natural
Avô Do corpo embalsamado
Pai Xangô, aganjú Preservado em bálsamo
Vira Sagrado
Egum Corpo inferno e morte
Baba De um rei nagô Xangô.
BABÁ ERIM
Fábio Macêdo Velame

Eduardo, Eduardo Daniel de Paula,


homem velho fundador, Baba Egum Erim,
Daniel, Homem Líder Ancestral.
homem zelador,
de Paula, Fundador,
homem lutador. um dia perseguido,
hoje respeitado.
Eduardo,
líder perseguido, Zelador,
Daniel, um dia maltratado,
líder preso maltratado, hoje exaltado.
de Paula
líder humilhado. Lutador,
um dia humilhado,
Babá, hoje reverenciado.
ancestral respeitado,
Egum, Eduardo Daniel de Paula,
ancestral exaltado, Babá Egum Erim.
Erim
ancestral reverenciado.
1

O OMO ILÊ AGBOULÁ COMO


UMA CONSTRUÇÃO COLETIVA
NO TEMPO
Histórico dos terreiros de culto aos Egum
no Brasil – Histórico do Omo Ilê Agboulá –
O Omo Ilê Agboulá como construção de um
mundo – O Omo Ilê Agboulá como habitar a
terra.

{ 33 }
Histórico dos terreiros de culto aos Ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos. Esse ter-
Egum no Brasil reiro foi fundado por volta de 1820 pelo africano Tio
Serafim, sendo dirigido por ele até a sua morte. Tio
O culto aos Egum na Bahia remonta ao início do sé- Serafim, que faleceu com cerca de 100 anos, entre 1905
culo XIX. Nesse período, já existiam em Salvador di- e 1910, invocava, fazia aparecer e falava com o Egum
versos terreiros voltados especificamente à invocação de seu próprio pai, o qual ainda é cultuado hoje em dia
e à adoração dos ancestrais. Segundo a tradição oral e sob o mesmo nome de Babá Okulelê.
confirmada pelo projeto Égúngún,1 assim se sucederam O Terreiro do Mokambo, fundado em 1830, estava
os terreiros de culto aos Egum no Brasil, nos séculos localizado também em Itaparica, na fazenda chamada
XIX e XX: Terreiro de Vera Cruz, Terreiro Mokambo, Mokambo, onde existia um grande número de escra-
Terreiro da Encarnação, Terreiro do Tuntum, Terreiro vos. Seu chefe foi o africano nagô Marcos Pimentel –
do Corta-Braço, Terreiro da Quitandinha do Capim, conhecido como Marcos o Velho –, que, comprando sua
Terreiro do Matatu e Terreiro da Preguiça, todos eles própria alforria, conseguiu regressar à África, onde per-
fundados no século XIX, entretanto nenhum deles exis- maneceu por vários anos, melhorando e aperfeiçoando
te mais. Dentre os terreiros: Omo Ilê Agboulá, Ilê Olokotum, seus conhecimentos litúrgicos. Viajou para a África le-
Ilê Obaladê, Ilê Omo Nilê, Ilê Marobó, Ilê Babá Adelorum, Ilê vando o seu filho Marcos Teodoro Pimentel, que lá foi
Babá Kiobê, Ilê Atilewa, Ilê Axipá, Ilê Babá2 Adebolá, Ilê Babá iniciado nos segredos do culto aos Egum.
Lojadé e Ilê Babá Onilá, todos foram fundados ao longo Voltando mais tarde para a Bahia, em meados
do século XX. do século XIX, os dois trouxeram o assento de Babá
O Terreiro de Vera Cruz estava localizado na Aldeia Olukotum. (SANTOS; SANTOS, 1981. p.159) Esse Egum
de Vera Cruz, a mais antiga de todas as freguesias da é considerado por todos os membros da sociedade de
culto um dos ancestrais de todo o povo nagô, conside-
1 Projeto desenvolvido pela Sociedade de Estudos da Cultura Negra rado o Olori Egum, a cabeça, o ancestral primordial. Os
no Brasil (SECNEB) sob a coordenação da antropóloga Juana
Santos em 1980, com o objetivo de: coletar e preservar o patrimô- dois então fundaram o Terreiro do Tuntum, também
nio áudio visual do Omo Ilê Agboulá, as suas principais músicas e chamado, na época, de Ilê Olokotum. O Egum de Marcos
festas; registrar a história de todos os terreiros de culto aos Egum
no século XIX, as genealogias entre as casas, as fundações e fecha- o Velho é cultuado hoje sob o nome de Babá Soadê.
mentos dos terreiros de Egum, seus principais líderes e dirigentes O terceiro terreiro de Egum foi o Terreiro de
até a fundação do Omo Ilê Agboulá nos anos de 1940; e por fim
alguns aspectos singulares do culto aos Egum. Encarnação. Fundado por volta de 1840, estava tam-
2 Babá em Iorubá quer dizer Pai, constitui também uma forma de bém localizado na Ilha de Itaparica. Seu fundador e
denominar o Egum.

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primeiro Alabá foi um filho de Tio Serafim, chamado Sua mãe, a famosa Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá,
de João Dois Metros por causa de sua enorme altura. Maria Bibiana do Espírito Santo, a Mãe Senhora, que
Esse terreiro tem enorme importância, visto que foi lá ocupava o mais alto cargo da hierarquia feminina do
que teria sido invocado e aparecido pela primeira vez culto aos Egum, Iá Ebé, o levou para receber as bên-
Babá Agboulá, um dos patriarcas dos iorubás. çãos dos Egum, pois ele sofria de uma doença grave,
O Terreiro do Tuntum, fundado em 1850, também sem solução médica, que a Mãe Senhora acreditava ser
estava situado na Ilha de Itaparica, no antigo reduto de oriunda de um feitiço de suas inimigas. Considerava
africanos denominado Tuntum, onde é hoje o bairro que os feitiços feitos para ela recaíam sobre o seu filho,
do Barro Branco em Ponta de Areia. Esse terreiro teve que não possuía proteção alguma, pois, sendo ela uma
como líder o filho de Marcos o Velho, Marcos Teodoro Ialorixá, possuía a proteção dos Orixás, ao passo que
Pimentel (o Tio Marcos), que morreu já quase centená- seu filho não havia sido iniciado no candomblé.
rio por volta de 1935. Ela recorreu a todas as divindades, entretanto não
Tio Marcos possuiu o título de Alapini Ipekun Ojé, sa- resolveu os problemas de saúde do filho, somente os
cerdote supremo do culto aos Egum no Brasil. Na tra- Egum do Terreiro do Tuntum curaram o seu filho.
dição nagô, o Alapini representava todos os membros Então ela o entregou a Marcos Teodoro Pimentel para
das sociedades de Egum no Afin, no palácio real de Oyo. que ele pudesse iniciá-lo mais tarde nos segredos do
Tio Marcos faleceu por volta de 1935. Com sua morte, o culto aos Egum.
Terreiro do Tuntum fechou suas portas. O Terreiro do Corta Braço, fundado no final do sécu-
O culto a Babá Olokotum continuou, todavia, atra- lo XIX, estava situado na Estrada das Boiadas, no atual
vés de seu sobrinho Arsênio Ferreira dos Santos, que bairro da Liberdade, em Salvador, fora, portanto, da
possuía o título de Alabá, o chefe do terreiro e de uma Ilha de Itaparica. Esse terreiro tinha como um dos Ojés
sociedade de culto aos Egum. Esse foi morar no esta- o conhecido João Boa Fama e era liderado pelo lendário
do do Rio de Janeiro, no município de São Gonçalo, le- Tio Opé. João Boa Fama iniciou alguns jovens na Ilha
vando consigo o assento de Babá Olokotum. Depois do de Itaparica que se juntariam com os descendentes de
falecimento de Arsênio, o assento de Babá Olokotum Tio Serafim e Tio Marcos para fundarem, mais tarde, na
retornou para a Bahia, através de Deoscóredes M. dos primeira metade do século XX, o Omo Ilê Agboulá.
Santos, conhecido como Mestre Didi Axipá, que foi o O sexto terreiro de Egum foi o Terreiro da
presidente e Alabá do Ilê Axipá. Quitandinha do Capim. Fundado no final do século

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XIX, estava localizado na Quitandinha do Capim, em Omo Ilê Agboulá, fundado no primeiro quarto do século
Salvador, e cultuava os Egum Olu-Apelê e Olojá Orum. XX (Figuras 2 e 3), estava numa área próxima à praia
O de Matatu, fundado também no final do século de Ponta de Areia, atrás de um pequeno rio, na loca-
XIX, por Tio Agostinho, situava-se no Matatu de Brotas, lidade denominada Moreira, local onde hoje é a área
em Salvador. Esse terreiro se tornou ponto de concen- atrás da Capela de Nossa Senhora das Candeias. Depois
tração de vários Ojés de outras casas, inclusive o Alapini se mudou para a localidade do Barro Vermelho, hoje se
Tio Marcos do Tuntum. encontrando no bairro do Bela Vista, ambos os locais
O último terreiro de Egum fundado no século XIX pertencentes a Ponta de Areia em Itaparica.
foi o Terreiro da Preguiça, que estava localizado ao lado A partir de 1955, ocorreu o processo inverso do que
da igreja da Conceição da Praia, no início da Ladeira da ocorreu no final do século XIX e início do século XX,
Preguiça. ou seja, ocorreu a reterritorialização do culto aos Egum
Durante o século XIX e o início do século XX, os em várias localidades de Ponta de Areia e povoados vizi-
fiéis, os sacerdotes, os chefes de culto, ou seja, os nhos. Começou a proliferação de terreiros de culto aos
membros de cada um dos terreiros, freqüentavam-se, Egum, todos oriundos do Omo Ilê Agboulá, extrapolando
visitavam-se, relacionavam-se, trocando experiências, inclusive os limites da Bahia, sendo que este processo
conhecimentos, unindo esforços de resistência, primei- se intensificou nestes últimos 25 anos.
ramente ao cativeiro, à escravidão e, em seguida, às Hoje, segundo fontes orais do Omo Ilê Agboulá,3 exis-
perseguições policiais. tem no Brasil 12 terreiros de Egum. Em Ponta de Areia,
Organizaram-se constituindo uma irmandade, uma na Ilha de Itaparica, existem seis: o Omo Ilê Agboulá,
poderosa sociedade secreta com características bem no bairro do Bela Vista, cujo Alabá é o Ojé Abá Balbino
definidas. A partir desse inter-relacionamento, foi que Daniel de Paula; o Ilê Olokotum, que é o antigo Ilê Oiá,
os antigos terreiros sucederam uns aos outros, fecha- no bairro do Barro Branco, sendo o seu Alabá o Ojé Abá
ram-se as suas portas e todos eles vieram, na primeira Guegueu; o Ilê Obaladê, também localizado no Barro
metade do século XX, a se condensar no Omo Ilê Agboulá Branco, tendo como seu Alabá o Ojé Abá Eduardo; o Ilê
(Figura1). Omo Nilê, localizado ainda no Barro Branco, sendo o seu
O Omo Ilê Agboulá é, hoje, no Brasil, a síntese dire- Alabá o Ojé Abá Petú. No bairro da Misericórdia, existe
ta e indireta dos terreiros de Egum do século XIX na
Bahia, sendo a matriz de todos os terreiros dedicados 3 Informações cedidas por Balbino Daniel de Paula, Alabá; Agostinho
exclusivamente ao culto dos Egum na atualidade. O dos Santos, Ojé Abá; e por Agostinho Neto, Amuixã, do Omo Ilê
Agboulá.

{ 37 }
Figura 1: Localização do Omo Ilê Agboulá na Ilha e no município de
Itaparica/ Sem escalas
Fonte: adaptada da Conder (2000).

{ 38 }
Figura 2: Mudanças do Omo Ilê Agboulá no séc. XX no povoado de
ponta de areia/ Sem escalas
Fonte: adaptada da Conder (1998).

{ 39 }
Figura 3: Localização do Omo Ilê Agboulá no alto de Bela Vista/ Sem
escalas
Fonte: adaptada da Conder (1998).

{ 40 }
o Ilê Marobó, tendo como Alabá o Ojé Abá Carneirinho; avô do Balbino, então antes de cair nós seguramos de-
no bairro da Jurema, há o Ilê Babá Adelorum, cujo Alabá pois que ele faleceu, ai voltou a seu Domingos, quer
é o Ojé Tatu (Figura 4). dizer eu tava no Rio eu fui daqui pra plantar o axé
no Rio de Janeiro e lá no Rio de Janeiro graças a Deus
No povoado vizinho de Amoreira, também na Ilha
eu plantei a casa e hoje estou bem estalado, to bem
de Itaparica, existe apenas um terreiro de Egum, o Ilê
na minha casa que se chama casa de babalonilá, que é
Babá Kiobê, cujo Alabá é o Ojé Abá Budijó (Figura 4).
o meu pai carnal que na época morou aqui, e o axé
Na região metropolitana de Salvador, há três ter- ficou pra mim, em vez de ficar pra Domingos meu
reiros de culto aos Egum. O Ilê Atilewa, localizado pró- irmão, ficou pra mim, então quando eu fui imbora
ximo ao aeroporto, na cidade de Lauro de Freitas, cujo pro Rio e que eu quis ficar no Rio de vez, ai falei com
Alabá é o Ojé Abá Regi. O Ilê Axipá, que fica no bairro de meu tio Antonio comprei um terreno mais não fechei
Piatã em Salvador, fundado por Mestre Didi. O Ilê Babá negocio, vim aqui falei com ele e ele me deixou aqui
Adebolá, que ficava em Areia Branca e atualmente loca- três dias esperando uma resposta, e essa resposta foi
sim, ele me deu o axé, e falou volte lá pegue um ter-
liza-se em Simões Filho, cujo Alabá é Ojé Abá Manoel.
reno que eu vou corresponder lá em sua casa, e se eu
No Rio de Janeiro, na baixada fluminense, existem
tiver vivo na época que você aprontar o barracão eu
dois terreiros de Egum. O Ilê Babá Lojadé, cujo Alabá é o
vou inaugurar, mas não deu tempo, então meu irmão
Ojé Abá Carlos; Ilê Babá Onilá, sendo o seu Alabá o Ojé Abá foi pra inaugurar, o Domingos com meus outros tios,
Laércio dos Santos: foi o Zidonio, o pessoal daqui foi em peso pra inau-
gurar a casa e inaugurei a casa lá em 1980, estou lá e
Meu nome é Laércio, fui nascido aqui na Moreira, fui agora, com a morte de meu irmão Domingos, ai ficou,
feito santo com seu Antonio, eu tenho a memória porque depois dele o herdeiro perto dele sou eu, ele
de quando eu fui feito, mais eu tenho 52 anos de ojé morreu o herdeiro sou eu porque eu sou um dos neto
feito, fui nascido e criado aqui dentro, meu imbigo mais chegado, tem o Balbino que é bisneto, eu sou
é interrado aqui dentro, e fiquei aqui muitos anos neto, então ele estava aqui com o Domingos, ai ago-
acompanhado o meu avô, que eu morei com meu avô ra Domingos morreu e eu fiquei mais perto do meu
Eduardo, Eduardo que foi o atual fundador, e depois irmão, [...], quer dizer, então eu vim do Rio dia 24 de
me casei, mais eu era o xodó do meu avô que era o dezembro e hoje esta fazendo um mês que eu cheguei
fundador disso aqui, eu com meus irmãos, todos os do Rio, fiz a festa do egum da casa de olocotum, eu fiz
meus irmãos quase que morou com ele que era pai a festa, já fiz a festa da bandeira, e também vou fazer
da minha mãe, minha mãe era filha de seu Eduardo a festa agora de 2 de fevereiro que é a festa que só é
Daniel de Paula, que foi que fundou isso aqui, que de-
pois passou pra mão de seu Antonio e ai justamente o

{ 41 }
Figura 4: Localização dos terreiros de Egum na Ilha de Itaparica/
Sem escalas
Fonte: adaptada da Conder (2000).

{ 42 }
feita em tradição da casa de babaloa. (SOUZA JUNIOR; de um segredo, o segredo de como invocar os Egum e
SOARES; VELAME, 2006) lidar com a morte, Ikú.

Todos eles foram oriundos de dissidências internas


do Omo Ilê Agboulá, em virtude de disputas de hierar- Histórico do Omo Ilê Agboulá
quias de culto aos Egum, notadamente, nas disputas su-
O Omo Ilê Agboulá, como já foi dito anteriormente, foi
cessórias do posto de Alabá, quando um membro que
fundado no primeiro quarto do século XX, na localida-
disputava o cargo se sentia prejudicado e decidia abrir
de de Moreira, que na atualidade, fica atrás da Capela
a sua própria casa. Outro fator determinante vem a ser:
de Nossa Senhora das Candeias em Ponta de Areia, no
um Ojé ou um grupo de Ojés achar que um determinado
município de Itaparica. Foi fundado por Eduardo Daniel
Egum de sua linhagem, um de seus ancestrais, merecia
de Paula4 (Figura 5), filho de nagôs, juntamente com
um pouco mais de atenção e destaque do que outros;
seus familiares e com descendentes de Tio Marcos e Tio
é significativo também o fato de a abertura de novas
Serafim. Entretanto, o período ao longo dos anos 1930
casas tornar-se uma forma de renda extra para determi-
e o início dos anos 1940, constituíram o auge da repres-
nados Ojés, pois o dinheiro oriundo dos serviços espiri-
são e perseguição aos candomblés na Bahia, o Omo Ilê
tuais é repartido por menos sacerdotes, notadamente,
Agboulá, nesse cenário, também sofreu uma perseguição
com os outros Ojés Abá, os mais velhos.
voraz da polícia. O terreiro foi invadido, alvejado por ti-
Por ser herdeiro direto ou indireto dos terreiros de
ros e destruído internamente pelos policiais como conta
culto aos Egum do século XIX e a matriz dos terreiros
a edição do jornal “A Tarde” de 21 de junho de 1940:
do século XX, o Omo Ilê Agboulá constitui a referência
afro-brasileira no culto aos ancestrais ilustres, os Egum. A policia baiana, em feliz diligência, apreendeu an-
O Omo Ilê Agboulá é prestigiado e respeitado por todos teontem, à noite, na Ilha de Itaparica, em Amoreiras,
os outros templos de Egum no Brasil, pois os seus Ojés um casal de pai-de-santo e copioso material da
sempre regressam ao Omo Ilê Agboulá, nos períodos de liturgia fetichista. Há dias, queixaram-se ao Dr.
festa, porque ele continua a ser a casa de todos os Ojés, Altino Teixeira, delegado auxiliar, os moradores de
independente dos seus terreiros de origem. Esse fato se Amoreiras, contra aquele ‘terreiro’, que os punha em

deve ao fato de o culto aos Egum ser uma sociedade que constante desassossego. Os ‘babalaôs’ eram Antonio

ultrapassa os limites dos terreiros, pois eles são “sócios”


4 Eduardo Daniel de Paula é atualmente cultuado como Babá Erim e
sua festa é no dia 24 de junho. Eduardo Daniel de Paula foi iniciado
no culto aos Egum pelo Ojé Aba Tio Opé.

{ 43 }
Figura 5: Eduardo Daniel de Paula, fundador do Omo Ilê Agboulá no
Barro Vermelho
Fonte: VERGER, Pierre (1946-1953).

{ 44 }
Figura 6: Babá Alapalá saindo da casa do segredo do Omo Ilê
Agboulá, no Barro Vermelho, em um dia de festa
Fonte: VERGER, Pierre, 1958.

{ 45 }
Daniel de Paula e um indivíduo conhecido como No tempo do Barro Vermelho é que era bom, muito bom, as
‘Paizinho’. O Dr. Altino Teixeira entendeu-se com o pessoas tinham muito mais respeito, mais disciplina, res-
Sr. Secretário de Segurança e foi enviada para o local peito, já se chegou um tempo lá no Barro Vermelho que só se
uma caravana de investigadores. Às 19hs de anteon- tinha seis Ojés, tanto era o rigor para entrar na sociedade,
tem, a caravana cercou a casa, e em seguida, varejou não se aceitava qualquer um não, hoje é que está cheio de
-a. Eduardo Daniel de Paula, pai de Antonio, o chefe- casas e tem muito Ojés, eu mesmo tive que passar vários
mor mais conhecido como ‘Alibá’ [sic] e sua esposa anos como Amuixã até chegar a Ojé e quem me confirmou
Margarida da Conceição, que estavam no interior da foi Babá Agboulá, eu tive a honra de ser confirmado por
casa, foram detidos imediatamente. Continuando as Babá Agboulá, hoje em dia fazer Ojé virou negócio, agora
buscas, os policiais encontraram grande quantidade que nós estamos no controle e a tendência agora é fazer
de material próprio do culto fetichista; cadeira de poucos Ojés para não virar negócio, eu soube que tinha até
resplendor e acolchoadas, caveiras e ossos; crânios de fita de vídeo de festa de Egum sendo vendida na feira de
animais; um cetro de aço enfeitado de fitas de várias São Bartolomeu no Rio de Janeiro! de vez em quando apa-
cores, tendo na parte superior uma pomba de me- rece um dizendo que é Ojé, mas como eu não vi ele sendo
tal e na inferior um espeto (catapó); uma imagem es- feito agente confirma, mas tempo bom mesmo era o tempo
culpida na pedra representando um deus barrigudo, do Barro Vermelho, era uma época de muito respeito.5
muito semelhante a Buda (Deus Nanã); várias másca-
ras de madeira habilmente esculpidas; um quadro
Os membros do Omo Ilê Aboulá fugiram das incur-
da ‘Mãe d’Água’; vários batuques, cabaças, etc.Todo
sões do aparelho de captura do Estado. A intendência
este material foi transportado para esta capital, jun-
– a polícia da época – agia determinada e incitada pelos
tamente com os dois detidos, aqui chegando ontem
à tarde. Os pais-de-santo principais, Antonio Daniel
discursos da igreja católica e da sociedade mais ampla.
de Paula e ‘paizinho’ Arsênio Ferreira dos Santos, A igreja acusava, na época, os candomblés de bruxa-
que conseguiram escapar, estão sofrendo severa per- ria, fetichismo, feitiçaria e rituais satânicos. A ciência
seguição por parte de investigadores, que se acham da época legitimou os discursos de que os membros do
no seu encalço. Eduardo (alibá) o pai de santo que se candomblé eram pessoas degeneradas, dementes, lou-
acha preso, explicou ao repórter, detalhadamente, cas, doentes mentais, com os ditos casos de “patologias
a função de cada um daqueles objetos, segundo ele, mentais” – as possessões – ou “problemas psíquicos”
com exceção das cadeiras, datam de muito antes da
libertação dos escravos, tendo vindo talvez da África.
(BRAGA, 1995, p. 31, grifos do autor) 5 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica, em 8 de
fevereiro de 2006.

{ 46 }
oriundos dos saberes-poderes instituídos e edificados Candeias, com a presença de elementos sagrados. Esse
pela medicina clínica (FOUCAULT 2004) e, principal-
,
local, de difícil acesso, situava-se numa área de mata
mente, da psiquiatria. (FOUCAULT, 1979) densa, distante da praia de Ponta de Areia e escondi-
A medicina clínica, ainda, acusava membros do do pelo morro do Alto do Bela Vista, era perfeito para
candomblé de prática de falsa medicina, de exercício as necessidades do bom andamento do culto, ou seja,
ilegal da medicina. A sociedade mais ampla construiu para a sua privacidade e segurança contra as investidas
o discurso dos candomblés como coisa de bárbaros, sel- de curiosos e policiais. Sua visibilidade tinha que ser
vagens, de atrasados, de raças inferiores – o racismo de dificultada, sua localização tinha que torná-lo “invisí-
estado –, (FOUCAULT, 2005) “coisa de negros”. Esses dis- vel” para os forasteiros, pessoas estranhas à comuni-
cursos serviam como forma de legitimação das ações da dade e, principalmente, para as incursões policiais. O
intendência, das perseguições policiais, para que os can- Barro Vermelho foi o local escolhido para a reterrito-
domblés fossem agenciados, reprimidos, controlados, rialização do templo, pois dificultava o acesso. Assim
disciplinados e, consequentemente, subjugados, domi- se conseguia tempo para que se pudesse se organizar
nados, “domesticados” e extintos. Um mal social que em qualquer sinal de ameaça. Devido a sua localização
deveria ser extirpado, um problema social que o Estado estratégica, membros da sociedade conseguiam se reve-
tinha por obrigação e dever eliminar, pois revelava todo zar na guarda do terreiro.
o “atraso” da Bahia, inviabilizava o projeto de moderni- Sempre ficava um membro de vigia no pé da ladeira
zação e fragilizava o exercício do poder instituído. do Alto do Bela Vista, notadamente, no período das fes-
Além desses fatores, os membros do culto aos Egum tas e obrigações. E, quando se aproximava alguém de
fugiam também da especulação imobiliária que se ini- fora: policiais, curiosos, pessoas estranhas à sociedade,
ciava. Realizaram a primeira desterritorialização do 6
moradores da ilha que não pertenciam ao clã da família
templo da localidade da Moreira. Essa desterritoriali- De Paula ou ao culto, era imediatamente comunicado
zação aconteceu em uma linha de fuga em direção à aos demais, que constituíam uma rede de comunica-
localidade do Barro Vermelho, onde reterritorializaram ção, informação e proteção. Rapidamente as pessoas
o terreiro. Ainda hoje se encontram vestígios do ter- presentes no Omo Ilê Agboulá sabiam o que estava acon-
reiro original, próximo à igreja de Nossa Senhora das tecendo:

Antigamente a gente tinha que se esconder e fugir para so-


6 Deleuze define desterritorialização como: “A função de desterrito-
rialização:é o movimento pelo qual se abandona o território. É a
breviver, então éramos muito fechados e desconfiados, esta
operação da linha de fuga”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 224) história de terreiro de Egum, está história de um lugar mui-

{ 47 }
to perigoso, onde a morte e os mortos rondavam, toda esta de infraestrutura como o sistema Ferry-boat; a BA-001,
fama do terreiro de Babá foi criada como forma de sobrevi- que cruza a ilha de ponta a ponta e a liga ao continente
vência, para evitar curiosos, pessoas estranhas do culto, pois através da ponte do Funil; a implantação de constru-
ainda tinha a perseguição da polícia, investidas policiais, a ções e serviços urbanos, viabilizou-se e potencializou-se
pressão da igreja, aí a gente, os nossos mais velhos, os ances-
a especulação imobiliária em toda a ilha
trais, criaram essas histórias para manter as pessoas afas-
Assim foi o ocorrido em Ponta de Areia, com a
tadas, tinha até uma maneira muito especifica de lidar com
subsequente expansão e crescimento do povoado, al-
os estranhos e forasteiros, ficava sempre alguém no pé da
ladeira que dava para o Barro Vermelho e quando alguém terando-se drasticamente os meios de subsistência,
de fora se aproximava ele mandava o recado e o recado ia as relações e os modos de vida da sociedade de culto
de casa em casa pelos membros do culto, ou ele ia rápido até aos Egum, gerando-se novas formas de trabalho, lutas
o terreiro e avisava, então o pessoal tinha tempo de fechar pela sobrevivência e novas relações sociais, religiosas
a casa e sair, quando os estranhos chegavam lá tava tudo e domésticas entre os membros da sociedade de culto
fechado, não encontravam ninguém e assim foi indo [...]7 aos ancestrais. A situação se mantém até hoje, como se
pode notar pela informação de Balbino de Paula:
Vale notar que, a partir dos anos de 1960, com a
escolha da Ilha de Itaparica como um local de balneá- Já tem um tempo isto, aqui era uma vila de pescadores,
rio por alguns estratos sociais da cidade de Salvador e, antigamente tinha muitos pescadores, a maioria dos Ojés
principalmente mais tarde, nos anos de 1970, pela ação eram pescadores, hoje você conta nos dedos, só tem uns
poucos Ojés pescadores, ai depois do Ferry-boat e a pista
direta do governo do estado com: os planejamentos
de asfalto começou a aparecer aposentados e famílias que-
sistemáticos da Conder;8 a subseqüente implantação
rendo comprar casas e terrenos para morar ou fazer casa
de veraneio, as pessoas aqui eram muito simples, aí come-
7 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
çaram a vender suas casas e pedaços de terra que tinham
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 8 de
fevereiro de 2006. para comprar uma geladeira, um fogão, uma televisão,
8 Tendência que se consolidou com o Plano Diretor da Ilha de para ter pouco mais de conforto, e se mudaram para mais
Itaparica de 1978, da Companhia de Desenvolvimento da Região perto do terreiro de Babá, no Alto do Bela Vista, ficando
Metropolitana de Salvador (CONDER), que retoma alguns pon-
tos do Plano de Itaparica de Peltier de Queiroz. O Plano Diretor mais perto dele para não ter que subir a ladeira nas festas
de 1978 considera a Ilha de Itaparica como uma área de balneá- ou quando iam fazer alguma limpeza espiritual, mas como
rio, uma opção de lazer e diversão para a população da cidade de
Salvador, propondo equipamentos urbanos e infraestrutura para disse eles venderam suas propriedades para ter uma vida
viabilizar este cenário para a Ilha de Itaparica

{ 48 }
com um pouco de conforto, uma oportunidade que surgiu, também que faz parte da nossa história de vida, quando
e eles construíram suas casas lá no Bela Vista.9
era criança as vezes Babá aparecia e a gente corria pra
casa, ele pegava as roupas, ou a gente ia pra fonte e quando
Novamente o Omo Ilê Agboulá teve de se mudar chegava lá tinham coisas das roupas de Babá ai a gente
(Figuras 2 e 3) em virtude de dois loteamentos em sua voltava pra casa nem se atrevia a entrar na água.10
proximidade, edificados pela classe média que busca-
va lotes para construir casas de veraneio; de aposenta- Várias são as histórias referentes à fonte sagrada. Os
dos que procuravam um estilo de vida mais bucólico e Ojés contam que, quando eram crianças, iam se banhar
tranquilo; de pessoas que buscavam moradia, pois tra- na fonte sempre atentos, pois os Egum podiam aparecer
balhavam em outros municípios vizinhos. Esses lotea- a qualquer momento, quando apareciam, todos saíam
mentos cresceram invadindo a área da mata no Barro correndo para o mato, a se esconder para não apanhar
Vermelho, chegando até mesmo a fonte sagrada a ser dos Egum; outras vezes, Babá Egum roubava as roupas
privatizada, pois ela se encontrava em um terreno que dos banhistas, castigando aqueles que iam tomar ba-
foi vendido a terceiros, que passaram a proibir o seu nho na fonte sagrada sem permissão dos mais velhos,
acesso, como nos relata Balbino Daniel de Paula: fazendo com que eles voltassem nus para casa; em uma
outra ocasião, ao irem ao local da fonte encontravam
Porque foram abertos loteamentos próximo ao Barro contas, espelhos, elementos que compõem a roupa dos
Vermelho, abriram vários lotes, e aí a gente perdeu a pri- Egum, dando sinal de que ele tinha passado por lá e de
vacidade de fazer os nossos cultos, de fazer as nossas coisas que se encontrava na redondeza e ninguém se atrevia
[...], sempre tinha alguém passando, ou olhando, ai não a entrar na água etc. Os membros da sociedade não se
dava pra fazer as nossas atividades, foi quando a finada
conformam de não terem mais acesso às águas que con-
Mãe Senhora, que era a mãe de Didi e ocupava o cargo
têm o axé que sai da terra, de não terem mais o direito
de Iá Ebé comprou o terreno no Bela Vista, mas a gente
ao acesso à sua fonte sagrada. Ressentem-se, lamentam-
perdeu a fonte sagrada, o terreno onde fica a fonte foi com-
prado e o dono deixava a gente ir lá pegar a água para os
se e reclamam do novo proprietário que impede a so-
rituais, para as nossas necessidades, mas o dono novo, que ciedade de utilizar a fonte para os seus rituais.
comprou do outro, não deixa de forma nenhuma a gente Segundo Laércio dos Santos, Alabá do Ilê Babá Onilá
entrar lá, e era um lugar não só importante pro culto mas no Rio de Janeiro e Ojé Abá do Omo Ilê Agboulá:

9 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo 10 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica, em 8 de Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica, em 8 de
fevereiro de 2006. fevereiro de 2006.

{ 49 }
Figura 7: Mãe Senhora, no Omo Ilê Agboulá no Barro Vermelho
rodeada pelas Erelu – as cantadoras de Egum
Fonte: VERGER, Pierre, 1958.

{ 50 }
Chama-se Bela Vista, mais a casa atende de babado- tinha ferry boat era navio então ela vinha no navio
lua que é o terreiro que é o dono da casa, eu nunca soltava em Itaparica e finado Caetano que sempre
perdi festa aqui desde quando eu não tinha casa de nas festas de babolua dava coisa dava carne pra dar
candomblé eu vivia em São Paulo, sempre andava comida ao pessoal ela que botava lá no jipe e trazia
nas minhas obrigação de dia 6 de janeiro eu tava até ali ao barro branco então ela subia então ela pe-
aqui, dia 8 de setembro eu tava aqui cedo acompa- dindo já to ficando velha e cansada e pediu pra ba-
nhado meus tios, meus primo, meus irmãos que deus bolua se ele dava o consentimento dela comprar um
já levou tudo, e sempre to aqui como estou aqui hoje terreno pra fazer a casa dele mais perto ai ele chegou
porque se eu não controlo, eu tava aqui ajudando e disse que dava porque ela disse que ficava cansa-
meu irmão tirando alguma coisa de mim pra ajudar, da então naquela época ela subia aqui pela ponta do
que na sua casa não tem nada e eu ajudando a fes- barro vinha de tarde com a fresquinha e só tinha um
ta de omolocotum vai sair e no dia 6 de janeiro nós pedacinho de ladeira como é esse pedaço e a ladeira
começamos a festa no dia 5 e fomos até o dia 9 foi de lá era maior aí babolua deu consentimento a ela
três dias de festa o pessoal comeu eu dei comida pro então ela comprou esse terreno e deu pra babolua [...]
povo, teve tudo, bandeira agora dia 20 comprei fogos Eu nasci nessa casa eu vim de minha mãe de meu avô
tudo quer dizer, eu estou aqui né tira nada daqui eu minha avó meu pai eu vim dentro da magia aqui da
to aqui ajudando qualquer coisa aqui pra casa não casa e se furar aqui o sangue é de seu Eduardo Daniel
cair. (SOUZA JUNIOR; SOARES; VELAME, 2006) de Paula. (SOUZA JUNIOR; SOARES; VELAME, 2006)

Novamente, esse terreiro, lutando pela sua sobrevi- A Ilha de Itaparica, a partir do final dos anos de
vência, buscou outro lugar onde pudesse cuidar, zelar, 1960, deixou de abastecer Salvador com frutas e pei-
reverenciar e invocar seus ancestrais. Um lugar onde, xes, as duas principais atividades que sustentavam a
mais uma vez, pudesse erguer uma “nova” arquitetura, comunidade. Agora, a grande maioria, como já foi dito
com “novas” construções e “novos” espaços, mas sen- anteriormente, sobrevive de biscates, de bicos, só al-
do sempre o mesmo Omo Ilê Agboulá (Figura 3). Segundo guns poucos são funcionários públicos da prefeitura
Agostinho dos Santos, Ojé Abá do Omo Ilê Agboulá: de Itaparica, e a grande maioria vive como ajudantes
de pedreiro, carpinteiro, ambulante, pequenos comer-
Era Eduardo Daniel de Paula morreu com cento e ciantes etc. Não há perspectiva de trabalho para os
poucos anos foi o fundador desse terreiro lá embai-
membros da comunidade residentes na ilha, notada-
xo lá no fundo da igreja e depois mudou para o bar-
mente os mais jovens, sendo que muitos deles estão,
ro vermelho mais a finada a senhora Maria Bibiana
atualmente, buscando trabalho em Salvador ou região
do Espírito Santo pediu a babolua que na época não

{ 51 }
metropolitana. Com essa situação, a religião, o culto renda é conseguir retirar da religião, nós não devemos tirar
aos Egum passou a ser também uma forma de renda de Babá, devemos dá a Babá, a gente é que tem que traba-
extra para determinados Ojés, porque eles realizam ofe- lhar se esforçar para engrandecer a casa e Babá.11

rendas, cerimônias de descarrego, banhos de folhas,


limpeza do corpo, ocorrendo uma disputa de mercado Eles constituem uma ala tradicional, mas não con-

por clientes entre os Ojés e os terreiros de Egum. servadora; são contra qualquer forma de mercantiliza-

Esses serviços tornaram-se cada vez menos rentá- ção do culto; lutam para mantê-lo na esfera da cultura,

veis quando realizados dentro do Omo Ilê Agboulá, pois da religião; defendem que a comunidade de Ponta de

o dinheiro oriundo dos serviços espirituais é sempre Areia e a sociedade de culto aos Egum devem se de-

dividido entre os Ojés que participam e os Ojés mais ve- senvolver para investir e engrandecer a casa; tiram do

lhos da casa, que têm que presenciar o ritual para ga- próprio bolso o capital necessário para as reformas e

rantir sua validade conforme os preceitos, criando-se reparos da casa, assim como para os custos das festas

conflitos internos. O ganha-pão diário na comunidade é anuais do calendário litúrgico.

muito difícil, e os serviços espirituais se tornaram uma Eles pensam que o terreiro, nos dias atuais, deve

fonte alternativa de sobrevivência, tornando-se, muitas agregar atividades para a sociedade nos campos da edu-

vezes, a única fonte de renda de um Ojé, notadamente cação, lazer, cultura, serviços sociais e, notadamente,

durante o inverno. Essa situação origina grandes confli- formação e qualificação profissional, pois acreditam

tos entre alguns dos Ojés Abá e o Alabá, pois esses, sendo que, sem o desenvolvimento da sociedade de culto aos

mais conservadores, criticam tais atividades: ancestrais, sem opções de sobrevivência de seus mem-
bros, o culto se enfraquece, não sobrevive como entida-
[...] situação de vida hoje em dia na ilha ta difícil, e mui- de e, por fim, se mercantiliza.
tos Ojés utilizam a religião pra ganhar mais dinheiro, por Acreditam que eles devem se abrir cada vez mais
que ganhar a vida aqui na ilha é muito difícil, as pessoas para a sociedade como um todo, ao contrário de outras
vivem de bico durante o verão, quando vem os veranistas épocas, em que eles tinham que se fechar e se escon-
aí trabalham de caseiros, pedreiros, carpinteiros, eletricis-
der para sobreviver. Hoje, eles precisam de uma maior
tas, serviços gerais, qualquer coisa, as mulheres conseguem
visibilidade e lutam para: o reconhecimento como
trabalhar o ano todo como empregadas domésticas, mas
para os homens é mais difícil, e quando chega o inverno a
coisa piora, é uma pobreza grande, a situação fica crítica, 11 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
aí uma forma de aumentar a renda em casa ou até ter uma Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica, em 8 de
fevereiro de 2006.

{ 52 }
patrimônio nacional pelas instituições do estado e da encontram, sempre retornam ao Omo Ilê Agboulá nas fes-
união para obtenção de recursos para realizarem as tas anuais, pois ela é a matriz, a casa mãe de todos os
reformas na casa; a segurança e apoio legal contra as Ojés, além da existência, evidentemente, das relações
incursões e perseguições das seitas neopentecostais; o de parentesco religioso, da família extensa que compõe
respeito para com o culto que ainda é visto com mui- a sociedade de culto aos Egum.
to preconceito; um maior espaço entre as nações de Retorna-se a ela também, quando os Ojés dessas no-
candomblé; o apoio financeiro e institucional aos seus vas casas têm problemas com algum Babá Egum ou um
projetos sociais de educação, saúde, formação e qualifi- Exu de Egum. Em determinadas situações, buscam con-
cação profissional. Segundo Agostinho dos Santos, Ojé selhos de como lidar com essas entidades com os Ojés
Abá do Omo Ilê Agboulá: Abá (ancião) do Omo Ilê Agboulá, detentores de grande co-
nhecimento, pelo fato de alguns Ojés dessas novas casas
[...] os antigos não conversava muita coisa pra gente não terem tido acesso ainda a todas as portas do Ilê Auô
mais novo saber não a conversa era deles né e quan-
(casa do segredo) do Omo Ilê Agboulá, ou seja, não terem
do eles tavam conversando a gente não ficava nem
atingido o ponto máximo da hierarquia interna dos Ojés,
por perto a gente ficava longe hoje aqui a gente as
não terem adquirido todo o conhecimento do culto:
vez ta conversando vem um minino chega aí e fica
prestando atenção mais naquela época a gente nem
Aqui está a raiz, aqui o terreiro de Babá Agboulá que é
chegava por que se eles tivesse conversando a gen-
o principal de tudo que é terreiro de Egum, hoje tem um
te não podia nem chegar pra interromper tinha que
bucado aqui no Barro Branco, lá na Amoreira, mas tudo
esperar eles acabar a conversa pra poder a gente se
é filho daqui, e nenhum chega perto do terreiro de Babá
aproximar dar um recado ou qualquer coisa então
Agboulá, nosso pai, e quando um deles tem problema com
eles não se abriam pra gente assim como hoje que
Babá ou Exu vem tudo correndo pra cá pedir ajuda, per-
as vezes a gente tá mais aberto hoje ta mais manero
gunta como faz, esses tudo aí de Egum não dá no de Babá,
por que até onde a gente pode conversar a gente con-
a raiz tá aqui, aqui que tem axé forte, tá tudo aqui.12
versa hoje está mais democrático. (SOUZA JUNIOR;
SOARES; VELAME, 2006)
No bairro do Alto do Bela Vista (Figuras 2 e 3), onde
Entretanto, apesar da proliferação dos terreiros de se encontra o Omo Ilê Agboulá, residem algumas famílias,
Egum, eles continuam constituindo uma sociedade.
A sociedade de culto aos Egum não foi fragmentada, 12 Informação fornecida por Agostinho dos Santos, Ojé Abá do Omo
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 8 de
pois eles compartilham o mesmo segredo e sempre se fevereiro de 2006.

{ 53 }
cuja grande maioria é formada por parentes e mem- de Paula de minha mãe. (SOUZA JUNIOR; SOARES;
bros da sociedade de culto aos Egum. Constitui uma VELAME, 2006)
comunidade, uma família extensa, ligados por laços
consanguíneos e religiosos, descendentes de Eduardo Isto é confirmado por Laércio dos Santos, Alabá
Daniel de Paula, segundo Agostinho dos Santos, Ojé Abá do Ilê Babá Onilá no Rio de Janeiro e Ojé Abá do Omo Ilê
do Omo Ilê Agboulá: Agboulá:

Então naquela época, o pessoal a minha avó era que [...] tem muitos filhos, netos, bisnetos, tataranetos a
fazia os partos daqui, mais era todo mundo parente, comunidade é isso aí tudo, depois a senhora vai sair
por que na família todo mundo era parente enten- aí e vai ver o pessoal tudo aí fora, o Agostinho mesmo
deu? Era filha, era sobrinha, neto então era assim, mora aqui em cima e aí tem um mucado de minino
então ele e Laércio já eram um pouco mais velho do que mora tudo por aqui mora tudo perto da roça pra
que eu, então ele alcançou mais coisa do que eu, por olhar por que a área é aberta e a gente tá fazendo um
que quando me aprofundei, por que eu trabalhei em jeito de fechar entendeu? Pidindo a um, pidindo a
Salvador e depois que eu vim pra cá, e quando me outro pra justamente fechar, eu por exemplo, no Rio
aprofundei na seita e comecei a entrar nas obriga- já pidi pra me ajudar pra ver se eu faço essa cozinha,
ções eu ainda peguei meu tio Antonio que era um daqui até setembro eu quero essa cozinha pronta.
veterano e eu já to com quase trinta e poucos anos de (SOUZA JUNIOR; SOARES; VELAME, 2006)
oje já [...] Meu nome aqui dentro do babolua é oluidê,
e o meu de batismo é Agostinho dos Santos, eu sou Nas datas importantes do calendário litúrgico e nas
filho de dona Ninha de Paula, e filho de Fernando obrigações, boa parte da sociedade, mesmo os que mo-
Vitoriano dos Santos eu sou filho da primeira ira- ram em Salvador e outros estados, para lá geralmente
kekê no tempo da Moreira do Barro Vermelho, e ela voltam, permanecendo no povoado por vários dias, for-
morreu aqui nesse terreiro aqui, então sou filho dela, talecendo os laços da sociedade, recebendo as bênçãos,
eu Laércio, Domingos mais uns 4 irmão que morre-
os conselhos e as repreensões dos Babá, estabelecendo
ram, morreu Domingos o mais velho, morreu Jaime
enfim todo um processo de continuidade da tradição e
que também era oje, morreu Sarafim que era oje
de sua singularidade cultural.
também, e morreu Benicio que também era oje, e
o meu irmão caçula morreu ali tocando tabaque ali Daí a grande importância do culto aos ancestrais
que hoje é egum que se chama omoilê, essa é a mi- no povoado, pois é um elemento de coesão grupal, de
nha família então nós não escreveu com Daniel de elo entre o passado e o presente. Verifica-se, na esfe-
Paula por causa de meu pai mais a gente tem Daniel ra social do cotidiano, no dia a dia de seus membros,

{ 54 }
nos espaços públicos, semipúblicos e privados de Ponta do e redistribuído entre tudo e todos que o constituem,
de Areia, a influência da esfera religiosa do culto aos florescendo novamente com sua imanência de axé.
Egum. A construção do Omo Ilê Agboulá foi e é empreendida
pelo esforço material e trabalho coletivo das diversas
gerações de seus filhos e filhas, que, inspirados em seus
O Omo Ilê Agboulá como construção de
ancestrais pelo conhecimento recebido e alimentados
um mundo afro-brasileiro
de seu axé, buscam incessantemente o fortalecimento,
a potencialização e o desenvolvimento da casa.
O Omo Ilê Agboulá é uma construção coletiva no tempo,
Buscam as interações e inter-relações frutíferas de
constitui-se num ser pulsante, vivo, dinâmico. O Omo
axé que possibilitam a existência da vida. Como tal,
Ilê Agboulá é uma construção, transformação, destrui-
deve atender a todos os preceitos e princípios litúrgi-
ção e reconstrução sem fim, composto de mulheres
cos, pois materializa o orum no aiê14 e revela e descorti-
e homens corajosos e valentes, que resistiram com
dignidade e bravura às perseguições policiais, religio-
da seguinte forma: “O àsé é contido nas substâncias essenciais de
sas, políticas e às lutas pela posse da terra. Deixando, cada um dos seres, animados ou não, simples ou complexos, que
portanto, inúmeros vestígios e rastros do sagrado por compõem o mundo [...] O àsé é um poder de realização, transmi-
tido através de uma combinação particular, que contém represen-
onde passou pelo povoado de Ponta de Areia. O Omo Ilê tações materiais de uma combinação particular, que contém re-
presentações materiais e simbólicas do branco, do vermelho e do
Agboulá é um constante recomeço, um eterno retorno à
preto, do àiye e do òrun [...] trata-se de um poder que se recebe, se
fundação da casa, onde e quando o seu axé13 é replanta- compartilha e se distribui através da prática ritual, da experiência
mística iniciática durante a qual certos elementos simbólicos ser-
vem de veículos”. (SANTOS, 1986, p. 41-43) Logo, o axé é a energia
que possibilita e assegura a existência em movimento, que permite
13 Segundo Pierre Verger, “[...] àse é poder em estado de energia pura
a realização, acontecimentos e concretização de objetivos
[...]”. (VERGER, 2002, p. 18) Também assim o axé é definido e con-
ceituado por Roger Bastide: “É sabido que axé designa em nagô a 14 O orum corresponde ao além, ao outro mundo, constitui o es-
força invisível, a força mágico-sagrada de toda divindade, de todo paço sobrenatural por excelência. São habitados pelos ara-orum,
o ser animado, de todas as coisas. No Brasil, o termo conservou- (SANTOS, 1998, p. 56) habitantes do orum, seres sobrenaturais.
se para designar algo diferente, mas que têm em comum com os Sua concepção é de algo infinito, vasto, distante, abstrato, imenso
outros significados o fato de se tratar de um depositário de força e intocável fora do ato ritual. Constitui o mundo real e verdadeiro,
sagrada: significa em primeiro lugar os alimentos oferecidos às di- pois é um mundo completo, habitado pelos deuses e ancestrais,
vindades, em seguida as ervas colhidas para o banho das filhas um plano de existência eterno e inalterado desde a criação, lá se
iniciadas e também para curar doenças, finalmente, o fundamento encontram todos os seres em sua plenitude. O orum, na África,
místico do Candomblé [...]. Eis por que, como vimos, é por meio do entre os nagôs, era constituído de nove espaços, distribuídos de
banho de sangue que se estabelece, no mundo africano da Bahia, forma superposta. Quatro espaços do orum estavam situados aci-
todas as relações entre os objetos, os seres humanos e os Orixás, ma da terra (ilé); o quinto espaço do orum coincidia com o próprio
fazem-se todas as participações, todas as mudanças de força”. espaço da terra; os demais quatro espaços do orum situavam-se
(BASTIDE, 2001, p. 77) E, por fim, Juana Santos conceitua o axé abaixo da terra. Os nove espaços estavam ligados entre si forman-

{ 55 }
na o orum pelo aiê, unindo-os através dos seus espaços e com outras formas e espaços, mas, desta vez, com taipa
tempos sagrados, conservando o seu mundo. de mão e palha, sendo novamente destruído pela am-
O esforço material das gerações é mantido pelo pa- bição dos homens pela posse da terra. Aqueles tiram
rentesco religioso da família extensa. O seu axé é o mes- desta não o axé para a existência e continuidade da
mo, foi plantado, retirado e plantado novamente todas vida, mas o lucro da especulação imobiliária que desa-
as vezes em que o templo estava ameaçado, constituin- propria o homem de sua existência. Foi reconstruído,
do a mesma energia e poder que foi plantada em diver- no bairro do Bela Vista, nos anos de 1960, de tijolos e
sos lugares em Ponta de Areia. Mas o que é o construir cerâmicas, o que se constitui no templo atual de culto
para a Sociedade de Culto aos Egum do Omo Ilê Agboulá? aos Egum. O Omo Ilê Agboulá, como fazer construções,
Construir, para a sociedade dos Egum de Ponta de também é edificar resistências, essas levadas a cabo por
Areia, é, primeiramente, erguer e fazer construções, africanos e brasileiros. O Omo Ilé Agboulá, como edificar
feitas coletivamente, numa comunhão de esforços e resistências, se torna, também, erguer existências, uma
energias. Ergueram, nos anos de 1940, próximo à praia, maneira singular e particular de ser no mundo, onde
um templo feito de madeira, paliçada, barro e palha. gerações e gerações impregnaram cada madeira, taipa
Templo esse destruído pelos algozes policiais, ergui- e tijolos com suas marcas, suas lágrimas e suas vidas,
do logo em seguida e novamente no Barro Vermelho, por respeito à memória e existência de seus ancestrais,
segundo Laércio dos Santos, Alabá do Ilê Babá Onilá no
do um todo e continham o plano do aiê. Esta ligação dos nove Rio de Janeiro e Ojé Abá do Omo Ilê Agboulá:
espaços do orum entre si e entre eles e o aiê se dava pelo opô-o-
rum oun aiê, (SANTOS, 1998, p. 56) o eixo simbólico do mundo,
o elemento que unia o plano concreto e o abstrato da existência. Eu queria dizer que antes de eu chegar aqui de re-
No Brasil, esta concepção dos nove espaços do orum foi recriada. ceber essa notícia boa trouxe uma planta do Rio de
O orum passou a ser tratado de modo genérico. Existe atualmen-
Janeiro eu chamei meu irmão mostrei a ele já man-
te, no universo afro-brasileiro, a idéia de apenas um único orum,
se mantendo, todavia, o opô-orum oun aiê, o elemento de ligação dei vim o material deu oito mil reais de material, eu
entre os dois planos da existência, que podem se atualizar sim- vou fazer isso, por que o meu povo da minha no Rio
bolicamente em diversos elementos arquitetônicos ou durante os
rituais. O aiê corresponde ao mundo concreto, é o universo físico. mandou que eu viesse fazer isso, então eu vim man-
É habitado pelo ara-aiê, (SANTOS, 1998, p. 56) os habitantes do dei meu filho ir na casa de material de construção
mundo que formam a humanidade, e também por todos os seres
tirou o orçamento pra fazer isso pra fazer essa co-
vivos da natureza (animais e plantas). Constitui uma cópia de tudo
o que existe no orum, é o reflexo do orum, é um mundo paralelo ao zinha, primeiro tira aquele banheiro dali, tira aque-
mundo verdadeiro e real (o orum). Corresponde à representação le outro banheiro dali, bota o banheiro dos homem
material de cada indivíduo, cada pedra, cada árvore, cada animal,
cada casa e cidade, cada fruto e grão, cada gota d’água, de sua aqui, e das mulheres ali, isso é o último, e daqui pra
verdade espiritual ou de seu duplo do orum

{ 56 }
setembro nós tamo fazendo isso, eu vou embora as- O Omo Ilê Agboulá, como construção no tempo, é a
sim que terminar o 2 de fevereiro dia 5 eu vou pro luta e a paixão de cada ancestral ilustre – ou não – em
Rio e vou fazer uma festa sábado de aleluia e que eu seus esforços de sobrevivência de sua civilização, de
abro a casa lá de babolua, a casa de babolua eu abro,
um mundo afro-brasileiro singular. Mundo este onde
e quando for em março eu tô voltando, aí quando eu
cada tijolo assentado, cada telha posta, cada argamas-
voltar eu já venho com a verba pra comprar esse ma-
sa lançada leva consigo o axé daquele que os colocou;
terial pra encostar tudo aqui pra mandar fazer essa
obra [...] Justamente, mais é aquele negócio o que vier leva consigo o seu amor pelos seus pais, tios, avós, bi-
como eu disse a meu irmão, meu irmão o que vier savós, os seus Babás; leva consigo toda uma civilização
abrace, o que vier abrace, o que vier tudo é lucro, cujos ecos vieram da África pelos porões dos navios ne-
vamos deixar a casa de babolua em dias por que tem greiros, ecos estes que ressoam em cada tijolo, segun-
outros barracão, e babolua é uma casa famosa nesse do Agostinho dos Santos, Ojé Abá do Omo Ilê Agboulá e
mundo todo o pessoal de lá sabe disso só não ajuda Balbino de Paula, o Alabá, respectivamente:
se não quiser, ele foi feito aqui confirmou aqui na
casa de babolua ela tem um nome que tem hoje no [...] desde quando a gente fizemos o juramento pra
Brasil ele teve que vim aqui confirmar, que dizer, en- gente tá dentro da seita então todo nosso empenho é
tão ele é ciente que tudo que tiver de aparecer é bom, a gente preservar a gente temo que preservar o que
se a senhora chegasse irmão vamo fazer esse quarto nossos antepassados deixou os nossos avós, nossos
aqui pra ajudar a casa de babolua eu não vou dizer a avôs deixou nossos tios tudo deixou então a gente
senhora que não faça, e é assim que a comunidade continua preservando a mesma coisa como eles fa-
sobrevive aceitando tudo que se faz. Nós temos os ziam e aí vai morrendo os mais velhos vai ficando os
barracão, por exemplo, os barracão ai por fora que mais novo e aí vai tomando conta quer dizer daqui
é filiado a isso aqui, muito superior ao nosso, tem quando chegar amanhã ou depois quando Deus me
barraca que o pessoal chega assim diz, foi bem mon- chamar já vem os meus filhos os filhos deles e aí vai
tado, eu não to falando o meu no Rio de Janeiro, eu montado o conjunto que é pra preservar a casa pra
to falando o daqui, eu queria que o meu do Rio de segurar a casa até pra não acabar por que essa casa
Janeiro fosse esse aqui, tivesse montado aqui, porque se for analisar ela já tem um século por que meu avô
o pessoal daqui quando chega lá diz, que barracão, morreu com cento e poucos anos. (SOUZA JUNIOR;
rapaz como é que você conseguiu isso?, eu foi ba- SOARES; VELAME, 2006)
bonila que conseguiu que é o dono da casa. (SOUZA
JUNIOR; SOARES; VELAME, 2006) Este barracão foi ampliado há pouco tempo porque estava
muito pequeno pra caber todo mundo, então ampliamos,

{ 57 }
foi o maior sacrifício porque tive que tirar do meu bolso R$ cada palha, taipa e madeira, em cada barro, hoje, em
7.000,00 e tive que passar dez cheques pré-datados, fiquei seus tijolos, em cada pintura, indumentária, estandarte
no maior aperto, um sacrifício que fiz pela casa, sorte foi os e faixas. Como um viajante errante, estes mitos cons-
meus amigos que me ajudaram, dá pra vê o telhado é mais trutores fazem com que cada edificação fale, conte suas
novo e tá num nível diferente do antigo, assim como o piso
histórias num mundo onde não se escreve, se fala, e
também, a gente fez umas colunas reforçadas de concreto
as palavras faladas fazem e cuidam dessa arquitetura,
com uns ferros grossos, mas foi um grande sacrifício.15
são os seus zeladores, seus guardiões. A arquitetura do
Omo Ilê Agboulá se transforma em uma linguagem cheia
Mas essas construções não são feitas de coisas e sim
de significados que emana das construções, e de seus
de mitos. As construções do Omo Ilê Agboulá são mitos de
tijolos que libertam as palavras contidas nas histórias
tijolos, mitos estes que atravessaram o Atlântico, as ge-
contadas pelos mitos, através dos ritos e símbolos17 que
rações, que se perpetuaram em histórias orais entoadas
contêm.
pelos Ojés; mitos que ergueram cada construção. São,
as próprias construções, herança das futuras gerações,
giu, foi realizado, efetuado, ou seja, começou a ser. Neste aspecto
pois elas próprias contarão as suas histórias às crian- é que o mito se relaciona com a ontologia, do que realmente acon-
ças que virão; são os professores de tijolos, sem voz e teceu nos primórdios, do que se manifestou plenamente na origem
do cosmos. Os mitos tratam de realidades sagradas. Tudo o que os
palavras, mas que contam histórias de deuses, heróis heróis, ancestrais e deuses realizaram. Logo, tudo o que os mitos
revelam a respeito de seus feitos e realizações criadoras pertencem
e ancestrais, fazendo com que seus feitos ecoem pela
à dimensão do sagrado e, portanto, participam do ser. Os mitos
eternidade. descrevem as diversas e muitas vezes dramáticas manifestações
e irrupções do sagrado no mundo, pois são histórias de deuses,
Mitos16 itinerantes nas pessoas e suas coisas, que heróis divinizados e ancestrais, que conservam, contam, revelam
estavam presentes e impregnadas em seus filhos, em e ensinam aos homens os segredos das divindades, os segredos
da criação. Explicam como surgiu e como funciona o cosmo e o
mundo concreto e tudo o que há sobre ele, os elementos da natu-
15 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo reza, o homem e suas formas de organizações sociais, políticas,
Ilê Agboulá, em Ponta de Areia em Itaparica em 12 de abril de econômicas e culturais. Dão a régua, o compasso e o papel para
2006. que a existência possa continuar.
16 Para Mircea Eliade o mito é “[...] uma história sagrada, um aconte- 17 Para Clifford Geertz, símbolo é: “qualquer objeto, ato, aconteci-
cimento primordial que teve lugar no começo do tempo, ab initio”. mento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma con-
(ELIADE, 1992, p. 80) Entretanto, contar uma história sagrada cor- cepção – a concepção é o ‘significado’ do símbolo”. (GEERTZ,
responde a um grande mistério, pois as divindades e heróis são 1978, p. 105) Mircea Eliade conceitua os símbolos, no universo re-
os seus personagens, e os homens não teriam acesso a elas se ligioso, como sendo “[...] um conjunto de significações”. (ELIADE,
lhes não fosse revelado pelas próprias divindades. O mito é uma 1992, p. 12) O pensamento simbólico é inerente ao ser humano,
história que aconteceu no tempo original, uma narrativa do que os advém e precede a linguagem e a razão discursiva. Os símbolos
deuses ou entes sobrenaturais realizaram no início dos tempos. O abrangem todas as alegorias e alusões ao objeto concreto, toda-
mito sempre é uma narrativa de uma criação, conta como algo sur- via a realidade que expressam não se limita e se esgota apenas

{ 58 }
Mas não são quaisquer histórias, são histórias sa- O Omo Ilê Agboulá como habitar a terra
gradas, feitas de energia, de axé, que possuem poderes – o aiê
de realização, o poder da construção. Mas não de me-
ras coisas, de amontoados de tijolos, de casas dispersas E o que vem a ser o habitar para a sociedade de culto
num mato e que se sucedem no tempo, mas sim, se tra- aos Egum do Omo Ilê Aboulá? O habitar19 para os filhos
ta de edificar um habitar, pois só se chega a ela através de Aboulá é construir e cuidar de seu cosmos afro-bra-
da construção. 18
sileiro baseado no culto aos mortos, aos ancestrais. O
construir é, em seu ser fazer, habitar. O habitar torna-

em tais referências ao concreto. Os símbolos são ainda: “[...] por


se, então, o caráter fundamental do ser de acordo com
suas próprias estruturas multivalentes. Se o espírito utiliza as ima- os quais os ara-aiê, os mortais são no aiê.
gens para captar a realidade profunda das coisas, é exatamente
por que essa realidade se manifesta de maneira contraditória, e O habitar é o fim que preside e precede qualquer
conseqüentemente não poderia ser expressa por conceitos [...]. É construção. Todavia, o construir não constitui apenas
então a imagem em si, enquanto conjunto de significações, que é
verdadeira, e não uma única das suas significações ou um único um meio do habitar, um caminho que leva a ele; cons-
dos seus inúmeros planos de referências. Traduzir uma imagem na truir, por si mesmo, já constitui e é o próprio habitar,
sua terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus pla-
nos referenciais, é pior que mutilá-la, é aniquilá-la, anulá-la como
instrumento de conhecimento”. (ELIADE, 1992, p. 11) Os símbolos
possibilitam a revelação das mais secretas modalidades do ser. Os atrás da mesa comensal. Deu espaço aos lugares sagrados que
símbolos possuem o poder e a missão de mostrar tudo o que per- são berço da criança e a ‘árvore dos mortos’, expressão usada ali
menece refratário ao conceito. São atribuídos aos sinais e fenôme- para designar o caixão do morto. Deu espaço aos vários quartos,
nos sagrados da natureza pelo homem, pois a natureza foi criada prefigurando, assim, sob um mesmo teto, as várias idades de uma
pelos deuses; ou construídos e representados por eles em suas vida, no curso do tempo. Quem construiu a casa camponesa foi
cidades e na vida cotidiana. um trabalho das mãos surgido ele mesmo de um habitar que ainda
18 O construir para Heidegger constitui o próprio ato de habitar: “A faz uso de suas ferramentas e instrumentos como coisas. Somente
essência do construir é deixar-habitar. A plenitude de essência é o em sendo capazes de habitar é que podemos construir. A referên-
edificar lugares mediante a articulação de seus espaços. Somente cia à casa camponesa na Floresta Negra não significa, de modo
em sendo capazes de habitar é que podemos construir. Pensemos, algum, que devemos e podemos voltar a construir desse modo. A
por um momento, numa casa camponesa típica da Floresta Negra, referência apenas torna visível, num já ter-sido um habitar, como o
que um habitar camponês ainda sabia construir há duzentos anos habitar foi capaz de construir. Habitar é, porém, o traço essencial
atrás. O que edificou essa casa foi a insistência da capacidade de do ser de acordo com o qual os mortais são”. (HEIDEGGER, 2006,
deixar terra e céu, divinos e mortais serem, com simplicidade, nas p. 139)
coisas. Essa capacidade situou a casa camponesa na encosta da 19 A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos
montanha, protegida contra os ventos e contra o sol do meio-dia, homens sobre essa terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser
entre as esteiras dos prados, na proximidade da fonte. Essa capaci- como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra
dade concedeu-lhe o telhado de madeira, o amplo vão, a inclinação bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. A pala-
íngreme das asas do telhado a fim de suportar o peso da neve e de vra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger
proteger suficientemente os cômodos contra as longas tormentas e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. (HEIDEGGER,
das noites de inverno. Essa capacidade não esqueceu o oratório 2006, p. 127)

{ 59 }
o ato de construir é habitar, pois só se constrói para se o traço fundamental da habitação.20 O cuidado está em
habitar. Todas as construções entram na esfera do po- todas as dimensões da habitação, pois é este cuidado
der da habitação, estão sob o seu domínio, pois o ser da que possibilita e cria as condições para a permanência
habitação as excede. Um Ojé Abá pescador sente-se em e estada dos mortais, os ara-aiê, no mundo, no aiê. Os
seu lar quando está no seu barco sob as vagas da Baía mortais habitam o aiê, e os Egum, os oku-orum, e as di-
de Todos os Santos. Outro sente-se em sua casa na praia, vindades habitam o orum, todavia, ambos, o orum e o
sob as tendas e árvores onde passa os dias a costurar aiê, são cuidados pelos mortais, pois um dia Ikú, a mor-
suas redes de pescaria. Outro sente-se em sua residência te, os levará do aiê para o orum, onde passarão a habitar.
quando está em sua venda ou mercearia, onde recebe O cuidado como caráter e necessidade do habitar o vin-
outros Ojés para lhe pedir conselhos, favores, falar dos cula à esfera da cultura, do tomar conta, zelar, cultivar,
problemas e ouvir suas sugestões. As mulheres da socie- plantar, do cuidar. O habitar dos membros da sociedade
dade do culto aos Egum sentem-se em casa quando es- de culto aos Egum é produto de sua cultura afro-brasi-
tão em grupo, conversando nas vielas estreitas das ruas leira única, ou seja, da sua visão de mundo vinculado
do povoado de Ponta de Areia, horas a fio até o anoite- à ancestralidade. Segundo Laércio dos Santos, Alabá
cer. Essas construções e espaços fornecem uma morada
aos filhos de Agboulá, pois o sentido da habitação se
estende onde os membros da sociedade estão e vão.
20 Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos, ou
O habitar para os membros da sociedade de culto seja, à medida que somos como aqueles que habitam. [...] Habitar,
ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liber-
aos Egum é a maneira como são no aiê, e o são enquanto dade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência.
mortais, como ara-aiê, com a sede ontológica de serem O traço fundamental do habitar é esse resguardo. [...] O resguardo
perpassa o habitar em toda a sua amplitude. Mostrar-se tão logo
imortais como as divindades, e principalmente como nos dispomos a pensar que ser homem consiste em habitar e, isso,
os seus Egum, os ancestrais ilustres da sociedade. A no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre a terra. “Sobre
essa terra” já diz, no entanto, “sob céu”. Ambos supõem conjun-
habitação é, portanto, o fundamento da condição exis- tamente “permanecer diante dos deuses” e isso “em pertencendo
tencial dos membros da sociedade de culto aos Egum, à comunidade dos homens”. Os quatro: terra e céu, os divinos e
os mortais, pertencem um ao outro numa unidade originária.[...] O
destes homens e mulheres no mundo. homem cuida do crescimento de muitas coisas da terra e colhe o
que ali cresce. Cuidar e colher (colere, cultura) é um modo de cons-
O caráter essencial da habitação é, contudo, o cui-
truir. O homem constrói não apenas o que se desdobra a partir de
dado com o seu templo, o Omo Ilê Agboulá. O cuidado é si mesmo num crescimento. Ele também constrói no sentido de
aedificare, edificando o que não pode surgir e manter-se mediante
um crescimento. Construídas e edificadas são, nesse sentido, não
somente as construções, mas todos os trabalhos feitos com a mão
e instaurados pelo homem. (HEIDEGGER, 2006, p. 128)

{ 60 }
do Ilê Babá Onilá no Rio de Janeiro e Ojé Abá do Omo Ilê foi fundador disso aí tudo, que era dono disso tudo,
Agboulá em Ponta de Areia, Itaparica: então orocotun que me sigure que é pra eu ajudar
meu irmão [...] Isso aqui pra mim é tudo, tanto é que
[...] tenho sessenta e sete anos, nasci aqui, meu im- a senhora vê que eu to aqui, por que minha casa tá
bigo foi interrado aqui, quer dizer não foi enterra- no Rio e eu tô aqui, isso aqui foi o lugar que eu nasci
do nesse barracão mas foi enterrado no barracão da foi o lugar que eu aprendi, foi o lugar que, tudo que
Moreira, que minha mãe quando ela tinha minino eu sei aprendi aqui, o que eu ensinei pra meus fi-
minha mãe guardava o imbigo pra botar e enterrar lhos tudo eu aprendi aqui [...] tenho 16, eram 17 mais
na casa de baba porque todo mundo tinha que se- morreu uma menina então ficou 16 filho, e tudo vem
guir aquele caminho, ai minha mãe que era filha de correndo atrás de mim, tudo são ojes são tudo pre-
seu Eduardo que era a quequere da casa, no tempo parado, aliás as mulher hoje tudo tem posto cargo
do finado paizinho, no tempo desse pessoal Miguel da casa, quer dizer, lá no Rio de Janeiro aqui e na
Santana, esse pessoal todo, eu ajudava em Salvador Bahia, tenho filha lá e filha aqui, quer dizer, então
mais quando tinha festa aqui isso aqui intupia eu vi- a gente mora aqui e mora por lá, então se eu perder
nha ajudar minha mãe, minha tia Julia que era irmã isso aqui eu perdi tudo na vida, se eu perder a casa
dela que era filha de meu avô também então esse de babolua eu perdi tudo na vida por que é daqui e
pessoal todo que acompanhava a gente sempre guen- foi daqui que eu aprendi, eu não venho praqui mais
tando isso aqui, sempre guentando, sempre guentan- aprender nada, foi daqui o que eu aprendi e foi su-
do e a gente acha que agora depois que o pessoal foi ficiente o que eu aprendi com meus antepassados,
tudo imbora, Domingos meu irmão guentou aqui o aprendi tudo, e to aqui pra ensinar pra tomar conta
que pode guentou guentou deus levou ele quer dizer da casa de babolua, e o que puder e tiver no meu
então ele sempre dava tudo por isso aqui eu agora te- alcance eu puder fazer, o que eu puder organizar, e
nho meu irmão que é o casula o Agostinho [...] então o que eu puder torcer pra tudo ser bem, que tudo
eu tô aqui ajudando meu irmão estou a disposição isso aqui fique bem, então, é só isso que eu quero, eu
e ele me dando uma força que eu não to muito bem não quero mais nada não quero ficar rico, não quero
de saúde eu e Domingos sempre reclamava com ele ficar pobre, eu quero tudo o que eu tenho por que foi
sobre as coisas que ele fazia que não pudia que ele babolua que me deu. Então eu não dependo de vim
tinha diabete eu tenho também quer dizer então ele ficar aqui resando pelo santo, porque ele já me deu e
comia muita coisa que não tá no meu orsario quer agora eu to dando, to ajudando e é isso que eu quero
dizer então Deus levou de uma hora pra outra eu to entendeu? E eu acho que quem cria sempre quando
aqui me segurando pidindo força a ababolua a bo- chega na hora certa a gente recolhe, eu colhi, colhi,
rocotun a baerin que é o meu avô que justamente e agora to plantando, agora to cuidando com meu

{ 61 }
irmão, minhas sobrinhas, eu venho aqui quatro ve- saída do “caos” ao cosmo. Edificou o templo com suas
zes, cinco vezes no ano, cumprir minha obrigação, construções e espaços sagrados, onde este grande axé
o falecido mesmo Domingos ligava pra mim venha foi distribuído por todas as suas construções, elementos
pra cá pra dar uma força na reunião, eu falava já to
naturais, espaços, membros e filhos, estabelecendo, em
chegando aí, e sempre fui um cara sempre severo,
cada um deles, o seu fundamento. Criou-se uma grande
brinco mais sempre na hora vamos ver, todo mundo
corrente e interação de axé, que extrapola os seus mu-
junta as forças entendeu? (SOUZA JUNIOR; SOARES;
VELAME, 2006) ros a abranger todo o povoado de Ponta de Areia, pois
ele, como um inteiro, é o habitar dos filhos de Agboulá.
Construir, logo, é, em essência, fazer habitar. O Omo Ao se plantar o axé do templo, cria-se o cosmo, cria-se o
Ilê Agboulá, como uma construção coletiva no tempo, é aiê, e abre-se o orum. Foi este poder, em suas diversas for-
um fazer habitar afro-brasileiro secular. Esse habitar, mas de interação, que construiu o Lessém; que “zelou”
que foi transformado e recriado nos porões dos navios para que Onilê, Ogum e Iroco estivessem próximos, bem
negreiros, nas senzalas, canaviais, nos porões, cozinhas como para que estes estivesssem próximos ao Lessém, o
e quintais dos sobrados coloniais e imperiais, dos adros que fazia com que a mata se mantivesse pura, sem ener-
das igrejas, das ruas e vielas das cidades brasileiras, em gia “negativa” nos fundos do Lessém. Foi este poder que
qualquer lugar onde estivessem, é uma forma de ser “cuidou” para que o Ilê Orixá, a Casa de Xangô, com os
no mundo. O que possibilitou a construção do templo assentos das divindades estivessem dispostos no local
do Omo Ilê Agboulá foi a existência e persistência em um mais alto do terreiro, o mais longe possível do Lessém.
lugar: Ponta de Areia, Itaparica, através de homens e Assim como foi este poder que “tomou conta” para que
mulheres afro-brasileiros, e de um determinado poder o Ilê Iá Ebé se localizasse o mais distante do Lessém; como
de realização. Trata-se, este, de um poder de aconteci- também foi ele que “cultivou” a necessidade de Exu es-
mentos que socorreu e atendeu ao chamado, às solici- tar na entrada do terreiro com uma visão panorâmica
tações, às necessidades das coisas do céu e da terra, do de todo o conjunto, assim como de estar o barracão pró-
orum e do aiê, dos imortais, os Egum, dos oku-orum, das ximo ao Lessém, no meio do terreiro.
divindades, dos mortais, os ara-aiê. Este poder é o axé É este poder que faz com que nenhuma telha seja
da casa, plantado no Lessém, a casa do segredo de um tirada ou colocada sem antes fazer os preceitos, tan-
tereiro de Egum. to para tirá-la quanto para colocá-la. É este poder que
Foi este poder, energia de realização dinâmica, que faz com que a brisa sopre fresca nas faces dos meni-
possibilitou a cosmonização deste espaço. Possibilitou a nos e meninas que aprendem a tocar os instrumentos

{ 62 }
e cantar músicas para Babá, aos sábados; assim como e encontrar com seus filhos possam realizar suas von-
faz com que o vento venha leve para não incomodar os tades; tal como leva a música e o som dos atabaques às
galhos e folhas do antigo e cansado Iroco; é este poder casas e ruas de Ponta de Areia; que afasta a tempesta-
que faz com que chova pouco durante as festas sagra- de para que os seus filhos pescadores possam regressar
das para que todos os seus filhos possam comparecer. para os seus braços.
Assim como faz despencar do céu o oceano para que É este poder – axé − que rege, flui e dinamiza o cos-
seus inimigos se atolem nas ladeiras de barro que lhe mos que fundamenta o habitar dos homens e mulheres
dão acesso. É este mesmo poder que faz com que as que compõem a Sociedade de Culto aos Egum do Omo
noites de festas durem uma eternidade para que haja Ilê Agboulá.
tempo para que todos os Babás Egum que queiram sair

{ 63 }
BABÁ OLOKUTUM
Fábio Macêdo Velame

Babá do Opá Branco.


Pai de todos os mortais.
Ancestre da terra africana.
Senhor de todos os Egum.
Aquele que manda no lado direito.

Babá Olokutum!
Pai ancestre senhor do lado direito.

Foi trazido ao novo mundo


pelos seus filhos desterrados,
para afagar as dores
de seus irmãos cativos,
para aconselhar seus filhos aflitos,
para curar as feridas
dos grilhões imprimidos.

Babá Olokutum!
Pai ancestre senhor do lado direito.

Aquele perante o qual todos os Egum se curvam.

Três vezes eles se curvam!

Se curvam, ao:
Pai,
Ancestre,
Senhor do lado direito.
BABÁ ATILEWA
Fábio Macêdo Velame

De quem é essa cadeira? Babá tem o seu nome lá,


Que cadeira? esculpido na madeira
Isso é um trono! para que todos não esqueçam de
Esse é o trono de Babá! que aquele trono é de Babá,
Nele só Babá pode encostar,
pode tocar, Babá Atilewa!
pode sentar.
Por que esse trono Tem seu nome esculpido nele
tem um axé, para que todos possam lembrar,
o axé de Babá, da sua destreza,
proezas,
Babá Atilewa! firmeza,
igual ao seu nome
Nele Babá está presente que na madeira está.
mesmo estando ausente,
uma ausência que se faz Este é o trono de Babá,
respeitar, E aqueles que vivem,
notar, sonham em um dia poder,
lembrar, trocar sua cadeira,
por que este trono é de Babá, por um trono igual a de Babá,

Babá Atilewa! Babá Atilewa!


2

OS ESPAÇOS DO
OMO ILÊ AGBOULÁ

{ 67 }
O terreiro de culto aos ancestrais, aos Egum, Omo Ilê O Espaço Sagrado
Agboulá, é, antes de tudo, e como todos os outros, um
templo, mas um templo afro-brasileiro único. O templo O espaço sagrado1, segundo Mircea Eliade, é “[...] ‘for-
é uma imagem de mundo, uma visão de mundo, um te’, significativo, o único que é real, que existe realmen-
microcosmo: te [...], revelação de uma realidade absoluta”. (ELIADE,
1992, p. 21) Todo espaço sagrado implica em uma hiero-
[...] a estrutura cosmológica do templo permite uma fania, irrupção ou manifestação do sagrado no mundo,
nova valorização religiosa: lugar santo por excelên-
que possui como conseqüência destacar um território
cia, casa dos deuses, o Templo ressantifica continua-
cósmico que o envolve e torná-lo qualitativamente dife-
mente o mundo, na medida em que o representa e o
rente. As hierofanias subjugam toda a homogeneidade
contém ao mesmo tempo [...]. É graças ao Templo que
o mundo é ressantificado na sua totalidade. Seja qual do espaço, pois desvelam o divino em todos os seus ele-
for seu grau de impureza, o mundo é continuamen- mentos, nas suas menores coisas.
te purificado pela santidade dos santuários. (ELIADE, O espaço sagrado, ao ser o real, torna-se uma fonte
1992, p. 52) inesgotável de poder, eficiência, vida e fecundidade. O
homem religioso possui um grande desejo de viver no
A santidade do templo está ao abrigo, protegido, de sagrado, pois ele necessita viver num mundo verdadei-
toda a malidicência e corrupção terrestre, e isto pelo ro, real − aquele habitado pelos deuses, heróis e ances-
fato de que o templo é uma morada dos deuses. trais no início do tempo −, regido pela eficiência e não
Os princípios transcendentes dos templos, que sim- numa ilusão, num mundo disforme e amorfo.
bolizam a concepção do cosmos, possuem uma existên-
cia incorruptível, espiritual e celeste. Pelos deuses, o
homem acede à visão destas organizações cósmicas, a 1 O sagrado e o profano são duas modalidades de ser no mundo
do homem religioso, duas situações existenciais. O sagrado ocorre
estes arquétipos, esforça-se em imitá-los, reproduzí-los porque existe o profano. Os dois só existem em suas relações e
na terra. O Omo Ilê Agboulá é a materialização da concep- eles se relacionam não de maneira polarizada ou dicotômica, mas
sim de forma simultânea, coexistente, se conectam ao mesmo
ção particular de uma visão de mundo afro-brasileiro, tempo, acontecem em um mesmo instante. O sagrado e o profa-
condensada em seu sistema simbólico. O espaço inter- no são indissociáveis e se relacionam no mundo conforme o ser
no mundo que o homem religioso assume em sua trajetória exis-
no do templo Omo Ilê Agboulá é organizado atualmente tencial. Eles se relacionam qualitativamente manifestando-se no
em dois espaços: o espaço sagrado − privado e público espaço (espaço sagrado e profano), nas construções (templos e
moradias), no tempo (tempo sagrado e profano), na natureza (a
−, e o espaço profano (Figura 8). fauna e a flora, os animais, plantas e árvores sagradas), nas coisas
(utensílios e objetos de culto ritual).

{ 69 }
A instalação num território equivale a consagrá-lo, para poder ter acesso a um dado conhecimento que é a
criá-lo de novo, em transformá-lo num mundo, num sua chave para um dado espaço.
cosmo habitado e harmônico. A construção do espaço Os públicos e privados, no candomblé, são a acessibi-
sagrado passa, indissociavelmente, pela consagração de lidade corpórea e visual − pois ambos possuem “cargas”
um território por um ritual de passagem. A consagra- que devem ser trabalhadas − a certos espaços, constru-
ção de um território equivale a sua cosmonização; é a ções, ambientes, ritos, fundamentos e segredos do culto
reprodução, em uma escala micro, da criação divina, na dentro do terreiro. É um acesso gradativo, somente pos-
qual o “nosso mundo” estabelece os seus limites. Esse sível através de um saber iniciático adquirido e acumu-
espaço conseqüentemente se torna uma obra das di- lado ao longo do tempo pelos seus membros em uma
vindades e está constantemente em comunicação com hierarquia específica e em suas relações de gênero.
o além habitado por eles, pois o homem transforma-o
simbolicamente através dos rituais de fundação. Essa
O Espaço Sagrado Privado
cosmonização deu-se, no Omo Ilê Agboulá, com a planta-
ção do axé da casa, a raiz que frutifica em abundância O espaço sagrado privado do Omo Ilê Agboulá (Figura
de vida, em sua imanência de axé, que possibilita que 8) é entendido como espaço cujo acesso é restrito ao
as coisas aconteçam, fluam, dinamizando a existência. corpo sacerdotal de culto aos Egum, aos Ojés,2 em to-
O espaço sagrado do Omo Ilê Agboulá se divide em:
espaço sagrado privado e espaço sagrado público. O 2 Segue em ordem crescente a hierarquia masculina da sociedade de
culto aos Egum propriamente dita: Amuixã é o primeiro grau da ini-
privado e o público, no universo do candomblé, nota- ciação, são os “noviços”, ainda não conhecem os segredos da seita
damente, na Sociedade de Culto aos Egum do Omo Ilê e não sabem invocar Egum; Alabê é o responsável pelos toques
rituais, alimentação, conservação e preservação dos instrumentos
Agboulá, assim como o sagrado e o profano não existem musicais sagrados, atabaques − Rum, Rumpi e Lé. Nos ciclos de
enquanto categorias dicotômicas, opostas, polarizadas festas, é obrigado a se levantar de madrugada para que faça a al-
vorada. Se uma autoridade de outro axé chegar ao terreiro, o Alabê
e homogêneas, pois elas não são herméticas e estan- tem de lhe prestar as devidas homenagens; Babaojé ou Ojé - Babá
ques, não há o público e o privado no singular. O que há (pai) Ojé (sacerdote do culto de Egum), tem uma iniciação dife-
rente da Iaô do candomblé. Eles são escolhidos entre os Amuixã
são vários níveis de acessos estratificados. Acessos esses, que deverão passar por novos ritos de iniciação. Estão unidos por
um pacto entre eles e com os espíritos ancestrais, pacto aperfei-
vinculados ao saber e conhecimento iniciático adquiri-
çoado durante a segunda iniciação, pela ingestão de elementos
dos ao longo do tempo de forma compassada. Assim, o simbólicos entre os quais figuram pitadas de terra. Essa introje-
ção de terra, de folhas e ervas rituais, axé específico, lhes permitirá
membro do culto é preparado através da tradição oral cumprir suas funções ao mesmo tempo em que selam sua relação
com o além. Depois de sua iniciação, o Ojé empreende uma longa
aprendizagem e desenvolve paulatinamente seu axé, que lhe per-

{ 70 }
das as suas estratificações, aos Amuixã, assim como ao “negativas”, que desequilibram o sistema, pois passam
Alapini e ao Alabá, bem como a alguns membros da alta a interagir com as energias puras, “positivas”, desses
hierarquia feminina. Todos eles preparados − pois pas- espaços sagrados.
saram por rituais específicos para ascenderem a estes Esse espaço compreende a área mais interna, o fun-
cargos − para entrar tanto em ambientes carregados do do terreiro, e é composto pelo: Ilê Auô − a casa do se-
de fluxos de energia, de axé, como em outros espaços gredo −, os assentos dos Orixás Onilê, Ogum, Iroco,3 a
essenciais à manutenção do segredo do culto, proibi- Mata Sagrada do terreiro, com suas árvores específicas,
dos a não iniciados, até mesmo a iniciados com ritos e a Mata (Figura 8).
incompletos. Isso ocorre porque o olhar não prepara-
do quebra por completo e captura pedaços desse fluxo
O Ilê Auô
de energia, além de trazerem consigo cargas impuras,
Na frente da Mata Sagrada, em meio a árvores e arbus-
tos de várias espécies, atrás da entrada dos fundos do
mitirá atingir funções com responsabilidades cada vez maiores. O
grupo mais elevado na hierarquia está constituído pelos Ojé Abá, barracão, guardada, silenciosa, misteriosa, presa e agar-
os anciãos, é desse grupo que será escolhido o supremo chefe.
rada à terra como uma árvore, uma vez que seus pilares
Os Ojés são, pois, os intermediários entre os vivos e os mortos.
Têm a responsabilidade de tornar os espíritos ancestrais visíveis se transformam em raízes, está uma casinha singela. É
e fazê-los aparecer em público. No Ilê Auô (casa do segredo), os
Ojés ascendem a cargos hierárquicos internos à medida que são
um pequeno templo que contém, entre as suas paredes
aprofundados no culto, ou seja, as portas internas do Ilê Auô não e telhado, um inimaginável poder que guarda, cuida
se abrem de uma vez para o Ojé feito; de tantos em tantos anos,
lhes é permitido abrir uma porta do Ilê Auô e ter revelado mais um e esconde um grande segredo, o segredo de evocar os
segredo, aprendendo novas coisas sobre o culto. O tempo é funda- espíritos dos ancestrais e seus poderes de realização, o
mental nos aprendizados dos segredos; Mariô é o nome simbólico
do Ojé, associado às palmas desfiadas do igi-ope, os descendentes seu axé. Nesse templo, apenas homens e anciões im-
da palmeira, identificada com os ancestrais; Atoque é o Ojé res- ponentes, compassados, silenciosos e observadores que
ponsável por zelar um ou mais Egum, os Atoques sempre fazem
parte dos Ojés anciões; Alabá é Ojé chefe do terreiro e como todos se comunicam e falam apenas pelo olhar, só eles é que
os Ojé-abá, possuiu seu Otum e seu Osim, cada um com funções podem entrar, só eles penetram nesse segredo, só eles
bem determinadas, são os seus auxiliareas; Alapini é o sacerdote
supremo do culto aos Egum; o atual Alapini no Brasil é Mestre dominam esse poder conservado de geração em gera-
Didi Axipá, presidente da Sociedade Cultural e Religiosa Ilê Axipá.
O Alapini, o mais alto cargo na hierarquia do culto aos Egum, em,
ção por um pacto de silêncio, pacto este, firmado há
sua origem, representa esta tradição no palácio, o Afin de Oyo, muito tempo em terras iorubás.
onde o rei, para ser coroado, deveria fazer obrigações específicas
com o Ipehum Ojé, o Ojé detentor do título absoluto. Segundo
Juana Santos, o Alapini era um nobre que compartilhava os mais 3 São três Orixás da rua do Omo Ilê Agboulá que possui vínculo com
importantes privilégios da casa de Oyo. os Egum.

{ 71 }
Figura 8: Espaços básicos do terreiro Egum Omo Ilê Agboulá/ Sem escalas
Fonte: elaborado pelo autor.

{ 72 }
Mas o que é esse templo que faz com que tudo cres- É a principal construção da casa é o coração do terreiro, ali
ça, floresça, se desenvolva em potência e beleza ao seu dentro tem tanta energia, tanto axé que você nem imagina,
redor? você não faz nem idéia da energia que tem lá, o problema é

Esse templo é o Ilê Auô, a casa do segredo, (Figuras o telhado que já está velho e durante o inverno fica pingan-
do e molhando o chão que é de barro fazendo lama e poça,
8 e 9). Aparentemente, constitui uma edificação muito
e não pode é o lugar mais sagrado da casa, a prioridade
simples, a mais precária de todo o conjunto arquite-
número um da gente é trocar o telhado, tanto que você vê
tônico do terreiro, pois é a que está sempre sofrendo
modificações e ampliações, já que sempre precisa de
novos espaços para comportar os novos assentos dos noção de centro é fundamental para o homem religioso, segundo
Mircea Eliade, pois: “[...] o homem arcaico e religioso desejava vi-
novos Egum à medida que os Ojés Abá falecem e têm os ver o mais perto possível do Centro do Mundo”. (ELIADE, 1992, p.
seus axés fixados nesses assentos. 39) O homem religioso não só quer viver o mais próximo possível
do centro, mas levá-lo consigo, pois o centro simboliza a monta-
Constitui-se em uma casa feita de blocos cerâmicos nha mágica, a árvore, cipós, totens etc. que liga os céus, a terra e
aparentes, com paredes mal aparelhadas e aprumadas, o submundo. É o lugar mais próximo das divindades, e o homem
religioso procura levar consigo esse centro em todos os lugares e
cobertas com telhados ora feitos de telhas de fibroci- atividades cotidianas de sua existência. O axis mundi cria e funda
mento, ora de telhas cerâmicas artesanais (Figura 10). um “mundo” (do homem religioso), o “imago mundi”, (ELIADE,
1992, p. 41) em torno dele e a partir dele é que o “mundo” se de-
Aparenta uma edificação sem importância e insigni- senvolve. O axis mundi, o eixo, encontra-se no meio, no “umbigo
da Terra”, (ELIADE, 1992, p. 34) ele é o Centro do Mundo, o “mun-
ficante para um olhar desatento, fora deste universo
do” do homem religioso situa-se sempre envolta do Centro. Assim
cultural complexo que se baseia em outros conceitos o terreiro de candomblé, em si, constitui, para o povo-de-santo, o
seu ponto “fixo”, o ponto de referência, o seu centro em relação à
e valores. cidade onde habita. Da mesma forma o pilar central do barracão
Todavia o Ilê Auô constitui a principal edificação do dos terreiros de Orixás, ou sua substituição simbólica pelo pórtico
estrutural composto pela tesoura de sustentação do telhado e os
terreiro. Ela é a mais importante, é o centro de todo o pilares de suas extremidades, ou o eixo imaginário marcado sim-
terreiro, constitui o Axis mundi4 de todo o conjunto: bolicamente pela diferenciação do piso (um ponto central de re-
vestimento distinto do resto do barracão) ou elementos materiais
simbólicos (quartinha, jarro d’água...) atualizam e são o opô-orum
4 Axis mundi (ELIADE, 1992, p. 39) é o eixo do cosmo, o centro, o lu- oun aiê (pilar que liga o orum e este ao aiê e onde geralmente
gar e elemento simbólico que faz a ligação do além com o mundo se planta o axé da casa), o centro do terreiro. Da mesma forma,
concreto. Constitui o portal de passagem que possibilita a aber- cada Ilê Orixá com seus respectivos pepelês6 ou assentos em árvo-
tura dos vivos para o orum e abre o aiê para todas as entidades res sagradas na mata, correspondem ao portal-eixo de ligação do
sobrenaturais. Entretanto, esse eixo não é fixo, ele varia de acordo orum-aiê e constituem o centro dos rituais específicos destinados
com a escala com que o homem se relaciona com o universo ou o àquela divindade e realizados pelos seus filhos, descendentes, to-
cosmo, a região, a cidade, a sua casa e o seu próprio corpo. Não mando-se um centro do microcosmo do terreiro, naquele tempo
são vários lugares, inúmeros eixos − portais para o além −, mas sim sagrado veiculado pelo ritual. Há, por fim o assento de Exu Bara,
constitui o mesmo e único eixo de ligação orum-aiê, transferido em princípio individualizado dinâmico que cada ser humano carrega
virtude dos diversos rituais e da escala estabelecida por estes. A consigo para onde for, constituindo o centro de sua casa.

{ 73 }
Figura 9: Planta Baixa do Barracão e do Lessém do Omo Ilê Agboulá /Sem escalas
Fonte: elaborado pelo autor.

{ 74 }
Figura 10: Ilê Auô (Casa do Segredo)
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 75 }
que tem trecho de eternit e outro de telha de barro, e tam- por que aqui eles pensam que pode? Mandamos todos em-
bém não pode ficar tirando e botando o telhado toda hora, bora, e que não volte mais.6
porque ele contém o axé a energia do Lessem, tem preceito
pra botar e preceito pra tirar [...]55 O Ilê Auô tem como princípio fundamental e irres-
trito o fato de alguns de seus espaços internos serem
O Ilê Auô assume uma dimensão de importância ain- em piso de terra, de chão batido, para que possa se es-
da maior, central e hegemônica sobre todo o terreiro, tabelecer o contato direto com o solo, a terra mãe de
pois constitui a “morada” dos Egum, é de onde eles vol- onde os mortos surgem do orum para o aiê (Figura 11).
tam para o aiê, de lá é que eles advêm do orum para se A casa do segredo é composta de duas partes: a an-
encontrarem com seus descendentes. O Ilê Auô, a casa tessala e o ibalé. A antessala é onde se reúne o conselho
do segredo, chamado também de casinha ou casa de dos Ojés Abá,7 composto por nove membros, para discu-
Egum, tem que ser construído na área mais reservada tir as questões internas e externas referentes aos mem-
e privada do terreiro, em função dos rituais secretos da bros da sociedade, sendo aí todos os assuntos religiosos
sociedade: discutidos e resolvidos.
É ainda o lugar onde as decisões dos Ojés são toma-
[...] a dois anos atrás veio um pessoal aqui da universidade
das, onde os iniciados, os Amuixãs, são feitos Ojés e, por
através da Fundação Palmares, [...] veio medir as coisas e
fim, onde são realizadas as cerimônias e rituais secre-
fotografar aqui como você fez com a gente com calma se-
guindo as nossas orientações e acompanhado pela gente,
tos de culto aos Egum, os quais são acessíveis apenas
mas eles quiseram entrar de qualquer jeito no Lessem, dis- aos Ojés. Constitui uma construção privada aos Ojés de
seram que só fariam o trabalho se entrassem no Lessem, todas as hierarquias, sendo que alguns deles ficam dias
mas não pode, aqui só entra Ojé, ai ficaram chateados, e longe de suas famílias, enclausurados, cumprindo to-
a gente aqui retados e mandamos eles irem embora, e pra das as suas obrigações litúrgicas.
nunca mais voltar aqui, e ai eu perguntei a eles, se lá em A antessala do Ilê Auô constitui, portanto, a sala so-
Salvador eles vão entrando na sacristia e na casa do padre cial dos Ojés. Só a eles é permitido o acesso; é totalmente
ou bispo sem pedir licença e sem perguntar se pode entrar,

6 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo


Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de
5 nformação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
março de 2006.
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de
março de 2006. 7 São os Ojés anciãos, os mais antigos do terreiro.

{ 76 }
Figura 11: Entrada do Ilê Auô (saída dos Egum)
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 77 }
fechado e proibido a não iniciados, a iniciados de ritos porta de entrada do Ilê Auô é um Exu Ona, tem como
incompletos e às mulheres da sociedade: função básica proteger os Ojés e a casa do segredo.
O Exu Ona é o supremo senhor dos caminhos, po-
Os velhos iniciados, assim, vão se integrando ao mun- dendo, de acordo com a situação, fechá-los ou abrí-los.
do sagrado, antes mesmo de sua morte física: aconse-
Abre e fecha a casa para as boas e más energias respec-
lham a todos quantos os procuram, atuam como me-
tivamente. Ele é grande controlador dos caminhos que
didores em quasquer disputas, enfim, comportam-se
conduzem à fortuna, às coisas boas, assim como aos
como eguns, ao agir como verdadeiros conselheiros
da vida civil e religiosa. (BRAGA, 1995, p. 61) elementos ruins e totalmente malignos.
O Exu Ona fiscaliza todo o fluxo de entrada e de
Dentro dela, encontra-se o assento8 de Exu9 e tam- saída, todo o tráfego. Sua função básica é semelhante a
bém o assento de Ossaim10. O Exu que guarda e zela a que existia na África, pois ele continua sendo o senhor
absoluto das portas dos terreiros como era dos templos
8 Os assentos são objetos em que o axé das divindades − Orixás e palácios, e o guardião dos portões das cidades ioru-
− e entidades sobrenaturais − Egum − é fixado, representando-os.
Podem ser vasos, pedras, emblemas, ferramentas e árvores, depo- bás. Suas representações, na África, estavam nas passa-
sitados em seus respectivos altares, nos seus pejis, sempre per- gens, nas portas, também ocorriam nos caminhos que
meados de valores simbólicos. Cada assento é formado por um
continente e um conteúdo, são três os materiais que podem com- guiavam as vilas, aldeias, campos e cidades e, princi-
por os continentes: 1 - vasilhas de porcelana ou louças podendo palmente, nas encruzilhadas, notadamente, as de três
ser sopeiras, bacias ou pratos brancos para os Orixás vinculados à
criação do mundo; 2 - vasilhas de cerâmica ou de barro em sua cor caminhos.
natural podendo ser quartinhas, potes, pratos, panelas e alguida-
O assento de Ossaim, que é a divindade das plantas
res; 3 - vasilhas de madeira ao natural, geralmente gamelas. Tanto
o continente quanto o conteúdo são específicos para cada entida- medicinais e litúrgicas, se encontra dentro da antessa-
de e divindade, caracterizando o seu axé, tendo como elemento
comum o otá, que é uma pedra de característica particular, é o
la do Ilê Auô, porque nenhuma cerimônia secreta dos
centro e núcleo do assento onde se derramará o sangue dos ani- Egum que manipula ervas sagradas pode ser feita sem
mais sacrificados durante os rituais, o otá está envolvido por uma
combinação de elementos de origem animal, vegetal e mineral que a sua presença, pois ele é o detentor do axé fixado nas
compõem o axé desta ou daquela divindade. folhas. O nome das plantas, o seu emprego, sua mani-
9 Exu é uma das principais divindades do panteão dos Orixás, res- pulação e as palavras que despertam seus poderes cons-
ponsável pelo bom funcionamento do sistema dinâmico nagô, en-
tretanto vários são os Exu existentes: Exu Iangí ou Exu Abá; a o Exu tituem um dos elementos mais secretos da sociedade
Ojiseebo ou Exu Elebo, Exu Enú-bárijo; Exu Olobe; Exu Bara; Exu dos Egum, cuja presença fortalece e desprende o axé
Ona.
10 Orixás das plantas, ervas e folhas medicinais, fundamental para
das plantas para a realização dos rituais e oferendas aos
que os rituais se realizem, pois contém o segredo do àse presente ancestrais.
nas folhas.

{ 78 }
A segunda parte do Ilê Auô é a mais importante de a vida venceu a morte, da mesma forma os Égúns se
todo o terreiro, é o ibalé. Nele estão todos os segredos apresentam, hoje, cobertos de panos e portando um
fundamentais do culto aos Egum. Nesse espaço estão cajado. (BARRETTI FILHO, 1986, p. 43)

todos os paramentos, emblemas e indumentárias, os


Somente os Ojés Abá, entre todos os Ojés, possuem o
opás11 dos Egum, conforme o mito de origem do culto
direito e o poder de entrar no Ibalé, é o seu espaço priva-
aos Egum:
do, pois são os mais antigos e devidamente preparados
De quatro em quatro dias (uma semana iorubana), para lidar com os Egum e manipular os seus objetos sa-
Iku (a Morte) vinha à cidade de Ilê-Ifé munida de um grados; são os detentores dos mais profundos segredos
cajado (Òpá iku) e matava indiscriminadamente as do culto. Nele se desenvolvem todos os preparativos e
pessoas. Nem mesmo os Orixás podiam com Iku. ritos secretos de oferendas, adoração e invocação dos
Um cidadão chamado AmeiyÉgún prometeu salvar as
Egum:
pessoas. Para tal, confeccionou uma roupa feita com
várias tiras de pano, em diversas cores, que escon- [...] aqui tem dois espaços, o primeiro é uma sala onde fa-
dia todas as partes do seu corpo, inclusive a própria zemos nossas reuniões, tem iniciação de novos Ojés, tem os
cabeça, e fez sacrifícios apropriados. No dia em que assentos de Exu que fica na porta, de Iansã, e Ossaim, por-
a Morte apareceu, ele e seus familiares vestiram as
que para os nossos rituais precisamos das folhas, e Iansã é
tais roupas e se esconderam no mercado. Quando a
muito respeitada aqui por nós, já nesta outra parte fica os
Morte chegou, eles apareceram pulando, correndo e
assentos dos Egum e as coisas, os segredos que são nossos e
gritando com vozes inumanas, e ela, apavorada, fu-
você não pode saber, mas são várias salas, por esta planta
giu deixando cair seu cajado. Desde então a Morte
aqui dá pra você vê, cada sala desta, cada espaço deste
deixou de atacar os habitantes de Ifé. Os babalawos
guarda um segredo e a medida que o Ojé vai envelhecendo
(adivinhos e sacerdotes de Òrunmilá) disseram a
ele tem aceso a cada porta desta, as portas aqui guardam
AmeiyÉgún que ele e seus familiares deveriam adorar
grande segredos, as portas vão sendo abertas e o Ojé vai
e cultuar os mortos por todas as suas gerações, lem-
adquirindo um saber depois que passa um certo tempo e ele
brando como eles venceram a Morte. Égún é a ter-
aprende é aberta outra porta e ai vai [...]12
minação do nome de AmeiyÉgún, e é como hoje são
conhecidos os ancestrais do seu clã (Égún ou Égúngún).
É a vitória da vida pós-morte: como no mito em que

12 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo


11 Cetros, batões, varas indispensáveis nos cultos aos Egum, símbolo Ilê Aboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de
de ancestralidade masculina. março de 2006.

{ 79 }
Na África, notadamente na Nigéria e no Benim – an- seus filhos a outras pessoas, as belas roupas que eles
tigo Daomé –, o Ibalé era considerado uma enorme cla- ganharam escondiam perfeitamente sua condição
reira no âmago de uma floresta secreta de onde saíam de mortos. Alapini e seus filhos fizeram um pacto:
em um buraco feito na terra pelo seu pai (ojubô), no
os Egum nas festas anuais, como revela o mito:
mesmo local do primeiro encontro (igbo igbalé), ali
Havia na cidade do Oyó um fazendeiro chamado seriam feitas as oferendas e os sacrifícios e guardadas
Alapini, que tinha três filhos chamados Ojéwuni, as roupas, para que eles as vestissem quando o pai
Ojésamni e Ojérinlo. Um dia Alapini foi viajar e dei- os chamasse através do ritual do bastão. Seguindo o
xou recomendações aos filhos para que colhessem os pacto e as instruções do babalawo, de que sempre
inhames e os armazenassem, mas que não comessem que os filhos morressem fosse realizado o ritual após
um tipo especial de inhame chamado ‘ihobia’, pois o l7º dia, pais e filhos para sempre se encontraram.
ele deixava as pessoas com uma terrível sede. Seus E, para os filhos que ainda não tiverem roupas, é só
filhos ignoraram o aviso e o comeram em demasia. pedir às pessoas que elas as farão com imenso prazer.
Depois, beberam muita água e, um a um, acabaram (BARRETO FILHO, 1986, p. 43)
todos morrendo. Quando Alapini retornou, encon-
trou a desgraça em sua casa. Desesperado, correu ao Nos terreiros de Egum no Brasil, o Ibalé recebe a
babalawô, que jogou Ifá para ele. O sacerdote disse denominação de Lessém, (SANTOS; SANTOS, 1981,
que ele se acalmasse, e que após o l7º dia fosse ao ri- p. 171) que é a casa de adoração de Oiá Ibalé, (SANTOS;
beirão do bosque e executasse o ritual que foi prescri- SANTOS, 1981, p. 165) a mãe e senhora do mundo dos
to no jogo. Ele deveria escolher um galho da árvore mortos, cujo título africano é Iansã, Iá Mesam Orum,
sagrada àtòrì e fazer um bastão (assim é feito o ixan).
(SANTOS; SANTOS, 1981, p. 166) a mãe dos nove es-
Na margem do ribeirão, deveria bater com o bastão
paços do orum (mesam-orum). O Lessém, portanto, é o
na terra e chamar pelos nomes dos seus filhos, que
espaço do culto de todos os filhos de Oiá Ibalé, os cha-
na terceira vez eles apareceriam. Mas ele também
não poderia esquecer de antes fazer certos sacrifícios mados ara-orum e os Egum. Sua nomeclatura também
e oferendas. Assim ele o fez, seus filhos apareceram. se ampliou, na Bahia, para denominar todo o Ilê Auô.
Mas eles tinham rostos e corpos estranhos, era en- O Lessém possui como um dos primeiros assentos
tão preciso cobri-los para que as pessoas pudessem fundamentais, o de Oiá Ibalé, pois é ela que controla
vê-los sem se assustarem. Pediu que seus filhos ficas- o mundo dos mortos. Em todas as festas do calendário
sem na floresta e voltou à cidade. Contou o fato ao litúrgico, oferendas e reverências lhe são prestadas. O
povo, e as pessoas fizeram roupas para ele vestir seus
ápice é o dia de finados no mês de novembro que é
filhos. Deste dia em diante ele poderia ver e mostrar

{ 80 }
dedicado totalmente a ela e a todos os seus filhos, os O segundo mito também revela a origem de Egum,
mortos. Oiá Ibalé é uma Yabá venerada pela sociedade mas como sendo o nono filho de Oiá, ressaltou-se o seu
dos Egum, composta exclusivamente por homens que poderoso genitor:
possuem o segredo em comum da evocação dos Egum,
e reverenciada pelos próprios Egum. Inúmeros são os Oía não podia ter filhos. Procurou o conselho de um
babalaô. Ele revelou-lhe que somente teria filhos
mitos que estabelecem a relação de Oiá Ibalé com os
quando fosse possuída por um homem com violên-
Egum. No primeiro deles, revela a origem de Egum
cia. Um dia Xangô a possuiu assim e dessa relação
como filho de Oiá vinculado a seu tabu alimentar:
Oiá teve nove filhos. Desses filhos, oito nasceram
mudos. Oiá procurou novamente o babalaô. Ele re-
Oiá lamentava-se de não ter filhos. Esta triste situa-
comendou que ela fizesse oferendas. Tempo depois
ção era conseqüência da ignorância a respeito de suas
nasceu um filho que não era mudo, mas tinha uma
proibições alimentares. Embora a carne de cabra lhe
voz estranha, rouca, profunda, cavernosa. Esse filho
fosse recomendada, ela comia a de carneiro. Oiá con-
foi Égúngum, o antepassado que fundou cada famí-
sultou um babalaô, que lhe revelou o seu erro, acon-
lia. Foi Égúngum, o ancestral que fundou cada cida-
selhando-a a fazer oferendas, entre as quais deveria
de. Hoje, quando Égúngum volta para dançar entre
haver um tecido vermelho. Este pano, mais tarde,
seus descendentes, usando suas ricas máscaras e
haveria de servir para confeccionar as vestimentas
roupas coloridas, somente diante de uma mulher ele
dos Égúngún. Tendo comprido essa obrigação, Oiá
se curva. Somente diante de Oiá se curva Égúngum.
tornou-se mãe de nove crianças, o que se exprime
(PRANDI, 2005, p. 309)
em ioruba pela frase: ‘Iyá Omo mésàn’, origem de seu
nome Iansã. Assim que a roupa de Égúngún foi cria-
Esse mito revela, portanto, porque Oiá Ibalé é cul-
da, formou-se, em torno dessa ‘novidade’, uma socie-
dade composta exclusivamente de mulheres com o tuada ao lado dos Egum, pois ela é a senhora dos nove
objetivo de enfrentar a preponderância dos homens. orum, simbolizados pelos nove filhos do mito dos quais
Mas elas exageraram e aproveitaram-se da confusão os oito primeiros representam os ará-orum, os habitan-
provocada pela aparição dos Égúngún, nas ruas da tes do orum, e o nono representa os Egum, vinculando
cidade, para enganar impunemente seus maridos. também a sua forma de falar característica. O tercei-
Estes, exasperados, conseguiram descobrir seu segre- ro mito descreve como Oiá Ibalé cria a sociedade dos
do, apoderaram-se da sociedade e reservaram-na aos
Egum e também as origens das roupas; da forma de
homens, delas excluindo as mulheres para sempre.
falar rouca e cavernosa como o do macaco marrom da
(VERGER, 2002, p. 168)
Nigéria, o Ijimeré, (SANTOS; SANTOS, 1981, p. 183) de

{ 81 }
agir e de dominar os Egum. Descreve ainda como o cul- se reunissem. Dito e feito, Ogun chegou bem cedo a
to aos Egum e sua sociedade foram tomados das mulhe- encruzilhada e fez o preceito com os galos de acordo
res pelos homens: com o que Òrunmilá ordenou. Em seguida, ele pôs a
roupa, o chapéu e pegou a espada em sua mão. Mais
No começo do mundo, a mulher intimidava o ho- tarde, durante o dia, quando as mulheres chegaram
mem desse tempo, e o manejava com o dedo mindi- e se reuniram para celebrar os ritos habituais, de re-
nho. É por isso que Oya (conhecida mais comumente pente, viram aparecer uma forma terrificante. A apa-
nos cultos afro-brasileiros sob o nome de Iyansan) foi rição era tão terrível que a principal das mulheres,
a primeira a inventar o segredo ou a maçonaria dos isto é, que estava a frente, Iyansan, foi a primeira a
Égúngún, sob todos os seus aspectos. Assim, quando fugir. Graças a força e poder que tinha, ela desapare-
as mulheres queriam humilhar seus maridos, reu- ceu para sempre da face da terra. Assim, depois des-
niam-se numa encruzilhada sob a direção de Iyansa. ta época, os homens dominaram as mulheres e são
Ela já estava ali com um macaco que tinha domado, senhores absolutos do culto. Proibiram e proíbem
preparado com roupas apropriadas ao pé do tronco sempre as mulheres penetrar no segredo de toda a
de um igi, árvore, para ele fazer o que fosse determi- sociedade de tipo maçônico. Mas, segundo o provér-
nado por Iyansan por meio de uma vara que ela segu- bio, é a exceção que faz a regra, os raros exemplos
rava na mão, conhecida com o nome de isan. Depois de sociedades secretas as quais eram autorizadas a
de cerimônia especial, o macaco aparecia e desempe- participar em território Yorubá continuaram a exis-
nhava seu papel seguindo as ordens de Iyansan. Isso tir em circunstancias especiais. Isso explica por que
se dava diante dos homens que fugiam aterrorizados Iyasan-Oya é adorada e venerada por todos na quali-
por causa dessa aparição. Finalmente, um dia, os ho- dade de Rainha e Fundadora da Sociedade secreta dos
mens resolveram tomar providências para acabar Égúngún na terra. (SANTOS, 1998, p. 122)
com a vergonha de viverem continuamente sob o do-
mínio das mulheres. Decidiram então ir a Òrunmilá Mas o cargo de detentora e senhora do mundo dos
(deus do oráculo de Ifá) a fim de consultar Ifá para mortos e de todos os seus habitantes foi um presente dado
saber que poderiam fazer para remediar uma tal si- por Obaluaiê13, a Oiá, em sinal de gratidão, pelos seus fei-
tuação. Depois de ter consultado o oráculo, Òrunmilá tos durante uma das festas, um dos Xirê14 dos Orixás.
lhes explicou tudo o que estava acontecendo e que
eles deveriam fazer. Em seguida ele mandou Ogun
13 Orixá que traz e cura as doenças, era tido na África como o deus da
fazer uma oferenda, ebo, compreendendo galos, uma varíola e das doenças contagiosas, também chamado de Omolu.
roupa, uma espada, um chapéu usado, na encruzilha- 14 É a festa, a reunião dos Orixás. Chegando de viagem à aldeia onde
da, ao pé da referida árvore, antes que as mulheres nascera, Obaluaê viu que estava acontecendo uma festa com a
presença de todos os Orixás. Obaluaê não podia entrar na festa,

{ 82 }
No Lessém, encontram-se os dois elementos litúrgicos após o falecimento do Ojé, que será o novo Egum a ser
essenciais do culto: assentos individuais e específicos cultuado; e o assento que é a representação coletiva dos
de cada Egum Abá, os Egum mais antigos, devidamen- ancestrais, de todos os mortos, os oku-orum, o chamado
te preparados para serem invocados individualmente, opá-koko.
pois foram realizados e cumpridos todos os rituais de Os assentos individuais dos Egum Abá do Lessém são
preparação para a sua invocação antes da morte do Ojé assim descritos:
Abá, que lhe deu origem, e, que dura também, sete anos
Os assentos individuais dos Égún são continentes de
barro com larga boca que contém uma mistura de
devido a sua medonha aparência. Então ficou espreitando pelas
fretas do terreiro. Ogum, ao perceber a angustia do Orixá, cobriu- barro e àse, de folhas e outros elementos, especifi-
lhe com uma roupa de palha que ocultava sua cabeça e convidou ca para cada Égún que enche totalmente o interior,
-o a entrar e aproveitar a alegria dos festejos. Apesar de envergo-
nhado, Obaluaê entrou, mas ninguém se aproximava dele. Iansã transbordando do recipiente, formando um montícu-
tudo acompanhava com o rabo do olho. Ela compreendia a triste lo incrustados de cauris. Esses ‘assentos’ individuais
situação de Omulu e dele se compadecia. Iansã esperou que ele
estão dispostos sobre um banco feito de terra, baixo
estivesse bem no centro do barracão. O xirê estava animado. Os
Orixás dançavam alegremente com suas equedes. Iansã chegou e estreito, chamado pepele. (SANTOS, 1998, p. 203)
então bem perto dele e soprou suas roupas de mariô, levantan-
do as palhas que cobriam suas pestilências. Nesse momento de
encanto e ventania, as feridas de Obaluaê pulavam para o alto, Logo, o elemento barro simbolizando a terra, que é
transformadas numa chuva de pipoca, que se espelharam brancas a morada dos Egum e a proto-matéria, massa ao qual o
pelo barracão. Obaluaê, o deus das doenças, transformou-se em
um jovem, num jovem belo e encantador. Obaluaê e Iansã Igbalé homem foi moldado, feito, pois o corpo é um pedaço de
tornaram-se grandes amigos e reinaram juntos sobre o mundo dos
barro moldado por Oxalá. O homem, depois de cumprir
espíritos, partilhando o poder único de abrir e interromper as de-
mandas dos mortos sobre os homens. (PRANDI, 2005, p. 206) o seu destino no aiê, depois de cumprir o seu ciclo, após
Certa vez houve uma festa com todas as divindades presentes.
Obaluaê chegou vestindo seu capucho de palha. Ninguém o po- a sua morte, restitui a terra com o seu corpo. O barro é
dia reconhecer sob o disfarce e nenhuma mulher quis dançar com o elemento que compõe tanto o recipiente, o continen-
ele. Só Oiá, corajosa, atirou-se na dança com o Senhor da Terra.
Tanto girava Oiá na sua dança que provocava o vento. E o vento te, os potes de barro de formas especiais com bocas lar-
de Oiá levantou as palhas e descobriu o corpo de Obaluaê. Para a gas como o próprio conteúdo cheio de axé, diferentes
surpresa de todos era um belo homem. O povo o aclamou por sua
beleza. Obaluaê ficou mais que contente com a festa, ficou grato. para cada Egum.
E, em recompensa, dividiu com ela o seu reino. Fez de Oiá a rainha Acompanhando cada assento de Egum, há também
dos espíritos dos mortos, Rainha que é Oiá Igbalé, a condutora dos
Égúns. Oiá então dançou e dançou de alegria. Para mostrar a todos o assento do seu Exu, o chamado Exu Ojisebo, ou Exu
seu poder sobre os mortos, quando ela dança agora, agita no ar o
Elebo, que é o transportador e patrono das oferendas,
inruquerê, o espanta-mosca com que afasta os Égúns para o outro
mundo. Rainha Oiá Igbalé, a condutora dos espíritos. Rainha que é o supremo senhor de todas as oferendas, além de ser
foi sempre a grande paixão de Omulu. (PRANDI, 2005, p. 308)

{ 83 }
o mensageiro entre os Egum e os Ojés. Sem eles, ne- seus gostos prediletos, seja comida, oferendas e sacrifí-
nhuma comunicação entre os homens e as entidades cios, ou no conhecimento do seu ségi ou kê, o jeito de
sobrenaturais seria possível. falar do Egum, (SANTOS; SANTOS, 1981, p. 183) tornan-
Em frente a cada assento individual dos Egum Abá, do-se o seu tradutor para os vivos, ou seja, tem todo o
existe um buraco profundo feito no chão de terra ba- conhecimento específico daquele Egum.
tida denominado de ojúbo. (SANTOS; SANTOS, 1981, p. O assento coletivo dos ancestrais masculinos da so-
173) É nele –além do próprio assento – que, em todas as ciedade que representam todos aqueles que não atingi-
festas e cerimônias internas do Lessém, são depositadas ram o grau de Ojé Abá e conseqüentemente não foram
as oferendas, os sacrifícios e as comidas específicas de devidamente preparados durante a vida para que de-
cada Egum no início dos rituais. pois da morte fossem invocados como Egum, são os oku
Cada ojúbo é rodeado por uma série de ixã, (SANTOS; -orum, os mortos, sendo simbolicamente representados
SANTOS, 1981, p. 173) que são uma espécie de opá, pelo opá-koko.
(SANTOS; SANTOS, 1981, p. 172) por assim dizer, são O opá-koko constitui o elemento fundamental do
varas, cetros e bastões sagrados usados nos rituais. Os culto e do terreiro Omo Ilê Agboulá, pois ele é o elemento
ixãs são dispostos em volta dele formando um cone, que estabelece a ligação entre o orum e o aiê, simboli-
protegendo com o seu axé a entrada do ojúbo. O ixã é zando, portanto, o próprio Opô-orum oun aiê, o pilar e o
uma vara muito fina devidamente sacralizada, de cerca eixo do mundo. No Lessém, ainda está plantado o axé da
de um metro e meio, feita de árvores sagradas, notada- casa, que é transmitido e distribuído para cada assento
mente de nervura de folhas de palmeiras, o igi-ope, Elacis de Egum, Orixás, Ilê Orixá, para cada membro do culto,
Guineensis (SANTOS; SANTOS, 1981, p. 173) ou galhos de do Ojé Abá ao Amuixã, e é o portal de passagem para o
Atori, Gglyphaea Lateriflora. (SANTOS; SANTOS, 1981, p. orum de onde advêm os oku-orum, os mortos.
173) Os ixãs são utilizados para invocar os Egum, serve O opá-koko é um tronco preceitual, um bastão sa-
de guia dos Egum no aiê e impede que os Egum toquem grado e ritual com um galho grosso da árvore sagrada
os ara-aiê, os vivos, pois homem algum, nem mesmo os Akoko, (SANTOS; SANTOS, 1981, p. 167) tão sagrada
Ojés Abá, podem tocar nas roupas de Egum durante os que sua folha era utilizada para consagrar reis, fincada
rituais, porque elas contêm em seus trajes a morte e na terra e saindo de um ojúbo no qual são feitas as ofe-
energias maléficas. rendas a todos os oku-orum da casa. São os símbolos, por
Os assentos dos Egum Abá são cuidados e zelados excelência, dos ancestrais masculinos. A importância
por um Ojé Abá específico, devidamente preparado nos do opá, tanto na África quanto no Brasil, é destacado

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por Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre e sacralização, sem que seja feito o seu fundamento, fi-
Didi, que é o Alapini: xação de axê para desempenho de uma dada atividade.
A varanda dos Ojés (Figura 12), que fica antes do recinto
Na África, diante dos grandes templos, há um lugar de acesso ao Ilê Auô, de onde saem os Egum, e antes da
especial onde os ancestrais são cultuados. Ali fica o
entrada do barracão, compreende também uma área de
Òpá, que os representa coletivamente. Os Òpá, varas
socialização dos Ojés. Logo em frente à varanda e antes
bastões ou cetros rituais, são de importância vital
da mata sagrada, há três assentos de divindades, ali es-
no culto dos Égúngún. Uma cantiga entoada pelos
Égúngún, na Bahia, permite-nos inferir a importân- tão três Orixás.
cia atribuída ao Òpá:

Olórun
Os assentos dos Orixás da rua e do
Olórun Olóòpá mato vinculados ao culto dos Egum
Olórun
Além dos assentos de Exu Ona, Ossaim e Oiá Ibalé do
Lessém, três Orixás são fundamentais no culto aos
Olórun, o supremo deus, é o senhor do Òpá. É como
se Olórun tivesse delegado parte de seu poder ao Egum, no Omo Ilê Agboulá, são: Onilê, Ogum, e Iroco.
Òpá. (SANTOS; SANTOS, 1981, p. 173) São conhecidos como os Orixás da rua, também chama-
dos de Orixás do mato, Orixás cujos templos na África
O Ilê Auô, contendo a antessala e o Lessém, constitui a localizavam-se nas florestas sagradas, possuindo víncu-
edificação central do terreiro e é o ponto de referência los mitológicos, de funções e manutenção e desenvol-
de todas as demais construções do templo. Constitui-se, vimento de axé com ela, como Ogum, Oxossi, Nanã,
ainda, num elemento condicionador de localização dos Omolu etc. (Figura 8).
demais espaços e construções do terreiro. Constitui em Todo assento de Orixá é composto de três elementos
si, como um todo, uma edificação detentora de soma- básicos: o assento, que é a fixação do axé da divindade
tórios de poderosas energias, de uma multiplicação de no conjunto continente e conteúdo, feito de elemen-
axé. A própria edificação é sacralizada através de ritos tos e materiais específicos que caracterizam os Orixás,
específicos para desempenhar essa função; assim, uma tendo o otá como núcleo central; uma quartinha, que é
telha, um bloco, uma argamassa, uma ripa sequer não uma vasilha cerâmica com tampa, a qual contém água
pode ser retirada, substituída ou colocada sem que se- que jamais pode secar; além de um assento de Exu, que
jam realizados os devidos ritos de proteção, contenção acompanha o Orixá, é o seu Exu Elebo, responsável pelo

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Figura 12: Varanda dos Ojés do Ilê Auô
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

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transporte das oferendas e das mensagens dos homens. oferendas, e a ser saudada e reverenciada, inclusive pe-
Assim são compostos os assentos dos três Orixás. Os los próprios Egum, depois de saírem do Lessém e antes
três Orixás estão na entrada da mata sagrada (Figura de entrarem no barracão.
13), habitadas pelos ara-orum. Logo, a localização dos Orixás da mata e da rua,
Os três devem estar localizados dentro da mata sa- Onilê, Iroco e Ogum (Figura 8), está relacionada a três
grada e próximos ao Lessém. Isso ocorre devido às ne- aspectos essenciais: primeiro, à necessidade de proxi-
cessidades e especificidades dos ritos secretos do culto midade com o Lessém para a realização dos ritos secretos
e dos próprios Egum, pois eles circulam entre essas do culto e de mobilidade dos Egum entre as divindades
divindades durante as festas, prestando homenagem a para prestar-lhes reverências durante as festas, assim
eles quando saem e voltam ao Lessém, assim como pelos como para a realização dos rituais de oferendas das co-
rituais de oferendas das comidas específicas e sacrifí- midas e sacrifícios de animais votivos; segundo, Ogum,
cios de animais votivos a essas divindades. na frente da mata sagrada, é o divisor do público e do
A localização de Ogum no meio da entrada da mata privado no espaço sagrado, é o guardião e protetor des-
sagrada, entre Onilê e Iroco, separando o espaço sa- ta área; terceiro, à posição obrigatória e determinante
grado público do privado no terreiro, deve-se pela sua de Onilê entre o Ilê Auô e o barracão, condicionando-se
função de protetor e guerreiro, zelando, guardando e à localização de Iroco e Ogum. Devido à importância
protegendo todos os ritos e entidades sobrenaturais do dessas divindades e da mata sagrada, alguns membros
Ilê Auô, dos Egum, da mata sagrada, de Onilê e Iroco, e do culto pretendem restringir ainda mais o seu acesso:
dos filhos da casa.
E, por fim, a localização dos assentos de Iroco e [...] homens geralmente são indisciplinados, ficam circulan-
do, conversando, fazendo suada, fazendo sujeira, jogando
Ogum são condicionados em virtude da necessidade
lixo no chão, e trazem consigo cargas “impuras”, estão car-
de proximidade com o assento de Onilê, que, por sua
regados, e está área daqui na direita do barracão que tem
vez, tem sua posição no culto aos Egum o mais próximo
os Orixás Ogum, Onilé, Iroco, e os Egum andam durante a
possível da entrada do Ilê Auô, a casa do segredo, loca- noite deve ser mantida pura, intacta, as pessoas não devem
lizada entre a porta do Lessém e a porta de entrada dos e não podem circular por aqui não, por isso tem que ficar
Egum no barracão. do outro lado, ele chega, toma o seu banho faz o que tem
Porque Onilê é o Orixá da terra, que é a morada dos que fazer vai pra festa ou fica nos quartos que a gente quer
Egum e dos oku-orum. Ela é adorada pelos Ojés, sendo o construir pra receber as pessoas ali naquele espaço antes do
primeiro Orixá, depois de Exu, a receber os sacrifícios e muro da porteira, a gente quer evitar o acesso, a circulação

{ 87 }
Figura 13: Entrada da mata sagrada
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

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de pessoas no lado de cá, ninguém tem que ficar circulando O Orixá Onilê e os Egum
por aqui [...] mas o fundamental como eu lhe disse antes é
fortalecer o axé da casa e a gente ta pensando em levan- Perto do barracão, há um pequeno platô fechado, cer-
tar um muro que separe a área do Lessem e da mata da cado e guardado por grades, envolvidas por árvores que
área que fica o barracão até a porteira, está medida como projetam com sua sombra e quebram os ventos fortes,
eu já te falei é pra impedir que qualquer um entre nesta assim como impedem as cargas “negativas” de entra-
área com suas energias impuras, carregado, está área tem rem. Zelam por diversas coisas em seu interior, tão sin-
que ficar com o axé sempre forte, puro, aí as pessoas não
gelas que parecem esconder-se, tímidas, discretas, em
vão jogar sujeira, lixo, não vão fazer suas necessidades aí,
busca de um esconderijo na terra onde possa descansar.
não vão ficar andando para um lado e para o outro [...] e
Ali está um mistério, o segredo da terra, do Ilé, que tudo
os três tem que ficar próximos, aqui na casa Onilé, Ogum,
gera e tudo guarda, sempre presente sem se fazer notar,
Iroco ficam pertos porque nas festas do calendário da casa
são feitos as oferendas a eles, se dá as comidas, se fazem os a espreitar aqueles que passam, mas o que ali está?
sacrifícios, e o axé deles, a energia deles se fortalece [...]15 É o assento de Onilê (Figura 8), o Orixá feminino da
terra e que simboliza coletivamente os mortos, todos
Além dos fatores de posição e de localização desses os ancestrais e é geralmente simbolizado nos terreiros
Orixás no espaço do terreiro, há aspectos mitológicos, de Orixá por montículos de terra.
preceituais e simbólicos que definem o vínculo desses Os mortos, oku-orum, são geralmente e indiferen-
três Orixás com os Egum e seu culto. Explicam porque temente denominados de ara-orum, os habitantes do
somente eles, e não os demais, possuem assentos que orum, mas também são chamados comumente de awom
os individualizam, dando-lhes importância no panora- ara ilé, (SANTOS, 1998, p. 56) os espíritos ou habitantes
ma do panteão das divindades, porque eles e somente da terra. Assim se refere Juana Santos à importância da
eles possuem relações espaciais diretas com os Egum. terra para os mortos, e, conseqüentemente, para a sua
senhora Onilê:

Toda a ação ritual no ‘terreiro’ está indissoluvelmen-


te ligada à terra; desde Olórun, passando por todos os
Òrìsà até os ancestrais, todos são saudados e invoca-
dos no início de cada cerimônia derramando um pou-

15 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo co de água três vezes sobre a terra [...] o ipò-okú dos
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de Ègbá é a reprodução deste mundo e está localizado
março de 2006.

{ 89 }
embaixo da terra. É comum dizer ao referir-se aos proteger do vento, evitando que se apague. É fechado e
Òrìsà que abandonam o corpo das sacerdotisas em totalmente envolvido por um gradil metálico para im-
transe: Ògún wolè = Ògún (ou o nome do Òrìsà em pedir que animais danifiquem o assento de Onilê; por
questão) wo + ilé = esse Òrìsà retornou à terra (wolè
fim, é totalmente envolvido por quatro pés de nativo,
= penetra na terra). Da mesma forma, os Égún, ances-
também denominados de Peregun (Dracaena Fragans),
trais corporizados, referem-se freqüentemente à sua
árvore sagrada vinculada à função de proteção, conten-
morada no Òrun que parecia estar ligado a terra [...] e
quando eles se retiram diz-se igualmente Égún wolé, ção e isolamento do axé (Figuras 14 e 15):
Égún voltou à sua casa na terra. (SANTOS, 1998, p. 57)
[...] Onilê é a dona da terra, nós e os Egum devemos reve-
rência e respeito a ela, e aqui em terreiro de Egum Onilê
O assento de Onilê no Omo Ilê Agboulá, nas proximi-
tem sempre que ficar entre o Lessem e o barracão porque
dades do Ilê Auô, diferentemente de sua representação
Babá dá reverência antes de entrar no barracão e quan-
comum em um montículo de terra, é constituído de um do volta para o Lessem, e nós Ojés também prestamos as
assento com seu Exu Elebo – plantado, fixado na terra –, nossas reverências, e como ela fica ao ar livre precisa de
uma quartinha com água como todo assento de Orixá cuidados tá vendo aqui estas grades? Fui eu que trouxe de
e um pote de barro com tampa, contendo terra em seu minha casa e coloquei em volta dela pra animal nenhum
interior e elementos específicos que caracterizam o seu passar e derrubar ela, e ela é cercada de nativo pra con-
axé. Este assento simboliza o grande útero fecundado, servar a energia dela e impedir que as energias impuras
associado à lama, água mais terra, vinculado à relação cheguem nela, inclusive é nestes nativos que agente coloca o

morte e nascimento, à relação de restituição do sistema mastro de madeira da bandeira que é hasteada no dia 20
de janeiro, ela fica lá o ano todo [...]17
dinâmico do fluxo da vida.
Porque a terra deu a matéria onde o homem foi
Onilê tornou-se a mãe senhora da terra do Ilé, numa
moldado e que, ao cumprir o seu ciclo de vida no aiê,
grande reunião dos Orixás, em que Olorum dividiu os
tem que devolver, perdendo a sua individualidade, vol-
poderes, responsabilidades e deveres de cada um na
tando à terra para que o ciclo da vida se renove. O as-
sento é composto ainda por três telhas cerâmicas, onde
é colocada uma vela durante os rituais de osé,16 para
assentos dos Egum, contando com oferendas de acaçás, flores,
moedas, e coisas prediletas de cada Egum.
16 Rito que consiste na limpeza dos espaços da casa e elementos dos 17 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
assentos dos Orixás, seguido de oferendas nos dias da primeira Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de
semana de cada mês, e da limpeza dos espaços e elementos dos março de 2006.

{ 90 }
administração dos elementos da natureza, sendo Onilê de palmeiras. Oxum escolheu cobrir-se de ouro, tra-
a última a receber a honraria: zendo nos cabelos as águas verdes dos rios. As rou-
pas de Oxumarê mostravam todas as cores, trazendo
Onilé era a filha mais recatada e discreta de nas mãos os pingos frescos da chuva. Iansã escolheu
Olódùmarè. Vivia trancada em casa do pai e quase para vestir-se um sibilante vento e adornou os cabe-
ninguém a via. Quase nem se sabia de sua existência. los com raios que colheu da tempestade. Xangô não
Quando os orixás seus irmãos se reuniam no palá- fez por menos e cobriu-se com o trovão. Oxalá trazia
cio do grande pai para as grandes audiências em que o corpo envolto em fibras alvíssimas de algodão e a
Olódùmarè comunicava suas decisões, Onilé fazia testa ostentando uma nobre pena vermelha de papa-
um buraco no chão e se escondia, pois sabia que as gaio. E assim por diante. Não houve quem não usasse
reuniões sempre terminavam em festa, com muita toda a criatividade para apresentar-se ao grande pai
música e dança ao ritmo dos atabaques. Onilé não com a roupa mais bonita. Nunca se vira antes tanta
se sentia bem no meio dos outros. Um dia o gran- ostentação, tanta beleza, tanto luxo. Cada Orixá que
de deus mandou os seus arautos avisarem: havia chagava ao palácio de Olódùmarè provocava um cla-
uma grande reunião no palácio e os orixás deviam mor de admiração, que se ouvia por todas as terras
comparecer ricamente vestidos, pois ele iria distri- existentes. Os Orixás encantaram o mundo com suas
buir entre os filhos as riquezas do mundo e depois vestes. Menos Onilé. Onilé não se preocupou em ves-
havia muita comida, música e dança. Por todos os tir-se bem. Onilé não se interessou por nada. Onilé
lugares os mensageiros gritaram esta ordem e todos não se mostrou para ninguém. Onilé recolheu-se a
se prepararam com esmero para o grande aconteci- uma funda cova que cavou no chão. Quando todos
mento. Quando chegou por fim o grande dia, cada os Orixás haviam chegado. Olódùmarè mandou que
orixá dirigiu-se ao palácio na maior ostentação, cada fossem acomodados confortavelmente, sentados em
um mais bem vestido que o outro, pois este era o esteiras dispostas ao redor do trono, Ele disse então
desejo de Olódùmarè. Iemanjá chegou vestida com à assembléia que todos eram bem-vindos. Que todos
uma espuma do mar, os braços ornados de pulseiras os filhos haviam cumprido o seu desejo e que esta-
de algas marinhas, a cabeça cingida por um diadema vam tão bonitos que ele não saberia escolher qual
de corais e pérolas, o pescoço emoldurado por uma seria o mais vistoso e belo. Tinha todas as riquezas
cascata de madrepérolas. Oxossi escolheu uma tú- do mundo para dar a eles, mas nem sabia como co-
nica de ramos macios, enfeitados de peles e plumas meçar a distribuição. Olorum refletiu por um bom
dos mais exóticos animais. Ossaim vestiu-se com um tempo e disse que seus próprios filhos tinham feito
mato de folhas perfumadas. Ogum preferiu uma cou- suas escolhas. Ao escolheram o que achavam melhor
raça de aço brilhante, enfeitadas com tenras folhas da natureza, para com aquela riqueza se apresentar

{ 91 }
Figura 14: Assento de Onilê cercado dos Pereguns
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 92 }
Figura 15: Assento de Onilê com seus elementos
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 93 }
perante ao pai, eles mesmos já tinham feito a divisão produziam as comidas, bebidas e tudo o mais que
do mundo. Então Iemanjá ficava com o mar, Oxum deveriam ofertar aos Orixás. Disse que dava a Terra
com o ouro e os rios. A Oxossi deu as matas e todos os a quem se vestia da própria Terra. Quem seria? per-
seus bichos, reservando as folhas para Ossaim. Deu guntavam-se todos. ‘Onilé’, respondeu Olódùmarè.
a Iansã o raio e a Xangô o trovão. Fez Oxalá dono ‘Onilé’? todos se espantaram. Como, se ela nem se-
de tudo o que é branco e puro, de tudo o que é o quer viera a grande a grande reunião? Nenhum dos
princípio, deu-lhe a criação do homem. Destinou a presentes a vira até então. Nenhum sequer nota-
Oxumarê o arco-iris e a chuva. A Ogum deu o fer- ra a sua ausência. ‘Pois Onilé esta entre nós’, disse
ro e tudo o que se faz com ele, inclusive a guerra. E Olódùmarè, e mandou que todos olhassem no fundo
assim por diante. Confirmou Exu no cargo de men- da cova, onde se abrigava, vestida de terra, a discreta
sageiro dos deuses, pois nenhum outro era capaz de e recatada filha. Ali estava Onilé, em sua roupa de
se movimentar como ele. Mas como Exu se cobrira terra. Onilé, a que também foi chamada de Ilê, o país,
todo com búzios para a reunião, e como búzios era o planeta. Olódùmarè disse que cada um que habi-
dinheiro, Olódùmarè também dava a ele o patrono tava a Terra pagasse tributo a Onilé, pois ela era a
dos mercados e o governo das trocas. Olódùmarè deu mãe de todos, o abrigo, a casa. A humanidade não
assim a cada Orixá um, pedaço do mundo, uma parte sobreviveria sem Onilé. Afinal, onde fica cada uma
da natureza, um governo particular. Dividiu com o das riquezas que Olódùmarè partilhara com os seus
gosto de cada um. E disse que a partir de então cada Orixás? ‘Tudo está na Terra’, disse Olódùmarè. ‘O mar
um seria o dono e governador daquela parte da na- e os rios, o ferro e o ouro, os animais e as plantas,
tureza. Assim, sempre que um homem tivesse a ne- tudo’, continuou. ‘Até mesmo o ar e o vento, a chuva
cessidade relacionada com uma daquelas partes da e o arco-iris, tudo existe porque a Terra existe, assim
natureza, deveria pagar uma prenda ao Orixá que a como as coisas para controlar os homens e os outros
possuísse. Pagaria em oferendas de comida, bebida seres vivos que habitam o planeta, como a vida, a
ou outra coisa que fosse de predileção do Orixá. Os saúde, a doença e mesmo a morte’. Pois então, que
Orixás, que tudo tinham ouvido em silêncio, come- cada um pagasse tributo a Onilé, foi a sentença fi-
çaram a comemorar, cantando e dançando de jubilo. nal de Olódùmarè. Onilé, Orixá da Terra, receberia
Era grande o alarido na corte, a festa começava. Mas mais presentes que os outros. Deveria ter oferendas
Olorum-Olódùmarè levantou-se e pediu silêncio, pois dos vivos e dos mortos, pois na Terra também repou-
a divisão do mundo ainda não estava concluída. Disse sam os corpos dos que já não vivem. Onilé, também
que faltava ainda a mais importante das atribuições. chamada Aiê, a Terra, deveria ser propiciada sempre,
Que era preciso dar a um dos filhos o governo da para que o mundo dos humanos nunca fosse des-
Terra, o mundo no qual os humanos viviam e onde truído. Todos os presentes aplaudiram as palavras

{ 94 }
de Olodùrmare. Todos os Orixás aclamaram Onilé. de candomblé de origem nagô, é composto por uma
Todos os humanos propiciaram a mãe Terra. E en- quartinha, duas telhas cerâmicas para a realização do
tão Olódùmarè retirou-se do mundo para sempre e osé, seu Exu Elebo, e a gameleira-branca (Fícus Máxima),
deixou o governo de tudo por conta de seus filhos
que substituiu o baobá africano, envolta de um pano
Orixás. (PRANDI, 2005, p. 410)
branco, o alá (Figuras 16 e 17).
A gameleira-branca,18 onde está fixado Iroco, consti-
Em frente ao assento de Onilê, encontra-se uma ár-
tui o seu próprio assento, pois a árvore, ao ser plantada
vore que se destaca entre as demais que a circundam,
ainda como muda, é sacralizada, transformada na pró-
lançando em segundo plano todas as outras, impondo
pria divindade através de ritos específicos a esta entida-
a todos a sua presença.
de. São plantandos sob e com a própria muda da árvore
os elementos simbólicos dos meios animal, vegetal e
O Orixá Iroco e os Egum
18 Iroco era um homem bonito e forte e tinha duas irmãs. Uma delas
Essa árvore encontra-se próxima ao muro, quase esco- era Ajé, a feiticeira, a outra era Ogboí, que era uma mulher comum.
Ajé era feiriceira, Ogboí não. Iroco e suas duas irmãs vieram do
rada nele. Essa árvore frondosa é a maior de todas ali Orum para habitar no Aiê. Iroco foi morar numa frondosa árvore
presentes e, diferente de todas elas, é altiva e robusta, e suas irmãs, em casas comuns. Ogboí teve dez filhos e Ajé teve
um só, um passarinho. Um dia, Ogboí teve que se ausentar, deixou
com um tronco firme, raízes sinuosas a agarrar com for- os dez filhos sob a guarda de Ajé. Ela cuidou bem das crianças
ça a terra e galhos serpenteantes e numerosos a abraçar até a volta da irmã. Mais tarde, quando Ajé teve também que via-
jar, deixou o filho-pássaro com Ogboí. Foi então que os filhos de
o céu bailando com as nuvens. Tesa como se estivesse Ogboí pediram à mãe que queriam comer um passarinho. Ela lhes
num esforço divino a juntar o céu e a terra, com inú- ofereceu uma galinha, mas eles, de olhos no primo, recusaram.
Gritavam de fome, queriam comer, mas tinha de ser um pássaro.
meros pássaros a brincar e a descansar em seus galhos. A mãe foi então a floresta caçar passarinhos, que seus filhos insis-
tiam em comer. Na ausência da mãe, os filhos de Ogboí mataram,
Anunciadora do tempo com o som de suas folhas ao cozinharam e comeram o filho de Ajé. Quando Ajé voltou e se deu
balançar das brisas e gotas de chuva, é uma árvore que conta da tragédia, partiu desesperada a procura de Iroco. Iroco a
recebeu em sua árvore, onde mora até hoje. E de lá Iroco vingou
subjuga o tempo com as marcas dele em sua casca, são Ajé, lançando golpes sobre os filhos de Ogboí. Desesperada com a
as suas rugas; é o testemunho daqueles que já se foram. perda da metade de seus filhos e para evitar a morte dos demais,
Ogboí ofereceu sacrifícios para o irmão Iroco. Deu-lhe um cabrito e
Mas que árvore é essa que domina exuberante às outras coisas e mais um cabrito para Exu. Iroco aceitou o sacrifício
demais? e poupou os demais filhos. Ogboí é a mãe de todas as mulheres
comuns, mulheres que não são feiticeiras, mulheres que sempre
É o assento de Iroco (Figura 8), o Orixá das árvores perdem filhos para aplacar a cólera de Ajé e de suas filhas feiticei-
e a árvore Orixá; é o símbolo do tempo. Seu assento ca- ras. Iroco mora na gameleira branca e trata de oferecer sua justiça
na disputa entre as feiticeiras e as mulheres comuns. (PRANDI,
racterístico, e bastante semelhante aos demais terreiros 2005, p. 168)

{ 95 }
Figura 16: Assento de Iroco cercado pelos Pereguns
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 96 }
Figura 17: Assento de Iroco com os seus elementos
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 97 }
mineral que contêm os princípios e poderes do seu axé. viajantes; morada das Ajes;20 esconderijo de escravos e
Crescem juntos e com eles todo o axé da casa. Iroco é foragidos; cemitério, por excelência, nos tempos anti-
um Orixá Fumfum, um Orixá da criação, sendo o bran- gos na África; lugar de reunião, encontro e passagem
co o seu símbolo. Ele é envolvido, “vestido” com um de mortos; local frequentado por Ikú, a morte; é o co-
alá, pano branco sacralizado que o circula e é amarrado mandante de todas as árvores sagradas; e, por fim, sím-
nele formando um laço, devendo ser colocado apenas bolo de luta e resistência cultural. Iroco é ainda o Orixá
pelos homens, os Ojés. Iroco só, e sempre, se veste de patrono da liberdade, pois mora na floresta, ao ar livre
branco, vinculando-se ao mundo dos ancestrais, da pro- e no “tempo”, ele é o testemunho da eternidade. Seu
tomatéria massa, a existência genérica. grande vínculo com os Egum se dá pelo fato de ser, por
O branco trazido pelo alá (Figura 18) é o seu símbo- excelência, a morada dos ancestrais africanos mais an-
lo por excelência e representa, além da eternidade, a tigos, pois era nele – no interior dos troncos das árvores
paz, a calmaria, o princípio poder masculino, o sangue africanas – que eram depositados os mortos, antes do
branco presente em suas representações materiais vin- advento do cemitério nas terras iorubás.21
culados aos meios animal, vegetal e mineral; é a cor uti-
lizada nos ritos de passagem, marca a mutação de uma
existência genérica para uma existência individual, ou 20 Eram na África as feiticeiras anciãs, detentoras de poderosos pode-
res que eram utilizados tanto para o bem quanto para o mal.
seja, é a cor utilizada nas iniciações, e no axexê.19
21 O mundo foi criado e os Orixás chegaram a Terra. Ogum veio na
Iroco possui várias atribuições, pois é um dos Orixás dianteira, abrindo os caminhos. Obatalé criou os homens e Icu
foi encarregada de os levar daqui para o outro mundo, na data
mais antigos. Além das funções que foram agregadas atribuída a cada um por Olorum. Naquele tempo, os mortos não
no Brasil, é a árvore que simboliza a ligação do orum eram enterrados e seus corpos eram colocados aos pés de Iroco, a
grande árvore. Um dia Iemanjá decidiu-se livrar-se de Ogum para
com o aiê; é a árvore que possibilita sombra e oferece seguir com seu amante. Iemanjá fingiu-se de morta e o fez com
abrigo contra o sol para os membros do culto; local de perfeição. Ogum, credo no que via, preparou o corpo e o levou
aos pés de Iroco. Mal Ogum seguiu seu caminho, Iemanjá e o seu
orações e lamentos; lugar de festa, comunhão de ali- amante começaram a festejar. Iemanjá retornou ao mercado onde
mentos; de morte e renascimento; árvore produtora de sempre vendia seus quitutes. Naquele dia, a filha que ela teve com
Ogum foi ao mercado e viu a mãe bem viva. Voltou para a casa e
seiva mortal; árvore que anda; abrigo de peregrinos e contou ao pai sobre o que vira. Ogum não quis acreditar na filha,
mas mesmo assim no dia seguinte foi ao mercado e lá encontrou a
sua mulher Iemanjá. Irado, Ogum amarrou-a e a levou a presença
de Olofim-Olódùmarè, a quem Ogum narrou o mórbido sucedido.
O Senhor Supremo decidiu cortar o mal pela raiz e determinou
19 Ritual funerário de origem nagô, onde há a passagem da existência que, a partir daquele dia, todos os mortos deveriam ser sepulta-
individualizada à existência genérica, presente tanto nos terreiros dos em covas fundas e seus corpos cobertos com terra. Assim não
de Orixá como nos de Egum. mais se repetiria a farsa de Iemanjá. (PRANDI, 2005, p. 389)

{ 98 }
Figura 18: Assento de Iroco com seu alá
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 99 }
O seu assento é um lugar de adoração da socieda- pé de uma árvore sagrada os pertences de Odùlecê.
de e dos próprios Egum que lhes prestam homenagens Olorum, que tudo via, emocionou-se com o gesto de
durante os ciclos das festas, reverenciando-o antes de Oiá e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no
caminho do Orum. Transformou Odùlecê em Orixá
voltarem ao Lessém, pois inúmeros ancestrais, oku-orum,
e Oiá na mãe dos espaços dos espíritos. Desde então
moram nele. Assim, a árvore passa a ser símbolo de
todo aquele que morre tem seu espírito levado ao
ancestralidade coletiva. Durante as festas, Iroco recebe
Orum por Oiá. Nasceu assim o funerário ritual do
parte das oferendas assim como os sacrifícios e alimen- axexê. (PRANDI, 2005, p. 310)
tos específicos a ele consagrados.
As árvores, portanto, tinham em terras iorubás, nos Mas, ao lado do assento de Iroco e antes do assento
tempos remotos, a função dos cemitérios, tanto que o de Onilê, há uma outra árvore respeitada por todos que
ritual fúnebre do axexê teve origem aos pés de uma passam por ela, ninguém quebra os seus galhos, ou lhe
árvore. Além do fato de Ikú todas as noites passar pelo tira a casca.
pé de Iroco. Segundo um mito nagô, foi nos pés de uma
árvore sagrada que Oiá organizou o axexê:
O Orixá Ogum e os Egum
Vivia em terras de Queto um caçador chamado
Essa árvore encontra-se ainda na entrada da mata
Odùlecê. Era o líder de todos os caçadores. Ele tomou
por sua filha uma menina nascida em Irá, que por
sagrada. É uma árvore baixa, muito robusta, atarraca-
seus modos espertos e ligeiros era conhecida como da e espaçosa, com uma copa densa e imponente. Seu
Oiá. Oiá tornou-se a predileta do velho caçador, con- tronco cresceu como se tivesse empreendido um com-
quistando um lugar de destaque naquele povo. Mas bate guerreiro, violento, impulsivo com o vento impe-
um dia a morte levou Odùlecê, deixando Oiá muito tuoso, com a chuva voraz e com o sol fugaz, lutou para
triste. A jovem pensou numa forma de homenagear se desenvolver bravamente, como deve ser um guerrei-
o seu pai adotivo. Reuniu todos os instrumentos de ro, perseguindo a vida e a vitória tenazmente, sem se
caça de Odùlecê e enroulou-os num pano. Também
deixar abater e sem se desencorajar jamais, buscando
preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de
seu objetivo a todo custo.
saborear. Dançou e cantou por sete dias, espalhando
Triunfou sobre todas as adversidades e sua forma
por toda parte, com seu vento, o seu canto, fazendo
com que se reunissem no local de todos os caçadores advém desta luta: com seu tronco ramificado, denso,
da terra. Na sétima noite, acompanhada dos caçado- sinuoso, ora horizontal, ora a buscar a luz no próprio
res, Oiá embrenhou-se mato adentro e depositou ao

{ 100 }
sol, ela se impõe. Esa árvore imprime e exige respeito. com todas as músicas, danças e palavras sagradas, ou
Que árvore guerreira é essa? seja, com todos os seus apetrechos conforme o seu ri-
É o assento de Ogum (Figura 8), que se localiza entre tual, fixando aí o seu axé, como em todas as árvores
os assentos de Onilê e Iroco, bem na entrada do espa- sagradas que são habitadas por divindades (Figura 19).
ço sagrado privado onde está localizada a área da mata Há ainda, como no assento de Iroco – e de todas as
sacralizada, protegendo-a e guardando os seus segredos divindades do candomblé –, uma quartinha com água
(Figura 19). Sua localização também é condicionada localizada no seu pé, próxima à raiz – onde foi plantado
pelos rituais de algumas festas de Egum, como a que o axé de Ogum –, o assento plantado de seu Exu Elebo e
ocorre durante a festa de Babá Aboulá, o patrono do ter- duas telhas cerâmicas artesanais de proteção contra a
reiro, entre os dias 7 e 10 de setembro, quando os Egum chuva e o vento para as velas utilizadas nos osé (Figura
saem em fila do Lessém, na alvorada do dia 7, e reveren- 20).
ciam e circulam Ogum. Em círculo, eles dançam e dão A cajazeira cresceu e se desenvolveu horizontalmen-
as suas bênçãos aos presentes, até que Babá Aboulá sai te, lançando-se pela entrada da mata sagrada, criando
do Lessém, senta-se em uma cadeira que os Ojés colocam uma espécie de barreira, marcando visualmente com o
em frente do assento de Ogum e todos os Egum pre- seu tronco horizontal e com sua copa frondosa o início
sentes lhe prestam reverência, em seguida, dirigem-se do espaço sagrado privado, como se estivesse avisando
em fila para dentro do Lessém. Assim como Iroco, Ogum ao visitante desatento dos perigos que lhe aguardam,
também é fixado em uma árvore, pois uma de suas pri- impondo-se pelo seu porte sua autoridade de guardião
meiras atribuições foi a caça, sendo, antes de se tornar e zelador.
o ferreiro do mundo, um grande caçador, mas sempre A relação de Ogum com os Egum se dá por dois
preservando a sua singularidade como o maior de todos aspectos: ele é considerado o primeiro Egum, pois é o
os guerreiros. Pertence, no Omo Ilê Agboulá, à floresta, elemento procriado por excelência, é o primeiro Orixá
à esfera dos Orixás da mata, sendo um dos primeiros filho do panteão das divindades; mais além, foi ele quem
filhos do panteão iorubá. Nesse terreiro, Ogum tem o tomou a sociedade dos Egungum na África das mulhe-
seu assento na árvore da cajazeira (Spondias Lútea), aí é a res e a entregou aos homens. O Orixá Ogum constitui
sua morada e repouso. o fruto da relação dinâmica estabelecida entre o princí-
Foi fixado junto com a muda da cajazeira no mo- pio poder feminino, personificado pelo Orixá Oduduá,
mento do plantio com todos os sacrifícios e oferendas de e o princípio poder masculino, simbolizado por Oxalá.
seu gosto, com todas as ervas e folhas a ele consagradas, Ogum torna-se um descendente e, ao mesmo tempo, o

{ 101 }
Figura 19: Assento de Ogum na entrada da mata sagrada
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 102 }
Figura 20: Assento de Ogum e seus elementos
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 103 }
símbolo da progenitura e da ancestralidade, como con- recebe a água de caracol para beber. Quando Odù be-
ta o mito que fala da aparição de Egum e da gênese beu, o ventre de Odù se apaziguou. Obatalá se queixa:
de suas indumentárias quando Oduduá, Oxalá e Ogum ele lhe revela todos os seus segredos e ela continua a
esconder-lhe os seus. Odùa o conduz ao Ika, descobre
vêm do orum para viver e povoar o aiê:
para ele a vestimenta símbolo de Égún, revelando-
Três Orixás, Odùa, Obatalá e Ogun vêm, do Òrun, ins- lhe seu segredo. Eles estão juntos e juntos adoram
talar-se sobre a terra. Odùa é a única mulher e ela Égún. Quando Odùa sai, ele apanha as vestimentas,
se queixa a Olorun por não ter nenhum poder. Este as modifica, veste-as e, tomando do pasòn na mão,
elege a Mãe para toda a eternidade. Entrega-lhe axé sai a percorrer a cidade. Sabe falar como os Àrá-òrun.
sob a forma de uma cabaça contendo um pássaro e Todos reconhecem-no como o verdadeiro Égún e o
recomenda-lhe que se mostre prudente no que se aclamam. Odùa reconhece seus panos e admite que
refere ao uso do poder que ele lhe outorga. Desde Òbàrìsà torna presente Égún melhor do que ela. Ela
aquela época Olódùmarè ortogou axé as mulheres. ordena a seu pássaro de pousar no ombro de Égún,
Elas exerciam todas as atividades secretas. Ela con- com o asé de eléye, tudo o que Égún prognostica e diz
duz Égún, ela conduz Oro, todas as coisas, não há se realizará. Quando Òbàrìsà regressa, Odùa entrega-
nada que ela não faça nesse tempo. Todos os luga- lhe o poder de manejar Égún e se retira para sempre
res de adoração encontram-se em seu ika, no quintal de seu culto. Só eléye indicara seu poder e marcará a
onde Òbàrìsà não pode entrar. Este, vendo seu poder relação entre Égún e Ìyá-mi. Todo poder que utilizará
diminuído, consulta Ifá e é aconselhado a fazer uma Égún é o poder de eléye. Òrìsàlá aceita e rende home-
oferenda constituída de ìgbín, caracóis, e um pasòn, nagem ao poder de gestação da mulher: Ajoelhemo-
uma haste de àtòrì. Ifá adverte-o para que tenha mui- nos, ajoelhemo-nos diante da mulher! A mulher nos
ta paciência e astúcia para conquistar Ìyá-mi e sair pôs no mundo, permitindo nossa existência como
vitorioso. Com efeito, Ìyá-mi esquece as recomenda- seres humanos. (SANTOS, 1998, p. 108)
ções de Olódùmarè e abusa de seu poder em relação a
Òrìsàla, sempre prudente. Finalmente Ìyá-mi insiste Entretanto, em outro mito nagô, Ogum foi o herói
que vivam juntos em sua morada já que juntos vie- dos homens que conseguiu tomar das mulheres o po-
ram do Òrun e já que Ogún estava muito ocupado der da sociedade dos Egungum. Ogum retirou todas as
com suas ferramentas e suas guerras. Òbàrìsà con- mulheres do culto aos Egum, mostrando toda a disputa,
corda. Uma vez na vivenda, adora sua cabaça com a luta e a tensão entre os sexos, entre os gêneros, entre
ìgbín e bebe sua água. Ele oferece a Odù que, negli-
as sociedades secretas femininas e masculinas, entre
gentemente, aceita. A água parece-lhe deliciosa e ela
os princípios poderes pela hegemonia e hierarquia na
também come, com Obatalá, a carne dos ìgbín. Odù

{ 104 }
sociedade iorubá, mostrando como o culto aos Egum tal visão. Iansã foi a primeira a fugir de espanto. Uma
passou das mulheres aos homens pela bravura e res- das mulheres, de medo, correu tanto que desapare-
ponsabilidade de Ogum: ceu da face da terra para sempre. Desde este dia o po-
der pertence aos homens. E os homens expulsaram
No começo do mundo, eram as mulheres que man- as mulheres das sociedades secretas. Porque a posse
davam na terra e eram elas que dominavam os ho- do segredo agora é dos homens. Iansã, no entanto,
mens. A mulher maneja o homem com o dedo min- ainda é a rainha do culto dos egunguns. (PRANDI,
dinho. As mulheres tinham o poder e o segredo. 2005, p. 106)
Iansã tinha inventado o mistério da sociedade dos
egunguns, a sociedade de culto aos antepassados, e Depois do assento de Ogum, existe uma mata com di-
os homens estavam sempre submissos ao poder fe- versos arbustos, plantas e árvores de inúmeras espécies.
minino. Quando as mulheres queriam humilhar seus
maridos, elas se reuniram com Iansã debaixo de uma
árvore. Iansã tinha um macaco ensinado. Ela o fazia Espaço da Mata Sagrada e os Egum
aterrorizar os homens. Sim, mandava que ele fizesse
Essa mata encontra-se ainda no fundo do Omo Ilê Agboulá.
coisas para assustar os maridos. Quando viam ali na
Constitui um muro de árvores, arbustos e plantas de
árvore o macaco fazendo as coisas a mando de Iansã,
os homens se apavoravam e se submetiam ao poder diversas cores, formas, tamanhos e tipos. Algumas de-
feminino. Finalmente, um dia os homens resolveram las não podem ser cortadas, não se pode nem tirar um
acabar com aquela humilhação de estarem sempre galho ou uma folha; outras oferecem seu poder, sua
submissos ao poder de suas mulheres. Os homens energia para alguma realização. Elas falam umas com
consultaram Orunmilá e ele mandou fazer um ebó. as outras, conversam, se guardam; outras são inimigas,
O sacrifício era de galos, uma roupa, uma espada, um não podem sequer estar próximas, pois se tornam fra-
chapéu. Ogum era quem deveria levar o sacrifício, a
cas, perdem seus poderes.
ser oferecido sobre a árvore das mulheres. Ali ofere-
Retiram da terra, do Ilé, as suas energias para que
ceu os galos, vestiu a roupa e o chapéu e empunhou a
a vida possa continuar. Nem todos podem entrar nelas
espada. Quando as mulheres chegaram e viram aque-
le homem forte vestido como um poderoso e armado pois guardam, sob suas copas e entre os seus troncos
até os dentes, exibindo aos quatro ventos o seu porte e raízes, segredos. Entre elas, inúmeros e incontáveis
de guerreiro, elas saíram a correr e a correr num pâ- olhos invisíveis espreitam, vigiam e acompanham todos
nico incontrolável. A vista do homem assumindo o aqueles que as contemplam ou se aventuram em seu in-
poder era terrificante. As mulheres não suportavam terior.

{ 105 }
Mas que lugar é esse que até o vento teme entrar? Interessante notar que é no Ika-quintal-que Iyá-mi
É a mata sagrada do Omo Ilê Agboulá (Figura 8). Na tem instalado Égún, Orò, etc. O Ika também é chama-
mata sagrada, a natureza nunca é apenas “natural”. Ela do de èhìnkùlé e conseqüentemente ligado a èhìn, o
atrás, o poente, os ancestrais; mas principalmente é
está, ao contrário, impregnada de valor e simbolismo
chamado de àgbàlá, substantivo derivado do verbo
religioso, pois o mundo, o cosmos, como uma criação
gba: contém, recebe (à + gbà + lá), neste sentido tra-
divina, oriunda dos deuses, está impregnado de sacrali-
ta-se de um lugar continente [...] Num outro verso, o
dade. O universo se coloca, através da mata, de tal for- Ika é comparada a igbó, ‘mato’, o espaço – ‘mato’, pe-
ma que o homem religioso, ao contemplá-lo, percebe rigoso, povoado de espíritos. (SANTOS, 1998, p. 111)
as diversas formas do sagrado, do ser. Antes de qual-
quer coisa, o cosmos existe, está ali, possui um siste- O ika, quintal, era o lugar onde Oduduá guardava
ma de funcionamento, de fluxo da vida, e guarda uma todos os paramentos, roupas, indumentárias e objetos
transparência, pois possibilita a revelação dos vários de Egum. Assim como todos os seus lugares de culto,
aspectos e dimensões do sagrado. O cosmos é a síntese era inacessível a Oxalá, até que um dia Oduduá leva
das modalidades da ontologia – do ser – e da hierofania Oxalá ao ika, revelando os segredos de Egum e de suas
– do sagrado –, tornando o mundo algo vivo. vestimentas. O ika, o quintal de Oduduá, é também
A mata sagrada do Omo Ilê Agboulá materializa essa símbolo da floresta africana e, portanto, morada místi-
síntese. Ela simboliza a floresta africana, possui uma ca de Egum (Figura 21).
importância fundamental para a sociedade, uma vez O mato sagrado contém árvores, ervas, arbustos e
que constitui uma imagem mística da terra natal, da folhas sagradas, que contêm princípios poderes do axé
mãe África. Constitui-se num dos simbolismos vivos indispensáveis para os rituais e atividades litúrgicas do
que povoam a sociedade de culto aos Egum, atualizan- terreiro (Figura 22). É um espaço perigoso, acessível so-
do o ibalé, a clareira na floresta africana, de onde saíam mente aos Ojé e à alta hierarquia feminina (Figura 22),
os Egum. porque se constitui numa rede de fluxos de energia, de
Localiza-se na área mais isolada, conservada e guar- poder que advém de cada vegetal sacralizado.
dada do espaço sagrado privado do terreiro. Está na Essas energias interagem umas com as outras, e,
extremidade, longe do acesso dos não iniciados e dos unidas, criam uma corrente extremamente potente,
olhares de curiosos. Constitui o “quintal” do terreiro, o uma rede de axé, constituindo cargas muito fortes e
chamado ika. (SANTOS, 1998, p. 111) Assim é descrito o prejudiciais a não iniciados e iniciados em ritos incom-
ika na África: pletos, não preparados para suportar tamanho poder.

{ 106 }
No mato sagrado, são realizados os rituais especí- ser retirados e plantados novamente, tornaram-se os
ficos do culto aos Egum durante as festas, assim como vestígios do sagrado espalhados no povoado de Ponta
são feitos os serviços religiosos a terceiros, interagindo, de Areia. Existem até hoje, com exceção de Iroco, que
integrando e aproveitando toda a potencialidade deste caiu com um raio.
campo energético que é a mata sagrada. Também cons- O espaço da mata sagrada do antigo Barro Vermelho
titui-se em uma das moradas dos ara-orum, os habitan- é enorme e diverso, sendo a sua vegetação e o próprio
tes do orum, os mortos, e dos ancestrais. local muito utilizado, ainda hoje, pela sociedade do
Sua dimensão é muito pequena frente aos demais Omo Ilê Agboulá em todas as festas e em rituais especí-
terreiros de candomblé tradicionais que geralmente ficos. Não houve tempo suficiente entre a mudança do
têm grandes áreas arborizadas. Ela ocupa uma peque- Omo Ilê Agboulá do Barro Vermelho e a sua instalação no
na e estreita faixa no fundo do terreiro, em uma área Alto do Bela Vista para que o mato se desenvolvesse em
logo após um pequeno talude (Figura 23). Isso se deve toda a sua plenitude, para que todas as outras plantas
tanto ao fato de Omo Ilê Agboulá ter mudado de lugar necessárias fossem plantadas e cultivadas. A intenção
em virtude das perseguições policiais que sofreu na do Alabá e dos Ojés Abá é de plantar as árvores sagra-
década de 1940; como também à perda de privacida- das e plantas que faltam. Trata-se de mudas de plantas
de oriunda da chegada da especulação imobiliária em que eles sempre estão buscando, guardando em suas
Ponta de Areia com a pressão de turistas, veranistas e casas ou no terreiro, e plantando nas épocas devidas,
novos moradores, notadamente aposentados, que se tanto no espaço sagrado privado quanto no público.
instalaram nas imediações do terreiro a partir do final Querem envolver o Ilê Auô e as laterais do barracão, as-
dos anos 1960. Em Ponta de Areia, o Omo Ilê Agboulá teve sim como os espaços em volta dos assentos dos Orixás
sua primeira morada nos fundos onde é hoje a cape- Onilê, Ogum e Iroco, e o espaço sagrado público entre
la de Nossa Senhora das Candeias, próxima à orla do o barracão e o ilê Exu Ona, o Exu da porteira do terreiro:
povoado. Foi posteriormente para o bairro do Barro
Vermelho e em seguida para o alto do Bela Vista, onde Nós queremos aqui levantar um muro em volta de todo o
terreiro de fora a fora, pra impedir de uma vez que alguém
se encontra até hoje. Nessas andanças, foram deixados
entre na casa, ou que fique olhando, isolar qualquer curio-
para trás inúmeras árvores, ervas, plantas e arbustos
so, mas sem derrubar uma árvore, pelo contrário a gente
sagrados de caráter litúrgico e medicinal, inclusive os
tem que plantar mais plantas e árvores principalmente li-
assentos de Ogum (cajazeira), Iroco (gameleira-branca) curizeiros e dendezeiros tanto nesta área do Lessem aqui, e
e de Exu Ona (Ilê Orixá). Essas divindades, não podendo principalmente nesta área aqui deve ficar envolvido pelas

{ 107 }
Figura 21: Mata sagrada, o quintal, ika, dos Egum
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 108 }
Figura 22: Espaço da Mata onde são tiradas as folhas, ervas e
plantas sagradas para os rituais
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 109 }
árvores, mas o fundamental como eu lhe disse antes é for- (Litrhea Molleoides); Aroeira (Schinus Figura 23); Para
talecer o axé [...] esta área tem que ficar com o axé sempre Raio (Melia Azeorach); Cajueiro (Anacardium Ocidentalis);
forte, puro [...]22 São Gonçalinho (Cassiaria Syevestris); Licuri (Figura 24);
Banana (Musa Sinensis Figura 24); Peregum ou Nativo
Essa situação deve-se também ao fato de utilizarem (Dracaena Fragans Figura 25); Goiaba (Psidium Guayaria),
constantemente a mata do Barro Vermelho – esta área segundo Agostinho dos Santos, Ojé Abá do Omo Ilê
também é utilizada por mais dois terreiros de Egum Agboulá:
localizados nas suas imediações no bairro do Barro
Branco –, não tornando urgente o desenvolvimento da [...] quando eu comecei a entender era mais aqui ca-
mata do Omo Ilê Agboulá: jueiro, era bananeira que tinha por aí esses pés aí de
nicurizeiro, são gonçalino e assim [...] É importante
[...] a mata você pode achar que é pequena em relação a ou- sim tem um pé de para-raio como ele ali tomou nota
tros terreiros porque a gente ainda utiliza a mata do Barro de tudo pegou ali cajueiro brabo que eu mostrei a ele
Vermelho, lá ela é grande, tem mais ervas, plantas e é usa- que não é o mesmo cajueiro que dá o caju aí ele por
da também por mais dois terreiros de Egum que ficam no que cajueiro brabo é que os antigos diziam que era ca-
Barro Branco, a mata aqui é pequena porque a gente ainda jueiro brabo então a gente continua né com o mesmo
usa a do Barro Vermelho, aqui tem pé de aroeira branca, aí mostrei o pé de nativo ali mostrei o peteresinho ali
aroeira, cajueiro, para-raio, são gonçalinho, banana, licuri, arrodiado de onilé que são folhas que servem pra gen-
nativo e goiaba o que a gente não tem aqui a gente pega no te fazer pessoas que as vez vem de lá com influência
Barro Vermelho [...] 23 de exu de egum agente faz e ajunta com mais outras
folhas e preservar isso tudo é importante junto com
As árvores e arbustos sagrados do espaço do mato a casa isso tudo por que tudo precisa de banho de fo-
lha e qualquer influência que chega aqui o crente não
do Omo Ilê Agboulá utilizados nos rituais litúrgicos ou
sai sem tomar o banho de folha que é o necessário
preparos medicinais são: Gameleira-Branca (Fícus
por que se o crente vem pegado é claro que tem que
Máxima); Cajazeira (Spondias Lútea); Aroeira Branca
descarregar pra ele voltar já diferente do que ele veio.
(SOUZA JUNIOR; SOARES; VELAME, 2006)
22 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 10 de
maio de 2006.
23 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de
março de 2006.

{ 110 }
Figura 23: Aroeira (Schinus) da Mata Sagrada
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 111 }
Figura 24: Licuri e Bananeira da Mata Sagrada
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 112 }
Figura 25: Peregum ou Nativo (Dracaena Fragans) da Mata Sagrada
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 113 }
O Espaço Sagrado Público elas cargas impuras e não tomam banho de folhas, é proibi-
do a entrada, até o olhar, o olhar traz também energias im-
O espaço sagrado público (Figura 8) corresponde ao es- puras que danificam a pureza do lugar, este solo aqui tem
paço cujo acesso se dá de forma livre, sem restrições, que ficar sempre puro, até um Ojé que leva muito tempo
sendo frequentado tanto pelos sacerdotes do culto sem cumprir suas obrigações ou não freqüenta a um certo
quanto pelos iniciados de ritos incompletos, e pela tempo a casa tem que passar por uma limpeza e equilibrar
hierarquia feminina como as Atos24 e as Erelus, sendo suas energias para poder entrar nesta área, tanto que a
gente tem que construir um muro de fora a fora nesta área,
aberto inclusive aos visitantes, curiosos, frequentado-
não para impedir o acesso de quem não é da casa mas para
res e adoradores. É onde acontece a maioria das festas
impedir o acesso de qualquer um que venha com as cargas
públicas religiosas. Também é sacralizado dentro dos
impuras pra cá, e aí plantar as árvores sagradas que estão
preceitos e dos ritos, possui edificações sacralizadas a
faltando, está outra área daqui que tem o barracão, a casa
divindades e espaços sagrados, possuindo, portanto, de Xangô, a casa da Iyá Egbé e do Exu da porteira ela toda
fluxo de axé, mas de qualidade, tipo e força diferente também é sagrada, e todas estas construções aqui também,
das energias presentes no espaço sagrado privado, sen- mas as energias que estão aqui são diferentes das de lá,
do energias suportáveis e benéficas a não iniciados: aqui qualquer pessoa pode circular, sendo daqui da casa ou
visita, está área funciona aqui como um filtro das pessoas
Este espaço aqui que vai dos Orixás da rua de Iroco, Ogum, porque vai ‘purificando’, ou melhor, reduzindo as cargas
Onilé, a mata sagrada e o Lessém é um lugar carregado de impuras até ele chegar no barracão quando os Aparakás
energias, que a gente tem que manter o mais puro possível, fazem uma purificação de novo destas pessoas, preparando
porque todo o bom andamento das coisas depende da pure- o espaço com energias puras, benéficas para Babá, e este
za do axé desta área, então é um lugar só freqüentado pelos espaço depois do muro, depois da porteira de Exu também
Ojés, pois estão preparados para estas cargas, passam por é nosso, tem uma casa aí de uma família, que inclusive é
rituais e fazem suas obrigações para não desequilibrar as daqui da casa, mas eles estão avisados que quando a gente
energias daqui, as energias desta área tem que ficar sem- precisar destas áreas pra fazer as nossas obras eles vão ter
pre puras, pessoas de fora, não iniciados que trazem com que ir embora.25

24 A hierarquia feminina do Omo Ilê Agboulá possui os seguintes car-


gos: Iá Lodé (responde pelo grupo feminino perante os homens),
Iá Ebé (cabeça de todas as mulheres), Iá Mondé (comanda as ató
e fala com os Babá), Iá Erelu (cabeça das cantadoras), Erelu (can-
tadora de Egum), Iá Agam (recruta e ensina as Ató), Ató (adora- 25 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
dora de Egum). Outros oiê, cargos-títulos: Iabassé, Iá Kekerê, Iá Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de
Monioió, Iá Elemaxó, Iá Morô. março de 2006.

{ 114 }
Assim o espaço sagrado público compreende a área somente após passar por ela tem acesso ao templo. Só
central do terreiro formada pelo conjunto das edifica- depois de lhe pedir licença se pode ir adiante.
ções: o Barracão, o Ilê Orixá consagrado a Xangô – a 26
Ao entrar, ela espreita por todos os lugares, sempre
casa de Xangô –; o Ilê Exu – Exu Ona, o Exu da porteira vigiando e olhando por tudo, mantendo a integridade
–; o Ilê Iá Ebé – a casa da mãe da sociedade – e o espaço do templo, zelando por cada coisa e pessoa. Mas, que
livre sagrado, que é uma área onde são realizadas algu- casa é essa que monta guarda? Que casa vigia é essa que
mas festas religiosas ao ar livre (Figura 8): tudo vê, que afaga e cuida, que bate e expulsa?
É o Ilê Exu, a casa de Exu (Figura 8), que está locali-
[...] veja ta vendo este espaço nesta planta tudo aqui é sa- zada na entrada do espaço sagrado público (Figura 26)
grado, depois do Exu da porteira até a mata lá no fundo
e vem a ser a primeira edificação do conjunto arquite-
tudo é sagrado, este chão, está terra é toda sagrada, agora
tônico do Omo Ilê Aboulá. Constitui-se por um pequeno
este trecho aqui dos Orixás da rua, do Lessém e da mata é
abrigo de tijolos caiados e cobertos por telhas de fibro-
um sagrado diferente do de cá.27
cimento, sendo devidamente sacralizada.

Ao entrar no espaço sagrado público, existe uma Possui no seu interior um pequeno pepelê, altar sa-

casa que causa surpresa aos desavisados e que exige re- grado, onde estão colocados três objetos simbólicos.

verência para poder entrar no recinto. Esses são na realidade os objetos suportes, os continen-
tes dos assentos dos Exu. Em sua frente, há um portão de
madeira que deve ficar fechado de cadeado (Figura 27).
O Ilê Exu Esse Ilê Exu possui o dever e a função essencial de
proteger todo o espaço sagrado do terreiro e todos que
Essa pequena casa encontra-se logo na entrada do terrei-
estiverem dentro desse espaço. Ele é aqui no Brasil cha-
ro, é tão simples e singela que parece apenas um abrigo,
mado Exu da porteira, o grande zelador e guardião do
mas é uma casa que gera impacto e surpresa, pois, ao
terreiro. Trata-se de uma característica básica mantida
entrar no terreiro, ela emerge repentinamente e a pes-
desde a África, pois lá Exu protegia as casas, templos,
soa é direcionada por uma parede a ir em sua direção e
palácios, cidades e campos, devendo estar localizado,
para desenvolver plenamente sua missão, na entrada
26 Xangô é o Orixá da justiça e senhor do trovão, é o Orixá do patrono do conjunto.
do terreiro, o Babá Aboulá.
27 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Constitui também um ponto “fixo”, a referência, o
Ilê Aboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 16 de elemento do meio, o centro de orientação, porque ele
março de 2006.

{ 115 }
Figura 26: Ilê Exu na entrada do Espaço Sagrado Público
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 116 }
Figura 27: Ilê Exu a porteira na entrada do Espaço Sagrado Público
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 117 }
é, por excelência, a primeira forma dotada de existên- pode ter uma entrada e saída, e hoje a gente tem uma pas-
cia individualizada. Exu é o primogênito do orum, en- sagem naquelas árvores e mata que rodeiam o terreiro que
quanto Ogum é o filho primogênito na constelação do vamos fechar, ele tem que ir pro centro porque tem que ficar

panteão dos Orixás. Exu é o primogênito do cosmo, do alinhado, na mesma direção da porta do barracão [...] tem
que colocar ele no centro do muro, na direção e alinhado
universo, do orum e do aiê; foi criado diretamente por
com a porta do barracão [...]29
Olodumaré e enviado a Oxalá, como conta o mito de
origem de Exu e de sua função de senhor da porteira.28
No pepelê do Ilê Exu, encontram-se na realidade três
Os membros do culto aos Egum pretendem mudar
assentos de Exu, pois são três Exu diferentes, cada um
a localização atual do Ilê Exu para o centro do muro da
com uma função específica (Figura 28).
frente do terreiro e fechar uma entrada lateral, fruto
O primeiro é o Exu Abá, simbolizado por uma pa-
de uma abertura no muro de árvores e arbustos que
nela de ferro emborcada. É o Exu ancião, o antigo do
envolvem o terreiro, para que todos que venham a en-
terreiro, é a representação mitológica do primeiro Exu,
trar no terreiro, obrigatoriamente, passem pelo Exu da
a origem única dos Exu, é o terceiro elemento do cos-
porteira:
mo. É o filho de Olodumaré, que simboliza também o
Logo na entrada tem o Exu da porteira que todos que en- dinamismo da vida.
tram e saem tem que pedir licença, permissão para entrar O segundo é o Exu Ona de todo o terreiro. É o Exu
na casa, mas a gente quer mudar ele de lugar, a gente quer da porteira propriamente dito, o grande protetor, é o
colocar ele no meio do muro que limita o espaço sagrado fiscal, é quem abre e fecha os caminhos, bem como
do terreiro, este muro aqui da planta, porque o terreiro só controla a passagem de trafego de entrada e saída de
todos, sejam os membros da sociedade dos Egum, os
28 Nas remotas origens, Olódúmarè e Òrìsànlà estavam começando filhos da casa, assim como os visitantes. Devem todos
a criar o ser humano. Assim criaram Èsú, que ficou mais forte,
mais difícil que seus criadores [...] Olódúmarè enviou Èsú para lhe prestar reverência e homenagem, pedir-lhe licença
viver com Òrìsànlà; este o colocou à entrada de sua morada e o
e proteção para entrar e sair. Diferentemente dos três
enviava como seu representante para efetuar todos os trabalhos
necessários. Foi então que Òrúnmìlà, desejoso de ter um filho, foi outros Exu Ona do terreiro – plantados nas portas do
pedir um para Òrìsànlà. Este lhe diz que ainda não tinha acabado
o trabalho de criar seres e que deveria voltar um mês mais ta rde. Ilê Auô, Ilê Orixá, e do Barracão –, que são afáveis e zelo-
Òrúnmìlà insistiu, impacientou-se querendo a qualquer preço le- sos com todos aqueles que utilizam as edificações que
var consigo. Òrìsànlà repetiu que ainda não tinha nenhum. Então
perguntou: “Que é daquele que vi à entrada de sua casa?” É aque-
le mesmo que ele quer. Òrìsànlà lhe explicou que aquele não era 29 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
precisamente alguém que pudesse ser criado e mimado no Àiyé. Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 14 de
(SANTOS, 1998, p. 135) abril de 2006.

{ 118 }
eles protegem, o Exu da porteira, Exu Ona do terreiro, jeito não, ele é muito fraco pra bebida, vez ou outra ta lá ele
é agressivo, temperamental com aqueles que não pe- bebendo a cachaça que a gente põe pra Exu.30
dem licença ao entrar e sair – batendo cada um dos pés
três vezes no chão do terreiro em sua frente –, hostil e A relação de Exu com os Egum, além daquele de ser
violento com todos os intrusos e forasteiros, pois é o mensageiro e portador de suas oferendas, se dá pelo
responsável pela integridade física do Omo Ilê Agboulá. fato dele ter sido vencido por Ikú, a morte, mostrando
Ele encontra-se no centro do pepelê e está assenta- a onipotência de Ikú. Sendo a morte o destino de tudo o
do em sua ferramenta simbolizada por um tridente em que vive, é, portanto, o meio de criação de Egum, pois o
ferro. O terceiro é o Exu Elebo, que é o responsável pelo Egum é a individualização do homem depois da morte,
estabelecimento das relações e comunicações entre o após o encontro com Ikú, como nos conta o mito:
aiê e o orum, do diálogo entre os Orixás entre si e entre
Havia um ser que não temia Exu e este era Icu, a
os Egum, e entre essas divindades e ancestrais e os ho-
Morte. Icu ouvira falar de coisas terríveis que Exu ti-
mens. É o mensageiro, patrono e transportador das ofe-
nha feito ao povo e perguntou por que Exu fazia isso
rendas. É simbolizado por uma ferramenta com formas sem ser reprimido. Todos diziam que ninguém era su-
antropomórficas em ferro (Figura 29). ficientemente corajoso para enfrentar Icu face a face.
Entre os assentos dos Exu, encontram-se inúmeros Icu disse que era ela que devia lidar com Exu e enviou
copos e garrafas contendo restos de oferendas – bebi- uma mensagem desafiando Exu para uma batalha.
das alcoólicas, azeite de dendê etc. – e telhas cerâmicas E Exu então respondeu: ‘Eu não tenho medo de Icu,
utilizadas para proteger as velas utilizadas nos rituais: vamos lutar’. Exu foi até seu amigo Orunmilá e con-
tou-lhe sobre o desafio. Orunmilá perguntou: ‘Quem
Aqui tem um rapaz que é fraco pra bebida, é muito fraco pode lutar com a morte?’ Exu respondeu bravo:
pra bebida, e eu já falei pra ele pra não beber a cachaça ‘Quem pode lutar com Exu?’ Exu pediu a Orunmilá
de Exu, é temoso, falei bucado de vez pra ele não beber a que arranjasse o combate. E o dia do duelo chegou.
cachaça de Exu, mas ele continua, toda hora ele bebe a coi- Veio gente de toda parte para assistir o duelo e a ci-
sas de Exu, mas ele continua, toda hora ele bebe a coisas dade ficou tomada de espectadores. Exu bradou seu
de Exu, já paguei bebida pra ele, tem outros Ojés que já grito de guerra provocando Icu. Então Icu avançou,

pagaram, tem alguns Ojés que quer pegar ele, mas eu já segurando a espada e o escudo, e cantou provocando

chamei a atenção dele pra valer, falei pra ele, olhe, nunca
mais beba as coisas que a gente botar aqui pra Exu, porque 30 Informação fornecida por Agostinho dos Santos, Ojé Aba do Omo
aí você vai se ver é comigo, ta entendendo? Mas não tem Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de
abril de 2006.

{ 119 }
Figura 28: Assento dos três Exu da entrada do terreiro
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 120 }
Figura 29: Assentos de Exu Aba, Exu Ona, Exu Elebo do Ilê Exu
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 121 }
Exu. E a batalha começou, Exu golpeava forte com o o respeito de todas que se calam quando ela fala, que
porrete, várias vezes. Mas Icu era rápida e ágil. Tanto atendem a seus chamados e realizam seus desejos.
que Icu prendeu Exu. Icu jogou-o no chão e arrancou Que casa é esta que guarda esta poderosa senhora
o porrete de sua mão. Icu ergueu o porrete sobre Exu
e suas filhas, que possuem o poder de realizar o bem e
para matá-lo. Então houve gritos de alarme na mul-
o mal?
tidão. Orunmilá correu até o lugar da escaramuça e
O Ilê Iá Ebé (Figura 8), a casa da mãe da sociedade,
tomou o porrete de Icu, salvando o amigo da destrui-
ção. E foi porque Exu foi defendido por Orunmilá que é aparentemente apenas uma edificação residencial,
ele não morreu. E é por causa disso que os homens uma hospedagem utilizada nas ocasiões das festas li-
dizem: ‘Ninguém pode matar a Morte. Ninguém pode túrgicas do calendário do Omo Ilê Agboulá pelo mais alto
derrotar Icu’. (PRANDI, 2005, p. 65) grau da hierarquia feminina e responsável por todas
as mulheres do culto aos Egum, a Iá Ebé – mãe da so-
Mas, ao passar pelo Ilê Exu e ao entrar no terreiro, ciedade –, e ocasionalmente pelos demais membros da
se vê uma outra casa, que, entretanto, encontra-se fe- alta hierarquia feminina – Iá Lode, Iá Monde, Iá Erelu, Iá
chada e sem moradores, com as marcas do tempo em Kekeré –.
suas paredes. Foi ela construída em um lugar onde antigamen-
te existiam alguns poucos quartos utilizados também
como hospedagem, durante as festas, para membros da
O Ilê Iá Ebé
sociedade que vinham de Salvador e de outras localida-
Essa casa está num canto do terreiro, como se tivesse se des, assim como por aqueles que moravam na orla e na
distanciado de algo, fugindo de alguma coisa, encosta- baixada de Ponta de Areia.
da no muro em busca de abrigo, silenciosa, quase aban- O Ilê Iá Ebé entrou em desuso pela incompatibili-
donada, adormecida, com as janelas e portas fechadas. dade da presença dos vivos próximos aos espaços em
Isto ocorre até as festas sagradas da casa, quando estas que os Egum circulavam durante as festas no terrei-
se abrem, e ela – a casa – desperta com tal força e ímpe- ro e, principalmente, pela sua má conservação. Eram
to que parece lutar pela posse e autoridade do mundo. edificações muito precárias pela falta de uso, devido à
Enche-se de mulheres, senhoras, a maioria de idade aproximação dos membros da comunidade que vieram
avançada, ora alegres, conversadeiras, ao som de garga- a morar junto ao terreiro em função da pressão do mer-
lhadas; ora quietas, com olhos distantes, compenetra- cado imobiliário em Ponta de Areia nos anos de 1970
das, mas sempre em volta de uma mulher que possui e 1980, deixando o costume de aí ficarem durante os

{ 122 }
festejos, já que era cansativo subir inúmeras vezes du- É uma casa construída de blocos cerâmicos pinta-
rante os ciclos das festas as ladeiras que ligam o povoa- dos de branco, com telhado de duas águas de cerâmica
do de Ponta de Areia ao Bela Vista, onde fica o Omo Ilê artesanal e uma varanda (Figura 30). O acesso é restrito
Agboulá, sendo esta função de hospedagem genérica, a às mulheres, que nela só podem entrar, contudo, com a
qualquer membro, reduzida a um quarto no barracão, autorização ou convite da Iá Ebé. Constitui o espaço pri-
como é relatado por Balbino Daniel de Paula: vado da alta hierarquia das mulheres dentro do terreiro.
Sua importância dentro do universo do terreiro não
Ela tem dois quartos, uma sala de estar e jantar conjugada, se deve à sua sacralização ritual, pois não possui nem
uma cozinha pequena no fundo e uma varanda, ela serve
pejis, nem assentos de divindades no seu interior, mas
para hospedar a Iya Egbé durante as festas é o lugar onde
pelo fato de ser a “morada” da Iá Ebé, que, por si só, já
ela fala com as mulheres da casa e cuida dos seus afazeres
merece grande respeito.
e de todas as mulheres daqui da religião, mas hoje em dia
ela não vem mais, pois está bem velha e no lugar dela fica
É nela que durante os ciclos das festas a Iá Ebé re-
a Iyá Kekere que também está numa idade avançada mas cebe, cuida, orienta todas as componentes da hierar-
vem, não fica a noite toda não, porque é muito puxado pra quia feminina; fiscaliza os devidos procedimentos e
ela, tinha antes aqui poucos quartos, no mesmo lugar onde atividades rituais para os Orixás e, notadamente, para
hoje é a casa da Iyá Egbé, eram quartos enfileirados eram os Egum; transmite as solicitações das mulheres aos
utilizados como hospedagem durante os dias que duravam homens; recebe dos Ojés as determinações e vontades
as festas por aqueles que vinham de Ponta de Areia, de ou- dos Egum; constitui-se por fim no centro de reunião e
tras cidades, mas também de gente que morava lá em baixo convívio da ala feminina do culto aos Egum, onde a alta
próximos à beira mar, mas com o tempo e a vinda das pes-
hierarquia feminina, em todos os seus cargos, reune-se
soas da religião que moravam na Beira Mar que venderam
para discutir seus problemas e questões internas perti-
suas casas para os turistas e veranistas indo morar no Bela
nentes às mulheres.
Vista estes quartos ficaram quase sem uso, e cada dia mais
mal conservados sendo substituídos pelo Ilê Iyá Egbé, tam-
A Iá Ebé é a líder dos cuidados litúrgicos com os
bém porque não era mais permitido gente morar ou dormir Orixás e seus assentos. A Iá Ebé é a “Ialorixá” do terreiro
vários dias dentro do terreiro por causa de suas cargas im- de Egum. Ela cuida das filhas de santo, principalmen-
puras e Babá poder pegar também.31 te, quando estão em possessão durante as festas públi-
cas, zelando os Orixás nesse momento, pondo-os para

31 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo


dançar sob as músicas a eles consagradas tocadas pelos
Ilê Aboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de
abril de 2006.

{ 123 }
Figura 30: O Ilé Iá Ebé no espaço público sagrado
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 124 }
Alabês, despachando-os para que a festa de Egum possa ancestrais, aos Egum na Àfrica, característica essa man-
continuar. 32
tida aqui no Brasil. É proibido a elas qualquer tipo de
A localização do Ilê Iá Ebé adjacente ao muro que acesso, seja corpóreo ou visual, aos espaços, rituais e
separa o espaço sagrado do espaço profano do terreiro, segredos do culto dos Egum no Ilê Auô, restrito aos ho-
estando o mais afastado possível do Ilê Auô na extremi- mens, aos Ojés. O Ilê Iá Ebé, sendo a casa da Iá Ebé e espaço
dade do espaço sagrado público do terreiro, deve-se a de convívio e decisão dos membros da alta hierarquia
quatro motivos (Figura31). das mulheres, simboliza o poder e a ancestralidade
Primeiro, porque as mulheres foram proibidas coletiva feminina herdada, tanto das divindades femi-
de serem membros da sociedade secreta de culto aos ninas – Oduduá, Nanã, Obá, Oxum, Iemanjá, dentre ou-
tras – quanto das sociedades secretas de mulheres na
32 Encarregam-se elas, quase sempre, da cozinha sagrada e profana, África, a sociedade Geledé, Oboni, Elelekó, (SANTOS,
dividindo com os homens a responsabilidade da boa execução das
festas, além de cantarem e dançarem em situações bem definidas. 1998, p.106) sendo mantida, portanto, distante do Ilê
Na verdade, sempre existe uma mulher na liderança das atividades Auô, a casa do segredo. Segundo, porque as pessoas que
religiosas relacionadas com os orixás. Cumpre-lhes dar assistên-
cia às filhas-de-santo (iniciadas no culto dos orixás) em estado de nela se hospedam, uma vez que são geralmente mu-
possessão, além de cuidar de seus orixás. Coloca-os para dançar lheres, como as mães e filhas de santo, as responsáveis
e decide sobre o momento de “mandá-los embora” (despachar o
santo). Por isso, cadeira especial sempre lhe é reservada em lugar por cuidarem dos assuntos referentes aos Orixás do
destacado, geralmente ao lado da assistência feminina, nos limites
terreiro, de seus assentos e axé, devem ser mantidas à
que separam o espaço sagrado, onde dançam os espíritos ances-
trais, do destinado ao público. Os eguns dispensam-lhe reverên- distância do Ilê Auô e de sua vida interna, para que não
cias especiais, saúdam-na entre os primeiros e, de vez em quando,
dançam em sua homenagem. Em retribuição, pode a mulher tirar possam perceber, ver e ouvir, durante os rituais e as
uma cantiga ou dançar em sua honra. Enquanto responsável por festas, alguma coisa relativa aos fundamentos do culto
tudo quanto é relacionado com os orixás, na cerimônia pública,
tem ela praticamente as mesmas atribuições da mãe-de-santo nos aos Egum, restrito aos homens, descubrindo, portan-
candomblés de orixás. Conhecida pela denominação de ia-ebé – a to, os segredos do culto guardados pelos Ojés.Terceiro,
mãe da sociedade -, é ela a ialorixá do terreiro-de-egum. [...] Nos
terreiros-de-egum, a iá-ebé cuida das atividades relacionadas com porque o Ilê Iá Ebé também é uma morada eventual dos
os orixás, tendo, assim, atribuições iguais às da mãe-de-santo na vivos – mesmo só utilizada durante as festas –, podendo
estrutura dos candomblés da Bahia. Como mão-de-santo do ter-
reiro-de-egum, ela serve de elemento de ligação entre os seguido- hospedar, por um certo período de tempo, pessoas que
res do culto e os responsáveis pela execução dos rituais. Todas as
carregam consigo energias, axé impróprio – uma vez
questões relacionadas com os orixás são de sua responsabilidade,
exercendo sua função em perfeito entrosamento com os ojés e, em que essas pessoas não passaram por rituais específicos
particular, com o líder do grupo, a quem cabe as decisões finais
relativas à comunidade. A ia-ebé tem plena consciência dos limites
de purificações, não cuidaram dos seus corpos, do equi-
de seu papel, jamais se intrometendo em assuntos específicos do líbrio de suas energias, não tomaram banhos de folhas,
culto aos ancestrais. (BRAGA, 1995, p. 42)

{ 125 }
Figura 31: Localização do Ilê Iá Ebé no limite do Espaço Sagrado Público
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 126 }
não seguiram os tabus alimentares e sexuais etc. –, de- Que casa é está que inspira prazeres terrenos e, ao
vendo ser mantidas durante a sua estada o mais longe mesmo tempo, senso de responsabilidade naqueles que
possível do Ilê Auô e da mata sagrada. Porque, o contato, a contemplam?
a circulação e a proximidade dessas pessoas com o Ilê É o Ilê Orixá (Figura 8), que constitui uma edificação
Auô e a mata sagrada podem desequilibrar a harmonia do espaço sagrado público do Omo Ilê Agboulá, onde es-
e a pureza desses espaços sagrados. Quarto, para que tão depositados coletivamente, em um pepelê, os assen-
nenhum hóspede ou morador temporário do Ilê Iá Ebé tos dos Orixás Nanã, Oxum, Obaluaiê, Iemanjá, Oxalá
seja assombrado ou apropriado pelos espíritos dos mor- e de Xangô. Esses assentos encontravam-se em um peji,
tos que rondam e habitam o terreiro, ou tocado e pego num quarto pequeno, no lado direito do barracão onde
por algum Egum. hoje funciona um depósito. Nesse depósito, ainda se
Mas, em frente do Ilê Iá Ebé, do outro lado do terrei- encontra o pepelê, o altar sagrado (Figura 32), e vários
ro, há mais uma casa, mas desta vez bem conservada, continentes e emblemas que constituem os assentos
com uma aparência de uma construção recente. dessas divindades, que se encontram em desuso, estão
desacralizadas, sem o conteúdo e o axé que os caracteri-
zam. Estes conteúdos foram transferidos para os novos
O Ilê Orixá
recipientes no Ilê Orixá, estando todas essas divindades
Essa outra casa encontra-se num outro canto do terrei- devidamente fixadas em seus respectivos assentos,
ro a fugir de algo ou de alguma coisa, no lado oposto do pois, quando se passa o axé para um “novo” recipiente,
Ilê Iá Ebé, no ponto mais alto do terreiro. Nela nenhum ele continua a ser o mesmo assento da divindade.
homem mora, ela é uma morada de histórias sagradas. Isso ocorreu devido ao fato da ampliação do barra-
Simples e imponente, austera, possui um ar de nobre- cão. Antes da ampliação, esse quarto de Orixás ficava
za, realeza, dignidade, altivez e soberania. Quando o na extremidade da construção. Durante a ampliação do
sol toca a sua face ela vibra como a vida a se alimentar barracão, feito com a finalidade de caber um número
de fogo e suas cores reluzem como uma festa. Ela cor- maior de frequentadores, o quarto passou a ser utili-
teja aqueles que a olham, ela é pulsante, energética, zado como depósito de materiais de construção para a
sedutora, a um ponto que atrai os distraídos ao pé de obra de ampliação. Porque era o único ambiente pró-
sua escada. Do alto, inspira e aspira justiça, severidade, ximo à obra que poderia ser utilizado para esse propó-
mas também benevolência. sito, poderia tornar-se disponível para isso, visto que
alguns membros do culto – que eram iniciados no culto

{ 127 }
aos Orixás – queriam também dar uma estrutura me- O culto dos Egum e dos Orixás constituem dois uni-
lhor para as divindades, ou seja, retirá-los desse quarto versos distintos, embora complementares, da concep-
e construir um ilê específico para eles. ção do mundo e do sistema afro-brasieliro de origem
No terreiro de Egum, é proibido o culto ritual e li- nagô, pois possuem hierarquias, dogmas, rituais, estru-
túrgico aos Orixás, da forma como ele se dá no terrei- turas diferentes com objetivos distintos, além do mais
ro de Orixá, embora sejam entoadas as músicas destas algumas divindades – as que estão dentro do Ilê Orixá
divindades nos rituais principiatórios das festas, sendo – possuem formas de energias, de axé, diferentes, que
que sempre que uma divindade se manifesta em uma não se anulam e não são incompatíveis com o axé dos
filha ou mãe de santo, na ala das mulheres, a cerimô- Egum. Essa relação não é de anulação, mas sim de res-
nia dos Egum é imediatamente interrompida, até que peito mútuo: os Egum respeitam a presença dos Orixás
o Orixá seja “despachado”, volte para o orum, como nos assim como os Orixás respeitam a presença dos Egum
relata Balbino Daniel de Paula: durante as festas e nos espaços em que habitam:

Veja bem existia no barracão um quarto dos Orixás, sempre Eu sou Ojé aqui do Omo Ilê Agboulá, atualmente, depois
teve eles no barracão, ficava num quarto que ficava an- da morte do finado Domingos, sou o Alabá da casa, e sou
tes da cozinha sagrada que hoje está lacrada, está aqui na quem cuida da casa, as vezes tem alguns problemas com
planta, depois foi mudado para um outro quarto também quem queria ser o Alabá [...], mas também sou iniciado no
no barracão pro outro lado onde ficou até a ampliação do culto aos Orixás, sou de Ogum, tenho cargo na casa de mi-
barracão, sendo levado depois para a casa de Xangô, lá hoje nha irmã no terreiro dela lá em Tubarão que é um terreiro
em dia tem os assentos de Nanã, Oxum, Omolu, Yemanjá, neto do Ilê Axé Opo Afonjá, freqüentei muito o Afonjá
Oxalá, e Xangô, e este quarto hoje funciona um depósito e quando morava em Salvador, e o que te posso dizer que os
lá ainda tem um peji, estes assentos de Orixá foram retira- cultos dos Egum e dos Orixás são complementares, eles se
dos do barracão porque no Ilê Egum não se cultua Orixá complementam.34
como eles são cultuados no Ilê Orixá, assim que uma filha
ou filho de santo recebe o santo numa festa de Egum, ela é
imediatamente parada até despachar o santo, para que a
festa de Egum possa continuar [...]33

33 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo 34 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Aboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de Ilê Aboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 08 de
abril de 2006. fevereiro de 2006.

{ 128 }
Figura 32: O antigo peji do Ilê Orixá no depósito do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 129 }
Da mesma forma, nos terreiros de Orixá, há o Ilê Logo, os motivos que levaram os assentos dos Orixás
Ibo Aku, onde estão os assentos dos Esa, masculinos e
35 36
a saírem do quarto de Orixás no barracão e serem le-
femininos do terreiro. São mortos ilustres, que se loca- vados para o Ilê Orixás foram: a ampliação do barracão
lizam bem distantes do Ilê Orixá de todas as divindades, com a utilização do quarto dos Orixás como depósito
pois ele pertence à esfera de Ikú, a morte. para a obra de ampliação e a vontade de alguns mem-
Segundo os mitos que contam as passagens dos bros do culto de construir um ilê para as divindades; a
Orixás de personalidades históricas, as divindades sem- relação de alguns Orixás com Ikú, a morte, bem como
pre se davam em grandes momentos de paixão, cóle- com seus símbolos e suas representações, ou seja, longe
ra e tensão, de grandes acontecimentos no qual o axé dos Egum, do Ilê Auô, e da área da mata sagrada, sempre
que detinham se potencializaram a tal ponto que sua rondada pelos Egum e Ikú; manter um distanciamento
matéria carnal se desintegrou, restando o seu grande necessário entre os assentos dos Egum e os assentos de
axé no orum. Portanto, alguns Orixás não morreram alguns Orixás, pois há um respeito mútuo da presença
para depois virarem entidades sobrenaturais, mas sim entre os Orixás e os Egum: ambos respeitam a presença
passaram do aiê ao orum sem serem levados por Ikú, do outro, não se manifestando, na maioria das vezes,
e nenhum deles podem em poder com Ikú, nem Exu quando o outro está presente.
conseguiu vencer Ikú. E, por fim, o que se teme é uma Como não podem ser cultuadas segundo os princí-
segunda morte, a definitiva, o fim de sua existência no pios rituais de um terreiro de Orixá, as divindades não
orum, originada por uma grave falta por eles cometida, podem possuir suas casas individuais, seus respectivos
com a decipação do axé que constitui os espíritos dos Ilê Orixá com elementos que as individualizam e as ca-
mortos, os oku-orum. racterizam; devem sim estar num terreiro de Egum
Tal é a dicotomia entre estas duas categorias de en- sempre juntas no mesmo peji.
tidades sobrenaturais, que dificilmente sai Egum em Esses assentos possuem uma peculiaridade: enquan-
terreiro de Orixá durante os ciclos das festas públicas, to, nos terreiros de Orixá, os assentos das divindades
só, e às vezes, durante os rituais do axexé de membros existentes dentro dos Ilê Orixá são cultuados por todos
da mais alta hierarquia do terreiro. os membros da comunidade do terreiro, notadamente,
pelos filhos deste ou daquele Orixá, ou seja, são coleti-
vos, pertencem a todos; os assentos de Orixá encontra-
35 Casa dos mortos do terreiro.
36 São os ancestrais africanos que fundaram ou ajudaram a fundar
dos dentro do Ilê Orixs do Omo Ilê Agboulá pertencem aos
o Candomblé na Bahia, que trouxeram a religião da África para o
Brasil.

{ 130 }
membros da alta hierarquia feminina, que também são dos demais Orixás, qualidades de axé extremamente
iniciados no culto aos Orixás. benéficas, necessárias, importantes e fundamentais ao
São assentos das divindades individuais de filhos, culto dos Egum; estão integrados a ele.
filhas e mães de santo que integram a comunidade do O Ilê Orixá do Omo Ilê Agboulá, em si, constitui numa
terreiro, ou seja, são assentos individuais e privados, edificação feita de blocos cerâmicos, telhado de duas
seus filhos lhes têm acesso para realizar as oferendas águas em telha cerâmica industrializada, com apenas
nos períodos das festas públicas e eventualmente nos uma janela e uma porta de onde sai uma escada que lhe
fins de semana, aos sábados: dá acesso (Figura 33).
Todavia, como todas as demais casas que compõem
Como eu falei, tem os assentos de Nanã, Omolu, Oxum, o terreiro, ela é devidamente sacralizada através de sa-
Xangô, Oxalá, Yemanjá, o axé de algum deles tem que estar
crifícios de animais votivos; possui o seu Exu Ona na
longe do Lessem, dos assentos de Babá, o mais longe pos-
porta; é pintada de branco nas paredes, e vermelho nas
sível, e como eles não são cultuados como num terreiro de
esquadrias – porta e janela –, que é a composição de
Orixá com um quarto ou um ilé pra cada um eles são colo-
cados juntos no mesmo peji, e tem mais, aqui, diferente de
cores que caracteriza Xangô, pois este Ilê Orixá é con-
terreiro de Orixás estes santos são propriedades de pessoas, sagrado a Xangô, esta edificação lhe pertence, sendo
é a pessoa daqui da casa que também é feita no culto aos chamada pela sociedade do terreiro de “Casa de Xangô”.
Orixás e tem o seu santo que trouxe e deixa aqui na casa e Xangô é um Orixá que possui uma grande impor-
vem fazer os seus osé, estes santos são individuais, cada um tância para a comunidade e para o culto dos Egum no
deles tem um dono. 37
Omo Ilê Agboulá, e se dá pelos seguintes aspectos: Egum
mitologicamente é um filho de Xangô; Xangô simbo-
Essas relações espaciais dos assentos de Orixá com liza ancestralidade; ademais, Xangô é o Orixá de Babá
os assentos de Egum possuem, entretanto, como parti- Agboulá, o patrono do terreiro.
cularidade e exceção, os assentos das divindades Exu, Um dos mitos de origem de Egum narra que ele foi
Oiá Ibalé, Ossaim, Onilê, Ogum e Iroco, em virtude das o nono filho de Oiá Ibalé com Xangô. Ele é o elemento
relações intrínsecas com os rituais, dogmas e preceitos procriado na esfera do aiê, é descendência, pois é fruto
que devem ser seguidos, pois constituem, ao contrário da interação do princípio poder feminino com o mascu-
lino de Orixás filhos do panteão das divindades.

37 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo


Xangô ainda simboliza a ancestralidade das dinas-
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de tias reais do império de Oyo, foi historicamente um dos
abril de 2006.

{ 131 }
Alafim, (VERGER, 2002, p.134) senhor e rei do palácio esta transposta e legada a toda a sociedade do terreiro:
de Oyo. Xangô congrega, em sua figura, a imagem dos “Ali é o rei, é o rei, é a casa do rei, rei Xangô”.38
ancestrais reais coletivos; ele é o símbolo máximo de O Ilê Orixá, ou Casa de Xangô, localiza-se no terreiro
dinastia e, como tal, é continuidade e seqüência inin- em relação da necessidade de distanciamento dos espa-
terrupta, ou seja, simboliza descendência e procriação, ços ocupados pelos Egum e por Ikú no espaço sagrado
vinculando-se ao Egum, que é o elemento procriado privado do terreiro, o mais distante possível do Ilê Auô,
por excelência. São dois planos de um mesmo símbolo, porque, como já foi dito acima alguns Orixás desse ilê
a ancestralidade, pois Xangô é um ancestral coletivo e devem estar distantes do acesso dos Egum. Essa relação
divino, ultrapassa a esfera familiar enquanto o Egum é de separação e distância também se dá e se potenciali-
um ancestral de um clã ou de uma família, onde cada za no terreiro do Omo Ilê Agboulá pelo fato de a casa ser
Egum possui a sua própria linhagem, sua descendên- consagrada a Xangô, o Orixá símbolo da vida, senhor
cia, seus filhos. dos ara-aiê, os habitantes do mundo.
Na Nigéria, os bairros das cidades iorubás eram divi- Xangô é símbolo de continuidade infinita como di-
didos por clãs com seu próprio Alabá e Ojés que cultua- nastia, tornando-se o símbolo de tudo que pulsa, que
vam e zelavam por seus Egum respectivos. Na Bahia, o possui Émi – respiração.
culto dos Egum extrapola a dimensão familiar consan- Xangô teme a morte, não fica em lugar algum onde
guínea para uma família ampliada, uma família extensa, há mortos, e foge de Ikú onde ele estiver, teme todos
que agrega também por laços religiosos pessoas que não os oku-orum – os mortos – e, principalmente, os Egum
são descendentes de Daniel de Paula, o fundador do ter- e suas moradas. A Casa de Xangô situa-se o mais lon-
reiro, criando uma rede de cooperação e ajuda mútua. ge possível do Lessém e da mata sagrada habitada por
Por fim, Xangô é o Orixá do patrono do terreiro, o espíritos, na extremidade do espaço sagrado público
Babá Aboulá, que é tido por esta comunidade de terrei- do terreiro, no seu lugar mais alto, inacessível para os
ro como um dos filhos e descendentes de Xangô. Ele é Egum, onde eles não conseguem transitar durante as
considerado um dos patriarcas dos iorubás. Por isso, o festas públicas à noite, que se dá, também, ao redor do
grande respeito da sociedade por essa divindade, sendo barracão. Essa relação de Xangô com a morte e com a
vários os emblemas – coroa e oxê, o seu machado duplo sociedade dos Egum é desvelada pelo mito abaixo:
–, estandartes, faixas e pinturas em vermelho e branco
que caracterizam Xangô e simbolizam o seu represen-
tante e legítimo herdeiro Babá Aboulá, descendência 38 Agostinho Neto, Amuixã do Omo Ilê Agboulá em Ponta de Areia no
município de Ponta de Areia em 12 de abril de 2006.

{ 132 }
Figura 33: O Ilê Orixá, chamada de Casa de Xangô
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 133 }
Xangô tinha pavor da morte. Xangô tinha horror dos dar uma estrutura melhor aos assentos das suas divin-
mortos. Xangô temia os Eguns mais que qualquer coi- dades, ou seja, quiseram construir um Ilê Orixá próprio
sa. Certa vez Xangô viu-se perseguido pelos Eguns. para eles, quando da ampliação do barracão.
Sua mulher Oiá foi em seu socorro. Ela conhecia uma
Terceiro, porque a relação entre os Orixás e os
maneira de acabar com aquela situação. Deu a Xangô
Egum é de um respeito mútuo. Os Orixás respeitam
nove espelhos onde ele faria os Eguns verem refletidas
a presença dos Egum, e os Egum respeitam a presen-
suas próprias imagens. Sabia Oiá que a morte não su-
portava ver-se frente a frente, tal sua feiúra. Quando ça dos Orixás, não dividindo, na maioria das vezes, o
os Eguns acercaram-se de Xangô, Xangô os recebeu mesmo espaço, recinto ou lugar, seja em um ilê, peji ou
com seus espelhos. Os Eguns se viram e se apavora- durante uma manifestação nas festas públicas no salão
ram. A visão era horrível. Os Eguns, saíram em dispa- do barracão.
rada. Xangô os perseguiu sem trégua. Foram vencidos E quarto, porque são assentos de Orixás privados de
por Xangô com a ajuda de Oiá. (PRANDI, 2005, p. 256) alguns membros do culto, que passaram a ter um maior
controle do acesso desses assentos, pois fica em um
Portanto, a localização da Casa de Xangô, no ponto ponto mais visível, que possibilita o acompanhamento
mais alto do espaço sagrado público do Omo Ilê Aboulá, do estado de conservação do recinto no qual eles estão
distante das construções e elementos do espaço sagra- guardados, assim como a realização mais isolada e parti-
do privado e, também, hoje em dia, fora do barracão cular das oferendas de comidas e sacrifícios de animais
(Figura 34), se deve a quatro aspectos. Primeiro, e, prin- votivos nos rituais específicos a essas divindades.
cipal, porque Xangô é uma divindade que teme a morte No final do espaço sagrado público e antes do es-
(Ikú) e todos os seus elementos simbólicos constituti- paço sagrado privado, existe uma grande construção, a
vos, espaciais e arquitetônicos, que estão no espaço sa- maior de todo o conjunto, para onde todos vão durante
grado privado – Egum, Ilê Auô, oku-orum, mata sagrada as festas.
etc. –, buscando um afastamento, proteção e isolamen-
to desses. Essa localização impossibilita o trânsito livre
dos Egum ao seu redor, pois, estando implantado no O Barracão
lugar mais alto do terreiro, o seu acesso só ocorre por
Essa grande construção encontra-se no centro do terrei-
uma escada estreita em frente ao templo, inviabilizan-
ro como se pudesse abrigar todas as coisas do mundo,
do a mobilidade dos Egum próximo a esse Ilê Orixá.
como se cada coisa do mundo tivesse ali o seu lugar:
Segundo, porque alguns membros do culto, que
abriga a vida, tudo o que pulsa, se movimenta, que
também são iniciados no culto aos Orixás, quiseram

{ 134 }
Figura 34: O Ilê Orixá, no lugar mais alto do terreiro
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 135 }
respira, guarda os elementos que geram a vida, mas cozinha sagrada, varanda e aposentos para os membros
também é o lugar onde os mortos vão ter com os vivos, da comunidade durante as festas públicas (Figura 36):
os pais falecidos vão visitar os seus filhos, e os filhos vão É o lugar em que, durante as festas públicas, todos
pedir as bênçãos de seus pais, um lugar de reencontro, os membros da sociedade reúnem-se para encontrar
onde as saudades são saciadas, os temores das incerte- com os seus ancestrais, os Egum Abá. No barracão estão,
zas da vida são instipardos e o afago dos pais garantido. durante as festas públicas, as duas dimensões do ele-
É uma caixa de liberdade, pois os temores da morte, mento procriado: o Egum como um símbolo coletivo, é
do fim da existência, da aniquilação da vida são sub- a descendência individualizada do orum, e todos os seus
jugados pela continuidade, pela certeza de que há um filhos, que é a descendência no plano do aiê.
outro mundo que engloba este, porque os Babás, os an- O espaço central e fundamental do barracão é o seu
cestrais lhes dão esta garantia. Dentro desta caixa, sai salão das festas públicas (Figura 9). O salão de festas do
música, cantos, cores, luzes, alegria, felicidade e júbilo. barracão simboliza a união entre o orum e o aiê, a síntese
Que casa é essa que permite o mundo dos vivos encon- da concepção do cosmo, que possui no Ibadu – cabaça
trar o mundo dos mortos? símbolo da existência – uma de suas dimensões simbó-
Essa casa é o barracão (Figuras 8 e 9). É a maior licas (Figura 38). O axis-mundi, o eixo imaginário de liga-
edificação de todo o terreiro. Possui sua localização na ção do orum com o aiê, o opô-orum oun aiê, se faz presente
extremidade limite do espaço sagrado público com o durante os rituais propriciatórios em que as mulheres
privado, no meio do terreiro, entre o lado direito – otum da hierarquia feminina dançam em círculo – xirê – e
-aiê –, e esquerdo – ossi-aiê –, entre a Casa de Xangô e cantam as músicas dos Orixás, abrindo a festa pública.
o Ilê Iá Ebé respectivamente. É o espaço por excelência O barracão de culto aos Egum é composto de três
dos omo – filhos – do terreiro (Figura 35). Constitui-se espaços: o espaço privado aos Egum; o espaço semi-pri-
em uma edificação feita de tijolos cerâmicos, ora apa- vado; e o espaço público (Figura 9):
rentes, ora pintados de branco, piso cimentado reme-
tendo simbolicamente à terra, e cobertura em telhas Este espaço aqui só tem acesso os Babás, neste espaço que tem
os tronos só eles podem sentar, pois os axé dos Babás ficam
cerâmicas artesanais, sendo em alguns trechos indus-
nos tronos, no centro tem o trono de Babá Olokutum, este
trializadas, precisamente nos lugares mais recentes na
aqui de branco, no lado o de Babá Agboulá, Babá Atilewa, e
área da ampliação do barracão. É composto, em sua to-
assim vai seguindo dos mais velhos aos mais novos, tinham
talidade, por um salão – onde são realizadas as festas dois tronos antigos no barro vermelho que você tinha que vê,
públicas –, sanitário feminino e masculino, depósitos, a madeira trabalhada, maciça, de qualidade, verdadeiros

{ 136 }
Figura 35: Vista do barracão, voltado para a entrada do terreiro, para Ilê Exu
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 137 }
Figura 36: Vista do barracão, entre o lado esquerdo e direito, no centro do espaço sagrado público
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 138 }
Figura 37: Porta de entrada dos Babá Egum no espaço do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 139 }
Figura 38: Vista interna do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 140 }
tronos, neles ninguém podia tocar, e no barro vermelho ti- O espaço privado do barracão de culto aos Egum
nha dois pilares de madeira trabalhada na frente dos tronos (Figura 9) corresponde ao estreito platô no fundo do
de madeira que apoiava uma peça de madeira ondulada barracão, na parede adjacente ao Ilê Auô, a casa do se-
que ia de um lado ao outro do barracão, e está peça tinha gredo. Nela estão onze tronos para cada um dos Egum
uns tecidos pintados e bordados, era uma estrutura que pa-
Abá, sejam os Egum de africanos ou de afro-brasileiros.
recia uma moldura para os tronos e para os Babás, você
Estes tronos possuem uma hierarquia vinculada
precisa vê como era lindo, e servia para separar este espaço
à antiguidade do Babá Egum, do centro para as extre-
que só os Babás podiam circular, só eles andavam nele, e a
gente aqui quer fazer de novo, fazer esta moldura de ma- midades, algumas delas sendo oriundas ainda da an-
deira, fazer bem bonita, mas sem os pilares centrais só a tiga localização do Omo Ilê Agboulá no Barro Vermelho
moldura [...] Depois deste espaço exclusivo dos Babás, vem (Figura 39).
um espaço que os Babás dançam, andam, fala com os seus Babá Olocotum é considerado um dos ancestrais
filhos e só eles e os Ojés podem andar nele, é um espaço sa- de todo o povo nagô, é a cabeça de todos os Egum –
grado, todo o barracão é sagrado, mas este espaço quando Olori Egum –. Seu nome africano significa Pai Ancestre
Babá está passa a ser um limite entre o mundo dos mortos e Senhor do Lado Direito, o ancestral supremo masculi-
o mundo dos vivos, tanto se o Ojé colocar o ixan deitado no
no, descendente direto de Oxalá, o deus da criação, daí
chão separando eles dos vivos Babá não atravessa, e neste
o seu trono ser todo branco assim como a sua indumen-
espaço as pessoas só tem acesso se forem chamados por um
tária. Ao seu lado, encontra-se o de Babá Aboulá (Figura
Ojé, ou por Babá, ai ele deve entrar neste lugar descalço,
40), o patrono e dono da casa; em seguida, o de Babá
onde vai receber um conselho, a benção, o axé, o descarrego
de Babá, e depois deste espaço vem o lugar das dos outros Atilewa e assim sucessivamente, seguindo-se a ordem
membros do culto, com todos os postos lá dos mais velhos temporal de feitura do Babá, dos mais antigos aos mais
aos mais novos, tanto homens quanto mulheres, também as novos a partir do centro, de Babá Olocotum.
visitas com as mulheres à esquerda e os homens à direita Só os Babás Egum Abá podem sentar e usar os tronos,
pra quem entra na porta do barracão, e esta relação é rí- são sagradas e o seu axé é constantemente renovado pelo
gida tanto que a gente tem uma divisão de madeira sepa- contato com as roupas de Babá Egum. Nenhum homem
rando, também é um espaço sagrado, tudo é sagrado, pois pode sentar nelas e só podem ser tocadas pelos Ojés.
Babá também passa por este espaço daí durante as festas.39
Atrás dos tronos e cobrindo toda a parede do fundo,
está um grande pano em veludo escuro, utilizado du-

39 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo


rantes as festas e que serve de fundo neutro e de cená-
Ilê Aboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de rio para a aparição dos Egum Abá, contrastando com as
abril de 2006.

{ 141 }
Figura 39: Espaço privado dos Egum com a sequência hierárquica de seus tronos, do centro às extremidades
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 142 }
Figura 40: Trono de Babá Olocotum no centro do espaço privado dos Egum
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 143 }
Figura 41: Trono de Babá Agboulá, no espaço privado dos Egum
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 144 }
suas roupas coloridas e destacando suas indumentárias, Egum – Erelu –, em seguida as adoradoras de Egum –
possibilitando que o Egum seja o centro das atenções. Atos – e, por fim, as visitantes e não iniciados.
O espaço semiprivado do barracão (Figura 9) é uma Encontra-se no lado direito – otum-aiê –, simboli-
área livre utilizada pelo Egum durante toda a festa; é zando o princípio poder masculino, também a mesma
por onde ele entra no barracão, dança, festeja, aconse- ordem: o Alabá, os Ojés – que circulam o espaço semipri-
lha, dá as suas bênçãos e purifica os seus descedentes vado –, os Alabês e por fim os não iniciados.
(Figura 42). Nessa área só podem estar os iniciados ho- No centro do espaço público, no limite com o espa-
mens, ou seja, os Ojés e Amuixã, carregando os ixã que ço semiprivado, logo no final do guarda corpo, está o
controlam os Egum, lhes dando direção e impedindo lugar reservado a um Babalorixá que cuidará das inicia-
que eles sigam na direção dos vivos. das do culto aos Egum que também foram iniciadas no
Entretanto, alguns não iniciados e filhos e filhas da culto aos Orixás, caso sejam tomadas pelas suas divin-
casa são chamados para essa área por um Babá Egum dades durante os rituais, despachando-as em seguida.
para abençoá-los, transmitindo e distribuindo o seu axé; O Babalorixá também zela e cuida para que todos os
ou para limpar alguém de cargas negativas. É o espaço rituais propriciatórios sejam realizados segundo os pre-
de interação do mundo dos mortos com o dos vivos, o ceitos (Figura 45).
encontro simbólico do orum com o aiê; é o espaço de fes- O barracão possui uma série de elementos simbóli-
ta e alegria do Egum por estar na presença de seus filhos cos. Mostram-se partes de rituais, indumentárias, figuras
Esse espaço é dividido rigidamente, a partir da por- hierárquicas, relações entre os Egum e os seus descen-
ta principal do barracão, em duas alas: a direita dos ho- dentes, ícones e insígneas vinculados ao culto aos Egum
mens – otum-aiê –; a esquerda das mulheres – ossi-aiê presentes em pinturas de paredes, estandartes e faixas.
–. Essas duas alas são rigorosamente separadas por um Esses elementos simbólicos criam um espaço arquite-
guarda corpo de madeira que atravessa longitudinal- tônico povoado de significados e cumprem a função de
mente todo o espaço público do Barracão (Figura 44). transmissão de valores e aspectos importantes do culto
No lado esquerdo – ossi-aiê –, a ala feminina, simboli- a serem observados. São as tradições orais materializa-
zando o princípio poder feminino, está organizada e dis- das, são os mitos de tijolos que migram, transferem-se e
tribuída conforme a hierarquia, seguindo o sentido do emanam para essas pinturas, presentes nas paredes ou
espaço semiprivado até a entrada do barracão: primeira- nas próprias faixas e estandartes, são uma linguagem
mente a alta hierarquia das mulheres – Iá Lode, Iá Monde, que ensina, às crianças, os aspectos e conhecimentos do
Iá Erelu, Iá Agan, Iá Kekeré etc. –, depois as cantadoras de culto e da tradição do culto aos Egum. Todas as tesouras

{ 145 }
da estrutura de madeira que sustentam o telhado são No ponto de encontro do telhado com as paredes
“cobertas” pelos símbolos que remetem ao patrono da do barracão, são colocados, eventualmente, galhos com
casa, o Babá Aboulá, e à ancestralidade que ele simboliza ramos de folha durante as festas litúrgicas (Figura 54).
como descendente de Xangô. As linhas da tesoura – peça Inúmeras são as pinturas feitas no barracão a pedi-
horizontal da estrutura do telhado – são “cobertas” com do do antigo Alabá da casa, Domingos dos Santos, que
faixas (Figura 46); os tirantes das tesouras – peças verti- estão distribuídas em suas paredes laterais, ensinando
cais da estrutura do telhado – e os seus pendurais – peça e lembrando às crianças a tradição do culto aos Egum:
vertical principal da estrutura do telhado – são “cober-
tos” por standartes nas cores branca e vermelha (Figura Foi um rapaz que é pintor aqui da comunidade e o antigo
Alabá da casa, finado Domingos, chamou ele pra fazer es-
47), as cores de Xangô, possuindo o seu oxê – machado
tas pinturas aqui, para o barracão ficar mais bonito, e ter
duplo – e a coroa, símbolos máximos que caracterizam
elementos da tradição na casa importantes expostos para
e sigularizam Xangô. Além desses símbolos, também são
as crianças e os mais novos aprenderem e sempre se lem-
bordadas as folhas do akoto, árvore sagrada cuja folha era brarem da tradição, estas pinturas estão espalhadas nas
utilizada nos rituais de sacralização dos Alafim – reis de paredes do barracão e ainda tem lá no fundo, na parede do
Oyo –, assim como variantes do seu oxê, como os macha- fundo atrás dos tronos e do pano uma pintura de Babá Iaô,
dos únicos, e os traços verticais e horizontais que carac- o Babá Cabloco, que é muito festejado pela comunidade,
terizam a linhagem dos filhos do Agboulá: pois ele é muito alegre, festeiro, você pode vê que tem um
pouco de pintura dele atrás saindo do pano.41
Elas são feitas pelas mulheres, são bordadas e pintadas,
costuradas pelas mulheres, elas estão sempre mudando, Essas pinturas nas paredes do barracão possuem um
todas estas faixas ai, as horizontais e verticais são as mu- papel importante na sociedade de culto aos Egum. Elas
lheres que fazem, os que ficam nas paredes também, elas
veiculam concepções, dimensões estéticas e uma ética,
são vermelho e branco e tem as ferramentas de Xangô e sua
pois tais concepções são os significados dos símbolos:
coroa, porque ele é Orixá do dono da casa Babá Agboulá, e
elas estão sempre mudando porque a umidade acaba com o
[…] os significados só podem ser ‘armazenados’
pano não dura muito, mas geralmente elas têm essa forma através de símbolos: uma cruz, um crescente ou
de um pano horizontal e um vertical.40 uma serpente de plumas. Tais símbolos religiosos,

40 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo 41 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Aboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de
abril de 2006. abril de 2006.

{ 146 }
Figura 42: Os atabaques (Rum, Rumpi e Lé) e a ala dos Alabês no espaço semiprivado do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 147 }
Figura 43: Porta de entrada do barracão protegido pelo Mariô
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 148 }
Figura 44: Guarda corpo que separa a ala masculina da feminina
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 149 }
Figura 45: Guarda corpo que
separa a ala masculina da
feminina no barracão
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 46: Faixas com os


símbolos de Xangô sobre a
linha da tesoura do telhado
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 150 }
Figura 47: Standartes com os símbolos de Xangô sobre os pendurais da
tesoura do telhado
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 151 }
Figura 48: Conjunto de
faixas e estandartes com
as temáticas simbólicas de
Xangô
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 49: Conjunto de


faixas e estandartes com
as temáticas simbólicas de
Xangô
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 152 }
Figura 50: Conjunto de
faixas e estandartes com
as temáticas simbólicas de
Xangô
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 51: Conjunto de


faixas e estandartes com
as temáticas simbólicas de
Xangô
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 153 }
Figura 52: Conjunto de faixas e
estandartes com as temáticas
simbólicas de Xangô
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 53: Standartes com as


temáticas simbólicas de Xangô,
nos pilares do espaço semiprivado
do barracão
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 154 }
Figura 54: Galhos com os ramos de folha
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 155 }
dramatizados em rituais e relatados em mitos, pare- cada um deles, para que possam lhes agradar quando
cem resumir, de alguma maneira, pelo menos para Babá pedir suas músicas.
aqueles que vibram com eles, tudo que se conhe- Simbolizam também a transferência do conheci-
ce sobre a forma como é o mundo, a qualidade de
mento, o instrumento e método do saber, da tradição
vida emocional que ele suporta, e a maneira como
oral, pois cada batida errada de um Alabê num ataba-
deve comportar-se quem está nele. Dessa forma, os
que é imediatamente corrijida, é ensinado cada toque,
símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma
cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu cada batida e com elas vão os ensinamentos dos ritos,
poder peculiar provém de sua suposta capacidade as histórias dos ancestrais, os seus casos, vão os mitos
de identificar o fato com o valor no seu nível mais com os seus símbolos (Figuras 57 e 58):
fundamental, de dar um sentido normativo abran-
gente àquilo que, de outra forma, seria apenas real. [...] com um conjunto de tambores que eram enormes, uma
(GEERTZ, 1978, p. 144) maravilha, eram também do tempo do barro vermelho,
uma boa madeira e o axé deles era poderoso, só pra você
Há um conjunto de oxê vermelhos de Xangô, seu ter uma idéia você sabe onde é Salinas das Margaridas?
[...] Porque os três tambores eram tão poderosos, o axé deles
símbolo máximo, que remete aos seus mitos, lembran-
era tão forte, quando tinha festa no Barro Vermelho o som
do às pessoas os seus feitos (Figura 55).
chegava em Salinas, pra você vê o poder que eles tinham,
Há uma pintura de Babá Agboulá com os ixâ na
o tempo do Barro Vermelho era bom, mas aí dois Ojés que
mão, simbolizando a cólera de Babá, repreendendo um
não conheciam muito estas coisas pegaram um dia tudo
de seus filhos, pois não observou um conselho, ordem, o que tinha dentro do depósito e tacaram fogo em tudo,
algum preceito do culto, ou até mesmo um mau com- quando cheguei lá já tava tudo acabado, eles não sabem a
portamento dentro da sociedade de culto aos Egum no importância que aquilo tinha, o valor que as cadeiras e os
cotidiano do Povoado de Ponta de Areia (Figura 56). tambores tinham era só recuperar, reformar [...]42
Existe também uma pintura de um Alabê com um
atabaque, simbolizando este posto hierárquico, preen- Existe uma pintura de uma cabaça, com contas e
chindo geralmente por jovens iniciados – crianças, búzios, que é utilizada como instrumento musical. É
adolescentes –, demarcando no barracão o espaço dos uma atualização simbólica na Sociedade de Culto aos
Alabês, mostrando a importância deles dentro do culto,
pois são eles que tocarão as músicas dos Babá, por isso,
42 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
devem saber perfeitamente as músicas prediletas de Ilê Aboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de
abril de 2006.

{ 156 }
Figura 55: Pintura dos oxê
símbolo máximo de Xangô
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 56: Pintura de Babá


Aboulá repreendendo os
seus descendentes
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 157 }
Figura 57: Pintura do Alabé
tocando o atabaque
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 58: Pintura do Alabê


tocando o atabaque em
relação ao conjunto dos
elementos do seu espaço no
barracão
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 158 }
Egum do Omo Ilê Agboulá do Ibadu, a cabaça sagrada, as folhas e ervas sagradas coletadas e trazidas da mata
símbolo da síntese da concepção de mundo, do orum sagrada do terreiro que comporão as comidas dos Egum
e do aiê; da cabaça-ventre; do recipiente que contém e dos Orixás (Figura 63).
e guarda os princípios poderes femininos, os segredos Constitui ainda o espaço de socialização das mu-
das mulheres, o segredo de gerar a vida. (Figura 59). lheres, principalmente, as mais velhas e que ocupam
Há uma pintura do ritual principiatório do despa- os maiores cargos na hierarquia feminina, pois a ati-
cho de Exu composta por uma quartinha envolvida vidade de preparo dos animais e comida é lenta e de-
pela roda das cantadoras, as Erelu, remetendo ao espa- morada, chegando a durar às vezes o dia todo. Neste
ço semiprivado do barracão com as cadeiras dos Egum tempo as mulheres põem a conversa em dia, contam as
e a palmeira, símbolo da ancestralidade masculina de novidades, os acontecidos, falam da família, discutem
culto aos Egum (Figura 60). coisas e acontecimentos do candomblé e do culto aos
Existe uma pintura de uma filha da casa – simbo- Egum. A cozinha e a varanda, durante as festas, che-
lizando todas as mulheres – trazendo flores, um dos gam a ser frequentadas, no mínimo, por cerca de trinta
presentes favoritos dos Babá Egum, estando frequente- mulheres. Aí o trabalho de feitura de comidas se inter-
mente com um ramo de flores na mão durante as festas cala com os rituais e com o reencontro social:
públicas (Figura 61).
E, por fim, existe uma pintura de Babá Caboclo na Tem a cozinha e a varanda aqui do lado esquerdo onde são
feitas as comidas dos santos e as dos Babás pelas mulheres,
parede do fundo do barracão, por detrás do pano colo-
na varanda e na cozinha chega a ter nas principais festas
cado utilizado nas festas, pois é um Babá muito querido
cerca de trinta mulheres, elas passam o dia todo enquanto
pela sociedade, já que ele é muito alegre, brincalhão,
fazem as comidas, preparando as coisas, ficam conversan-
amigo de todos e gosta de festa. do sobre os seus problemas, da família, das outras casas em
Na varanda é onde são realizados os preparos dos que elas são filhas de santo, falam uma das outras, ficam
animais a serem sacrificados nas oferendas às entida- lá sentadas o dia todo, porque é muito trabalho tomando
des sobrenaturais, bem como o preparo dos animais uma cervejinha, contando os casos, as histórias, fofocando,
que compõem as comidas sagradas, tanto os dos Egum é além do lugar de preparar as comidas dos santos e dos
quanto os dos Orixás. É um espaço aberto e ventilado, Babás um lugar que elas têm para se socializar, elas pegam
pois é o lugar onde são realizadas atividades que neces- algumas plantas e folhas na mata, as mais velhas pegam
sitam de espaço, feitura de fogueira sagrada para cozi- lenha também pra fazer algumas comidas que tem que ter
o fogo da madeira, o axé dela, e preparam os animais, colo-
nhar certas comidas sagradas; é onde são depositadas
cam estas ervas e folhas tudo na varanda, depois a fogueira

{ 159 }
Figura 59: Pintura da cabaça
– instrumento musical
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 60: Pintura do ritual


do despacho de Exu
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 160 }
Figura 61: Pintura da Erelu
trazendo as flores como presentes
para Babá Egum
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 62: Cozinha Sagrada do


Omo Ilê Agboulá Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

{ 161 }
Figura 63: Varanda onde são preparados os animais
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 162 }
é feita aí perto, no lado da varanda, já as mais novas fazem mulheres e homens aquelas mulheres de posto daqui
tudo no fogão a gás porque é mais prático e dá menos tra- do terreiro de babolua tudo se foi né, e principalmen-
balho, os Ojés mais velhos não gostam muito disso, mas a te minha mãe minha tia Júlia que morreu depois, aí
cozinha precisa de uma reforma ta muito necessitada [...] 43 morreu aquelas antigas todas, a Francisquinha, Falo,
Bretã, Isa, Rosena, Joana tudo era aquelas mulheres
A cozinha sagrada é composta de dois fogões que antigas de posto daqui que tinha o maior respeito e

substituíram os antigos fogões a lenha. Todas as co- hoje eu tenho assim um pouco de receio em dar assim
uma entrevista por que do que eu vi antigamente e o
midas das divindades e ancestrais eram preparadas
que eu vejo hoje, hoje deixa a desejar, por que hoje
pelas gerações anteriores do terreiro sempre com le-
o pessoal não tem aquele mesmo respeito que os an-
nha oriunda de galhos de árvores sagradas especifícas,
tigos tinha por que aquele pessoal que já se foi tinha
detentoras de poderoso axé transmitidas às comidas mais respeito, mais fé, hoje todo mundo vem mais
através do fogo. Esta substituição do fogão a lenha pelo não tinha aquela fé como minha mãe tinha como os
fogão a gás é motivo de discordia dos Ojés Abá mais tra- outros tinha que quando chegava nos dia das festas
dicionais com alguns membros da ala feminina. Essas logo nos dias antes já tava aqui arrumando lenha
alegam praticidade, ressaltando e enfocando a impor- por que não se cozinhava comida de hoje pra se cozi-
tância de seguir rigorosamente os rituais e a composi- nhando os axés dos santos hoje é em fogão a gás an-
tigamente era cozido na lenha quer dizer as madeira
ção das comidas. Todavia, algumas comidas especifícas
que elas tiravam do mato e vinham, pegavam aquela
feitas para os Egum Abá ainda são feitas com fogueiras
lenha tudo pra cozinhar que era exigido pra cozinhar
de galhos de árvores sagradas da mata no espaço da
na lenha então hoje já se cozinham pra facilitar por
varanda pelas mulheres mais velhas, que seguem rigo- que elas hoje não quer sujar a mão de carvão ta enten-
rasamente os preceitos, segundo Agostinho dos Santos, dendo? [...] (SOUZA JUNIOR; SOARES; VELAME, 2006)
Ojé Abá do Omo Ilê Agboulá:
A cozinha sagrada possui ainda: uma pia, onde são
Minhas lembranças são mais ou menos de uns trinta
lavados os elementos constitutivos das comidas sa-
anos atrás, do tempo de meu tio, peguei ainda na épo-
gradas das divindades, assim como os utensílios que
ca que meu tio Antonio era o chefe daqui do terrei-
auxiliam o preparo; e uma bancada ritual de bloco e
ro, eu venho daí e aqueles antepassados todos, tanto
cerâmica (Figuras 64 e 65).
Nessa bancada, são dispostos os alimentos e pos-
43 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de teriormente sacralizados pelos rituais, antes de serem
abril de 2006.

{ 163 }
Figura 64: Bancada ritual
onde são dispostos às
comidas sagradas das
divindades e antepassados
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

Figura 65: Bancada ritual


com a ordem, da esquerda
à direita, de oferendas das
comidas sagradas
Fonte: elaborado pelo autor
(2006).

{ 164 }
levados e oferecidos às divindades e aos ancestrais. Os Em frente ao barracão, há um grande espaço aber-
alimentos são colocados sobre a bancada ritual na se- to, um espaço livre sagrado
guinte ordem de divindade, e assim a bancada é dividi-
da: Exu, Ogum, Onilê, Iroco, Exu, Ossaim, ficando claro
O Espaço Livre Sagrado
a que divindade a comida pertence.
No lado direito, estão os espaços relacionados às Esse espaço livre sagrado encontra-se entre a guarda
atribuições dos homens. Possui: um sanitário mascu- de Exu, a soberania e realeza de Xangô, o poder da Iá
lino, um aposento para os membros da comunidade, Ebé. Nele ocorrem coisas estranhas durante as noites de
um depósito que também já foi um quarto de Orixás e festas. É temido por todos aqueles que se encontram
um espaço que se encontra lacrado – que fazia parte do dentro do barracão, quando estão com seus Babás, pois
sanitário dos homens. nenhuma pessoa pode sair, só pisam nele com a auto-
Na ala masculina, o espaço que se diferencia é o rização e companhia dos Ojés, ou depois do amanhecer,
quarto da hospedagem. Nele ficam, durante a noite quando o sol tomou conta de tudo. O que é este espaço
de festa, os idosos, os filhos da casa com problemas de e o que ele tem que causa tanto medo durante as festas?
saúde, as crianças que dormem durante a madrugada e É o espaço livre do espaço sagrado público (Figura
membros que vão repousar durante a festa, sendo um 8), que está compreendido entre o Ilê Exu, o barracão,
espaço em que constantemente os Egum Abá vão até a o Ilê Orixá e o Ilê Iá Ebé (Figura 66). É o espaço onde são
sua porta, abençoando todos que estão lá dentro, nota- realizadas, ao ar livre, algumas festas do calendário do
damente os idosos e doentes da comunidade: Omo Ilê Agboulá. Nela acontece a festa de Reis, no dia seis
de janeiro, em que vários Egum Abá desfilam por esta
[...] e do outro lado do barracão, tem uma sala onde as
área em fila, dançando, festejando e abençoando os
pessoas ficam durante as festas para descansar, geralmente
descendentes que se colocam todos agrupados ao lon-
as crianças e os mais velhos, porque não agüentam ficar a
go do muro que separa este espaço da área profana do
noite toda, acabam dormindo ali, e também quando tem
terreiro: as pessoas são separadas dos Egum Abá pelos
alguém doente fica neste quarto e Babá vêm ate a porta pra
passar o axé dele pra que aquela pessoa melhore.44 ixã dos Ojés. Na ocasião, Babá Agboulá desfila com sua
coroa empunhando o seu oxê com grande inponência à
frente dos demais Egum Abá.
44 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo Esse espaço também funciona como um filtro
Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de das cargas “negativas”, “impuras”, que os turistas, as
abril de 2006.

{ 165 }
visitas, curiosos e filhos da casa que não cumpriram por aí ele fica mais tempo nesta área, ele leva mais tempo
suas obrigações, ou não fizeram as limpezas de corpo andando se purificando, reduzindo suas cargas impuras
com banho de folhas apropriado, trazem consigo. Essas até chegar no barracão e lá quando começa a festa vêm os

pessoas interferem no equilíbrio das relações de axé Aparakás para purificar ainda mais as pessoas, o espaço
do barracão, pra reduzir as cargas impuras preparando o
dos elementos que compõem o espaço sagrado.
lugar para Babá, e aí com a mudança do Exu da porteira
Esse espaço reduz essas cargas até a entrada do bar-
para o meio do muro este caminho se reduz porque aí vai
racão, sendo que, ao chegarem ao barracão, depois do
ser uma reta, e não pode, agente tem que fazer a pessoa
início da festa pública, essas pessoas passarão por uma circular por este espaço, daí a importância dessa barreira,
segunda “purificação” com a presença dos Aparakás.45 porque a pessoa entra no terreiro, passa por Exu da por-
Os Aparakás “filtram” as cargas “impuras” das pessoas teira e tem que dá a volta toda pela barreira de plantas e
do barracão para que estas energias não incidam sobre entra na varanda onde vai ter o Mariwô e passa pela porta
os Babás, bem como, preparam o espaço do barracão onde tem também outra Mariwô [...]46
durante as festas para vinda dos Babás Egum.
O acesso a entrada do espaço sagrado público, loca- Há necessidade, por preceitos da casa, conforme a
lizado na extremidade direita do terreiro até a porta do vontade do Alabá e dos Ojés, de mudar a posição da porta
barracão, se dá de forma diagonal, inclinada, portanto, de acesso do terreiro, porque em terreiro de culto aos
para que a pessoa que entra nesse espaço faça o maior Egum só pode ter uma porta de entrada. Essa porta de
percurso possível, para que suas energias “impuras” se- acesso deve ser mudada para o centro do muro da entra-
jam filtradas: da do terreiro, alinhada na mesma direção e sentido da
porta do barracão, com o “novo” Ilê Exu lhe guardando.
Veja bem como eu já te falei uma vez está área funciona Mas, desta vez, com o seu pepelê e os assentos dos
como um filtro das pessoas carregadas, que vem para aqui Exu voltados para o sentido contrário ao qual ele se
com suas cargas impuras, aí como o Exu da porteira está
encontra hoje, ou seja, deve voltar-se para a fachada
no canto a pessoa pra chegar no barracão tem que fazer o
do Ilê Iá Ebé, onde ele terá um maior domínio de todo
percurso neste sentido, ele vem inclinado [...] É isto mesmo,
o espaço, desempenhando melhor o seu dever e suas
atribuições.
45 São Egum que ainda não completaram os sete anos de morto ne-
cessário para subirem ao posto de Egum Abá. Não possui elemen-
tos que o individualize, o caracterize, como voz e indumentárias.
Aparecem durante as festas como um pano quadrado segurando 46 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
um ixã, são muito temidos pela sociedade de culto aos Egum, e Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 10 de
rondam o espaço livre sagrado durante as festas. maio de 2006.

{ 166 }
Mesmo com essa intenção de transformação da ar- deira (20/01); a festa dos presentes (02/02); e a retira-
quitetura do terreiro, conforme manda a tradição, esse da da bandeira (20/02), festas dedicadas às divindades
processo de purificação, essa necessidade de manter o Olokum, Oxum, e Iemanjá, sendo que todos os presen-
máximo de tempo possível as pessoas caminhando no tes dados a estas divindades são abençoados e ofertados
espaço livre sagrado será mantida, pois o Alabá e os Ojés pelos Egum Abá. Nas demais festas do calendário litúrgi-
pretendem criar uma barreira natural com palmeiras, co, o espaço livre sagrado, durante a noite, a madruga-
plantas e arbustos sagrados, entre a porta de entrada do da e o amanhecer, que é o tempo de duração das festas,
terreiro, O Ilê Exu, e a porta de entrada do barracão, fa- fica povoado de Aparakás,48 de alguns Babás Egum Abá e
zendo com que as pessoas dêem a volta nesta barreira,
circulando tanto quanto antes. vivia do mar e para o mar. É a festa de Iemanjá e Oxum, deusas das
águas. Observe-se que a comunidade é que dá os presentes, mas
Portanto, mudam-se as formas, os materiais e ele- os patronos das obrigações são os Egum Nilewô e Amorô Mi Todô.
mentos, destroem-se e constroem-se os ilê, numa arqui- Assim, em fevereiro, as festas são nos dias: 2 de fevereiro - Festa
das Águas (com procissão pelas ruas e praias de Ponta de Areia);
tetura em constante fluxo e transformações, todavia, e dia 20 de Fevereiro – Retirada da Bandeira; Abril – Sábado de
busca-se constantemente conservar e potencializar os Aleluia, festa de todos os Babá Egum; Junho - Em junho, na época
do São João, realizam-se as festas de Babá Erim, que é o Egun do
princípios dinâmicos de funcionamento e de interação Sr. Eduardo Daniel de Paula, fundador da Casa. As festas se reali-
de axé. zam por ocasião do ciclo de Xangô, que era o orixá do Sr. Eduardo
e atingem grande brilhantismo porque, entre a comunidade do Ilê
Este espaço também é frequentado pelos Egum Abá Agboulá, a veneração a Xangô é muito forte; Setembro – de 7 a 17
durante as festas do ciclo das Águas47: a botada da ban- de setembro ocorrem as festas de Babá Agboulá. Por essa época é
que era feita a colheita dos primeiros frutos na Ilha de Itaparica, sob
a proteção de Babá. Isto é muito importante pelo fato de, até bem
pouco tempo, a Ilha de Itaparica ter sido o grande fornecedor de
47 O calendário litúrgico do Omo Ilê Agboulá é rígido e segue a mes-
frutas para a cidade de Salvador. Assim, em setembro, as festas são
ma sequência desde a sua fundação. Entretanto, durante essas fes-
nos dias: de 07 a 10 de Setembro – Festa de Babá Agboulá; de 15 a 17
tas, podem ocorrer rituais não periódicos e não obrigatoriamente
de setembro – Festa de Babá Bakábaká; Outubro – Dia 12 – Dia das
integrados no calendário, como iniciação de novos Amuixã ou de
crianças, festa aos Egum crianças, brincadeira feita com as crianças
novos Ojés, ou mesmo obrigações e oferendas de outros titulados
vestidas de Babá para que elas possam ir se familiarizando com os
da comunidade. Mas o calendário, oficialmente, obedece ao seguin-
verdadeiros Babás; Novembro – Dia de Finados os Ojés realizam
te: janeiro – neste mês, por ocasião do ano-novo, as obrigações
rituais para os ancestrais coletivos, festa para a Oiá Ibalé. Esse ca-
transcorrem até o dia 9 de janeiro. Esses rituais começam com uma
obrigação para Onilê seguida de outra para Babá Olokotum. Junto lendário também inclui os ritos não periódicos como a iniciação de
com esta, são celebradas as cerimônias anuais em homenagem a Amuixã e de Ojé, instalação dos detentores de títulos. Além desses
Babá Alapalá e Babá Olobojô. Assim, temos em janeiro: dia 1 de festivais, só são realizados rituais imprevistos, provocados por si-
janeiro - festa do Ano-Novo, abertura do calendário das festas; dia tuações de emergência da comunidade, ou ritos funerais, o axêxê.
6 de janeiro - Ternos de Reis e festa anual de Babá Olokotum; dia 48 São os Egum mais novos, são mudos, não possuem identidades
20 de janeiro - Festa da Bandeira. Fevereiro – neste mês, começan- dadas pelas indumentárias e pelo jeito de falar, pois ainda não se
do no dia 2 e se estendendo por duas semanas, ocorre uma festa passaram os sete anos necessários após a morte do Ojé que lhe
muito especial, principalmente porque a comunidade de Itaparica deu origem para que ele seja elevado ao posto de Babá Egum Abá.

{ 167 }
Figura 66: Espaço Livre Sagrado
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 168 }
de espíritos dos mortos. Durante esse tempo, ninguém do lúdico, das festas etc., tudo o que existe no mundo
pode sair do barracão, só é permitido, assim mesmo, se torna suscetível, para o homem religioso49 do culto
raramente, com o acompanhamento dos Ojés, sendo li- aos Egum, de ser simultaneamente sagrado e profano.
berada a saída de todos depois do amanhecer. Sendo o O espaço profano do Omo Ilê Agboulá (Figura 8) com-
barracão protegido pelo Mariô colocado nos acessos e preende uma grande área externa, fora dos muros que
nas aberturas – portas e janelas – e vigiados pelos Ojés delimitam o espaço sagrado, constitui a entrada do ter-
e Amuixã. reiro, cercado por um muro verde.

Espaço profano A Antessala do terreiro

A Antessala do terreiro – o Muro Verde. Antes da porta de entrada do terreiro há uma grande

Um espaço profano para Mircea Eliade é “[...] um espaço área vazia, sem construções do terreiro, sem coisas sa-

homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qua- gradas. Trata-se de um espaço que avisa as pessoas e

litativamente as diversas partes da sua massa. O espaço


geométrico pode ser cortado e delimitado seja em que
49 O homem religioso possui uma sede ontolólogica, possui a ne-
direção for, sem qualquer diferenciação qualitativa – e,
cessidade de Ser, de tornar-se e ser Deus. Cada homem religioso
portanto, sem qualquer orientação – de sua própria es- procura situar-se, ao mesmo tempo, no centro do mundo e na ori-
gem mesma da realidade absoluta, muito próxima da passagem,
trutura”. (ELIADE, 1992, p. 62) É um território desco- da abertura, que lhe dá e assegura a comunicação com os deu-
nhecido, estrangeiro, desocupado, fluido, indetermina- ses, busca incessantemente o sagrado. Habitar um espaço cor-
responde a reiterar a cosmogonia, e, portanto, imitar a obra das
do, amorfo, disforme. divindades; para o homem religioso, toda escolha existencial de se
Todavia, os espaços sagrado e profano, no Omo Ilê colocar no espaço é uma decisão eminentemente religiosa. Para
Clifford Geertz, religião é: “[...] um sistema de símbolos que atua
Agboulá, não ocorrem de maneira oposta, polarizada, para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições
e dicotômica, mas sim concomitante. O sagrado rege e motivações nos homens através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com
e acontece no profano no dia a dia, no cotidiano das tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem
pessoas – em suas condutas, comportamentos, valores singularmente realistas [...] a importância da religião está na capa-
cidade de servir, tanto para um indivíduo como para um grupo, de
éticos, e escolhas –, estando presente na sacralidade um lado como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do
mundo, de si próprio e das relações entre elas – seu modelo da
de que podem ser carregadas suas funções vitais da atitude – e de outro, das disposições ‘mentais’ enraizadas, mas
alimentação, sexualidade, trabalho e do ciclo da vida. nem por isso menos distintas – seu modelo para a atitude. A partir
dessas funções culturais fluem, por sua vez, as suas funções social
Como o profano emerge e acontece no sagrado através e psicológica”. (GEERTZ, 1978, p. 104-120)

{ 169 }
prepara para o fato que logo estarão pisando em um Esta posição é a que está em voga no momento com
solo sagrado, um solo ancestral. o novo Alabá da casa, Balbino Daniel de Paula, e com
Um espaço que alerta para uma viagem no tempo, outros Ojés, que pensam em construir nessa área: vários
que leva a um outro lugar, que encaminha para um ou- quartos para os membros da sociedade que vêm de ou-
tro mundo. Esse espaço é uma passagem, um caminho, tras cidades e estados, assim como para as visitas; uma
um túnel do tempo, onde as pessoas ficam à espera por sala de aula; um centro de qualificação e formação pro-
uma autorização para entrar no meio da noite, onde fissional; um espaço flexível para as atividades da co-
ficam quando se dá o intervelo das festas, um portal de munidade, como cursos de iorubá, aulas para meninas
passagem que leva ao mundo dos Egum. das músicas do culto, pois serão as futuras Erelu, e para
Que espaço é este que, como um rio, leva as pessoas os meninos aulas para aprenderem a tocar os instru-
numa viagem em busca de quem são? mentos do culto, pois serão os futuros Alabês da casa,
É a antessala do templo (Figura 8), que se constitui sendo que estas atividades já acontecem sem estrutura
no espaço fora do muro que delimita a área sagrada do alguma ao ar livre; uma loja de artesanato e quitutes
terreiro. É uma grande área livre externa, é o espaço locais e um espaço de apresentações para a sociedade:
profano do terreiro e conduz para a entrada do espaço
sagrado, tanto o espaço sagrado público quanto o pri- Aí vamos fazer os quartos das visitas, do pessoal que vem de
fora, e dos membros da casa que vem de outras cidades ou
vado (Figura 67).
mesmo aqui de ponta de Areia, mas quem quer descansar
Ela possui uma pequena construção residencial
e voltar pra casa de manhã, mas estes quartos não tem
logo na entrada (Figura 67), pois a idéia do antigo Alabá
que ter janela, nem cama, nem nada, pra ninguém querer
da casa, Domingos dos Santos, era lotear e vender para vir morar aqui, separou da mulher, ou brigou, ou tá sem
particulares para levantar capital para reformar a casa. casa, e lembra que aqui tem quartos vazios e virem morar
Essa posição encontrou grande resistência interna. aqui, nado disso, os quartos vão ser simples sem nada e
Vários Ojés contrários a essa posição defendiam que esta nem janela pra as pessoas quererem morar aqui, e também
área era necessária para o terreiro, notadamente para a coloque um sanitário no fim do corredor só com um vaso e
sua futura ampliação, seja da área sagrada para o culto pia, nada de chuveiro, pra isso mesmo pra ninguém insistir
do terreiro ou para a construção de equipamentos e es- de morar aqui, quem quiser tomar banho leva suas coisas
paços necessários à comunidade de caráter de serviços e tornar lá no vestiário dos homens e dorme em seu quar-
to, cada um que traga seu colchão e durma no chão, e o
sociais, culturais e profissionalizantes.
acesso pra estes quartos tem que ser um corredor com uma
porta só pra gente ter o controle, e coloque uma varanda

{ 170 }
Figura 67: A antessala do terreiro, o espaço profano do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 171 }
de fora a fora pra servi de arquibancada para as pessoas É o Muro Verde (Figura 8), que envolve todo o limite
da casa no dia que tiver alguma apresentação das crianças e perímetro do terreiro, com exceção do lado leste –
de alguém da comunidade [...] uma sala de aula porque a onde há fundos de casas dos membros da sociedade.
comunidade aqui do Bela Vista precisa, uma sala para os Existe um denso muro verde composto por árvores
meninos aprenderem a tocar os atabaques, e as meninas a
de pequeno e médio porte e por arbustos (Figura 68),
dançar e cantar as músicas para Babá, hoje isto acontece
formando uma barreira de proteção visual e de acesso
no terreiro mas sem estrutura boa para isso, umas oficinas
a todas as atividades litúrgicas que ocorrem no espaço
de cursos de formação profissional, um centro comunitário,
uma loja dos produtos que as mulheres fazem e uns sani- sagrado seja o público ou o privado.
tários [...]50 É essa a proteção contra desordeiros, malfeitores e
a perseguição de membros de seitas evangélicas oriun-
Em volta, tanto do espaço profano e do sagrado, cir- dos das igrejas neopetencostais de Ponta de Areia que
cundando todo o terreiro, há um muro de árvores. se instalaram também no bairro Alto do Bela Vista,
onde se encontra o terreiro, em busca de novos adep-
tos, notadamente dos membros do candomblé.
Muro Verde Constitui-se em uma blindagem, um escudo ve-
Em volta do terreiro, se encontra uma fortaleza quase getal, uma estratégia e tática de reisistência contra o
inexpugnável, intransponível, inacessível, uma mura- mundo exterior hostil ao culto de Babá Egum. É uma
lha, não de pedra, mas de árvores. forma de resistência, contra o processo de cerco e pres-
Árvores que cresceram com o tempo, paulatina- são empreendido pelos evangélicos, através da ocupa-
mente sob os raios do sol, encobrindo o que não pode ção das vizinhanças, seja com a aquisição de casas para
ser visto pelos olhos não preparados, impuros, zelando construção de igrejas ou para a moradia.
pelos seus ancestrais quando saem para ter com seus fi- Os evangélicos dos cultos neopetencostais, em suas
lhos. São árvores que criam uma floresta, uma floresta igrejas no Bela Vista, durante as festas do Omo Ilê Agboulá,
antiga, longínqua, que tudo envolve. Que muro é esse? realizam seus cultos utilizando potentes equipamentos
de som, atrapalhando as festas da casa de Babá:

Ta vendo está casa nesta foto aqui, entre as árvores? ela é


de um evangélico, quando tinha festa aqui ele sentava na
50 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo varanda ali da laje e colocava os auto-falantes com músi-
Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 10 de
maio de 2006. cas da igreja deles e ficava sentado com uma espingarda,

{ 172 }
Figura 68: Árvores de médio e pequeno porte do muro verde
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 173 }
mas depois da dura que a gente deu ele parou, ele ficava como uma parede que contém o axé da casa, preserva o
falando no auto-falante coisas contra o culto, que era coisa axé, envolve a casa, abraça a casa, porque o lugar natural
do diabo, do demônio, e agora fizeram uma igreja evan- das divindades e dos ancestrais é na natureza, a floresta é
gélica no Alto do Bela Vista próximo ao terreiro e durante o lugar deles, mesmo que a gente construa o muro em todo
as festas daqui da casa eles ficam gritando no auto-falante o perímetro a gente vai manter as árvores, os arbustos, e
coisas contra o culto da gente atrapalhando o andamento plantar mais mudas e árvores, e para as pessoas que não
tranqüilo da casa, mas a gente não se curva, eles tem que são do culto não ficarem olhando, porque o olhar tem car-
respeitar a nossa religião, os nossos ancestrais como agente gas impuras que prejudica a casa e pra eles não entrarem
respeita o deles na religião deles parece que eles não enten- também, já imaginou uma festa de Babá a noite com os
dem o que significa a palavra respeito.51 Aparakás e os Babás andando envolta do Barracão e um
bucado de gente, curiosos que não tem nada haver com a
Apesar de não ser sagrado, o muro compõe a ima- casa só olhando e entrando, não pode, então estas árvores
gem da floresta, o habitar natural das entidades sobre- funcionam também como uma barreira, e hoje em dia prin-
naturais e dos ancestrais, cria um envoltório natural, cipalmente contra os evangélicos.52

um continente que guarda todo o axé do terreiro, reten-


do-o e conservando-o entre os seus muros de árvores.
Cria-se um grande pano de fundo, toda uma am-
bientação ao qual se inserem todas as edificações e
espaços do terreiro, que levam a sociedade de culto
aos Egum simbolicamente de volta à África e trazem a
África para o Bela Vista, ou seja, ligam o Omo Ilê Agboulá
à África, à terra de seus ancestrais ilustres. Mantêm um
cosmos ordenado, que contribui e possibilita a vinda
dos ancestrais:

[...] a gente precisa de segurança e privacidade para fazer o


nosso culto, as festas, fazer as nossas coisas [...], ela funciona

51 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo 52 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de Ilê Agboulá, em Ponta de Areia no município de Itaparica em 12 de
abril de 2006. abril de 2006.

{ 174 }
BABÁ ABOULÁ
Fábio Macêdo Velame

Lá vem ele! Filho de Oyo,


O rei, o rei, o rei, descendente de Xangô
É ele, herdeiro de sua justiça,
Babá, continuidade de sua realeza,
Aboulá! permanência de sua linhagem,
vigor de sua dinastia,
Tudo se alegra lembrança de sua
quando o venerável ancestralidade.
Babá Aboulá
está na terra! Tudo se alegra
quando o venerável Babá Aboulá
Babá do Opá de veludo está na terra!
vermelho e branco.
Que trás no Abalá É o rei dos reis.
uma coroa. Atrás dele vêm outros reis,
Que trás na mão todos em fila para poder festejá-lo,
um Oxê. vem reis nagôs
para poder reverenciá-lo.
Tudo se alegra
quando o venerável Tudo se alegra
Babá Aboulá quando o venerável Babá Aboulá
está na terra! está na terra!
É o rei dos Egum. Filho de Oyo,
Que em vida foram: descendente de Xangô
guerreiros despatriados, herdeiro de sua justiça,
príncipes escravizados, continuidade de sua realeza,
sacerdotes fugitivos, permanência de sua linhagem,
caçadores enjaulados, vigor de sua dinastia,
reis assassinados, lembrança de sua
heróis violentados. ancestralidade.

Tudo se alegra Tudo se alegra


quando o venerável Babá Aboulá quando o venerável Babá Aboulá
está na terra! está na terra!

Quando Aboulá está na terra, É o rei dos reis.


as árvores dão mais frutos, Atrás dele vêm outros reis,
o mar mais peixes, todos em fila para poder festejá-lo,
os animais procriam, vem reis nagôs
as crianças nascem, para poder reverenciá-lo.
os mais novos amadurecem,
os mais velhos rejuvenescem. Tudo se alegra
quando o venerável Babá Aboulá
está na terra!
BABÁ NILEWO e AMORO MI TODO
Fábio Macêdo Velame

Babá trago-te presentes, pedidos,


flores, perfumes, espelhos, jóias. desejos,
agradecimentos,
Para que você possa abençoar. graças,
Para que eu possa levar para a rainha, que só você, Babá, pode levar.
a senhora do mar, Porque só em você, Babá,
a nossa mãe, ela pousa o olhar!
Iemanjá! Porque só você, Babá,
ela pode escutar!
Porque ela só recebe se: Porque só em você, Babá,
a sua benção neles se encontrar, ela pode confiar!
o seu axé neles repousar,
o meu pedido neles você colocar. Por favor, Babá!
Aceite e abençoe os meus presentes,
Para que o presente com o seu axé, para que eu possa levar para a rainha,
pelas ruas de Ponta de Areia, possa: desfilar, Iemanjá!
pelas casas dos mais velhos, possa: passear, Para que em seus braços de mar,
pelos lugares dos antigos ancestrais, possa: ela possa aceitar e levar
reverenciar. as minhas esperanças
para o seu palácio,
Para que Iemanjá, longe,
em seus braços de mar, lá no fundo do mar!
possa aceitar os:
3

OS TEMPOS DO
OMO ILÉ ABOULÁ

{ 179 }
Os tempos sagrado e profano do mundo, do cosmo. O tempo é regenerado pelos ritos
de passagem, através da repetição simbólica da cosmo-
Os tempos sagrados e profanos constituem as tempo- gonia, porque coincidia com o ínicio dos tempos, o co-
ralidades que balizam a existência do homem religioso meço em que o mundo viera primeira vez à existência.
em sua trajetória de vida. O tempo sagrado é conceitua- Mircea Eliade conceitua o tempo profano como “[...] o
do por Mircea Eliade como sendo “[...] um tempo míti- tempo de duração temporal ordinária na qual se inscre-
co, quer dizer tempo primordial, não identificável no vem os atos privados de significado religioso”. (ELIADE,
passado histórico, um tempo original, no sentido que 1992, p. 59) É o tempo que flui, que não constitui uma
brotou ‘de repente’, de que não foi precedido por um duração reversível, é o tempo vivido, atual, que é pre-
outro tempo, pois nenhum tempo podia existir antes sente, que é da esfera da reprodução da vida, da neces-
da aparição da realidade narrada pelo mito”. (ELIADE, sidade da sobrevivência cotidiana.
1992, p. 62) Todavia, o tempo sagrado e profano, na sociedade
O tempo sagrado é um tempo forte, circular, cíclico, de culto aos ancestrais, no Omo Ilê Aboulá, não são duas
ontológico, reversível, recuperável, regenerável, uma categorias dicotômicas, polarizadas, antagônicas; elas
espécie de eterno presente místico. O tempo sagrado é coexistem, uma está presente na outra. Os tempos sa-
uma sucessão de eternidades, que o homem reintegra grados ocorrem nos profanos, da mesma forma os tem-
periodicamente pela linguagem dos ritos, tornando-se pos profanos acontecem nos sagrados: não constituem
contemporâneo dos deuses no exato momento da cria- predicados opostos, mas sim duas formas de existência
ção do universo. simultâneas, concomitantes, relacionais, ocorrem ao
O tempo sagrado, ao revelar a origem, é por exce- mesmo tempo.
lência o tempo cosmogônico, o instante em que apare- A religião, enquanto um sistema cultural, através
ceu a mais vasta realidade, o mundo. É por isso que a do sagrado, é um dos elementos que modelam a socie-
cosmogônia serve de modelo exemplar – o arquétipo dade, e, consequentemente, está presente no tempo
central – a toda a criação, a toda maneira de fazer algo profano, no cotidiano, no dia a dia das pessoas, con-
ou alguma coisa. formando os seus comportamentos e atos no mundo e
O tempo cosmogônico serve de modelo exemplar hierarquizando os seus valores no campo social:
para todos os tempos sagrados, pois, se o tempo sagra-
do é aquele em que as divindades realizaram os seus A religião é sociologicamente interessante não por-
que, como o positivismo vulgar o colocaria, ela des-
feitos, torna-se evidente que o maior feito foi a criação
creve a ordem social (e se o faz é de forma não só

{ 181 }
muito oblíqua, mas também muito incompleta), mas truções, agora quando alguns Ojés precisam fazer algum
porque ela – a religião – a modela, tal como o fazem trabalho [...] ou atender alguém vem aqui comigo informa
o ambiente, o poder político, a riqueza, a obrigação e pega a chave e depois trás porque agente, principalmente
jurídica, a afeição pessoal e um sentido de beleza [...] eu e o Augustinho, temos que zelar pela casa, para que nin-
O mundo da vida cotidiana, sem dúvida em si mesmo guém quebre ou pegue alguma coisa, conservar o equilíbrio
um produto cultural, uma vez que é enquadrado em da casa, ter o controle de quem vai lá levando suas cargas
termos das concepções simbólicas do ‘fato obstinado’ impuras e pra onde vai, por isso também que hoje em dia
passado de geração a geração, é a cena estabelecida ninguém mora dentro do terreiro de Babá, agente não dei-
e o objeto dado de nossas ações [...] (GEERTZ, 1978, xa hoje em dia ninguém morar lá, porque as pessoas são in-
p. 127) disciplinadas, não se cuidam, ficam com energias impuras
e incompatíveis com as energias dos Babás, daquele espaço,
hoje em dia é proibido alguém morar no terreiro, dormir
O cotidiano dos membros do culto aos só se for Ojé e estiver fazendo suas obrigações aí ele tem que
Egum no espaço urbano dormir de um dia pro outro.1

Ninguém vive, hoje em dia, dentro do Omo Ilê Agboulá,


O tempo profano do templo do Omo Ilê Agboulá per-
pois lá é a morada dos Egum. O terreiro, durante a se-
tence ao cotidiano. Esse tempo ocorre no povoado de
mana, fica totalmente fechado, para que ninguém en-
Ponta de Areia, em suas ruas, vielas, praças, mercea-
tre sem autorização e macule o espaço sagrado, a chave
rias, vendas, bares, praia, ou seja, fora dos seus muros.
fica com o Alabá e alguns Ojés Abá. Ele é aberto apenas
Entretanto, esse tempo é regido pelos princípios do cul-
aos sábados para os rituais semanais de osé dos Egum,
to aos Egum. O candomblé, no culto aos Egum, ganha as
durante as festas sagradas do calendário da casa e,
ruas e está nelas todos os dias em Ponta de Areia, ele está
eventualmente, em algum serviço espiritual feito pelos
onde os membros da sociedade estão a cada instante.
Ojés a terceiros ou membros da casa durante a semana,
É no espaço e tempo profano do Povoado de Ponta
mas com uma prévia solicitação e acompanhamento:
de Areia que se dá o cotidiano do terreiro Omo Ilê
Agboulá, ocorrendo a reprodução das hierarquias litúr-
Como já te disse a casa abri nas festas públicas, que a gen-
te tem um calendário fixo, mas abre também nos fins de
gicas e das relações de gênero dos membros do templo
semana para os osé dos Egum, durante a semana ele fica
fechado com cadeado e só eu e alguns Ojés Agbás tem a
1 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
chave tanto da porteira quanto das portas das outras cons- Ilê Agboulá, na localidade de Ponta de Areia no município de
Itaparica no dia 16 de março de 2006.

{ 182 }
na vida social nos espaços públicos e semi-públicos do ou a mulher possa adentrar no recinto onde eles es-
povoado, assim como na esfera privada do lar. tão. Portanto, as relações hierárquicas do culto de Babá
É nesses locais do povoado de Ponta de Areia – ruas, Egum reproduzem-se nas relações sociais, no cotidiano
vielas, praças, lugares na praia, bares, botecos, vendas, dos espaços públicos e semipúblicos de Ponta de Areia,
mercearias, mercados, restaurantes, sorveterias etc – ditando os seus mecanismos de funcionamento.
que membros da sociedade de cultos aos Egum no dia Entretanto, essas relações hierárquicas do culto à
a dia, no cotidiano, conversam sobre os seus problemas ancestralidade, o jogo e as relações de poder, que se
pessoais, pedem conselhos, ajudas, opiniões, e buscam caracterizam como o domínio dos sacerdotes do culto,
soluções com os demais membros do culto, discutem dos Ojés, sobre as mulheres e crianças, reproduzem-se
sobre as questões do culto, falam do cuidado com a casa não só na vida social nos espaços públicos do povoado,
– o templo –, sobre as expectativas das festas, de servi- mas se dão também no ambiente do lar, no espaço pri-
ços espirituais realizados – os trabalhos –, de casos e vado da residência da família.
histórias da sociedade. No mundo doméstico, quando há problemas in-
No cotidiano do povoado, os Ojés Abá, os sacerdotes ternos da família nos períodos de crise econômica ou
mais velhos, possuem um papel proeminente, influen- de desemprego, estes são geralmente tratados pela so-
te e determinante na conduta e vida dos membros da ciedade de culto aos Egum como algo fora da ordem
sociedade de culto aos Egum, porque passam a assu- “natural” das coisas. Essas circunstâncias sempre são
mir ainda em vida as atribuições desempenhadas pelos encaradas como algo passageiro, momentâneo, uma
Egum, ou seja, tornam-se os grandes conselheiros em circunstância anormal, sendo sempre mal vista pelos
todos os assuntos e problemas, orientando todos aque- Ojés Abá, que exercem pressão sobre a família para man-
les que buscam ajuda. ter as aparências com o objetivo de conservar suas es-
Todavia, o acesso aos Ojés Abá se dá com grande res- truturas sociais, que espelham as hierarquias litúrgicas
peito. Assim, se os Ojés Abá estiverem trabalhando, cos- da sociedade de culto à ancestralidade. Nessas situações
turando as suas redes de pescaria sob as palmeiras na a mulher mesmo desempenhando o papel de provedo-
praia, ou conversando nos passeios sob as amendoei- ra da casa, se coloca, para a sociedade, numa posição de
ras, ou nos bares passando o tempo em socialização, inferioridade em relação ao seu marido, notadamente,
as crianças e mulheres aguardam ou que um deles o se ele for um Ojé:
veja e chame o Ojé Abá ao qual eles querem dizer algo,
ou, então, que seja dada permissão para que a criança A mulher jamais se coloca no mesmo nível de igual-
dade em relação ao homem, seu companheiro, e

{ 183 }
tudo parece ser arquitetado para obter uma convi- prestígio, ocorrendo disputas entre elas para ter qual-
vência harmoniosa, o que nem sempre é alcançado. quer tipo de relação com eles. Elas disputam a honra de
Ainda que em posição de comando, a mulher pro- serem namoradas, esposas e amantes de Ojé, pois essa
cura minimizar sua importância como líder, o que
posição possibilita um poder entre as outras mulheres
reforça o estatuto de dominação do homem na uni-
e homens da sociedade. As mulheres buscam ter algu-
dade doméstica. Todo esse sistema de conduta está
ma relação pessoal com um Ojé, evidenciado pelo fato
submetido ao jogo das relações sociais mais amplas,
determinadas por regras preestabelecidas de uma co- de que vários Ojés; em consequência disto tiveram, ao
munidade fortemente marcada por atitudes e com- longo da vida, muitas esposas e filhos.
portamentos machistas. Em linhas gerais, a trama Ainda no âmbito privado do lar, na esfera domésti-
consiste no exercício pleno do poder pela mulher, ca, no tempo profano do cotidiano há a manifestação
sem, contudo explicitá-lo, e na submissão real do ho- do tempo sagrado. Segundo alguns informantes do cul-
mem, mantendo, esse último, as aparências sociais to, existem cerca de 13 casas no povoado de Ponta de
de chefe da casa. É nessas oportunidades que a es-
Areia que possuem no seu interior, notadamente, em
trutura religiosa do culto à ancestralidade é aciona-
suas entradas, um assento de Exu, ou seja, possuem
da através de seus atores para o restabelecimento da
também em suas residências um espaço sagrado.
ordem e a volta à harmonia [...] (BRAGA, 1995, p. 80)
Esse Exu é individual de cada um, o Exu Bara, que

A mulher, nos períodos de dificuldades financeiras, cada ser humano possui e leva consigo, é o seu princí-

junto com os filhos sustentam a casa de diversas for- pio dinâmico da existência individualizada. Essas casas

mas: com a venda de quitutes da cozinha afro-brasileira pertencem tanto às pessoas do culto aos Orixás quan-

e de outros gêneros alimentares, com alguns pequenos to aos membros do culto aos Egum. Inclusive alguns

serviços domésticos, com o artesanato. Mantêm, po- membros do culto aos Egum, notadamente, alguns

rém, a imagem de provedor do homem, podendo ela e Ojés, possuem pequenas construções de um só cômodo,

o marido serem repreendidos pela sociedade de culto muito simples – de bloco pintado de branco e cobertas

aos Egum caso não sigam a ordem moral do grupo, o com telhas de fibro cimento –, fora do terreiro do Omo

que evidencia o caráter machista do culto de Egum. Ilê Agboulá, estando estas distribuídas ao longo do Bela

Porém, essa postura da mulher em manter esse ce- Vista e da rua dos Egum.

nário das relações hierárquicas no âmbito da família Isso ocorre pelo fato de possibilitar aos Ojés as condi-

lhe é bastante proveitoso, pois elas tiram vantagem ções para atender os seus clientes fora do terreiro, sem

de serem esposas de Ojés frente a outras mulheres ter a necessidade de dividir o valor do serviço espiritual

e homens. Ser esposa de Ojé é sinal de status social e com os demais membros do culto, não fracionando o

{ 184 }
dinheiro do chão, ficando para si com todo o valor do sacerdotes, de sua relação com os ancestrais, para man-
trabalho. Além de que reduzem-se as intrigas, as con- terem-se nessa posição mesmo quando não contribuem
versas, os fuxicos, os “os olhos gordos” sobre a sua muito com a manutenção da casa, com o sustento da fa-
clientela, para que ninguém lhe tome os clientes. mília, quando não levam a comida para dentro de casa
A importância que essas construções possuem tan- e a põem na mesa. Portanto, a religião não se limita aos
to no seu aspecto sagrado – pois é o Exu individual, muros do templo, mas se expande no convívio social,
privado de um Ojé que está ali assentado – quanto no estabelendo ordem, poderes, jogos, e “verdades” de si-
financeiro se evidencia no fato de alguns Ojés viverem tuações e relações sociais.
em casas cujo terreno não lhes pertence, e, no entanto, Os Ojés são o meio pelo qual emerge e se manifes-
a maioria deles terem comprado os terrenos onde estão ta todo o poder disciplinador2 dos Babás Egum, poder
as construções que guardam os seus Exu, para não te- esse que também é coextensivo aos Ojés, porque são os
rem problemas de tirar esse assento e terem que levá-lo únicos que possuem o saber de invocar e lidar com os
para outro lugar, caso alguém reclame a terra. Logo, ancestrais, se comunicando com eles, traduzindo as
preferem correr o risco de, um dia, perderem a casa suas palavras específicas para os seus descendentes e
onde moram e terem que se arranjar de outro modo, do levando os pedidos desses aos Egum.
que perderem o terreno onde estão os seus Exu, porque Os Ojés são a ligação e comunicação com os an-
isso trará problemas na manutenção da sua clientela, cestrais no orum, com os Egum Abá. Na África, segun-
podendo perdê-la para outro sacerdote do culto. do Renato da Silveira, o culto aos Egum, além de
Portanto, os homens que foram iniciados na socie-
dade de culto aos Egum possuem uma posição de pres-
2 Em sua geneaologia do poder, Michel Foucault se debruça sobre a
tígio, respeito e poder na sociedade de Ponta de Areia, questão do poder e suas formas de exercício em instituições, con-
tanto nos espaços públicos quanto nos privados no figurações, sua extensão no corpo social, as verdades que cria e
suscita na sociedade. Buscando na historia do ocidente esses exer-
âmbito do lar. Os Ojés mantêm em ambos os espaços a cícios do poder ele desenvolve as seguintes modalidades: o Poder
sua hegemonia sobre as mulheres, mesmo quando elas Soberano, entendido como o poder de vida e morte, de causar a
morte ou deixar viver exercido pelo corpo do rei, o estado monárqui-
ocupam altos postos no culto, ou são filhas de santo de co da idade média ao século XVIII; o Poder Disciplinador, entendido
como o poder que se aplica ao corpo por meio das técnicas de vigi-
outras casas de candomblé. Essa hegemonia é manti-
lância e das instituições punitivas, esse poder surge na modernida-
da pelas relações hierárquicas do culto à ancestralida- de a partir do final do século XVIII, mas desenvolve-se principalmen-
te a partir do ínicio do século XIX; e o Biopoder entendido como o
de, do culto a Babá Egum, que ocorrem dentro do Omo poder de genciar a vida, fazê-la crescer, controlar, regular, e adestrar
Ilê Agboulá. Os Ojés lançam mão de sua posição como o corpo social para a sua utilidade econômica e docilidade política,
desenvolvido pelo estado moderno ao longo do século XIX e XX.

{ 185 }
preencher as atividades e funções simbólicas, econô- graves, outros ainda executavam assassinos e incen-
micas, sociais, militares, e artísticas já mencionadas diários. (SILVEIRA, 2006, p. 428)
anteriormente, também exerciam um papel político
e judiciário importante, exercendo, ao mesmo tempo, Na Bahia, em virtude da escravidão, que provocou
um poder soberano por todo o corpo social, estabele- o esfacelamento das estruturas e organizações políti-
cendo uma moralidade pública com um controle do cas dos iorubás, o poder soberano do culto aos Egum
comportamento coletivo: que era execido na África foi extinto, e o poder disci-
plinador passou por transformações. Na atualidade, em
Assim, articulada ao Conselho de Estado, reponsável Ponta de Areia, o poder disciplinador dos Egum res-
pela moralidade pública e pela aplicação das sanções tringe-se a contribuir de forma intensa para controlar
mais pesadas, com dirigentes saídos das mais pode- e moldar os comportamentos, atitudes, hábitos, o cor-
rosas famílias, o culto Egúngún tinha sua importân-
po, os valores e a forma de vida dos membros do culto
cia no esquema do poder político na área sob hege-
aos ancestrais do Omo Ilê Agboulá. Seu poder é exercido
monia do Império de Oyó. O historiador nigeriano
tanto nos rituais das festas sagradas dentro do terreiro
S. O. Babayemi chegou a escrever que ele foi ‘usado
por Oyó como instrumento de controle político e re- quanto, e, notadamente, no cotidiano no povoado.
ligioso’; em outras palavras, era parte fundamental O culto aos Egum, o sagrado, além de ter e manifes-
de uma política moderada de dominação. Por con- tar-se no tempo profano no dia a dia da comunidade,
seguinte a Sociedade Egúngún era uma instância nas pequenas coisas, desde as mais triviais, passando
por excelência conservadora da ordem estabelecida pelas rotineiras, também está presente nos aconte-
e, enquanto tal, funcionava como braço executivo cimentos ou eventualidades seja individual ou coleti-
nos casos de condenação à morte nos tribunais, pois
va, pois precisam, para o seu bom funcionamento, da
assegurava a efetivação das sanções decididas pelos
orientação, aprovação e o conselho dos ancestrais.
seniores e garantia, em última instância, o respeito
Assim, se uma pessoa for realizar uma viagem ou
pelas autoridades constituídas. Os historiadores do
país iorubá citam alguns dos eguns executores, como
um excursão, ou ainda arriscar-se num novo trabalho,
Tetu, Jénjù e Lágboókun em Oyó; Olóòlu, Atipako e aventurar-se em uma outra cidade atrás de emprego ou
Gbajero em Ibadan; Orò em Ketu e Iwo; Jagun em realizar alguma empreitada qualquer, sempre pede o
Ibolo; Pàjémasé em Ipetumodu, além de Agón e Erelu conselho dos Babás sobre a decisão que irá tomar, bus-
em várias outras localidades. Alguns eram especiali- cando saber se vai ser bem sucedido ou se não é seguro,
zados, encarregados de executar ‘feiticeiras’, adúlte- mas, antes de se decidir e ir em frente, sempre consulta
ras e mulheres que cometem crimes considerados e escuta seus ancestrais.

{ 186 }
Da mesma forma, nos acontecimentos coletivos quando a sociedade civil e a sociedade religiosa agem
civis da sociedade de culto aos Egum, os Babás são conjuntamente diante do mesmo acontecimento so-
consultados para se estabelecer um dado evento é per- cial. Um fato ocorrido em 1982, durante o ciclo de fes-
tas dedicadas a Iemanjá, bem demonstra as estreitas
mitido ou não, ou sobre os procedimentos e as formas
relações entre o mundo sagrado e o mundo profano
de sua realização. Isso, às vezes, ocorre nas festas de
e de como se operacionaliza o poder que emana do
“Babá Criança”, que, na realidade, é uma brincadeira
mundo sagrado no acontecer profano. Naquela oca-
que eventualmente se faz no terreiro no dia 12 de ou- sião, um dos responsáveis pela organização dos feste-
tubro, no dia nacional das crianças, em que algumas jos de fevereiro pretendeu realizar entretenimentos
crianças são vestidas com indumenárias parecidas com tais como corrida-de-saco, quebra-pote, entre outros,
as de Babá para que todas as crianças da comunidade com o intuito de criar um espaço de lazer para as
possam se familiarizar com as simbologias dos Egum e crianças da localidade que durante esses eventos
a concepção de ancestralidade. são praticamente esquecidos pelos adultos, ocupa-
dos com os rituais. O diálogo entre o organizador da
São então promovidos diversos eventos esportivos,
festa e os espíritos ancestrais só foi possível graças à
culturais e jogos durante todo o dia em comemoração
intermediação de um dos mais velhos sacerdotes do
as crianças da comunidade de culto aos Egum, levando-
terreiro Ilê Aboulá. Na verdade, o exercício do poder
se o tempo profano e o lúdico para dentro do espaço temporal, a nível da comunidade, decorre do poder
sagrado do terreiro. Assim, outras festas e eventos ela- sagrado, oriundo do mundo dos ancestrais, o que se
borados e realizados pela sociedade de culto aos Egum dá por intermediação dos velhos sacerdotes do culto
se caracterizam: que são, por isso mesmo, líderes do povoado. O culto
de babá egum transcende os limites do espaço sagra-
Observamos, por exemplo, que as atividades sócio- do que lhe é naturalmente reservado, para projetar
culturais, como as de natureza lúdica – as festas pro- na comunidade um conjunto de normas e valores de
fanas, como bailes no prédio escolar, passeios em grande poder disciplinador de todas as relações so-
grupo a outras localidades, campeonato de futebol ciais. (BRAGA, 1995, p. 54)
etc. – devem merecer a aprovação do mundo sagra-
do, através do tácito consentimento dos espíritos dos Mas, nas festas periódicas de Egum do Omo Ilê
ancestrais, que são consultados pelos ojés, através da
Agboulá, há um encontro direto com o tempo sagrado.
prática divinatória ou pela evocação do espírito an-
Um tempo criado e sacralizado pelos deuses quando de
cestral propriamente dito. Assim é que a dicotomia
seus gestos, que são vividos durante as festas, pois o
entre o sagrado e o profano é quase imperceptível,
tempo para eles não é cumulativo, é cíclico. No tempo

{ 187 }
sagrado das festas de Egum, há o retorno ao movimen- acontecimento mítico e religioso antigo, mas sim a sua
to circular de nascer, crescer, se desenvolver, frutificar, atualização, a sua regeneração.
envelhecer, se deteriorar, morrer e renascer, sem fim, Assim, a festa de abertura do terreiro em janeiro – a
eterno. Portanto, o homem é projetado numa dimen- festa de Babá Olocotum em 6 de janeiro, que é a festa
são temporal original, dividindo aquele espaço e tempo realizada no dia de Reis – é a reinteração da cosmogô-
com todos os seus deuses, heróis e ancestrais, presen- nia, no Omo Ilê Agboulá, e abre o terreiro para um novo
ciando e participando dos seus feitos. ano, um novo ciclo de tempo sagrado, pois ainda não
foi utilizado, um tempo puro, como na origem. Durante
o ciclo das festas do calendário litúrgico do Omo Ilê
Uma festa de Babá Egum
Agboulá, há, portanto, a passagem de seus membros do
tempo profano, da esfera da necessidade da reprodução
É nas festas de Egum do Omo Ilê Agboulá que os rituais
da vida cotidiana, do dia a dia, para um tempo sagrado
revelam toda a plenitude do cosmos, que, por sua vez, é
no terreiro, onde e quando o aiê se comunica diretamen-
pensado como uma unidade dinâmica que nasce, cres-
te com o orum. Esse é o mundo existencial completo,
ce, se desenvolve e morre no último dia do ano, para
porque lá habitam, além de tudo o que existe no aiê,
justamente renascer no dia seguinte, o ano-novo. O cos-
as entidades sobrenaturais de toda a espécie, principal-
mo renasce todos os anos porque a cada ano o tempo
mente, porque é no tempo sagrado que seus ancestrais
sagrado começa de novo, se regenera por completo.
vêm do mundo dos mortos, vêm do orum, para estar em
O ano assume a configuração de um círculo fe-
comunhão com eles, símbolos máximos que são da con-
chado, possuindo a característica de poder renascer,
tinuidade da existência após a morte.
se renovar, sob a forma de um novo ano. A cada ano-
Durante os rituais das festas anuais da casa, a ar-
novo, um tempo novo, puro e sagrado, porque ainda
quitetura do Omo Ilê Agboulá atinge a sua plenitude,
não foi usado – como na origem –, vem à existência.
atinge o seu ápice, porque cumpre absolutamente
Todavia, o tempo renasce, recomeça, porque, a cada
com sua função de sustentáculo, continente, indutor
ano, o cosmo é criado novamente, possuindo como mo-
e propulsor da concepção de mundo e do sistema di-
delo exemplar o mito cosmogônico. A reatualização do
nâmico do culto aos ancestrais. Esse sistema dinâmico,
tempo sagrado, original, ou cosmogônico como mani-
caracterizado como fluxo de axé através dos diversos
festação da realidade é a base do calendário litúrgico
rituais, também condiciona essa arquitetura, estando
do Omo Ilê Agboulá. A festa não é a comemoração de um

{ 188 }
eles indissociavelmente ligados, sendo inseparáveis a É no ritual – isto é, no comportamento consagrado -
tal ponto que um não existiria sem o outro. que se origina, de alguma forma, essa convicção de
O ritual, segundo Mircea Eliade, é a “[...] gestas dos que as concepções religiosas são verídicas e de que as
diretivas religiosas são corretas. É em alguma espé-
deuses, e estas gestas constituem os moldes exempla-
cie de forma cerimonial – ainda que essa forma nada
res de todas as atividades humanas [...]. Ao imitar seus
mais seja que a recitação de um mito, a consulta a
deuses, o homem religioso passa a viver no tempo da
um oráculo ou a decoração de um túmulo – que as
origem, o tempo mítico. Em outras palavras, ‘sai’ da disposições e motivações induzidas pelos símbolos
duração profana para reunir-se a um tempo imovel, à sagrados nos homens e as concepções gerais da or-
eternidade”. (ELIADE, 1992, p. 88) dem da existência que eles formulam para os ho-
Portanto, os rituais pretendem ser os gestos exatos mens se encontram e se esforçam umas às outras.
que os deuses, heróis ou ancestrais realizaram no exato Num ritual, o mundo vivido e o mundo imaginado
instante da criação e do feito, explicam como fazer algo fundem-se sob a mediação de um único conjunto de
formas simbólicas, tornando-se um mundo único e
ou alguma coisa. São os instrumentos de passagem do
produzindo aquela transformação idiossincrática no
espaço e tempo profanos ao espaço e tempo sagrados.
sentido de realidade [...] (GEERTZ, 1978, p. 128)
Os rituais rompem com o tempo linear, sequencial,
escatológico, irreversível e lançam o homem religioso
Inúmeras são as festas que compõem o calendário
no exato instante do ato da criação, no tempo original,
litúrgico do Omo Ilê Agboulá, cada uma com suas pecu-
primordial, no tempo cosmogônico, num tempo que é
liaridades e especificidades – notadamente as procisões
cíclico e renovável, onde há sucessivas eternidades.
das festas do ciclo das águas em janeiro e fevereiro, a
Para o homem religioso, a eterna e infinita repe-
festa do patrono da casa Babá Aboulá –, mas, em linhas
tição dos gestos exemplares e a volta ao encontro do
gerais e básicas, possuem princípios e etapas funda-
tempo mítico da origem, sacralizado pelos deuses, não
mentais comuns.
implica de forma alguma em uma concepção pessimis-
As festas públicas no Omo Ilê Agboulá (Figura 69) co-
ta e subordinada da vida, mas sim, ao contrário, é, em
meçam por volta das nove horas da noite e cruzam a
virtude do eterno retorno à origem, a fonte sagrada, do
madrugada até o raiar do dia, por volta das seis horas
real e puro, que a existência humana lhe parece salvar-
da manhã. Todavia, os preparativos começam bem an-
se do nada e da morte, lhe dá um sentido de existência.
tes, às vezes duram dias, com os ritos e atividades se-
O ritual ainda entrelaça o mundo religioso com o mun-
cretas dos Ojés dentro do Lessém, bem como com a alta
do vivido, fundindo-os:

{ 189 }
hierarquia das mulheres providenciando o preparo das que são invocados no decorrer da cerimônia. [...] é
oferendas e das comidas. quase certo que o egum homenageado, o que rece-
Primeiro são feitas as oferendas – sacrifícios de ani- beu os sacrifícios votivos, virá tomar parte na ceri-
mônia. Geralmente, entra ele no salão acompanhado
mais votivos e comidas – pelos Ojés Abá (Ojé Atoque) ao
por outros eguns, que, em séqüito, conduzem-no até
Exu da porteira; depois, à Onilê, a Ogum e Iroco (todos
ao espaço sagrado. Os ojés se antecipam ao cortejo e
os Orixás da rua e do mato); posteriormente, aos Orixás
se põem de prontidão no local que lhe é reservado.
cujos assentos estão na Casa de Xangô; e, por fim, aos (BRAGA, 1995, p. 38)
Orixás do Lessém, Ossaim e Oiá Ibalé, a todos os assen-
tos dos Egum e ao assento coletivo do Opa-kokó: São realizados, em seguida, reservadamente, os ri-
tuais propiciatórios do Padê e do despacho de Exu, sem
Em cada terreiro existe um ojé mais ou menos espe-
a qual nenhuma cerimônia deve começar e acontecer.
cializado em sacrificar os animais [...]. Quem o realiza
Os sons, as músicas3, as danças, os movimentos to-
deve estar bem concentrado e ser conhecedor de to-
dos os cânticos próprios de matança para egum. Deve mam conta do espaço. Os Alabés com seus instrumen-
saber como atuar em cada etapa do ritual. Cabe-lhe
levar em conta as características de cada um dos es- 3 Seguem, segundo o Projeto Egungun da Sociedade de Estudos
píritos ancestrais e o significado simbólico da pes- da Cultura Negra no Brasil (SECNEB), as músicas tocadas numa
festa de Egum no Omo Ilê Agboulá: Iba Orixá Iba Onilê - Cantiga
pectiva oferta que lhe é feita. [...] Diferentemente do
de abertura saudando Onilê, dá inicio a todos os rituais de Egum,
que ocorre na hierarquia religiosa do candomblé da no texto cantado, os fiéis homenageiam todos os ancestrais, re-
Bahia, inexiste o posto de axogum no terreiro-de-e- presentados por seu patrono Onilê, o dono da terra, e os brados
que se ouvem ao fundo são as saudações típicas de Ojé; Ossayin
gum. Mas, é sempre um ojé agbá que se encarrega - Aqui, uma “fiada” de três cantigas em louvor de Ossayin, o pa-
da matança, sendo, na maioria das vezes, o próprio trono das folhas rituais, sem as quais nada se realiza; Egungun
Kigbalé - Invocação dos Egungun, através desta cantiga, os ances-
líder religioso que assume a responsabilidade desse
trais são chamados a se mostrar, materializando-se no mundo dos
trabalho.[...] A festa de egum tem início com a reali- vivos; Ewo Nilê - Toque de alerta: “Preparem-se/ todos prestem
zação de uma série de ritos que ocorrem no interior muita atenção, pois algo muito importante vai acontecer! Babá vai
chegar!” Ao fundo, ouvem-se os estalidos dos Ixã dos Ojé batidos
do ilê auô, dos quais só os ojés têm direito de parti- no chão, chamando e conduzindo o Egum para vir se confraterni-
cipar. São rituais complexos que exigem competên- zar com sua descendência; Orô Abi Oro – Aqui, a cantiga invoca
e explica o próprio significado do rito – Orô. A sua realização, rea-
cia e atenção por parte de quem os dirige. Em linhas
firmando os laços comunitários, traz felicidade, e um grande bem
gerais, consistem em estabelecer relações mágicas -estar para a comunidade; Onilê Mô Bodô Ilê - Babá está chegando.
com o mundo dos mortos através de libações e sa- Então, se anuncia – ele próprio comanda a cantiga – pedindo licen-
ça aos da casa para vir se juntar aos seus descendentes; Nilê Wá
crifícios votivos endereçados aos espíritos ancestrais, Alagbé - Já na Terra, dançando e abençoando seus netos, o Babá
Egum tira algumas cantigas, inclusive está, secundada por todos,

{ 190 }
Figura 69: Planta baixa coma hierarquia e gênero no espaço do barracão
durante a festa no terreiro/ Sem escalas
Fonte: elaborado pelo autor.

{ 191 }
tos sagrados – Rum, Rumpi, Lé e o Agogô –, transmitem (Figuras 70 e 71), sendo que um ou outro Ojé se apre-
poderoso axé potencializado pelas músicas cantadas senta também para puxar uma música de fundamento.
pelas Erelu. As músicas cantadas pelas Erelu e tocadas Em seguida, é realizado o despacho de Exu. É coloca-
pelos Alabês induzem à ligação entre o orum e o aiê, da uma quartinha tampada no meio da roda da ala das
estabelecem o ritmo e o tempo de cada etapa da ceri- mulheres e são entoadas as músicas a Exu. Ao finalizar,
mônia. A arquitetura do Omo Ilê Agboulá transforma-se, um Ojé cerrega a quartinha para fora, depositando-a em
desmanchando-se em música, tornando-se música soli- um lugar específico, pedindo proteção e segurança a
dificada em uma construção. A partir deste momento, Exu Ona para que toda a cerimônia prossiga conforme
diversos membros da ala feminina – independente do os preceitos do culto (Figuras 72 e 73).
seu posto na hierarquia – (Figura 69) vão em direção ao Continua a roda de mulheres cantando as músicas
espaço semiprivado do barracão, formam a roda, o cír- puxadas pelo Alabá, mas agora entoam três músicas
culo, remetendo ao xirê e, seguindo em sentido horário, para cada divindade do panteão dos Orixás que posuem
entoam as músicas propiciatórias, que iniciam as ati- assentos na casa, seja do Lessém, da mata, como da Casa
vidades litúrgicas. Essas músicas e ritmos são puxados de Xangô (Figura 74).
pelo Alabá da casa que se encontra ao lado dos Alabês Posteriormente, as mulheres desfilam cantando e
dançando em fila e saudando a ala das mulheres e a ala
dos homens, circulando através dos corredores forma-
para homenagear os músicos rituais, os Alabê; Agboulá Ago Nilê
- “Quando Agboulá está na Terra, tudo se enche de alegria”. Aqui dos entre as duas alas pelo guarda corpo que separa os
a comunidade canta em homenagem ao grande patrono do ilê: o
venerável Babá Agboulá; Obá Mi Silê - Estas duas cantigas são em homens das mulheres. Saúdam neste momento o Exu
homenagem a Xangô, ancestral da dinastia real Oyó; Saudação a Ona plantado sob a porta do barracão (Figura 75 e 76).
Babá Olukotum - Saudação a um dos ancestrais do povo nagô;
Agogô Mi Fô - Com um Babá Agbá ainda na sala, dançando entre Logo em seguida, a fila de mulheres saúda os ins-
os seus, os fiéis entoam estas cantigas de regozijo pelo aniversário trumentos musicais – Rum, Rumpi, Lé e o Agogô –, os
de Babá Olukotum. Lá fora, os foguetes explodem num clima de
pura alegria; Kiyê Kiyê Bô Iroko - Homenagem aos Egum de ho- Alabês, o Alabá, a porta de entrada dos Egum Abás e a ca-
mens que em vida foram filhos de Xangô. Babá dança, estreitando deira de Babá Olocotum (Figuras 77 e 78). Essa saudação
os laços com os participantes; Orixá Vá Iyê - Cantiga convidando
todas as entidades sobrenaturais, todos os habitantes do ará orum é feita levando a mão à cabeça e depois estendendo-a
– aqui agrupados sob o nome genérico de Orixá – para que venham
em direção ao elemento ou pessoa, como símbolo de
dançar; Afulelê Adé - Ao fundo os estilados do Ixã batendo no chão
para controlar os Egungun que ainda estão no salão, os fiéis can- respeito.
tam em homenagem a Oyá Igbalé, Iyá Messan Orun (Iansã Balé),
rainha e mãe dos Egum; Omi Ro - Cantiga de grande fuindamento,
As mulheres retomam a formação de roda, con-
que evoca toda a ancestralidade africana no Brasil. Os fiéis cantam tinuando a cantar e dançar no sentido horário, mas
de joelhos, numa atitude de profundo respeito.

{ 192 }
agora entoam as músicas dos Egum, preparando o es- códigos de conduta coletiva que devem ser seguidos e
paço do barracão para sua chegada e retornam para a observados pela comunidade.
ala feminina em fila (Figura 79). Sua indumentária é muito simples, composta ba-
Durante este período de tempo, em que as mulhe- sicamente por um quadro de panos de duas telas qua-
res cantam as músicas de Babá, os Egum são invocados dradas, sendo uma na frente e outra atrás, com um
dentro do Ilê Auô, especificamente no espaço do Lessém, bordado de uma caveira ou de um caixão na frente da
acessíveis apenas aos Ojés Abá – os mais antigos, os an- indumentária, que são atualizações simbólicas da mor-
ciãos –, também chamados de Ojés Atoque, que possuem te no âmbito da sociedade. Os Aparaká geralmente car-
o saber e o poder de invocar os Egum. regam um ixã na mão, o que é um sinal de cólera e de
Eles dirigem-se aos assentos dos Egum Abá seguran- punição para os que não seguem os preceitos.
do a vara de ixã na mão direita. Após pronunciar as Aparakás rondam o espaço sagrado, tanto o público
palavras invocatórias possuidoras do axé, do poder e do quanto privado do terreiro, sempre seguidos pelos Ojés
auô – o segredo de invocar os mortos –, batem esse ixã durante todo o tempo que dura a festa, impedindo que
três vezes no solo. Com esse ritual, as indumentárias as pessoas deixem o barracão durante a noite, tamanho
dos Egum são preenchidas com o espírito do ancestral. é o respeito e medo que os filhos do Omo Ilê Agboulá lhes
O Egum volta do orum e se torna presente no aiê, tor- atribui, pois é costume ele bater nas pessoas de forma
nando-se visível aos seus descendentes. violenta com o ixã que carrega nas mãos.
As indumentárias dos Egum correspondem ao seu Possuem também a função de filtrar as cargas “ne-
cargo, ou seja, existem duas categorias básicas de Egum gativas” e “impuras” que vêm de fora, trazidas pelas
que possuem funções distintas e respectivas indumen- pessoas, tanto os filhos da casa como os visitantes, tu-
tárias: os Aparaká e os Egum Abá. ristas e curiosos, e incidem sobre os Babás Egum Abá:
Os Egum mais novos são chamados de Aparaká, que
correspodem a um Ojé morto que ficará nessa con- [...] esta área funciona aqui como um filtro das pessoas
porque vai ‘’purificando’’, ou melhor reduzindo as cargas
dição durante sete anos. Após os sete anos o Aparaká
impuras até ele chegar no barracão quando os Aparakás
passará a ser um Egum Abá que possui uma singulari-
fazem uma purificação de novo destas pessoas, preparando
dade, dada pelas indumentárias e sua forma de falar, o
o espaço com energias puras, benéficas para Babá [..]4
Kê. Os Aparaká são mudos e sem identidade. Ninguém
sabe que morto ou ancestral está ali representado. 4 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Simbolizam os valores morais, éticos, costumes e Ilê Agboulá, na localidade de Ponta de Areia no município de
Itaparica no dia 16 de março de 2006.

{ 193 }
Figura 70: A ala feminina se dirige para o espaço semiprivado do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 194 }
Figura 71: A hierarquia feminina realiza as cantigas e danças propriciatórias
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 195 }
Figura 72: Despacho de Exu no espaço semiprivado do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 196 }
Figura 73: Despacho de Exu no espaço semiprivado do barracão, em meio à roda das cantadoras, as Erelu
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 197 }
Figura 74: A hierarquia feminina realiza as cantigas e danças para os Orixás
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 198 }
Figura 75: A hierarquia das mulheres desfila pelos corredores do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 199 }
Figura 76: A hierarquia das mulheres desfila pelos corredores do barracão, entre os homens e asmulheres
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 200 }
Figura 77: A hierarquia das mulheres saudam os Alabés, o Alabá e a cadeira de Babá Olocotum
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 201 }
Figura 78: A hierarquia feminina saúda os Alabés
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 202 }
Figura 79: A hierarquia feminina realiza as cantigas e danças para os Egum
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 203 }
Os Egum Abás, geralmente chamados de Babá Egum mada na Bahia de “opá” e de “eku” na Nigéria. É com-
(pai), são os Egum que já passaram pelos sete anos após posta de três partes: o abalá, o kafô, e o banté (Figura 80).
a morte do Ojés Abá que lhe deu origem, pois somente O abalá é um chapéu que cobre completamente a cabe-
os Ojés Abá podem ser preparados para que, quando de- ça do Babá. Há, na sua parte superior, uma armação re-
pois de mortos, possam ser invocados como Egum. donda ou quadrada, trabalhada com espelhos, búzios,
Possui uma diferença atribuída pelo seu jeito de fa- contas, de onde saem inúmeras tiras de pano, também
lar, o seu Kê, e pelas insígneas presentes em sua roupa, estas trabalhadas com bordados com os símbolos do
o que possibilita aos membros da sociedade saber quem Babá, formando franjas em sua volta, possuindo na
é o ancestral ali presente, devendo todos lhe prestar frente uma rede trançada que possibilita a visualização
homenagem e respeito. Assim, cada Egum possui seu do espaço pelo Babá, que possibilita a sua locomoção.
modo de falar singular. Os membros do culto aos Egum O kafô é uma túnica que cobre todo o corpo do Babá
sabem quem são cada um deles, seus nomes em portu- Egum. Ela se estende pelas pernas, transformando-se
guês, quem eles eram, o que fizeram pela comunidade; em sapatos fechados de pano, e pelos braços, virando
sabem suas histórias, seus feitos. São os arquétipos da luvas. Na altura do tórax, saem também inúmeras tiras
comunidade, todos querem ser como os seus ancestrais de panos coloridos delicadamente bordados e trabalha-
– seus pais, avós, bisavos, africanos... – e fazer o que dos com pequenos búzios, espelhos, e com as insígnias
eles fizeram, realizar coisas tão grandiosas quanto a de Babá.
que eles realizaram; são os seus exemplos a seguir e E, por fim, o banté, que é uma larga, comprida tira
suas inspirações. de pano que vai do final do pescoço até as proximida-
A indumentária do Egum Abá é entregue durante o des dos pés, contendo todos os emblemas e insígnias
ritual do acu : A indumentária dos Babás Egum Abá é cha-
5
coloridas que identificam o Egum, dão o seu carácter,
dizem quem ele era em vida. Constitui também o ele-
5 A cerimônia do acu, em que se faz o apelo, a evocação e invoca- mento que contém o axé do Babá. O banté é usado pelo
ção primeira do espírito do morto, conclamando-o e preparando-o Egum quando abençoa os seus descendentes, seguran-
para sua coletivização, ao mesmo tempo em que formaliza e fixa
sua participação naquela comunidade, possibilita o rompimento do-os pelas mãos e sacudindo na direção e sentido dos
definitivo dos laços individuais de parentesco do morto com seg-
mentos da sociedade, para formalizar e estabelecer um outro, mais
sagrado, mais extensivo e permanente. De certa maneira, a partir manente da comunidade. Isto explica, sem dúvida, o interesse que
do acu, o espírito está preparado para tornar-se egum, após a ceri- desperta na comunidade uma festa de entrega da roupa a um novo
mônia de consagração que termina com a entrega do axó, a roupa egum. É, na verdade, a consagração de um membro da família na
sagrada com a qual ele retornará à comunidade para exercer suas sua dimensão sagrada e o sentido dinâmico da noção de continui-
funções precípuas de ancestral, entre outras, a de conselheiro per- dade da vida na esfera da eternidade. (BRAGA, 1995, p. 120)

{ 204 }
Figura 80: Um Egum pelas ruas da cidade de Quidah, no Benim.
Indumentária de Babá Egum: Abalá, Kafô, Banté
Fonte: Pierre Verger (1948).

{ 205 }
Figura 81: Um Egum pelas ruas da cidade de Ifanhim, no Benim, em
meio aos Ojés e seus descendentes
Fonte: Pierre Verger (1948).

{ 206 }
seus filhos. Esses, por sua vez, fazem alusão de pegar Logo, Babá Egum dirige-se à ala das mulheres e re-
algo no ar, o axé do Babá, fazendo gestos com a mão. vencia toda a alta hierarquia feminina, fala com todas,
Seu aparecimento origina grande surpresa, alegria das mais antigas as mais novas, e uma a uma lhe pede
e júbilo para os filhos da casa, pois ali estão os seus pais a bênção e ele as abençoa com o seu axé estendendo o
e ancestrais retornados do orum. Com os Egum, vêm a seu banté na direção de suas filhas. Depois Babá Egum
segurança, a tranqüilidade e a certeza da continuidade reverencia toda a ala das mulheres – as Erelu, Atos... –,
da vida após a morte. e todas em conjunto lhe pedem a benção e este lhes
Torna-se a absoluta realidade para eles, ali estando distribui o seu axé (Figuras 85 e 86).
o seu ancestral que voltou do orum: Em seguida, ele se dirige em direção ao Babalorixá
que se encontra entre a ala masculina e feminina. O
Enquanto para os ‘visitantes’, pela natureza do caso, Babalorixá lhe pede a bênção, no que é prontamente
as realizações religiosas só podem ser apresentações
atendido, recebendo o seu axé. O Babá Egum sempre é
de uma perspectiva religiosa particular, podendo ser
seguido por um Ojé Atoque ou um Amuixã, que carrega
apreciadas esteticamente ou dissecadas cientifica-
na mão o ixã que o controla, impedindo que vá em di-
mente, para os participantes elas são, além disso, in-
terpretações, materializações, realizações da religião reção aos vivos, porque o toque na roupa de Babá Egum
– não apenas modelos daquilo que acreditam, mas é extremamente prejudicial, porque carrega consigo a
também modelos para a crença nela. É nesses dramas morte e quem a toca ou é tocado por ela deve passar
plásticos que os homens atingem sua fé, na medida por ritos específicos de purificação e descarrego, senão
em que a retratam. (GEERTZ, 1978, p. 130) a morte o rondará. Até mesmo os Ojés Abá seguem este
preceito fundamental e seguido com grande temor por
O Babá Egum, ao entrar no barracão, é recebido todos (Figura 87).
com as palavras de louvor e saudação e toques dos ata- Babá Egum se dirige então para os Alabês e os três
baques dos Alabês (Figura 82). lhe pedem a bênção. Ele prontamente abençoa um a
Em seguida, Babá Egum reverencia a todos os tro- um, levantando o banté e transmitindo o seu axé, tanto
nos dos demais Egum Abá, da esquerda à direita, em si- aos Alabês quanto aos instrumentos que tocam. Depois,
nal de respeito a eles; depois retorna ao centro e, com volta-se para a ala dos homens e todos lhe pedem as
grande respeito, se curva e reverencia, por três vezes, o suas bênçãos e este prontamente lhes dá, abençoando
trono de Babá Olocotum, também em sinal de respeito a todos com o seu axé (Figuras 88 e 89).
ao chefe supremo de todos os Egum (Figuras 83 e 84).

{ 207 }
Figura 82: Babá Egum aparece no espaço semiprivado do barracão em meio a um grande alvoroço dos seus descendentes
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 208 }
Figura 83: Babá Egum reverência os tronos dos demais Babá em respeito a eles
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 209 }
Figura 84: Babá Egum reverência três vezes o trono de Babá Olocotum em sinal de respeito a ele
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 210 }
Figura 85: Babá Egum abençoa uma a uma as mulheres membros da alta hierarquia feminina
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 211 }
Figura 86: Babá Egum abençoa uma a uma as mulheres membros da alta hierarquia feminina distribuindo o seu axé estendendo em sua direção o
seu Banté
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 212 }
Figura 87: Babá Egum abençoa o Babalorixá no meio do barracão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 213 }
Depois de ser reverenciado e de ter dançado, feito momento, o corredor remete, mais uma vez, à rua das
a sua festa, Babá Egum senta em seu trono e começa a cidades africanas iorubás por onde os Babás Egum des-
conversar com os presentes, utilizando a sua voz, o seu filavam nas festas anuais pelos bairros onde moram os
Kê, traduzido pelo Ojé Abá aos presentes. O Babá Egum descendentes do seu clã (Figuras 92 e 93).
inicia a sua fala perguntando pelos seus fiéis mais fre- Babá Egum volta mais uma vez a dançar e festejar
quentes, notadamente pelos membros da ala feminina, no espaço semiprivado do barracão com os seus filhos
pelos seus descendentes –filhos, netos, bisnetos, paren- e descendentes. Depois de festejar, o Babá Egum sai do
tes... – e por fim pelos visitantes que ali se encontram espaço semiprivado do barracão e retorna três vezes,
(Figura 90). sempre dançando, brincando e surpreendendo todos os
Em seguida, põe-se de novo a dançar ao som de suas presentes, sem saber se irá embora ou ficará para falar
músicas e cantigas prediletas, sempre seguidos e limi- diretamente com algum descendente (Figura 94).
tados pelos Ojés Abá ou Amuixã (Figura 91). Às vezes, Babá Egum fica e pede para falar com
Logo em seguida, Babá Egum vai em direção à ala alguém entre os fiéis ou algum de seus filhos ou des-
masculina, entra no corredor formado pelo guarda cor- cendentes presentes. Este é levado por um Ojé até o es-
po e a ala dos homens e segue em direção à porta do paço semiprivado do barracão e lá fica descalço, em pé,
barracão. Babá Egum fica de frente para a porta, reve- depois de joelhos e por fim prostado perante a Babá
renciando e prestando homenagem ao Exu Ona, pro- Egum. A pessoa chamada fica separada de Babá Egum
tetor e zelador do barracão, que se encontra na porta, por um ixã colocado horizontalmente no chão, que se-
tendo nela a sua morada. para o mundo dos mortos do dos vivos, separa simboli-
Esse momento é de grande respeito, pois, por al- camente o orum do aiê.
gum ímpeto, de forma imprevista, o Babá Egum pode Babá Egum jamais atravessará para o outro lado,
lançar-se sobre os homens da ala masculina e seu to- assim como a pessoa que foi chamada. Nestas ocasiões,
que é evitado a qualquer custo, pois é extremamente tudo pode acontecer: Babá Egum pode dar conselhos,
maléfico, os homens espremem-se rente à parede do sermões, repreensões; ser juiz de pendências e dispu-
barracão com bastante atenção. Babá Egum volta por tas entre os membros do culto, entre marido e mulher,
este corredor, distribuindo o seu axé tanto para a ala fe- pais e filhos; dar um castigo ou punição a algum mem-
minina quanto para a masculina. Os Babá Egum andam bro do culto que realizou uma falta grave dentro dos
por ele sempre seguidos de perto pelos Ojés com seus preceitos morais da sociedade; atender a um pedido
ixã, até o seu regresso ao espaço semiprivado. Neste feito; dar um conselho ou alguma ordem; abençoar;

{ 214 }
sugerir a melhor forma de resolver algum problema; descendentes, abençoa a todos até se encontrarem no-
receber presentes de seus descendentes; transmitir o vamente nas próximas festas (Figura 97).
seu axé benéfico através do banté ou colocando sobre E, assim, prossegue toda a noite e madrugada, até
a cabeça do seu descendente a ferramenta ou emblema raiar o dia. Passam pelo barracão, em média, 12 a 15
que carrega na mão – oxê, ibiri, xaxará, ofá….. Babá Egum, sendo que a festa termina sempre pelo
Nesse momento, quando as pessoas estão de joelhos Babá Caboclo – Babá Iaô. Muito querido pelos fiéis, este
ou prostradas aos seus pés, emerge todo o poder dicipli- Babá pede para que todos se juntem a ele no espaço se-
nador de Babá Egum, que transforma o espaço semipú- miprivado do barracão, fazendo todos dançarem e can-
blico do barracão em um “tribunal” com o objetivo de tarem em roda, compartilhando de sua alegria. Quando
conservar com rigor os preceitos, os princípios e os va- Babá Caboclo vai embora, as portas se abrem: a festa
lores da sociedade, mantendo-a coesa. Através de seus acabou e todos retornam para suas moradas satisfeitos
conselhos e orientações, conserva-se e imprime-se no por encontrarem seus antepassados, carregando con-
corpo social dos membros do culto aos Egum um modo sigo as suas bênçãos. A festa de Babá Egum evidencia
singular de ser e estar no mundo, onde a obediência as também, em sua dinâmica, as relações de hierarquia
suas ordens e palavras, traduzidas pelos Ojés, é a má- e de gênero, que se dão no espaço do barracão (Figura
xima lei a ser seguida, senão o membro do culto será 69), no tratamento dado às divindades e aos ancestrais,
punido pelo próprio Egum ou pela sociedade, sofrendo quando os Ojés responsabilizam-se pelos Babá Egum,
severas sanções e restrições, devendo cumpri-las, pois pela Iá Ebé e pelas mulheres da alta hierarquia do cul-
são vigiados pelos Egum do orum (Figuras 95 e 96). to. O tempo sagrado e o profano confundem-se em um
Todavia, esses conselhos e orientações, além de jogo de acontecimentos simultâneos e concomitantes
uma forma de exercício do poder pelos Egum e Ojés durante as festas públicas de Egum no barracão do Omo
no controle da sociedade de culto aos Egum, também Ilê Agboulá. Mesmo com a presença de Babá Egum, seja
são uma forma de alimentação da cooperação e ajuda a dançar, a abençoar, a falar com um dos seus filhos,
mútua entre os membros da família extensa, além de num momento de enorme manifestação do sagrado,
representarem afago e preocupação de um pai com os há a presença do lúdico, do tempo profano. E o tempo
seus filhos, aquele buscando de todas as formas resol- profano acontece e manifesta-se no tempo sagrado da
ver os problemas de qualquer natureza de seus descen- festa pública com as conversas paralelas das mulheres;
dentes. Por fim, Babá Egum dança e se despede de seus nos risos, gargalhadas, brincadeiras das crianças e ado-
lescentes; quando alguém vai se alimentar na cozinha;

{ 215 }
Figura 88: Babá Egum abençoa os Alabês e seus instrumentos musicais
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 216 }
Figura 89: Babá Egum todos os homens da ala masculina
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 217 }
Figura 90: Babá Egum senta em seu trono e pergunta por todos os seus familiares e pelos seus fiéis presentes
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 218 }
Figura 91: Babá Egum se põe a festejar, a dançar alegremente com os seus descendentes
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 219 }
Figura 92: Babá Egum desfila pelo corredor da ala masculina e reverência o Exu Ona da porta
do barracão seguido e conduzido pelos Ojés com os seus ixã
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 220 }
Figura 93: Babá Egum desfila pelo corredor da ala masculina do barracão abençoando os
seus descendentes sempre seguido e conduzido pelos Ojé com os seus ixã
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 221 }
Figura 94: Babá Egum sai e entra no espaço semipúblico do barracão três vezes
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 222 }
Figura 95: Babá Egum abençoa os seus descendentes, retira as cargas negativas sobre eles e os abenço-a transmitindo o seu axé
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 223 }
Figura 96: Babá Egum abençoa os seus descendentes, retira as cargas negativas sobre eles e os abenço-a transmitindo o seu axé através do seu
Banté ou das ferramentas que leva a mão
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 224 }
Figura 97: Babá Egum abençoa a todos transmitindo o seu axé e vai embora para o Ilê Auô, a casa do segredo
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 225 }
no jogo dos mais novos que pulam os bancos a fugir de ápice, evidenciando essas relações com as três festas
Babá que adentra o corredor do barracão; nos meninos das águas. Essas festas consistem em celebrações para
imitando Ojés com ixãs nas mãos atrás de Babá; nas pró- as divindades das águas: Iemanjá, Oxum e Olocum, e
prias músicas sagradas entoadas pelas mulheres que le- ocorrem nos meses de janeiro e fevereiro. Elas são: a
vam consigo um tom de alegria, de intensidade de vida festa da Bandeira no dia 20/01, a festa dos Presentes no
próprias do profano. Essa relação de simultaneidade dia 02/02 e a festa da Retirada da Bandeira no dia 20/02.
entre os tempos sagrado e o profano é levada do terrei- Essas festas são de grande importância para a sociedade
ro para as ruas do povoado de Ponta de Areia, durante de culto aos ancestrais, pois esta comunidade era ini-
a festa dos presentes a Iemanjá. Festa em que o terreiro cialmente composta de pescadores. Os Ojés mais velhos
se espalha por toda a cidade, desterritorializa-se do seu 6
até hoje desempenham essa atividade.
território do alto do Bela Vista e em fluxo se reterrito- A primeira festa é a da bandeira, que se inicia no
rializa pelas vielas, ladeiras, praças, praia e o mar. dia 20 de janeiro (Figura 98). Ela começa por volta das
três horas da tarde depois do ritual reservado do Padê e
do despacho de Exu no barracão, como todas as demais
A festa da Bandeira
festas públicas de Egum, como já foi tratado anterior-
mente.
A inter-relação, interação, coexistência e simultanei-
Depois, todas as pessoas presentes, tanto as mulhe-
dade entre os espaços e tempos sagrados e profanos
res do culto que fizerem a roda para o despacho de Exu
dos membros do culto dos Egum, tanto no terreiro
quanto os demais membros do culto e as visitas, se en-
quanto no povoado de Ponta de Areia, atinge o seu
caminham para o espaço sagrado privado ao lado do
Lessém, próximo à cajazeira de Ogum e ali começam a
6 Deleuze define desterritorialização como: “A função de desterrito- entoar as músicas de Babá. Logo após puxarem as mú-
rialização: é o movimento pelo qual ‘se’ abandona o território. É a
operação da linha de fuga”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 224), e sicas eis que se abre a janela do Lessém e aparece Babá
território como: “O território é de fato um ato, que afeta os meios Amoro Mi Todo, que com grande festa é recebido por
e os ritmos, que os ‘territorializa’. O território é o produto de uma
territorialização dos meios e ritmos[...] Precisamente há território todos que lá estão. Ele, com a grande alegria de estar
a partir do momento em que componentes de meios param de
presente entre os seus filhos, começa a dançar na ja-
ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando eles param
de ser funcionais para se tornarem expressivos [...] A marcação nela do Lessém, e os presentes aplaudem e cantam em
de um território é dimensional, mas não é uma medida, é um rit-
mo [...] A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou
sua homenagem ao som dos atabaques que os Alabês
dos componentes de meios tornados qualitativos”. (DELEUZE; trouxeram do barracão.
GUATTARI,1997, p. 120)

{ 226 }
Figura 98: Trajeto da festa da bandeira dia 20 de janeiro em
Ponta de Areia/ Sem Escalas
Fonte: adaptada da Conder (2000).

{ 227 }
Babá então pergunta pelos seus filhos, começando grande axé, porque passou por rituais específicos de
pelas mulheres mais velhas. Estas prontamente vão res- preparação dentro do Lessém (Figuras 99 e 100).
pondendo com grande respeito e lhe pedem a bênção. O cortejo adentra a rua dos Egum, no Bela Vista,
Depois ele pergunta pelos seus descendentes diretos, e arrebatando as pessoas que estão na rua a espiar o cor-
todos eles lhe pedem a bênção. Babá abençoa a todos tejo. O cortejo torna-se uma corrente de axé que sai do
com o seu axé, balançando o seu banté através da jane- Lessém e ganha as ruas do povoado através do fluxo dos
la em direção aos seus filhos. membros do culto a cantar as cantigas sagradas no rit-
Em seguida, pergunta por aqueles que não estão mo dos atabaques. (Figuras 102 e 103).
presentes e manda que alguém vá buscá-los para que Os Alabês, no início da ladeira dos Egum, tomam o
eles também levem a bandeira para o seu lugar, cuja seu correto lugar no ritual, que é na frente do cortejo.
função básica é simbolizar, lembrar e avisar a todos da Carregando os atabaques. Os Alabês passam a conduzir
sociedade de culto aos Egum de Ponta de Areia que está o cortejo para que o som sagrado dos atabaques junto
aberto o período das festas das águas. com as músicas cantadas pelas Erelu preservem o axé
Continua a festa ao som dos atabaques, das canti- da corrente criada a partir do terreiro. Os Alabês guiam
gas das mulheres, dos aplausos de todos enquanto há a o cortejo pelos espaços profanos das ruas do povoado,
dança de Babá Amoro Mi Todo, quando surge a bandeira reterritorializando o terreiro, o Omo Ilê Agboulá, em
que sai de dentro do Lessém por uma janela. A bandeira é Ponta de Areia (Figuras 106 e 107).
constituída de dois panos pintados com elementos ma- Também no início da ladeira dos Egum, um Ojé Abá
rinhos, em louvor a Iemanjá, que são presos num mas- toma a frente do mastro no lugar da Iá Abá, cuja idade
tro de madeira roliça de 12 m de comprimento, pintado avançada a impossibilita de carregar um mastro tão pe-
em faixas alternadas de branco e azul, possuindo ainda sado pelas ruas do povoado. O Ojé Abá puxa as cantigas
um enorme ramo de folhas sagradas em sua ponta. sagradas e impõe respeito ao cortejo com sua presença,
Os Ojés pegam o mastro, o retiram do Lessém atra- legitimando o ato ritual pelo seu saber e conhecimen-
vés da janela e o entregam às pessoas da casa para que to do domínio das músicas sagradas entoadas durante
elas o carreguem pelas ruas do povoado. É uma grande a festa da bandeira. Ele imprime sabiamente ritmo ao
honra segurar o mastro, são notórias as brigas entre as cortejo, e todos o seguem com extremo respeito e ad-
crianças e adolescentes, que disputam e se digladiam miração (Figuras 108 e 109).
por um lugar que dê para segurar o mastro, pois cons- A bandeira é constituída de dois panos bordados em
titui uma bênção, uma vez que ele possui em si um seus perímetros com pinturas referentes a elementos

{ 228 }
Figura 99: Saída do Figura 101:
cortejo do Omo Ilê A Iá Abá vai na
Agboulá frente do cortejo
Fonte: elaborado segurando o
pelo autor (2006). mastro da bandeira
Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

Figura 100: Saída


do cortejo no Figura 102: Na
Espaço Sagrado ponta do mastro
Público do Omo Ilê são colocadas
Agboulá folhas sagradas
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 229 }
Figura 103: Figura 105: Os
O cortejo entra Alabês tocam os
pela rua dos Egum atabaques durante
no Alto do Bela o cortejo
Vista Fonte: elaborado
Fonte: elaborado pelo autor (2006).
pelo autor (2006).

Figura 106:
O cortejo desce a
Figura 104: ladeira da rua dos
As crianças e Egum tendo na
adolescentes frente os Alabês
seguram o mastro que vão na frente
da bandeira do cortejo
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 230 }
Figura 107: Os Alabês na frente do cortejo descem a ladeira dos Figura 108: Ojé Abá conduzindo o cortejo em direção a Ponta de
Egum em direção a Ponta de Areia Areia
Fonte: elaborado pelo autor (2006). Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 231 }
Figura 109: O cortejo desce a ladeira dos Egum em direção a Ponta de Areia
Fonte: elaborado pelo autor (2006).

{ 232 }
do mar, que é a casa de Iemanjá. O primeiro pano con- limites do terreiro no Bela Vista sejam, simbolicamen-
tém pinturas e bordados de estrelas marinhas, conchas, te, ampliados, lançando sua extensão por todo o povoa-
seixos e a lua sobre o mar à noite, com o seu reflexo do (Figura 120).
sobre as vagas prateadas das ondas (Figura 110). O se- A bandeira, ao vencer as ondas das marés e ao tre-
gundo pano contém a própria Iemanjá, na forma de pidar ao vento, encobre com o seu pano abençoado por
uma sereia, a se embelezar com um espelho sobre um Iemanjá toda Ponta de Areia e impõe a todos que mo-
rochedo no mar durante o dia, sob a luz do sol, tendo ram nela e àqueles que por ela passam o respeito ao
ainda pintadas no pano conchas e cavalos marinhos culto aos Egum. A bandeira lembra a todos que lá resi-
(Figura 111). dem que aquela terra é a terra do culto aos ancestrais,
O que interessa neste espaço, que faz com que o é a terra dos Egum. Depois que a bandeira é fincada, o
cortejo desça o Bela Vista e vá em sua direção é o sim- cortejo se dirige para o largo da igreja, onde se realiza
bolismo do lugar, pois foi aí que o terreiro foi fundado uma cerimônia pública para a rainha do mar, a mãe
– atrás da igreja de Nossa Senhora das Candeias, tendo Iemanjá. Logo em seguida, tem-se então o início da fes-
lá ainda uma cajazeira de Ogum e um assento de Exu, ta profana nos bares da praia de Ponta de Areia e em
sendo que o Iroco que existia foi derrubado por um suas praças até altas horas da madrugada. A madruga-
raio. Foi neste lugar que se plantou o axé do terreiro da chega, o dia amanhece e lá está a bandeira sobre o
por Eduardo Daniel de Paula, foi aí que o Omo Ilê Agboulá mar na maré cheia, exuberante à luz da aurora, dando
nasceu e se fortaleceu pela luta que se travou contra a o seu recado a todos da sociedade de culto aos Egum:
perseguição policial, o preconceito vigente e a especu- “Começou a festa das águas e preparem-se para a festa
lação imobiliária. dos presentes de Iemanjá” (Figura 122).
Aquele lugar para eles é sagrado, não importando
quantas construções e obras sejam feitas ali, quantas
A festa dos Presentes
transformações e mudanças ali sejam realizadas, pois
o que importa é o lugar, porque o que importa não é
A festa dos presentes é uma festa das divindades das
o que está sobre a terra, mas sob ela, o “sangue” de
águas: Iemanjá, Oxum e Olokum, que ocorre todos
seus ancestrais. O largo em frente à igreja se transfor-
os anos no dia 02 de fevereiro no Omo Ilê Agboulá em
ma, momentaneamente, em um território do templo
Itaparica. Neste dia, inúmeros membros da sociedade
de culto aos Egum, passa a ser um espaço do terreiro,
de culto aos Egum da Ilha de Itaparica e de Salvador
torna-se o próprio Omo Ilê Agboulá, fazendo com que os
dirigem-se para o terreiro, levando os seus presentes

{ 233 }
Figura 110: Figura 112:
A primeira O mastro com a
bandeira leva bandeira é levado
pinturas de pelas ruas de Ponta
elementos de Areia a igreja de
relacionados ao Nossa Senhora das
mar de Iemanjá Candeias
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

Figura 113:
O mastro com a
Figura 111: bandeira chega ao
A segunda largo onde fica a
bandeira leva uma igreja de Nossa
pintura de Iemanjá Senhora das
sobre um rochedo Candeias, onde foi
no mar fundado o terreiro
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 234 }
Figura 114: Figura 116:
O cortejo dá uma O cortejo dá uma
volta com o mastro volta com o mastro
e a bandeira e a bandeira
formando um formando um
círculo em sentido círculo em sentido
anti-horário no anti-horário no
largo da igreja largo da igreja
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

Figura 115: Figura 117:


O cortejo dá uma O cortejo dá uma
volta com o mastro volta com o mastro
e a bandeira e a bandeira
formando um formando um
círculo em sentido círculo em sentido
anti-horário no anti-horário no
largo da igreja largo da igreja
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 235 }
Figura 118: O cortejo dá uma volta com o mastro e a bandeira Figura 119: O cortejo dá uma volta com o mastro e a bandeira
formando um círculo em sentido anti-horário no largo da igreja formando um círculo em sentido anti-horário no largo da igreja
Fonte: elaborado pelo autor (2007).. Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 236 }
Figura 120: Finca-se a bandeira em frente à igreja da Nossa Senhora das
Candeias até a maré baixar a noite quando ela será fincada no mar
Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 237 }
Figura 121: Finca-se a bandeira em frente a igreja da Nossa Senhora Figura 122: A bandeira é fincada à noite no mar com a maré baixa, no
das Candeias até a maré baixar a noite quando ela será fincada no mesmo lugar todos os anos
mar Fonte: elaborado pelo autor (2007).
Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 238 }
para ofertarem aos Egum Babá Nilewo e Babá Amoro circunstantes e o sacerdote. Esses atritos, embora
Mi Todo, que os recebem, os abençoam e, tornando-os pouco freqüentes, revelam certas nuances de um
seus, os oferecem às divindades das águas (Figura 123). processo dinâmico de contato cultural que coloca,
lado a lado, valores religiosos provenientes de socie-
O ritual começa logo cedo, pela manhã, através da mis-
dades distintas, produzindo um resultado que pode,
sa na igreja de Nossa Senhora das Candeias, que marca
acertadamente, ser chamado de cultura religiosa
o início dos preparativos da festa das águas no Omo Ilê
afro-brasileira. [...] Citamos aqui, a título de exem-
Agboulá, ocorrendo uma utilização por parte da socieda- plo, parte de entrevista com uma freira realizada por
de de culto aos Egum do espaço e tempo sagrado católi- Cleonice Mendonça, que bem ilustra a apropriação,
co para a concretização de seus rituais afro-brasileiros: por parte da população, do espaço físico e sagrado da
Igreja Católica para a realização de rituais afro-brasi-
Nesse mesmo dia, a missa solene é celebrada na ca- leiros: ‘O chefe da festa, lá em Amoreiras, desta das
pela local. As missas, muitas vezes, servem para ini- Candeias, ele convida o padre para celebrar a missa
ciar ou completar (fechar) um ritual afro-brasileiro, em honra de N.S. das Candeias. Nesta missa, ele sai
embora tal circunstância nunca seja verbalizada pela na hora da consagração para oferecer, e é naquele
população. Nesses casos, os rituais se fundem de tal momento, segundo o rito que eles têm [sic], é naquele
maneira que o catolicismo ortodoxo cede lugar ao ca- momento que ele deve sair para oferecer o despacho
tolicismo popular, revelando, destarte, vigor e gran- a Exu, atrás da igreja, depois faz todo cerimonial que
deza denunciadores da influência africana. Mas nem eles ali...enquanto o padre está lá, inocente celebran-
tudo isso acontece sem atritos. Na festa de 2 de feve- do a santa missa, na igreja. Padre para eles é um sím-
reiro de 1982, por exemplo, durante a missa solene, bolo, é um funcionário, alguém que vai completar
pela manhã, na capela, o padre celebrante criticou a religião deles, no sentido de celebrar uma missa,
severamente os filhos e filhas-de-santo e outros ini- fazer um batismo. Para eles o padre não tem outra
ciados nos candomblés da Bahia. Chamou a religião função senão está: uma pessoa relegada ao segundo
afro-brasileira de ‘coisa do demônio’ e exortou os plano. Feita a função dele, pode sair da vida deles’.
circunstantes a não mais freqüentar os terreiros de (BRAGA, 1995, p. 52)
macumba, devendo voltar à casa do Senhor. Embora
aquela preleção revelasse, antes de tudo, a estreiteza Depois dos preparativos e rituais secretos da socie-
de opinião de um sacerdote, reflete também o pen-
dade – sacrifícios de animais votivos, oferendas de co-
samento de setores conservadores da Igreja Católica
midas, presentes aos Egum, o Padê... –, por volta das
e da sociedade baiana. Graças à sensatez de alguns,
três horas da tarde, começam a chegar os membros
a missa solene não degenerou em discussão entre

{ 239 }
Figura 123: Trajeto da festa dos Presentes dia 02 de fevereiro em Ponta de
Areia/ Sem escalas
Fonte: adaptada da Conder (2000).

{ 240 }
femininos da sociedade, vistosamente postas com suas Veja bem, não sei se você reparou, mas atrás do pano que
guias e belas batas com rendas. cobre a parede do fundo do barracão tem uma porta, antes
Quando começam a soar os atabaques e os agogôs saia Egum daí, mas a gente precisou do espaço pra outro

com músicas para as divindades e depois para os Egum, coisa, e hoje ela fica fechada, mas ela servia principalmente
para a festa dos presentes, porque Babá também entrava no
nessa ocasião as mulheres dirigem-se para o espaço se-
barracão pela porta lateral como é até hoje, mas os presen-
miprivado do barracão onde fazem as danças propicia-
tes da festa do dia 02 de fevereiro saiam desta porta, hoje
tórias, tal como na festa da bandeira e nas festas de
sai um número certo de presente como antes, sai o número
Egum. O som dos atabaques, agogôs, as cantigas das certo, aí eles são preparados dentro do Lessem e levados hoje
Erelu formam um conjunto harmonioso que enche de em dia para o barracão pela porta do lado, isso não é muito
axé o espaço do barracão, todos cantam e se entusias- bom, porque os presentes perdem axé, porque entram em
mam, criando uma atmosfera sagrada. contato com as energias do lado de fora, os presentes tem
Logo é colocado no espaço semipúblico do barra- que sair do Lessem e por dentro ir direto para o barracão,
cão um pano branco no chão e, um a um, os presentes. pra não interagir com outras energias, pra depois receber
“Uniformizados” em jarros delicadamente decorados a benção e o axé dos Babás e ter depois o trajeto pelas ruas
que você já conhece e eu já te expliquei [...], agora está porta
com panos coloridos, bordados e encimados por flores
tem que ficar com um anteparo na frente por isso eu falei
são trazidos e depositados pelos Ojé para que possam
pra você da moldura de madeira trabalhada, aí as pessoas
ser abençoados pelos Egum, num número certo de pre-
não vão poder ver o que se passa ali.7
sentes que todos os anos repetem-se conforme os pre-
ceitos do culto.
Estes presentes são trazidos ao terreiro pelos mem-
Nesse ponto, o ritual e, consequentemente, a ar-
bros do culto, filhos e filhas de santo, adeptos do can-
quitetura está lacunar, porque, conforme os preceitos
domblé e visitas, e são entregues aos Ojés que os levam,
do culto, os presentes não deveriam, como é hoje, ser
os depositam em vasos e os preparam dentro do Lessém,
trazidos pelos Ojés do Lessém ao espaço semiprivado do
onde eles passam por rituais de purificação e sacraliza-
barracão pela porta lateral de entrada dos Egum; mas
ção específicos secretos da sociedade, recebendo o axé
sim deveriam sair do Lessém e ir diretamente para o bar-
da casa. Os vasos passam a ser peças de uma corrente
racão, sem passar por outros espaços. Daí o desejo de
alguns Ojés de abrir uma porta que ligue diretamente o
Lessém ao barracão, possibilitando que o presente saia
de um e entre no outro: 7 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá, na localidade de Ponta de Areia no município de
Itaparica no dia 03 de maio de 2006.

{ 241 }
de axé, que se iniciará dentro do terreiro e ganhará as de Aboulá pela ambição dos homens. Na fonte de
ruas do povoado. Oxum, perduram todas as pedras e os segredos velados
Esses vasos (HEIDEGGER, 2006, p.145) são feitos de da terra, que guarda a chuva do céu. Na água da fonte
cerâmica, sua matéria é retirada da terra, retirada do de Oxum, acontece o casamento entre céu e terra, que
seio de Onilê, uma dádiva dada por Onilê aos mortais, perdura e frutifica no axé presente no abrir das flores
aos seres que habitam o mundo. Estes, com o trabalho doadas como presentes; no crescimento do milho bran-
de suas mãos, moldam os vasos e, com seu axé, lhe dão co com que se faz o acaçá; nas folhas rituais das plantas
forma, para que possam receber, acolher e reter, em sagradas.
seu vazio, as flores, os presentes, a água sagrada e o axé Os vasos recebem e acolhem o axé dos Babás, as
de Babá. suas bênçãos e o encaminhamento dos pedidos, desejos
Os vasos recebem e acolhem as belas e ricas flores e as esperanças dos mortais a Iemanjá, pois a rainha do
trazidas pelos seus filhos para Iemanjá, decoradas com mar só atenderá se os Babás os recomendar, porque a
singelos panos coloridos e bordados. Essas flores são eles ela ouvirá e realizará as súplicas dos seus filhos,
delicadamente dispostas dentro dos vasos brancos que dos bons filhos que os zelam e os cuidam. Os vasos
espalham, envolvem e embriagam, com seu aroma e transformam-se em um altar que se move em uma cor-
perfume, o espaço do templo, levando os mortais pre- rente de axé pelas ruas do povoado em direção ao mar,
sentes a sentirem e experimentarem o cheiro divino à morada de Iemanjá, tendo como pernas os corpos dos
do orum. filhos de Aboulá, indo em direção aos barcos no mar.
Os vasos recebem e acolhem uma água sagrada que No lugar das oferendas no mar, os vasos tornam-se a
cai como dádiva do céu, vindas do orum com as bên- doação a Iemanjá, que, ao vazar, o vaso vive como doa-
çãos de Oxalá, que, com o seu opaxorô faz balançar as ção. Vazar torna-se oferecer, sacrificar e, desse modo,
nuvens, ordenando-lhes que derramem sobre a terra, o doar, realizar uma oferta sacrificial. Os vasos doam pre-
aiê, a fartura e a vida. As águas adentram as entranhas sentes consagrados.
da terra de Onilê, que acolhe cada gota e a faz aflorar Na doação da vaza dos vasos, vivem os pedidos e
em axé nas plantas, nas matas verdes, e que acalanta e as esperanças dos mortais, os filhos de Aboulá; como
sacia a sede dos mortais. encaminhamento e solicitação, vivem os imortais, os
A água que brota da terra de Onilê através da fon- Egum; como oferendas, vive o divino, Iemanjá, que re-
te de Oxum localizada na antiga morada do Omo Ilê cebe de volta e em retribuição a doação de suas dádi-
Agboulá no Barro Vermelho, é proibida agora aos filhos vas. Na doação da vaza do vaso, vive, cada um a sua

{ 242 }
maneira, em conjunto, de forma simultânea e coexis- os vasos na cabeça, organizando-se e concentrando-
tente, o jogo em espelho do mundo entre terra, céu, se para o cortejo que irá se iniciar (Figuras 124 e 125).
mortais, imortais e divinos. A doação da vaza do vaso Cantam então para os Egum que retornaram ao Ilê Auô.
doa à medida que deixa morar esse jogo em espelho do O primeiro presente, que está enfeitado com pano
mundo. (HEIDEGGER, 2006, p.145) branco, que vai à frente do cortejo, é dedicado a Oxalá;
Os vasos doam a Iemanjá, em seus braços de mar, o o segundo, que está envolto com o pano azul, é de
trabalho cuidadoso dos mortais, o axé e as recomenda- Iemanjá e o terceiro, que está arrumado com um pano
ções dos Egum, as oferendas em presentes e as esperan- amarelo, é dedicado a Oxum. Depois que todas enfilei-
ças dos filhos de Agboulá. ram-se, formando a corrente de axé, tem início o traje-
Soam os atabaques chamando os ancestrais, e eles to do cortejo saindo do terreiro pelo seu espaço sagrado
entram pela porta da frente ou pela porta lateral do público (Figuras 126 a 128).
barracão cheio em meio a grande alegria e júbilo. O cortejo rompe as ruas do Bela Vista, descendo a rua
Babá Nilewo e Babá Amoro Mi Todo, com seus trajes dos Egum, criando um momento único, quando o can-
ricamente decorados, dançam, pedem as suas músicas, domblé, notadamente o culto aos Egum, toma com força
abençoam os seus descendentes, perguntam pelas mu- e quantidade de membros as ruas de Ponta de Areia.
lheres mais velhas da casa. Estas com enorme alegria O cortejo desterritorializa o espaço interno do Omo
respondem, pedindo imediatamente as suas bênçãos. Ilê Agboulá e o reterritorializa sobre a cidade, levando
Aqueles prontamente lhes dão, depois perguntam pe- o espaço e tempo sagrado do terreiro para o profano
los seus familiares e todos eles lhes pedem a bênção. das ruas do povoado, onde o culto aos Egum retoma,
Depois de dançarem, eles abençoam a todos e aben- com ímpeto, toda a cidade através do fluxo de axé da
çoam os presentes, balançando o seu banté em direção corrente. A corrente transforma, momentaneamente,
aos presentes. Eles dão a volta várias vezes em torno em sagrada, cada viela, rua e praça no instante em que
dos presentes para que todos eles recebam o seu axé, as por estas passa, o tempo sagrado do ritual acontece nos
suas bênçãos, para que Iemanjá receba com satisfação espaços profanos de Ponta de Areia (Figuras 129 a 134).
cada um dos presentes e atenda a cada um dos pedidos O cortejo se insere e recria a paisagem composta
ali depositados. pela mata densa, com sua vegetação robusta, com as
Em seguida, todos saem do barracão. Nesse mo- visadas do mar da Baía de Todos os Santos, da topogra-
mento, saem os Alabês seguidos pela fila da hierarquia fia caprichosa em cadeia de morros que originam la-
feminina das mais velhas às mais novas, carregando deiras e caminhos sinuosos rodeados de casas singelas,

{ 243 }
Figura 124: Figura 126:
Os Alabês saem do Concentração das
barracão levando Erelu para o inicio
os atabaques do cortejo
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

Figura 127: As Erelu


Figura 125: em fila, formando
A Erelu saem com a corrente de axé,
os presentes do saem do Espaço
barracão para o Sagrado Público do
inicio do cortejo terreiro
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 244 }
Figura 128: Figura 130:
As Erelu levam O cortejo desce a
os presentes pelo Rua dos Egum
Espaço Profano do Fonte: elaborado
terreiro pelo autor (2006).
Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

Figura 129:
O cortejo inicia o Figura 131:
seu percurso pelas O cortejo desce a
ruas do Bela Vista Rua dos Egum
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 245 }
Figura 132: As Erelu, todas de branco, levam sobre a cabeça os Figura 133: O detalhe dos presentes, com bonecas, perfumes, flores,
diversos presentes a Iemanjá espelhos, pentes
Fonte: elaborado pelo autor (2007).. Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 246 }
Figura 134: Inumeras pessoas acompanham de um lado e do outro o cortejo
Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 247 }
abrindo ora visadas para o povoado de Ponta de Areia andamento ritual para aqueles cuja idade e condições
ora para o mar (Figuras 135 e 136). físicas impossibilitam de participar efetivamente do
O cortejo chega a Ponta de Areia e segue o seu tra- cortejo, ou de ir para o terreiro no início da festa, para
jeto histórico, que passa de geração em geração desde receber a bênção e o axé de Babá (Figuras 147 a 150).
a reconstrução do Omo Ilê Agboulá no alto do Bela Vista, O cortejo passa em frente às casas dos mais velhos
quando os afro-brasileiros conquistam e revelam que da sociedade no limite de Ponta de Areia, onde fazem
são os donos do espaço do povoado, que as ruas e pra- a volta para irem em direção à praia, no mesmo lugar
ças lhes pertencem. Num primeiro momento, o cortejo aonde chega o cortejo da bandeira; depois, embarcarão
segue, como na festa da bandeira, para a Igreja de Nossa os presentes num barco para levarem para Iemanjá. O
Senhora das Candeias, onde nos fundos foi fundado o cortejo passa saudando e reverenciando a todos os mais
Omo Ilê Agboulá por Eduardo Daniel de Paula, como já velhos que estão sentados em suas cadeiras no passeio
foi abordado anteriormente (Figuras 138 a 140). ou nas varandas de suas casas. Todos eles mergulham
Em seguida, o cortejo desfila pelas ruas do povoa- em uma grande alegria ao verem a tradição que rece-
do de Ponta de Areia em direção à Avenida Beira Mar, beram de seus pais e avôs continuando nas mãos dos
sempre cantando ao som dos atabaques e foguetes. As mais novos, dos seus filhos e netos. Com grande júbilo,
ruas, as varandas e janelas das casas são tomadas por aplaudem o cortejo dos presentes, extremamente satis-
moradores, veranistas e turistas, aplaudindo o cortejo. feitos com o rigor do ritual (Figuras 151 e 152).
Por onde passa o cortejo, as pessoas juntam-se a ele. Depois o cortejo dirige-se para a praia, fechando o
(Figuras 145 e 146). percurso simbólico na sua etapa terrestre pelas ruas do
A cidade se enfeita com bandeirolas brancas, que Bela Vista e de Ponta de Areia, onde fazem as últimas
enfeitam as ruas e praças. O cortejo se desloca para a cantigas em terra sobre a areia da praia (Figuras 153 a
Avenida Beira Mar para ir ao encontro das casas dos 155).
membros mais antigos da sociedade, dos mais velhos, Enquanto no mar os filhos de Aboulá no terreiro
e da residência do antigo Alabá, Domingos. Isso ocorre sobre barcos entregam os presentes a Iemanjá, na praia
em sinal de respeito aos mais velhos, e para mostrar a de Ponta de Areia, inumeras Erelu, as cantadoras de
realização do cortejo ritual dentro dos preceitos para Egum, ficam na praia, juntas, à espera do regresso do
aqueles que contribuíram financeiramente, ou com tra- cortejo para ter a certeza de que os presentes foram
balho, para a sua realização. O encontro é uma comu- entregues sem poder começar as atividades lúdicas.
nhão pública, uma “prestação de contas públicas” do Só com o regresso do cortejo marítimo à praia estará

{ 248 }
Figura 135: Cortejo
da sociedade de
culto aos Egum
recria a paisagem
de Ponta de Areia
Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

Figura 137: Detalhe


Figura 136: Cortejo do presente
da sociedade de tendo Iemanjá
culto aos Egum representada na
chegando nas ruas forma latina de
de Ponta de Areia uma sereia
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 249 }
Figura 138: Cortejo Figura 140:
da sociedade de O cortejo da
culto aos Egum sociedade de culto
se dirigindo em aos Egum se dirige
direção da Igreja de para a Igreja de
Nossa Senhora das Nossa Senhora das
Candeias. Candeias em Ponta
Fonte: elaborado de Areia
pelo autor (2006). Fonte: elaborado
pelo autor (2007).

Figura 139: Figura 141:


O cortejo da O cortejo da
sociedade de culto sociedade de culto
aos Egum se dirige aos Egum chega no
para a Igreja de largo da Igreja de
Nossa Senhora das Nossa Senhora das
Candeias em Ponta Candeias em Ponta
de Areia de Areia
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 250 }
Figura 142:
O cortejo da
sociedade de
culto aos Egum
reverencia e
homenageia os
ancestrais em
frente à Igreja
Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

Figura 144:
O cortejo da
sociedade de culto
aos Egum da a Figura 143: Uma
volta em frente à Erelu carregando
Igreja em direção à um presente para
Avenida Beira Mar Iemanjá no cortejo
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 251 }
Figura 145: Figura 147:
O cortejo da A cada rua que
sociedade de o cortejo passa
culto aos Egum mais pessoas a
encaminha-se para ele se juntam,
a Avenida Beira uma multidão de
Mar fiéis e curiosos o
Fonte: elaborado acompanha
pelo autor (2006). Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

Figura 146:
O cortejo da
sociedade de
culto aos Egum
encaminha-se para Figura 148:
a Avenida Beira O cortejo adentra a
Mar Avenida Beira Mar
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 252 }
Figura 149: Cortejo Figura 151:
na Avenida Beira O cortejo passa
Mar de Ponta de em frente às casas
Areia, em primeiro dos mais velhos da
plano os Alabês sociedade de culto
puxando o cortejo aos Egum no fim
Fonte: elaborado da Avenida Beira
pelo autor (2006). Mar
Fonte: elaborado
pelo autor (2007).

Figura 152:
Figura 150: O cortejo passa
Os atabaques em frente às casas
alimentam o dos mais velhos da
cortejo com o seu sociedade de culto
axé, imprimindo aos Egum no fim
ritmo à festa da Avenida Beira
pública Mar
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 253 }
Figura 153: Figura 155:
O cortejo, depois Os presentes
de saudar os mais se alinham na
velhos vai em praia para serem
direção à praia embarcados para
Fonte: elaborado o inicio do cortejo
pelo autor (2006). marítimo
Fonte: elaborado
pelo autor (2006).

Figura 156:
Figura 154: Os membros da
O cortejo chega sociedade de culto
à praia de Ponta a ancestralidade
de Areia, onde as embarcam
Erelu fazem os para levarem
últimos cânticos os presentes a
em terra Iemanjá
Fonte: elaborado Fonte: elaborado
pelo autor (2006). pelo autor (2006).

{ 254 }
Figura 157: Os presentes sendo levados para o barco de onde irão a Figura 158: Os atabaques são levados para a embarcação onde
alto-mar para serem ofertados a Iemanjá continuarão a emitir axé na procissão marítima
Fonte: elaborado pelo autor (2007).. Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 255 }
Figura 159: A embarcação que leva os presentes, os atabaques e os membros
da sociedade para a Baía de Todos os Santos para entregarem os presentes a
Iemanjá
Fonte: elaborado pelo autor (2007).

{ 256 }
Figura 160: Trajeto da festa de Retirada da Bandeira dia 20 de fevereiro
Ponta Areia. Sem escalas
Fonte: adaptada da Conder (2000).

{ 257 }
terminado o ritual sagrado nos espaços profanos das Logo em seguida, ao término da missa, que marca
ruas de Ponta de Areia. Tem início a festa profana gra- o fim da festa das águas, um novo cortejo puxado pe-
ças ao bom andamento do ritual sagrado. los Ojés leva o mastro com a bandeira de volta para o
Sob as bênçãos dos Babás, dá-se à festa profana que terreiro do Omo Ilê Agboulá, no Bela Vista, ocorrendo a
dura toda a noite até o raiar do dia nas barracas de praia última desterritorialização do templo no povoado. Ao
e na praça do povoado de Ponta de Areia, pois tudo chegar ao terreiro, a bandeira é guardada no Lessém e
ocorreu conforme as recomendações e solicitações dos o mastro é fincado entre os pés de peregum que envol-
Babás. O sagrado e profano no candomblé andam de vem o assento de Onilê. Em seguida, tem início a festa
mãos dadas, coexistem e se alimentam mutuamente. pública dos Egum, como já foi descrita anteriormente,
Mas chega a manhã, e lá está a bandeira a trepi- até o raiar do dia.
dar sobre as ondas a lembrar a todos que as festas das Os espaços e tempos sagrados e profanos na socie-
águas ainda não terminaram, e que ela espera até o dia dade de culto aos ancestrais, no Omo Ilê Agboulá e no
em que voltará para terra e ser acolhida pelo Omo Ilê povoado de Ponta de Areia, não constituem duas cate-
Agboulá. gorias dialéticas, polarizadas, antagônicas, opostas, ou
dicotômicas, mas sim elas coexistem, uma está presen-
te na outra.
A festa da retirada da Bandeira
Os espaços e tempos sagrados ocorrem nos profa-
nos, da mesma forma os espaços e tempos profanos
A festa da retirada da bandeira ocorre no dia 20 de fe-
acontecem nos sagrados: constituem eles duas formas
vereiro, fechando a festa das águas. Ela inicia-se com
de existência relacionais que se conectam de forma
a ida dos Ojés até a igreja do Senhor do Bonfim em
simultâneas, concomitantes, e coexistentes. O espaço
Salvador para agradecer a ele pelo bom andamento das
do terreiro de candomblé não se restringe apenas ao
festas. Depois de agradecer-lhe, os Ojés retornam para
perímetro interno de seu espaço sagrado e suas cons-
Itaparica. Ao chegarem em Ponta de Areia, retiram o
truções sacras, ele se projeta pela cidade de diversas
mastro com a bandeira do mar e a levam para o largo
formas e maneiras, ele irradia o seu axé pelas ruas do
da igreja de Nossa Senhora das Candeias, onde colo-
povoado de Ponta Areia:
cam-na no largo em frente da igreja até a missa da noi-
te (Figura 160). O cortejo desterritorializa a bandeira e
O vínculo que se estabelece entre os membros da co-
o Omo Ilê Agboulá do mar e os reterritorializa novamente munidade não está em função de que eles habitem
sobre o largo da igreja. num espaço preciso: os limites da sociedade egbé não

{ 258 }
coincidem com os limites físicos do ‘terreiro’. O ‘ter- litúrgico do templo; os rituais periodicos − osé de Egum
reiro’ ultrapassa os limites materiais (por assim dizer e Orixás…−;os rituais eventuais − saída de novos Egum
pólo de irradiação) para se projetar e permear a so- e Ojés, a passagem de cargos e títulos, o axêxê…− os
ciedade global. Os membros do egbé circulam, des-
rituais cotidianos − a licença ao Exu da porteira, os tra-
locam-se, trabalham, têm vinculos com a sociedade
balhos espirituais…− condicionam, juntamente com as
global, mas constituem uma comunidade ‘flutuante’,
circunstâncias e contigências, as dimensões simbólicas;
que concentra e expressa sua própria estrutura nos
‘terreiros’. (SANTOS, 1998, p. 33) o fluxo, interação e distribuição de axé; as relações de
hierarquia e de gênero; a organização espacial da arqui-
Por fim, os diversos rituais que constituem a socieda- tetura do templo Omo Ilê Agboulá.
de de culto aos Egum, os rituais das festas do calendário

{ 259 }
BABA O QUE DEVO FAZER?
Fábio Macêdo Velame

Babá, Pai,
Estou sem trabalho, Meu filho foi embora de casa,
o que devo fazer? o que devo fazer?

Pai, Babá,
Estou sem comida no prato, O mar está sem peixe,
o que devo fazer? o que devo fazer?

Babá, Babá,
A minha filha se perdeu na vida, meu pai,
o que devo fazer? que caminho eu devo seguir?

Pai, Babá,
Minha mãe está moribunda na cama, Espero a sua fala para poder ir!
o que devo fazer? Babá,
Espero o seu conselho para poder caminhar!
Babá, Babá,
Minha esposa me abandonou, Espero a sua orientação para poder lutar!
o que devo fazer? Babá,
Espero o seu afago para poder continuar!
OPÁ ANCESTRAL
Fábio Macêdo Velame

No Opá estão: O Opá traz a memória:


a morte e a vida, a lembrança de quem foi,
o início e o fim, de quem foi,
a criança e o velho, mas que volta,
todos que já se foram, pra lembrar pra quem ficou
todos que virão. das pessoas que por aqui passou,
dos seus:
O Opá é o segredo:
proibido, Feitos,
não dito, Sofrimentos,
não indagado. Lutas,
Sacrifícios,
O Opá é o silêncio: Alegrias,
do olhar, Vitórias.
um olhar falante,
numa fala que vem do Orum. Pra lembrar para quem fica,
da herança recebida,
da eterna vitória da vida.
4

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Omo Ilê Agboulá como um opá de Tijolos

{ 263 }
A questão central Bela Vista; as suas táticas de resistências − a persegui-
ção policial e a especulação imobiliária −; o cerco e o
A questão central, o problema principal do presente confronto com os cultos neopetencostais; as difíceis
trabalho é compreender como a cultura negra de ma- condições financeiras e materiais de seus membros
triz religiosa, especificamente da sociedade de culto para a construção, manutenção e transformação dos
aos Egum, compõe a arquitetura do terreiro Omo Ilê espaços e edificações do terreiro; o sítio e a topografia
Agboulá, caracterizando a sua criação, formação, re- no qual o terreiro se encontrou em suas andanças.
lações, estruturação, organização, funcionamento e Os diversos rituais que se relacionam ao culto aos
transformações, que se dão por cinco componentes que Egum, tanto os rituais privados quanto os públicos da-
acontecem de forma concomitantes e relacionais: as quela sociedade − entendendo o público e o privado
contingências; os rituais; a inter-relação e interação de neste universo como acessibilidade física e visual a de-
axé, o fluxo de axé; as simbologias de seus elementos terminados espaços, construções e rituais vinculados à
vinculados e relacionados à visão de mundo de matriz iniciação, à hierarquia, ao gênero e aos saberes do culto
nagô recriada; e as relações hierárquicas litúrgicas e de adquiridos −, são: rituais como o padê; o despacho de
gênero entre os membros do culto aos Egum. Exu; as matanças; os osé de Egum; todas as festas pú-
As contingências, as circunstâncias vinculadas aos blicas de Egum no calendário de festas, sendo que, em
acontecimentos históricos, o fluxo do tempo foram: a algumas, possuem uma duração de três dias consecu-
escravidão − com o fluxo e refluxo dos escravos libertos, tivos; os rituais internos dos Ojés dentro do Lessém; a
membros da sociedade secreta dos Egum no século XIX iniciação e confirmações de novos membros como Ojés
à Àfrica −; as perseguições sistemáticas da policia − in- e Amuixãs, assim como a posse de cargos na hierarquia
tendência −, determinadas pelo estado − jurisprudência do culto tanto das mulheres quanto dos homens; feitu-
via código penal−, igreja, medicina clínica, psiquiatria, ra de novos Babás − quando termina o período de sete
e a sociedade mais ampla; a especulação imobiliária na anos no qual o Aparaká passa a ser um Babá Egum Abá −;
ilha de Itaparica, notadamente em Ponta de Areia; a si- a entrega das novas roupas dos Babás e sua aparição do
tuação fundiária do terreiro − sem a posse legal da terra barracão; os axexés.
até a aquisição no Bela Vista −; os deslocamentos do As diversas interações e inter-relações de axé em
terreiro pelo povoado de Ponta de Areia em suas fugas seu sistema dinâmico, o fluxo de axé entre os seus ele-
(Moreira - Barro Vermelho - Bela Vista); as mudanças mentos naturais − mata sagrada e os assentos de Onilê,
das moradias de alguns membros da sociedade para o Ogum e Iroco−, e os elementos construídos − edificações

{ 265 }
−; os assentos das divindades no Ilê Orixá; os assentos terreiro como: o Lessém, a mata sagrada, os assentos dos
dos mortos, os Egum, no Lessém, e os membros do culto, Orixás da rua − Onilê, Iroco, e Ogum −, o Ilê Exu, no
criam constantes renovações, correntes e fluxos de axé, barracão durante as festas e no espaço sagrado livre em
fazendo com que tudo aconteça, se desenvolva, cresça frente ao barracão.
e floresça. Também as relações existentes internamente entre
As dimensões simbólicas incorporam os significa- as mulheres, ou seja, entre as Iá Ebé, Iá Kekerê, Iá Monde,
dos das concepções, de seus diversos elementos, em Iá Erelu, as Erelu e as Atos se espacializam nos espaços do
suas diversas escalas − de um Ilê Orixá a uma pintura terreiro como: a cozinha sagrada, a varanda ao lado da
de Babá na parede do barracão, de um trono de Babá cozinha, o Ilê Orixá, o Ilê Iá Ebé, e no barracão durante
ao Mariô. São símbolos vinculados à visão de mundo as festas. Isso ocorre em virtude do saber e do poder
daquela sociedade de cultura de matriz nagô recriada, adquiridos por cada um deles − nas hierarquias mas-
transformada numa cultura afro-brasileira específica. culina e feminina − ao longo do tempo que possibilita
Todavia, esses símbolos acontecem de forma pontual o acesso, a mobilidade e o domínio no funcionamento
em seus elementos e relacional com outros, de caráter dessas construções.
relativo e variável em um microcosmo afro-brasileiro, Estas relações de saberes e poderes iniciáticos do
que é o terreiro, microcosmo reinventado, transforma- culto da sociedade dos Egum, além de dividirem o es-
do, que remete a histórias, mitos, visão de mundo, rela- paço do terreiro por hierarquias litúrgicas, dividem o
ção do orum − além − com o aiê − mundo material − com espaço por gênero. O culto aos Egum é um culto de
seus elementos de ligação e abertura para ambos. domínio da esfera masculina, mantendo as mulheres
As relações hierárquicas e de gênero que vinculam sempre “subservientes”, num patamar secundário nas
saberes e poderes entre os membros do culto aos Egum principais atividades litúrgicas da casa, pois às mulhe-
se espacializam na arquitetura do terreiro. As funções res é proibido o segredo de culto aos Egum, é total-
que cada segmento ou membro da sociedade desempe- mente proibido a elas o acesso ao Lessém, aos saberes
nha estão vinculadas ao seu posto, nível na hierarquia, vinculados ao mundo dos mortos, é proibido a elas a
e a seu sexo e possibilitam o seu acesso a uma dada manipulação desse poder.
construção, ou espaço, bem como a utilização desta. Estes cinco elementos: as contingências ou as cir-
As relações hierárquicas existentes internamente cunstâncias; os rituais; as interações, inter-relações e
entre os homens, ou seja, entre o Alabá, os Ojés Abá, fluxos de axé; as dimensões simbólicas de seus diversos
os Ojés e os Amuixãs, se espacializam nos espaços do elementos; e as relações nas hierárquicas litúrgicas e de

{ 266 }
gênero dos membros do culto aos Egum não ocorrem […] Chatres é feita de pedra e vidro, mas não é ape-
de forma isoladas, pontuais, hierárquicas, sucessivas, nas pedra e vidro, é uma catedral, e não somente
como se um dado espaço ou construção fosse composto uma catedral, mas uma catedral particular, construí-
da num tempo particular por certos membros de
apenas por um ou outro desses aspectos. Mas elas se
uma sociedade particular. Para compreender o que
dão num conjunto, acontecem de formas sincrônicas,
isso significa, para perceber o que isso é exatamente,
simultâneas, concomitantes, circulares em conexões
você precisa conhecer mais do que é comum a todas
diversas, acontecem ao mesmo tempo, uma não existi- as catedrais. Você precisa compreender também – e,
ria nem aconteceria sem a presença das outras, são re- em minha opinião, da forma mais crítica – os concei-
lacionais, e é essa interação dinâmica entre esses cinco tos específicos das relações entre Deus, o homem e
elementos em conjunto que compõe e faz a arquitetura a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram
do Omo Ilê Agboulá. São esses cinco elementos conco- eles que governaram a sua criação. Não é diferente
mitantes que constituem o ser desta arquitetura, que com os homens: eles também, até o último deles, são
artefatos culturais. (GEERTZ, 1978, p. 24)
lança a localização, a posição, a direção, o sentido, o
lugar, a construção, a criação e a eterna transformação
O que importa, quando se assenta o primeiro tijolo,
de sua arquitetura, de cada elemento edificado ou na-
se for de “tijolo”, em qualquer construção do templo,
tural. Tem-se, no processo de plantação do axé da casa
é como ele será feito − de acordo com os preceitos ri-
no Lessém e sua distribuição entre todos os seus elemen-
tuais e com a tradição − com um mutirão de axé dos
tos construídos, naturais e em seus filhos, o elemento
filhos da casa, porque ele é uma construção coletiva
primordial, fundamental, essencial dessa arquitetura.
no tempo, é um ser vivo, pulsante. É uma construção,
A materialidade do Omo Ilê Agboulá, do que ele é cons-
transformação, destruição e reconstrução sem fim. O
truído, ou seja, a sua dimensão material, física, a sua
Omo Ilê Agboulá é um devir ininterrupto, uma transfor-
concretude é condicionante do templo, mas não possui
mação constante. Sua construção foi, e continua sendo,
valor intríseco algum. Isso, porque no culto aos Egum
empreendida pelo esforço material e trabalho coletivo
o que interessa não é a matéria, a coisa, de que é feita,
das diversas gerações de seus filhos e filhas, que incan-
mas sim as circunstâncias, as dimensões simbólicas, os
savelmente buscam o fortalecimento, a potencializa-
rituais, os fluxos de axé e as relações de hierarquia e
ção e o desenvolvimento de seu sistema dinâmico, as
de gênero que vinculam e que se fazem presentes na
inter-relações frutíferas de axé e seu fluxo que possibi-
arquitetura, ou seja, suas dimensões culturais:
litam a vida e a existência do seu mundo, um mundo

{ 267 }
afro-brasileiro, que como tal, deve atender a todos os do cosmo nagô, que não existem sem sua totalidade
preceitos e princípios litúrgicos do culto aos Egum. e pureza nessa realidade sociocultural, em um projeto
O que importa, no processo de construir e habitar arquitetônico ideal para as constantes transformações
um mundo e uma arquietura afro-brasileira para os fi- e construções do terreiro.
lhos de Aboulá, fundamentalmente, é o lugar do axé da Os membros do culto aos Egum do Omo Ilê Agboulá
casa no Lessém em sua relação e interação com a terra, não são nagôs, são afro-brasileiros. Os nagôs estão na
bem como a sua relação com o axé dos elementos natu- África, e mesmo lá muito se perdeu, ao longo dos anos,
rais, com o axé dos assentos de Orixás e Egum, com o por ação da escravidão no século XIX; do colonialismo
axé das construções do terreiro, e sua potencialização e e imperialismo europeu; da ação excludente e das po-
seu fortalecimento vinculados aos atos rituais, às obri- líticas de conversão de outras religiões − catolicismo,
gações, aos sacrifícios de animais votivos, às oferendas protestantismo, e o islamismo −; das guerras civis cons-
e comidas, à conduta litúrgica dos membros da casa, ou tantes após a “libertação” do domínio europeu no sécu-
seja, a tudo que alimente o axé da casa, o potencialize, lo XX; pelas disputas e guerras entre as etnias africanas.
o desenvolva, o fortaleça: o que importa é o desenvol- A arquitetura do Omo Ilê Agboulá é uma recriação,
vimento de seu fluxo de axé. Ele será tanto mais forte, como defendia Roger Bastide, mas uma recriação que
mais frutífero e eficiente se todos os membros do culto vai além daquela defendida por ele, é uma recriação
aos Egum estiverem ligados, relacionados, empenha- de outra natureza. É uma reinvenção distinta, mais
dos em conservá-lo e fortalecê-lo, para que ele possa complexa e profunda, do que aquela que ele defende:
ter, cada vez mais, poder de realização, para ser usu- de que a arquitetura do terreiro é uma África em mi-
fruído e compartilhado pelos seus filhos. niatura, mantendo suas principais relações geográficas
e locacionais, como elas eram na África. Sua visão da
arquitetura do terreiro é de síntese de relações geográ-
Uma Arquitetura Afro-brasileira
ficas, transposições locacionais de caráter comparativo
com o “original” da mãe África, baseada na compara-
Não existe nesta arquitetura, no templo de culto aos
ção da realidade desses espaços na Bahia, com os tem-
Egum do Omo Ilê Agboulá, uma materialização de uma
plos das cidades e florestas africanas.
cosmologia do nagô, não há nele um cosmo nagô orde-
Esta visão do candomblé como recriação, de
nado, de estrutura global, totalizante, fechada, hermé-
Bastide, é retomada com um caráter mais profundo
tica, uma construção com vínculos transcendentais cos-
por Júlio Braga em suas análises etnográficas, focadas
mológicas; nem a intenção de imitar estas estruturas

{ 268 }
nos saberes locais, nos vínculos do candomblé com o se valem pais e mães-de-santo nos candomblés da
cotidiano das pessoas, das relações de seus membros Bahia. Por está razão é que os candomblés sintetizam
no dia a dia, no estudo do candomblé em si, ou seja, diferentes valores culturais, ao formarem uma com-
plexa organização sócio-religiosa, que não encontra
na vida interna do terreiro, fugindo dos estudos exces-
paralelo em nenhuma das sociedades tradicionais
sivamente comparativos entre o Brasil e a África, que
africanas envolvidas pelo tráfego de escravos para o
buscam um elo de permanência entre essas duas reali-
Brasil. De certa maneira, têm sido decepcionantes os
dades, que consideram como uma mesma coisa, como resultados das viagens realizadas por pais e mães-de-
iguais em “essência”, que geralmente trazem consigo santo a diferentes países da África, ao se darem conta
um caráter político ideológico que consideram a Bahia de que não existe um organismo religioso, como o
como um pedaço da África localizado no outro lado do candomblé, cuja estrutura se aproxima ou sirva de
Atlântico. Júlio Braga considera as realidades africanas modelo às suas próprias casas de culto às divindades
e brasileiras como autônomas, distintas, diferentes: de origem africana e afro-brasileira. É que o candom-
blé constitui, em essência, uma criação do negro no
É certo que os candomblés da Bahia estão estrutu- Brasil, integrando atualmente um sistema mais am-
ralmente comprometidos com diversos e complexos plo de religiosidade popular. Nesse sentido, já não
valores religiosos africanos. Contudo, exame mais é uma ‘coisa de negro’, como se dizia, depreciativa-
acurado do seu ajustamento à nova realidade social mente, na medida em que ocorre ampla penetração
revela mecanismos de surgimento de uma estrutu- dessa religião em estratos mais amplos da sociedade,
ra que preserva elementos de origem, reelaborados em que predomina uma população eminentemente
de acordo com novo sistema de crença que motiva branca ou, pelo menos, não negra. (BRAGA, 1995,
e anima essas comunidades religiosas afro-brasilei- p. 14)
ras. Essa perspectiva analítica permite afirmar que
elementos constitutivos da estrutura dos cultos afri- A arquitetura do terreiro do Omo Ilê Agboulá é uma
canos foram abandonados pois que se tornaram ine- reinvenção, recriação, alteração, transformação de um
ficazes ou não se ajustaram ao sistema surgido no mundo africano mais profundo do que a recriação de
Brasil. Permaneceram somente aqueles segmentos Roger Bastide. Essa arquitetura é uma reinvenção do
componenciais indispensáveis ao novo sistema reli-
negro no Brasil, fruto das condições impostas aos des-
giosa. É o caso, por exemplo, da noção também rede-
cendentes de africanos em sua trajetória histórica no
finida de odu (caminho, destino), elemento central
país onde ocorreram algumas permanências básicas e
do sistema divinatório com o opelê Ifá (rosário de Ifá)
dos iorubas, reencontrada no jogo de búzios de que várias perdas de tradições africanas, transformações,

{ 269 }
acréscimos, invenções e criações de tradições afro-bra- Bela é a noite que anuncia o início das festas de
sileiras. O Omo Ilê Agboulá é uma arquitetura com uma Babá,1 o céu limpo e estrelado, que anuncia as bênçãos
espacialidade distinta e diferente dos templos africanos de Babá, a presença do maior número possível dos fi-
dos povos iorubás, sem similar e paralelo na África. lhos de Babá, todos vistosamente vestidos, com as suas
O Omo Ilê Agboulá, em sua singularidade, unicidade melhores roupas, as mulheres com suas batas2 exube-
e em sua totalidade, é um templo afro-brasileiro, é uma rantes.
reinvenção do universo nagô, notadamente, da socie- Belas são as músicas que saem dos atabaques e que
dade de culto aos ancestrais, os Egum, é uma recriação chegam a todos os cantos de Ponta de Areia, tocados
do negro no Brasil. pelas crianças ávidas de mostrar para a sociedade que
O culto aos Egum continua no Brasil de forma trans- estão melhorando e aprendendo para satisfazer o Babá,
formada, alterada, pois nele habitam os Egum africa- para que eles não decepcionem quando este lhes pedir
nos que foram trazidos da África, das regiões dos povos suas músicas prediletas. Belas são as flores trazidas pe-
iorubás − Babá Olokotum, Alapalá, Aboulá... −, somados los filhos da casa para oferecer como presente a Babá,
com os Egum brasileiros − Babá Iaô, Babá Bakabaká, a ornamentação caprichosa feita especialmente para a
Erim... −, cujos Ojés que os originaram nasceram, vi- festa, com standarts, faixas, ramos, com as folhas no
veram e morreram aqui no Brasil. Algumas funções, piso, purificando o espaço do barracão.
atribuições, ritos, saberes, conhecimentos do culto aos Belas são as cantigas e as danças das mulheres de
ancestrais foram perdidas ao longo do tempo, e outras todos os postos ali juntas, abrindo a festa, preparando
foram transformadas e criadas, sendo acrescentadas a casa para Babá. Tão belas quanto são os mais jovens
paulatinamente ao culto, criando uma arquitetura afro e crianças acompanhando o ritmo e as letras das can-
-brasileira singular, única no mundo dos mortos e dos tigas dos mais velhos. Belas são as comidas feitas espe-
vivos, imprimindo-lhe uma beleza peculiar. cialmente para atender ao gosto de cada Babá, para lhe
satisfazer. Bela é a presença de Babá, entre seus filhos,
todos reunidos e cantando alegres por estarem com
O Belo na Arquitetura do Omo Ilê
os seus ancestrais, seus pais. Tão bela é a felicidade de
Agboulá
Babá ao estar na presença de seus filhos, a dançar e

Disto, num primeiro momento, advém uma questão


1 Babá em Iorubá significa pai, nomeclatura também utilizada para
primordial, o que é e onde está a beleza arquitetônica denominar os Egum.
do Omo Ilê Aboulá? 2 Indumentária específica utilizada pela hierarquia das mulheres.

{ 270 }
abençoar a todos os presentes, transmitindo suas ener- de que seus filhos voltarão para terem com seus pais,
gias positivas. para que juntos novamente possam festejar a vida.
Belos são os seus conselhos, suas recomendações e Portanto, a beleza na arquitetura do Omo Ilê Agboulá
repreensões; são suas indumentárias coloridas, cheias está atrelada a tudo aquilo que o liga, revela e manifes-
de apetrechos dos mais diversos, com espelhos, búzios, ta a dimensão do sagrado em toda a sua carga simbólica
contas, rigorosa e delicadamente bordados com os em- e energética, aquilo que dinamiza a existência pela sua
blemas mais diversos que revelam que eles eram em função sagrada de colocá-la em contato com as divin-
vida; são suas ferramentas que trazem a mão e os seus dades e os ancestrais. Belo é tudo o que é dinâmico, ou
tronos esculpidos, que lhes afagam. Belos são os respei- seja, respectivamente, o que possibilita o sagrado e o
tados sacerdotes, os Ojés, que levam os pedidos da socie- desenvolve; o belo torna-se tudo cujo esforço e harmo-
dade e trazem as vontades e conselhos dos Babá, pois nia desvelam os ancestrais.
eles são os únicos que entendem de que os Babá falam. Cada galho, ramo e folha das árvores sagradas; cada
Tão bela são as varas sagradas que trazem na mão, pois assento de divindades e ancestrais; cada porta, telha,
são elas que guiam os Babá, os orientam no mundo, bloco de todas as edificações; cada espaço livre e fecha-
servindo ainda para separar os mortos dos vivos. do é individualmente belo em si mesmo, bem como é
Belo é o abrir do barracão, o amanhecer, a aurora, belo em suas inter-relações, no seu conjunto, que é a
o cheiro da terra molhada do orvalho, com a Casa de arquitetura do Omo Ilê Agboulá, já que ele é o que possi-
Xangô recebendo os primeiros raios do sol, nascendo na bilita a manifestação do sagrado, que torna possível a
soleira de sua porta; com Exu, em sua casa, atento na vinda dos ancestrais, os Egum, do orum para o aiê, que
entrada, montando guarda para que tudo ocorra bem, faz com que o axé dos Egum se preserve, se desenvolva
vigiando aqueles que estão indo embora, zelando-os lá e cresça para ser distribuído e usufruído por todos os
fora para que eles possam voltar. Belo é o Ilê Iá Ebé, com seus filhos.
as portas e janelas abertas, por onde as mulheres mais Todas as edificações do terreiro são muito simples
velhas entram para descansar depois de fazerem as co- do ponto de vista construtivo e formal para um primei-
midas, cantarem e dançarem para Babá. Belo é o con- ro olhar desatento, mas são todas extremamente belas,
tentamento, a satisfação e a harmonia de Onilê, Ogum pois vinculam harmonicamente um complexo sistema
e Iroco, a avistar de longe os filhos da casa que se vão cultural, singular, que tem na morte, no culto e no
após cumprirem suas obrigações com eles e os ances- amor aos ancestrais, no respeito à memória deles, a sua
trais. Belo é o portão do terreiro que se fecha, na certeza beleza fundamental.

{ 271 }
A morte e os Egum esquecimento este que leva à decadência do ser no
mundo, ou seja, um decair-se na cotidianidade. A mor-
O culto aos ancestrais do Omo Ilê Agboulá, o culto aos te, na modernidade ocidental, tem na impessoalidade a
Egum, constitui não apenas um culto aos mortos, àque- sua ferramenta tranquilizadora contra o sentimento de
les que já partiram, os ancestrais ilustres, mas é tam- angústia que lhe é inerente. O caráter e o teor público
bém uma festa à vida, um culto à vida, uma celebração da convivência cotidiana têm a idéia da morte como
da intensidade de fluxo de vida, porque, para os mem- uma ocorrência que sempre vem ao encontro como um
bros da sociedade de culto aos Egum, não existe o fim, a mero caso de morte.
morte como o final da existência, mas constitui apenas Esse ou aquele, próximo ou distante, morre.
a passagem para um outro nível e etapa da existência: Desconhecidos morrem todos os dias, a toda hora. A
morte vem ao encontro como um acontecimento co-
As pessoas vem aqui e pensam que o culto de Babá Egum é nhecido, que ocorre dentro do mundo. Como tal, ela
um culto da morte, dos mortos e dos nossos ancestrais, mas
pertence à não surpresa característica de tudo aquilo
o culto de Babá Egum também é uma celebração da vida,
que vem ao encontro da cotidianidade.
vida e morte são inseparáveis, porque os nossos Babás nos
A morte que é sempre própria, nossa, de maneira
garantem e nos mostram a continuidade da vida após a
morte, pois eles voltam para nos cuidar e zelar, mostram o
insubstituível, converte-se num acontecimento público
ciclo da vida e do renascimento, quando morre um de nós, que vem ao encontro do impessoal. A morte passa a
no momento da notícia ficamos tristes, mas depois ficamos ser um caso, a morte de alguém, do outro. Na impes-
alegres pois eles foram encontrar com os nossos ancestrais soalidade do âmbito público da cotidianidade, pensar
e em breve voltarão para nos encontrar, você precisa vê um na morte já é considerado um medo terrível e covarde,
enterro que é de um Ojé, ou de outro membro da religião uma insegurança da presença e uma fuga sinistra do
da gente, nós não ficamos desesperados, você vê no rosto mundo. O impessoal leva o ser no mundo à decadência.
das pessoas a serenidade.3 Tranquilização, alienação e fuga caracterizam, todavia,
o modo de ser da decadência. Decadente, o ser para
A morte no mundo ocidental, notadamente a
a morte cotidiana é um insistente escape e fuga dele
partir da modernidade, passou a ser algo esquecido,
mesmo. A própria presença de fato morre, ou seja, esse
fato fica escondido porque se transforma a morte num

3 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo


caso da morte dos outros, que ocorre de todos os mo-
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 08 de dos, em todos os dias, nos assegura com uma evidência
fevereiro de 2006.

{ 272 }
contundente e impactuante que ainda estamos vivos. com Ikú, é algo esperado, compreendido e dominado,
A morte é transferida para algum dia mais tarde. O im- uma passagem para um outro nível da existência. A
pessoal encobre o que há de característico na certeza morte não é o fim, mas a passagem, uma ponte, o en-
da morte, ou seja, que é possível a todo o instante. Para tre, o recomeço de uma outra vida, uma vida de outra
Heidegger, a morte é: natureza.
No culto aos Egum, a morte não é entendida como
Enquanto fim da presença, a morte é a possibilidade a ausência da presença, mas a morte é a presença fei-
mais própria, irremissível, certa e, como tal, indeter-
ta na ausência. O morto, o Egum, está “ausente” neste
minada e insuperável da presença. Enquanto fim da
mundo, no aiê, mas o está, temporariamente, e apenas,
presença, a morte é e está em seu ser-para o fim. [...]
enquanto ente físico. Todavia, está presente, a todo
A morte é, em última instância, a possibilidade da
impossibilidade pura e simples da presença. Desse instante, enquanto ser na memória, nas lembranças,
modo, a morte desvela-se como a possibilidade mais gestos, atitudes, atos, condutas, no corpo e nos com-
própria, irremissível e insuperável [...] Com isso, ganha portamentos diários de cada membro do culto aos
nitidez a delimitação frente a um mero desaparecer, ancestrais, que estão vivos no aiê, pois eles vivem em
a um mero finar ou ainda a uma “vivência” do deixar conformidade com as orientações, recomendações e di-
de viver. (HEIDEGGER, 2006, p. 325) recionamentos dos Egum que lhes dão um sentido de
ser e estar no mundo.
A morte, como uma experiência impessoal, não leva
Sua presença, que se dá na memória que passa de
ao esquecimento do ser nos membros da Sociedade de
geração em geração, subjugando o fluxo do tempo dos
Culto aos Egum do Omo Ilê Agboulá, mas, ao contrário,
vivos no cotidiano, é reavivada, torna-se ser, com a sua
forja o ser de cada um deles, porque os lembra da com-
própria presença vinculada à sua fala, palavras que
preensão da possibilidade e espera da própria morte,
saem do seu opá − indumentária − com o qual ele se
que o vincula ao mundo dos seus ancestrais. No culto
veste para se fazer presente.
aos Egum, o homem não se aliena na decadência de
E se faz presente nas festas públicas do Omo Ilê
uma fuga da morte, levando-o a ter uma vida “inau-
Agboulá, pois o Egum é um ser entre mundos, uma
têntica”. Mas eles enfrentam cotidianamente a morte,
presença constante que é visível nas festas públicas e
“lembram” a morte todos os dias, pois a morte, e os
invisíveis no cotidiano, mas que está sempre presen-
mortos, constituem um elemento fundamental da for-
te em ambos. Os membros da Sociedade de Culto aos
ma de ser no mundo deles, porque o encontro com ela,
Egum do Omo Ilê Agboulá “vencem” a morte, Ikú, por

{ 273 }
que impõem a ela a presença de seus ancestrais, solici- De acordo com os ritos, os panos (são o que) vemos,
tando a eles a sua presença, e estes, com grande alegria, (O que) vemos, (o que) vemos
lhes dão a honra e o júbilo de suas presenças. De acordo com os ritos, tiras de pano (são o que) vemos,
Não sabemos, pai. (SANTOS, 1981, p.163)
O tempo, o carrasco da memória e súdito da morte,
se dobra e se curva à vitória eterna da vida da mesma
Sob o opá está tudo e todos e, ao mesmo tempo,
forma que os vivos se prostram aos pés dos Egum. A
nada e ninguém, a saudade e a alegria, o fim e a imorta-
morte, a invocação dos Egum e as relações dos mortos
lidade, está a morte e a vida. Cada construção, elemen-
com os Ojés são os principais segredos dessa sociedade.
to natural e espaço que compõem a arquitetura do Omo
Ilê Agboulá também guardam e zelam seus segredos, são
O Omo Ilê Agboulá como um opá de opá de tijolos. São segredos guardados com grande ri-
tijolos gor através do silêncio e do olhar.
Aquelas construções, assim como os membros da so-
A arquitetura do Omo Ilê Agboulá vai muito além do que ciedade dos Egum, que cuidam dela, ora falam grandes
foi dito e apresentado neste trabalho, porque a arqui- histórias ora se calam. Elas cuidam de grandes segredos,
tetura de um templo de culto aos ancestrais é como as de saberes, conhecimentos, poderes, de edificar e habi-
roupas e indumentárias, o opá, dos Egum. O opá guarda tar um mundo, um mundo diferente onde os mortos
sob ele o segredo da morte, pois a morte e seus elemen- podem voltar para socorrer e cuidar de seus filhos.
tos não devem e não podem ser conhecidos. De forma Como o opá, essa arquitetura vence o tempo, en-
alguma nenhuma pessoa deve sequer procurar saber o frenta a morte, encara de frente Ikú, e guarda sob os
que existe sobre as tiras de pano do opá, não se pode seus panos de tijolos em retribuição àqueles que o bor-
nem tocá-las, ninguém sabe o que há sob os seus panos. daram, que o teceram, a sua memória. Sempre zelam
O segredo é a palavra de ordem do culto aos Egum, por suas histórias, suas proezas, seus feitos, por suas
o silêncio impera entre os membros do culto aos Egum, atitudes, palavras e gestos, fazendo com que todos que
conforme conta um provérbio iorubá: virão se lembrem deles. Ambos possuem a mesma obri-
gação: garantir a memória e a imortalidade da socie-
Gégé orò aso la ri,
dade e do indivíduo que pertence ao culto dos Egum,
La rí, la rí,
pois os seus filhos têm como obrigação cultuá-los e rea-
Gégé oró aso lèmon,
A ko mò Baba. lizar os seus desejos, assim como é demonstrado pelo

{ 274 }
provébio mais importante do culto aos Egum proferido [...] hoje agente tem que se abrir, abri a casa, sermos re-
por mestre Didi: conhecidos, valorizados para nos protegermos das Igrejas
Petencostais e conseguirmos retorno do Estado para ter di-
Iyá mi asese nheiro para a manutenção da casa e nossos projetos sociais
Bàbá mi asese a gente quer o reconhecimento da Fundação Palmares, o
Olorun mi asese tombamento do IPHAN, que os turistas venham aqui para
Gbogbo asese gerar renda para a população daqui que ta muito necessi-
Ti un àrá mi tada e desse jeito que ta ai não dá pra segurar a tradição o
Ki nto b culto, por que as pessoas vão embora em busca de emprego,
Orisa aiye o turista tem que vir, comprar, vê e ir até onde a gente deixar
para que a comunidade se desenvolva, aí quantos terreiros
Minha mãe é minha origem de Orixás já não foram tombados e feitas reformas na casa?
Meu pai é minha origem vários, e agente aqui? o mais importantes terreiro de Egum
Meu deus é minha origem do país não tem nada, agente precisa também para botar
Todas as origens em mim escola, posto de saúde, cursos de formação e treinamento
Adorarei antes de qualquer profissional, um lugar para as mulheres da comunidade fa-
Òrisa neste mundo. (SANTOS, 1997) zerem os artesanatos delas e vender, e por aí vai, nós aqui
temos uma frase que diz: meu pai é minha origem, minha
Esse opá de tijolos, que sempre troca as costuras e mãe é minha origem, meu deus é minha origem, adorarei
os panos, continua lutando para sobreviver, não fugin- pai e mãe antes de qualquer Orixás neste mundo, nós somos
do da repressão policial e da especulação imobiliária importantes e merecemos reconhecimento.4
como outrora; mas, agora, lutando contra a pobreza da
maioria de seus membros, contra a falta de perspecti- Numa quarta-feira, dia 25 de novembro de 2015,
vas, de trabalho e condições dignas de sobrevivência e, dia regido por Xangô, sob as bênçãos de Babá Agboulá,
principalmente, de reconhecimento e de respeito pela o Conselho Consultivo do Iphan, reunido em Brasília,
sua importância cultural para o país, além de enfrentar aprovou por unanimidade o tombomanto do terreiro
as perseguições e pressões dos cultos neopetencostais. de culto aos Egum – o Omo Ilê Agboulá - como patrimô-
Em virtude desta situação, e de sua importância no âm- nio cultural do Brasil.
bito dos cultos religiosos de matrizes africanas, é pedi-
do o seu tombamento na esfera nacional: 4 Informação fornecida por Balbino Daniel de Paula, Alabá do Omo
Ilê Agboulá em Ponta de Areia no município de Itaparica em 08 de
fevereiro de 2006.

{ 275 }
O orum teve seu dia de festa com Babá Olokutum,
Babá Agboulá, Babá Alapalá, Baba Erim, Babá Atilewa,
Babá Nilewo, Babá Amoro Mi Todo, Babá Bakabaká, to-
dos os Babás africanos e afro-brasileiros, Xangô trouxe
justiça aos filhos da casa de Agboulá.

{ 276 }
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{ 281 }
glossário

Abalá – Chapéu de Egum que pode ser quadrado e cir- Alá – Espécie de pano branco.
cular de onde saem várias tiras de pano. Alabá – Nome do sacerdote chefe de um terreiro de
Abá– pessoa idosa, velho, ancião, o mais velho. culto aos Egum.
Abadá – Amplo e longo blusão usado pelos homens Alabá Babá Mariô – Título honorífico do sacerdote
africanos. chefe do terreiro de Egum.
Abará – Bolinho de feijão fradinho, envolto em folha Alabê – Tocador de atabaque.
de bananeira. Alafim – Nome do rei de Oió na Nigéria.
Abébé – Leque da divindade. Alapini – Título do sumo sacerdote do culto aos ances-
Aboulá – nome de um Egum, ancestral ilustre. trais, é o sacerdote supremo de todos os terreiros de
Abô – Carneiro. Egum.
Acaçá – Bolo de arroz, moído e cozido servido em fo- Alaxé – Cozinheira.
lhas verdes de bananeira. Alé – Noite.
Acarajé – Comida sagrada dos Orixás, trata-se de uma Amuixã – Primeiro estágio da iniciação.
massa de feijão-fradinho. Ale – Noite.
Acu – Cerimônia inicial de coletivização de um ances- Ará – Corpo.
tral. Assento – Receptáculo do axé da divindade.
Adê – Coroa das divindades femininas. Atabaque – Instrumeto ritual de percussão.
Adié – Galinha. Atori – Pequena vara usada no culto de Oxalá.
Agô – Licença. Atoque – Ojé responsável por um Egum.
Agogô – Instrumento musical feito de ferro. Axé – Energia, poder, força da natureza.
Aiê – O mundo terrestre. Axêxê – Cerimônia fúnebre do candomblé.
Aja – Capainha, sino. Axogum – Ogã encarregado do sacrifício ritual.
Aku – Obrigação funerária. Babá – Pai, refere-se ao ancestral.

{ 283 }
Babá Egum – Nome ritual de Egum. Iansã – Divindade patrona dos ventos, relâmpagos, e
Babá Iaô – Babá cabloco, nome de um Egum cultuado senhora do mundo dos mortos.
no Omo Ilê Aboulá. Iá-Ebé – Título feminino de grande significação dos ter-
Babalaô – Sacerdote do culto de Ifá. reiros de Egum.
Babalorixá – Pai-de-santo. Ialorixá – Principal líder sacerdotal do culto aos Orixás.
Banté – Tira de pano da roupa de Egum onde ele guar- Ibalé – Casa de culto aos Egum.
da o seu axé. Ibó – Espaço onde se cultuam os mortos ilustres do ter-
Barracão – Local onde são realizadas as cerimônias pú- reiro.
blicas. Iemanjá – Divindade patrona das águas do mar.
Cabloco – Entidade indígena cultuada no Brasil. Ifá – Deus da advinhação.
Candomblé de Egum – Terreiro onde se cultuam os Ikú – Morte.
espíritos dos ancestrais. Ilê – Casa.
Candomblé de Orixás – Terreiro onde se cultuam os Ilê Auô – Casa do segredo.
Orixás nagôs. Ilé – Terra.
Despechar o santo – Ritual de mandar o santo embora. Iá – Mãe.
Ebé – Sociedade, a comunidade terreiro. Iabase – Cozinheira.
Ebo – Sacrifício ou oferenda. Ialaxé – Mãe do axé do terreiro.
Egum – Espírito ancestral. Ialode – Um alto título, lider entre as mulheres.
Egungum – O mesmo que Egum. Ialorixá – Mãe do orixá, zeladora do culto.
Egum Abá – Ancestrais antigos, africanos, líderes e Iaô – Nome dos iniciados antes de sete anos de inicia-
fundadores do povo nagô. ção despertar.
Exu – Divindade zelador dos caminhos, das oferendas, Iluaiê – África Mitica.
das mensagens, o Orixás das encruzilhadas. Iniciado – Pessoa que passou por rituais de iniciação
Filha-de-santo – Iniciada no candomblé. que a integram ao corpo e hierarquia das irmandades
Filho-do-terreiro – Membro iniciado da comunidade das comunidades da religião tradicional africana.
terreiro. Inquices – Santos do candomblé de Angola.
Fundamento – Conjunto de elementos secretos da or- Iorubá – Nome moderno da nação nagô.
ganização de um candomblé. Ixã - vara ritual de culto aos Egun utilizados pelos seus
sacerdotes.

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Jeje – Povo Fon do Benim. Omi – Água.
Jeje-nagô – Nação do culto tradicional afro-brasileiro. Omo – Filho, criança.
Jogo de Búzios – Prática divinatória. Omo bibi – Pessoa bem nascida.
Kékeré – Pequeno. Omo ilê – Filho da acsa, membro de um terreiro.
Lessém – Parte interna de um terreiro de Egum a que Omo Ilê Aboulá – Terreiro de Egum localizado no alto
tem acesso somente Ojés. da Bela Vista, em Ponta de Areia, em Itaparica, que tem
Mãe-de-santo – O mesmo que a Ialorixá. como patrono o Babá Aboulá.
Mariô – Tala do olho do dendezeiro desfiada utilizadas Onilê – Divindade dona da terra.
nas aberturas, portas e janelas. Opó – Pilastra, cetro, cajado.
Matança – Nome pelo qual é conhecido o ato de sacri- Ori – Cabeça.
ficar animais vivos. Orixás – Divindades que governam as forças da natu-
Nagô – Refere-se ao povo do antigo império africano reza.
cuja a capital política era Oió. Oriki – Nome atributivo em forma de frase ou poema.
Nanã – Divindade mãe de Omolu, Oxcumaré, e Exu. Ossaim – Divindade patrono das ervas.
Obrigação – Realização de preceitos e cerimônias litúr- Ossé – Preceitos semanais feitos aos Orixás e aos Egum.
gicas da religião afro-brasielira. Ossi – Lado esquerdo.
Odu – Caminho, destino. Otum– Lado direito.
Ogã – Título honorífico de protetor do candomblé po- Oxalá– O mais velho de todas as divindades, o mais res-
dendo ter funções rituais específicas. peitado.
Ogum – Filho de Oxalá com Iemanjá, deus da guerra. Oxossi – Divindade patrono da caça e da floresta.
Odudua – Divindade criadora da terra. Oxum – Divindade das águas doces, dos rios.
Ojé – Sacerdote do culto de Egum. Oió – Nome da cidade onde Xangô é cultuado na
Ojé Abá – Velho sacerdote do culto aos Egum. Nigéria.
Olocotum – Nome de Egum Abá, o nome do ancestral Padê – Cerimônia propriciatória de encontro da comu-
mais velho, cabeça do culto de Egum. nidade religiosa afro-brasileira sob a proteção de Exu.
Olocum – Orixá patrono do Oceano. Pai-de-santo – Lider sacerdotal, o mesmo que
Ojúbo – Lugar de adoração de Egum dentro do Lessém. Babalorixá.
Olorum – Entidade suprema, força maior, que está aci- Peji – Altar.
ma de todos os orixá, todas as divindades. Quartinha – Pequeño Vasilhame de Barro.

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Quarto de santo – Local onde se encontram as repre-
sentações simbólicas dos Orixás.
Roda dos santos – Dança coletiva dos Orixás.
Santo – O mesmo que Orixá.
Terreiro – Todo espaço da comunidade religiosa afro
-brasileira, o mesmo que casa do axé.
Xangô – Divindade relacionado com o fogo, o raio, o
trovão.
Xirê – Festa, brincadeira.

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PROPOSTAS ARQUITETÔNICAS
PARTICIPATIVAS DE REFORMA DO
TEMPLO OMO ILÊ AGBOULÁ

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Planta 1: Planta de situação do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

{ 289 }
Planta 2: Planta baixa do espaço do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

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Planta 3: Perspectiva do espaço profano do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

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Planta 4: Portões de entrada do espaço profano e sagrado do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

{ 292 }
Planta 5: Planta baixa do barracão e do Léssem do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

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Planta 6: Vista 1 a fachada frontal do barracão do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

{ 294 }
Planta 7: Porta de entrada do barraco do Omo Ilê Agboulá
Fonte: elaborado pelo autor.

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Planta 8: Detalhes dos pilares do barracão
Fonte: elaborado pelo autor.

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Este livro foi publicado no formato 25 x 21 cm
utilizando as fontes Swift e Scala Sans
Miolo impresso em papel Off-Set 75 g/m2 pela EDUFBA
Capa impressa no papel Cartao Supremo 300 g/m pela Cian Gráfica
Tiragem de 300 exemplares

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