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Resumo
O Brasil tem se incorporado tardiamente como ator antártico. Originalmente ligado a potenciais interesses territoriais e
estratégicos, o Brasil foi adaptando a sua posição à um maior alinhamento com o acordo do Tratado Antártico, deixando
de lado a gênese “territorialista”. Porém, importantes resquícios dessa gênese subsistem até hoje condicionando o
desenvolvimento de uma política orientada unicamente à pesquisa científica. Partindo de fontes acadêmicas e debates
parlamentários sobre a questão antártica, o presente artigo analisa como, mesmo que a posição oficial brasileira seja de
completo alinhamento com o Tratado Antártico, ainda subsistem traços de “territorialismo”, presentes tanto na
produção acadêmica, quanto em setores específicos do debate político e das forças militares. Esses traços não podem ser
confundidos com uma orientação territorial brasileira, mas marcam um caráter específico e uma dinâmica particular ao
interior da política antártica brasileira que não pode deixar de ser considerada.
Apresentação
O presente trabalho expõe os resultados parciais de uma pesquisa que visa determinar
elementos condicionantes da Política Antártica Brasileira (PAB) a partir de dimensões ideológicas e
culturais. Este work in progress2 integra uma agenda de pesquisa mais ampla sobre a PAB que
pretende cobrir várias lacunas importantes detectadas na produção acadêmica sobre a questão, e
aportar uma visão mais objetiva e menos influenciada pelo discurso oficial.
Especificamente, o presente artigo analisa os traços do que é chamado aqui de
territorialismo antártico brasileiro ao interior da PAB, particularmente no que se refere às posições
das autoridades públicas no debate político e a produção acadêmica sobre a questão. O intuito é
poder rastear essas improntas, compreendendo a forma na qual tais princípios e posições se
articulam ao interior da definição de uma política brasileira para Antártida.
A escolha de essa perspectiva de análise nos remete necessariamente à utilização de um
marco teórico construtivista, já que a ênfase está dada pela forma na qual fatores ideológicos e
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Estudante de Doutorado do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP/Brasil).
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Paraná (UFPR/Brasil). Bacharel em Ciência Política pela
Universidade de Buenos Aires (UBA/Arg.). Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da
Universidade Federal de Paraná (NEPRI/UFPR) e do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade
de São Paulo (NUPRI/USP). E-mail: icardone@usp.br. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP).
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O presente trabalho foi possível graças ao aporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP) a través do processo 2015/05909-2 em convênio com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES).
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Pelo caráter inacabado do trabalho aqui apresentado, os resultados aqui descritos se limitam ao estabelecimento de
algumas linhas gerais detectadas a partir do trabalho empírico e teórico. Ficam pendentes o esgotamento das fontes e a
sistematização da informação para o estabelecimento de conclusões mais contundentes.
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Não estamos afirmando que o construtivismo se limite ao estudo do nível doméstico, mas simplesmente especificando
que nosso recorte analítico se limita a esse nível.
A Teoría da Defrontação
O Brasil tem se incorporado tardiamente na questão antártica. A exceção de colaborações
materiais em expedições antárticas como a expedição belga comandada por Adrien de Gerlache e a
expedição francesa de Jean Baptiste Charcot, as primeiras manifestações brasileiras de interesse
sobre o continente branco apareceram a meados dos anos de 1950 com a elaboração do que foi
conhecido como “teoria da defrontação” por parte de professores vinculados ao Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), especialmente: Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro.
A chamada “teoria” parece ter se desenvolvido como reação à organização do Ano
Geofísico Internacional (AGI), o qual era visto pelos referidos pensadores como uma cúpula
destinada à partilha da Antártida. Essa ideia se evidencia no paralelismo que os citados autores
estabeleceram entre o AGI de 1957-1958 e a Conferência de Berlim de 1884-1885 –que determinou
as condições para a partilha da África entre as potências coloniais da época (CARVALHO e
CASTRO, 1956, p. 503).
Em função dessa situação, percebida como uma janela de oportunidades para o
envolvimento antártico, os autores chamavam ao país a assumir um papel ativo que o colocara em
igualdade de condições com os países envolvidos, considerando que o Brasil contava com
fundamentos jurídicos de igual peso4 que os países reivindicantes de territorio antártico: “No
momento atual, o Brasil está em condições de reivindicar direitos, cujos fundamentos jurídicos são
tão sólidos como as bases que pode invocar qualquer outra potência. ” (CARVALHO e CASTRO,
1956, p. 503).
Como justificativa política, tanto interna quanto externa, estes autores afirmavam a
importância, largamente negligenciada, da Antártida para o Brasil. Tal importância se manifestava,
principalmente, em motivações de índole geoestratégica. A região era destacada como ponto
neurálgico da navegação marítima interoceânica, realçando a importância da sua posição para a
defesa do atlântico sul e perante de uma possível “guerra climática” que, eventualmente, poderia vir
ocorrer quando os avanços tecnológicos assim o permitissem.
As duas orientações contendentes na Política Exterior Brasileira, os americanistas e os
nacionais independentistas (LIGIERO, 2011) aparecem combinadas nessa posição. Por um lado,
preocupados com a ameaça comunista soviética e estabelecendo a problemática como uma questão
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O principal fundamento jurídico sustentado por tais autores foi o Tratado de Tordesilhas de 1494.
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A formulação da “Teoria da Defrontação” gerou posteriormente grande impacto na imprensa e produção acadêmica
Argentina e Chilena com reações claramente negativas. Para algumas dessas reações VER: MASTRORILLI, C. Brasil y
la Antártida: A Propósito de la tesis de Therezinha de Castro. Estrategia. Instituto Argentino de Estudios Estratégicos y
de las Relaciones Internacionales. Buenos Aires: n.43-44, Nov-Dez 1976/Jan-Fev 1977, p. 112-118, e GREÑO
VELASCO, J. E. La adhesión de Brasil al Tratado Antártico. Revista de Política Internacional. Instituto de Estudios
Políticos. Madrid: n.146, Jul-Ago 1976.
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Essa posição é consonante com a orientação da Política Exterior Brasileira a partir do Lançamento da Operação Pan-
Americana por parte do Governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Sobre a OPA VER: LIGIERO, Op. Cit., 2011,
pp.67-75; e PINHEIRO, L. Política externa brasileira, 1889-2002. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp.31-32.
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Um claro exemplo disto é a influência que o pensamento da Teoria da Defrontação teve nas posições do Deputado
Federal Eurípide de Menezes, um dos maiores promotores do territorialismo antártico brasileiro no Congresso e férreo
opositor à adesão do Brasil ao Tratado Antártico (FERREIRA, 2009, p. 123-124).
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Os teóricos da Defrontação negavam a tesis de continuidade geográfica postulada por Argentina e Chile e afirmavam a
tese de cercania relativa, já que, segundo estes autores, a distancias de todos os países era o suficientemente vasta como
para derrubar qualquer tese de continuidade. A ideia de fundo é a de que o Brasil está relativamente tão perto (ou ainda
mais) do que qualquer outro país reivindicante.
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Basicamente, se interpretava que em 1991 o Tratado Antártico deixaria de ter vigência e se realizaria uma Cúpula que
decidiria sobre o critério de divisão da Antártida. Porém, como Ferreira afirma, essa interpretação era substantivamente
errónea (FERREIRA, 2009).
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Vale aclarar que essa “dualidade” não é exclusiva nem original da Política Antártica Brasileira. Interpretações de que
as atividades antárticas, mesmo durante a vigência do Tratado Antártico, constituem fundamento das reivindicações
territoriais, se encontram presentes nas justificativas das atividades antárticas Argentina e Chilenas. A tal ponto essa
dualidade está presente nestes dois últimos, que ambos os países têm instalado populações civis, sem finalidade
científica, logística, ou econômica; a modo de quase-colônias antárticas.
Cabe salientar que a posição da ciência na primeira operação antártica, assim como na
escolha do local para a instalação da base de operações antárticas Comandante Ferraz (EAFC),
tiveram um papel meramente instrumental aos objetivos políticos da POLANTAR. Nessa
oportunidade a pesquisa científica cumpria um papel meramente secundário (GANDRA, 2013, p.
101-104).
Nos anos seguintes, o Brasil completou o processo de inclusão ao STA a partir da sua
incorporação no Comitê Cientifico de Pesquisa Antártica (SCAR-Scientific Committee for Antarctic
Research) e a adesão aos diferentes acordos complementares ao Tratado, a CCAMLR (Convention
on the Conservation of Antarctic Marine Living Resources) e a CCAS (Convention for the
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Segundo Ferreira, o desenvolvimento por parte da Índia de atividades científicas na Antártida sem autorização do
SCAR e uma nova apresentação da questão antártica na AGNU, desta vez por parte da Malásia, precipitaram a
incorporação da Índia e do Brasil como Membros Consultivos como forma de neutralizar as críticas ao STA
(FERREIRA, 2009, p. 137-138).
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De fato a nosso entender, e ao contrário do afirmado por FERREIRA (2009), a pronta incorporação à CCAMLR e a
demora na adesão a CCAS não se justifica pela consideração de que a CCAS constituísse uma letra morta, mas muito
pelo contrário, porque o Brasil estava considerando a possibilidade de exploração de recursos naturais vivos
(particularmente a partir da pesca e recolecção do krill) para o qual precisava de um enquadramento institucional a
modo de não contradizer a sua participação no TA, enquanto não tinha perspectivas econômicas vinculadas com a caça
de focas regulamentada pelo CCAS.
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A nossa interpretação aqui também é contrária à de Ferreira (2009), que considera a criação da Frente como um sinal
da importância política do Programa. Todavia, para nós, a geração da Frente sinaliza a falta de importância política do
Programa e a necessidade de recorrer a tais manobras para garantir a sua sobrevivência.
4. Conclusões
Neste trabalho temos mostrado como importantes características da PAB foram formatadas a
partir do pensamento que denominamos de territorialismo antártico brasileiro. Também pudemos
observar como esses traços foram se adaptando às mudanças experimentadas na PAB,
determinando, em alguns casos, seu desaparecimento; em outras, seu confinamento a espaços
secundários; e, em outras, sua sobrevivência baixo novas formas.
Particularmente, a justificação da atividade antártica, pontualmente a atividade científica,
como meio de fortalecimento dos direitos brasileiros na antártica, resulta um claro ressabio do
territorialismo, descompassado da realidade atual, tanto da PAB, quanto do STA. A necessidade de
validação das atividades científicas brasileiras na Antártida a partir de interesses econômicos
também se presenta como uma adaptação da posição territorialista, e desvirtua a possibilidade de se
pensar uma agenda brasileira antártica mais ampla e estratégica, no sentido científico da palavra.
Segundo Gandra:
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A interpretação do autor resulta errônea, toda vez que o Tratado exclui especificamente essa possibilidade. Nas
posições posteriores deste autor, essas considerações parecem ter desaparecido, mas a sua presencia nos escritos mais
precoces são indicativos da influência dessa visão, inclusive na academia brasileira.
A crescente autonomia do campo científico analisada por Gandra (2013) não se traduz, a
nosso entender, em uma real influência política. A falta de legitimidade autorreferenciada -isto é,
sem necessidade de se refletir em objetivos econômicos ou políticos- faz com que o Programa
Antártico tenha diminuído a sua importância ao interior da definição da Política Externa do Brasil.
A desarticulação do funcionamento da CONANTAR a partir de 2007, a escassa estrutura dedicada à
questão no Ministério das Relações Exteriores, a necessidade de debate contínuo sobre a viabilidade
orçamentária do programa (CARDONE, Mai 2014) entre outros, levantam sérios interrogantes
sobre o futuro da participação brasileira na Antártida.
A presença de uma dinâmica ligada ao pensamento do territorialismo antártico brasileiro
parece impedir a geração de uma estratégia de legitimação do envolvimento brasileiro na Antártida
mais consonante com os interesses científicos e com a etapa de desenvolvimento científico atual do
Brasil, que acompanhe de modo mais coerente a evolução que o próprio STA tem experimentado
nas últimas décadas. Paradoxalmente, uma visão menos territorialista e mais sensível às
necessidades de desenvolvimento científico, permitiria a geração de uma política antártica mais
expansiva, fortalecendo a presença do Brasil e reforçando seu capital científico, social e simbólico.