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doi: 10.28976/1984-2686rbpec2018181331
Introdução
As pesquisas sobre livros didáticos ganharam espaço na produção acadêmica
brasileira há cerca de quarenta anos (Garcia, 2017). Elas abarcam uma grande variedade
não somente de temas (os assuntos específicos de cada disciplina), mas também de
problemas de pesquisa, envolvendo questões como currículo, papel do livro didático,
visões epistemológicas, erros historiográficos e conceituais, recursos, entre outros. No
cenário internacional, desde a publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas (Kuhn,
1978), o “manual de instrução” é reconhecido como um elemento importante da cultura
científica, capaz de “transmitir” os problemas exemplares às gerações subsequentes de
pesquisadores e iniciá-los no paradigma de sua área.
A descrição kuhniana sobre o livro didático “alertou” os pesquisadores de
Educação em Ciências com relação ao problema das “distorções historiográficas”
presentes nos livros didáticos, as quais resultam na defesa implícita de uma visão
epistemológica em consonância com o paradigma vigente (Brush, 1974). A partir de tal
visão, muitos estudos foram desenvolvidos, contrastando a História da Ciência com as
pseudo-histórias dos livros didáticos (Siegel, 1979; Allchin, 2004), mostrando que um
viés positivista é responsável por variações discursivas presentes nos livros (Kincheloe,
& Tobin, 2009) tais como omitir premissas metafísicas (Silveira, 2002), supervalorizar
o papel dos dados empíricos na construção de uma teoria (Silveira, & Ostermann,
1 Wertsch (2004) adota uma noção mais ampla de texto, como manifestação discursiva (oral ou escrita), sendo
esses “textos” aqueles que medeiam o que ele chama de memória coletiva ou, como o autor ressalta, lembrança
coletiva. Segundo essa perspectiva, lembrança (ou memória) não são ações realizadas por um indivíduo isolado,
mas sim ações mediadas por recursos textuais socialmente compartilhados. Tais recursos podem estar inseridos
em um contexto temporal e/ou espacial amplo.
2 Voz é a personalidade falante, a consciência falante (Wertsch, 1992). A voz sempre tem uma vontade ou desejo
por trás de si, seu próprio “timbre” e “sobretom” (Bakhtin, 1981, p. 434).
3 “Hibridização é a mistura, dentro de um único enunciado concreto, de duas ou mais consciências linguísticas,
frequentemente vastamente separadas no espaço e no tempo social.” (Bakhtin, 1981, p. 429)
somente sobre a própria história social, mas também sobre a natureza, visto que esses
dois elementos não podem ser dissociados (Latour, 1999).
A partir de tal concepção, é possível mostrar que os processos de reelaboração de
uma determinada produção científica, tensionando e variando os sentidos dos conceitos
e das equações, aparece, também, nos artigos científicos e não é um privilégio dos livros
didáticos. Isto é, o sentido e a história do fóton são múltiplos tanto na produção científica
quanto na produção didática.
Para explicitar tais relações, primeiramente, apresentamos uma breve história do
fóton, baseada na bibliografia de Max Jammer (1974), por meio da qual ressaltamos os
processos discursivos de reelaboração do sentido nos artigos científicos, os quais são
interpretados como processos de tradução (Callon, 1986; Latour, 1999). Ao longo de
nossa narrativa, discutimos como a visão ontológica e epistemológica sobre o fóton varia
ao longo da história e mostramos que a ressignificação de artigos científicos não é um
privilégio dos livros didáticos, mas um elemento presente em todo processo discursivo.
Nessa perspectiva, nossa própria narrativa não é um espelho da realidade histórica; mas
uma possível construção que dialoga com os artigos científicos e os livros didáticos
simetricamente.
A escolha desse tema se deve, primeiro, pela relevância que a literatura vem
atribuindo para a introdução de Física Quântica no Ensino Médio (Ostermann, &
Moreira, 2000; Silva, & Almeida, 2011) e, segundo, porque Física Quântica é introduzida
nos livros didáticos do PNLDEM através de uma abordagem cronológica (Lima,
Ostermann, & Cavalcanti, 2017), o que a torna um tema propício para uma pesquisa
que busca analisar questões historiográficas a partir da Sociologia Simétrica4.
De acordo com a literatura de Filosofia da Física Quântica (Bunge, 2013; Jammer,
1974, Pessoa Jr., 2003), a interpretação de uma teoria corresponde a um conjunto de
teses que se agrega ao formalismo mínimo de uma teoria científica, e que em nada afeta
as previsões observacionais da teoria. O livro “Conceitos de Física Quântica” (Pessoa Jr.,
2003), por exemplo, apresenta diferentes experimentos mentais com o Interferômetro de
Mach-Zehnder para explorar a dualidade onda-partícula e as diferentes interpretações que
ela suscita. Pautado na obra de Jammer (1974), Pessoa Jr. (2003) divide as interpretações
do fóton em quatro grupos (corpuscular, ondulatória, dualista realista e intepretação
de Copenhague). Ainda que o formalismo matemático usado e o experimento sejam
o mesmo, essas quatro interpretações divergem quanto à explicação do que está sendo
observado e descrito matematicamente.
Tal definição é necessária para que possamos especificar que o escopo da pesquisa
abarca as interpretações da teoria, isto é, estamos interessados em analisar como os livros
didáticos enunciam a teoria, com qual visão de mundo (ontológica e epistemológica)
4 A maioria dos textos didáticos de Física não trata a ciência sob um viés cronológico; mas postulacional. Em
tais casos, a história é colocada em um plano secundário, e uma análise historiográfica do tema apresentado no
texto didático fica comprometida. No caso da Física Quântica, entretanto, a estrutura do texto didático busca
seguir a própria história dos artigos originais, hibridizando o ensino da Física com o de sua história. Ao investigar
os aspectos sociológicos envolvidos em tal apresentação, conseguimos, ao mesmo tempo, discutir a Física e sua
história, cruzando as fronteiras entre natureza e sociedade, como se espera de uma pesquisa latouriana.
Referencial Teórico-Metodológico
O presente trabalho lida com questões relacionadas à natureza da Ciência e da
Educação em Ciência por meio da análise de textos científicos e didáticos. É necessário,
portanto, valer-se de um quadro teórico que dê conta não só de questões epistemológicas
e sociológicas; mas, também, da natureza e do papel da linguagem. Por tal motivo,
propomos uma articulação de conceitos da Sociologia Simétrica de Bruno Latour e da
Filosofia da Linguagem de Mikhail Bakhtin. Enquanto Latour tem sua obra dedicada
a estudar a prática científica (abordando problemas ontológicos, epistemológicos e
sociológicos), Bakhtin apresenta uma profunda e complexa Filosofia da Linguagem,
cujo escopo transcende os limites da própria linguagem, o que, frequentemente, torna
sua obra classificada como metalinguística6. Apresentamos, nesta seção, os elementos
das filosofias de ambos autores que foram utilizados no presente trabalho.
Sociologia Simétrica de Bruno Latour: Atores, Performances e Tradução
A proposta de Bruno Latour se destaca por contrapor-se àquilo que o autor
denomina descrição moderna da realidade, a qual separa natureza e sociedade em polos
ontológicos independentes, sendo a linguagem o seu possível elo de conexão (mas sem
se hibridizar com eles) (Latour, 2013). A Sociologia Simétrica de Latour, por outro
lado, assume que nem a natureza, nem a sociedade são realidades objetivas, acabadas,
independentes; mas que, a todo momento, natureza e sociedade são estabilizadas pela
5 Estudos semelhantes para livros do Ensino Superior podem ser encontrados, tanto para intepretações do
fóton (Lima, Antunes, Ostermann, & Cavalcanti., 2017b) como para questões historiográficas do fóton em livros
didáticos (Lima, Antunes, Ostermann, & Cavalcanti., 2017a, 2017c).
6 Latour (2013) critica duramente os estudos discursivos, ou, como ele chama, “o Império dos Signos” (Latour,
2013, p. 63), pois esses dissolvem os polos ontológicos da natureza e da sociedade, reduzindo a realidade a efeitos
do discurso. Bakhtin, embora seja um filósofo da Linguagem, não reduz a realidade à linguagem. Pelo contrário, a
materialidade dos signos e, portanto, de toda construção ideológica, aparece em uma das obras seminais do Círculo
de Bakhtin (Bakhtin, 2006), e o coração de sua metalinguística reside na possibilidade de articular o discurso verbal
com a sociedade e a cultura (externa ainda que interdependente ao discurso) (Bakhtin, 2016, 2017). Portanto, a
crítica de Latour não recai sobre a obra de Bakhtin. Ademais, ainda que Latour critique a vertente semiótica do
mundo moderno, ele próprio se vale de estudos discursivos e semióticos em diferentes obras. Pode-se citar, por
exemplo, um estudo sobre o uso de referências em artigos científicos como forma de blindagem social do trabalho
de pesquisa (Latour, 2011), uma tipologia de enunciados que são usados no processo de estabilização de um fato
científico (Latour, & Woolgar, 1997), um estudo sobre a inter-relação entre tecnologia e signos (Latour, 1999),
um estudo semiótico sobre um livro de Albert Einstein (Latour, 1988) e um estudo sobre a retórica de artigos
científicos (Latour, & Fabbri, 1977). Tais elementos semióticos e discursivos na obra de Latour, entretanto, são
usados de forma dispersa e desconexa, de forma que não é possível determinar sua visão de linguagem de forma
completa e organizada. Isto justifica a necessidade de trazer elementos da Filosofia da Linguagem de Bakhtin para
o presente trabalho.
mas translação, deriva, invenção, mediação, a criação de um link que não existia antes e
que em algum grau modifica os dois actantes” (Latour, 1999, p.179).
Latour exemplifica tal conceito para o caso de uma pessoa portando uma arma.
Um defensor de uma visão puramente sociológica (e ingênua) diria, “armas não matam,
homens matam.” – ou seja, quem atua é o homem, a arma só é um instrumento da ação
humana sem agência alguma. Por outro lado, uma posição extremamente materialista
(igualmente ingênua), por exemplo, colocaria o homem como subserviente à arma: nós
nos tornamos instrumentos da instrumentalidade (Latour, 1999). A visão de Latour não
é nenhuma dessas duas posições. Uma arma sozinha não pode matar. Um homem (sem
uma arma) pode sentir vontade de ferir outro homem, mas não ser capaz de matá-
lo. Entretanto, quando o homem com vontade de ferir possui uma arma em sua mão,
surge uma incerteza sobre a possível ação que ele pode tomar. Isoladamente, nenhum
dos actantes tinha a performance matar disponível. O actante homem-arma, contudo,
tem essa possibilidade ao seu alcance. Tal processo de incerteza sobre objetivos e
performances é o que se chama de tradução. Observa-se que a tradução é um conceito
usado para descrever a associação entre dois actantes quaisquer (sejam eles humanos ou
não-humanos). No caso da arma, a natureza da tradução é não-verbal; entretanto, pode-
se ter um caso em que o processo de tradução envolve, também, elementos semióticos.
Isso é exatamente o que acontece no caso da prática científica (Latour, 1999). Em
cada etapa de tal prática, o actante estudado funciona como um signo da etapa anterior e
como matéria bruta para a próxima etapa (ou seja, ele é um híbrido de matéria e signo).
Tal híbrido, em cada etapa, é associado a outros actantes, resultando na tradução de um
novo híbrido com novas performances. Embora o actante formado em uma etapa não
espelhe o actante anterior, existe uma relação entre eles. Isto é representado na Figura 1.
1999). Se alguma das traduções feitas for inconsistente com o restante da cadeia, todo o
processo pode ficar comprometido.
A concepção de Latour, portanto, não pode ser considerada relativista, pois é
possível avaliar a realidade de um determinado actante pela extensão e pela estabilidade
da cadeia que ele mobiliza. Quanto mais extensa e estável for a cadeia de traduções, mais
real aquele actante se torna (Latour, 1999). Um dos objetivos da Sociologia Simétrica é
investigar a cadeia de traduções, traçando as relações entre todos os actantes envolvidos,
sejam eles humanos ou não-humanos, cruzando as fronteiras entre natureza, linguagem
e sociedade quantas vezes for necessário.
Observa-se, ainda, que, ao final de uma longa cadeia de traduções da prática
científica, tem-se a produção de um artigo científico. O artigo é, nesse sentido, mais um
elo na cadeia de traduções realizadas pelo cientista. A partir de tal texto, novos textos
podem ser produzidos, dando sequência à cadeia de traduções, pois cada novo texto
traduz os textos anteriores.
Um texto de história da ciência, por exemplo, jamais será um espelho da “história
da ciência real”, da mesma forma que o “conceito de fermento” não pode ser um espelho
do “fermento real”. O livro de história traduz os artigos originais, da mesma forma que
cada etapa do processo científico traduz o actante anterior. Neste trabalho, apresentamos
uma análise de como artigos científicos traduzem outros artigos científicos e como
livros didáticos traduzem artigos científicos, mostrando as incertezas e as variações
que surgem a cada nova etapa. Como a natureza dessas traduções é intrinsicamente
discursiva, adotamos um quadro teórico capaz de aprofundar tal questão: a Filosofia da
Linguagem de Bakhtin (1997; 2016; 2017).
Filosofia da Linguagem de Bakhtin: Signos e Dialogia
Uma das características que distingue a produção intelectual de Bakhtin em
relação às demais vertentes de estudo do discurso de sua época é a proposição de uma
teoria materialista sobre a construção ideológica (conhecimento científico, religioso,
moral, etc.), isto é, que não separa a construção ideológica da matéria. A visão platônica
de que existe um mundo das ideias apartado do mundo material é impossibilitada por
Bakhtin na medida em que “tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe
ideologia” (Bakhtin, 2006, p.29) e
“os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto
natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido
que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não existe apenas como parte
de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra.” (Bakhtin, 2006, p.30).
Assim, as construções ideológicas só são possíveis a partir do signo e esse,
para Bakhtin, é um corpo natural (material) cujo sentido ultrapassa suas próprias
particularidades, refletindo e refratando outra realidade. Um pingente metálico no
formato de uma estrela de seis pontas, por exemplo, é ao mesmo tempo um corpo
natural e um signo, uma vez que remete a algo externo à própria estrela, nesse caso, o
Judaísmo. A relação entre estrela de seis pontas e Judaísmo, entretanto, não pode ser
considerada unívoca. Nem todas pessoas tem a mesma relação seja com o signo ou com
a realidade a que ele remete. Existe uma incerteza envolvida nessa relação. Assim, não se
pode considerar que o signo reflita (corresponda) univocamente à realidade; mas que,
também, a “distorce” (refrata). Observamos que essa noção vai ao encontro da visão de
mundo latouriana, para a qual signo e matéria são indissociáveis e para a qual a relação
entre um signo e aquilo que ele significa sempre envolve a existência de variações e
incertezas.
Outro ponto importante que destaca a obra bakhtiniana em relação às outras
vertentes do discurso é que Bakhtin não está preocupado em estudar a língua encerrada
nela mesma (perspectiva predominante na Linguística de Saussure); mas os atos
concretos de comunicação. Nesta perspectiva, a comunicação verbal é composta por
uma parte verbal propriamente, mas também por uma parte extraverbal, não exprimida,
mas subentendida (Voloshinov, 1981) cujo conhecimento é condição indispensável para
que se possa fazer sua interpretação.
Se não considerarmos a dimensão extraverbal, a dimensão verbal não pode ser
compreendida. Por exemplo, uma expressão verbal como “Que pena!” pode adotar
diferentes sentidos dependendo da situação em que está sendo expressa, podendo indicar
tristeza (após ouvir um relato triste) ou ironia (após ouvir uma história supostamente
triste). A análise de discurso passa, portanto, inevitavelmente por um reconhecimento
do contexto extraverbal. Tal contexto pode ser pensado em um sentido mais direto
(como o contexto em que a comunicação está ocorrendo), principalmente, quando se
fala de um ato de comunicação oral. Mas, como no caso do presente estudo, quando
interpretamos textos (Wertsch, 2004), o contexto é dado por um conjunto de outros
textos que dialogam entre si (Bakhtin, 2017). Para interpretarmos o sentido de um texto,
podemos investigar, primeiramente, a que gênero do discurso ele pertence e qual sua
relação com a esfera de ação humana em que é realizado; mas, também, com que outros
textos (do mesmo gênero do discurso ou não) ele dialoga.
Cada campo de atuação humana, dependendo de seus objetivos e condições,
lida com estruturas discursivas relativamente estáveis, o que chamamos de gênero do
discurso. Sabemos, por exemplo, que o gênero de artigos científicos de Física aceita
textos com tema, estrutura e estilo9 relativamente determinados. Se alguém submeter
um texto com um tema, estrutura ou estilo diferente do que é esperado, provavelmente,
o artigo não será aceito. Assim, antes de produzir um artigo, o locutor já sabe quais
possíveis temas, estruturas e estilos podem ser mais adequados. Em uma análise
discursiva, pode-se fazer o processo reverso: identificamos o tema, a estrutura e o estilo
do texto e, a partir disso, inferimos características do campo de atuação em que o texto
foi apresentado. Por exemplo, a partir do estilo do discurso citado, pode-se inferir se
determinado contexto tem tendências mais autoritárias (quando os limites do discurso
citado são bem demarcados) ou liberais (quando o discurso citado se dissolve no
discurso do locutor) (Bakhtin, 2006).
9 Estilo refere-se às escolhas lexicais, gramaticais e fraseológicas realizadas pelo autor (Bakhtin, 2016).
Ao mesmo tempo que o autor organiza seu texto pensando no campo de atuação
em que ele está inserido, ele não o constrói a partir de um vazio absoluto, mas o faz em
dialogia com textos anteriores que já presenciou.
Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque
ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e
pressupõe não só a existência do sistema de língua que usa mas também de alguns
enunciados antecedentes – dos seus alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas
ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já
conhecidos do ouvinte) (Bakhtin, 2016, p.26).
Assim, cada texto só existe em sua relação dialógica com textos anteriores e,
também, antecipando a resposta que espera causar no seu campo de atuação. Interpretar
um texto exige, portanto, traçar essas relações dialógicas, aproximando o texto de outros
textos (Bakhtin, 2017), um trabalho potencialmente infinito: “O objeto das ciências
humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é
inesgotável em seu sentido e significado.” (Bakhtin, 2017, p. 59). Isso, portanto, explicita
outro caminho de análise do discurso para Bakhtin. Alguém que estudou Epistemologia,
por exemplo, pode ler um texto científico e polemizá-lo a partir de suas leituras prévias,
concordando, discordando, duvidando, de diferentes perspectivas que o texto científico
pode apresentar. Nesse processo, o leitor está construindo uma interpretação sobre
o texto, ou seja, criando um novo sentido para algo que é materialmente limitado
(Bakhtin, 2017). Toda leitura, toda interpretação, nesse sentido é ativa, é prenhe de
resposta (Bakhtin, 2016). Além da análise estilística, que permite entender a relação do
texto com o seu campo de atuação, interpretar um texto é aproximá-lo de outros textos,
explicitando as relações dialógicas entre eles.
Metodologia
Não se pode esperar uma sobreposição integral entre as filosofias bakhtiniana e
latouriana. Como já mencionamos, enquanto Latour se preocupa em descrever a prática
científica, Bakhtin ergue sua concepção de linguagem a partir de estudos literários.
Apesar disso, elementos das obras de ambos autores apontam na mesma direção. Ambos
apresentam uma filosofia antiplatônica, fundindo os signos com a matéria. Em tal
concepção, o signo se relaciona com a realidade de forma incerta e imprecisa, refletindo-a
e refratando-a (em termos bakhtinianos) ou traduzindo-a (em termos latourianos).
Ainda, a proposta de Latour é estudar uma determinada prática sem fragmentar
natureza, sociedade e linguagem, enquanto a metalinguística bakhtiniana permite,
analisando a linguagem, falar sobre elementos extralinguísticos. Tais tangenciamentos
permitem-nos explorar o discurso de livros didáticos, investigando como eles dialogam
e traduzem artigos científicos e quais implicações isso traz tanto para a natureza quanto
para a sociedade.
Neste trabalho, o objeto de estudo são os capítulos de Física Quântica dos
livros aprovados no PNLDEM-2015. Queremos entender como cada texto traduz as
interpretações do fóton presentes nos artigos originais de Física Quântica. Quando o autor
do livro didático fala sobre o fóton, não pode se esperar uma relação de correspondência
entre sua visão e a dos artigos originais, mas é natural que haja translações de objetivos,
de visões de mundo (ontológica e epistemológica) e de linguagem. Queremos saber
quais translações são essas e como elas ocorrem. Quais as relações dialógicas existentes
entre todos esses textos?
O que estamos fazendo, portanto, é interpretar os artigos originais e interpretar os
livros didáticos. Ou seja, este artigo também é um texto, sujeito a todas as características
e condições discutidas anteriormente. Isto significa que nossa visão não é a Verdade,
mas é um relato (interpretativo) dos artigos e dos livros didáticos. Em resumo, deve-se
levar em consideração três aspectos sobre este trabalho:
Artigos Originais
actantes e suas performances
Sociologia Simétrica da estão em apresentam
interpreta Tradução
Educação em Ciências dialogia
elementos dialógicos
Livros Didáticos
Reflexão e Refração
Einstein, eles já existiam. Einstein nos diz aquilo que os experimentos “querem” dizer,
da mesma forma que um senador, ao falar, expressa a voz das pessoas que representa.
Einstein demonstra que a entropia da radiação eletromagnética monocromática varia
com o volume da mesma forma que varia a entropia de um gás ideal; mas ele afirma
muito mais do que isso (da mesma forma que um senador pode afirmar muito mais do
que o povo gostaria que ele falasse), ele afirma que a radiação eletromagnética é análoga
a um gás ideal. Surge, nas palavras de Einstein, algo que as teorias da época, sozinhas,
não poderiam dizer.
Nesse sentido, o autor do artigo é Einstein, mas o autor do conceito fóton não
é somente Einstein. É, também, a Física Estatística de Boltzmann, a Termodinâmica,
os gases ideais, o Efeito Fotoelétrico, a Termoluminescência, os gases ionizados. Sem
Einstein, esses actantes não nos diriam nada sobre o fóton, pois são mudos; mas sem
eles, Einstein também não poderia nos dizer nada. Nesse caso, humanos e não-humanos
se medeiam uns aos outros para produzir um novo actante. Nessa tradução, há mais
do que a própria fala dos fatos (os fatos não falam por si mesmos). A voz de Einstein
se sobrepõe à dos objetos. A grande inovação de Einstein é justamente a interpretação
que ele oferece para a equação que relaciona energia e frequência (E=hf). É justamente
a tradução de Einstein que marca, tradicionalmente, o início da Física do século XX
(Greenstein, & Zajonc, 1997).
Os artigos subsequentes sobre o fóton (na época ainda chamado de quantum)
falam da performance desse actante e de sua associação a diferentes actantes. Até a
segunda década do século XX, o comportamento corpuscular era toda a perfomance
relatada nas narrativas do fóton (Martins, & Rosa, 2014) e, portanto, era a performance
corpuscular que definia sua essência. Arthur Compton, por exemplo, narra as colisões
entre fótons e elétrons (Compton, 1923). O seu fóton, entretanto, tem exatamente a
mesma performance do fóton de Einstein? Na verdade, não! O fóton de Compton
transfere momentum12, o que o quantum de 1905 não fazia. Isso quer dizer que o fóton
de Compton e o de Einstein não guardam relação nenhuma? Também não. O fóton
de Einstein e o de Compton guardam entre si uma relação de tradução, pois são dois
actantes híbridos de uma mesma cadeia de transformações (Figura 1). Essa relação de
tradução entre os dois fótons é refletida nos textos na medida em que a narrativa sobre o
fóton de Compton reflete o fóton de Einstein, pois ambos são corpúsculos; mas a refrata
na medida que apresenta uma nova performance – a transferência de momentum.
Em 1922, De Broglie (1922), valendo-se de recursos teóricos, dá andamento à
cadeia de traduções dos fótons corpusculares, dotando-os não somente de momentum;
mas, também, de massa. Esses novos actantes viajariam a uma velocidade levemente
abaixo da velocidade limite estabelecida pela teoria da relatividade e, no referencial
próprio, seriam idênticos. Em 1923, De Broglie (1923) propõe uma nova visão, sugerindo
uma teoria relativística para todas as partículas (inclusive os fótons) associando-as a
um grupo de ondas, cuja velocidade de fase seria superior à velocidade da luz e cuja
12 Stark foi o primeiro a dotar o fóton de momentum, o que foi considerado um grande erro por Einstein (Martins,
& Rosa, 2014).
13 As interpretações da função de onda, tradicionalmente, foram propostas no âmbito da física quântica não
relativística, o que, em princípio, não englobaria fótons. Existem, entretanto, propostas recentes no sentido de
desenvolver uma função de onda para o fóton (Bialynicki-Birula, 1994, 1996)- o que permite a extensão das
interpretações. Ademais, apesar de, formalmente, não tratar de fótons, a interpretação da função de onda é,
historicamente, relacionada à interpretação do campo eletromagnético em trabalhos como o de Schrödinger e
Born (como discutiremos). Tal relação é tão íntima que Pessoa Jr. (2003) usa as interpretações apresentadas para
falar de fótons indistintamente.
14 A função de onda de uma partícula pode ser descrita ajustando-se os coeficientes de sua expansão em série
de Fourrier. Nesse caso, o comportamento corpuscular é reduzido de um status ontológico para um mero caso
particular de um conjunto de configurações possíveis para a função de onda.
15 Nesse processo de refração, pode-se perceber como o avanço científico acontece apesar das contradições que
ele pode levar à razão, o que lembra a noção de contraindução de Feyerabend (2011): Born se inspira na noção
de um campo que guia os fótons proposta por Einstein, em um caso relativístico, para interpretar uma equação
não-relativística.
corpúsculos (ou seja, a luz é constituída de partículas). Nesse momento, ao falar dos
fenômenos ondulatórios, eles chamam de “descrição”, ou seja, rebaixam a concepção
ondulatória uma visão instrumental16.
Além disso, deve-se notar que Bonjorno et al. contrapõem a visão corpuscular
dos fenômenos de absorção e emissão de fótons com efeitos de interferência e difração
da luz. Essa é a concepção original de Einstein em 1905, a qual, conforme discutido
anteriormente, não é uma visão dual e, portanto, não costuma ser chamada de Física
Quântica. O problema da dualidade onda-partícula surge somente quando um único
fóton (cuja natureza esperada seria corpuscular, em uma visão de senso comum)
apresenta fenômenos de interferência e difração. Ou seja, na Física Quântica não há uma
contraposição entre visão ondulatória macroscópica e visão corpuscular microscópica.
Na Física Quântica, há a dualidade de comportamento corpuscular e ondulatório para
o mesmo ente, na mesma escala. A Interpretação de Copenhague, por exemplo, tenta
explicar ou resolver tal dualidade e não o conflito entre fóton corpuscular versus radiação
contínua. Ignorando isso, os autores afirmam:
Por isso, seguimos o que estabelece o princípio da complementaridade, enunciado em
1929 por Niels Bohr, que considera a necessidade de duas teorias para estabelecer o
comportamento duplo das radiações, embora nunca seja necessário usar ambos os
modelos ao mesmo tempo para descrever determinados fenômenos. (Bonjorno et al.,
2013, p. 254)
Os autores, portanto, adotam a visão corpuscular de Einstein ao longo de todo
o texto e explicam o comportamento ondulatório da radiação usando a Interpretação
de Copenhague (que não era aceita por Einstein) para um problema que não é da
Física Quântica. Assim, a visão dos autores é uma interpretação própria da natureza da
luz, que não corresponde nem à visão de Einstein, nem à de Copenhague, mas é uma
hibridização dessas visões17. Além disso, os autores afirmam na sequência que
Niels Bohr aceitou a ideia de que o comportamento ondulatório e corpuscular da
matéria e da luz são duas faces do mesmo fenômeno básico e não dois tipos de eventos
distintos. O comportamento ondulatório ou corpuscular são meios complementares de
ver o mesmo fenômeno. Não é a luz que muda suas características, mas a forma como
nós decidimos interpretá-la. (Bonjorno et al., 2013, p. 254)
Eles apresentam, portanto, o Princípio da Complementaridade jogando sobre a
teoria os problemas de descrição, aderindo novamente a uma visão instrumentalista
– o que se contrapõe à visão essencialista adotada em quase todo o texto. Os autores
afirmam que somos nós que decidimos com interpretá-la, o que sugere a inserção de um
grande grau de subjetividade. A análise bakhtiniana deste texto nos permite sintetizar os
seguintes resultados sobre a primeira categoria:
16 Historicamente, a Física tem suas origens associadas a uma visão essencialista, segundo a qual a ciência descobre
quais são as essências da realidade. A visão instrumentalista surge, posteriormente, caracterizando a ciência como
um instrumento para descrever a realidade, mas incapaz de descobrir suas essências (Popper, 2008).
17 Isso também é feito por todos os outros livros dessa categoria com exceção das obras de Menezes et al. (2013)
e Sant’Anna et al. (2013).
precisamos das duas representações para tratar da natureza da luz. Em alguns fenômenos,
ela se apresenta como onda, em outros como partícula. É o que chamamos em Física
de natureza dual da luz, ou ainda, de dualidade onda-partícula. (Oliveira et al., 2013,
p. 233)
Nesse trecho, os autores parecem se alinhar à visão da Complementaridade
de Bohr, ao apresentar a existência de dois quadros distintos, mas necessários para
explicação da realidade. Algo importante a ser notado é que todo texto é construído com
base em textos anteriores (Bakhtin, 2016), e a forma como são citados está intimamente
ligada ao projeto de fala do locutor. No trecho acima, a visão corpuscular é chamada de
“visão corpuscular de Einstein”, mas a visão da Complementaridade não é atribuída a
nenhum autor. Isso sugere, mais uma vez, uma diferenciação ontológica: antes, tínhamos
uma proposta, agora temos a realidade. Essa “visão real e verdadeira” é traduzida, mais
uma vez, por argumento de autoridade: se antes a proposta era de Einstein, agora a
visão é da “Física”. Além de autoritário, esse discurso silencia a existência de diferentes
interpretações. Os defensores da visão corpuscular não concordariam com a necessidade
de dois quadros de explicação, mas por isso eles não são parte da Física? Na sequência,
os autores completam sua explicação:
É importante destacar que a dificuldade na representação da luz não é um problema da
própria luz, mas dos meios que a Ciência, e em particular a Física, tem em descrever
fenômenos e situações. Parece razoável assumir uma natureza dual para a luz. Ela pode
se apresentar como onda ou como partícula, dependendo do fenômeno que está sendo
estudado e de como se impõe a medida sobre o objeto de estudo. É importante que o
modelo é que se adapta à situação, não é a luz que se transforma em partícula. (Oliveira
et al., 2013, p. 233)
Esse trecho possui um forte viés instrumentalista, o que contraria todo o restante
do texto e, inclusive o título da seção. Até o momento, os autores queriam explicar o que
é a luz, agora delegam o problema para a teoria. Na sequência, os autores explicitam a
visão de Bohr (que já vinha sendo veiculada):
A dupla natureza da luz foi resultado direto da proposição de Einstein sobre a
quantização da radiação eletromagnética e a proposição do fóton. O físico dinamarquês
Niels Bohr (1855–1962) propôs o princípio da Complementaridade, considerando que
a luz se comporta como partícula ou como onda. Nunca como ambas simultaneamente.
(Oliveira et al., 2013, p. 234)
Ao dizer isso, os autores suprimem uma discussão importante: a visão de Einstein
em 1905 não era dual (Martins, & Rosa, 2014) – a visão de Einstein era “clássica” –
a radiação era composta por partículas. A dualidade só aparece estruturada em uma
proposta teórica em De Broglie (Martins, & Rosa, 2014). Isso, mais uma vez, exemplifica
uma tradução da história em que visões subsequentes são sobrepostas à visão original.
Na sequência, mais um trecho instrumentalista:
Nesse sentido, a dualidade onda-partícula e a questão sobre a Relatividade do espaço e
do tempo servem de alerta aos limites de nosso intelecto em lidar com a complexidade
da natureza além do mundo cotidiano. (Oliveira et al., 2013, p. 234)
Essa é novamente uma afirmação que se opõe à visão essencialista do restante do
texto. De acordo com ela, os resultados de uma teoria física nos dão informação sobre
o intelecto humano e não sobre a realidade – o que implica, além de instrumentalismo,
idealismo (a Física não fala da realidade, mas do conhecimento). Tal afirmação
é inesperada, visto que o primeiro autor do livro possui artigos em que sugere a
implementação da Epistemologia de Mario Bunge no Ensino de Física (Pietrocola,
1999), que é explicitamente contra tal tipo de interpretação de teorias físicas (Bunge,
2013). Nessa mesma seção, os autores abrem um box chamado “Explorando a situação”
em que apresentam o Interferômetro de Mach-Zehnder na versão clássica e quântica e
o seguinte trecho:
Assim, como no caso do feixe de luz monocromática, o fóton não chega ao detector D2.
Supondo que o fóton esteja em A, podemos retirar o vidro semirrefletor S1, supondo
que ele esteja em B, substituir o vidro semirrefletor S1 por um espelho. Em qualquer
dos experimentos, ele chega ao detector D1. Sendo o fóton uma partícula, como isso é
possível? (...) Esse resultado pode ter quatro interpretações: ondulatória, corpuscular,
dualista realista e complementaridade. De acordo com a interpretação ondulatória, um
fóton é um “pacote de onda” que talvez, em S1 se divida em dois “meio-fótons”, que se
recombinam em S2. No entanto, até hoje não se detectou um meio fóton. (Oliveira et
al., 2013, p. 234)
Os autores estão usando um grupo de classificações para interpretações filosóficas
do fóton provavelmente inspirados no livro de Pessoa Jr. (2003). Sobre a interpretação
corpuscular, os autores afirmam:
Na interpretação corpuscular, sendo o fóton uma partícula, não há uma boa explicação
para o fenômeno observado. Pode-se tentar justificar dizendo que a lógica do mundo
quântico é diferente do mundo macroscópico e o fóton pode ser e não ser uma partícula
ao mesmo tempo. (Oliveira et al., 2013, p. 235)
Após dizer que a interpretação corpuscular compreende o fóton como partícula,
o autor diz que a explicação sob essa ótica é a de que o fóton pode não ser partícula, o
que não está em consonância com o texto original de Pessoa Jr (2003). De acordo com
essa interpretação, o fóton é partícula, mas ele pode estar ou não em dois caminhos
diferentes.
Originalmente formulada por Louis de Broglie e redescoberta por David Bohm, a
interpretação dualista realista explica que a luz se divide em duas partes: uma partícula
e uma onda, com a posição da partícula dependendo da frequência da onda. (Oliveira
et al., 2013, p. 235)
Neste trecho, os autores apresentam uma proposição inconsistente com a
interpretação de Born, segundo a qual a posição mais provável da partícula depende da
amplitude da função de onda e não de sua frequência. Por fim, os autores explicam a
visão da complementaridade:
Segundo a interpretação proposta por Niels Bohr, a da complementaridade, a luz pode
ser ou onda ou partícula, nunca as duas ao mesmo tempo. Desse modo, o resultado desse
experimento indica um fenômeno ondulatório, no qual a luz não segue um caminho
bem definido. Assim, não faz sentido perguntar onde está o fóton. (Oliveira et al., 2013,
p. 235).
De uma forma geral, podemos resumir que os textos que apresentam as
interpretações do fóton explicitamente têm as seguintes características:
1. A introdução das interpretações é feita no final do texto e não dialoga com
o restante do capítulo. Em outras palavras, o aluno é exposto a um texto
inconsistente ontológica e epistemologicamente e, no fim, é apresentado às
interpretações do fóton, que já vinham sendo utilizadas de forma acrítica.
Se os próprios autores não conseguiram usar os grupos de interpretação do
fóton para pensar sua produção didática, o que esperar do aprendizado dos
alunos?
2. Ao longo da narrativa, os autores alternam entre contar a visão “do cientista”
e a visão “da realidade”. Isso é feito discursivamente explicitando e omitindo
as referências alternadamente.
3. Os autores sobrepõem a visão de diferentes interpretações na mesma visão
como os livros do primeiro grupo.
Texto que adere a uma única interpretação e a defende como única
possibilidade
O único texto que adere somente à visão corpuscular da luz está contido no livro
de Gaspar (2013):
Em síntese, de acordo com Einstein, a luz, assim como qualquer radiação eletromagnética,
não se propaga uniformemente pelo espaço como sugere a teoria ondulatória, mas por
meio de corpúsculos, ou quanta de luz, mais tarde chamados fótons. (...) os fótons são
como pacotes de energia (E) proporcional à frequência (f) da radiação. (Gaspar, 2013,
p. 210)
Tal discurso, como o presente nos outros casos, apresenta um viés autoritário:
Gaspar (2013) não apresenta a construção do fóton; simplesmente, informa ao aluno de
que a luz é feita por corpúsculos. Mas se ela é composta por corpúsculos, qual o sentido
da frequência? O autor não explica. A única forma de convencer é através de argumento
de autoridade:
Por isso, há quem diga ainda hoje que a luz tem um caráter dualístico — ora se
comporta como partícula ora como onda (...). Na verdade, essa afirmação não é correta:
a dualidade alternativa, ser uma coisa ou outra, não existe. Para a Física atual, não há
dúvida de que um feixe de luz é um feixe de partículas, isto é, um feixe de fótons. A
dualidade surge em relação ao comportamento coletivo desse feixe, que é ondulatório.
(Gaspar, 2013, p. 214)
justificar intelectualmente.
Conclusões
Neste trabalho, apresentamos um estudo de Sociologia Simétrica da Educação
em Ciências, articulando a Sociologia Simétrica de Bruno Latour e a Filosofia da
Linguagem de Mikhail Bakhtin. Ao fazer isso, optamos por realizar uma descrição dos
processos de dialogia e tradução existentes em diferentes textos científicos e didáticos,
em detrimento de buscar a tradicional dicotomia história versus pseudo-história.
Tal articulação teórica possibilitou discutir algo inédito, a dizer, que o estilo do
discurso citado (um problema fundamental da filosofia de Bakhtin) em livros didáticos
está intimamente associado à estabilização da essência do fóton (elemento da natureza)
e à relação entre a educação básica e a educação científica (uma questão social). Ou
seja, relacionamos, em uma única análise, linguagem, natureza e sociedade (proposta
metodológica de Latour). Para atingir tal objetivo, aproximamos o conceito latouriano de
tradução com o conceito bakhtiniano de dialogia. Tal proposta, em si, é uma tradução
das ideias originais. Para fazê-la, precisamos estender o projeto de pesquisa de Latour,
que nunca se debruçou sobre a Educação em Ciências, e o escopo da obra de Bakhtin
(voltada a questões humanas) para incorporar a “fala” dos actantes não-humanos. Isto é,
extrapolamos os contextos de pesquisa de cada autor para discutir a natureza híbrida da
Educação em Ciências. Com isso, simetrizamos não só verdade e falsidade e humanos e
não-humanos, como propunha Latour, mas também o gênero do discurso científico e o
didático. A opção de aproximação feita neste trabalho, usando os conceitos de tradução
e dialogia, não é a única possível. Esperamos que ela motive futuras articulações entre as
obras desses autores, pois isso permitirá a proposição de uma visão sociológica própria
sobre a Educação em Ciências e sobre suas relações com a natureza e com a sociedade,
o que denominamos Sociologia Simétrica da Educação em Ciências.
Após realizar uma reflexão teórica e metodológica, apresentamos uma possível
história do fóton em que as diferentes interpretações surgem como processos de
tradução. Assim, mostramos que, no âmbito dos textos científicos, as visões de mundo
são refletidas e refratadas por textos em posição dialógica entre si.
O livro didático, por sua vez, pertence a outro gênero do discurso, o qual
dialoga com o gênero científico. Cada texto didático, portanto, também reflete e refrata
características dos artigos originais, jamais sendo uma cópia fiel ao texto original, tão
pouco sendo um texto totalmente incomensurável a ele. Apresentamos, neste artigo,
como o texto didático dialoga com os artigos originais e como o estilo (escolha lexical e
gramatical) modula o valor de verdade que o autor do texto pretende imprimir.
De uma forma geral, identificamos três estilos de abordagem de discurso citado:
há textos que usam as interpretações do fóton sem dizer explicitamente que há diferentes
intepretações (grupo com 11 livros); há textos que explicitam a existência de diferentes
interpretações do fóton (grupo com 2 livros); e há um texto que adota apenas uma
interpretação. A análise metalinguística dos livros classificados na primeira categoria
gosto escolar, da forma que tem feito a escola, alegre como porta de prisão” (Lopes,
1996, p. 270).
Os textos classificados na segunda e terceira categoria apresentam os mesmos
problemas didáticos da primeira. A análise metalinguística dos livros classificados na
segunda categoria, por exemplo, aponta que esses seguem uma abordagem semelhante
aos textos do primeiro grupo, mas acrescentam um texto sobre as interpretações do
fóton, ao final do capítulo, em que nada dialoga com o restante do texto.
Quando comparados com o primeiro grupo, os textos dessa categoria ampliam
as performances do fóton visto que discutem explicitamente a sua dualidade onda-
partícula. Apesar disso, a estratégia discursiva de acrescentar um texto ao final de uma
seção em que a existência de controvérsias não é privilegiada pode ser, novamente,
problemático do ponto de vista didático. Não faz sentido explicitar a multiplicidade
de interpretações do fóton após um texto inteiro que a omite. Dificilmente o leitor
conseguirá articular essas ideias com o restante do que foi lido. A propósito, a falta de
coesão do texto sugere que os próprios autores não entendem as interpretações do fóton,
mas as acrescentaram para estar em consonância com a literatura de Ensino de Física
Quântica. Por fim, o texto do último grupo não só não explicita a existência de diferentes
interpretações como nega a validade de visões diferentes, afirmando que somente a visão
corpuscular é correta. Nossa análise indica que essa é a abordagem mais autoritária das
três, apresentando recursos estilísticos para suprimir a existência de controvérsias.
Se, ao formar um bacharel em Física, é suposto ser suficiente que ele aprenda
a substituir valores em equações cujo significado, construção e implicações lhe são
alheios (o que deve ser problematizado) (Johansson, Andersson, Salminen-Karlsson,
& Elmgren, 2016); para formar um cidadão é necessário muito mais do que isso. Não
podemos, portanto, copiar o modelo bacharelesco para o Ensino Médio simplesmente
apagando as derivadas e as integrais. É possível ensinar Ciências e, mais especificamente,
Física Quântica, discutindo suas bases teóricas e filosóficas em consonância com a
literatura contemporânea, como já vem sendo feito em livros e pesquisas de Educação
em Ciências pelo menos no âmbito do ensino superior (Betz, 2014; Montenegro, &
Pessoa Jr., 2002; Netto, Cavalcanti, & Ostermann, 2015; Netto, Ostermann, & Prado,
2011; Pereira, & Ostermann, 2012; Pereira, Ostermann, & Cavalcanti, 2009; Pereira,
Ostermann, & Cavalcanti, 2012; Pessoa Jr., 2003). Para que propostas críticas possam
ser implementadas na Educação Básica, é necessário que mais trabalhos sejam feitos
sob um ponto de vista sociológico simétrico, sem recair na dicotomia história e pseudo-
história ao se investigar as relações entre produções didáticas e científicas. A partir de
tais estudos, esperamos que a área de Educação em Ciência adquira mais subsídios para
pensar em uma construção didática para educação básica com identidade própria, sem
ter que se posicionar de forma subserviente a outras comunidades.
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Fernanda Ostermann
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Porto Alegre, Brasil
00008943@ufrgs.br