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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)

ISABELA PADILHA PAPKE

(DES)CONHECE-TE A TI MESMO: O DUPLO COMO CRISE IDENTITÁRIA EM O


HOMEM DUPLICADO, DE JOSÉ SARAMAGO

MARINGÁ
2021
ISABELA PADILHA PAPKE

(DES)CONHECE-TE A TI MESMO: O DUPLO COMO CRISE IDENTITÁRIA EM O


HOMEM DUPLICADO, DE JOSÉ SARAMAGO

Dissertação apresentada à Universidade


Estadual de Maringá, como requisito parcial
para a obtenção do grau de mestre em Letras,
área de concentração: Estudos Literários.
Orientador: Prof. Dr. Fábio Lucas Pierini

MARINGÁ
2021
ISABELA PADILHA PAPKE

(DES)CONHECE-TE A TI MESMO: O DUPLO COMO CRISE IDENTITÁRIA EM O


HOMEM DUPLICADO, DE JOSÉ SARAMAGO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Letras (Mestrado), da Universidade
Estadual de Maringá, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Letras, área de
concentração: Estudos Literários.

Aprovada em 19 de julho de 2021.

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Alexandre Villibor Flory Prof. Dr. Marcio Scheel


Membro do Corpo Docente (UEM/PLE) Membro Convidado IBILCE – Unesp – S.J. Rio Preto

Prof. Dr. Fabio Lucas Pierini


Presidente - Orientador (UEM/PLE)
À minha tia, Augusta Padilha, que me ensinou que é possível ter esperanças pelo estudo, e
ao meu avô, Wandir Padilha, que me ensinou que não é preciso estudo para se ter
esperanças.
AGRADECIMENTOS

José Saramago, em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel, mencionou que a


pessoa mais sábia que ele já conhecera em sua vida não sabia nem ler nem escrever, seu avô.
Tal qual Saramago, o homem mais sábio que conheço também é meu avô, Wandir Padilha.
Wandir sabia ler e escrever, mas não frequentou a escola para além do seu ensino fundamental.
Wandir, como o avô de Saramago, foi o responsável por contar as mais belas histórias que já
ouvi na vida, por me ensinar que, muitas vezes, a gente não precisa de muito para poder sonhar.
Com toda certeza, eu não seria o que sou sem ele, eu não teria escrito esta dissertação, pois eu
nunca teria tido a chance de achar que poderia fazer isso.
No entanto, é necessário, também, agradecer minha tia Augusta, pois ela me entregou o
norte, que sigo até hoje em minha vida: a capacidade de saber que é pelo estudo que se muda o
mundo. Creio que eu nunca acreditaria tanto na educação, na licenciatura e na pesquisa se eu
não a tivesse tido como espelho. Preciso, também, agradecer aos meus pais. Ser grata a minha
mãe, Maria Inês, que me ensinou a ver o mundo com coragem, e principalmente, a não deixar
minhas limitações ditarem meu destino e a meu pai, Marcos, que me entregou todo o espírito
sonhador e aventureiro que tenho dentro de mim.
Preciso, agora, dizer que, no caminho da escrita desses agradecimentos, percebi que
deveria agradecer a muitas pessoas, extensamente. De minha família, por exemplo, eu poderia
citar muitas pessoas nos agradecimentos, como minha tia Palmira, que me ensinou a fazer tudo
o que posso sem esperar nada em troca, poderia dizer como meu primo Heitor me ensinou que,
é pelos erros, tornamo-nos mais fortes, ou como meu primo Eduardo me ensinou a ser
determinada e a dar o meu melhor em tudo o que eu fizesse, como minhas primas Fernanda e
Patrícia me ensinaram a ser mais equilibrada. Poderia ainda mencionar como me inspirei em
meu primo João Pedro para saber ter foco, ou em meu primo Felipe para ter bondade. E, por
fim, e não menos importante, poderia dizer que adquiri um jeito mais leve de viver e de ver as
coisas convivendo, com meu primo Heitorzinho, diariamente.
Eu poderia, também, agradecer a meus amigos. Dizer que aprendi a ser madura com
Letícia Mirelle e com Ana Flávia. A ser persistente com Mariana Casarotto e com Maria Paula.
A garantir a mais perfeita execução de cada detalhe com Lucas Cariolando. A ter empatia com
a Letícia Cavallini. A não perder o sorriso no rosto com o José Felipe. A ser sempre justa com
a Sarah. A me perdoar e perdoar os outros com Daiani. A acreditar em mim com a Janaína. A
vencer obstáculos com Beatriz de Jesus. A ser acolhedora com João Lucas. A fazer de minhas
tragédias, comédias, com Gustavo Gava.
Poderia dizer, também, que aprendi a ser dedicada e passional com a Maria Eduarda,
com o Gustavo, com a Vanessa, com a Júlia e com a Dávila. Ou falar como o André me ensinou
a ter garra, como o Leonardo me ensinou a ser empática, como Renata me ensinou a ser
cuidadosa, como Bianca me ensinou a ser elegante, como o Tarik me ensinou a ser leve, como
Rafael e Ana Ligia me ensinaram a ser afável, como a Mariana me ensinou a ter esperança,
como Eloisa me ensinou a ver o belo das coisas, o como Elizandra me ensinou o significado de
ser forte como Sula me ensinou a ser centrada. Poderia citar, também, como Fernanda me
ensinou o significado de refletir nossas jornadas, como Laura me ensinou a importância de
galgar nossas próprias trajetórias com muito empenho, como Paula me ensinou a confiar nas
minhas escolhas e como Diéssila me ensinou a encontrar o equilíbrio necessário para não me
perder de mim em meus processos.
Poderia, inclusive, agradecer a cada professor que já passou por minha vida, ou me reter
aos que, significativamente, tornaram minha caminhada acadêmica, na Literatura, mais leve.
Como Magna Tânia que me apresentou a teoria literária e Márcio que me fez ter a certeza de
que o meu caminho estava dentro dela. Como Eliane que entregou uma força em potencial,
digna de mestre. Aldinéia e Luiz Carlos que me fizeram superar odisseias; Marcelle que me fez
declamar epopeias; Lúcia e Pedro que me ajudaram a sustentar minhas narrativas; Milton e
Claudia, minhas líricas. Ou como Mirian me ensinou a ter força prática, como Marisa me ajudou
a entender meu lugar na pesquisa, Clarice a entender do que a alma precisa e Alice a ver as
coisas humanamente como rezava Antonio Candido.
Pensei que deveria agradecer até aos compositores da nossa MPB, principalmente e com
carinho maior a Caetano Veloso, que embalou tantas vezes minha escrita deste texto. No
entanto, sinto que o certo mesmo é me conter, ser sucinta, dizer do essencial na presente
pesquisa, e não no ser humano como um todo, mesmo sabendo que o humano vem antes do
trabalho. Por isso sei que devo agradecer, primeiramente, em obrigatoriedade e, principalmente,
em vontade, aquele que, ao longo de cinco anos, esteve ao meu lado, ensinando-me muito do
que sei, e possibilitando o nascimento da pesquisa e, principalmente, do espírito de
pesquisadora que possuo hoje em dia: meu orientador Fábio Lucas Pierini. Sem ele e sem seu
suporte e seu apoio em todas as melhores e piores circunstâncias, esta pesquisa, esta dissertação
não existiriam.
Devo também agradecer, devido às circunstâncias, genuinamente verdadeiras e
humanas, à banca examinadora deste documento. Os professores Alexandre Flory e Márcio
Scheel foram responsáveis por toda a evolução teórica e por toda a maturidade acadêmica que
adquiri nesses dois anos de escrita. Suas constatações e os olhares cuidadosos que entregaram
na qualificação de meu texto possibilitaram expansões teóricas as quais nunca julguei que fosse
capaz de um dia realizar. A vocês, o meu mais sincero obrigada.
Devo agradecer e muito à Capes por todo auxílio e pela possibilidade de crença em um
futuro promissor na educação de nosso país e a todos os membros do Conselho Acadêmico do
Programa de Pós-Graduação em Letras, de 2019/2020, por toda a informação compartilhada
nas reuniões e toda perspectiva de trabalho prático nas relações acadêmicas que me foram
entregues. Obrigada por me mostrarem que o trabalho acadêmico vai muito além das pesquisas
e das aulas.
Por fim, e não menos importante, agradeço a José Saramago, aquele do qual a obra fez
fruir a presente pesquisa e, principalmente, sua autora. No meu caos, Saramago foi a ordem, o
responsável por duplicar meu potencial e por criar minha identidade acadêmica. E como sei que
não há gratidão que seja suficiente para se entregar a alguém que fez tudo isso, deixo um
trabalho de dois anos, que, parafraseando seu discurso, novamente, ao olhar de muitos, pode
parecer pouco, mas é tudo o que tenho.
“Ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz para o
homem é o próprio homem” (MARX, 2006, p.151).
RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar a obra O Homem Duplicado do autor português José
Saramago, à luz de uma perspectiva de crítica sociológica da literatura, com a finalidade de
compreender o fenômeno do duplo na obra como a representação do descentramento do sujeito
e, como uma crise de identidade deste dentro dela. Nossa metodologia de pesquisa é de cunho
bibliográfico, pautada na pesquisa e análises de livros, mediante ao recorte de pesquisa
analisado. Para isso, foram utilizadas teorias como as de Candido (2006) e de, Bakhtin e
Voloshinov (1976) acerca da imanência social da literatura, assim como os textos de Freud
(1919), de Rank (1914), e de Guiomar (1993) sobre a contextualização da temática do duplo.
Por fim, foram consultadas as obras de Harvey (2006) e de Han (2015), acerca de conceituações
do contexto pós-moderno e do sujeito de tal cenário, alinhando-os aos textos de Hall (2006), de
Bauman (2005) que discutem acerca da fragmentação do sujeito neste ambiente. Os resultados
das análises, nos fizeram perceber que, a ficção selecionada, alinhada às teorias, confirma nosso
intuito inicial de pesquisa. O fenômeno do duplo presente na obra saramaguiana em questão,
delineia uma cartografia da crise identitária da personagem protagonista, que permite alcançar
interpretações maiores, como a relação do retratado na obra com o contexto social a que se
relaciona, construindo uma ponte entre contexto literário e sociedade, fazendo-se válido o
princípio utilizado de uma análise pautada nas relações da Literatura com o contexto social do
qual está inserida.

Palavras-Chave: O Homem Duplicado, Saramago, Duplo, Identidade, Romance.


ABSTRACT

The present work aims to analyze the work The Double by Portuguese author José Saramago,
in the light of a perspective of sociological literature critique, in order to understand the
phenomenon of the double in the work as the representation of the decentering of the subject
and as a crisis of this identity inside her.Our research methodology is bibliographical, based on
research and book analysis, through the analyzed research clipping. For this, theories such as
Candido (2006) and Bakhtin and Voloshinov (1976) about the social immanence of literature
were used, as well as the texts of Freud (1919), Rank (1914), and Guiomar (1993) on the
contextualization of the theme of the double. Finally, the works of Harvey (2006) and Han
(2015) were consulted on conceptualizations of the postmodern context and the subject of such
a scenario, aligning them with the texts of Hall (2006), by Bauman (2005) that discuss about
the fragmentation of the subject in this environment. The analysis results made us realize that
the selected fiction, aligned with the theories, confirms our initial research intention. The
phenomenon of the double present in the work in question outlines a cartography of the
protagonist character's identity crisis, which allows for greater interpretations, such as the
relationship between the portrayed in the work and the social context to which it relates,
building a bridge between the literary and society, making valid the principle used of an analysis
based on the relations of Literature with the social context in which it is inserted.

Keywords: The Double, Saramago, Double, Identity, Romance.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14
1. UM CURTO PANORAMA ACERCA DA IMANÊNCIA SOCIAL DA LITERATURA E DA
ESCRITA ENGAJADA DE SARAMAGO 16
1.1 Relações entre literatura, história e meio social ...................................................................16
1.2 Algumas considerações acerca das relações entre autor, público e obra na crítica
sociológica....................................................................................................................................20
1.3 Reflexões sobre o engajamento social na literatura saramaguiana .....................................22
2. A ANATOMIA DO CAOS: DA INVENÇÃO DO DUPLO À INVENÇÃO DE UM DUPLICADO
26
2.1. Conhecendo o princípio caótico: um breve mapeamento da história do duplo na literatura
ocidental ......................................................................................................................................26
2.1.1 Otto Rank e a inauguração teórica 26
2.1.2 O inquietante Freudiano 29
2.1.3 Julia Kristeva e o estrangeiro 31
2.1.4 Entre a morte e o além, o duplo 33
2.1.5 Sobre o espelho: a função do outro na imagem do si mesmo 35
2.2 Do nascimento da ordem ao nascimento do caos: a égide narrativa de O Homem Duplicado
.....................................................................................................................................................39
2.2.1 A descrição espacial como guia narrativo 40
2.3 Tertuliano versus Saramago: sobre aquele que, ditatorialmente, transforma o caos em
ordem...........................................................................................................................................42
2.4 Aquele para quem o caos se instaura: a construção de Tertuliano Máximo Afonso ...........47
2.5 No múltiplo caos, a ordem individual: Saramago em diálogo com Poe e com Dostoiévski .49
2.5.1 Saramago versus Poe: o outro como extensão de si mesmo 51
2.5.2 Saramago versus Dostoiévski: o duplo (des)conscientizador 52
3. NO FIM DAS CONTAS, NARCISO ERA O REFLEXO: ALGUMAS NOTAS SOBRE O
PROCESSO DE (DES)CONHECIMENTO DO SUJEITO EM JOSÉ SARAMAGO 57
3.1 Comentários acerca da modernidade e do sujeito moderno ................................................57
3.2 A discussão acerca da questão identitária ...........................................................................60
3.3 Os cinco processos para o descentramento do sujeito cartesiano propostos por Stuart Hall
.....................................................................................................................................................61
3.4 Reflexões acerca da pós-modernidade e da formação de um sujeito pós-moderno .............63
3.4.1 Mal começou e já estamos cansados: a exaustão pós-moderna segundo Byung-Chul
Han 64
3.5 Reflexão segundo a teoria literária em contexto pós-moderno: a autorreflexividade da
escrita na literatura de José Saramago.......................................................................................67
3.6 Sobre os céus destinados a outro homem: a influência do contexto pós-moderno português
na literatura de José Saramago ..................................................................................................73
3.6.1 A construção de um indivíduo exausto de ser: Tertuliano versus pós-modernismo 75
3.6.2 Vivendo os céus destinados a outro homem: a recusa do pós-modernismo em
Tertuliano Máximo Afonso 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS 83
REFERÊNCIAS 85
14

INTRODUÇÃO

José Saramago, filho e neto de camponeses, nasceu na aldeia de Azinhaga, província do


Ribatejo, em 16 de novembro de 1922. Primeiramente trabalhou como serralheiro mecânico,
exerceu diversas profissões, como desenhador, funcionário da saúde e da previdência social,
tradutor, editor e jornalista. Publicou o seu primeiro livro, Terra do Pecado, um romance, em
1947, e voltou a lançar obras somente em 1966. Durante doze anos, trabalhou em uma editora
e, em 1972 e em 1973, fez parte da redação do jornal Diário de Lisboa. Entre 1985 e 1994,
presidiu a Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. A partir de 1976, passou a
viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro, como tradutor e depois, como autor.
Em 1998, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Em 18 de junho de 2010, encerrou sua trajetória
de vida, quando veio a falecer.
Possui 37 obras publicadas, como: Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento
(1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), História do Cerco de Lisboa (1989), O
Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre A Cegueira (1995) e As Intermitências
da Morte (2005). Vale destacar que, suas obras, estão traduzidas em mais de trinta idiomas e
que, três delas, inclusive, foram adaptadas para o mundo cinematográfico: Ensaio sobre a
Cegueira, com direção de Fernando Meirelles, exibido no Festival de Cannes em 2008; O
Homem Duplicado, em 2013, renomeado Enemy, com direção de Dennis Villeneuve; por fim,
O ano da morte de Ricardo Reis, em 2020, com direção de João Botelho.
Saramago foi o único autor de língua portuguesa que Harold Bloom incluiu em sua
coletânea Bloom’s modern critical views, da qual fazem parte, autores considerados pelo teórico
os mais lidos e mais respeitados na história da literatura. Segundo estudo realizado por Brizotto
e Zinan, em 2014, as temáticas mais abordadas em pesquisas brasileiras sobre obras
saramaguianas, são (1) o duplo; (2) a literatura comparada; (3) a intertextualidade; (4) as
relações entre Literatura e história; (5) a temática do espaço. Revelando que, o estudo da obra
de Saramago e d’O Homem Duplicado (2002) em si, em âmbitos acadêmicos, são relevantes, o
que torna a nossa discussão atual e frutífera.
Ao refletirmos sobre as abordagens que seriam utilizadas nesta dissertação, decidimos
partir da crença na imanência social da literatura, pois, para Saramago, o fazer literário sempre
significou muito mais do que apenas escrever obras que seriam vendidas. Nunca o ser escritor,
a seu ver, separou-se do ser cidadão. Prova disso é que em dezenas de suas entrevistas e
depoimentos, sempre ratificou a consciência que o escritor deve ter em relação ao seu papel de
interferir na realidade do mundo, de acrescentar perspectivas ao que já existe. Posto isso, em
15

nosso primeiro capítulo, passamos brevemente por teorias acerca da imanência social da arte,
como as de Voloshinov e Bakhtin (1976), de Candido (2006), de Mury (1974) e de Escarpit
(1974) e finalizamos com uma curta reflexão sobre o engajamento social na literatura
saramaguiana.
Em nosso segundo capítulo, contextualizamos os processos da estética do duplo na
literatura ocidental, por meio de teorias como as de Freud (1919), de Otto Rank (1925), de
Kristeva (1994) e de Guiomar (1993).Além disso o capítulo traz uma revisão de teses e de
dissertações publicadas que possuem como objeto de análise a obra O Homem Duplicado; dessa
forma, realizamos um panorama crítico que abarca desde a contextualização do nascimento da
temática central da obra analisada em termos de literatura ocidental até uma visão criteriosa
acerca dos trabalhos sobre ela já publicados.
Já no terceiro capítulo, refletimos sobre questões ligadas ao descentramento do sujeito
pós-moderno dentro da obra e ao seu alinhamento com o contexto social português, bem como
suas relações com o pós-modernismo. Para isso, contextualizamos a modernidade e o sujeito
moderno por meio de Berman (1996) e de Souza e Santos (1994). Também refletimos sobre o
que seria identidade e sobre os processos que mudaram o paradigma de sujeito com base nas
teorias de Hall (2006) e de Bauman (2005). Realizamos uma introdução acerca da pós-
modernidade, com o texto de Harvey (2006), e do sujeito pós-moderno, com o Han (2015). Por
fim, seguimos analisando aspectos metaficcionais presentes na obra e finalizamos com um
alinhamento entre a nossa análise e o contexto pós-moderno em Portugal.
No fim das contas, nosso intuito, com este trabalho, é fortificar a pesquisa acadêmica
em estudos literários e a relevância da obra de José Saramago, contribuindo para a resistência
da pesquisa acadêmica no setor de humanidades, e, principalmente, para a resistência da
literatura no meio acadêmico.
16

1. UM CURTO PANORAMA ACERCA DA IMANÊNCIA SOCIAL DA LITERATURA


E DA ESCRITA ENGAJADA DE SARAMAGO

“A literatura não é a vida e também não é uma imitação da vida. Nada do


que entra num livro vem de outro lugar que não seja este mundo, mas o
romance ao achar-se feito entra ele também a influir na vida.”
(José Saramago)

1.1 Relações entre literatura, história e meio social

De acordo com o texto de Voloshinov e Bakhtin (1976), Discurso na vida e discurso na


arte, no estudo da literatura, o método sociológico tem sido aplicado quase que exclusivamente
vinculado ao tratamento de questões históricas. No entanto, ao citarem Sakulin, mencionam
que a literatura possui um coração artístico imanente, uma estrutura especial e um
direcionamento peculiar por si só, com capacidade de ter um desenvolvimento evolucionário
autônomo, ressaltam, porém, que, “[...] no processo desse desenvolvimento, a literatura se torna
sujeito da influência “causal” do meio social extra-artístico” (VOLOSHINOV; e
BAKHTIN,1976, p. 1).
Em nota complementar ao texto, pontuam que, ao vermos a literatura como um
fenômeno social, inevitavelmente, chegaremos à questão de seu condicionamento causal.
Postulam também, que é recente a posição do historiador da literatura de se assumir sociólogo
e de incluir fatos literários dentro da vida social de algum período particular para, desse modo,
conseguir definir o lugar da literatura no movimento global da história. É nesse ponto que o
método sociológico aplicado à história da literatura se torna um método histórico-sociológico.
Em sua obra Literatura e Sociedade, Antonio Candido (2006) introduz sua teoria com
o tópico “Crítica e sociologia”, no qual debate a problemática da análise sociológica de uma
obra. Menciona que, por muito tempo, a consideração de aspectos sociológicos na análise
literária foi considerada inapropriada. Posteriormente, o teórico comenta que “hoje sabemos
que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a
podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra”
(CANDIDO,2006,p.13), e, partindo de tal pressuposto, que ele desenvolveu a teoria de análise
literária neste livro, com a convicção de que as condições externas de produção de uma obra
são tão imprescindíveis para sua análise quanto seus elementos estruturais internos.
O estudioso comenta que, uma das problemáticas de aceitação da crítica sociológica da
literatura, é o fato de muitos teóricos não verem os aspectos externos como parte da estrutura
composicional dos textos e, sim, como agentes externos. Para ele, na verdade, dever-se-ia
17

compreender é que estes fatores são tão parte da estrutura quanto seu gênero e seu enredo; sem
tal consideração, a crítica deixaria de ser sociológica para ser apenas crítica, segundo o teórico.
Em “A literatura e a vida social”, o autor pontua que, para a sociologia da literatura ser
válida e para nos aproximarmos de uma interpretação mais dialética da obra, temos que fazer
alguns questionamentos, como qual é a influência exercida pelo meio social sobre a obra de
arte? Qual é a influência da arte sobre o meio?
Algumas tendências predominaram neste período, como a análise de obras com base em
determinados questionamentos, por exemplo, em que medida certa forma de arte ou certa obra
correspondem à realidade, bem como realizaram a análise acerca do conteúdo social das obras,
geralmente conforme motivos morais ou políticos. Segundo sociólogos modernos, essas
tendências revelam que a arte é social em dois sentidos: no de depender da ação de fatores do
meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação, e no de produzir sobre os
indivíduos um efeito prático, que modifica a sua conduta e a sua concepção do mundo ou, ainda
que reforce neles o sentimento dos valores sociais.
Alexandre Villibor Flory (2011), em seu texto Literatura e história: relações e
mediações, pontua que a literatura configura suas categorias internas de forma a necessitarem
ser historicizadas e que “a mediação entre forma literária e processo social dá as bases para uma
crítica materialista que foge de quais esquematismos fáceis.” (FLORY,2011, p.213). O teórico
ainda comenta que, mesmo que existam determinações sociais e econômicas sobre a arte, a arte
e a cultura também produzem significados e valores que entram ativamente na vida social e que
moldam seus rumos.

Se a determinação sobre a arte fosse completa, não haveria como propor, na


literatura ou na vida social, algo que pudesse superar o já dado, rompendo com
o mundo em que vivemos. A consequência disso é que, embora o ser social
fale em e por nós, há espaço para a mudança social e estética. (FLORY, 2011,
p. 214).

Retornando a Bakhtin e Voloshinov (1976), vemos que a arte, desde que se tornou um
fator social e desde que está sujeita à influência de outros fatores igualmente sociais, também

[...] é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando de fora a


arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um
elemento estranho afetando outro, mas de uma formação social, o estético, tal
como o jurídico ou o cognitivo, social. A teoria da arte, consequentemente, só
é apenas uma variedade do pode ser uma sociologia da arte” (VOLOSHINOV;
BAKHTIN,1976, p.6)
18

Em seu texto, Lo Literario e Lo Social, Robert Escarpit (1974) menciona que a criação
uma teoria da literatura depende da história da literatura. Uma teoria da literatura é a
sistematização de uma forma artística concebida de forma abstrata, já a história da literatura é
o estudo crônico de um determinado número de textos históricos de toda índole, em que
predominam questões estéticas. A criação literária é o estudo analítico de uma obra ou de um
grupo de obras selecionadas e se estrutura de acordo com, um sistema de valores ou uma visão
histórica. Assim, o único aspecto que une estes eixos é o caráter seletivo da literatura.
Citando Paul Van Thiegen, Escarpit (1974) revela que o teórico crê que a atitude seletiva
define o método do historiador literário e que o tom da arte constrói a admiração pela obra.
Historiadores devem ser, antes de tudo, críticos. O historiador da literatura é o único que se
define por si mesmo; para o historiador, tudo é história, mas, para o historiador da literatura, o
todo não é literatura e, para o crítico, tampouco tudo é literatura.
Permeando o terreno da teoria de Roland Barthes, Escarpit (1974) pontua que a literatura
tem uma supersignificação, pois a linguagem é um manifesto que obriga a literatura a significar
em meio às possibilidades que ela não pode controlar. Nessa definitiva zona de possibilidades
da linguagem, o fenômeno literário resulta de um equilíbrio entre a situação histórica e a
liberdade do escritor. Revela-se que, no momento da eclosão da consciência burguesa, o escritor
se descobre estático em uma situação falsa. Na sociedade, cria-se uma problemática da
linguagem e endurece-se a resistência à necessidade de escrever historicamente, quando é
cristalizado o conceito moderno de literatura.
No século XX, as instituições permitiram que a sociedade impusesse suas estruturas
muito além da linguagem. Toda manifestação literária, caracterizada por uma liberdade do
escritor é, no nosso tempo, uma antiliteratura, assim como a consideração da literatura como
um eixo histórico. No entanto, ressaltamos que, a literatura, como eixo histórico concreto,
possui um intervalo de tempo não superior a duzentos anos, levando em si mesma sua negação
e sua superação. Desde o começo do século XIX, a história e a crítica literária da Europa
ocidental e de suas dependências culturais têm projetado esse conceito, por um lado, no passado
e, por outro, no conjunto do mundo.
Escarpit (1974), desse modo, passa a questionar-se sobre o conteúdo implícito e
explícito do texto literário. Georg Lukács utilizou-se de um método de análise do romance, que
consiste no paralelismo observado entre os valores implícitos da obra e o mundo em que se
encontra. Lucien Goldman, seu discípulo, vai mais longe: seu método estruturalista genético
propõe que o caráter coletivo da criação literária seja proveniente de um eixo de estruturas
mentais de certos grupos sociais e de sua relação inteligível com elas. O teórico nega que haja
19

uma reação literária específica e valores conscientes de grupos sociais e de conteúdo das obras.
Para ele, a literatura é uma transposição direta e implícita da vida econômica literária. Também
as obras têm alto grau de elaboração estética, por possuírem um conteúdo implícito
suficientemente rico para ser estudado.
Escarpit crê que a relação proposta por Goldman é necessária, mas insuficiente para
especificar a literatura; para ele falta estabelecer uma relação causal entre as estruturas da
sociedade e as da obra. Posteriormente, há uma nova problemática: a de a linguagem ser ou não
um eixo social. O estudioso aponta que não é possível recusar inteiramente a linguagem, mas
que se pode negar o sistema conceitual, pelo fato de ele permitir falhar as fronteiras entre o real
e o imaginário, dessa forma, recusa a sistematização e a substitui por outro processo intelectual.
Em uma conferência denominada Literatura e História, proferida em 5 de novembro de
1999, no Salão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo
(USP), Roger Chartier pontuou que devemos considerar o sentido dos textos, como se estes
fossem o resultado de uma negociação ou de transações entre a invenção literária e os discursos
ou práticas do mundo social que buscam os materiais e as matizes da criação estética, bem como
as condições de sua possível compreensão. Em seu artigo História e Literatura: algumas
considerações, Valdeci Rezende Rodrigues (2010) pontua que a escrita, a linguagem e a leitura,
são aspectos indivisíveis que estão contidos no texto, o qual, por sua vez, é uma instância
intermediária entre o produtor e o receptor, articuladora de comunicação e de veiculação de
representações.

A literatura registra e expressa aspectos múltiplos do complexo, diversificado


e conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere. Ela é
constituída a partir do mundo social e cultural e, também, constituinte deste;
é testemunha efetuada pelo filtro de um olhar, de uma percepção e leitura da
realidade, sendo inscrição, instrumento e proposição de caminhos, de projetos,
de valores, de regras, de atitudes, de formas de sentir... Enquanto tal é registro
e leitura, interpretação, do que existe e proposição do que pode existir, e
aponta a historicidade das experiências de invenção e construção de uma
sociedade com todo seu aparato mental e simbólico.(REZENDE,2010, p.98)

Escarpit (1974), apoiando-se nas teorias de Sartre, postula que o objeto literário existe
tanto sozinho como em movimento, por isso, questiona o que é necessário existir para haver o
movimento literário. Como resposta, afirma que o ato de leitura é responsável por esse feito e
que uma obra é concluída no ato da leitura e não em entidades universais e desencarnadas, por
leitores que são seres tão históricos quanto o autor.
O modo de comunicação da literatura é o livro. O livro é um objeto manufaturado e que,
devido à criação da imprensa, seguida da ascensão da indústria, adquire um caráter elitista. Com
20

o despertar da consciência proletária, porém, a leitura se torna arma de reinvindicação, mas, na


intenção de manter rígidas as estruturas elitistas, adensa-se o caráter institucional da literatura.

1.2 Algumas considerações acerca das relações entre autor, público e obra na crítica
sociológica

Gilbert Mury (1974), em seu texto Sociologia del Publico Literário. El concepto de
personalidade base y la convergência de los procedimentos de investigacion delineia os
processos formadores de uma sociologia da literatura. Segundo ele foram engendrados três
pilares de correlação: classe, obra-mestra e público. Essas relações se dão porque o autor é
capaz de expressar os pensamentos de uma classe determinada por pertencer a ela
sociologicamente, em virtude de acontecimentos bibliográficos cuja ressonância na obra
obedece a leis pressentidas. A consciência possível de classe serve de laço entre autor e obra e
obra e público; trata-se de uma sobreposição de estruturas para estabelecer uma
correspondência entre elas.
Outra noção criada na sociologia literária com base na consciência possível, pontuada
por Mury (1974), foi a relação entre gênero literário e conjunto social determinado, no sentido
de pensar a consciência possível em uma classe particular. Foi necessário questionar os métodos
quantitativos que conduzem a discernir as convergências entre pensamentos e necessidades. Os
exames das tensões afetivas e os conflitos culturais internos revelaram que existem campos
individuais a serem explorados. Há uma análise de obras que revela, inclusive que muitas ações
vigentes na sociedade são esboçadas nas obras escritas por indivíduos pertencentes a um quadro
social exclusivo.
Preza-se, na sociologia da literatura, um plano de profundidade suficiente que equivalha
a consciência possível de classe, como estrutura historicamente concluída, e que constitua, por
parte, a meditação necessária entre autor e obra e obra e público.
Já na segunda parte do texto, Mury (1974) passa a considerar o alinhamento do
psicológico ao social como alternativa de solução para os processos anteriormente postulados,
e, para isso, afirma ser primordial entender a divisão da sociedade em classes.
Inicialmente, Mury (1974) retoma Kardiner que indica que os homens se compreendem
em sua relação com os outros e que a estrutura de um eu é construída por meio de suas atitudes.
Para Kardiner, as estruturas familiares, os sistemas de crença e os modos de aceitação
introduzem comportamentos e condutas individuais. Conclui-se, portanto, que o social está no
21

coração da personalidade, não por obediência, mas porque os dinamismos do indivíduo estão
em constante contato com obstáculos determinados em uma escala de uma comunidade.
Candido (2006) realiza uma reflexão histórica sobre essa questão para, posteriormente,
pontuar que os artistas podem permanecer desligados entre si ou vincular-se, seja por meio de
uma consciência comum, seja pela formação de grupos geralmente determinados pela técnica.
Esse é o pressuposto de toda arte, envolvendo uma série de fórmulas e de modos de fazer que,
uma vez estabelecidos, devem ser conservados e transmitidos.
O público, tido como receptor da arte, é demarcador das influências socais
anteriormente mencionadas. Candido (2006) crê que o público dá sentido e realidade à obra;
sem ele, o autor não se realiza, pois ele é, de certo modo, o espelho que reflete a sua imagem
com o criador. Ao compreender que artistas, muitas vezes na época em que publicam suas obras,
não fazem tanto sucesso, mas que, posteriormente, passam a fazê-lo, revela que o público é o
fator de ligação do autor à sua obra. A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da
sua relativa intemporalidade e universalidade, as quais dependem, por sua vez, da função total
que a literatura é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento e a
um lugar determinado.
Candido pontua que, a função social, considerada em si independe da vontade ou da
consciência dos autores e dos consumidores de literatura, ela decorre da própria natureza da
obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada
pela comunicação. Quase sempre, porém tanto os artistas quanto o público, estabelecem certos
desígnios conscientes que passam a formar uma das camadas de significado da obra. Em outras
palavras, o artista quer atingir determinado fim; o auditor ou o leitor deseja que ele lhe mostre
determinado aspecto da realidade. Todo esse lado voluntário da criação e da recepção da obra
concorre para uma função específica: a função ideológica, menos importante que as outras duas
e frequentemente englobada nelas.
No tópico “O escritor e o público” (CANDIDO, 2006), o teórico menciona que a
literatura é, pois, um sistema vivo de obras, as quais agem umas sobre as outras e sobre os
leitores. Conclui, portanto, que a obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem
que este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que
atuam um sobre o outro, e que se juntam ao autor, termo inicial do processo de circulação
literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.
Candido (2006) também pontua que o público é condição para o autor conhecer a si
próprio, pois tal revelação da obra é a sua revelação. Sem o público, não haveria ponto de
referência para o autor, cujo esforço se perderia caso não lhe fosse dada uma resposta, que é
22

definição dele próprio, tanto que a ausência ou a presença da reação do público, a sua
intensidade e a sua qualidade podem decidir a orientação de uma obra e o destino de um artista.

1.3 Reflexões sobre o engajamento social na literatura saramaguiana

Maria Luiza Scher Pereira e Wagner Lacerda (2008), em seu artigo Literatura e política
em Saramago, pontuam que o escritor engajado pensa em alternativas e questiona o discurso
único, bem como sabe que a história não segue um curso determinado, e sim que ela segue um
curso dialético dependente de inúmeros fatores e situações. Pedro Fernandes de Oliveira Neto
(2020), em seu artigo, Literatura e engajamento em José Saramago, postula o seguinte:

Não que uma obra literária seja destituída de quaisquer relações com o meio
em que é construída, mas a obra saramaguiana se insere entre as criações que
vêm cobrar do leitor novos estatutos acerca da ordem das coisas e
consequentemente uma posição ativa e multissignificativa acerca de seu lugar
histórico-social (OLIVEIRA NETO, 2020, p.1)

Saramago sabia, sim, demarcar seu lugar na sociedade e refleti-lo por meio de suas obras e
de sua linguagem. Quando indagado por Carlos Reis sobre a separação da condição de escritor da
de cidadão, Saramago respondeu:

Eu não separo a condição de escritor da do cidadão, embora separe sim a


condição de escritor da de militante político. Isso separo. Mas há que se
considerar aqui uma questão: é certo que as pessoas me conhecem como
escritor; mas também há com certeza muitas pessoas que, independentemente
da maior ou menor importância que elas reconheçam na obra literária que
faço, entendam talvez (é uma hipótese) que aquilo que digo como cidadão
comum e interessado, é importante para essas mesmas pessoas. Embora eu
saiba que é o escritor que transporta às costas a possibilidade de ser esta voz.
(REIS, 2018, p.48)

É por meio dessa reflexão do próprio Saramago que percebemos que sua literatura tem
seus aspectos sociais, o que faz sobressair a missão de conscientização de seus leitores. Quando
questionado sobre a função do escritor, o português sempre afirmava que esta transcende o
papel de apenas revelar uma história. Para ele, conforme afirma em entrevista ao Jornal de
Lisboa, “ser escritor não é apenas escrever livros, é muito mais uma atitude perante a vida, uma
exigência e uma intervenção” (AGUILERA, 2010, p.126).
Em seu artigo José Saramago, best seller e engajamento, Jean Pierre Chauvin (2016),
pontua que, “ao dar protagonismo na narrativa a figuras de camada simples e vida rotineira, o
escritor tratava de subverter, na própria estruturação do romance, um dos preceitos da literatura
23

convencional e bem-comportada” (CHAUVIN,2016, p.127). O teórico afirma que é com base


nessa perspectiva, que instaura-se a hipótese de que Saramago pretendia compor uma obra
participante e intervencionista, já que seu intuito era propiciar aos seus leitores um exercício de
leitura que questionasse os limites de um produto voltado ao entretenimento, como acontece
com outros best sellers. Chauvin (2016) pontua que a literatura do autor português tem um tom
sedutor mediante seus intertextos e suas paródias e que

A proposta do romancista redunda eficaz. No papel de espectadores,


evoluímos para a condição dos sujeitos que, no correr das páginas, tornam-se
cúmplices deste ou daquele narrador, quando não porta-vozes de alguns
personagens.(CHAUVIN,2016, p.128)

De acordo com Candido (2006), a posição do artista é um aspecto estrutural na


sociedade; nos estudos presentes, porém o que deve ser questionado é como a sociedade atribui
um papel específico ao criador de arte e como define sua posição em uma escala social, o que
faz considerar o aparecimento do artista individualmente como posição e papel configurados,
o artista como grupo, e como tais grupos se apresentam em sociedades estratificadas.
Ratifica também que a arte coletiva, é aquela criada por um indivíduo a ponto de se
identificar as aspirações e os valores de seu tempo. No entanto, são colocados em voga
questionamentos sobre a obra ser (ou não) fruto da iniciativa individual ou de condições sociais,
quando, na verdade, ela surge na confluência de ambas, indissoluvelmente ligadas. Esse fato
retoma o problema da função do artista, de qual é a sua posição social e quais são os limites da
sua autonomia criadora.
As intenções de Saramago pairam na concepção de que a literatura pode
instrumentalizar o seu leitor, levando-o a suspeitar de que a narrativa pode suscitar a
desconfiança de que o discurso infalivelmente tenderá a retratar cenários e a reproduzir as
palavras favoráveis aos círculos de poder.

Saramago sugere que seus romances demandam uma nova concepção do


leitor, aquela em que a representação da alteridade é condição para que a
literatura sobreviva, acumulando múltiplos papéis: o de encantar o público em
geral, pela forma e expressão, e o de reposicionar os leitores, revelando-lhes
pensamentos que transitam entre o artifício da palavra e seu poder de
intervenção e mudança. (CHAUVIN, 2016, p.133)

Ana Paula Arnaut (2014), em seu artigo José Saramago: da realidade à utopia. O
Homem como lugar onde menciona que em Saramago, o desejo de uma sociedade diferente
daquela em que vivemos não acarreta uma ideia de deslocação e de relocação espacial como
24

utopias, bem como não causa o enraizamento e a responsabilidade da mudança em homens de


eleição, estando ao alcance de qualquer um de nós. A autora pontua que:

Não pode ser por acaso, como começámos por dizer, que a arquitectura
utópica dos demais romances do autor se actualize e concretize em tonalidades
diferentes das utopias que referimos. O sonho num mundo melhor não
implica, como condição sine qua non, o achamento de um novo espaço,
diverso daquele que habitamos. Esse parece ser, na ficção de José Saramago,
um mero pormenor. Pelo contrário, a ideia que subjaz à leitura que fazemos
das ficções saramaguianas aponta para a exigência de (re)construir uma
sociedade livre, justa e fraterna exactamente no mundo/sociedade em que
vivemos. O (não) lugar da utopia deixa de ser um (outro) espaço físico,
geográfico, passando a ser o próprio Homem, as suas crenças e convicções.
(ARNAUT,2014,p.6)

Em seu texto Herculano, Saramago e a História do cerco de Lisboa, José Francisco


Rodrigues Carvalho (1998) aponta que, na literatura saramaguiana, possibilitada pela ficção e
por novas concepções de história e de narrar, ocorre uma mistura de tempos que viabiliza uma
revisão histórica a partir do questionamento da visão linear e estratificada que serve de base.
Vale ressaltar que essa interpenetração por entre os tempos, não se dá de súbito, mas
paulatinamente. Complementando com o texto de Arnaut (2014), a literatura de Saramago
provoca uma busca que se traduz em um processo de (re)aprendizagem que começa e acaba no
próprio ser humano. Em suma, a literatura saramaguiana nos deixa a mensagem de que há que
se acreditar na capacidade de luta do ser humano, em seu potencial de atravessar adversidades,
obstáculos e violências. Afinal, como Saramago mesmo disse,

O homem é um ser que busca. O que caracteriza o ser humano é a necessidade


de buscar, e ele busca por diferentes caminhos, que podem ser contraditórios.
Não sabemos se encontramos e não sabemos se o que encontramos uma vez é
o que estávamos buscando, ou se não é mais necessário buscar depois de ter
encontrado algo. Portanto, somos seres de busca. (AGUILERA, 2010, p. 99)

No presente trabalho, falamos sobre a busca de solucionar um mistério identitário na


obra saramaguiana O Homem Duplicado (2008). Seu enredo pauta-se na história de um homem
comum e de nome exótico: Tertuliano Máximo Afonso, um indivíduo que possui a rotina
enfadonha e repetitiva de um professor de história, divorciado, depressivo, sem muitas emoções
ou descansos. Por ironia de seu destino, quando resolve viver o singular lazer de locar um filme,
percebe-se um sujeito duplicado em um ator coadjuvante do filme que assisti. A trama da
história baseia-se na crise identitária de Tertuliano e no anseio de resolver este enigma que seu
panorama psíquico lhe oferta.
25

Buscamos, por meio deste trabalho, compreender a dialética do ser, além de refletir
sobre a duplicidade estética no âmago de um romance literário, sobre a literal duplicação do
sujeito presente na obra saramaguiana em foco, que nos permite mergulhar na psique do sujeito
protagonista que, em crise, vê-se duplicado e que, por isso, questiona a sua identidade e a sua
condição mundana, em uma guerra que, aparentemente, é contra si mesmo, quando, na verdade,
o que impera é o seu pano de fundo: o esboço da miséria do sujeito diante do sistema que o
aprisiona.
26

2. A ANATOMIA DO CAOS: DA INVENÇÃO DO DUPLO À INVENÇÃO DE UM


DUPLICADO

“O leitor também escreve o livro quando lhe penetra o sentido, o interroga.”


(José Saramago)

Antes de embarcamos na obra saramaguiana em questão, O Homem Duplicado, fizemos


um panorama histórico do duplo, como meio de contextualizarmos a temática central da obra e
de termos uma base teórica sólida e frutífera para análise. Sendo assim, comecemos nossa
jornada.

2.1. Conhecendo o princípio caótico: um breve mapeamento da história do duplo na


literatura ocidental

Seja em âmbito da arte, seja no da filosofia, seja no da psicologia, a temática do duplo


sempre instigou o ser humano e os estudos científicos como um todo. Mesmo sendo uma área
de fronteiras escorregadias, de grande abrangência e de difícil delimitação, tentamos nesta
seção, estabelecer alguns diálogos entre os principais teóricos que abordaram, em seus
trabalhos, o fenômeno do duplo.
Em seu artigo O outro de si mesmo: o fenômeno do duplo na literatura, Cátia Cristina
Sanzovo Jota (2017) estabelece um interessante panorama acerca da estética do duplo na
literatura. A autora pontua que, no contexto literário, a abordagem do duplo, ganhou destaque
no período do romantismo. Menciona também que, um dos autores que inauguraram essa
temática no entorno literário fora Jean Paul Richter que, em 1796, ao redigir uma nota de rodapé
em seu romance Siebenkas, cunhou o termo Doppelgänger (cuja tradução é sósia) em oposição
à palavra Einzelgänger que significa solitário. Richter menciona que, em tese, Doppelgänger
são pessoas que podem ver a si mesmas. Foi nesse contexto que surgiu a compreensão genérica
do duplo como um desdobramento do ser.

2.1.1 Otto Rank e a inauguração teórica

Uma das primeiras teorias estabelecidas na questão literária em torno do duplo fora ado
psicanalista austríaco Otto Rank (1914), para quem o fenômeno do duplo se origina na crença
27

primitiva que consiste na defesa contra a morte e na garantia da imortalidade do ser mesmo
depois do perecimento do corpo. O teórico percorreu obras de diversos autores, como
Hoffmann, Poe e Maupassant, elencando os principais pontos que nelas se vinculavam à
temática do duplo, chegando à conclusão de que estes eram o reflexo, o retrato e os gêmeos.
Em suas análises, Rank concluiu que os duplos presentes nas obras sempre eram feitos
à imagem e semelhança do protagonista e que o seu surgimento sempre se alinhava à
consolidação de alguma espécie de problemática na vida deste, o que gerava crises em sua vida,
problemas em seus relacionamentos e, até mesmo, ocasionar sua morte. Assim, o teórico pôde
concluir que, com o passar do tempo, o duplo perdeu o aspecto positivo que tinha de início,
quando vinculado à garantia da imortalidade, pois adquiriu um caráter de mensageiro da morte,
de anunciar o aniquilamento de um eu.
Um interessante estudo também realizado por Rank, nesse aspecto, foi a coleta de dados
sobre a vida privada dos escritores que possuíam a temática do duplo em suas obras, a fim de
verificar se havia a possibilidade de eles escreverem sobre o assunto por possuírem alguma
patologia psicológica. No entanto, embora tenha encontrado diversas patologias nos escritores,
concluiu que não podia pautar-se nessa informação como um fator imprescindível para a
abordagem desse aspecto em suas literaturas.
Para Rank (1914) um dos contos pilares na temática do duplo é William Wilson, de
Edgar Allan Poe. Publicado pela primeira vez em 1839, é narrado pelo personagem, cujo nome
denomina o conto. Ele começa descrevendo suas memórias de infância e de seu período escolar,
até que revela que um fato marcante desse período: foi o dia em que encontrou um garoto
idêntico a ele, nascido no mesmo dia e com as mesmas características dele, o que o pertubou
muito. Mesmo com o passar dos anos e com mudanças de países, ele sempre reencontrava o
seu dito duplo, sentindo-se perseguido constantemente. Certo dia, ele se depara com o homem
em uma festa à fantasia e decide que, para acabar com sua aflição, matá-lo-ia. No entanto,
quando Wilson consegue, finalmente, ferir seu duplo com uma espada, depara-se ferido, em
uma sala cheia de espelhos, o que deixa um ar de mistério para o fim do conto, para que o leitor
não saiba o que realmente aconteceu. Essa narrativa possui um forte caráter de suspense que
envolve o leitor, evocado na narrativa de Poe.
É perceptível o motivo pelo qual Rank caracteriza William Wilson como modelo
literário para o duplo. Há, no conto, a identificação de um outro ser idêntico, a angústia de um
outro como si mesmo, o medo, a morte como resolução do mistério, que não se soluciona,
enfim, elementos presentes em muitas literaturas enquadradas nessa perspectiva. Vinicius
Lucas de Souza e Aparecido Donizete Rossi (2016), em seu texto: O médico, o monstro e os
28

outros (2016), pontuam que, inclusive, cunhou-se um termo, inspirado no conto, como
sinônimo do termo duplo:
[..] pode se dizer que a formulação:“Complexo de William Wilson” é
adequada para plasmar a emergência de uma segunda entidade que simularia
a aparência física e traços psíquicos da “original”. Em suma, pode-se tomar
tal asserção “Complexo de William Wilson” como um sinônimo conceitual
para duplo. (SOUZA; ROSSI, 2016, p.191)

Outro conto importante no ciclo das narrativas sujo foco está no duplo; é A sombra, de
Hans Christian Andersen, publicado em 1847. A narrativa descreve a história de um sábio
estrangeiro que liberta a sua sombra, dando-lhe livre arbítrio. Anos depois, a sombra retorna
extremamente diferente, disfarçada de homem, e, então, o sábio e ela viajam juntos para um
reino. Lá a sombra encontra uma princesa lhe diz que o sábio é sua sombra; a moça acredita na
sombra, encanta-se por ela e resolve casar-se com ela. No momento que o sábio se dá conta da
mentira, resolve revelar a verdade, mas a sombra manda prendê-lo e matá-lo e, como
justificativa, diz à princesa que sua sombra estava louca e que fez isso para contê-la.
O interessante, no conto de Andersen, é a questão da inversão de papéis: o sábio sempre
considerou a sombra apenas uma sombra, enquanto a sombra, ciente de que poderia ser mais
do que era, pôde, inclusive, transformar o sábio em uma sombra. Há uma relação de menosprezo
da sombra, que, no fim da narrativa, acaba por gerar a morte do sábio. Por se tratar de um conto
maravilhoso, a narrativa transcende as barreiras do real: se, em William Wilson, que o duplo é
tratado como uma espécie de patologia, em A sombra o duplo é uma sombra, que consegue
tornar-se um homem, sendo, inclusive, capaz de enganar o próprio homem de quem é sombra.
Aqui, também, devemos mencionar O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert
Louis Stevenson (1886) A trama retrata a história de Jekyll, um cientista, que tenta, por meio
de uma poção, separar o bem do mal. Ao usá-la em si, consegue colocar em prática o seu desejo;
como consequência, passa a expor o seu próprio lado sombrio na personagem de Hyde.
Enquanto Jekyll é um cidadão de bem que cumpre seus deveres, Hyde possui características
particulares: é um assassino cruel, que não respeita ser vivo algum. O mais interessante nessa
narrativa é o fato de termos a consciência de que mesmo sendo seres completamente opostos,
eles são, na realidade, a mesma pessoa, o que provoca uma grande reflexão acerca da dualidade
humana, ou seja, a existência de duas naturezas tão opostas dentro de cada indivíduo
Podemos observar, por meio desses exemplos, que há uma tendência em ver, no duplo,
uma aura de negatividade. Assim, o outro é tido como uma ameaça, como um corpo que se
opõe àqueles que o enxergam, que causa problemas e angústias nas personagens que se veem
duplicadas; de modo geral, há sempre uma aura de ameaça e de mistério rondando a
29

questão. Posto isso, para podermos compreender tais aspectos com mais plausabilidade,
sigamos para uma teoria importante que se derivou dos estudos de Rank: a teoria Das
Unheimliche, de Freud (1919).

2.1.2 O inquietante Freudiano

Para nos auxiliar a compreender a teoria Freudiana, primeiramente, atentamo-nos aos


termos cunhados por Hans, na obra Dicionário comentado do alemão de Freud (1996).
Começamos pelo adjetivo Heimlich que, de acordo com o teórico, situa-se entre o sentido de
familiar e o de conhecido, mas que se distorce ao ponto de ser considerado inquietante e
estranho. Isso gerou a reflexão de que percorre gradações, que se iniciam no familiar, passam
pelo íntimo e se conduzem ao estranho.
Já Unheimliche possui em sua constituição, o prefixo Un, que denota negação na língua
alemã; assim seus significados deságuam nos seguintes termos: levemente estranho, levemente
assustador, inquietante, sinistro, esquisito, incômodo, ansiógeno. Essa gama lexical torna
perceptível que o termo também possui gradações, englobando desde uma ameaça sorrateira ao
sujeito até um caráter desconfortável, indefinível de perigo, catastrófico, que, mesmo surgindo
subitamente, revela-se bem delineado.
Na obra Experiência do outro, estranhamento de si: dimensões da alteridade em
antropologia e psicanálise, Maurício Rodrigues de Souza (2015) pontua que Freud abre seu
trabalho com considerações de ordem estética, incomum na psicanálise a seu ver,
porém existem em abordagens e temas negligenciados o que justifica seu estudo, assim como
o questionamento de que “dentre tais temas teríamos aquelas capacidade da obra de arte na
literatura, por exemplo de provocar em seus apreciadores sentimentos como o de uma
desconfortável inquietude” (SOUZA, 2015, p. 80).
É interessante o prisma apresentado por Souza (2015), já que as análises dos textos
literários realizadas por Freud, redigem uma compreensão de aspectos da realidade humana de
forma muito verossímil e didática, o que, inclusive, põe à prova diversas questões, como a
literatura ser ou não o reflexo das ações humanas, da sociedade em que se insere.
Freud, usa a obra O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffmann (1816), como base para a
sua teoria. A narrativa de Hoffmann concentra-se primeiramente em evocar o prisma de
Natanael de toda situação, e isto é feito por meio de cartas que o personagem entrega a seu
amigo Lothar, contando que um tal Homem da Areia, que roubava olhos, do qual temia em sua
30

infância, veio visitá-lo em forma de um vendedor de lunetas. Na segunda parte da narrativa, o


próprio autor toma as rédeas da situação e conta o que realmente aconteceu a Natanael e sua
intrigante história com Olympia. É interessante o modo como o autor consegue refletir, de
forma coerente, o medo que os seres humanos possuíam da tecnologia adjacente, por estarem
vivendo a revolução industrial, que se deu entre os anos de 1760 e 1840. Hoffmann, ao retratar
a figura do autômato em sua ficção, revela muito bem o espírito que ecoava no período. O
inquietante, o não familiar, o estranho, estava justamente nessas ascensões que provocavam
uma enorme mudança no mundo e na vida das pessoas. A construção de Olympia, por exemplo,
pontua “uma condição particularmente favorável para o surgimento de sentimentos
inquietantes, ocorre quando é despertada uma incerteza intelectual de que algo seja vivo ou
inanimado” (FREUD, 2019, p.349).
Vemos, desse modo, que Freud não seleciona Hoffmann por um acaso, pois a obra deste
muito contempla os aspectos do inquietante, seja por meio de Olympia, seja pelo medo de
perder os olhos, que é pontuado como substituto para o medo da castração, na relação
construída entre pai e filho na ficção. Ressaltamos que, mediante todos os pontos analisados
por Freud, para nós o mais proveitoso, são as caracterizações do duplo na obra. Para esse fato,
o psicanalista se apoia nas teorias de Rank, aqui já mencionadas, porém, vai além e faz um
panorama destas, sobre o qual falamos a seguir.
Freud pontua que, de acordo com Rank, o duplo surgiu como uma forma garantir o não
desaparecimento do eu, desmentindo o poder da morte, sendo a alma imortal o primeiro duplo
do corpo. Na cultura do Egito, essas concepções rondavam o entorno do amor-próprio, do
narcisismo primário da infância, subvertendo o significado do duplo que “de garantia de
sobrevivência passa a mensageiro inquietante da morte” (FREUD,2019, p.350). O psicanalista
comenta que o ser humano não saiu necessariamente dessa fase da infância devido ao processo
inacabado do eu, mas que para que

[...] O ser humano seja capaz de auto-observação, torna possível dotar de um


novo teor a velha concepção do duplo e atribuir-lhe várias coisas,
principalmente aquilo que autocrítica vê como pertencente ao superado
narcisismo dos primórdios. (FREUD, 2019, p.350)

Para Freud (2019), todas as fantasias, todas as possibilidades não realizadas, todas as
tendências do ser humano podem ser incorporadas no duplo. Pontua, porém que apenas
compreender as diversas manifestações do duplo não nos auxilia a compreender o seu elevado
grau de estranhamento, que é o fato de o ser fazer uma força defensiva que o projeta para fora
de si, fazendo que ele mesmo se torne algo estranho.
31

Jota (2017, p.140) comenta que “O duplo, na visão freudiana, está entre esses temas de
efeito inquietante cuja origem remete à reminiscência animista de determinadas situações que
hoje são consideradas irreais e absurdas”. Isso se dá porque o duplo, na perspectiva freudiana,
é uma instância ignorada e latente no indivíduo, que jaz em sua própria intimidade.

2.1.3 Julia Kristeva e o estrangeiro

Certamente, muitas teorias posteriores se encontram com as de Freud, como as teorias


propostas pela professora Julia Kristeva (1994), que, inclusive, faz considerações sobre o
inquietante. A autora pontua que Freud faz uso do sobrenatural para compreender o
Unheimliche, pois seria algo assustador que remonta ao familiar.

O sobrenatural aparece desta vez como uma defesa do ego desamparado: este
se protege, substituindo a imagem do duplo benevolente, que antes bastava
para protegê-lo, por uma imagem de duplo malevolente, onde ele expulsa a
parte de destruição que não pode conter. (KRISTEVA, 1994, p.193).

Kristeva (1994) menciona que o inquietante não é nada estrangeiro e sim algo que na
vida psíquica sempre foi familiar e que somente se tornou estranho pelo processo de
recalcamento. O aparelho psíquico recalca processos e conteúdos que não são necessários para
a autopreservação do sujeito pensante. Entretanto, esse material que devia permanecer oculto
retorna e provoca sensação do sobrenatural. Em outras palavras, essa situação provoca um
choque, pois, ao encontrar esse mau Outro, são violados os limites frágeis do Ego,
direcionando-o aos limites incertos do sobrenatural. A teórica disserta que o sobrenatural é a
forma pela qual Freud introduz a rejeição do Outro no sujeito. Por meio da descoberta do
sobrenatural e daquilo que o ocasiona, Kristeva (1994) constata que este reata os medos infantis
e os desejos do outro.

Freud não fala dos estrangeiros: ele nos ensina a detectar a estranheza que há
em nós. Talvez seja a única maneira de acossá-la do lado de fora. Ao
cosmopolitismo exótico, à integração universalista religiosa, em Freud sucede
a coragem de nos dizermos desintegrados para não integrar os estrangeiros e
muito menos ao persegui-los, mas para acolhê-los nessa afinitiva estranheza
que é igualmente a deles e a nossa. (KRISTEVA,1994, p. 201)

Eliana Rodrigues Pereira Mendes (2019) em seu artigo O estranho dentro de nós, a
intolerância à diferença, menciona que, em Freud, o ego primitivo e narcisístico, ainda não
separado do mundo externo projeta o que sente para fora de si mesmo como sendo algo
inquietante, tornando-o sobrenatural e demoníaco. O sobrenatural é, portanto, uma defesa ao
32

ego, que, desemparado, protege-se substituindo a imagem de um duplo benevolente, que tinha
a função de protegê-lo, por uma imagem malévola, que externaliza a parte destrutiva, a qual ele
não é capaz de carregar em si mesmo.
Um texto que vem ao encontro dessa perspectiva – isto é- dos opostos com
personalidade benevolente e malévola é O Duplo (2013), de Dostoiévski. Em sua dissertação
Os duplos em Dostoiévski e Saramago, João Emeri Damasceno (2010) pontua que, em termos
de crítica ainda existe uma opinião convergente a respeito do tipo humano que Dostoiévski se
propunha a projetar, a discutir e a trazer à reflexão e O Duplo serve, justamente, como ponto de
partida para todas as demais personagens do universo dostoievskiano. Embora tenha recebido
diversas análises desfavoráveis, especialmente por Vissárion Belínski, importante crítico
literário que impulsionou Dostoiévski no início da carreira,

O duplo pode ser considerado o início da construção de narrativas com


personagens densas, eivadas de conflitos pessoais, indecisões e angústias
existenciais. Essas personagens travam uma luta entre a realidade que as
oprime e a incapacidade de romper definitivamente com a estrutura em que
estão imersas (DAMASCENO,2010,p.39)

Podemos perceber que seu estilo e sua temática influenciaram diversas obras que
surgiram posteriormente. Por meio da estética proposta na construção de um fenômeno
fantástico, O Duplo, segundo a crítica de Dostoiévski na atualidade, é uma obra transcendente,
mesmo que anteriormente sua recepção não tenha sido favorável.
Outro aspecto interessante acerca da literatura de Dostoiévski em si, presente em O
Duplo, é o panorama social contemplado na obra. Há, literalmente, uma configuração dessa
hierarquia social e a ratificação de uma constante luta pela ascensão social por parte das
personagens não integrativas das altas camadas, ao mesmo tempo que há sempre um discurso
configurado com um tom de soberania nos integrantes da nobreza, bem como um discurso
autodepreciativo por parte de Golyádkin 1, que não se enquadra na conjuntura nobre.
Observemos o seguinte trecho com uma fala de Golyádkin: “Eis, senhores, minhas
regras: se fracasso, não desanimo; se atinjo o objetivo, sigo firme, e seja como for nunca armo
tramas. Não sou intrigante e disto me orgulho. Não serviria para diplomata.” (DOSTOIÉVSKI,
2013, p.38). Notamos que a personagem, sempre reforça que não possui ambições, que é
desinteressante, que não serviria para cargos elevados como diplomata, revelando uma
característica de humildade, além de, principalmente, mostrar aos nobres o quão conformado
está com o que é.

1
Personagem protagonista da trama de Dostoiévski
33

Também é pertinente, pensar o modo como o narrador trata Golyádkin, já que a todo
momento coloca-o como mais íntegro, mais nobre que os demais: “É melhor nos voltarmos
para o senhor Golyádkin, o único, o verdadeiro herói da nossa mui verídica história”
(DOSTOIÉVSKI,2013, p.50). Há sempre a ratificação de que o herói de nossa história é
Golyádkin e não outro personagem, sempre o narrador da obra guia o leitor para que este
acredite no personagem protagonista.
Com o seu duplo, ocorre a mesma situação, mas de forma inversa: o duplo de Golyádkin
não recebe um nome próprio na narração; é sempre tratado como aquele que é arrogante,
presunçoso, que ameaça a reputação da personagem protagonista. No entanto, contrapondo-se
à visão projetada pelo narrador, na narrativa, a personagem é a que mais tem capacidade de
lidar com a nobreza: é a que mais se iguala com esta em ideais.
Há essa interessante conjuntura na narrativa, que revela que mesmo que Golyádkin seja
íntegro, fiel, e bom, não tem ambição suficiente para ascender de classe. Em contrapartida o
seu duplo, por não possuir um comportamento passivo, por ser ambicioso, maleável e
consequentemente mais interessante aos olhos dos nobres, conquista sua atenção com
facilidade.
Graças à presença do duplo há a conscientização de Golyádkin, que passa a perceber
que, da maneira como estava agindo, nunca conseguiria aproximar-se de fato dos homens
nobres. Por mais caráter, atitudes polidas e submissões que tivera em toda a sua vida, como
maneira de sempre ser bem-visto, no fim das contas, outro com mais iniciativas e ousadias lhe
vence por completo. Ao retomarmos o artigo de Mendes (2019), vemos que Freud pontua essas
forças como malévolas, representadas pelo duplo de Golyádkin, na obra de Dostoiévski; trata-
se segundo a autora, de um entrelaçamento do simbólico com o orgânico, ou seja, com a sua
própria pulsão. Em tese, com base nos textos lidos, principalmente na discussão sobre o
inquietante, propomos uma reflexão: a compreensão dos fatores que propulsionam o
sobrenatural nos permite compreender como o sujeito lida com aquilo que lhe é diferente e que
sua rejeição a tal aspecto vem de um processo de recalcamento de seus próprios sentimentos,
isto é, quanto mais o sujeito se conhece e conhece o que lhe é estranho, melhor ele lida com
suas diferenças.

2.1.4 Entre a morte e o além, o duplo

Por meio de sua teoria, Guiomar (1993) propõe que os processos envoltos na
concretização do fenômeno do duplo colocam o ser nos limites da morte. Para comprovar essa
34

questão o teórico faz um trajeto a fim de compreender o fenômeno do duplo em suas mais
variadas disposições. O autor cita dois tipos de desenvolvimento do duplo como pilares nas
obras que comenta: o duplo afetivo e o duplo psíquico. Estes são as manifestações patológicas
espontâneas, que podem ser traduzidas como uma predisposição em ocultar eventualidades.
Dois fatores são associados ao duplo de predisposição alucinatória, como enxergar
fantasmas, espectros e dissociação de personalidade, como a despersonalização. Ele surge
normalmente em seres portadores de conflitos no inconsciente, de repressões e de retornos.
Geralmente, o duplo psíquico gera um processo de enxergar a duplicação em um espectro
antagônico, no teor de ameaça. Vimos esse processo anteriormente em William Wilson, de Poe,
em qual o duplo é uma espécie de espectro do próprio protagonista, bem como na obra de
Stevenson, ao fazer o mal genuíno como parte do próprio Jekyll.
Já o duplo afetivo, em oposição ao teor antagônico do psíquico, surge em uma relação
de reconhecimento de um outro com tendências profundas semelhantes. A afetividade,
portanto « não diz respeito a vida psíquica e ao comportamento geral de outro ser, mas ao que
acontece com ele, mesmo se ele aceita ou causa o evento »(Guiomar, 1993, p.422, tradução
nossa) 2 Esse dito evento afeta um outro no lugar de alguém e, em casos mais intensos, esse
alguém é assumido, voluntariamente, por esse outro. Personagens de substituição e de
transferência, por exemplo são afetivas, como ocorre na obra Efigênia, de Eurípedes, citada por
Guiomar (1993), na qual para que Ifigênia não tivesse que ser sacrificada, trocam-na por um
cordeiro no culto, pois seria o equivalente em ingenuidade e em obediência.
Conseguimos compreender essa questão com precisão ao considerarmos que duplos
psíquicos se enxergam por meio de oposições, enquanto duplos afetivos se reconhecem por
meio de paralelismos ou até mesmo, de prolongamentos. Os duplos afetivos são encontrados
em situações de vida e de morte, em situações individuais mais trágicas que provoquem
extremos. O duplo, nesse caso, solicita posicionamentos extremos, seja por substituições
profundamente sólidas, seja por teor cômico.
Se retornarmos ao ponto crucial da teoria de Guiomar (1993), veremos que a confissão
de uma impressão sentida de limiar do além é evidente, pois o duplo começa a se manifestar
como acontecimento do limiar. Também é sintomático que a visão do além do qual ela resulta
seja feita de acordo com um padrão de aprofundamento do clima que o duplo sente nesse

2
“ne concerne donc pas la vie psychique et le comportement général de l'autre être, mais ce qui lui advient,
même, s'il accepte ou provoque l'événement” (GUIOMAR, 1993, p.422).
35

momento. Por fim, um equilíbrio crepuscular foi estabelecido que só é quebrado com o
agravamento de seus métodos dados.
A relação estabelecida do duplo e do inquietante em si, até o presente momento, com a
morte reside no fato de que os processos recalcados pelo sujeito advêm de relações primárias
da infância, por isso a frequente relação do medo com o feminino e com a morte, pois são os
dois extremos da vida: o feminino é a pulsão de vida inicial e a morte, a pulsão de vida final, o
que traz a noção de finalização de ciclos, de mergulho ao novo, ao desconhecido. Dessa forma
é compreensível essa patologia humana, visto que, intrinsecamente, coloca o sujeito diante
daquilo que mais teme: si mesmo.

2.1.5 Sobre o espelho: a função do outro na imagem do si mesmo

Adilson Santos (2009) em seu artigo Um périplo pelo território do duplo, pontua que a
temática do duplo é popular, pelo fato de este evocar questões inquietantes demais para o ser
humano como sua essência e sua relação com a morte. Apoiando-se nas teorias de Clément
Rosset, comenta que o duplo se origina a partir de um sentimento diverso: a angústia da não
realidade, da não existência; além disso, de modo intuitivo, compreende-se que, o duplo, tem
uma realidade melhor que a do próprio sujeito.
Em todos os textos românticos em que se coloca em cena o duplo, como quem
essencialmente duvida de si mesmo, existe a necessidade de um testemunho exterior, de algo
material, tangível, que o leve a uma reconciliação consigo mesmo.

É por isso que a extinção do duplo significa a morte. Nesse momento, acontece
o que o ensaísta chama de coincidência de si consigo mesmo ou de o retorno
de si a si mesmo (1998:83) e que sempre acaba por prevalecer. Não há como
ocultar [por muito tempo] o real sob o irreal, dissimulando o único atrás do
seu duplo (1998:83), pois o real acaba sempre por coincidir com o real. Tal
desfecho revela, pois, a unicidade irredutível do indivíduo. (SANTOS,2009,
p.84)
Santos (2009) disserta que o duplo ao se transformar na consciência perseguidora e
atormentadora do homem, passa a evocar a morte e o seu caráter invencível. É por isso que “a
origem de todos os tabus parece ser o temor de provocar o espírito mau da morte, em outras
palavras, a própria morte” (SANTOS, 2009, p.60). O autor menciona que, inclusive, o alter ego
é uma das primeiras denominações do duplo, com um teor subjetivo, que assinala a ideia da
heterogeneidade intrínseca ao ser. O alter ego possui um sentido de um outro eu, de um segundo
eu.
36

Na definição de Gredes Rejane Finkler, o alter ego é o eu que é um outro,


duplo que o indivíduo sente em si, simultaneamente, no seu íntimo e no seu
exterior durante toda a sua existência. Segundo a autora, o duplo é a própria
realidade do alter ego(2000:264), deste outro habitado por uma interioridade,
que é ao mesmo tempo idêntico e diferente do eu – até mesmo oposto –, uma
espécie de reflexo (SANTOS,2009,p.71)

Santos também aborda as ideias de Anne Richter, que afirma que, em um certo sentido,
toda a nossa vida representa um encontro do “eu” consigo mesmo e que, nem sempre, tal
encontro é bem-sucedido “já que não é a si que o “eu” encontra, mas “o outro, este estrangeiro
íntimo e desconcertante que cada um carrega em si e com o qual é forçado [...] a coabitar, [...]
a viver” (1995:9)” (SANTOS, 2009, p.71)
Nicole Fernandez Bravo (1998), ao tecer comentário ao verbete “Duplo”, no Dicionário
de mitos literários, menciona que o desdobramento é sinônimo da perda da inocência, que fazia
o homem crer que formava um todo indivisível com a natureza. Essa consciência da capacidade
de desdobramento torna-se, dessa maneira, fonte de terror para o ser humano.
Lacan (1998), em seu texto O estádio do espelho como formador da função do eu
disserta sobre a descoberta da identidade do homem pelo espelho. Segundo o autor, essa
descoberta ocorre depois do indivíduo se reconhecer no espelho, com mais ou menos 6 meses
de vida, o que ocasiona a mudança de sua postura em relação ao mundo.
Ao ver sua imagem refletida, o indivíduo se choca com a realidade duplicada. Tal fato
revela a estrutura ontológica do mundo humano, inserida em nossas reflexões acerca do
conhecimento paranoico. O estádio do espelho é tido como um processo de identificação, pois
é o que caracteriza uma transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem
de si mesmo.

Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes
de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para
o indivíduo isolado ou melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do
sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele
tenha que se resolver, na condição de Eu, sua discordância de sua própria
realidade. (LACAN, 1998, p.98)

O teórico aponta que o sujeito antecipa o reconhecimento da maturidade de sua potência


em uma miragem. A imagem especular parece ser o limiar que insere o sujeito no mundo
visível, apresentado na alucinação transfigurada da imagem de seu próprio corpo.

O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da


insuficiência para a antecipação e que fabrica para o sujeito apanhado no
engodo social as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada
do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica e
37

para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará


com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (LACAN,1998,
p.100)

Christian Dunker, Daniela Chatelard e Márcia Maesso (2017), em seu artigo Formação
do eu, constituição do sujeito e construção da fantasia pontuam que no estádio do espelho, há
um reconhecimento da forma como rival: ao ver-se duplicado no espelho o corpo sofre uma
ruptura vital em sua adaptação imediata ao meio, bem como em sua noção de unidade. Dessa
forma, o sujeito passa a buscar uma restauração de sua unidade corporal, e a imagem especular
passa a ser a representação de sua identidade, que permite o reconhecimento do ideal da imago
do duplo. Na imagem do outro, em que o corpo encontra sua unidade, a sua imagem é
antecipada, em uma situação dual e não simétrica.
Os autores também pontuam que essa fase vivenciada pelo sujeito em sua infância é
essencial, pois o sujeito se transforma à medida que assume uma imagem. “A formação do eu
decorre, portanto, de uma separação inicial entre o eu enquanto idealidade e as formas dos
objetos de sua realidade” (DUNKER; CHATELARD; MAESSO, 2017, p.35).
Andréa Martello e Juliana Ribeiro Martins (2017) em seu artigo mencionam que o papel
do outro na experiência especular é designado por Lacan no movimento da criança em direção
à palavra ou ao olhar de quem a ampara, reconhecendo uma busca que ratifica a experiência de
si vivida no espelho:

É assim que Lacan formaliza, num modelo ótico, as duas instâncias indicadas
por Freud na constituição do eu: a imaginária do eu ideal e a simbólica do
Ideal do Eu, estando a primeira ligada ao campo da imagem do eu na projeção
especular e a segunda, ao campo do olhar e da palavra que legitima o valor da
experiência especular. (MARTELLO; MARTINS, 2017, p.595)

Martello e Martins (2017) comentam que posteriormente à fase fálica, as questões em


relação ao outro se tornam mais marcantes. A angústia se apresenta como indagação ao desejo
do outro. As autoras, pautadas na teoria lacaniana, mencionam que o estádio do espelho tem
um invólucro sedutor ligado não apenas à estrutura de cada sujeito, mas também à estrutura do
conhecimento reiterado pela boa forma, constituindo, porém, um conhecimento fechado em si
mesmo.
Em seu artigo O insólito é o estranho, Nadiá Paulo Ferreira (2009) menciona que a
agressividade humana tem sua origem no estádio do espelho, pois se instaura no sujeito um
sentimento de visualizar o outro como um igual, que suplanta, que possui o que o sujeito deveria
ter. Instauram-se tramas entre o eu e o outro no imaginário, cria-se uma rivalidade especular
38

Lacan, em O Seminário, livro 10: a angústia, referindo-se ao texto de Freud,


O Estranho, afirma que o estranho é o eixo indispensável para abordar a
questão da angústia (Lacan, 2005: 51). Para Freud angústia é angústia de
castração. E para Lacan, a angústia de castração coloca em cena as relações
do sujeito com o Outro. Essas relações remetem para três referências: desejo
do Outro, demanda do Outro e gozo do Outro (FERREIRA, 2009, p.127)

Ferreira (2009) argumenta que, para Lacan, o fenômeno do duplo remete ao estádio do
espelho, pois é um momento de constituição da imagem do próprio corpo como unidade e da
formação do indivíduo. A matriz do eu se localiza no campo do imaginário, desfazendo a
fronteira entre o que pertence ao próprio corpo e ao corpo do outro, fundindo e confundindo os
corpos: “A quebra do limite entre o corpo de um e o corpo do outro é o que Lacan chama de
transitividade” (FERREIRA,2009, p.125)
Com base em nossas leituras e observações, percebemos, que as relações dos sujeitos
com seus semelhantes é uma relação que surge muito cedo e que é extremamente necessária
para a sua maturação como indivíduo. O fato de o primeiro outro, do qual ao tomar
conhecimento o ser humano possui um choque, ser ele mesmo, é emblemático e
elucidativo. Há sempre uma linha tênue entre o que somos e o que os outros são. Nas palavras
de Ferreira (2009, p.127):

Meu desejo, sob a forma do objeto que sou, me exila de mim. O sujeito, diante
do vazio que lhe causa horror, esbarra com sua própria natureza que é a
castração. O estranho dessa natureza é o real que emerge das entranhas do
Nada para assombrar o homem.

Esse estranhamento de si mesmo é recalcado, mas, em vias de convívio social, estamos


condicionados a retornar a esse recalcado. Posto isso, podemos dizer que a experiência do duplo
é intensa, pois trata do retorno a este trauma recalcado de se deparar com a imagem especular
de si mesmo. Assim, o sujeito se vê mais uma vez fragmentado de sua unidade e, mais uma vez,
deve buscar essa unidade no engodo social; acaba por ser, mais uma vez, levado a compreender
sua dialética, a ver no outro um paralelo do si mesmo.
Talvez, esteja aí uma das explicações que torna plausível o fato de o duplo ser uma
temática tão viva e tão estudada ao longo dos séculos. Este é o fenômeno que coloca o
sujeito, novamente, em posição de lucidez perante seu maior medo: sua existência.
Passemos, agora, a observar esse fenômeno, um tanto quanto inquietante, na trajetória
de um sujeito literário específico: Tertuliano Máximo Afonso.
39

2.2 Do nascimento da ordem ao nascimento do caos: a égide narrativa de O Homem


Duplicado

O Homem Duplicado (SARAMAGO, 2002), em suas primeiras linhas narrativas,


apresenta o personagem protagonista: Tertuliano Máximo Afonso, que possui algumas
características pontuais, como ser professor de história, divorciado e depressivo. Entretanto nos
chama a atenção o fato de o narrador nos levar a perceber que nem ele mesmo sabe como fez
para chegar a sua atual situação e que enxerga sua vida como uma grande fadiga. Várias
características vão sendo-lhe entregues como indiferente, preguiçoso e indeciso. Tertuliano é
descrito como um sujeito que deixa por rumos de sorte até mesmo as mínimas decisões de seu
dia, vivendo à mercê de coincidências fortuitas, tirando na sorte até o que comerá em seu jantar.
A história de Tertuliano muda ao assistir a um filme por recomendação de seu colega
de trabalho, na narrativa apenas caracterizado como professor de matemática. Ao ver a trama,
descobre que é incrivelmente parecido com um dos atores coadjuvantes dela. O restante do livro
gira em torno de descobrir os segredos ocultos em torno dessa “coincidência fortuita”.
As 110 páginas posteriores ao acontecimento ver-se duplicado trazem a obsessiva e
desesperada busca de Tertuliano pelo nome do ator. Quando a busca obtém seu famigerado
sucesso, revela-se que o ator se chama António Claro3, atendendo pelo nome artístico de Daniel
de Santa Clara. A partir daí, inicia-se outra jornada: a busca pelo ator em pessoa.
Quando há o encontro real e definitivo dos duplos, começa uma das discussões mais
importantes da narrativa, que consiste na problemática incitada por Tertuliano, que busca saber
se existe uma cópia ou um original e qual deles seria uma cópia. Chega-se a terrível conclusão
de que só há lugar para um nesse mundo e de que cópias não deveriam existir. No entanto, esse
raciocínio não leva a uma morte, mas sim a uma delimitação do poder e dos territórios em que
cada um poderia circular.
Após decidirem esses fatores, Tertuliano e António Claro checam sua data e seu horário
de nascimento, o que revela que Tertuliano nascera minutos depois de António Claro, tornando-
o o outro. Tertuliano acaba descompassado, mas se conforma com sua condição.
Em um terceiro momento da narrativa, o inconformismo vem pungente para António
Claro, que se desespera mais que o próprio Tertuliano. Inclusive, propõe uma troca de
identidade a Tertuliano para verificar se alguém é capaz de distingui-los. António Claro até

3
Utilizamos a grafia do nome do personagem de acordo com o livro, que se adequa a gramática portuguesa,
mediante sua origem.
40

mesmo desejava passar uma noite de amor com Maria da Paz, namorada de Tertuliano;
inclusive, consegue o aval para tal atitude ao ameaçar Tertuliano, por saber que este seria fraco
demais para fazer o mesmo com Helena, sua esposa.
O plano acaba por dar errado, já que Maria da Paz descobre que Tertuliano era, na
verdade, António Claro; eles discutem dentro do carro e ambos acabam falecendo. O original
faleceu na condição de cópia e quem é tido como morto é Tertuliano. Tertuliano resolve contar
a verdade apenas para sua mãe e para Helena. Esta, por sinal, não deseja que a troca seja
desfeita, pois não vê alternativas em que isso possa terminar bem. Tertuliano, portanto, acaba
por abraçar a identidade de António Claro por completo.
A narrativa se finda com uma cena instigante: Tertuliano está sentado em uma cadeira
quando toca o telefone; uma voz idêntica à sua lhe diz as mesmas coisas que ele dissera a
António Claro, quando ligou para pedindo um encontro pessoal. Nesse momento, Tertuliano
fica angustiado, mas decide encontrar a cópia, armado. Por essa cena, subentende-se que, agora,
ele sabe que não há como existir dois iguais. A narrativa, então, termina sem uma solução final,
dando a sensação de que tudo que aconteceu faz parte de um ciclo vicioso e infindável.

2.2.1 A descrição espacial como guia narrativo

Agora que temos um panorama do enredo, passemos a observar algumas análises já


realizadas sobre a obra analisada. Em sua dissertação A construção Duplicada em “O Homem
Duplicado”, Francisco das Chagas Jacinto Alves (2010) pontua que nos primeiros capítulos,
somos conduzidos a explorar, de forma sensorial, o espaço narrativo pelo próprio personagem
protagonista, o que nos faz mergulhar em suas crises, bem como o modo como ele lida com as
situações a que é exposto. Um interessante aspecto ressaltado na dissertação é o seguinte: o
recurso de focalização no espaço residencial desenvolvido como o ambiente mais frequente do
protagonista faz que os leitores da narrativa desenvolvam as mesmas expectativas de
Tertuliano.
Alves (2010) também ressalta que o empenho do narrador em enquadrar Tertuliano
como um sujeito comum se relaciona com o fato de que pretende alinhar o reconhecimento de
um no outro, causando um aspecto de duplo entre o protagonista e o leitor. É nos suscitada aqui
uma necessidade de exemplificar com um excerto da obra que, em grifo nosso, adicionamos à
compreensão:
41

É a altura de informar aqueles leitores que. ajuizando pelo carácter mais que
sucinto das descrições urbanas feitas até agora, tenham criado no seu espírito
a ideia de que tudo isto se está a passar numa cidade de tamanho mediano, isto
é, abaixo do milhão de habitantes, é a altura de informar, dizíamos, que, muito
pelo contrário, este professor Tertuliano Máximo Afonso é um dos cinco
milhões e pico de seres humanos que, com diferenças importantes de bem-
estar e outras sem a menor possibilidade de mútuas comparações, vivem na
gigantesca metrópole que se estende pelo que antigamente haviam sido
montes, vales e planícies, e agora é um sucessiva duplicação horizontal e
vertical de um labirinto, de começo agravada por componentes que
designaremos por diagonais, mas que, no entanto, com o decorrer do tempo,
se revelaram até certo ponto equilibradores da caótica malha urbana, pois
estabeleceram linhas de fronteira que, paradoxalmente, em lugar de terem
separado, aproximaram. (SARAMAGO, 2019, p. 75-76).

Podemos, com esse excerto, perceber que as possibilidades explicitadas por Alves
(2010) são, de fato, coerentes, pois temos um esforço narrativo em ressaltar a condição
mediana na qual Tertuliano se encaixa, o que nos dá a forte impressão de que os aspectos
ressaltados na ficção se poderiam dar, na realidade, na vida do leitor da obra. Por meio dessa
estratégia, é possível acrescentar a essa interpretação a possibilidade de não tratar como um
evento sobrenatural o fenômeno do duplo, mesmo que essa seja a ideia utilizada, de maneira
geral, nos textos nos quais essa questão se configura em horizonte de enredo. Talvez, possamos
acusar, pretensiosa e prematuramente, que seja esta uma das maiores distinções da narrativa de
Saramago em relação a outras de mesma temática: a de revelar que se ver duplicado, em uma
realidade em que muitos dos homens possuem uma mesma rotina, uma mesma renda e os
mesmos sonhos, seja apenas um ato de elucidação da própria realidade, do próprio cotidiano e
do macrocosmo social em que vive.
Retornando ao texto de Alves (2010), é interessante ressalvar como focalizar análise dos
âmbitos espaciais da narrativa nos abre os olhos para possibilidade marcantes de estudo,
levando-nos a compreender como se orquestra a narrativa e como fluem os intuitos de Saramago
quanto ao estilo narrativo empregado na obra. Para o acadêmico, o momento em que Tertuliano
se vê duplicado tem, em sua descrição espacial, um processo cinematográfico. Ainda no
processo descritivo sensorial pelo prisma do personagem, temos o ambiente focalizado como
uma câmera de cinema: por meio de flashbacks da personagem, “as pausas interligadas, tanto
pelas imagens fixas, quanto também pelo uso das vírgulas, fazem com que cada item citado
durante o excerto seja apresentado como se fosse uma tomada de filme” (ALVES, 2010, p.29).
Amparando-nos na metáfora da câmera cinematográfica, podemos somar a essa interpretação
o fato de que isso ocorre porque, antes, já havíamos sido apresentados ao espaço do apartamento
de Tertuliano. Essa atitude de focalizar novamente o espaço, ao vê-lo de forma mais dramática,
42

permite-nos olhar, mais uma vez, para situações já vistas, para a personagem protagonista e
para o espaço que integra com uma nova perspectiva e com novas caracterizações.
Se nos estendermos mais um pouco, dar-nos-emos conta de que esse processo ocorre
em virtude de tal momento ser crucial na narrativa, pois o acontecimento do dito evento, que
pode ser chamado de absurdo, tira Tertuliano de sua rotina, tão detalhadamente escrita e tão
esforçadamente caracterizada como comum, para se tornar um sujeito que sofreu algo
sobrenatural. Há uma espécie de esforço de Saramago nesse episódio para tornar incomum o
comum. No entanto, se retornarmos à primeira reflexão, ver-se duplicado, mesmo sendo tão
comum, indistinguível, irrelevante a tantos outros, é algo que não deveria ser tão excepcional:
porém ao focalizar a mentalidade e, a interioridade de Tertuliano, tal situação se torna-se
sobrenatural. A reflexão pertinente é a de que aquilo que, para o narrador, pode parecer algo
sem motivos de alarde, para a personagem, que não possui o nível de consciência do narrador,
torna-se um evento extraordinário.
Nesse sentido, vemos que o texto pode ser interpretado por dois vieses: o do narrador e
o do personagem. Quem toma as ações de Tertuliano como guia se enrola por meio de seu caos,
mas quem segue a perspectiva crítica do narrador decifra a ordem oculta. Talvez seja essa a
razão de uma das epígrafes ser “o caos é uma ordem a decifrar”, uma vez que, possivelmente,
a única maneira de lidarmos com o caos dos acontecimentos da narrativa é atentarmo-nos aos
discursos do narrador.
Se formos pelo herói da história, é tudo indissolúvel, sobrenatural, inquietante, mas
quando somos guiados por aquele que narra que, de forma onisciente, vê os acontecimentos,
temos a capacidade de perceber que esse herói só é herói na odisseia do cotidiano e que seus
extraordinários acontecimentos só têm essa caracterização para alguém que é tão ordinário e
comum como ele.

2.3 Tertuliano versus Saramago: sobre aquele que, ditatorialmente, transforma o caos em
ordem

Já que mencionamos o papel crucial do narrador nessa obra, este será o objeto de análise
neste tópico. Em seu artigo A escrita “sob controle”: considerações sobre o narrador na ficção
de José Saramago, Madalena Vaz Pinto (2009) afirma que o narrador saramaguiano está a
serviço da história, além de colocar este e o autor no mesmo patamar, “expondo uma concepção
de autoria clássica onde o texto é entendido como o resultado de uma intenção autoral que o
43

leitor deve decodificar.” (PINTO,2019, p.2). A autora crê que Saramago possui uma “escrita
sob controle”, “que não reconhece a alteridade do narrador nem a participação do leitor na
construção de sentido.” (PINTO,2019, p.2). Saramago, inclusive, ironiza a alteridade de sua
narração em O Homem Duplicado:
Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas,
em que qualquer manifestação paralela de ideias e de sentimentos por parte
do narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse momento
as personagens deveriam ser expressamente proibidas pelas leis do bem
escrever. (SARAMAGO,2019, p.35)

Um processo interessante que ocorre em O Homem Duplicado é essa descrição


exacerbada de fatos cotidianos da personagem que nos aparentam ser inúteis. Porém ao
considerarmos o método narrativo de Saramago, tal ação literalmente faz ser o narrador o dono
de um perfil analítico, que caracteriza psiquicamente a personagem, que cria sua personalidade
com detalhes, que faz seu leitor perceber do que ela é ou não capaz, mediante seus relatos.

Podemos por este excerto inicial imaginar que Tertuliano Máximo Afonso
examinou sem complacência a cara que tinha diante de si e, no todo, achou-a
com melhor aspecto. Na verdade, qualquer observador imparcial, fosse ele
masculino ou feminino, não se recusaria a definir como harmoniosas, se
tomadas no seu conjunto, as feições do professor de História, e, seguramente,
não se esqueceria de tomar na devida conta a importância positiva de certas
leves assimetrias e certas subtis variações volumétricas que constituíam, por
assim dizer, o sal que, no caso vertente, espevitava aquela aparência de manjar
insosso que quase sempre acaba por prejudicar os rostos dotados de traços
demasiado regulares. (SARAMAGO,2019, p. 34).

Por meio do excerto anterior, percebemos tal questão muito bem proposta: o próprio
narrador nos guia para muitas reflexões acerca de Tertuliano Máximo Afonso, como se, por
meio da narração, passasse um recado para o leitor, o de que não há necessidade de analisar a
personagem, porque aquele que narra sua história já está fazendo isso por quem lê.
Robert Escarpit (1974) em seu texto Lo Literario y Lo Social, menciona que o escritor
forja uma ideia de público que consciente ou inconscientemente, discerne sua ossatura, tenta
captar seu jogo fugaz de expressões e de realidades de conflito. Percebemos que Saramago faz
uso da projeção de seu público leitor, tentando constantemente, provocar conflitos, bem como
conflitos, que, provavelmente, surgiriam durante a leitura da obra.

Ainda que, como sabemos, a sua adicção à sétima arte seja de fresca data e a
sua ignorância acerca de todas as questões atinentes à indústria da imagem
continue praticamente inalterável, sabia, calculava, imaginava ou intuía que
os filmes em estreia não seriam lançados imediatamente no mercado do vídeo.
Para chegar a esta conclusão não era necessário ser-se dotado de uma
portentosa inteligência dedutiva ou de mirabólicas vias de acesso ao
44

conhecimento que prescindissem do raciocínio, tratou-se de uma simples e


óbvia aplicação do mais corriqueiro senso comum, secção mercado, subsecção
venda e aluguer (SARAMAGO,2019, p.81)

Pelo trecho anterior, conseguimos vislumbrar como ocorre a análise do narrador na


obra; ele sempre se coloca no papel de opinar sobre personagem, de guiar seu leitor para a
interpretação desejada por ele próprio. Isso nos leva a duas reflexões: a primeira diz respeito
refletir que o império da autoria de Saramago é tão controlador a ponto de doutrinar seu leitor
a visualizar aquilo que ele crê; já a segunda intenção saramaguiana é de justamente, fazer seu
leitor sair de análises óbvias, fazendo-o duvidar da personagem e sobretudo, do
narrador. Segundo Montaury (2011) o escritor redige sua ficção como um lugar de privilégio,
de observação e de indagação acerca da realidade.

Aquilo que nos cabe em partilha (CERTEAU, 2003, p. 31) – política, cultural
ou historicamente – e que pressupõe a existência de uma rede de significados
que constitui material e simbolicamente as comunidades é, na escrita de José
Saramago, a argamassa com que se gera o comum. O problema é o juízo que
se faz da qualidade desta argamassa; em outras palavras, é o fio sentencioso a
que se referiu Eduardo Prado Coelho. (MONTAURY, 2011, p. 68)

Podemos perceber que tal como propõe Montaury (2011) esta ideia construída pela
narrativa do romance de provocar no leitor uma reflexão em meio à observação dos fatos
retratados constitui uma faca de dois gumes, ou seja, é aquilo que distingue Saramago
linguisticamente, ao mesmo tempo é o que o fragiliza diante a crítica, assim como acontece
seu recurso estético de pontuar seus textos da maneira que bem entende.
Em seu artigo José Saramago: ficção inovadora e criativa, Maria Luiza Remédios
(2011, p.164) argumenta que o autor “produz uma linguagem em que o passado objetual
contamina-se pelo presente crítico e perspectivante, utilizando, desse modo, um processo de
autonímia pela sinalização textual que pratica no discurso romanesco.” A crítica ainda pontua
que os romances saramaguianos “são balizados pelo lirismo, pela capacidade de irradiação
semântica que multiplica temas e situações” (REMÉDIOS,2011,p.164), além de terem como
recurso formas evasivas do transcendente, o que pode ser verificado em produtos literários
voltados para uma problemática sócio-histórico-política, que acabam por exigir leituras nas
quais seus valores redigidos se tornem plenamente significativos quando enriquecidos pelos
valores dispersos na realidade.
De acordo com Agnes Teresa Colturato Cintra (2008), em seu texto Auto-
intertextualidade em romances de José Saramago: notas sobre a relação entre narrador e
personagem, a narrativa saramaguiana está em constante metamorfose, fazendo emergir
45

intertextos, construindo dialogismos intensos, que constroem uma escrita introspectiva que
atravessa a forma, assim como o discurso explora a sintaxe. A autora pontua que a reflexão do
narrador sobre a indefinição das vozes que compartilham seu discurso nos leva a compreender
a independência das personagens quanto à perspectiva narrativa e os limites interpenetrados
pelo narrador. Menciona que o narrador de O Homem Duplicado, ao demonstrar ser leitor de
Saramago, articula relações “autointertextuais”, pois cita personagens já criados pelo autor,
mencionando que nenhum deles teve a infelicidade de chamar-se Tertuliano; insere
antecipações que desarticulam o fluxo da narrativa; coloca sua onisciência como contraste ao
seu conhecimento acerca do personagem, restrito ao passado. Nas palavras de Cintra (2008,
p.6) “A despeito dessa indisposição inicial, o tema do duplo instaurado pelo narrador encontra
a esperada acolhida por parte da personagem que, mesmo se mostrando inquieta, submete-se
ao fato de existir um ator de cinema que duplica a sua figura.”
Cintra (2008) ainda disserta que a tensão se instaura a partir do momento que o narrador
descreve ironicamente os traços de Tertuliano, quando também, por meio de comentários
metadiegéticos, passa a supor como a vida de Tertuliano poderia ser se ele tivesse tomado outro
rumo. Esse tipo de comentário, de acordo com a autora, no contexto romanesco, sinaliza a
presença de uma ótica superior do escritor José Saramago “que a tudo preside dos bastidores
da criação e que, neste momento, mostra a sua implicação no texto que expõe a sua hierarquia
interna” (CINTRA, 2008, p.6)

Prevista por esta voz que invade a narrativa, a reação terrível desencadeada
pela imprudência do narrador passa pela transformação do dócil e submisso
professor e alcança o nível da insubordinação quando ele se recusa a usar o
disfarce da barba ridícula enfim, quando ele se recusa a agir, provocando a
exasperação do narrador: não se sabe muito bem que fazer com os
pensamentos que a personagem está a ter por sua própria conta, sobretudo se
não têm qualquer relação com as circunstâncias vivenciais em cujo quadro
supostamente se determina e atua. Tertuliano se nega a falar e passa a
murmurar, solapando o trabalho do narrador que se justifica: há coisas que
nunca se poderão explicar por palavras (SARAMAGO, 2002, p. 52 e p.
60).(CINTRA, 2008, p. 6)
A estudiosa ratifica que, em função da rebelião do personagem, a narrativa tem “horror ao
vazio”, desarticulando-se em suas extensas digressões; fragmentada, sustenta-se na narração de
episódios inócuos. Inaugurando uma nova forma de narrar, O Homem Duplicado tem a
consistência necessária para a temática do duplo. A citar Saramago:

o aviso, sempre desinteressado, quando a verdade inteira, se realmente a


quisermos conhecer, se não nos contentarmos com as letras gordas da
comunicação, reclama que estejamos atentos à cintilação múltipla dos
subgestos que vão atrás do gesto como a poeira cósmica vai atrás da cauda do
46

cometa, porque esses subgestos, para recorrermos a uma comparação ao


alcance de todas as idades e compreensões, são como as letrinhas pequenas do
contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão lá. Embora ressalvando a
modéstia que as conveniências e o bom gosto aconselham, em nada nos
surpreenderia se, num futuro muito próximo, o estudo, a identificação e a
classificação dos subgestos viessem, cada um por si e conjuntamente, a tornar-
se num dos mais fecundos ramos da ciência semiológica em geral.
(SARAMAGO,2019,p.49)

Saramago, como se pode perceber, adiciona tais subgestos na forma de linguagem,


incessantemente. Adjetiva, a todo instante nosso personagem como se nos guiasse a uma
interpretação, a um significado, como se a obra fosse um crime, cujas pistas estão sendo-nos
entregues, constantemente, para que possamos solucionar o mistério oculto pelas linhas de um
enredo não tão cativante. Em suas minúcias narrativas, cuidadosamente nos mencionou que a
ira dos mansos não anuncia uma boa nova : “Por isso, para muita gente, a prece mais fervorosa,
na hora de ir para a cama, não é o consabido pai-nosso ou a sempiterna ave-maria, mas sim
esta, Livrai-nos, Senhor, de todo o mal, e em particular da ira dos mansos.” (SARAMAGO,
2018, p.47). Outro exemplo é o que temos a seguir:

É certo que o poderia fazer depois, em qualquer altura, mas a ordem, como do
cão se diz também, é a melhor amiga do homem, embora, como o cão, de
quando em quando morda. Ter um lugar para cada coisa e ter cada coisa no
seu lugar sempre foi uma regra de ouro nas famílias que prosperaram, assim
como tem sido abundantemente demonstrado que executar em boa ordem o
que se deve foi sempre a mais sólida apólice de seguro contra as avantesmas
do caos (SARAMAGO,2018, p. 67)

Ele ainda alerta que a ordem existe para nos livrar do iminente caos, mesmo que os
finais de capítulos sejam contraditórios em relação aos inícios. Quando termina com a reflexão
do professor de matemática sobre Tertuliano ser um novo homem, inicia dizendo que

Ao contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos
dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos
um grau acima do mero exercício escolar, o homem não havia mudado, o
homem era o mesmo (SARAMAGO,2018,p.45)

Passamos a notar que, de todas as formas possíveis, o narrador nos tentou fazer decifrar
como essa ordem facilmente viraria um caos, mas deixou em mãos, seus leitores a missão de
encontrar novamente a ordem circunscrita no colapso narrativo de um autor que gostaria de
que sua narrativa conduzisse seu leitor a tudo menos ao vazio.
No entanto, há que se refletir que, talvez, nessa sede de reflexão, ele acabe por
menosprezar a capacidade de leitura daquele que lê sua obra, tal como menospreza e
subalterniza seu herói protagonista; em uma vontade de erradicar o senso vago de sua obra, ele
47

deixa vago um lugar crucial: o de quem a lê. Na intenção de não deixar sua obra sem reflexões,
acaba inflando-as, de tal forma que ousamos dizer que Saramago ignorou a terceira instância,
o seu público, pois no intuito de fazê-lo mais reflexivo, tornou-o apenas um reprodutor de suas
próprias reflexões, e essa sim é atitude sentencial da construção dessa narrativa. Sem mais
delongas, continuemos nossa nem tão imprevisível análise.

2.4 Aquele para quem o caos se instaura: a construção de Tertuliano Máximo Afonso

Agora que temos ciência do conteúdo da narrativa como um todo e do modo como os
fatos se configuram no enredo, passemos a analisar a construção da figura de Tertuliano
Máximo Afonso na narrativa. É interessante pontuar como Saramago, por meio das
coincidências fortuitas que se colocam ao longo da travessia do destino da personagem, revela
que esta não tem capacidade de tomar decisões por si mesma, ficando à mercê de resultados
abstratos e totalmente imprevisíveis para sair de seu nicho. Isso revela o quanto a personagem
é fechada apenas em si mesma; tão fechada que é incapaz de perceber o quão dependente é de
influências externas.
Em contraste a esse marasmo e desinteresse, há também uma interessante oposição nas
caracterizações das ações cotidianas de Tertuliano, há sempre uma atmosfera de obrigação e de
condicionamento em torno das ações do personagem. Quando Tertuliano burla sua rotina, os
episódios de um modo geral, são caracterizados como uma espécie de pecado, como se fosse
impossível sair do ciclo vicioso ao qual está condenado em sua atmosfera cotidiana.
Como já mencionamos anteriormente, os vocábulos que caracterizam Tertuliano são
muito bem pensados e colocados. Em uma leviandade de assistir a um filme ao invés de corrigir
os textos de seus alunos, ele pede perdão aos textos por tê-los abandonado, pois ficou contrito
pelo pecado de ter saído do curso de sua monótona rotina agindo como quem tivesse trocado
um castigo doloroso por um menos efetivo na correção. No entanto “Ao cabo de quatro páginas
adormeceu serenamente, sinal de que tinha sido perdoado” (SARAMAGO, 2018, p.21).
Em sua dissertação intitulada No limiar do outro, o eu: a temática do duplo em José
Saramago, Josiele Kaminski Corso (2006,p.24) pontua que “Saramago propõe situações que
podem acontecer no mundo real, mas apresentadas sob uma ótica irreal, sobre o signo do
imponderável, do interregno, do talvez” Segundo a autora Tertuliano se insere no mundo real
por meio de participações de sofrimento, de angústia em suas tentativas de estabelecer margens
48

entre si, o outro e o mundo por isso, torna-se difícil a missão de separar a linha entre realidade
e ficção.

A fragmentação da personagem, a dúvida de saber quem ele é instaura um


contínuo movimento, construindo um calidoscópio de vozes, que ecoam e
entrecruzam entre si, confundindo e contrapondo-se: ele está a se transvestir
em outro, a dividir-se, a duplicar-se, mesmo sem perceber isso. (CORSO,
2006, p. 26).

Um dos aspectos mais interessantes do trabalho de Corso é sua análise das relações
estabelecidas entre Tertuliano e o dito senso comum, que o persegue como se fosse uma
consciência. Para a pesquisadora, o senso comum é aquilo que resgata Tertuliano, trazendo-o
ao mundo real; é aquilo que o alerta para a realidade, para os perigos da situação que vivencia.
Alexandre Montaury (2011), em seu artigo Identidade, cotidiano e epidemia em O homem
duplicado, argumenta que os aparecimentos do Senso Comum, como personagem, como figura
que nasce do texto, têm função moderadora em Tertuliano, pois evidenciam o seu caráter
irresoluto, levando-o a ponderações que se articularam com o desenvolvimento da narrativa.
Como menciona Eduardo J. R. Santos (2014), em seu artigo A revelação do problema da
exterioridade em José Saramago: um ensaio sobre O Homem Duplicado (2014),

Tertuliano, entre a realidade comezinha da sua vida simples e um épico


desafio existencial, entre a sua proverbial e teatral melancolia, permeada pelos
diálogos com o personagem ‘senso-comum’, e uma epifania que nem ele
compreendia, duplicava-se, multiplicava-se em esgueires heróicos. Afogado
num noturno drama místico, essa era a sua defesa diurna (Durand, 1983).
(SANTOS, 2014, p. 1453).

Citando Jourde, Montaury (2011) afirma que o romance de Saramago atualiza o mito,
revelando a contradição do homem urbano, que vive em um mundo de quantidade, com milhões
de seres parecidos, ao mesmo tempo que o narcisismo contemporâneo e o sistema capitalista o
convencem de sua originalidade.
Ao colocarmos esses olhos na narrativa, vemos que Tertuliano vive em uma linha tênue
entre o narcisismo e a autopiedade. O que o distingue como indivíduo em relação aos outros de
sua classe é o seu descontentamento com a sua vida. Na narrativa, temos conversas extensas
entre ele e o professor de matemática de seu colégio, que acredita que, se Tertuliano tivesse
mais lazeres em sua vida pessoal, toda sua depressão e seu descontentamento se
esvairiam. Contudo, quanto mais passamos a conhecer a personagem, mais temos a noção de
que nada disso realmente a contempla, porque o protagonista não se sente pertencente aos
espaços que integra, pois sempre manifesta uma sensação recorrente de deslocamento, que é
49

transposta pela maneira como a personagem lida com sua vida, sem fazer questão de nada,
como alguém que se recusa a viver uma vida que não escolheu, mas a que fora condicionado.
“Contentar-me-ia com pouco, se o tivesse, Algo terá por aí, uma carreira, um trabalho, à
primeira vista não lhe encontro motivos para lamentos” (SARAMAGO, 2019, p. 14).
Lukács (2003), em sua obra História e Consciência de Classe, ratifica que os homens
possuem a consciência da totalidade de sua existência apenas em suas relações sociais.
Ao relacionar a consciência e a totalidade da sociedade, podemos reconhecer os pensamentos
e os sentimentos que os homens teriam tido em uma determinada situação da sua vida, caso
tivessem a capacidade de compreender perfeitamente essa situação e os interesses dela
decorrentes, tanto em relação à ação imediata quanto à estrutura de toda a sociedade conforme
esses interesses; a isso atribuímos o nome de consciência possível.
O que podemos afirmar, mediante os acontecimentos narrados, é que Tertuliano adquire,
de certa forma, essa consciência no contato com o seu duplo, pois, ao ver-se transfigurado em
outra pessoa, que vive uma realidade muito mais agradável e privilegiada, é como se ele tivesse
enxergado a si mesmo em tal posição.
Montaury (2011) menciona que Tertuliano, em suas conversas com sua mãe, interpreta
seus presságios, significando-os com base não apenas em sua formação como professor de
história, mas como se tivesse um destino fatal, ou seja, “a consciência de haver outro a violar
abruptamente a sua pacata subjetividade é o dado que instala o sobrenatural na banalidade da
sua vida, ameaça constante a sua autenticidade” (MONTAURY, 2011, p. 70).

2.5 No múltiplo caos, a ordem individual: Saramago em diálogo com Poe e com
Dostoiévski

Agora que conhecemos a teoria, a história temática, a constituição do enredo e da


narrativa, os percursos do narrador e a construção do protagonista, podemos,
finalmente, direcionar nossas atenções às relações de Tertuliano com seu duplo, materializado
narrativamente em António Claro.
Delineamos aqui o perfil do protagonista da obra: passivo, subserviente, mas que
assume uma postura de ação, quando opta por sair em busca da identidade de seu duplicado.
Na narrativa, percebemos que o protagonista deixa por completo sua realidade ao tentar
desvendar quem é o homem em que se viu duplicado, o que diz muito sobre sua personalidade
50

e sobre como ele lida consigo mesmo. O interessante e curioso fato por trás desse mistério é a
necessidade que Tertuliano tem de apenas encontrar fisicamente o seu duplo, ao invés de
procurar documentações em cartórios acerca da data e do local de nascimento deste, o que
resolveria embates como se poderiam ou não ser gêmeos, mesmo que esse conflito de
irmandade seja desmistificado pela mãe de Tertuliano no delongar narrativo. De modo geral, o
fato é que o protagonista ignora qualquer recurso que não seja o encontro com sua duplicata.
Madalena Aparecida Machado (2004), em seu artigo Pensar o ser e o agir em O Homem
Duplicado, assinala que o título da obra não esclarece quem é o homem que foi duplicado e
quem é sua cópia, afinal, mesmo que a narrativa se centre na perspectiva de Tertuliano, no fim
das contas, quando ele se encontra com António Claro, quem acaba sendo a cópia é ele mesmo.
Esse golpe implacável na narrativa retira de Tertuliano a capacidade de ação que lhe fora
entregue ao se descobrir duplicado, pois esse fator o retira do seio de seu cotidiano, colocando
um “extra” em seu ordinário. No entanto, ao entender-se cópia, ele retorna ao seio da
passividade em que se encontrava.
De modo geral, Tertuliano sempre se coloca em posição de completa subordinação em
relação a António Claro, nunca tendo controle da situação. Inclusive, quando este exige uma
troca de identidade e, até mesmo, uma noite com sua namorada, ele nada faz para impedir.
Ressaltamos, inclusive, que António Claro sugere a troca justamente por ter a ciência do traço
omisso de personalidade do protagonista.
Muito além do horário de nascimento posterior ao de António Claro, Tertuliano possui
toda uma postura de cópia, já que é subserviente ao seu original. Durante a busca pelo nome de
seu duplo, fica completamente obcecado por ele; deixa de pensar em si mesmo; fica imaginando
como seria sua vida se tivesse a vida de seu outro, se fosse ator, se tivesse seguido outro rumo.

Por mínima que seja, a experienciação da diferença presente em Tertuliano e


António, faz de cada um ser homem na abertura para o extraordinário da vida
porque eles são ‘este estranhíssimo, singular, assombroso e nunca antes visto
caso do homem duplicado, o inimaginável convertido em realidade, o absurdo
conciliado com a razão’, (SARAMAGO, 2002: p. 167). Pela vida, vivências
de ambos encontramos a dimensão com que se medem e são. Por isso o
mistério? O que vem ao encontro deles a fim de ser tomado como medida? É
o desconhecido? A estranheza de seu caso? Desta, pode-se entrever a
proximidade que os explica? A narrativa deixa um rastro de interrogações e o
homem jogado entre marasmo e ousadia vai se construindo a passos frouxos
ou entusiasmados por saber quem seja. Isto é característico da produção
literária de José Saramago ao colocar na mão do homem a decisão do seu
destino. (MACHADO, 2004, p. 5).
51

Tertuliano poderia ter construído outro destino, usado da possibilidade de se descobrir


na descoberta de um alguém semelhante a si, mas ele escolheu rejeitar-se, resumir-se à cópia,
subalternizar-se. A verdade, porém, é que Tertuliano nunca soube quem era e, dessa maneira,
não poderia ratificar uma identidade que nunca tivera.

2.5.1 Saramago versus Poe: o outro como extensão de si mesmo

Com o intuito de melhor compreender essa questão, nesta subseção, comparamos nosso
romance com o conto William Wilson, de Edgar Allan Poe, já mencionado aqui anteriormente,
que se trata da história de um homem que se vê duplicado quando criança e que segue na
perseguição de seu duplo, até que consegue encontrá-lo já adulto. Em uma festa, planeja sua
morte, mas, ao matá-lo, revela-se ao leitor que ambos estavam em uma sala de espelhos e que
poderia ter matado a si mesmo.
Em seu artigo William Wilson em o Homem duplicado, Elaine Christina Mota (2011)
menciona que, ao se considerar a ironia pungente do romance, há um contraste em relação ao
conto de Poe: diferentemente de William Wilson, Tertuliano nunca quis libertar-se de seu
duplo, pois a presença deste lhe causava um incômodo, mas não ao ponto de fazê-lo desejar a
morte de seu outro, a qual ocorre em virtude de uma fatalidade. No entanto, desde o início, fica
claro que, se não fosse a tragédia, isso não ocorreria, pois Tertuliano sempre fora submisso a
António Claro, postura nunca assumida por William Wilson no que diz respeito ao duplo. Nas
palavras de Mota (2011, p. 19),

Se considerarmos que Poe também sofria, ainda que antecipadamente, da


angústia e do desespero finisseculares que acometem todos os escritores e
leitores, podemos afirmar que Poe estava à procura de uma saída ou solução
para as aflições da alma humana, ao contrário de Saramago, que, por sua vez,
já aceitou o ‘Destino’ – como seu narrador pontua – do ser.

Além de todas essas condições, temos a questão de William Wilson saber quem é, saber
sua originalidade; para provar isso, há uma suposta morte da cópia no fim da obra, ainda que
se instaure uma aura de mistério em torno dessa conclusão; em contrapartida, Tertuliano não
possui a certeza de sua originalidade e isso o instiga a procurar a verdade dos fatos.
Ressaltamos, porém, que ambos se assemelham no fato de a morte dos respectivos duplos
significar a sua própria morte, “afinal, Tertuliano Máximo Afonso estava fisicamente vivo para
52

o mundo, mas sua alma havia morrido juntamente com António Claro, tanto quanto a de
William morreu ao se libertar de Wilson.” (MOTA, 2011, p. 24).
Demoramos muitas linhas narrativas para constatar que o que motiva o enredo de
Tertuliano, o que o torna interessante, o que traz um clímax para a vida do protagonista não é
ele mesmo, mas António Claro – uma descoberta triste e curiosa. Se compararmos a obra
portuguesa com a narrativa de Poe, essa conclusão se torna ainda mais precisa: o tempo todo
William Wilson tem consciência de que não é a cópia, não age como cópia; o enredo gira em
torno de seu embate, que, resumidamente, baseia-se em descobrir quem é o outro que o copia.
Tertuliano, em oposição, sempre possuiu a dúvida de ser ou não o original; e a narrativa
faz questão de dizer que não. Toda a história se pauta na busca obsessiva de Tertuliano por
António Claro. Nos momentos em que a narrativa não gira em torno da obsessão, temos
circunstâncias comuns e não extraordinárias para serem retratadas em um romance; é somente
quando Tertuliano se vê duplicado que a narrativa ganha vigor e cresce em termos de enredo.
Pensando bem, a narrativa de O Homem Duplicado não é sobre a procura da identidade
de Tertuliano, e sim sobre a procura da identidade de António Claro – mesmo que, por algumas
vezes, essa procura esteja ligada a um nível identitário de Tertuliano, que até questiona sua mãe
para saber se não possuía um irmão gêmeo. Até mesmo as existências do nome físico e da
identidade de Tertuliano se findam com o fim da existência material de António Claro, e, por
isso, talvez ele tenha o impulso de desejar matar a terceira possível cópia que insurge no fim da
narrativa, pois, naquele momento, a busca pelo si mesmo acabou; a postura de cópia acabou.
Em outras palavras, ele sabe quem é, sabe que agora ele é o original e sabe que, em seu lugar,
António Claro faria o mesmo: colocaria um fim no ciclo vicioso a que fora entregue.

2.5.2 Saramago versus Dostoiévski: o duplo (des)conscientizador

Ainda precisamos aprofundar-nos na complexidade da disposição dos fatos. Para isso,


retomamos questões acerca da consciência, já propostas no tópico de análise da configuração
de Tertuliano na narrativa. Gilbert Mury (1974), em seu texto Sociología del Publico
Literario. El concepto de personalidad base y la convergencia de los procedimientos de
investigación, delineia os processos formadores de uma sociologia da literatura. Para fundar
uma sociologia da literatura escrita e teorizada, Goldman e seus discípulos interpretaram o
conceito lukacsiano de consciência possível, a qual é entendida como a consciência que homens
teriam caso fossem capazes de compreender perfeitamente uma situação e os interesses que a
53

envolvem dentro de uma classe, quando se conhece seu lugar dentro de uma totalidade social e
seu lugar nas relações de produção.
Mury (1974), no entanto, pontua que a consciência possível se distingue do pensamento
empírico que povoa as consciências pessoais, uma vez que aquela não é puramente ideal; ela
existe como estrutura fundamental constitutiva de pensamentos individuais, pois, na
especificidade de um pensamento individual, há a universalidade de uma situação.
Há ainda a menção ao dever de reflexão sobre o conceito de personalidade transferido
à luta de classes, dando, dessa forma, nova luz à consciência possível e ao pensamento
individual, mencionando que a determinação da consciência possível, de uma classe, em função
de sua produção social, permite perceber a distância que os separam de seus
pensamentos individuais. Mury (1974) destaca que uma opção para interpretar uma
consciência possível seria realizar a posição hipotética de sua estrutura e de suas alienações,
porque esse processo ajudaria na construção de sua personalidade, desenvolvendo-se em uma
média definida por determinismos de classe.
A fim de se esclarecer que não há um processo de consciência ou de aquisição de
identidade própria em Tertuliano, comparamos sua trajetória não com um conto, mas com outro
romance, O Duplo, de Dostoiévski, que narra a história de um funcionário público que tenta
ascender socialmente, sendo um modelo de homem social para se casar com a mulher que ama,
e que se vê duplicado em um outro, cujas características, segundo o narrador, são opostas às
suas: não benevolente e com caráter duvidoso. No fim, seu duplo conquista tudo aquilo que ele
desejava, com maior facilidade, o que nos leva a refletir que, se você quiser ser parte da alta
sociedade, não importa ser o mais bondoso dos homens, pois, para tal feito, é necessário ter,
pelo menos, ganância e astúcia.
Digamos que, se, em Dostoiévski, o duplo fez o personagem reconhecer os processos
sociais e da conjuntura das classes, em Saramago, o duplo é cegante. Tertuliano, ao término do
romance, está mais próximo do duplo de Golyádkin do que dele mesmo. Ao ver-se duplicado,
ele começa a cogitar como poderia ter sido sua vida se tivesse a profissão e o status de seu
duplicado, porém, em momento algum, ele tenta modificar a sua própria realidade; há sempre
um movimento de projeção de sua realidade para a de seu outro. A consciência de Golyádkin
mediante a sua realidade se dá por meio de seu duplo, assim como em Tertuliano Máximo
Afonso, no entanto, a consciência que este adquire é falsa, enquanto a daquele, não.
Vejamos mais atentamente ambos os casos. Golyádkin sempre adquire uma postura
passiva quando está com pessoas de uma classe adjacente a sua, bem como quando suas atitudes
podem manchar sua imagem com pessoas mais nobres que ele, como podemos observar neste
54

trecho: “recomeçou o senhor Golyádkin em voz baixa, porém de forma significativa e um tanto
solene, detendo-se em cada ponto” (DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 24). Notamos que se dirige ao
nobre Crestian Ivánovitch com uma enorme cautela, seja com seus vocábulos, seja com o tom
utilizado em sua frase.
Há um constante conformismo de Golyádkin no que diz respeito à sua condição social,
uma evidente submissão, pois acreditava que, dessa maneira, seria respeitado pelos nobres. No
entanto, quando confrontado pelas peripécias de seu duplo, as quais lhe eram creditadas,
Golyádkin se mostra ativo e defende-se mesmo diante da alta sociedade:

É até o contrário, Crestian Ivánovitch; e para dizer tudo, até me orgulho de ser
um pequeno e não um grande homem. Não sou um intrigante e disso também
me orgulho. Não ajo às escondidas, mas às claras, sem artimanhas, e embora,
de minha parte, eu pudesse prejudicar, e poderia muito e até sei a quem e como
fazê-lo, Crestian Ivánovitch, não quero me sujar e neste sentido lavo as mãos.
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 24).

Entretanto apenas o faz porque percebe que poderia perder todos os anos de conduta
regrada para construir uma boa aparência perante a nobreza, com a má índole de um outro
idêntico em aparência que surgia.

Não se sabe o tempo exato que passou nessa ocupação. Sabe-se apenas que no
lapso desse instante o senhor Golyádkin chegou a tal desespero, sentiu-se tão
torturado, tão atormentado, tão exaurido e com seus já minguados resquícios
de força tão reduzidos, que se esqueceu de tudo: da ponte Izmailovski, da rua
Chestilávotchnaya e do seu momento presente... Mas qual! ora, para ele não
fazia diferença: a coisa estava feita, concluída, a decisão consolidada e
assinada; o que mais?... De repente... de repente seu corpo inteiro estremeceu
e, num gesto involuntário, ele pulou dois passos para um lado.
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 66).

Esse excerto é muito pertinente para reforçar nosso raciocínio acerca de Golyádkin,
porque ficam evidentes a insegurança nele causada pela existência do duplo e o quanto essa
preocupação está sempre reduzida e sempre destinada ao nível de seus negócios, pois, pensando
bem, é isto que importava para Golyádkin: que seu plano de anos não fosse destruído pela
presença de seu duplo.
Apesar disso, seus planos naufragaram. Como seu duplo transitava em uma zona que
poderia causar problemas a sua imagem, por tomar atitudes duvidosas cuja culpa recaia sobre
Golyádkin, para se tornar um alguém íntimo dos nobres, por ter soberba e vontade de crescer
na vida, Golyádkin se torna inútil aos nobres por ser passivo e regrado demais. Essa situação
lhe esclarece que ele sempre fora apenas um servidor público e que o fato de ele ter contato
com alguns nobres não o faz ser insubstituível nem melhor que qualquer outro de classe.
55

Já no caso de Tertuliano, essa lucidez não ocorre: a personagem, antes uma pessoa
inconsciente de sua capacidade de sair da posição em que se encontra, torna-se um alguém
falsamente consciente dessa capacidade.

Contentar-me-ia com pouco, se o tivesse, Algo terá por aí, uma carreira, um
trabalho, à primeira vista não lhe encontro motivos para lamentos, É a carreira
e o trabalho que me têm a mim, não eu a eles, (SARAMAGO, 2019, p. 14).

Tertuliano Máximo Afonso nunca se conformou com sua condição: “Eu sei lá, coisas,
por exemplo, que não sou considerado como julgo ser merecedor” (SARAMAGO, 2019, p. 70).
Em termos de uma consciência real e teórica, porém, apenas transita de um ser humano
inconsciente para um ser humano falsamente consciente, afinal, ao invés de refletir sobre si
mesmo, acaba por pensar em como seria sua vida caso ele fosse o seu duplo.

Cuidado com a soberba, Tertuliano, repara no que tens andado a perder não
sendo actor, poderiam ter feito da tua pessoa um director de escola, um
professor de Matemática, para professora de Inglês é evidente que não darias,
terias de ser professor. Satisfeito consigo mesmo pelo tom da advertência, o
senso comum, aproveitando que o ferro estava quente, descarregou outra vez
o malho em cima dele, Obviamente, terias de ser dotado de um mínimo de
talento para a representação, além disso, meu caro, tão certo como chamar-me
eu Senso Comum, obrigar-te-iam a mudar de nome, nenhum actor que se preze
ousaria apresentar-se em público com esse ridículo Tertuliano, não terias outro
remédio que adoptar um pseudónimo bonito, ou talvez, pensando melhor, não
fosse necessário, Máximo Afonso não estaria mal, vai pensando nisso
(SARAMAGO, 2019, p. 94-95).

A proposta de Saramago é justamente revelar que não há uma procura de identidade em


Tertuliano e sim uma soberba, uma ganância e uma vontade de ter uma vida mais privilegiada
do que a que ele possuía em sua realidade. Por mais que, de início, isso possa parecer um
processo de um ser consciente, a partir do momento que ele apenas passa a desejar ser o outro
e a não se atentar à própria realidade, temos a elucidação de que essa consciência é falsa, como
pontua Lukács (2003, p. 147):

Portanto, a barreira que faz da consciência de classe da burguesia uma ‘falsa’


consciência é objetiva; é a situação da própria classe. É a consequência
objetiva da estrutura econômica da sociedade, e não algo arbitrário, subjetivo
ou psicológico. Pois a consciência de classe da burguesia, embora possa
refletir com clareza sobre todos os problemas da organização dessa
dominação, da revolução capitalista e de sua penetração no conjunto da
produção, deve necessariamente se obscurecer no momento em que surgem
problemas, cuja solução remete para além do capitalismo, mesmo no interior
da experiência da burguesia. (LUKÁCS, 2003, p. 147).
56

Tertuliano sucumbe a esse movimento, a essa vontade de poder e de obter mais, no seu
crescente desejo e no seu ímpeto puramente material. Enquanto Golyádkin queria derrubar a
barreira social que possuía por meio de seu casamento com uma pessoa da nobreza que amava,
Tertuliano deseja apenas ter e ser mais do que tinha.
A diferença crucial entre as duas obras é o espaço de tempo que as afasta. Enquanto
Golyádkin vive no sistema de casta burocrática de uma Rússia Czarista, com um processo bem
mais hegemônico e com uma dificuldade muito maior de ascensão, Tertuliano vive no século
XXI, no capitalismo pungente, em que não há essa delimitação tão bem-marcada. Bakhtin
(2002, p. 18) pontua essa questão ao mencionar que

O capitalismo destruiu o isolamento desses mundos, fez desmoronar o caráter


fechado e a auto-suficiência ideológica interna desses campos sociais. Em sua
tendência a tudo nivelar, que não deixa quaisquer separações exceto a
separação entre o proletário e o capitalista, o capitalismo levou esses mundos
à colisão e os entrelaçou em sua unidade contraditória em formação. Esses
mundos ainda não haviam perdido o seu aspecto individual, elaborado ao
longo dos séculos, mas já não podiam ser auto-suficientes.

Se O Duplo, de Dostoiévski, é o reflexo da configuração de classes na sociedade


burguesa, O Homem Duplicado é um convite à reflexão do porquê de essas classes
ainda permanecerem, ao fazer de seu protagonista uma caricatura de um indivíduo subserviente
não a uma religião, mas a um sistema: o capitalismo.
Tertuliano sempre esteve à procura de se ver com maior status (como o conferido a seu
duplo). Seus questionamentos são sempre em torno de questões materiais: ele sempre fora
descontente quanto a sua condição, mas, ao descobrir sua duplicata, viu-se diante de um mundo
de possibilidades de vir a ser.
Como representante do século XIX, temos Golyádkin e seu forte desejo de ascensão de
classes em uma sociedade rigidamente estratificada. Em contrapartida, temos como
representante do século XXI Tertuliano, mais um indivíduo que deseja, incessantemente, mais
louvores e mais conquistas materiais, pois o capitalismo sobre o qual Saramago escreve se
alimenta da insatisfação, e isso nunca faltou em Tertuliano Máximo Afonso.
Agora, conhecendo todos os processos de Tertuliano, inclusive sua (não) consciência,
podemos, como Antonio Candido prevê, tornar os fatores externos à constituição da obra tão
cruciais quanto os internos.
57

3. NO FIM DAS CONTAS, NARCISO ERA O REFLEXO: ALGUMAS NOTAS SOBRE


O PROCESSO DE (DES)CONHECIMENTO DO SUJEITO EM JOSÉ SARAMAGO

“No romance pode confluir tudo, a filosofia, a arte, o direito, tudo, inclusive a
ciência, tudo, tudo. O romance como uma suma, o romance como um lugar de
pensamento”(José Saramago)

Após conhecermos, em termos críticos e analíticos, o enredo narrativo como um todo,


considerando o nosso propósito de alinhar o sujeito literário ao sujeito social, buscamos, nesta
seção, compreender mais intrinsecamente os propósitos envoltos na construção do sujeito
protagonista da obra, bem como refletir sobre um assunto muito discutido no círculo de análise
da obra: a constituição do sujeito pós-moderno em O Homem Duplicado.

3.1 Comentários acerca da modernidade e do sujeito moderno

Boaventura de Souza e Santos (1994), em sua obra Pela mão de Alice: o social e o
político na pós-modernidade, postula que a modernidade acompanhou três fases alinhadas ao
capitalismo: fases 1, 2 e 3. No que diz respeito à primeira, “O seu fascínio reside em que nele
explodem com grande violência as contradições do projecto da modernidade” (SOUSA E
SANTOS, 1994, p. 73). Nessa fase, o Estado atuava minimamente na economia com o conceito
de Laissez-faire, preconizando o que conhecemos como Estado mínimo. Marshall Berman
(1996), em sua obra Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, pontua
que, na primeira fase, as pessoas começam a experimentar a vida moderna, sem noção da
amplitude desse processo.
Já o segundo momento diz respeito ao positivismo de Comte. Em razão da vivência das
contradições no período, o objetivo agora se pauta na reflexão do que é ou não possível de se
realizar em âmbitos de modernidade com os crescentes avanços e expansões derivados do
capitalismo. Sousa e Santos (1994) comenta que, em tal período, o capital financeiro e o
comercial passam a ser concentrados e centralizados, aprofundando a ligação entre banco e
indústria, fazendo que haja uma separação entre propriedade jurídica das empresas e controle
econômico da atuação. Começa, então, uma luta imperialista pelo domínio do mercado e das
matérias-primas, o que aumenta a escala e a produção. Com o avanço da tecnologia, surgem as
grandes cidades industriais que se tornam parâmetro de desenvolvimento.
Uma das questões colocadas por Sousa e Santos (1994) quanto ao segundo período é o
modernismo cultural, postulado como uma racionalidade estético-expressiva, na ratificação da
58

autonomia da arte e na oposição da alta cultura e da cultura de massas. Politicamente, surge a


Revolução Russa, que demonstrava aquilo que poderia ser uma superioridade na
compatibilização das contradições entre modernidade e capitalismo e os ideais de Lênin, mas
que faliu completamente com a ascensão estalinista. Para Berman (1996), na segunda fase, o
público “ainda se lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não
chega a ser moderno por inteiro.” (p. 16) e é dessa dicotomia que nasce uma sensação de habitar
duas realidades diferentes, que surge a ideia de modernismo e de modernização.
Já no terceiro período, iniciado nos anos 60, temos o capitalismo desorganizado. De
acordo com Souza e Santos (1994, p. 79-80),

O princípio do mercado adquiriu pujança sem precedentes, e tanto


que extravasou do económico e procurou colonizar tanto o princípio do
Estado, como princípio da comunidade – um processo levado ao extremo pelo
credo neo-liberal. [...] a expansão extensiva do mercado ocorre paralela à sua
expansão intensiva com a crescente diferenciação dos produtos de consumo,
um certo abandono da grande produção em massa e com o objetivo de
promover a particularização dos gostos e o aumento das escolhas; finalmente,
a mercadorização e a digitalização da informação abrem perspectivas quase
infinitas à produção alargada de capital.

Os dias se aceleram e tudo se torna cada vez mais volátil ao nível de empresa e de
família, de partido e de sindicato. “O modo dominante de assegurar material e
institucionalmente o aumento das escolhas faz com que, paralelamente ao aumento das
escolhas, se assista à diminuição da capacidade de escolher” (SOUZA E SANTOS, 1994, p.
81). Em tese, para o autor, no terceiro período, os valores da modernidade, da autonomia e da
subjetividade se afastaram cada vez mais dos valores políticos. A individualização atinge um
nível tão alto que se torna difícil enxergar a culpabilidade de problemas que atingem o coletivo.

Esse déficit de mundo é irremediável dentro do projeto de modernidade e de


que, portanto, a opção radical e cada vez mais incontornável é enfrentar a
possibilidade de este projeto estar exausto, incumprível no que dele não foi
cumprido até agora, ou continuar a confiar na possiblidade de regeneração e
de continuar a esperar pela completude com a mesma determinação que
Samuel Becket nos ensina a esperar por Godot. (SOUZA E SANTOS, 1994,
p. 83).

Ainda sobre a terceira e última fase, Berman (1996) pontua que, nela, a modernização
se expande ao ponto de atingir todo o mundo e que a cultura do modernismo triunfa na arte e
no pensamento. No entanto, o teórico comenta que, ao passo que este se expande, o público
multiplica em uma multidão de fragmentos a ideia de modernidade e, em “consequência disso,
59

encontramo-nos hoje em meio a uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua
própria modernidade” (BERMAN, 1996, p. 17).
O teórico disserta que o sujeito passa a se contradizer frequentemente: “tudo é absurdo,
mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo”. (BERMAN, 1996, p. 17). Assim, os
indivíduos são condicionados a muitas possibilidades e precisam ser flexíveis para delas
desfrutar, como ilustra Berman (1996, p. 18) com exatidão ao citar A Nova Heloisa: “Sonha
desesperadamente com algo sólido a que se apegar, mas ‘eu vejo fantasmas que rondam meus
olhos e desaparecem quando tento os agarrar’”.
Citando Marx, menciona que o fator básico da vida moderna é ser contraditória em sua
base: sob uma superfície que se aparenta sólida, deixam-se ocultos oceanos de matéria
líquida; da mesma forma que os homens dominam a natureza, escravizam a si mesmos; a
ciência brilha ao lado da mais profunda ignorância. “Quanto a nós, não nos deixamos confundir
pelo espírito mesquinho que continua a marcar todas essas contradições.” (BERMAN, 1996,
p. 19).
Estabelecendo um diálogo com Nietzsche, Berman (1996) consegue, enfim, revelar que
o sujeito moderno se vê em uma ausência de valores ao mesmo tempo que se percebe dentro de
uma abundância de possibilidades, tal como o excerto de Marx que dá o nome de sua obra:
“Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens finalmente
são levados a enfrentar [...] as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus
companheiros humanos.” (BERMAN, 1996, p. 20). O homem moderno é sujeitado a
adquirir um instinto de ser apto e disposto a tudo;

Precisa da história porque a vê como uma espécie de guarda-roupa onde todas


as fantasias estão guardadas. Ele repara que nenhuma realmente lhe serve –
nem primitiva, nem clássica, nem medieval, nem oriental – ‘e então continua
tentando’, incapaz de aceitar o fato de que o homem moderno ‘jamais se
mostrará bem trajado’ porque nenhum papel social nos tempos modernos é
para ele o figurino perfeito (BERMAN, 1996, p. 22).

É neste mundo em que se flerta com o autotripúdio e com o autoconhecimento, no qual


o sujeito, em meio a tantas possibilidades, torna-se cego para enxergá-las que temos o que
chamamos de modernidade.
Tentamos aqui fazer um breve percurso de definição e de historicização desse período,
a fim de entender a sociedade na qual o sujeito se insere. A partir de agora, iniciamos uma
caminhada para compreender esse sujeito em sua individualidade. Posto isso, comecemos pelo
conceito de identidade.
60

3.2 A discussão acerca da questão identitária

Zygmunt Bauman (2005), em sua obra Identidade, afirma que os sentimentos de


deslocamento e de não pertencimento são uma atitude perturbadora; constantemente
identidades flutuam diante dos sujeitos que, a todo instante, tentam integrar-se na presença
delas. Apoiando-se em George Simmel, o teórico comenta que, nessa busca pela identidade, o
sujeito consegue apenas vislumbrar um eu já postulado, pelo qual se empenha e pelo qual acaba
avaliando e censurando os próprios movimentos. A identidade é fruto de uma invenção, de um
esforço; não é imanente; é uma necessidade gerada na experiência humana. “Quando a
identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e
inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam
desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso” (BAUMAN, 2005, p. 30).
Ainda segundo Bauman (2005), o mundo líquido moderno mantém o sujeito refém de
identidades em movimento, cabendo-lhe apenas se alinhar a elas.

As principais razões de as identidades serem estritamente definidas e


desprovidas de ambiguidade (tão bem definidas e inequívocas quanto a
soberania territorial do Estado) e de manterem o mesmo formato reconhecível
ao longo tempo, desapareceram ou perderam muito do poder constrangedor
que um dia tiveram. (BAUMAN, 2005, p. 35).

Em um mundo em que a individualização é um excesso, a identidade transita na linha


tênue entre ser sonho ou pesadelo, causando crises, já que caber em uma identidade é unir-se a
um grupo em uma sociedade que prima pela individualização. Para Stuart Hall (2006), essa
noção de um sujeito alinhado aos aspectos estruturantes da sociedade reflete a crescente
complexidade do mundo moderno e a consciência de que o núcleo interior do sujeito não é
autônomo, e sim constituído de relações com outros sujeitos, valores e sentidos, fazendo que a
identidade, nesse contexto, preencha o espaço vazio entre mundo pessoal e mundo público.
Hall (2006) pontua que fazemos uma espécie de projeção de nós mesmos nessas
identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus valores e seus significados
como se fossem nossos, o que fortalece a ideia de alinhamento da subjetividade de nossos
sentimentos com os lugares objetivos que ocupamos em um mundo cultural e social. “A
identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura.
Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 2006, p. 2).
61

O estudioso também disserta que o fato de a concepção do sujeito moderno se dar na


modernidade tardia não foi simplesmente um processo de descentração; foi, na verdade, um
deslocamento, que é descrito por muitos por meio de rupturas do discurso moderno. Posto isso,
o teórico viabiliza cinco momentos históricos que provocaram o descentramento final do
sujeito cartesiano, os quais expomos na subseção seguinte.

3.3 Os cinco processos para o descentramento do sujeito cartesiano propostos por Stuart
Hall

A primeira descentração pontuada por Hall (2006) refere-se às tradições do pensamento


marxista, ecoadas principalmente no século XIX, quando intérpretes e adeptos da teoria de
Marx pontuaram que os indivíduos não poderiam exercer o papel de autores ou de agentes da
história, já que agiam apenas de acordo com condicionamentos históricos criados pelos outros
e sob os quais nasceram, utilizando-se de recursos materiais e culturais que lhes foram
fornecidos por gerações anteriores. Dessa maneira, acreditavam que o marxismo deslocara
qualquer noção de agência individual; Hall (2006), inclusive, menciona que teóricos, como
Althusser, pontuam que devemos considerar as relações sociais e não a noção do homem no
centro de seu sistema.
O segundo grande descentramento pontuado por Hall (2006) se localiza no século XX
e tem Freud, com sua descoberta sobre o inconsciente, como responsável. Freud crê que nossa
identidade, sexualidade e desejos são arquitetados em processos psíquicos e simbólicos do
inconsciente, que se distancia do processo lógico da razão, o que desloca o sujeito racional,
unificado e de identidade fixa de Descartes. O teórico ainda menciona que psicanalistas, como
Lacan, leem o sujeito freudiano como aquele que possui a imagem do Eu unificado e inteiro,
gradualmente, parcialmente e com grande dificuldade, ou seja, a imagem que o ser tem de si
mesmo não é desenvolvida naturalmente em sua infância, mas em seu contato com o outro 4 e
em suas negociações psíquicas. “A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que
já está dentro de nós, como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir
de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.”

4
Já trabalhamos aqui, de forma detalhada, as relações do outro na teoria psicanalítica no capítulo anterior, em que
revelamos o conceito criado por Freud por meio do termo ‘inquietante’; inclusive, aprofundamo-nos neste, nas
teorias trabalhadas pela teórica Julia Kristeva, em suas conceituações acerca do outro como território estrangeiro.
Por isso, não vimos a necessidade de retomar o assunto.
62

(HALL, 2006, p. 39). Nesse sentido, podemos compreender que, na vertente psicanalítica, a
identidade é formada ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes, inatos à
consciência do sujeito, pois há sempre algo de imaginário, de fantasia na unidade do sujeito, o
que cria a sensação de incompletude, de processo em andamento, de estar em formação.
Já o terceiro descentramento é associado a Ferdinand de Saussure, que afirmava que
“não somos, em nenhum sentido, os ‘autores’ das afirmações que fazemos ou dos
significados que expressamos na língua” (HALL, 2006, p. 40), pelo fato de a língua ser um
sistema social que preexiste a nós mesmos. Citando Jacques Derrida, Hall (2006) comenta que
nossas afirmações estão concentradas em premissas sobre as quais nem temos consciência, que
vivem imanentes na corrente sanguínea de nossa língua. Tudo o que dizemos tem um “antes” e
um “depois”; o significado é instável, procura o fechamento da identidade, constantemente
perturbado e fugindo de nosso controle. Podemos concluir, portanto, que, por meio de Saussure,
tivemos a elucidação de que nem mesmo o que dizemos e o modo como dizemos são um
pressuposto individual, afinal usamos a língua para nos comunicarmos e esta é de âmbito
coletivo, e não individual.
O quarto descentramento se instaura com as teorias de Michel Foucault, que realiza uma
genealogia do sujeito moderno e destaca o poder disciplinar, iniciado no século XIX e ecoado
no mais alto timbre no século XXI. Esse poder disciplinar regula e vigia a existência humana,
mantendo todas as atividades do indivíduo sob regimes de controle e de poder. A virada que a
teoria foucaultiana proporciona ao sujeito cartesiano reside na elucidação de que o sujeito não
possui autonomia perante as próprias ações, sendo controlado socialmente por regras impostas;
sendo assim, a noção de um sujeito soberano, individual e centralizado em seu mundo é
dissolvida por completo, ao mesmo tempo que se elucida que nossos passos são vigiados na
sociedade disciplinar foucaultiana.
O quinto e último descentramento pontuado por Hall (2006) reside no impacto das
teorias feministas enquanto crítica teórica e movimento social, pelo fato que o
feminismo questionou as delimitações dos espaços públicos e privados, abrindo espaço para
contestação políticas dos espaços sociais como família, sexualidade e trabalho, provocando
uma reflexão acerca de como nos formamos enquanto sujeitos frutos dessa sociedade,
politizando a subjetividade, a identidade e o processo de identificação.
Podemos perceber que as discussões acerca de um sujeito fragmentado, ecoadas mais
recentemente, são resultado de um grande processo teórico que foi capaz de dissolver o conceito
de sujeito pregado no Iluminismo: um sujeito fixo e imutável. Esse processo de
descentralização é o que deságua no que compreendemos como sujeito pós-moderno.
63

Posto isso, passemos a compreender, de forma mais aprofundada, o sujeito pós-


moderno e a pós-modernidade em si, bem como as lacunas e as dificuldades enfrentadas pelos
sujeitos inseridos nesses processos.

3.4 Reflexões acerca da pós-modernidade e da formação de um sujeito pós-moderno

David Harvey (2006), em seu livro A condição pós-moderna, constrói um interessante


panorama de reflexão sobre a construção da pós-modernidade nos macrocosmos político e
econômico. O autor realiza um notável estudo sobre a mudança dos sentidos temporais e
espaciais na transição da modernidade para a pós-modernidade. Pontua que uma das questões
que provocaram tal transição fora a crise do capitalismo no pós-guerra, causada pelo fim do
equilíbrio nas relações de produção e de consumo, o que gerou o conhecido período de
superacumulação e, consequentemente, uma desvalorização dos produtos e do trabalho. Dessa
maneira, a alternativa encontrada para reverter essa situação foi uma mudança no locus
temporal, acelerando o tempo, a fim de se absorverem os dados antecedentes acumulados,
criando um contexto de investimento a longo prazo, superávits etc.
Essa propagação do conceito de investimento gerou competição entre as empresas, que
aceleraram seu tempo de giro só para ganhar mais com os excedentes. Os deslocamentos
temporal e espacial geraram uma sobrecarga de trabalho nos proletários e um massacre dos
países que apresentaram um desenvolvimento menos favorável nas competições em um cenário
internacional. Nas palavras de Harvey (2006, p. 177-178):

O retorno do interesse pelo papel dos pequenos negócios (um setor altamente
dinâmico desde 1970), a redescoberta do trabalho duro e não muito bem pago
e de atividades informais de vária natureza, o reconhecimento de que essas
formas de trabalho estão desempenhando um importante papel no
desenvolvimento econômico contemporâneo mesmo nos mais avançados
países industrializados e a tentativa de traçar o percurso das rápidas mudanças
geográficas do emprego e das fortunas – tudo isso tem produzido uma massa
de informações que parece sustentar a visão de que há uma grande
transformação no modo de operação do capitalismo no final do século XX.

Tendo a noção de como se modificou a lógica de tempo e de espaço pelos meios de


produção e a lógica capitalista, conseguimos compreender como ocorreram as transformações
do sujeito, afinal uma mudança no macrocosmo econômico induz uma mudança nas formas de
trabalho, o que faz o indivíduo se transformar. A transição de um período histórico para outro
é sempre uma junção de vários fatores, não sendo diferente com a questão pós-moderna. A crise
64

da superacumulação, que chegou a seu auge em 1973, transformou a experiência de tempo e de


espaço de tal forma, que fez nascerem narrativas acerca da efemeridade e da fragmentação, bem
como serem representantes de práticas culturais também preceitos que anteriormente só
estavam vinculados à política e à economia.
Harvey (2006) comenta que o pós-modernismo nasceu em meio a um clima de
construção e de exibição de imagens políticas e de formação de uma nova classe social. Como
exemplo, cita a eleição de Ronald Reagan, um ex-ator hollywoodiano, como presidente, na
intenção de construir um cenário baseado na imagem e na estética, desconstruindo as bases da
classe trabalhadora tradicional e inserindo uma política econômica de privilégios. Trata-se de

uma retórica que justifica a falta de moradias, o desemprego, o


empobrecimento constante, a perda de poder etc., apelando a valores
supostamente tradicionais de autoconfiança e capacidade de empreender;
também vai saudar com a mesma liberdade passagem da ética para a estética
como sistema de valores dominante (HARVEY, 2006, p. 301).

Enquanto a modernidade se apoiou no fordismo, na indução de padrões, de obrigações


e de autoridade bem consolidados, em um sólido alicerce na racionalidade técnico-científica,
em uma aura de originalidade, de renovação e de vanguardismo, a pós-modernidade se
consolidou na expectativa, na ficção, na fantasia, na imaterialidade, nos conceitos imagéticos,
no capital fictício, na efemeridade, na flexibilidade, no mercado de trabalho e no consumo
exacerbado. Finalmente, segundo Harvey (2006, p. 328),

Há alguns que desejam que retornemos ao classicismo e outros que


buscam que trilhemos o caminho dos modernos. Do ponto de vista destes
últimos, toda época tem julgada a realização da ‘plenitude do seu tempo, não
pelo ser, mas pelo vir-a-ser’. Minha concordância não poderia ser maior.

3.4.1 Mal começou e já estamos cansados: a exaustão pós-moderna segundo Byung-Chul


Han

Em seu texto A sociedade do cansaço, Byung-Chul Han (2015) defende que o conceito
foucaultiano de sociedade5 não cabe mais ao século XXI; agora, temos a sociedade do
desempenho. A sociedade disciplinar pautava-se na negatividade, na proibição, gerando loucos
e delinquentes, em contrapartida, a sociedade do desempenho, marcada pelo excesso de
positividade, produz depressivos e fracassados.

5
Discutido no tópico 3.3 deste capítulo.
65

Essa mudança no quadro social da sociedade é fruto do desejo de maximizar a produção,


o qual advém da já referenciada alteração dos parâmetros de tempo e de espaço, realizada para
reverter a crise capitalista mediante a superacumulação. A produtividade faz com que a técnica
disciplinar se choque com seus limites; dessa forma, o paradigma da disciplina é substituído
pelo do desempenho. É importante frisar também que a sociedade pautada na negatividade da
proibição tem um efeito de bloqueio que controla o sujeito. Assim, a positividade do poder é
mais eficiente que a negatividade do dever: é muito mais interessante, é muito mais produtivo
fazer o trabalhador crer que seu trabalho é benéfico e que o fará alcançar seus objetivos do que
o fazer acreditar que há uma realidade que nunca será alcançada por sua condição. O sujeito
que trabalha para conquistar os próprios méritos trabalha mais e trabalha melhor que o sujeito
completamente descrente quanto a uma melhora de vida. Nesse contexto, pautando-se em
Ehrenberg, Han (2015) pontua que a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem
moderno em poder ser ele mesmo, no entanto, acrescenta à teoria do economista o fato de que
a patologia também se vincula à carência de vínculos, característica recorrente para as
crescentes fragmentação e atomização social. A depressão, portanto, não é causada pela
obediência a si mesmo, mas pela pressão pelo desempenho.
Han (2015) menciona que o homem nietzschiano está cada vez mais próximo de ser
alcançado, pelo fato de que, nessa nova sociedade, não há nada acima do próprio ser humano,
mesmo para dizer quem deve ser, pois ele obedece apenas a si mesmo. A humanidade passa,
então, a entrar em guerra consigo mesma, e a depressão é seu reflexo. Em outras palavras, “A
lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade
que crê que nada é impossível” (HAN, 2015, p. 29). Nessa sociedade, o sujeito se entrega à
liberdade coercitiva ou à livre coerção para maximizar seu desempenho.
O excesso de produtividade gera muitos estímulos, informações e impulsos,
fragmentando e destruindo a atenção. A multitarefa do homem pós-moderno é um retrocesso
que não lhe permite parar para observar os acontecimentos da própria vida, o que, a nosso ver,
com base em Nietzsche, faz nossa civilização caminhar para uma barbárie, justamente porque
não há repouso. A possibilidade consegue impor limites ao agir e torna a liberdade finita.
A sociedade moderna, como sociedade do trabalho, aniquila toda possibilidade de agir,
degradando o homem a um animal trabalhador; o homem moderno se expõe passivamente ao
processo anônimo da vida. A modernidade se inicia com uma ativação heroica de todas as
capacidades humanas, mas se finda em uma passividade mortal. O indivíduo moderno mergulha
no processo de vida que domina a geração, decidindo soltar-se, como se renunciasse a própria
individualidade para viver melhor, em uma absolutização do trabalho.
66

Para Han (2015), o animal pós-moderno não abandona seu ego para entregar-se ao
trabalho e viver anonimamente, não é passivo; pelo contrário, é imperativo e neurótico. A
desnarrativização do mundo reforça um sentimento de transitoriedade; a ausência de
negatividade transforma o pensamento em um cálculo; a negatividade mantém viva a
existência.
A sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e um esgotamento
excessivos. A citar Hanake, “eu só não vejo simplesmente o outro, mas eu próprio sou o outro
e o outro se torna igualmente eu” (HAN, 2015, p. 72). Esse cansaço é tido como fundamental
para Hanake, pois restabelece a dualidade retirada no cansaço solitário, que extenua o espírito;
é um cansaço profundo que afrouxa as presilhas da identidade.
Com base em Alain Ehrenberg, Han (2015) pontua que a libertação psíquica, a
insegurança da identidade, a iniciativa pessoal e a incapacidade de agir fazem-nos crer que o
conflito neurótico inclina para a insatisfação depressiva. O indivíduo sente-se confrontado pela
mensagem do desconhecido, do que não domina, isto é, do seu inconsciente. A depressão,
portanto, simboliza o incontrolável, o irredutível, o fracasso em relação ao incontrolável, ao
irredutível, ou melhor, o fracasso em relação ao incontrolável que busca iniciativas e não se
encaixa na sociedade do desempenho.
Para Han (2015), o sujeito do desempenho – o pós-moderno – possui uma
grande quantidade de opções e, por isso, não estabelece ligações intensas com nenhuma delas;
como consequência de uma autoexploração, há a depressão. Já Ehrenberg crê que a falta de
relação com o conflito seja a responsável pela depressão.
O sujeito do desempenho se projeta na linha do eu ideal; este, por sua vez, exerce uma
pressão no eu, o qual se vê fatigado ao enredar-se em um ideal inalcançável. É dessa relação
que surge a agressividade. A questão central é que o sujeito pós-moderno não é mais um
sujeito, uma vez que se caracteriza pela submissão, tornando-se um projeto; além disso, ao
invés de ser coagido por outro, coage a si mesmo. As lutas atuais não se dão entre grupos,
ideologias ou classes, mas entre os próprios sujeitos, que se têm como referência e que aguçam
a concorrência absoluta.
As produções capitalistas percebem que a autoexploração é muito mais efetiva do que a
expressão externa e gera muito mais produção. O sujeito do desempenho explora a si mesmo
por completo até consumir-se em um burnout, desenvolve uma autoagressividade, e o
projeto se torna um projétil contra si mesmo. A autoviolência entra no lugar da violência
externa e se torna mais fatal, enquanto isso, o sujeito preso crê ser livre. A supressão do domínio
externo só dissimula a estrutura da coação. O capitalismo desloca a exploração externa para a
67

autoexploração com a finalidade de acelerar o processo de absolutizar a sobrevivência. “Esse


sujeito é desnudo, pois reduz a transcendência, a imanência da vida prolongada a todo custo
teve como morto vivo ‘são demais vivos para morrer, por demais mortos para viver’” (HAN,
2015, p. 109).

3.5 Reflexão segundo a teoria literária em contexto pós-moderno: a autorreflexividade da


escrita na literatura de José Saramago

Para iniciarmos a análise de questões pontuadas na obra pelo viés teórico já abarcado
no presente capítulo, citamos Saramago, em uma passagem de O Homem Duplicado:

vida real sempre nos tem parecido mais parca em coincidências que o romance
e as outras ficções, salvo se admitíssemos que o princípio da coincidência é o
verdadeiro e único regedor do mundo, e nesse caso tanto deveria valer aquilo
que se vive como aquilo que se escreve, e vice-versa. (SARAMAGO, 2019,
p. 90).

Para muito além de sua literatura engajada, a que nos referimos no primeiro capítulo,
Saramago, internamente, no romance, incita reflexões estruturais sobre a sua narrativa e sobre
o gênero movimentado. O fato de Saramago mencionar que a vida real, muitas vezes, enche-
nos muito mais de coincidências e de situações inusitadas que um próprio romance nos
impulsiona a refletir que, talvez, ele não gostaria de chamar a narrativa em análise de Romance,
por talvez não acreditar nesse gênero ou porque gostaria de tecer críticas ao que havia-se
tornado.
Dentro da obra, temos a presença da palavra romance em 11 situações e da palavra
romances em 4, ou seja, o gênero foi citado em 15 oportunidades ao longo dela. É de se
considerar um número grande, pois, como já mencionamos, fazendo uso de outro viés de
interpretação, Saramago possui uma narração aguçada em detalhes analíticos que nos induzem
a refletir sobre alguns fatores, bloqueando a autonomia interpretativa de seu público leitor, ao
mesmo tempo que o induz a reflexões mais intrínsecas e refinadas. A fim de tornar mais sólida
nossa análise deste aspecto, passemos a observar, em âmbitos teóricos, como os aspectos
reflexivo e metaficcional da literatura se revelam no âmbito literário e como se alinham à
questão pós-moderna.
68

Em seu artigo A metaficção revisitada: uma introdução, Zênia de Faria (2012) disserta
que, para considerarmos um texto metaficcional, devemos atentar-nos às fronteiras entre ficção
e realidade. Inclusive, a autora menciona que inúmeros estudiosos veem a metaficção como
categoria ou como movimento contrário à ficção realista, uma espécie de recusa do mimético.
Se nos voltarmos para Karl Erik Schollhammer (2009), em sua obra Ficção brasileira
contemporânea, veremos que metaficcional é a literatura que discute a sua própria construção
e reflete como tais mecanismos afetam a percepção do mundo que se costuma conhecer como
real. Para ele, Borges (escritor argentino), foi um dos inauguradores do romance autorreflexivo.
Segundo Schollhammer (2009, p. 30-31),

Ao longo da década de 1980, o elemento mais utilizado para identificar essa


vertente pós-moderna era a combinação híbrida entre alta e baixa literatura,
propiciada pelo novo diálogo entre a literatura, a cultura popular e a cultura
de massa, ou a mescla entre os géneros de ficção e as formas da não ficção,
como a biografia, a história e o ensaio.

Retornando a Faria (2012), notamos que a autora dispõe diacronicamente as teorias


instauradas a respeito da metaficção literária, às quais fazemos referência agora. Ela menciona
que um dos principais estudos que cunharam essa temática foram os de Linda Hutcheon, por
abarcarem a posição do leitor na constituição da metaficção. Para a teórica, essa é, inclusive,
uma das principais questões que distinguem a metaficção já existente da produzida nas
literaturas contemporâneas. Baseando-se em Wenche Osmundsen, Faria (2012) comenta que o
dito momento reflexivo na narrativa é

o reconhecimento da ficcionalidade de todos os sistemas sociais e culturais, é


central na maior parte das definições de pós-modernismo, e a metaficção,
definida como ficção que reconhece sua própria ficcionalidade, tem sido vista
como a tradução natural do pós-modernismo para uma forma literária (p. 245).

Uma das maiores caracterizações dadas às narrativas metaficcionais são atribuídas pelos
seguintes termos: autoconsciência, autorreflexão, introspecção e narcisista, o que faz a
reflexividade literária ficar vinculada à imagem do indivíduo psicologicamente negativo e
problemático.
Abrindo parênteses às conceituações de Faria (2012), percebemos que as características
atribuídas à narrativa de metaficção muito se alinham às caracterizações entregues ao próprio
sujeito pós-moderno, o que nos leva a refletir que, talvez, essa proposta de narrativa seja sim o
reflexo do pós-modernismo como um todo, em que o sujeito se centra em si mesmo, ao ponto
de se explorar, como comenta Han (2015). Além disso, como Hall (2006), destacamos o
69

surgimento de um sujeito descentrado, mas narcisista; trata-se do polo contraditório pós-


moderno, ao qual fizemos referência no tópico anterior.
Faria (2012) disserta que uma das maiores críticas aos textos autorreflexivos está no
autocentramento do gênero, que impede o envolvimento do texto com aspectos exteriores à
própria escrita: “a reflexividade, segundo tais leituras, é uma marca do abandono, pela ficção
dos valores humanistas associados ao realismo, da perda dos elos vitais com a história e com a
verdade” (FARIA, 2012, p. 247).
Apoiando-se em Hutcheon, a autora comenta que a narrativa narcisista é o processo
literário visível, uma espécie de mimese do processo de construção da narrativa, característica
exaltada nos romances realistas do século XIX. Faria (2012) menciona que Hutcheon, com
alicerce nas teorias de Robert Siegle, declara que a reflexividade é uma teoria proletária,
revolucionária, que resiste ao obscurantismo da negação das qualidades autotransformadoras.
Se nos dirigirmos diretamente à fonte para compreender essa questão, veremos que
Linda Hutcheon (1991), em sua obra Poética do Pós-Modernismo (1991), argumenta que a
cultura pós-moderna usa e abusa das convenções do discurso, pois sabe que não é possível
escapar do envolvimento com tendências econômicas e ideológicas de seu tempo; sem saída,
questiona de dentro.

O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto


ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua
produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando visíveis as
contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação Histórica.
(HUTCHEON, 1991, p. 15).

A teórica crê que o pós-modernismo situa o sujeito ao fazê-lo reconhecer a ideologia


em que está inserido e as noções alternativas de sua subjetividade, bem como ao fazê-lo
perceber-se como raça, sexo, classe e gênero. No entanto, Hutcheon (1991) aponta que, apesar
da retórica pós-apocalíptica, que muitas vezes o acompanha, o período pós-moderno não
assinala uma mudança radical utópica; não há ainda uma ruptura, mas sim uma tentativa de
descobrir o que ocorre quando a cultura é desafiada dentro de seu próprio interior, questionada,
contestada e, apesar de tudo, não implodida. “Em outras palavras, o pós-modernismo ultrapassa
a auto-reflexividade para situar o discurso num contexto mais amplo.” (HUTCHEON, 1991, p.
65).
É interessante observar como essa teoria ecoa na carreira de Saramago como um todo.
O autor português sempre refletiu sobre seu processo de escrita incessantemente. Apesar de ter
sido consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, em virtude de seus emblemáticos
70

romances, ironicamente, o autor não se considerava um romancista. Em entrevista ao teórico


Carlos Reis, ele proferiu: “Provavelmente eu não sou romancista, eu sou um ensaísta que
precisa escrever romances porque não sabe escrever ensaios” (REIS, 2018, p. 40). É no mínimo
curioso que um consagrado romancista não se considere um romancista, pelo tamanho tom
reflexivo daquilo que se propõe a escrever.
Para melhor entendermos essa situação, passemos a observar como isso se dá na
materialidade de sua obra. Um de seus primeiros romances foi Manual de Pintura e Caligrafia
(SARAMAGO, 1992), que veio com um epíteto de Ensaio de um Romance. No livro, o autor
redige uma retórica entre a pintura e a escrita, em uma constante reflexão de insuficiência em
relação àquilo que realiza:

Não quero pensar, por agora, naquilo que farei se mesmo essa escrita falhar,
se daí para diante, as telas brancas e as folhas brancas, forem pra mim um
mundo orbitado a milhões de anos-luz onde não poderei traçar o menor sinal.
Se em suma, for acto de desonestidade o simples gesto de agarrar num pincel
ou numa caneta, se, uma vez, mais em suma (a primeira vez não chegou a ser),
a mim mesmo deve recusar o direito de comunicar ou comunicar-me, porque
terei tentado e falhado e não haverá mais oportunidades. (SARAMAGO,
1992, p. 4-5).

Por meio deste excerto, percebemos com que tom Saramago trabalha com a reflexão da
escrita em sua escrita – ou seja, com a metalinguagem –, como faz dialogarem a escrita e a
pintura, o que nos possibilita entender claramente quão grande é seu conflito. Por isso, o epíteto
de Ensaio de um Romance ecoa tão bem nessa obra, pois literalmente ele não acreditava estar
escrevendo um romance, assim como não acreditava ser um romancista. Ironicamente, os fatos
se voltaram contra as suas crenças, pois o livro se tornou um romance e seu autor, um
romancista.
Se cogitarmos uma evolução na metaficção saramaguiana, veremos que existe uma
maturação de Saramago, que sai de uma zona de questionamento de sua condição de ser escritor
para um questionamento do gênero que escreve. Saramago, inclusive, faz a dita metaficção
historiográfica ao compor História do Cerco de Lisboa (SARAMAGO, 1989). Maria Cristina
Vianna Kuntz (2002), em seu artigo A metaficção historiográfica em História do Cerco de
Lisboa, menciona que

Ao fundirem-se totalidade e particularidade, é traçado um paralelo entre a


história particular do protagonista e a conquista da cidade, isto é, os
primórdios da História de Portugal. Emaranham-se História e Ficção
conferindo um novo sentido àquela, ao mesmo tempo em que nasce uma
reflexão. (KUNTZ, 2002, p. 200).
71

Seja na metaficção alinhada à reflexão do ato da escrita, seja na ficcionalização da


história, até chegar à reflexão acerca dos gêneros literários, podemos perceber que a narrativa
metaficcional se faz presente na literatura saramaguiana. Posto isso, voltemos a analisar este
aspecto em O Homem Duplicado. Uma interessante jogada da narrativa é a conotação dada ao
romance pelo viés de cada personagem; exemplifiquemos com Tertuliano. Sempre que a
palavra romance aparece vinculada a Tertuliano, temos indagações e sentimentos de
menosprezo, como podemos ver no trecho citado anteriormente, em que o narrador postula que
a vida real tem mais coincidências que no romance, muitas vezes, isto é, muitas vezes, a vida
possui mais fatores inusitados que os imaginados dentro da ficção.

Que os acontecimentos lhe aparecessem depois ordenados no livro de


História, em nada modificava a sua ideia, o que o compêndio fazia não era
mais que recolher as livres fantasias de quem o havia escrito, e portanto não
deveria existir uma diferença assim tão grande entre essas fantasias e as que
se podiam ler num romance qualquer. (SARAMAGO, 2019, p. 70).

Por meio da condição de professor de história e do contato que este possui com os livros,
constrói-se a ideia de que, para ele, estes são tão passíveis de criar fantasias quanto as ficções,
incutindo-nos a ideia de que, em Tertuliano, não há a distinção entre fantasia e realidade ou
melhor que não há a necessidade da ficção, pois a realidade já produz a quantidade de fantasias
necessárias, não havendo um porquê de se criar mais.
Outro tipo de relação com o romance que Tertuliano possui é de tratá-lo como um
passatempo: “Não é disso que falamos, mas sim da minha vida profissional, Muito mais do que
um romance que estivesses a ler nas tuas horas vagas” (SARAMAGO, 2019, p. 63). Pelo curto
excerto, retirado de uma conversa dele com seu colega, o professor de matemática, que lhe
indica o filme que o faz enxergar-se duplicado, podemos perceber que, mesmo que em sua vida
esteja acontecendo um fato dito extraordinário, de enxergar-se idêntico a um outro, ele, ainda
assim, não consegue enxergar sua vida como passível de ficção, o que mostra duas
características do caráter de Tertuliano: ser centrado e estar ligado à veracidade dos fatos.

Calculo que não estaria à espera de uma chamada minha, bastou que a voz
dele tivesse ressoado naquela até aí tranquila sala para se tornar evidente que
as convenções tradicionais do romance atrás citadas não são, afinal de contas,
um mero e desgastado recurso de narradores ocasionalmente minguados de
imaginação, mas sim uma resultante literária do majestoso equilíbrio cósmico,
uma vez que o universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema
falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de
tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das
suas próprias experiências, de modo a culminar, como o vem demonstrando o
incessante espectáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações
que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que
72

qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a


mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um
minuto ou uma hora, como um ano ou um século. (SARAMAGO, 2019, p.
141).

Este longo fragmento é interessante e nos ajuda a compreender a questão mais


intrinsecamente. Temos uma crítica evocada ao discurso narrativo do romance, à organização
dos fatos, uma espécie de autocrítica feita dentro da própria narração. Tal aspecto nos faz
retomar o fato de o narrador da obra analisar os personagens e inibir a análise do leitor, aqui
transcendido na autoanálise, dizendo não ser necessário analisar ou criticar o personagem, o
enredo, a narração, em nenhuma das proporções, pois o próprio narrador, aquele que redige a
história, já não crê na sua validez.
Quando vimos, anteriormente, no artigo de Faria (2012), que uma das problemáticas
do texto autorreflexivo pós-moderno era o centramento no gênero, o que nos impedia de
considerar fatores externos ao romance, percebemos que, em O Homem Duplicado, essa
premissa não se faz válida, já que há um centramento de reflexões metalinguísticas acerca do
romance. Tal reflexão, porém, está presente nas caracterizações das próprias personagens da
obra, assim as ponderações acerca do gênero se encontram com os pensamentos das
personagens. António Claro, por exemplo, percebe a sua vida como um romance; considera-se
personagem de um romance, por isso, a narração se constrói de maneira a fazer a palavra
romance sempre aparecer vincula a António Claro, sempre possuir a noção de ficção e de
possibilidade de ficção, de existência desta.

Tenho dias, hoje veio encontrar-me de boa maré, ou talvez seja por me ter
sentido na pele da personagem de um romance, Que romance, que
personagem, Não tem importância, voltemos à vida real, deixemo-nos de
fantasias e ficções (SARAMAGO, 2019, p. 127).

É como se nos dissesse, por meio deste trecho, que O Homem Duplicado poderia sim
ser um romance, se fosse baseado no fluxo de consciência do verdadeiro herói, o que não
acontece. A narrativa gira em torno daquele que sempre vê o romance como fútil e os livros de
história como mais interessantes, construindo o diálogo necessário para se fazer mais
perceptível o fato de o cidadão comum não poder ser protagonista de uma ficção, pois sua
normalidade não permitiria. É justamente por isso que a narrativa gira em torno da descoberta
da identidade de António Claro, afinal a ficção deve seguir o verdadeiro herói.
No entanto, ressaltamos que uma das maiores sacadas deste romance saramaguiano é
fazer a história para mostrar a versão da cópia, a versão do não herói, o fluxo de consciência do
considerado normal demais, bem como para escrever um romance dentro de um não
73

romance, ao redigir uma história que se nega, até mesmo, a possuir uma conclusão, fazendo
deste caos instaurado a maior percepção de ordem, de que a falta da ordem redigiu o caos
narrativo e consagrou O Homem Duplicado como verdadeiro marco e verdadeiro eco da
negação de Saramago ao seguimento de qualquer paradigma, tornando esse ensaísta, que não
sabe escrever ensaios e, por isso, escreve romances, um escritor de um não romance, com um
não personagem e uma não história. No fim das contas, O Homem Duplicado é um romance de
negação sobre a recusa estrutural de um autor que não queria ser romancista, mas teve de
escrever romances, porque era o que sabia fazer.

3.6 Sobre os céus destinados a outro homem: a influência do contexto pós-moderno


português na literatura de José Saramago

Após nosso percurso até aqui, resta-nos perguntar: como o contexto social em que a
obra foi escrita influencia a sua compreensão? Para darmos a resposta, precisamos, antes, fazer
mais um passeio teórico a fim de compreender as relações existentes entre Portugal e o contexto
pós-moderno.
Ao retornarmos ao texto de Sousa e Santos (1994), vemos que, no sistema mundial de
Estados, temos os países de centro, que possuem um capitalismo avançado; os países de terceiro
mundo, denominados periféricos; a zona intermediária, heteróclita, que engloba alguns países
socialistas e capitalistas da Europa, os semiperiféricos, sendo um deles Portugal.
Por essa questão, o pós-modernismo é uma discussão complexa para os portugueses. A
sociedade portuguesa, por ser semiperiférica, é uma sociedade de desenvolvimento
intermediário, o que a coloca, em âmbitos mundiais, no papel de realizar o intermédio entre
países centrais e países periféricos; já em sua lógica interna, existe uma heterogenia em seus
princípios regulativos e emancipatórios.
O princípio de mercado português apresenta características paralelas às assumidas pelos
países centrais, como a “descaracterização das regiões industriais tradicionais, a ruralização da
indústria, a emergência dos dinamismos locais, a explosão da economia informal, o crescimento
acelerado do sector dos serviços.” (SOUSA E SANTOS, 1994, p. 85).
Há também o fato de que a rematerialização da sociedade civil portuguesa acaba por ser
considerada fraca, uma vez que as bases de sua sociedade ainda se encontram na prática de
agricultura familiar, incomum a países do centro, o que gerou um déficit nas práticas de classes
e uma volatilidade política destas, gerando um conflito entre capital e trabalho. A
74

heterogeneidade interna do princípio de comunidade em Portugal é derivada de suas frações,


do duplo pertencimento e da contradição de classe, que contribuem para o descentramento da
relação entre capital e trabalho nos portugueses.
Por fim, Sousa e Santos (1994) pontua que a terceira característica do Estado português
é o fato de que sua autonomia e seu autoritarismo abriram espaço para promovê-lo como agente
de modernização da sociedade. No entanto, o teórico pontua que essa é uma premissa
problemática, pois as lógicas de racionalidade que compõem a emancipação moderna se
configuram de forma a tornar ainda mais complexo o princípio de regulação da sociedade
portuguesa, condicionando-a à dependência mimética de países centrais, que culminou em um
domínio da racionalidade cognitivo-instrumental, bem como no domínio prático-moral. Indo
além, podemos citar a existência de um domínio da racionalidade estético-expressiva
portuguesa, o que faz o sociólogo colocar em questão o fato de que, talvez, a sociedade
portuguesa seja vivente de um pré-modernismo. Isso se dá pelos vários fatores já discutidos
neste trabalho, os quais são rememorados a seguir.
A sociedade civil portuguesa é considerada fraca política e economicamente, sendo
atomizada e fragmentada, a julgar-se pelos padrões vindos de países centrais, no entanto, há
sociedades civis de países centrais julgadas de acordo com padrões de organização em que a
sociedade portuguesa é forte. Por muitos a posição de pré-modernismo é considerada
arcaica; Sousa e Santos (1994, p. 89), inclusive, ressalta dois pontos importantes:

em primeiro lugar, representa dominantemente uma estratégia de


sobrevivência, que raramente chega para atingir um nível de vida decente; em
segundo lugar, é uma organização social particularmente dominada pelo
poder do patriarcado, e, portanto, pela desigualdade sexual e pela exploração
do trabalho infantil.

Em contrapartida, os resultados vindos da agricultura familiar portuguesa podem ser


considerados muito positivos, “transformando-a numa estratégia de afluência e qualidade de
vida e democratizando as suas práticas produtivas e reprodutivas” (SOUSA E SANTOS,1994,
p. 89), o que maximiza o potencial produtivo português, permitindo uma melhor qualidade de
vida, proporcionando um equilíbrio entre trabalho rural e trabalho urbano, impedindo o
congestionamento urbano com a fixação da população no campo.
Na sociedade portuguesa, há constante diálogo entre as políticas velhas e as novas, um
constante flerte entre tradição e ruptura; ela vive sempre rodeada de curtos-circuitos, seja em
reinvindicações materiais que envolvem salário e segurança social, seja em reinvindicações
contemporâneas, como ecologia, políticas antinucleares, igualdade sexual e racial.
75

Além disso, como Portugal possui uma hegemonia de mercado mitigada, o país tem
menos oportunidades de escolha, quando comparado a um país central. Esse aspecto, porém,
possui um lado positivo: “uma política menos centrada na amplificação das escolhas e mais
centrada na capacidade de escolher” (SOUSA E SANTOS, 1994, p. 90). Tal fato nos leva a
refletir que,

nas condições do ‘capitalismo desorganizado’ à escala mundial, a violência,


tanto da compulsão do trabalho quanto da compulsão do consumo, torna-se
perversamente subtil e pacífica e mesmo que quase desejada quando
comparada com a violência da compulsão da fome e da guerra a que
populações inteiras estão cada vez mais sujeitas. As comunidades
interpretativas têm de ser organizadas na crítica de suas compulsões, e ao
contrário da crítica moderna, a crítica pós-moderna, sabe que o capitalismo
está dentro de nós. (SOUSA E SANTOS, 1994, p. 98).

A finalizar a reflexão de Sousa e Santos (1994), devemos compreender que, ao nos


tornarmos conscientes da irracionalidade global, tomamos consciência de que apenas podemos
combatê-la localmente; isso significa que, quanto mais universal é um problema, mais
locais são as suas soluções. O autor nomeia essas múltiplas soluções de socialismo, que se
posiciona radicalmente em seu localismo, deixando-nos a certeza de que, nessa problemática
pós-moderna, impera a maior problemática de todas: a de que a universalidade capitalista não
dá conta dos problemas locais que provoca e, dessa forma, as metamorfoses dos sujeitos em
decorrência de suas problemáticas poderiam facilmente ser reduzidas com o fim desse sistema.
Agora que compreendemos como a sociedade portuguesa lida com o pós-modernismo
e com as suas questões envoltas, temos a plena noção de qual lugar e de qual âmbito enuncia o
sujeito autor com o qual lidamos. Saramago, pertencente a e criado na sociedade portuguesa,
enxerga o capitalismo e os processos pós-modernos conforme a experiência que lhe fora
entregue como cidadão de Portugal. Desse modo, conseguimos compreender mais
intrinsecamente a forma como ele constrói o sujeito na obra que, ao longo deste trabalho,
tentamos analisar. Compreender o macrocosmo português nos leva a uma reflexão muito
pertinente: a crítica envolta na construção de um sujeito pós-moderno como protagonista de
uma obra pós-moderna é uma crítica ferrenha desse posicionamento.

3.6.1 A construção de um indivíduo exausto de ser: Tertuliano versus pós-modernismo

Edcleberton de Andrade Modesto e Aline Costa dos Santos (2019), em seu


artigo TERTULIANO: as peripécias da identidade pós-moderna, pontuam que, “Somada à
76

diegese da narrativa dessa circunstância nada estranha, o que se pode observar é que, o homem
transformado em coisa, é vítima do tédio, caracterizado pela indiferença à vida” (MODESTO;
SANTOS, 2019, p. 135). No entanto, como já mencionado aqui, Tertuliano não possui o garbo
de herói; pelo contrário, possui a face de cópia, a mesma face de cópia e de mimese que o
sujeito pós-moderno. Saramago, “ao apresentar algumas das perplexidades do mundo pós-
moderno, prioriza a aflição do sujeito não somente quanto às questões materiais, acima disso o
se sentir vazio e aborrecido com tudo.” (MODESTO; SANTOS, 2019, p. 137). Antonio
Candido (2014), em seu texto A Personagem do Romance, pontua que,

quando toma um modelo na realidade, o autor sempre acrescenta a ele, no


plano psicológico, a sua incógnita pessoal, graças à qual procura revelar a
incógnita da pessoa copiada. Noutras palavras, o autor é obrigado a construir
uma explicação que não corresponde ao mistério da pessoa viva, mas que é
uma interpretação deste mistério; interpretação que elabora com a sua
capacidade de clarividência e com a onisciência do criador, soberanamente
exercida. (CANDIDO, 2014, p. 65).

Quando Saramago nos convida a entender o que originou o caos por meio de uma
aguçada e labiríntica narração, estava, de certa forma, preparando-nos para entender a
complexidade não tão evidente de Tertuliano. Candido (2014, p. 79-80) afirma que

Cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a


verossimilhança, o sentimento da realidade, depende, sob este aspecto, da
unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é
o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes
infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes
do que os próprios seres vivos.

A unificação de tal fragmentariedade é a composição que nos leva à constituição da


coerência de Tertuliano, que se metamorfoseia em sua incessante busca de si mesmo, que
resulta em uma perda completa de si. Interceptando nosso câmbio entre a trajetória da
personagem e a teoria lukácsiana do romance, retornemos à obra de Lucien Goldman (1967)
para refletirmos sobre alguns aspectos.

Sendo o romance um gênero épico caracterizado, contrariamente à epopeia ou


ao conto, pela ruptura inesperável entre o herói e o mundo, encontra-se em
Lukács uma análise da natureza de duas degradações (a do herói e a do mundo)
que devem engendrar, simultaneamente, uma oposição constitutiva,
fundamento dessa ruptura insuperável, e uma comunidade suficiente para
permitir a existência de uma forma épica. (GOLDMAN, 1967, p. 9).

De acordo com o teórico, o romance é caracterizado pela ruptura do herói da narrativa


com o mundo. Podemos, talvez, neste momento, perceber a completa ruptura de Tertuliano com
77

os aspectos mundanos pelo fato de ele passar a ignorar possíveis sinais do universo e a ignorar,
até mesmo, a própria mãe para seguir o rumo de suas convicções. Ele se despede de todos os
laços privados para atentar-se apenas ao próprio anseio. Lukács (2009, p. 79) ratifica o seguinte:

Não só porque a imperfeição e a problemática normativas do romance sejam,


em termos histórico-filosóficos, uma forma legítima e alcancem o seu
substrato – o verdadeiro estado do espírito contemporâneo – como índice de
sua legitimidade, mas porque sua processualidade exclui a completude apenas
no que se respeita ao conteúdo; como forma, no entanto, o romance apresenta
um equilíbrio oscilante, embora de oscilação segura, entre ser e devir; como
ideia do devir, ele se torna estado e desse modo supera-se, transformando-se
no ser normativo do devir: ‘iniciado o caminho, consumada está a viagem’.

Em seu artigo As muitas faces do homem duplicado na pós-modernidade, Madalena


Machado (2007) afirma que o dissenso evocado na figura do protagonista da obra “dimana a
afirmação da subjetividade descentrada que o pós-modernismo problematiza” (MACHADO,
2007, p. 3). Tertuliano vive à mercê de tentar recuperar a capacidade de agir e de lutar por seus
objetivos, lida com sentimentos voláteis, confia pouco em si mesmo, vive retraído
socialmente e retraindo a possibilidade de lidar com seu eu. É sempre controlado por uma
“fachada de civilidade que o afasta dos outros e ainda mais de si mesmo, gera uma opressão
crescente à medida que parece inadiável voltar-se aos interesses da personalidade.”
(MACHADO, 2007, p. 4). Instável, com falas repletas de paradoxos, é um homem pós-
moderno, deslocado, descontinuado, subjetivamente delirado, desunificado e completamente
descentrado em sua realidade.
Vilmaria Chaves Nogueira e Livia Maria Rosa Soares (2018), em seu texto A metáfora
do simulacro na construção da identidade em O Homem Duplicado de José
Saramago, sinalizam que, na condição de simulacro, instaurada na luta entre aparência e
essência, quando a aparência é vencida, a essência revela a realidade.

Daí a escolha do narrador em apresentar primeiramente o personagem


Tertuliano, pois na relação entre referente e simulacro, o primeiro será sempre
a sombra do segundo. Daí também o motivo do seu sobrenome e último nome.
Máximo: uma metáfora superlativa da sua posição em relação aos seus Outros;
Afonso: uma indicação de ordem alfabética indicando que ele seria, no fim de
tudo, o primeiro. (NOGUEIRA; SOARES, 2018, p. 105).

Tertuliano, o tempo todo, tinha medo de se ver cópia: “A Tertuliano Máximo


desassossega-o agora a possibilidade de ser ele o mais novo dos dois, que o original seja o outro
e ele não passe de uma simples e antecipadamente desvalorizada repetição” (SARAMAGO,
2019, p. 155). A maior ironia de todas, porém, reside no fato de ele sempre ter sido a cópia;
ironia que pode ser observada em seu próprio nome.
78

Sim, mas a mim o que sobretudo me atrai é a fascinante declaração de que as


grandes verdades não passam de trivialidades, o resto, a suposta necessidade
de uma expressão nova e paradoxal que lhes prolongue a existência e as
substantive, já não me diz respeito, sou apenas um professor de História do
ensino secundário (SARAMAGO, 2019, p. 85).

Nesse diálogo entre ele e o diretor do colégio, vemos que ele não acredita na verdade,
pois sabe que esta lhe é indigesta. No fim das contas, a narrativa de O Homem Duplicado mostra
como Tertuliano percebeu que era uma cópia e não como veio a sair de tal posição. Não lhe é
entregue, ao longo da história, uma conduta original, de protagonista; sua vida é desinteressante,
tal qual a de um impostor. A história só se torna cativante quando ele se encontra duplicado e
passa a buscar a duplicata; nesse contexto, quanto mais informações ele coleta sobre a vida
desta, mais obcecado fica, consequentemente, passa por cima da opinião da mãe, não dá ouvidos
à namorada, abre mão de tudo para ir encontrar o outro. Quando o fatídico encontro finalmente
se concretiza, descobre-se cópia; nesse momento, toda a sua capacidade de individualidade se
dissolve e, nunca mais, o professor de história consegue ser apenas Tertuliano. Como resultado
de uma ideia de seu duplo, ele acaba por trocar de identidade forçadamente e nem tem a chance
de retornar para seu eu, pois a morte de António Claro é dada no momento que se passava por
ele. Em meio a tamanha passividade, talvez o maior ato de Tertuliano tenha sido escolher não
ser, em meio à atraente possibilidade de ser outro.
Em seu artigo Moral e Dialética N’ O Homem Duplicado, Madalena Aparecida
Machado (2006) constrói uma interessante linha interpretativa da obra, ao relacioná-la a
conceitos pregados por Adorno em sua obra Minima Moralia. A autora menciona que os
sentimentos de sufoco e de retraimento redigidos na construção do protagonista da
narrativa são fruto da pressão da conformidade, colocando a personagem em posição dialética
em relação a si mesma, o que se intensifica no contato com seu outro. Dessa forma, “a lacuna
no indivíduo se esgarça pelas equivalências sentidas, por exemplo, num comportamento negado
em si, mas visível no outro seu igual.” (MACHADO, 2006, p. 2).
Machado (2006) disserta que, por esse motivo, faz sentido que o espírito de dialética
venha a ser atribuído ao personagem, pelo fato de ser construído um contraste que oscila entre
uma razão dominante e um entorpecimento do consenso nas atitudes de Tertuliano. Esse
processo dissolve o concreto presente no interior do indivíduo, permitindo-nos afirmar “que a
exclusividade perde campo quando falamos na substituição da experiência” (MACHADO,
2006, p. 2). Talhado em um caminho subjetivo, opta por encurtá-lo, sem deixar explícito o
continuísmo que ele mesmo nega. Tertuliano é um sujeito cujo conhecimento existe em meio à
79

insuficiência, o qual possui uma existência regulamentada por juízos, “pela dialética para que
assim seja identificado e mesmo se transforme em ensinamento; não sem razão o protagonista
do romance é um professor.” (MACHADO, 2006, p. 2).
Evidenciando a metáfora do espelho, a autora menciona que O Homem Duplicado
mostra uma insistência naquilo que, para Adorno, é a dialética, pelo fato de se mover por
extremos em um propósito de se levar à inversão. O sujeito da obra é levado à desumanização
de um indivíduo que é notado apenas como objeto refletido, cunhado para não servir de
exemplo; eis o verdadeiro fruto de uma sociedade repressiva. “A experiência da duplicação
vivida por seus protagonistas Tertuliano e António, mostra uma humanidade prostrada ante a
impotência de assimilar à experiência aquilo que escarnece da totalidade.” (MACHADO, 2006,
p. 3). O seu não se adaptar às relações de impasse e o mau uso da objetividade revelam um
indivíduo sujeitado a ser abolido de sua condição de sujeito.

3.6.2 Vivendo os céus destinados a outro homem: a recusa do pós-modernismo em


Tertuliano Máximo Afonso

Agora que compreendemos que a figura de Tertualino Máximo Afonso se constitui com
base em uma premissa de recusa do ser, passemos a analisar o porquê de isso acontecer. Já aqui
percebemos que Saramago, por meio de seus processos autorreflexivos, constrói uma narrativa
de negação, ao se propor a redigir um romance, sem vias de ser romance. Vimos também que
o processo de autorreflexividade é um processo característico das narrativas pós-modernas, o
que nos parece insuficiente, por isso, propomos a seguinte indagação: muito além da premissa
da recusa da escrita do romance, temos uma recusa do romance pós-moderno ou seria uma
recusa a ser escritor de romances, bem como a ser considerado pós-moderno?
Como pudemos observar, o contexto pós-moderno em Portugal é complicado por
múltiplos fatores; em vias de ser um escritor português e politizado, Saramago enfrenta
lucidamente esses embates do contexto político em que viveu. Em um país em que nem mesmo
a modernidade se instaura com firmeza, é difícil pensarmos em uma pós-modernidade,
concebermos um sujeito pós-moderno. Tertuliano é a representação da impossibilidade da
existência de um sujeito pós-moderno em Portugal, pois considerar sobreviver neste mundo é
perder qualquer invólucro de essência, qualquer rastro de originalidade; é se perder em meio ao
caos e ser cópia, mas não cópia de um qualquer: é ser cópia de um ator de filmes, um ator
coadjuvante.
80

Se pararmos para pensar que o pós-modernismo se iniciou em solo norte-americano,


onde o capitalismo pulsa selvagem, muito mais do que em qualquer outro lugar do mundo, onde
o cinema é consagrado e onde o life style do american dream6 é ecoado em mais alto timbre, é
de se colocar em pauta o fato de Saramago escolher justamente um ator para que nele Tertuliano
se veja duplicado e, principalmente, colocá-lo em posição de deslumbre e de obsessão nessa
condição. No fim das contas, constrói-se uma triste e irônica ideia de que António Claro era um
sujeito não muito extraordinário, tão não extraordinário que decidiu trocar de vida com
Tertuliano, mostrando que aquele que possuía a vida dos sonhos talvez sonhasse com uma vida
tão comum e pacata quanto a do que sonhava ser e poder mais.
Saramago constrói uma retórica sobre um espectro de ilusões redigido no romance:
Tertuliano deixa de ser quem é, de viver sua vida ao procurar o alguém que representa o seu vir
a ser. Em tal espectro, jamais poderá ser ele mesmo, jamais poderá encontrar-se, pois há um
macrocosmo político e um econômico de distância entre ele e António Claro. Terry Eagleton
(2012), em sua obra As Ilusões do Pós-Modernismo, ajuda-nos a compreender em claros termos
essa questão:

Há um tipo parecido de contradição incorporada ao pós-modernismo, que


também é simultaneamente radical e conservadora. Uma característica
marcante das sociedades capitalistas avançadas encontra-se no fato de elas
serem tanto libertárias como autoritárias, tanto hedonistas como repressoras,
tanto múltiplas como monolíticas. E não é difícil descobrir a razão disso. A
lógica do mercado é de prazer e pluralidade, do efêmero e descontínuo, de
uma grande rede descentrada de desejo da qual os indivíduos surgem como
meros reflexos passageiros. (EAGLETON, 2012, p. 101).

Ao mesmo tempo que a figura de António Claro se constrói como uma possibilidade,
como uma esperança, como um herói que possui pulso e atitude, também se instaura como
aquele que oprime, que impõe e que se sobrepõe, que não deixa alternativas. O segmento final
da narrativa – que segue pelo fato de a troca de identidades entre Tertuliano e António Claro
jamais poder ser desfeita e, principalmente, de esta se dar de maneira obrigatória, ainda que
Tertuliano desejasse ser como António Claro – faz pensar que esse desenrolar nunca estivera
em seus planos. Este império narrativo soa como eco do que vive Portugal em relação aos países
centrais, de um capitalismo muito bem consagrado e evoluído: a sociedade portuguesa, mesmo
na tentativa de resistir a determinados processos, mantendo sua economia alinhada à agricultura

6
Essa questão ecoa a estética americana, que mencionamos anteriormente nos apoiando em David Harvey,
baseada em uma imagem política e economicamente agradável dos Estados Unidos, chamando a atenção de outros
países e mascarando as mazelas que as políticas do país, pouco voltadas para o benefício de sua população, causam.
81

tradicional, tentando não sucumbir por completo à derrocada do impulso moderno, acaba por
ceder, ainda que de modo forçado, para não sucumbir economicamente.
Tertuliano é o reflexo de Portugal, é o reflexo do pessimismo saramaguiano, que grita
em uma só voz que não crê em uma salvação nesse processo; em uma maneira de seu país sair
ileso; em uma maneira de os sujeitos não se tornarem apenas reflexo nesse mundo que faz os
países e as pessoas perderem a sua autonomia. No mesmo ano de lançamento de O Homem
Duplicado, 2002, Saramago proferiu um discurso, denominado Esse mundo da Injustiça
Globalizada, que nos dará suporte para nosso processo interpretativo se tornar mais claro.

Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então,
entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes
que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a
democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos
na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder
económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a
democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as
misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos
simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há
pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos
vivendo. (SARAMAGO, 2002, p. 6).

Saramago, neste discurso, incita a reflexão ascendente. Maria Chalfin Coutinho, Edite
Krawulski e Dulce Helena Penna Soares (2007), em seu artigo Identidade e trabalho na
contemporaneidade: repensando articulações possíveis, pontuam que “as transformações
sociais provocam mudanças também nas identidades pessoais, ao desestabilizar a idéia de si
próprio como sujeito integrado, fazendo-o perder a estabilidade do sentido de si mesmo”
(COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007, p. 30). Além disso, mencionam que,

Na contemporaneidade, [...] estão presentes as dimensões da mudança e da


continuidade, requerendo dos sujeitos que se identifiquem, a cada momento,
com algo novo, e reconheçam em suas trajetórias uma dimensão temporal,
integrando passado, presente e futuro, no mundo laboral. De um lado, os
trabalhadores ainda precisam vender sua força de trabalho sob condições que
lhes são determinadas pelo capital. De outro, as mudanças nas formas de
emprego e o desemprego estrutural, entre outras, trazem exigências de novas
competências, habilidades e talentos para se manter empregado. Todas estas
situações levam o sujeito a ter que enfrentar cotidianamente o novo e
reescrever sua trajetória de vida e sua identidade. (COUTINHO;
KRAWULSKI; SOARES, 2007, p. 35).

É nessa reescrita da própria trajetória, no âmago caótico de uma sociedade que não se
interessa em fazer o sujeito se descobrir por completo e refletir sobre seus processos, que o
força a buscar o inalcançável, que exige a excelência, que incita a autocobrança, ou melhor, a
autoexploração, que nasce O Homem Duplicado. Tertuliano se torna reflexo, cópia, a partir do
82

momento que é levado a acreditar que o modo como vive é inferior ao de um outro, o que lhe
incita uma ganância de poder mais na construção ilusória de um possível estado de satisfação
também ilusório, pois, se a vida de António Claro é tão interessante, por que ele insiste
em trocar de lugar com Tertuliano? No fim das contas, ambos são reflexo, nunca narciso, pois
narciso é a idealização criada pelo capitalismo como molde do mundo de oportunidades que se
pode alcançar no seu universo, considerando apenas o próprio esforço dos indivíduos, o próprio
mérito.
No entanto, essa propaganda incita o egoísmo e a individualização, joga no indivíduo
uma culpa que não é sua, mas que ele assume e acaba por criar um ciclo vicioso, em que o
sujeito nunca se satisfaz. A relembrar as reflexões de Berman sobre Nietzsche, o sujeito se vê
diante de um guarda-roupas cheio de roupas, mas nenhuma lhe cabe; há sempre a insatisfação
pulsante, pois é justamente dessa insatisfação que o capitalismo sobrevive. Sua missão não é
tornar o sujeito completo e cheio de si, e sim fazê-lo perder-se, deslocar-se, sentir-se culpado,
em um mar de opções, ver-se sem opções e, dessa forma, estar sempre à procura de algo que
nunca encontrará.
Eis o paradoxo pós-moderno e eis a raiz das contradições do romance saramaguiano:
não há como galgar uma trajetória de autoconhecimento em uma sociedade que sabota esse
processo; não há como escrever a história, falar de um homem, colocar um ponto final em um
contexto em que tudo vai no rumo do incerto, do fragmentário, em que tudo caminha para a
dissolução. Aqui, vale referenciarmos a segunda epígrafe da obra7: vivemos em um céu que não
é nosso, uma vida que não é nossa, porque não sabemos o que é nosso, afinal nós nos perdemos
de quem somos realmente.
Finalizamos nossa reflexão com a crença de que O Homem Duplicado é um romance de
impossibilidades, sejam narrativas, estruturais, reflexivas, já que se trata do único modo de se
fazer literatura no universo pós-moderno, recusando a arte para recusar o capitalismo. É nessa
premissa negativa que nosso texto vai chegando às suas vias de conclusão.

7
“Acredito sinceramente ter interceptado muitos pensamentos que os céus destinavam a outro homem” (Laurence
Sterne)
83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não poderíamos deixar nosso texto com o gosto amargo do pessimismo saramaguiano.
Há que se pensar em esperanças, para que sigamos em frente, para que possamos ter a vontade
de continuar. Como epígrafe da dissertação, escolhemos uma frase de Marx, encontrada em sua
obra Os Manuscritos Econômicos Filosóficos: “Ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e a raiz
para o homem é o próprio homem” (MARX, 2006, p. 151). Sigamos a refletir com base nela.
Marx, em sua obra, diz que é necessário ter como postura um imperativo categórico por
meio do qual podemos derrubar todas as condições em que o homem fora humilhado,
escravizado, desprezado. Afirma ser preciso também fazer do homem o fator supremo do
próprio homem; ser radical é colocar o ser humano em primeiro lugar. E mesmo em seu
pessimismo, conseguimos enxergar que Saramago possuía uma vontade de ver o mundo de uma
forma diferente, mais justa e igualitária, e que lutou por isso em meio a sua severa opinião dos
rumos do mundo e das coisas. Sempre na missão de indagar e de questionar a realidade e a
sociedade por meio da literatura, mesmo sem crer que essa poderia sequer causar uma mudança
no mundo.
No entanto, se a literatura não muda o mundo, por que estamos aqui dissertando acerca
dela? Precisamos discordar dessa premissa. Devemos olhar para o mundo com os olhos de
Antonio Candido, olhos que creem que a literatura é “como algo que exprime o homem e depois
atua na própria formação do homem” (CANDIDO, 2012, p. 82), que a veem como um direito
humano e inalienável.
Também devemos, porém, erguer a voz da denúncia. Pela arte, Saramago não só fala
como grita. Ao fazer de O Homem Duplicado a trajetória de um ser humano que tenta
ser humano em um mundo desumano e falho, de um indivíduo que ousa tentar individualizar-
se e falha, de um alguém que ousa tentar alcançar o vir a ser e morre na praia. Tertuliano tenta
de todas as maneiras não sucumbir, mas sucumbe, rende-se. Tal como Portugal tentou não
sucumbir às rédeas capitalistas e, mesmo assim, sucumbiu, pois sobreviver neste mundo é
sinônimo de se render, de abandonar, de aniquilar para ter a chance de continuar.
Lukács (2010) postula que a consolidação do capitalismo como sistema não significou
o fim do desenvolvimento e da luta, e sim que, a partir de tal consolidação, nossa luta como
indivíduos sociais se tornou ainda maior. Esse ser desumanizado, em sua humanidade, sofre as
consequências desse sistema audaz. A literatura, neste questionamento e neste âmbito, faz-se
extremamente necessária e tem grande papel.
84

Uma observação superficial leva a afirmar que as exigências da verdadeira


arte literária chocam-se aqui com a hostilidade geral à arte que é própria do
sistema capitalista e que foi insistentemente sublinhado por Marx. Mas como
em qualquer outro caso, também este contraste entre a exigência de harmonia
e de beleza artística e a feiura da época capitalista pode ser relacionado com
os grandes problemas substanciais das lutas das massas. (LUKÁCS, 2010, p.
87).

É pela arte que se elucida, que se combate, que se denuncia, que se revela a realidade.
A mensagem pessimista de O Homem Duplicado é o triste reflexo da sociedade a que se
enquadrada, sem contar que, mesmo o reflexo do sofrimento humano, é ainda um reflexo, é
ainda falar sobre o humano, tal como menciona Marx (2006, p. 108):

Cada uma das relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar,
degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos
os órgãos de sua individualidade, assim como os órgãos que são
imediatamente em sua forma, órgão comunitários, são no seu comportamento
objetivo, ou no seu comportamento para com o objeto, a apropriação do
mesmo, a apropriação da efetividade humana, seu comportamento para com o
objeto é o seu acionamento da efetividade humana [...], eficiência humana e
sofrimento humano, pois sofrimento, humanamente, aprendido, é uma
autofruição do ser humano.

É nesse processo de autofruição, de aprendizado que concluímos o nosso raciocínio. Neste


trabalho, tentamos estudar a literatura para estudar o ser humano, para estudar a sociedade, pois,
ao falarmos de um ser humano, estamos falando de todos os seres humanos; ao estudar um
livro, estamos estudando literatura. Buscamos ser radicais indo às raízes de um
homem ficcional, criado por um homem material. No caos de Saramago, impera uma ordem:
a de ser radical, voltar a si mesmo, em toda e qualquer circunstância.
85

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