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Capitulo 7 OBSERVAR A PRATICA PEDAGOGICO-MUSICAL E MAIS DO QUE VER! Cintia Thais Morato ¢ Lilia Neves Goncalves AOBSERVACAO NALEGISLACAO E A FORMAGAO DE PROFESSORES Acreditou-se por muito tempo que a formacio da docéncia deveria constituir-se de conhecimentos te6ricos (métodos e con- {etidos) que seriam aplicados no exercicio da profissdo. Atualmen- te, quando se cuida de resgatar a importncia que o conhecimento adquirido na prética assume nessa formago, podemos dizer que tem sido preocupacZo garantir que a formagao da docéncia nao prescinda do conhecimento construfdo pelo préprio licenciando. Na legislagao sobre os cursos de formagiio de professores 0 “conhecimento prético” aparece como um dos componentes da formagao que, por sua vez, se completa com o componente “co- nhecimento te6rico”. A associacdo entre teoria e pratica é colo- cada quando menciona-se que: ‘A formagao de profissionais da educagao, de modo a atender aos objetivos dos diferentes niveis e modalidades de ensino e as caracte- risticas de cada fase do desenvolvimento do educando, ter& como fundamentos: |- a associago entre teorias e praticas, inclusive medi ante a capactagao em servigo; |. (BRASIL, 1996, ar. 61, inc. 1. A associagao entre teoriae prética como forma de priorizar «uma formagio condizente com o que a profissdio docente deman- 1s da, acaba por fragmentar o conhecimento ao reservar lugar espe- cialmente dedicado & pratica. O artigo 12 da Resolugo CNE/ CP n. | (Brasil, 2002) menciona que todas as disciplinas e com- ponentes curriculares, ¢ nao apenas as disciplinas pedagégicas, “ero a sua dimensdo pratica” (pardgrafo 3). No que se refere & observacao, o artigo 13 orienta para que essa dimensio pritica seja ainda “desenvolvida com énfase nos procedimentos de observacao e reflexio, visando & atuagdo em situagdes contextualizadas, com o registro dessas observagies realizadas e a resolugao de situagdes-problema” (Brasil, 2002, art. 13, pardgrafo 1), Essa legislagao sobre a formagao do pro- fessor apega-se & pratica como solugdo para garantir que o pro- fessor seja capaz de ressignificar o que Ihe acontece em sua rela- ¢40 direta coma instabilidade da realidade educativa. O que faz.areflexao localizar-se na dimensio pratica da for- mago do professor? Pautando-nos em Pimenta (2002) e Ghe- din (2002), que procedem a uma reflexao critica sobre epistemo- logia do professor reflexivo de Donald Schén, é possfvel enten- der que a reflexdo, quando localizada na dimensao prética da formagio, alinha-se ao conhecimento enquanto aplicagio. Are- flexao, ao ser entendida como um procedimento de “superagao dos problemas cotidianos vividos pela pratica docente [...], difi- culta o engajamento de professores em praticas mais criticas, re- duzindo-as a um fazer técnico” (Pimenta, 2002, p. 23). Seareflexao sobre a pritica constitui o questionamento des- sa mesma pratica, de modo a despertar a problematicidade da situagdo a fim de operacionalizar solugGes para uma atuacao con- textualizada, também nao podemos esquecer que a reflexo “no existe isolada, mas € resultado de um amplo proceso de procura ‘que se dé no constante questionamento entre o que se pensa (en- quanto teoria que orienta uma determinada pratica) ¢ 0 que se faz" (Ghedin, 2002, p. 132-133). Aoreconhecer que arealidade educativa é complexae imprevi- sivele, como tal, exerescio profissional da docéncia exige muito 116 ‘mais do que aplicagaio de conhecimentos te6ricos (os quais nao ofe- recem respostas imediatas para os problemas que surgem no devir da situagdo pedagégica), aobservagiio assume uma fungao impor- {ante para o futuro professor poder se inteirar das situagdes instaveis eindeterminadas que arealidade da sala de aula lhe reserva. Além disso, tendo consciéncia de que nao hé uma situago educativa igual a outra, areflexdo também toma-se necesséria para que, dialogando com a sua propria atuagdo, se possa construir solugdes possfveis paraos problemas que se apresentam no seu dia-a-dia, Concordamos com a legislaco quando esta explicitaa obser- vvagio como sendo um dos “procedimentos” (Brasil, 2002, p. 4) a serem utilizados na formagao do professor. Contudo, questiona-sea sua lassificagdo como conhecimento que se dé na prética e/ou para apratica, Tal como aparece na legislagdo, a observagao inscritana dimensio pritica do conhecimento do professor deixa de levarem conta outros aspectos envolvidos no processo de observar. A legislagao parece considerar a observago como um ato pratico pelo fato de que, ao observar, o futuro professor esté vendo algo acontecer. Mas, ao tomar a observagao apenas na dimensio pratica, o texto da resolucdo nao salienta asua dimen- sdo te6rica, Para Carr e Kemmis (1988), Uma "prética”[.. ndo 6 um tipo qualquer de comportamento nao meditado que exista separadamente da “teoria’ © que pode “apl: car-se" a uma teoria. Na realidade, todas as praticas, como todas as observagées, incorporam algo de “teora’, e isso 6 tao certo para a pratica de empreendimentos “taéricos” como para a dos ‘empreandimentos propriamente "praticos’ como 0 ensino. Ambas so atividades sociais concretas que se desenvolvem para fins concretos mediante destrezas e procedimentos concretos @ & luz de crengas e valores coneretos (p. 126)." 1. Una “prictica”[..] no ¢s un tipo cualquiera de comportamiento no meditado que existaseparadamente de la “teoria”y al cual pueda “aplicar- se" una tori, En realidad todas las préctcas, como todas ls observacio- nes, incorporan algo de “teria, yes0 estan cierto para la préctca de las empresas “tebricas” como para la de las empresas propiamente “prcti- 17 Entao, tanto existe uma dimensao tedrica incidindo na obser- vac, que se materializa na pratica, quanto existe uma dimen: pratica incidindo na reflexo, que se materializa na teoria. Ambas so, portanto, indissocidveis, ¢ cireunscrevem-se nos espagos socioculturais em que vivemos e nos formamos e nos quais apren- demos a discernir as perspectivas que nos interessam para a nos- sa atuagzio no mundo, Sao essas perspectivas que orientam as nossas reflexes sobre o que vemos. Por isso, observar nao: ver, é também pensar sobre o que se vé—e af a observagao deixa de ser somente da pratica, instituindo-se também como dimen: da teoria, pois © conhecimento 6 sempre uma relagéo que so estabelace entra a pratica e as nossas interpretagdes da mesma; é a isso que cha- amos teora, isto 6, um modo de ver e interpretar nosso modo de agir no mundo (Ghedin, 2002, p. 132) Apesar de ser interessante a discussio sobre a concept implicita e/ou explicita na legislago no que se refere 3 formago reflexiva do professor, nosso objetivo neste capftulo é discutir sobre a observago nos cursos de formacio de professores. Qual seria realmente a sua fungo? Por que se defende o seu uso nos cursos de formagao de professores? Podemos dizer que existem especificidades nos processos de observagao envolvidos na for- magdo de professores de miisica? Para responder essas questdes estaremos utilizando, além da literatura pesquisada e relatos de experiéncias préprias, depoi- mentos de estudantes dos Cursos de Miisica da Universidade Federal de Uberlandia (UFU)'e excertos de relatérios de esté- ‘eas como la ensefianza, Ambas son actividades sociales coneretas que se desarrollan para fines concretos mediante destrezas y procedimientos cconcretos y a la luz de unas creencias y unos valores concretas, 2. Os depoimentos foram colhidos em entrevistas realizadas por Cintia Thais Morato em janeiro de 2006, em Uberlindia, MG 1s gio elaborados por alunos na disciplina Pritica de Ensino soba Forma de Estégio Supervisionado’ na referida universidade. A OBSERVACAO NOS CURSOS DE FORMACAO DE PROFESSORES (O procedimento da observagiio tem sido muito utilizado nos cursos de formagio de professores como parte da Pratica de Ensino e Estégio Supervisionado, Procurando entender a uiliza- ¢do da observaciio nos cursos de formagdo de professores, Es- trela (1994) afirma que esse procedimento tem servido a dois propésitos: a observacio sobre o futuro professor e a observa- G40 feita pelo futuro professor. A observagao sobre o futuro professor consiste num pro- cedimento de formagiio que coloca as aulas do professorando para serem avaliadas pelos seus colegas e pelo professor orien- tador; ou ainda, nas situagdes de estagio, pelo responsdvel da classe em que o professorando estagia. Objetiva facultar a0 professor em formacao a tomada de consciéncia de si préprio, proporcionando-Ihe um feedback, principalmente quando mei- 0s mais dispendiosos de registro como a filmagem em video no é possivel. Tida como uma “Pedagogia Autocorretiva” ou de “Auto-Aperfeigoamento”, 0 autor alerta para os riscos de empregar essa técnica sem 0 devido preparo tedrico e a refe- réncia de roteiros precisos, pautando-se a avaliagdo em achis- ‘mos subjetivos, quando nao em arbitrariedades provenientes da situagdo hierdrquica em que se encontram os participantes des- sa relagdo pedagégica (Estrela, 1994), A observagio feita pelo futuro professor é aquela que, coloca- dos em situagGes educativas, observando colegas veteranos' ou 3. Nome da disciplina na época das experiéncias relatadas (2001). 4, Como nos grupos multisseriais de estigio da Universidade Estadual de Londrina (Loureiro, 2006), 19 seus préprios professores,’ os professorandos assistem a exem- plificagdes de como ser professor. Assistir as aulas de outrem significa que, exercitando a observagao sobre condigdes concre- tas do processo de ensinar, podemos aprender com eles a ser professor. Estrela (1994) alerta, no entanto, que, “se os modelos constituem pélos de referéncia indispensaveis, é importante, con- tudo, a possibilidade de eles serem analisados, ‘desmontados’, assumidos ou rejeitados de forma consciente e critica” (p. 58). Embora o que se focalize possa nao ser a imitagao de um modelo tomado como tinico, verdadeiro, localizamos na “obser- vacio sobre o futuro professor e pelo futuro professor” uma pre~ ocupagao para com a modificago do comportamento e da atitu- de do professor em formagao. Para Estrela (1994, p. 56), esse {em sido o principal sentido atribufdo & observagao nos diversos sistemas de formagiio de professores. Porém, para além da mo- dificagao do comportamento, perguntamos: O que o professor em formagao, mediante o uso da observagao, tem aprendido so- bre asuarelagdo com a realidade educativa? Podemos dizer que nos dois propésitos a que tem servido, a observagio tem sido utilizada para ver e avaliar o qué e como o professor ensina. Quando se trata da observagao sobre o futuro professor, é 0 professor em formago quem seré avaliado; em se tratando da observagao feita pelo futuro professor, o professo- rando avaliard o professor que cle observa. Com que critérios avaliamos o professor? Serd que 0 que vemos é realmente 0 que acontece? O que vemos é uma possibi- lidade de certeza do que acontece, mas nao a tnica, pois outras pessoas observando a mesma cena podem ver “uma realidade” muito diferente da que eu vejo. 5. Na Universidade Federal de Uberlindia, hd casos em que, ndo havendo aula de misica nas escolas regulares onde slo feitos os estigios, as pro prias professoras (orientadoras do estigio) assumem a dirego da classe ;para que os licenciandos possam vivenciar a aproximagdo com a realidade profissional da docéneia em miisica, 120 Trata-se, entdo, de uma avaliagdo externa pontual. Externa porque a observagio fica no nfvel do aparente, Toma-se a vistia- lidade do que acontece de tal forma como verdadeira que se acre- dita conhecer 0 que acontece s6 pelo que é possivel de se ver “pregnincia da visualidade” (Barros et al., 2004). Nao fomos educados a pensar que 0 nosso modo de ver flui do nosso interior orientando-nos o que enxergar daquilo que vemos. Eo que flui de dentro de nés depende de como fomos e somos instrufdos sociale culturalmentea enxergar: E 0 olnar @ nao 0 olho que informa a exsténcia mundana das coisa. Isto quer dizer, 0 olho & natural, © ohar 6 socialmonto do senvolvido. (Teves, 1992, p. 9). ‘Vemos do mundo aquilo que queremos ver conforme as pers- pectivas socioculturais em que somos formados. Se isso vale para mim, vale também para as pessoas com quem interajo. Uma vez colocados em situagdes educativas para observar outros profes- sores, nijo somos somente nés que os observamos, eles também nos observam —¢ o fazem conforme suas perspectivas sociocul- turais, Porisso, trata-se também de uma avaliagao pontual por que descontextualiza a relagdo de interago que se estabelece no processo pedagégico centrando a observacdo apenas na pessoa que observa. Tanto quem observa quanto quem ¢ observado es- tabelece uma interago miitua que deixa de ser considerada. A OBSERVACAO NOS CURSOS DE FORMACAO DE PROFESSORES DE MUSICA Alguns estudos afirmam que aprendemos a ser professores desde o tempo em que sentévamos nos bancos escolares, pois, enquanto alunos, intrinsecamente envolvidos no processo peda- g6gico, fomos abstraindo 0s jeitos de ser professor daqueles que nos ensinavam, isto é, “em experiéncias vividas na sala de aula 121 durante a escolarizagao, encontram-se as raizes, ou vestigios, da dgica de um habitus professoral” (Silva, 2003, p. 105). ‘Segundo Tura (2003), “a observacao é a primeira forma de aproximago do individuo como mundo em que vive” (p. 184). Portanto, entende-se que os nossos alunos aprendem a partir dessas “situagées de aproximagao primitiva” com adocéncia de seus préprios professores, como relata uma estudante: “mesmo sem vocé me ensinar [a ser professoral, eu estava aprendendo” (Luciana, entrevista, 18/01/2006) De qualquer forma, reparamos que o principio que rege aas- sungao de que a aprendizagem profissional também se da partir da “aproximagao primitiva’” com a concretude da situagdo pedags- gicaéo mesmo que rege a defesa da aproximacao com a realidade profissional como processo de preparagao para a docéncia, qual seja, o principio da observacio de situagdes educativas. Roberto, aluno do sétimo perfodo do Curso de Licenciatura, bastante procurado para dar aulas de guitarra, se considerava despreparado para dar aulas por “nao ter didética”. No entanto, diz.que depois que entrou na universidade comegou a “observar seus professores”, porque “no tinha [...] o modelo”. Ele ainda relata: “E af eu comecei: —Ah, € por af que se comega, tal. Ah, é dessa maneira que eu tenho que caminhar com meus alunos, as- sim, assado!” (Roberto, entrevista, 18/01/2006), Essa colocagao, além de expor essa aprendizagem mediante “aproximagGes primitivas” com o mundo pedagégico, ainda le- vanta a questao dos modelos. E possivel destacar na fala de Ro- berto que 0 aprender a ser professor observando seus prépri- 0s professores também passa pela aquisi¢ao de modelos. A dife- Fenga esté em como esses modelos sdo apreendidos nesse tipo de relagio com o aprender a ser professor. Roberto adquire esse conhecimento na sua prépria experiéncia como aluno e nao tendo como modelo outros professores a quem observa em situag de estégio. Assim, como diria Larosa Bondi (2002), “um co- nhecimento que nos acontece”. 122 A observagao tem sido utilizada nos cursos de formagao de professores pelo menos sob dois aspectos: um, por estar asso- ciada “A concretude da aco pedagégica”, e outro, para “co- nhecer a realidade” na qual o ensino e aprendizagem de misica esto inseridos. ‘O questionamento esté na forma reduzida e redutora em que tais possibilidades de usos da observagao tém sido adotadas. Na primeira possibilidade, a da “concretude da ago pedagégica”, pensa-sea observago de uma situago educativo-musical como uma das formas de garantir a insergao do professorando na rea- lidade profissional concreta, na qual se aprende a ser professor. Porém, isso ndo passa de uma situagao simulada, pois o conheci- mento relativo ao viver uma situagdo educativa “6 do outro”, da- quele que o estagiatio observa. Sobre a segunda possibilidade, a de “conhecer a realida- de” em que se vai atuar, hd uma preocupacao em valorizar a “observagio enquanto processo de abordagem do real: co- nhecer com objetividade a realidade em que se pretende in- tervir” (Estrela, 1994, p. 21). O risco que se corre com essa possibilidade de utilizagao da observacio é 0 da limitagao do nosso conhecimento sobre a realidade na medida em que acre- ditamos conhecer apenas pelo que vemos no nivel aparente. Assim, costumamos avaliar as situages somente com base naquilo que delas presenciamos. Nesse sentido, a observacdo implica em recortar aspectos do que vemos acontecer e “esse mecanismo de selegdo opera em relagdo & experiéncia anterior: o ‘j4 visto’ observa-se mais facil- mente, mas o ‘demasiadamente visto’ corre o risco de passar despercebido” (Ketele e Roegiers, 1993, p. 23). Desse modo, 0 que se observa vai depender de quem observa, de sua hist6riae do olhar langado paraa “realidade”. ‘Quando se fala em observagao pensa-se, na maioria das ve~ zes, em algo ao alcance do olhar. Percebe-se que o ver € 0 olhar tém fungdo muito importante na apreensao ¢ conhecimento do 123 mundo em que vivemos. Embora a visdo seja, dentre os cinco sentidos, aquela a que se recorre mais freqiientemente num pro- cesso de observacao, “os outros sentidos podem ser igualmente Utilizados: a audig&o, o olfato, 0 tato ¢ 0 gosto. Para nos conven: cermos disso, basta pensar em disciplinas como aaciistica (audi- ¢40), a botinica (olfato), a enologia (gosto e olfato), a cinesitera- pia (tato), cujas técnicas de observagao se apdiam noutros senti- dos” (Ketele e Roegiers, 1993, p. 23) Essa teflexdo sobre o processo da observagao apoiando-se nos varios sentidos é muito interessante jé que se, realmente, s6 “olhdssemos o mundo e para o mundo em que vivemos”, como os cegos observariam? Como nés misicos apreenderfamos os mundos musicais que nos rodeiam? Diante disso, como miisicos, professores de mésica, no pro- cesso de observagdo além de ver a realidade e olhar para essa realidade, que outros sentidos exercitamos nesse processo? Sem diivida, como professores de miisica, o sentido da visio nao é bastante para nés. Os nossos ouvidos também devem estar bem abertos para “ouvir 0 mundo ao nosso redor”. Nao s6 ouvir 0 outro no sentido de sua colocaco no mundo em que os obser- vamos, mas ouvir sua misica, seu som, suas produgdes musi cais. Mas, ainda, ouvir sua mésica, seu som no é o bastante. E preciso prestar atenco na relagio que os alunos estabelecem com a mésica e, enquanto professor, inserir-se nessa relagao, buscando interagir com eles e com seus jeitos de fazer e de gostar de miisica. ‘OBSERVANDO” NA AULA DE MUSICA Em 2001 orientamos uma turma de Prética de Ensino soba Forma de Estégio Supervisionado que queria atuar em espagos educacionais alternativos. Inserimo-nos, entao, numa instituigao que atendia criangas ¢ jovens de 7a 17 anos no contraturno es- 124 colar, em Uberlandia, MG. Como o espago era desconhecido {anto para os professorandos quanto para as professoras orien- tadoras, a proposta consistiu em conhecer, por meio da observa- Gio, que espago de educagao era esse que se apresentava como possibilidade para atuagao profissional? Que miisica havianesse espaco? Como era ensinada? Quais relagdes, comportamentos e expectativas das criangas e jovens quanto & mésica? A todas es- sas questdes era necessério responder a fim de se poder elaborar uma proposta de ensino de miisica, a ser desenvolvida nos se- mestres de estagio subseqiientes, que nao estivesse tao alienada da realidade social desse possivel espaco de atuagao profissio- nal, No entanto, foi dificil desgarrar das condigdes presenciadas nesse espago. O conhecimento dessa realidade prendeu-se mui- toao nivel do aparente: Como as criangas gostam do coral, este nao 6 um trabalho des cartado, mas precisa ser mais bom apravaitado. As criangas gri- tam muito, néo ha nenhum direcionamento das frases. O reperté- rio tem muitas misicas religiosas e a maioria & dividida em duas vyozes, meninos @ meninas, mas ndo o tempo todo, apenas alguns. twachos. (Excerto do relatério de estagio, 20/06/2001). A observagao do mundo passa pelo filtro do “nosso olhar”, das nossas crencas, dos nossos preconceitos, enfim, pelo nosso imagindrio do que seja aprender musica, do que seja uma aula de misica, do que seja um bom professor de miisica, Essas crengas, que foram construfdas nas hist6rias de vida individuais durante todo © percurso da nossa formagao musical, s40 importantes constituin {es de nossas experiéncias anteriores e fazem com que vejamos 0 mundo pedagégico-musical que observamos a partir delas. Foi o que aconteceu com nossos alunos na situago antes relatada. Mes- mo vendo e convivendo no ambiente da escola e de sua aula de isica, foi dificil despir-se das crengas e priticas musicais com as quais conviveram em seus préprios trajetos de formagio musical: nao se deve gritar quando se canta num coral; 0 repertorio a ser 125 ‘rabalhado deve ser de “boa qualidade” para levantar dois dentre outros aspectos que emergem na citagdo acima. ‘Nao se questionou, entretanto, a relacdo que as criancas ob- servadas estabeleciam com a mtisica quando cantavam no coral da escola, Por que elas gritavam? Poderia ser por uma questo de orientagdo musical, mas também poderia ser porque queriam se projetar, serem reconhecidas pelas pessoas que as observavam. E o repertério, se nao era do gosto dos observadores, ou ndo fazia parte do acervo dito digno de se trabalhar numa aula de mésica, proporcionava um prazer enorme ds criangas que o cantavam — considerando ainda que muitas frequentavam igrejas evangélicas, onde também cantavam e escutavam aquele repertério. Sem considerar outras perspectivas possiveis, sendo as suas rdprias, os alunos propuseram: Para o préximo semestre, pretendemos desenvolver alguns traba lhhos como o de iniciagao musical com criangas de 7 a 10 anos, utiizagao de atividades lidicas e praticas corais que estejam de acordo com a realidade dos alunos. (Excerto do relatério de esté- gio, 20/06/2001), ara os futuros professores, é importante desenvolver a cons- ciéncia de que essas referéncias direcionam o nosso olhar e nos fazem deter em determinados aspectos da realidade musical, ou daquilo que se vé. Sem diivida, se nZo tentarmos nos despojar das nossas certezas ¢ exercitar nos colocar no lugar dos nossos observados, continuaremos a “impor” a nossa maneira de enten- der e fazer misica, desconsiderando as relagdes que nossos ob- servados estabelecem com ela, Portanto, “conhecer arealidade”” em que se vai atuarimplicaem desvendar nossos olhos, implica na consciéncia sobre as referéncias domeu olhar, implica em questionarmos: “De onde estou falando”? Mas como trabalhar isso com os professorandos? Saber “de onde estou falando” requer uma consciéncia mais interna do que externa, mais da parte de quem é agente da observagdo (“quem 126 sou eu que estou observando”), do que de “quem é esse que eu observo?”. Tendo consciéncia da prépria perspectiva sociocultu- ral em que fomos e somos formados, nos ajuda a deslocar de nés mesmos. Pois “olhar 0 outro”, ou os mundos musicais que nos rodeiam, ndo é “fotocopié-lo”, descrevé-lo em suas ages visi- veis, mas percebé-lo, compreendé-Io na “sua intimidade”” As certezas precisam ser questionadas com nossos alunos por que consideramos esse ou aquele repertério ideal” Por que a aprendizagem musical nao pode prescindir da leitura ¢ escritas musicais? Questionar os usos que os estudantes fazem da mtisica 6 importante? Ou o foco do ensino deveria estar nas relagdes que os estudantes estabelecem com a miisica? Essas certezas construfdas a partir de nossas referéncias e que nos acompanham no ato de observar uma aula de misica selecionam o nosso olhar e direcionam as nossas agGes, isto apontam para “o que queremos ver e fazer”. Enquanto professores de misica, € essencial que se assuma uma posigdo diante do mundo que esteja atenta para as muitas miisicas que se fazem presente, que ocupam os mais diversos lugares, momentos e que provocam diferentes relagdes no mun- do em que vivemos. Assumir essa posigo implica em mudanga de atitude, implica em exercitar uma visio que esteja atenta a0 outro, ao nosso aluno, nos varios aspectos envolvidos em sua relago coma mésica. Entdo, para que haja esse deslocamento, é necessirio que os cursos de formagiio de professores de miisica desenvolvam instrumentos de observaco que capacitem os futu- ros professores a nao s6 “traduzir o visivel”, mas “excitaro invisf- vel” em suas aulas de “misicas”, REFERENCIAS BRASIL. LDB ~ Lei 9394/1996. dda educagao nacional. 1996, Disponivel em: http:/portal. mec. gow-br! sesu/arquivos/pdtlei9396.pdf. Acesso em: 31/3/2006. stabelece as diretrizes ¢ bases 127 BRASIL. Resolugdo CNEICP n, 1, aprovada em 18 de fevereiro de 2002. 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