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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP

Broca, Brito, 1908-1961.


B681n Naturalistas, parnasianos e decadistas: vida
literária do realismo ao pré-modemismo / Brito
Broca; [coordenação: Alexandre Eulalio] —
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991.
(Coleção Repertórios)

1. Literatura brasileira-História e crítica. I.


Eulalio, Alexandre, 1932-1988. II. Título.

ISBN 85-268-0207-0 20. CDD- B869.09

índice para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira - História e crítica B869.09

J fipo de Aqtm ’çdo Coleção Repertórios


Adquirido ds
Copyright©1991 by André Broca Filho
I Preço
Registro 0 - £ ( / ( / _ C Projeto Gráfico
Camila Cesarino Costa
Üato R e g is t r o . . ^ , J 2 . g ç,
Eliana Kestenbaum
Coordenação Editorial
Carmen Silvia Pabria
BU / D P T Editoração
0 - 244 . 950- Sandra Vieira Alves
Preparação
Maria Clarice Sampaio Villac
Revisão
Marco Antonio Storani
Vania Teixeira de Castro Torres

1991
Editora da Unicamp
R. Cecilio Feltrin, 253
Cidade Universitária - Barão Geraldo
CEP 13083 - Campinas - SP - Brasil
Tel.: (0192) 39-3720
F ax:(0192)39-3157
SUMÁRIO

Este volume (Luiz D antas)................................................... 09


Prefácio (Alexandre E ulalio).............................................. 11
Memorialistas políticos (A Manhã, 27/08/1950).............. 19
Visões do Segundo Reinado (A Gazeta, 28/01/1956) . . . . 23
Tavares Bastos - uma descoberta do Brasil
{Correio da Manhã, 24/09/1950)................................... 28
Tobias Barreto - deputado provincial
(A Manhã, 04/09/1949)................................................... 34
O itinerário político do Visconde de Taunay
(A Manhã, 24/07/1949)......................................... 42
Celso Magalhães e o naturalismo
{Correio da Manhã, 19/09/1959)................................... 49
Artur de Oliveira - homem curioso
(A Manhã, 05/08/1951)................................................... 54
Quando se começou a traduzir no Brasil
{A Gazeta, 11/04/1953).................................................. 58
Maraba, o romance de Salvador de Mendonça
{Diário de Minas, 04/09/1960) . . ................................... 61
Um folhetinista brasileiro em Paris
{Boletim da Associação Brasileira
de Imprensa, 09/1961)..................................................... 66
Por que não houve uma Academia de Letras no Império
(A Gazeta, 30/07/1958).................................................. 69
Quando apareceu O Primo Basilio
(A Gazeta, 14/01/1958).................................................. 73
Um jornal literário-humorístico em 1881
(A Manhã, 13/04/1952)................................................... 76
Houve um teatro naturalista no Brasil?
(A Gazeta, 24/03/1956)................................................... 78
Um animador: Valentim Magalhães
(A Manhã, 14/12/1952)................................................... 83
A poesia revolucionária de Lúcio de Mendonça
(sem indicação de origem ).............................................. 87
Ramalho Ortigão no Brasil (A Manhã, 12/08/1951)......... 92
A História Literária de Sílvio Romero
(Leitura, 07/1943)............................................................ 96
A Carne de Júlio Ribeiro
(A Gazeta, 23/08/1952)................................................... 100
O romancista e o tenor (Correio da Manhã, 15/07/1961) . 104
Um polemista de outrora (A Gazeta, 27/06/1953)............ 107
Aluísio Azevedo e o Padre Freitas
{Correio da Manhã, 30/05/1959)................................... 111
Os intelectuais no advento da República
(A Manhã, 13/11/1949)................................................... 115
O aparecimento de O Cortiço em 1890
{Revista do Livro, n9 6, 06/1957)................................... 121
Os Goncourt e um escritor brasileiro
(A Gazeta, 13/05/1961)................................................... 131
O fracasso de uma sociedade literária em 1890
(A Gazeta, 04/02/1956)................................................... 133
João Ribeiro e os “enviados especiais”
{Leitura, 06/1960)............................................................ 138
Floriano e os intelectuais (A Manhã, 03/09/1950)............ 142
Uma grande época literária em Ouro Preto
(A Manhã, 23/12/1951)................................................... 146
Dona Guidinha do Poço
(A Gazeta, 12/01/1952)................................................... 151
Raul Pompéia na Biblioteca Nacional
{Leitura, 11/1960)............................................................ 154
Uma mistificação literária
(A Gazeta, 08/10/1949)................................................... 158
A literatura brasileira na Europa
(iCorreio da Manhã, 01/09/1956)................................... 163
Quando um escritor brasileiro entrevistou Zola
(A Manhã, 08/06/1952)................................................... 166
Capistrano de Abreu, “lobo da estepe”
(sem indicação de o rigem ).............................................. 171
As Cartas Literárias de Caminha
(A Gazeta, 01/09/1960)................................................... 174
Adolfo Caminha entre a Corte e a Província
(A Gazeta, 02/08/1958)................................................... 177
Alphonsus de Guimaraens jornalista
(A Manhã, 20/05/1951)................................................... 180
A “obra de fôlego” de Valentim Magalhães
(Leitura, 0 6/1958)............................................................ 184
Coelho Neto na tribuna parlamentar
(A Manhã, 19/02/1950)................................................... 190
Rui e seus adversários (A Manhã, 06/11/1949)................ 196
A obra crítica de Araripe Júnior
(A Gazeta, 11/04/1959)................................................... 203
Um romance de Afonso Arinos: Os Jagunços
(Revista do Livro, n2 15, 09/1959)................................. 206
A evolução americanista de Nabuco
(A Manhã, 14/01/1951)................................................... 213
Nabuco e Carlos de Laet (A Manhã, 22/10/1950)............ 218
Oliveira Lima - advogado do diabo
(A Manhã, 18/12/1949)................................................... 223
Vinte e cinco anos de crítica militante
(Correio da Manhã, 07/04/1957)................................... 229
Republicano no Império, monarquista na República
(A Manhã, 21/08/1949)................................................... 234
João do Rio e a crônica política (A Manhã, 18/12/1949) . 242
Graça Aranha plagiário?
{Correio da Manhã, 20/05/1961)................................... 248
Sílvio Romero e Taunay (A Gazeta, 15/02/1958)............ 252
O bom humor de Taunay (A Gazeta, 14/12/1957)............ 256
Artur Lobo e a novela O Outro
(A Gazeta, 17/10/1959)................................................... 259
No arquivo de Coelho Neto
{Revista do Livro, n? 10, 0 6/1958)................................ 264
Camilo e Monteiro Lobato
{Correio da Manhã, 13/05/1961)................................... 312
Um livro esquecido {A Gazeta, 14/03/1961)..................... 315
Boêmia e profissionalismo {A Gazeta, 10/06/1958)......... 318
O caipira no teatro brasileiro
{Correio da Manhã, 04/06/1961)................................... 320
Veríssimo e Marinetti {A Gazeta, 07/03/1961)................ 325
Bilac e Juó Bananére
{Correio da Manhã, sem indicação de d a ta ) ................ 327
Os “ últimos boêmios” {A Gazeta, 03/06/1958)................ 333
O Pirralho - uma revista de transição
{A Gazeta, 13/02/1954)............. 336
Escritores que ficaram démodés {A Gazeta, 03/05/1958) . 340
Um velho debate {A Gazeta, 18/02/1961)......................... 344
De Catulo a Jeca Tatu (A Gazeta, 29/04/1958)................ 346
Relendo um velho livro de Ronald de Carvalho
(A Gazeta, 21/02/1953)................................................... 350
Antônio Torres contra João do Rio
(A Gazeta, 22/05/1958)................................................... 354
Um duelo frustrado {Correio da Manhã, 07/02/1961) . . . 357
Um debate sobre “literatura paulista”
(A Gazeta, 16/02/1952)................................................... 361
Lima Barreto e o esporte (A Gazeta, 08/07/1958)............ 364
Documento de uma época (A Gazeta, 06/09/1958)......... 368
índice Onomástico ....................................... 373
Este Volume

As crônicas de Brito Broca aqui reunidas, que investigam


nossa vida literária, das inquietações do pós-romantismo até as
vésperas da Semana de Arte Moderna, são todas provenientes
da imprensa, publicadas nas décadas de 40 a 60, com exceção
do texto importante e mais longo sobre a correspondência de
Coelho Neto, publicado inicialmente na Revista do Livro. O
volume, concebido e organizado por Alexandre Eulalio já há
alguns anos, integra o acervo do Centro de Documentação da
UNICAMP que leva o nome dele. Poucas modificações foram
impostas ao projeto inicial: apenas alguns remanejamentos de
textos, para não romper uma cronologia rigorosa do conjunto;
a inclusão de uma crônica não prevista para este volume,
"Quando um escritor brasileiro entrevistou Zola”, complemento
oportuno do tema central; quanto ao mais, foram adotadas as
próprias alterações dos originais de Brito Broca apostas por
Alexandre Eulalio, quando a necessidade de um título mais
enxuto ou a clareza de uma passagem exigiam reparo.
O leitor perceberá, ao percorrer estas páginas, as quali-
dades essenciais e insubstituíveis de Brito Broca. Por trás de
uma escrita exemplarmente discreta, há nestas crônicas uma
curiosidade insaciada pela matéria literária; a elucidação de
um problema, a lembrança de um autor acenam sempre com
outras tantas aventuras críticas possíveis. Por outro lado, se as
grandes definições ou as visões sintéticas estão ausentes, e são
até avessas ao espírito da empreitada, em contrapartida, Brito

9
Broca traz à luz uma infinidade de manifestações menores, os
autores esquecidos, as raridades de bibliófilo, todas elas carre-
gadas de sentido, participantes e modificadoras dos fenômenos
globais. Os livros de memórias e reminiscências, as obras de
transição ou persistência de gosto, as polêmicas, os retratos dos
nossos homens de letras, a recepção das obras estrangeiras ou
o impacto de nossos livros decisivos, as associações e as rodas
literárias são alguns dos terrenos que o cronista privilegia. Ao
partir do detalhe, ao lembrar questões que desafiam as classi-
ficações, ao convocar tantos mortos, Brito Broca, pela própria
natureza de seu trabalho, apaga os traços limítrofes entre texto,
biografia e vida literária. Ele torna-se o contraposto inegável
dos espíritos rígidos de sistema, com as conseqüentes visões
redutoras ou autoritárias, de contornos sedutoramente nítidos.

Luiz Dantas
Prefácio *

O lugar que Brito Broca ocupou na literatura brasileira


foi de certa forma único. Pesquisador por vocação, encaminhou-
se naturalmente da divulgação jornalística para a erudição ge-
nuína; transformou assim instintivamente a curiosidade virtual
(que o havia levado desde cedo às primeiras leituras de artigos
nas Enciclopédias) na pesquisa cada vez mais aprofundada e
absorvente da realidade cultural brasileira, passada e presente.
O mais autêntico fervor pelas Letras alimentava essa pulsão,
nuclear nele. A verdade luminosa dos vicarios paraísos alcan-
çados no absoluto das leituras inaugurais, terra verde continua-
damente pisada pelo adolescente afoito, desde então clima bus-
cado em cada livro que lia, pouco a pouco desabrochou em
espírito crítico e vivência profunda do devir histórico, que
acabariam por se tornar, gravados a seco, a marca secreta da
própria escrita dele.
A intensidade desse relacionamento com a Literatura, ba-
nhado de ironia e anticonformismo pelo sucessivo aprendizado
das decepções, marca o itinerário desse autodidata que pro-
curou sistematizar e interpretar, do interior, o quadro da evo-
lução cultural brasileira. Nela buscou o obscuro relacionamento
concreto que tinha lugar entre o cotidiano sempre mesquinho,
mesmo se pitoresco, da vida literária e o voo livre da criação.

* O riginalm ente publicado no volum e R om ânticos, P ré-R om ânticos e


U ltra-R om ânticos, P olis, Brasília, 1979.

11
Realizou assim, com o vigor que motivava um imaginário soli-
damente amparado pelo conhecimento, de primeira e segunda
mão, das grandes literaturas, esse mapa indispensável da reali-
dade menor contígua ao criador e do diálogo, nem sempre sutil,
estabelecido entre ambos. Território que era necessário conhe-
cer com intimidade total a fim de concretamente poder-se reco-
locar em situação uma época e outra época e a sucessão das
épocas. Para isso usou seja de talento e técnicas jornalísticas
quanto de critérios do ensaísmo, aplicando ora a divagadora
curiosidade do viajante disponível, ora a preocupação classifi-
catória do botânico herborizando no campo. E desse modo pôde
realizar um programa coerente de pesquisas, anterior à siste-
matização dos trabalhos universitários na área; assim, desbas-
tou, com método, conhecimento e superior inteligência, essa
região onde poucos se arriscavam e onde ninguém como ele
conseguiu definir limites com maior nitidez.
Escritor autêntico, além dos livros que publicou Brito
Broca deixaria dispersa, em anos seguidos de colaboração na
imprensa, obra valiosa, variada, de fatura invejável mesmo nos
escritos secundários, servida sempre pela vivacidade atilada de
um espírito inquieto. Depois da primeira aprendizagem na pro-
víncia — em Guaratinguetá, Vale do Paraíba paulista, onde
nasceu em 1904, permanecerá até concluir a Escola Normal
— Brito, recém-transferido para São Paulo — depois de uma
aventura antioligárquica que lhe valeu o “exílio” na cidade
grande —, logo se engaja na imprensa da capital do Estado,
conseguindo ingressar enquanto colaborador efetivo na redação
de uma grande folha. Repórter, depois cronista de A Gazeta,
escreve, ao lado do trabalho rotineiro de redação, “manchas e
impressões” que encabeçam a coluna mundana, além de outras
páginas assinadas Lauro Rosas — heterônimo crepuscular em
breve substituído pelo seu reverso, Alceste: um Alceste se não
propriamente misantrópico pelo menos questionador, cujos co-
mentários gerais, vasados com grande finura, logo alcançam,

12
nesses anos de 30 e 40, o mais vivo favor nos mais diversos
meios. A experiência definitiva na redação paulistana, aliada a
um sempre maior interesse pela literatura brasileira, sobre a
qual publica pesquisas e comentários, faz germinar nele o pro-
jeto de um trabalho orgânico de maior fôlego; inicia então a
recolta do material sobre literatura e vida literária entre nós,
tema em que se torna especialista insuperável.
Apenas em 1938, a convite de Genolino Amado, então
reorganizando a Agência Nacional, transfere-se para o Rio de
Janeiro, onde passa a trabalhar na sucursal de A Gazeta e,
mais tarde, na divisão de publicidade da Livraria fosé Olympio.
Apenas dessa época em diante pôde dedicar-se de maneira
exclusiva ao jornalismo literário, vindo a ocupar postos-chave
em redações de suplementos e revistas especializados, entre
outros A Gazeta, Cultura Política, Letras & Artes, Jornal de
Letras, Correio da Manhã, finalmente na Revista do Livro; sua
colaboração, sob a forma de artigos e reportagens, estende-se
praticamente pelas mais importantes publicações literárias do
País entre 1940 e 1960, quando, naquela primeira data, o seu
nome já se torna familiar e se impõe a todas as rodas letradas.
Contando com material de interesse para formar vários
volumes já ao tempo da sua transferência para o Rio, Brito
Broca apenas em 1944 viu o seu nome em capa de livro. Era
este, aliás, quase uma plaquette: Americanos, editado em Curi-
tiba pela Guaira, na série “Caderno Azul”. Apenas doze anos
mais tarde viria a lume A Vida Literária no Brasil — 1900,
que deveria constituir a terceira tábua do seu ambicioso políp-
tico histórico-literário, volume precedido de pouco pela breve
biografia de Raul Pompéia, encomendada para uma coleção
semididática infanto-juvenil. À sombra do êxito excepcional do
seu grande painel sobre a belle époque literária nativa, logo
laureado por quatro prêmios de importância, surgiram no ano
seguinte (1957) Horas de Leitura e Machado de Assis e a
Política e Outros Estudos, coletâneas que iniciavam a reunião

13
do ensaísmo do Autor esparso em jornais e revistas. Brito Broca
ainda organizaría uma terceira antologia de si mesmo, Pontos
de Referência, que contudo não chegou a ver impressa; faleceu
repentinamente, investido por um automóvel que atravessava
em alta velocidade a madrugada da Praia do Flamengo, em 20
de agosto de 1961, e o volume sairía do prelo apenas no ano
seguinte. O autor deixava, em fase adiantada de organização,
mais duas obras: A Vida Literária no Brasil — Época Moder-
nista (original que se extraviou, dele restando entre os seus
papéis apenas alguns capítulos na versão final do ensaísta) e
Quando Havia Província, livro de reminiscencias. O último,
carinhosamente restaurado e recuperado por Francisco de Assis
Barbosa — que completou a parte estabelecida por Brito com
textos esparsos, anteriormente divulgados como fragmentos au-
tônomos pelo Autor — aparecería em 1968 com o título (algo
impessoal) de Memórias. Ainda à dedicação de Francisco de
Assis Barbosa à figura do amigo e conterrâneo devemos tam-
bém a publicação, em 1966, do volume Letras Francesas, reu-
nião dos artigos que Brito Broca divulgou no “Suplemento Lite-
rário” de O Estado de S. Paulo entre 1956 e a data da sua
morte. Primeira das obras de Brito postumamente organizadas,
esse livro de leitura envolvente não apenas confirmava a garra
do escritor na sua intransferível capacidade de dialogar com
o leitor, como tornava urgente o interesse de prosseguir a coleta
dos esparsos. O plano, longamente acalentado, dessas Obras
Reunidas que agora se tornam realidade, virá assim trazer ao
alcance do leitor, junto com as achegas preciosas, fruto de
pesquisa continuada, e as interpretações perspicazes e ilumi-
nantes que a ele devemos, um autor de personalidade própria
e extremamente sedutor na sua escrita.
Dentro do nosso panorama cultural, Brito Broca escolheu
esboçar a história, visível e palpável, da vida literária. E vida
literária tanto no seu aspecto mais imediato dos usos e costumes
das rodas de escritores, mesas de café e salões mundanos, como

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na vertente mais abstrata das modas estéticas, das famílias espi-
rituais, dos modos de ver e de sentir do individuo e do grupo.
Para isto dispunha de formação sólida e do conhecimento minu-
cioso das épocas a que se referia. Junte-se a tanto a vivência
em profundidade da literatura, que repensava através das suas
experiências pessoais nesse domínio e ainda o bom-senso e o
bom-gosto desenvolvidos pelas infinitas horas de leitura, ini-
ciadas ainda antes da adolescência e jamais interrompidas.
A sua vocação profunda de historiador das idéias, da cul-
tura e da mentalidade literárias no Brasil teria sem dúvida que
tropeçar na vida atribulada de jornalista profissional e no auto-
didatismo, que foi regra na geração dele. Nem por isto deixou
obra menos decisiva, cuja importância será avaliada na sua
verdadeira transcendência agora, reunida em volume. Seja pela
variedade, qualidade e abundância, seja pela assombrosa pes-
quisa original que encerra, pela visão de conjunto fina e equi-
librada da evolução das nossas letras, constituirá autêntica sur-
presa, mesmo para os críticos mais céticos e exigentes.
Nada mais difícil do que falar sem agudos sentimentais
no amigo que se conheceu muito e do qual conservamos não
sei quantas efígies simultâneas, todas expressivas e indispen-
sáveis. Como num filme em que, de repente, as imagens dis-
param, subindo umas por cima das outras, as lembranças tam-
bém se disputam a precedência, de modo confuso e toldado. Ê
quase impossível escolher quais desses fotogramas valeria a
pena revelar, no preto-e-branco da cópia fosca.
Vinte diferentes Britos Brocas parecem acorrer, mas na
verdade agora se recusam, a uma evocação metódica da sua
presença. Por isto aceito como representativa e cheia de signi-
ficação certa imagem evanescente com a qual de súbito me
encontrei em sonho, uns tantos meses depois da morte dele, e
volta a me visitar no ingresso deste volume. Era no Instituto
do Livro, quando o Instituto ainda funcionava naquele quarto
andar meio misterioso da Biblioteca Nacional do Rio de Janei-

15
'I

ro. Era no Instituto, à tarde, mas, como num espelho, a imagem


dos objetos aí se refletia às avessas. Estou bem lembrado dos
pormenores: as estantes de aço da Secção de Publicações, sabe-
se lá por quê, encontravam-se do lado onde na verdade deviam
estar o Gabinete do Diretor e a Recepção. Vinha eu do canto
onde funcionavam os redatores da Revista do Livro quando —
surpreso mas sem espanto, como é de regra nesses casos — dei
com o Brito entre as estantes, mexendo nos livros das prateleiras
verdes,
Não é necessário explicar que os leitores impenitentes lo-
tados naquela secretaria do MEC ficavam, em todos os momen-
tos de folga, tratando de penetrar nos atalhos da floresta, onde,
lado a lado, davam boa sombra enciclopédias, edições críticas,
clássicos gregos e latinos, bibliografias, repertórios críticos. Ca-
farnaum glorioso, os canteiros dessa biblioteca de referência
eram preciosos; indispensável portanto cultivá-los com método
e carinho. Impossível também não voltar dali com qualquer
descoberta notável, que daria para alimentar o vício durante a
próxima semana.
Mas a província do sonho tem as suas leis, a sua lógica.
A consciência premente de que tudo aquilo era fumaça já se ia
dissipando, soprada pelo desejo cada vez mais imperioso de que
o encontro inesperado fosse outra vez realidade. Este querer
intenso demais por fim acabava vencendo a sensação de irrea-
lidade. Acabávamos por aceitar a geografia diferente das estan-
tes porque pressentíamos ser necessário prolongar o mais pos-
sível a cena que estava tendo lugar; urgia pois fixá-la de uma
vez por todas no curso dos acontecimentos, passado acontecido,
a fim de a tornar irreversível, definitiva, impossível de já agora
ser cancelada.
Em meio a essa atmosfera obscura de pressentimentos e
suposições, achando que tinha de dizer alguma coisa, mas sem
saber nem poder escolher as palavras, escapou de mim um

16
desajeitado “Ô Brito, que saudade”, que ouvi com espanto e
desgosto articulado pela minha própria voz. A frase, absoluta-
mente fora das regras da nossa convivência, deixou este mineiro
tão sem graça que Brito meio se riu de lado, franzindo a boca,
num jeito dele, a ironia alerta cintilando outra vez no olhar.
Completou o aceno esboçado com um outro meio gesto da mão
esquerda, de quem já estava saindo, e lá se foi pelo corredor,
ao longo das estantes, no passo satisfeito de quem ia por conta
do próximo artigo, já armado no estaleiro. E o sonho acabou
assim como estou contando, sem alegoria nem pirueta.
Essa memória póstuma não entra aqui por mera literatice
sentimental; é mais ambiciosa e ingênua. Nas suas linhas tortas
vêm como que a síntese do amigo, as suas diversas estratifica-
ções pessoais. Os livros, o sarcasmo vigilante mas humanizado
(tinha horror às expansões), a atenção integralmente voltada
para o trabalho dele. Cm trabalho cheio de paixão, cujo inte-
resse profundo continua a existir em relação direta com a hu-
manidade do escritor, que transformava a menor coisa que
tocava com o seu calor entusiasta.
Trinta anos de jornalismo que é literatura de boa água,
essa obra, até agora dispersa, abrange planos diversos. Da
reportagem e da entrevista literária vai ao levantamento crítico
e ao ensaio de interpretação, passando pelas notas de viagem,
os comentários do seu alter ego Alceste, os apontamentos sobre
literatura francesa, a marginália satírica e confessional, os pre-
fácios eruditos ou sarcásticos, as comovidas memórias. Tudo
isto concebido numa linguagem clara, fluente, ao mesmo tempo
despretensiosa e elegante, cheia de vibração, que nos melhores
momentos transmite em cheio a admirável personalidade do
escritor. Tudo isto o leitor terá a oportunidade de confirmar
pessoalmente nos diversos volumes das Obras Reunidas. ( . . . )
A preparação e organização dos sucessivos volumes devolveu-
me mais nítida do que sempre tal certeza. Por isto não posso
senão reafirmar, sem ênfase de nenhuma espécie, o que antes

17
dizia: o lugar que Brito Broca ocupa na literatura brasileira é
de certa forma único.
Eis a razão pela qual ele atravessava, tão seguro e tão
calmo, aquele corredor de sonho.

Alexandre Eulalio

18
Memorialistas Políticos

Tendo sido o Segundo Reinado um dos períodos mais inte-


ressantes de nossa vida política, é de lamentar-se o pequeno
número de memorialistas dessa época com que até hoje conta-
mos. O costume de escrever memórias não estava, até há pouco,
muito divulgado entre nós. Só atualmente, parece, começa ele a
difundir-se. Foi uma pena, por exemplo, que um homem de
espírito tão fino como Cotegipe não nos deixasse impressões dos
políticos com que conviveu, das cenas da nossa vida pública
por ele presenciadas. O mesmo diremos de um Torres Homem,
de um Ferreira Viana, de um Silveira Martins. Os próprios escri-
tores envolvidos na política, a exemplo de Macedo e Alencar,
abstiveram-se de legar-nos os depoimentos de suas Memórias.
Alencar deixou-nos apenas em pouco mais de vinte páginas um
esboço de autobiografia, o que na realidade é pouco, quase
nada para um escritor tão fecundo. As memórias dos políticos
encerram geralmente uma justificação, quando não traem o
propósito de um desforço, a busca de compensações para um
ressentimento. Contrariado, de maneira tão rude, em suas am-
bições políticas, era natural que José de Alencar procurasse
vingar-se, fazendo, para a posteridade, o processo dos adversá-
rios, em páginas candentes de memórias. Tal não se deu, porém.
Contentou-se apenas em satirizá-los através dos personagens de
um romance secundário: A Guerra dos Mascates.
O maior memorialista do Segundo Reinado, quer pelo in-
teresse do depoimento, quer pela qualidade literária de que este

19
se reveste é, indiscutivelmente, o Visconde de Taunay. A parte
política já aparecera quase toda, há muitos anos, em livro deno-
minado Reminiscências, tendo sido agora incorporado ao texto
das Memorias, conservadas na arca do sigilo no Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro, recentemente publicadas.
Nessas Reminiscências encontramos a mais rica contribui-
ção que até hoje possuímos para o estudo do Alencar político,
perfil aliás enriquecido com mais alguns traços, nas Memórias.
Também grande parte do que sabemos de Zacarias, Torres-
Homem, Martinho de Campos, dos gestos típicos, dos cacoetes,
das rusgas políticas desses vultos, nos vem por intermédio dos
retratos tão engenhosamente esboçados por Taunay. Recorrendo
à anedota, sem dela, entretanto, abusar (como acontece com
muitos memorialistas), oferece-nos um amplo material para o
anedotário político do Segundo Reinado.
Nas Memórias, um dos trechos mais curiosos é aquele em
que o escritor nos conta a hostilidade de que foi alvo por parte
do Conde d’Eu, na campanha da Cordilheira, somente porque
não queria bandear para o lado dos liberais aos quais se mos-
trara simpático o Príncipe.
O autor de A Retirada da Laguna tinha muito vivo o sen-
tido do pitoresco; sabia selecionar as lembranças que pudessem
despertar interesse, conseguindo assim proporcionar-nos uma
leitura sempre leve e amena. Voltamos, com freqüência, a essas
Memórias, procurando reavivar um traço ou outro, que nos leva,
finalmente, a reler vários capítulos.
Já o mesmo interesse falta às Memórias do meu Tempo,
do Conselheiro Pereira da Silva, que acumula os fatos num tom
muito monótono e, além disso, desperta certa desconfiança no
espírito do leitor, informado das liberdades que o historiador
costumava tomar com a História. Aliás, a explicação dada por
ele dos motivos que levaram Alencar a deixar o gabinete Itabo-
raí já foi largamente contestada.

20
Ao lado do livro de Taunay, devo colocar antes Oito Anos
de Parlamento, do Conde de Afonso Celso, obra igualmente para
constante releitura e urna das mais interessantes no gênero já
escritas no Brasil. Afonso Celso, que andou pelos caminhos da
poesia e do romance, chegando a fazê-lo de cunho simbolista
(Giovanina) e de cunho político (O Invejado), parece ter encon-
trado sua verdadeira vocação como memorialista, na arte do
retrato, meio a Saint-Simon e a La Bruyère. As imagens de
Nabuco e de Rui Barbosa na tribuna são duas páginas de anto-
logia. A “explicação” de Saraiva, o homem que não se sabia
por que todo mundo respeitava e estava sempre de cima, cons-
titui uma verdadeira trouvaille, tendo, como se sabe, suscitado
réplica de um parente do político baiano. Foi, aliás, Afonso
Celso quem nos informou ser a única leitura de Saraiva a Revue
des Deux Mondes, unicamente porque o Imperador a lia e lha
recomendava. E é impossível não admirar o traço fino, marche-
tado de humor, com que o memorialista nos pinta aquela gravi-
dade hierática de Prudente de Morais, sempre soturno, com seus
discursos rígidos, oheios de cifras, em que todo mundo reco-
nhecia grande mérito, mas que ninguém tinha disposição para
ouvir.
O Visconde Nogueira da Gama, camarista de D. Pedro II,
reuniu num pequeno volume com cerca de duzentas páginas, sob
o título de Minhas Memórias (1893), algumas cartas escritas da
Europa e outras impressões de viagens — nas vezes em que
acompanhou ao Velho Mundo o Imperador — juntando-as com
recordações da vida escolar e cartas trocadas com Saldanha da
Gama e frei Monte Alverne.
Muito interesse anedótico apresentam estas páginas, prin-
cipalmente a que se refere a Monte Alverne. Aqui, Nogueira da
Gama dá-nos uma informação curiosissima. Como camarista
do Imperador, tivera em mãos a carta em que o velho frade
pedia, humildemente, desculpas ao soberano por não poder

21
atender ao convite para pregar na Capela Imperial, no dia de
São Pedro de Alcántara.
“Empreguei na carreira do pulpito vinte seis anos —
escrevia Monte Alverne — vinte foram consumidos na Capela
Imperial; catorze gastos no ensino filosófico; servi ao Soberano,
glorifiquei a Deus; não fui inútil à pátria. Senhor, não posso
pregar o sermão de São Pedro de Alcântara: é a solução do
problema intrincado que tentei indiscretamente resolver. V. M. I.
me perdoará se o aflijo com esta denegação. Tenho empregado
todos os meus esforços para comprazer a V. M. I.; o desengano
veio pôr termo às ilusões que me restavam; todo empenho, toda
tentativa direta e imediata para voltar ao púlpito, que deixei há
dezoito anos, é impossível. . . ”
E mais adiante:
“Senhor, é forçoso confessar; sou uma ruína antiga e va-
liosa; mas não é dado a alguém restabelecê-la e restituí-la ao
primeiro estado. V. M. I. cumulando-me de atenções, recompen-
sou completamente o meu passado; estou satisfeito e até vin-
gado; mas encetar de novo a carreira, renovar tantos tropeços,
vencer tantas resistências, criar inspirações, nutrir entusiasmo,
com uma saúde vacilante, sem poder 1er nem escrever, e na
isolação em que vivo, é impossível!”
Essa carta dramática, na qual muito bem se delineia o
temperamento de Monte Alverne, não foi entregue ao Impera-
dor. Nogueira da Gama substituiu-a, para forçar o velho frade
a aceitar o convite. Enquanto isso, recorrendo a frei João Diniz,
conseguia deste todo auxílio para Monte Alverne, cego, com-
pulsar o texto e preparar o famoso sermão de São Pedro de
Alcântara, cuja peroração se encontra hoje em todas as seletas
clássicas. Só mais tarde, depois do sermão, veio o Imperador a
ter conhecimento da carta, reivindicando Nogueira da Gama
para si um papel preponderante no magnífico espetáculo que
foi a subida de Monte Alverne ao púlpito, na manhã de 19 de
outubro de 1854.

22
Um traço essencialmente pitoresco sobre a personalidade
de D. Pedro II ainda encontramos nas páginas dessas Memórias,
quando Nogueira da Gama nos informa de verdadeiro sacrifí-
cio a que o Imperador submetia sua comitiva, em viagem pela
Europa, fazendo questão de não perder um minuto sequer, de
ver tudo, mesmo o que parecia a muitos de quase nulo interesse.
Fossem insinuar ao soberano a inutilidade ou o pouco proveito
de visitas a esse ou àquele lugar e ele protestaria veementemente,
dizendo não reconhecer nada capaz de desinteressá-lo. Os anti-
monárquicos, habituados a atribuir ao Imperador estreiteza de
espírito, como deixarão de encarar, sob um aspecto lisonjeiro,
essa curiosidade extraordinária do soberano. Era ele, pelo me-
nos, o tipo do viajante inteligente, bem ao contrário dos turistas
com que topamos, freqüentemente, na Europa, dizendo de uma
ladeira, de um bairro ou de uma rua: “Lá não há nada que
ver. . . ”
Comecei este artigo para comentar as páginas de um me-
moralista do Segundo Reinado, cujo livro descobri, há pouco,
esquecido, num “sebo”; mas o assunto me levou a passar em
revista todos os memoralistas da época que conheço, obrigando-
me a desdobrar a crônica em duas partes, a segunda ficando
para diante.

Visões do Segundo Reinado

Faz pouco tive ocasião de passar em revista alguns memo-


rialistas políticos do Segundo Reinado. Hoje, poderia continuar
esse compte-rendu, apreciando, por exemplo, sob o referido as-
pecto, a Autobiografia de Rebouças, onde encontramos notações
bem curiosas em torno de homens e episódios políticos da se-
gunda metade do século passado; poderia reportar-me a um

23
livro muito pouco conhecido, Coisas do meu Tempo, de Ernesto
Matoso, onde há páginas extraordinariamente pitorescas e bem
expressivas para a definição do caráter e do temperamento de
vultos como D. Pedro II e o Visconde de Ouro Preto; podería
ainda encartar alguns capítulos do livro Minhas Recordações,
de Ferreira de Rezende, publicado em 1944, na categoria de
memórias políticas, das mais interessantes sobre o aludido pe-
ríodo. E, apesar de tudo, estaria longe de uma panoramização
ampla, sem uma pesquisa acurada naquilo que nas crônicas de
Machado de Assis constitui memórias políticas, as admiráveis
evocações de alguns homens do Segundo Reinado em páginas
do mais alto valor literário, como O Velho Senado.
Será isso, talvez, matéria para futuros artigos. Hoje, quero
deter-me, apenas, num livro, as Reminiscêneias, do padre João
Manoel, que por acaso descobri numa pilha de velhas edições,
num “sebo” . Lembrava-me de já haver lido várias referências bi-
bliográficas a esse livro, e foi assim, com grande curiosidade, que
o adquiri. O volume, embora impresso em papel acetinado, é
uma brochura tosca, trazendo a data de 1895 e a indicação “Tip.
Correio Ampárense — Amparo”. De um livro editado em cida-
de do interior, em tal época, não se pode exigir, na verdade,
melhor apresentação gráfica.
O Dicionário Sacramento Blake pouco informa sobre o
padre João Manoel. Sabe-se que era deputado federal, quando
se proclamou a República, e havia realizado na Câmara violenta
campanha em prol do movimento que derrubara o trono.
O volume é precedido de uma introdução, na qual se re-
produz um discurso inflamado do autor no Parlamento, susci-
tando enérgicos apartes de alguns deputados e notadamente do
presidente do Conselho, o Visconde de Ouro Preto. Por aí se
pode fazer uma idéia da índole combativa do padre João Manoel,
comprovada, aliás, pelo espírito polêmico que anima a maior
parte dos capítulos dessas Reminiscêneias.

24
O livro, na verdade, só tem o caráter de memórias até o
capítulo XXVIII; dali em diante, não passa de uma compilação
de artigos políticos, não mais relembrando figuras do Segundo
Reinado e sim criticando os maiorais do novo regime, como
Campos Sales, iFloriano Peixoto e outros.
Essa parte do volume, positivamente nos desperta pouco
interesse, mesmo porque sai fora do tema a que nos propuse-
mos. Limitemo-nos, pois, às reminiscências. Começam elas, logo,
com a narrativa de um episódio jocoso e sui generis, na crônica
parlamentar do país. Um indivíduo mentecapto, trabalhado por
alguns pândegos que souberam arranjar muito bem a situação,
convenceu-se de que havia sido eleito deputado por Goiás, e
nessa certeza compareceu à sessão preparatória de reconheci-
mento de poderes da Câmara de 1876. Foi uma dificuldade
imensa para retirá-lo dali, porque o homem teimava em perma-
necer, mostrando o diploma, e o presidente não queria lançar
mão da força, embora não pudesse iniciar a sessão com a pre-
sença do intruso que ocupava uma das cadeiras dos deputados,
provocando hilaridade geral. .
E como solução extrema só encontraram a seguinte: saí-
rem todos os deputados do recinto, compelindo o falso parla-
mentar a retirar-se também e não o deixando depois reingressar
na sala. Mas essa maneira suasoria e hábil de resolver a ques-
tão, embora se tratasse de brincadeira ofensiva à dignidade da
Câmara, revela um delicado espírito de cordura e humanidade
por parte do presidente. Era preciso não magoar o maníaco, o
desequilibrado, obrigando-o a sair à força, e descobriu-se afinal
o meio de livrar-se do homem, sem violência.
Os traços que o padre João Manoel nos dá de José de
Alencar condizem, perfeitamente, com o perfil deste feito pelo
Visconde de Taunay. Na questão da oratória reafirma o esforço
prodigioso com que o romancista, sacrificado pela estatura e pela
ausência de voz possante, conseguiu, depois de muitos fracassos,
reunir os recursos de eloqüência necessários para impressionar

25
a Câmara. O Alencar orador foi, assim, o produto dele próprio,
Alencar, da sua extraordinária vontade. E também de um pro-
fundo ressentimento, devemos acrescentar; pois só quando
apeado do poder, em 1869, voltou à Câmara, para responder
aos adversários, surgiu no ex-ministro da Justiça o orador.
Como Alencar, de físico mirrado e voz fraca, o Tavares
Bastos lutava também terrivelmente para impor-se na tribuna,
onde não proferia frases campanudas, nem construía imagens
de efeito, procurando falar em termos simples, incisivos e con-
cretos de uma coisa que escapava a muita gente: a realidade
brasileira.
O padre João Manoel dá-nos um flagrante bem curioso
do autor das Cartas do Solitário no Parlamento, pedindo a José
Bonifácio, que já se retirava, para ficar mais um pouco, a fim
de responder um discurso do Visconde de Ouro Preto.
“— Fica, José, para responderes às heresias históricas do
Afonso Celso. . . ”
Tavares Bastos, que já não podia tomar parte no debate,
incitava José Bonifácio a pronunciar aquela que ficou sendo
uma das mais notáveis orações do parlamentar paulista.
O Visconde do Bom Conselho aparece, nas reminiscências
do padre João Manoel, com um espírito capaz de ombrear-se
em finura política com o Barão de Cotegipe, opondo resistência
tenaz e irônica às mais audaciosas arremetidas dos adversários.
Tal a estratégia com que resistiu ao ímpeto de Zacarias, que
procurava obrigá-lo a mostrar um projeto.
Também não hesita o autor em reafirmar o que muita
gente já tem acentuado: o fundo de insensibilidade perceptível
nos sarcasmos e nos arrebatamentos do Conselheiro Zacarias.
A atitude deste último, apelidando José de Alencar de “Fana-
dinho” é coisa que, além de não ter graça, só pode ressaltar a
distância que ia do romancista para o velho político baiano.
Mas talvez o memorialista exagere, quando vê em Zacarias,
além do orgulho da altanería, a maldade. Orgulhoso sim, era-o

26
de sobra o chefe do gabinete de 5 de agosto, convicto da sua
força política e caindo “sempre de pé”, como diz o padre João
Manoel. A figura de Zacarias, para a compreensão da qual
encontramos muitos subsídios em Taunay e Nabuco, ainda
está exigindo um largo estudo.
Sempre me pareceu um trabalho interessante, demandando,
porém, laboriosa pesquisa, o levantamento da história civil da
Guerra do Paraguai. Entendo por isso a reconstrução da vida
na retaguarda nos anos de campanha; as possíveis alterações
determinadas pela guerra nos usos e nos costumes; a maneira
pela qual os brasileiros acompanhavam a luta nesse tempo,
em que não havia telefone, nem rádio e os meios de transporte
eram escassos em todo o vasto Brasil.
Uma pequena contribuição nesse sentido oferece-nos o
padre João Manoel no capítulo X de suas reminiscências, três
páginas apenas, que desejaríamos ver prolongadas numa dezena.
Dada a carência de notícias — informa-nos o memorialista — ,
os boatos confusos e absurdos sobre o que se passava no Para-
guai multiplicavam-se por toda parte, sobretudo entre a massa
ignorante, onde qualquer novidade, por mais disparatada, en-
contrava logo aceitação. Assim, em certo momento, começou-se
a falar, com espanto, numa “formidável esquadra de terra”,
organizada pelo Lopes de Assunção, a fim de deter a marcha
de nossas forças. Ninguém sabia em que consistiria tal esqua-
dra, mas não faltava quem desse crédito a semelhante boato.
Inúmeras, também, eram as confusões de nomes que se
faziam: Aquidaban passou a ser, para muita gente, Quidibá;
e a palavra holofote, pouco conhecida na época, tornou-se holo-
fote, entre muitos estrategistas de café.
De D. Pedro II, o padre João Manoel guarda uma única
imagem: a do dia em que o viu de papo de tucano, pronun-
ciando a fala do trono. Causou-lhe o maior desconcerto aquela
“voz fina, aflautada, desarmoniosa”, saindo de corpo tão “volu-
moso e opulento”.

27

■ ■
Fernandes da Cunha e Sales Torres Homem são duas
grandes admirações do memorialista. Como falasse ao último
de uma série de libelos políticos, então publicados pelo Repú-
blica, Torreç Homem mostrou pouco empenho em lê-los, dizen-
do: “Só há um libelo político que fez carreira neste país” .
Referia-se ao “ Libelo do Povo”, de sua autoria, o mais feroz
ataque contra a monarquia e os Bragança, o que não impediu
o autor de vir a tomar parte nos conselhos da Coroa. O padre
João Manoel repele o boato de haver Torres Homem pedido
perdão a D. Pedro por esse escrito. Quem conhecesse a enver-
gadura do grande tribuno, jamais acreditaria em tal coisa. O
fato é que o Imperador foi* generoso e Torres Homem não
podia deixar de corresponder-lhe, até certo ponto, o gesto.
Outra grande admiração do padre Manoel é o Conselheiro
João Alfredo, de quem nos diz ter ficado na penúria, sem
poder pagar a professora de piano para a filha, depois da Pro-
clamação da República. E para encerrarmos estas linhas, per-
guntaremos, a propósito: por onde andam as memórias políticas
de João Alfredo, cuja publicação já foi prometida, há dez anos,
na coleção Documentos Brasileiros?

Tavares Bastos — Uma Descoberta do Brasil

O que primacialmente nos surpreende em Tavares Bastos


(Aureliano Cândido) é o fato de, pertencendo ele a uma gera-
ção romântica, ter tido essa consciência profunda da realidade
brasileira com que se adiantou, consideravelmente, de sua épo-
ca. Entretanto, quem folhear as coleções da Revista Mensal do
Ensaio Filosófico, agremiação acadêmica fundada por Álvares
de Azevedo, verá que em 1868, logo após a morte do poeta, já
se começava a esboçar entre os intelectuais jovens, sob as arca-

28
das do velho convento da Paulicéia, um certo movimento de
reação contra os excessos dissolventes do Romantismo. No
número de junho de 1864, a referida revista noticia nos se-
guintes termos o aparecimento de uma nova publicação de
jovens: “Por mais de uma vez tem-se acusado nosso século de
descrente, por mais de uma vez tem-se dito que o doloroso cate-
cismo de Byron e a dúvida agonizante de Musset são os senti-
mentos que imperam em nossa mocidade. Pois bem, como pro-
testo a esses absurdos, alguns estudantes do l.° ano fundaram
A Crença, jornal literário e hebdomadário”.
Por outro lado, na mesma Revista do Ensaio Filosófico,
lemos constantes protestos contra a mania de viverem os estu-
dantes a imitar Álvares de Azevedo e a imaginar que olheiras
e palidez bastavam para emprestar talento a alguém. No número
de julho de 1864 podemos destacar uma nota sobre a inflação
de poetas no ambiente acadêmico de São Paulo. “É uma verda-
deira epidemia de vis versejandi — escreve o articulista. Des-
preza-se a ciência, despreza-se o estudo da lição para passar-se
uma noite inteira diante de uma mesa, a martelar o crânio, a
queimar as pestanas, manchar o papel — para no dia seguinte
confiar-se ao amigo ou ao companheiro de casa o fruto das
lucubrações noturnas”.
Esses e outros trechos semelhantes, que podíamos repro-
duzir aqui, bem indicam já ser um tanto diverso do clima
byroniano do Romantismo que foi encontrar em São Paulo
Tavares Bastos, quando para ali se transferiu, vindo de Recife.
Mas essa ligeira transformação do ambiente não iria exer-
cer influência sensível na visão do jovem alagoano, se ele já
não trouxesse consigo a envergadura embrionária de um pen-
sador político. Seus contemporâneos, como Pedro Luís Ferreira
Viana, Andrade Figueira e outros, embora preocupados com
problemas de direito, sociologia e economia política, jamais
revelaram o sentido prático e positivo das coisas, que caracte-

29
rizou toda a atividade de Tavares Bastos. Discutiam os fatos
mais no plano teórico das generalizações e das abstrações dou-
trinárias. Tavares Bastos, ao contrário, através das teorias con-
cluídas nos livros, penetrava com olhar firme e seguro o qua-
dro da realidade brasileira. Não se tratava de formular doutri-
nas; tratava-se de inquirir, de procurar saber o que nos convi-
nha, numa palavra, de tomar conhecimento daquilo que muita
gente parecia ignorar: a existência do Brasil.
“O Brasil já existia no tempo de Tavares Bastos” — disse,
há pouco, Gilberto Amado. Sim, já existia, porque já encon-
trava intelectuais, como o autor das Cartas do Solitário, capazes
de encarnar a consciência do país. Tavares Bastos vinha a
estabelecer em nossas letras uma corrente de ensaístas políticos,
primordialmente delineada por João Francisco Lisboa, cuja tra-
dição, passando por Tobias Barreto e Sílvio Romero, com gran-
des soluções de continuidade, seria retomada brilhantemente
por Euclides da Cunha.
No entanto, causa estranheza ver-se o esquecimento em
que permaneceu esse homem durante tanto tempo. Sílvio Ro-
mero, na monumental História da Literatura Brasileira, alude
acidentalmente ao ensaísta d’A Província, sem declinar-lhe ne-
nhuma das obras, fato que não poderia parecer muito estranho,
se não conhecéssemos o juízo severo e injusto de Tobias Bar-
reto, em Vários Escritos, sobre Tavares Bastos. Sílvio em tudo
se mostrava solidário com Tobias e não podia logicamente inte-
ressar-se pelo que o amigo repudiara. As referências de José
Veríssimo ao ensaísta alagoano, em obra do mesmo gênero da
de Sílvio, embora elogiosas, não bastaram para retirar Tavares
Bastos do esquecimento. Pouco ainda conseguiram alguns arti-
gos isolados, aqui e ali, e a admirável conferência de Gilberto
Amado, em 1925.
Em 1938, o sr. Carlos Pontes, na mesma Coleção Brasi-
liana, em que já haviam sido reeditadas três das principais
obras de Tavares Bastos, deu-nos a primeira biografia, até hoje

30
existente, do seu ilustre coestaduano — um trabalho bem-do-
cumentado e bem-escrito, em condições de suscitar o interesse
dos leitores para essa luminosa figura. Modestamente declara
o autor: “Sobre Tavares Bastos muito se escreverá ainda; muito
melhor, o que não é difícil”. Ora, até agora decorridos doze
anos da publicação desse livro, não nos consta se haja escrito
mais — nem muito, nem pouco — sobre tão grande assunto.
O próprio ensaio biográfico do sr. Carlos Pontes, de leitura
tão fácil e atraente, parece não haver despertado a atenção
merecida do público, pois continua na primeira edição, da qual
encontramos ainda exemplares, a todo momento, nas livrarias.
O mesmo acontece, queremos crer, com as reedições das obras
de Tavares Bastos. Neste último caso, porém, o pouco empenho
do público é mais compreensível.
Livros, como A Província, Cartas do Solitário e O Vale do
Amazonas destinam-se hoje a um círculo relativamente pequeno
de leitores, de estudiosos especializados em nossos problemas
político-sociais. Embora se exprimisse com clareza, num estilo
enxuto e desenvolto, Tavares Bastos não se distinguía “por
notáveis qualidades de escritor” como bem ressalvou José Verís-
simo, na referência que há pouco assinalamos — tornando-se
necessárias, atualmente, certas disposições especiais de espírito
para lhe enfrentarmos, na totalidade, as obras. Entretanto, o
interesse pelo pensador político, por tudo quanto este realizou
e o que sua figura representa em nossa história, pode dispensar,
até certo ponto, essa leitura minuciosa e detalhada, e não se
justifica a ignorância em que a vida e a obra de Tavares Bastos
se vêm mantendo até agora, entre muita gente culta.
O primeiro trabalho de Tavares Bastos, Males do Presente
e Esperanças do Futuro, como, sob certos aspectos, as Cartas
do Solitário, filia-se ao gênero de panfleto político, freqüente
no Império, no qual se distinguiu, pelo rumor e o escândalo
produzidos, o Libelo do Povo, de Sales Torres Homem. Apenas,
com uma sensível diferença: a maior parte dos panfletários

31
visava a homens, partidos, interesses de clã; Tavares Bastos
agitava idéias. Dizia o que estava errado e o que se precisava
fazer. Não se preocupava em substituir fulano por beltrano,
em dirigir insultos ao Imperador. Governo bom seria o de A
ou de B, bastando-lhe que realizasse as coisas necessárias, dis-
tinguidas com tanta agudeza pelo ensaísta político.
Daí a linha de coerência por ele conservada, durante toda
sua curta e brilhante carreira: jamais bandeou para este ou
aquele lado, ao sabor das conveniências pessoais; tinha um
programa liberal a cumprir, um programa de iniciativas, de
realizações de idéias, e jamais se colocaria fora desse roteiro.
Sales Torres Homem, depois de dizer horrores do Imperador,
reconcilia-se com o trono, no momento em que essa reconcilia-
ção lhe garantia o poder. O mesmo acontece com Ferreira
Viana. As injúrias ao soberano, no panfleto A Conferência dos
Divinos, não lhe impedem achegar-se do trono e vir a ser mi-
nistro. Nenhuma dificuldade encontravam para proceder assim,
porque não tinham idéias a defender. Em todas as campanhas
de Tavares Bastos o que se distingue é justamente isso: um
homem que não põe em jogo os indivíduos, mas sim as idéias;
não ataca A nem B e sim os argumentos que eles arvoram.
E para se avaliar bem a distância entre um político dessa
estirpe e a média dos políticos da época, basta lembrar o terreno
mesquinhamente pessoal em que grandes figuras, como Zacarias
e Martins Francisco, por mais de uma vez colocaram o debate
com ele. Às idéias, defendidas inteligentemente por Tavares
Bastos, opunham gracejos de mau gosto à diminuta estrutura
física do parlamentar. Aliás, Zacarias era useiro e vezeiro em
tais recursos. O mesmo fizera com Alencar, apelidando-o de
“Fanadinho”. E o Imperador que desculpara as injustiças de Tor-
res Homem e Ferreira Viana, chamando-os ao poder, sob a alega-
ção, aliás nobre e digna, de não lhe ser lícito, por ressentimento
pessoal, privar o país do concurso dos seus melhores talentos,
jamais cogitou, que nos conste, de recorrer a Tavares Bastos.

32
0-ÍW4- 9 so.r,
Biblioteca Universitária
U FSC

Este homem tão cheio de idéias nunca conseguiu ter nas mãos
o instrumento do poder para levá-las a efeito. Ao contrário, é
o próprio Imperador quem, promovendo a queda dos liberais
em 1868 e dissolvendo a Câmara, irá contribuir indiretamente
para o ostracismo em que cairá o ensaísta d’A Província.
Espírito realista e prático, o parlamentar alagoano coloca-
se paradoxalmente numa posição quase romântica ante a men-
talidade política do seu tempo. Se alcançou o objetivo de algu-
mas memoráveis campanhas, como a da abertura do Amazonas
aos navios estrangeiros, o certo é que se assemelhava a um
sonhador, e de fato o era, sob determinado prisma, com a infi-
nidade de propósitos que tinha em mira realizar, os inúmeros
problemas cuja solução propunha.
À força de enxergar a nossa realidade, numa época em que
esta continuava sendo tão pouco conhecida, acabaria por assu-
mir, aos olhos dos contemporâneos, uma atitude de idealista.
Em muitos casos, pode-se dizer que “pensava” ele no futuro
e não podia ser mesmo compreendido no presente. Não foi,
apesar disso, um revolucionário, como bem acentua Carlos
Pontes. Sem pretender a criação de uma nova ordem, o que
visava era estruturar o país nas suas legítimas bases. “ índole
reformadora e não revolucionária” — escrevera Joaquim Na-
buco, em Um Estadista do Império.
E dentro desses amplos limites, quando descobertos, quan-
tos achados admiráveis sobre o nosso destino! Ainda há pouco,
por ocasião do Congresso do Negro Brasileiro, seria oportuno
lembrar as palavras do ensaísta alagoano, prevendo a fisionomia
do nosso país, como a mais interessante do mundo, dentro de
algumas décadas por causa da nossa fusão étnica: “A raça bra-
sileira (que então se formará) — escrevia ele — terá a imagi-
nação do africano e a reflexão do branco”.
Coisa idêntica dizia-me o sociólogo argentino Martinez
Estrada e o escritor português Miguel Torga, quando o visitei

33
em Coimbra. Repetiam sem o saber o autor do Vale do Ama-
zonas. Visionar os problemas brasileiros é voltar, a todo mo-
mento, a Tavares Bastos.

Tobias Barreto — Deputado Provincial

Formando-se em Direito pela Faculdade do Recife, Tobias


Barreto, que já nos bancos acadêmicos se tornara um líder entre
os colegas — cujo renome de poeta estava firmado e cuja inteli-
gência se mostrara uma das mais luminosas da época —, parece
que só tinha dois caminhos a seguir: mudar-se para a Corte ou
ficar no Recife, o melhor centro provinciano que lhe abria pos-
sibilidades de êxito e ascensão.
Ao contrário disso, que faz ele? Retira-se para uma cidade
do interior de Pernambuco: Escada: feudo açucareiro, sede de
uma pequena aristocracia rural. Qual o motivo de tão estranha
resolução? O desejo de isolar-se a fim de melhor realizar os
estudos que tinha em mira e aplicar-se, de corpo e alma, à ativi-
dade intelectual — pensam uns. O objetivo premeditado de
fazer ambiente para a carreira política — pensam outros. Her-
mes Lima, no excelente estudo biocrítico sobre Tobias é deste
último parecer. O escritor casara-se com a filha do coronel João
Félix, grande chefe liberal e proprietário de vários engenhos
em Escada. Nessa pequena cidade, onde instalara banca de ad-
vogado, Tobias ficava, por assim dizer, em domínios de família
e melhor poderia preparar terreno para aquilo que o biógrafo
chama “ a sua incorporação às elites”. Teria sido assim um ato
muito calculado essa preferência por Escada. Na realidade, a
influência municipal sempre foi um meio poderoso de ascensão
política. Quantas figuras, tanto no Império, como na República,
se fizeram em pequenas cidades do interior, ali firmando o

34
prestígio que devia conduzi-las a um âmbito maior! Esse pro-
pósito não excluiría, porém, a sedução de uma vida retraída,
para dedicá-la toda ao estudo. Sabe-se ter sido em Escada que
Tobias Barreto aprendeu, sem mestre, o alemão.
Em 1871, depois de instalar-se na cidade e iniciar-se na
advocacia, em que se vira desde logo cercado pela antipatia de
juizes e colegas — dada a atitude superior e altiva com que os
tratava ou que eles lhe atribuíam — , Tobias compra um prelo
e se dispõe, com o auxílio de um rapazola, a compor e a impri-
mir um jornalzinho, O Republicano, de caráter essencialmente
político. Era o primeiro dos vários jornais que ali fundaria,
todos de curta duração.
Ainda está para aparecer o biógrafo que, sem falsear a
verdade, reconstrua, com verdadeiro sentimento poético, o qua-
dro dramático da vida do escritor em Escada. A cidade pequena,
sem movimento. Apenas os carros de alguns barões que partem
ou que chegam dos seus engenhos. O cavaco à tarde, à porta
da farmácia. Três ou quatro tipos populares indefectíveis em
todo burgo provinciano. A velha igreja com seu velho campa-
nário. Um clube recreativo, certamente. E, à sombra do casario,
as intrigas a se tecerem, os olhos coscuvilheiros à espreita. À
noite, as ruas ficariam logo desertas, e o transeunte que se retar-
dara, esquecido numa partida de gamão, veria entre as janelas
fechadas da cidade adormecida uma nesga de luz na casa do
dr. Tobias, o mulato empertigado, o genro do coronel João Félix.
O dr. Tobias trabalhava: lia, escrevia, compunha o seu jornal-
zinho. Daí a dias o novo número do Americano suscitava comen-
tários pelas esquinas. E a arrogância, o ar desabrido do dr.
Tobias tanto perturbava os correligionários liberais quanto irri-
tava os adversários conservadores.
Pelos seus impulsos progressistas, o autor de Dias e Noites
devia, naturalmente, mesmo que não houvesse motivos para
isso, formar ao lado do sogro no partido liberal. Esse partido,
apeado do poder em 1868, iniciara na oposição uma tenaz

35
campanha reformadora, secundada em 1870 pelo famoso mani-
festo dos republicanos, constituídos em grande parte de elemen-
tos avançados do partido, revoltados com a maneira pela qual
o Imperador manobrava a máquina político-administrativa do
país. Liberal, Tobias mostrou, desde logo, seu propósito de
guardar certa independência de movimentos. Já em artigo de
fevereiro de 1870, protestando fidelidade às próprias convic-
ções, dizia não querer ser uma cifra no meio dos outros, havia
de ter sua opinião pessoal e sabê-la seguir, sem tergiversar.
Um ponto essencial da campanha oposicionista dos libe-
rais era o problema da centralização do poder. Enfeixando o
Imperador todas as regras do governo nas mãos, a Corte ficava
com um predomínio sobre o resto do país e, as províncias, em
situação de dependência servil. Esse foi logo um dos alvos dos
ataques de Tobias. Investir contra a autocracia do monarca era
investir, igualmente, contra a Corte que o escritor sempre detes-
tara, e o veneno do seu sarcasmo seria tanto mais intenso quan-
to naquela pequena cidade do interior veria ele a metrópole
distante, como algo de inacessível — uma força poderosa e
dominadora — , indiferente aos grandes talentos que se plas-
mavam na província. Sem uma romaria à Corte não havia sal-
vação possível para quem quisesse triunfar no Brasil, e Tobias
se empenhava em reagir contra essa praxe, dispondo-se a nunca
sair da província.
Enquanto faz política pela imprensa, estuda com afinco
a língua, a literatura e a filosofia alemãs; escreve vários ensaios
sobre problemas filosóficos e principalmente religiosos, assunto
este último que muito o preocupou, de certo por influência dos
exegetas germânicos. Parece convicto de que atrairá a atenção
do Brasil, e quiçá de outros países do mundo, para sua pessoa,
mesmo sem o beneplácito da Corte.
O Americano dura pouco tempo. A mesma vida efêmera
terão os outros jornais que fundará. Quase nenhum chegará a
seis meses, substituído sempre, dentro de algum tempo, por

56
outro. Assim nascem e morrem A Comarca de Escada, o Desa-
busado, e, em 1876, O Povo de Escada. Por que essa implacável
efemeridade? Com o seu caráter rebelde, Tobias não queria,
naturalmente, ser subsidiado pelo partido. O subsídio equiva-
lería a um compromisso e o que ele defendia e propagava na
imprensa eram menos as idéias do partido do que as suas pró-
prias idéias. À míngua de apoio financeiro e contando, certa-
mente, com poucos leitores numa cidade como Escada, esses
jornais deviam dar prejuízo suficiente para obrigar o proprie-
tário a fechá-los dentro de alguns meses. Mas sobrevinha nova
fase de efervescência política; Tobias sentia-se tentado, ainda
uma vez, a manifestar-se pela imprensa, e daí um novo jornal,
que tinha a mesma duração precária do anterior.
Por outro lado, facilmente se conclui que o autor de Estu-
dos Alemães não podería escrever senão numa folha que lhe
pertencesse, dado o critério pessoal de suas expansões. Em 1877,
ele alarga a atividade jornalística com a fundação de um clube
político em Escada: o Clube de Cultura Popular, também de
curta duração, cujo programa resumiu, no célebre Discurso em
Mangas de Camisa, publicado em 1879, em folheto, quando
Tobias já era deputado provincial.
Em Escada, onde enterrara a mãe, cuja perda tanto o aca-
brunhara, o autor de Dias e Noites diz que viera enterrar tam-
bém seu próprio futuro. Isso escrevia ele em 1879, época em
que já começava a desiludir-se de fazer carreira na política.
Cerca de sete anos no ambiente acanhado da pequena cidade
valeram-lhe, finalmente, a prerrogativa de ser eleito na chapa
do partido à assembléia provincial, em 1878, quando, com a
queda dos conservadores, os liberais começavam a mandar.
Mas da mesma maneira por que fazia campanha na im-
prensa, sem a observância da disciplina partidária, põe-se a
tomar na Câmara uma atitude independente, sem cogitar das
conveniências dos correligionários. Homem de princípios, Tobias

37
deixava-se levar por estes, enquanto os partidos não possuíam
normas de conduta estabelecida, atuando mais por interesses
eventuais. De onde o conflito inevitável. O ardoroso deputado
não tarda a inquietar os companheiros que compreendem a
impossibilidade de contar com ele. Acresce uma circunstância
poderosíssima: a enorme superioridade do escritor ante o nível
dessa câmara provincial. Como haveria um homem da sua cul-
tura, da sua inteligência, em condições de falar na mais douta
assembléia do mundo, sintonizar com aqueles parlamentares
de província apegados às trincas de campanários?
Um dos seus primeiros gestos é pedir a reforma do regi-
mento, a fim de excluir o Artigo 145 que não permitia à assem-
bléia manifestar-se contra a política do presidente da província.
O escritor acha que o presidente Adolfo de Barros não está se
mantendo fiel aos princípios do partido e julga-se no direito de
censurá-lo. Como os correligionários se calam, ele fala, sem
peias e sem rebuços. A impertinência só podia acarretar-lhe a
pecha de traidor. Estava bandeando para o lado dos conserva-
dores — disseram logo. Acentuava-se a incompreensão, o desa-
cordo que iria cortar-lhe os passos na política.
Como uma jovem solicitasse da Assembléia uma subvenção
para realizar o curso de Medicina, o caso entra em debate,
aventando-se a idéia de que a mulher não estava destinada a
esse gênero de estudos, não devendo, portanto, ser acolhido o
pedido. Isso se dava em 1879. A situação da mulher no Brasil
ainda era muito inferior na época. A Literatura, as artes, a
ciência, bem como certos gêneros de trabalho pareciam coisas
incompatíveis com o sexo feminino. O lugar da mulher só podia
ser em casa, cuidando dos filhos. Ainda alguns anos depois,
França Júnior satiriza as mulheres que insistiam em estudar
Medicina na comédia As Doutoras, em que a protagonista sente
o fracasso da vida profissional ante o despontar da maternidade.
Em 1888, Adolfo Caminha, então guarda-marinha, em viagem
de instrução aos Estados Unidos (ver o livro No País dos Ian-

38
ques) admira-se de encontrar moças trabalhando como caixei-
ras, nos magazines, achando que no Brasil isso tão cedo não
seria possível. E até ao fim do século discutia-se a oportunidade
ou a inoportunidade das mulheres na Literatura, incorrendo
freqüentemente na acusação de rebeldia, de condenável inde-
pendência às que teimavam em escrever nos jornais ou publicar
livros. •
Tobias, já por volta de 1872, preocupava-se com as ques-
tões de emancipação feminina, comentando uma conferência
sobre o tema, pronunciada em Viena por Adolfo Jellineck.
Logo que o caso da jovem entrou em debate, ele, ausente há
mais de um mês da Assembléia, compareceu à sessão para
pedir a palavra e declarar-se favorável ao auxílio. Considerando
a emancipação da mulher um dos mais sérios assuntos da época
e não uma coisa extravagante, como poderia parecer à Assem-
bléia, encarou o problema sob três pontos de vista distintos: o
político, o civil, o social. Quanto ao político, confessava não
julgar ainda necessária a emancipação: não via motivos, pelo
menos no estado atual do Brasil, para fazer-se deputadas e pre-
sidentes de província. Quanto ao civil, porém, achava que a
mulher ainda vivia, entre nós, sob o jugo de velhos preconceitos
dos quais precisava ser urgentemente libertada. Vivamente apar-
teado, prosseguiu abordando o lado social da questão — a
emancipação científica e literária da mulher, tão necessária
quanto a civil, para abrir-lhe ao espírito o caminho que se abre
ao espírito do homem.
Repele, depois, num segundo discurso, os argumentos con-
tra a inteligência feminina, sobretudo o princípio pseudocientí-
fico que via na inferioridade do peso do cérebro da mulher,
com relação ao do homem, um motivo para justificar a inferiori-
dade social do sexo frágil.
Os' dois discursos muito aplaudidos deviam ter tido a maior
repercussão no Recife. Sílvio Romero diz que Tobias era muito

39
dado a mulheres, o que nos poderia levar a encarar por esse
lado a veemência com que as defendeu, na Câmara. A verdade
é que ele aí se mostrava perfeitamente consentâneo com suas
tendências reformadoras.
Mas agora vem o ponto fraco: o homem que tanto se bateu
pelos direitos do povo, que profligou a escravidão das mulheres
e chegou a preocupar-se com a falta de proteção aos animais,
nada fez contra a mais efetiva e dura escravidão que infelicitava
o Brasil: a do negro.
Há quem, movido pelo desejo de endeusar Tobias a todo
transe, pretenda identificar nele traços marcantes de abolicio-
nista. Que tenha feito quando estudante uma poesia em favor
dos escravos; que houvesse libertado, após a morte do sogro, os
pretos que lhe couberam na partilha, nada disso basta para
atenuar-lhe não só a indiferença como a antipatia por mais
de uma vez manifestadas em face do problema. Não precisamos
poupá-lo pelo receio de afetar-lhe a grandeza. O homem con-
tinua grande, apesar disso. Não me venham, igualmente, invocar
o exemplo de Machado de Assis, o propalado abstencionismo
do autor de Dom Casmurro, na campanha abolicionista.
Quem escreveu dois contos como Pai contra Mãe e O Caso
da Vara, em que a escravidão aparece sob ó aspecto mais atroz
e desumano, nunca pode ser acoimado de indiferente ao aboli-
cionismo. A atitude de Tobias — explica um dos seus biógra-
fos — vem do seu propósito de não querer malquistar-se com
a aristocracia escravocrata de cujo apoio precisava para entrar
na política. Nabuco, que já pertencia a essa classe, podia pres-
cindir do apoio. Tobias, vindo de uma camada inferior e dese-
jando subir, jamais o dispensaria.
De qualquer forma, o espírito reformador do deputado li-
beral de Escada fraqueja pela base. Todo o vocabulário revolu-
cionário do Discurso em Mangas de Camisa, no qual a palavra
povo aparece tantas vezes, perde o vigor e mesmo o sentido

40
no momento em que o orador se abstém de tocar no ponto
crucial: a escravidão. E parece até pueril falar, com tanta insis-
tência, em povo, numa época em que o panorama social brasi-
leiro resumia-se no seguinte: senhores e escravos.1
Dessa posição falsa de Tobias viriam em grande parte as
contradições que lhe marcaram a existência e a falta de unidade
do seu pensamento político. Realista na análise de certos pro-
blemas brasileiros, mostra-se fora da realidade em outros; inde-
pendente por um lado, não rejeita compromissos por outro; libe-
ral, progressista e até revolucionário, sob determinado prisma,
revela, ao mesmo tempo, tendências conservadoras e aristocrá-
ticas. O drama do intelectual, em última análise. Por isso mesmo,
a vida de Tobias só adquirirá coerência quando o deputado
provincial, não conseguindo eleger-se na legislatura seguinte, vai
tornar-se lente da Faculdade de Direito da capital pernambu-
cana, criando ali um poderoso centro de influências. Suas con-
tradições políticas se harmonizarão na poderosa ação catalítica
exercida pela Escola de Recife no pensamento brasileiro.1

1 O desprezo de Tobias pela questão servil m anifesta-se de maneira


bem expressiva no epigrama que numa roda de amigos im provisou contra
N abuco e aqui reproduzim os:

“ Ó tu que vieste de Londres


Com teu verbo eloqüente
A este povo b e o d o
Ensinar que negro é gente

Falando de m ão na ilharga
Q ual figura de entremez
Como quem dança Cachucha
O u quem bate o solo inglês

O que dizes não tem senso


O que escreves não tem suco
És um côm ico m edíocre
N ão seja besta, N ab u co” .

41
O Itinerário Político do Visconde de Taunay

Quando o jovem Alfredo d’Escragnole Taunay, em 1865,


parda como ajudante da comissão de engenheiros, anexa ao
corpo expedicionário que devia libertar Mato Grosso — inva-
dido pelos paraguaios — , traçava, de certo, o seu destino de
escritor e de político.
Naquela região distante do Brasil, entrando em contato
com a dura realidade da guerra e o esplendor bárbaro do ser-
tão, colheria os temas de duas obras, cuja consagração contri-
buiría, enormemente, para franquear-lhe o caminho da política:
A Retirada da Lagana e Inocência. Depois de haver participado
de todas as peripécias do trágico recuo das forças libertadoras,
deixava ele o acampamento de Canuto, às margens do Aqui-
dauana, em junho de 1867, encarregado de vir dar conta ao
governo imperial do fracasso da expedição. Se nesse momento
já estava naturalmente indicado para ser o historiador de tão
tristes episódios, nessa viagem através do sertão bruto, vare-
jando três províncias — Mato Grosso, Minas e São Paulo —
encontrou inspiração para escrever um dos romances mais ca-
racterísticos do nosso sentimentalismo bucólico. As origens d’A
Retirada da Laguna e de Inocência estão assim ligadas na vida
do escritor. O frescor agreste de Inocência, o idealismo que a
ilumina, é, pode-se dizer, o reverso das visões atrozes à’A Reti-
rada da Laguna. Tendo conhecido o sertão nos seus aspectos
mais trágicos e brutais, sob a metralha, o pânico, a peste,
Taunay, de regresso ao Rio, conhece-o na paz bucólica das
solidões românticas. De onde a antítese dos dois livros (embora
Inocência tenha também um desfecho trágico), que se colocam
num plano nunca mais atingido pelo escritor.
Ouro sobre Azul, o título de um dos romances de Taunay,
poderia servir-lhe de epígrafe à existência bonançosa, bafejada
pelas graças da fortuna, não fora a experiência da guerra. Na

42
verdade, nenhum homem parecería menos talhado para passar
por semelhante transe. Ao incorporar-se na coluna expedicioná-
ria, Taunay era um jovem belo, senhor de uns cabelos anelados
que muito o envaideciam, com uma delicada sensibilidade, culti-
vando o desenho e a música, inclinado aos êxitos mundanos
nos salões fidalgos do Segundo Reinado. Se tivesse ficado no
Rio, como tantos moços aristocratas nas suas condições, ou não
acompanhasse, mais tarde, o Conde d’Eu ao Paraguai — para
colher uma nova experiência da luta —, sua obra se faria,
possivelmente, em outra direção, não saindo do clima de ame-
nidade de Ouro sobre Azul que, coerente com as disposições
naturais do escritor, implicaria, de certo, a estabilidade de um
nível secundário.
Parafraseando o decantado aforismo de Gide, “com os
bons sentimentos é que se faz a má literatura”, podemos dizer:
“As vidas muito bonançosas não favorecem a boa literatura”.
Um Taunay sem a guerra não seria o autor d’A Retirada da
Laguna e de Inocência e sem tais livros, sem a fama por eles
conquistada, bem podia não ter encontrado facilidades para
uma brilhante carreira política.
Muita razão tinha o velho Barão d’Escragnole de estimular
o filho: — “Perdes, Alfredo, maravilhoso ensejo para que te
cubras de glória”, quando o via presa daquilo que o próprio
escritor chama a “preguiça brasileira”, negligenciando a reali-
zação da obra em que daria testemunho da impressionante
passagem da nossa história.
Na quinta parte de suas Memórias, recentemente publica-
das, no primeiro capítulo, intitulado “Ao Entrar para o Parla-
mento”, o autor de Inocência diz: “Deixei narrado com toda
minudência e sinceridade o modo por que fui apresentado can-
didato a um dos lugares da representação nacional pela provín-
cia de Goiás”. Afonso de Taunay, em nota ao pé da página,
observa: “ Ignoro onde e quando fez o autor tal narrativa. Em
seu arquivo não se encontrava uma única linha a tal respeito”.

43
I

Mas se dessa forma ficamos ignorando particularidades da en-


trada de Taunay no Parlamento, o que não resta dúvida é ter
sido o sucesso d’A Retirada da Laguna o principal motivo da
inclusão do escritor no Estado-Maior do Conde d’Eu com a
incumbencia de redigir o Diário do Exército, situação em que
já começava a esboçar-se o seu itinerário político. Taunay, se-
gundo suas próprias palavras, pronunciara-se conservador desde
os primeiros tempos da Escola Militar. E essa inclinação parti-
dária deu motivo a um desentendimento com o Conde d’Eu,
de onde lhe teriam provindo certos vexames sofridos naquele
posto. Taunay havia-se comprometido a enviar correspondências
da guerra para o Jornal do Comércio. O Conde d’Eu propôs que
ele as mandasse, antes, para a Reforma. Taunay recusou-se por
tratar-se de um órgão do partido liberal. Ao que lhe objetou o
príncipe convir-lhe mais esse partido, moço como era, com
idéias sem dúvida adiantadas. Taunay manteve-se firme na
recusa, e quando o Conde d’Eu, lendo a primeira correspon-
dência e achando-a excelente, insistiu no propósito de enviá-la
à Reforma, o escritor teve de resistir com evidente desagrado
do príncipe. Uma nova insistência deste esbarrou em nova re-
cusa. Entretanto, daí a alguns meses chegava ao acampamento
um número da Reforma, em que vinha um violento ataque do
liberal Silveira Martins ao chefe das forças brasileiras, tão sim-
pático aos liberais, o que não anularia, por certo, o ressenti-
mento que o Conde d’Eu guardara de Taunay, e do qual só
viemos a saber últimamente pela publicação das Memórias.
Mas essa estada no Paraguai devia haver contribuído para
aproximar o escritor de um dos mais prestigiosos chefes conser-
vadores de quem teria o apoio para entrar na política: o Vis-
conde do Rio Branco. Nomeando o autor d’A Retirada da Laguna
seu oficial de gabinete no Ministério de 7 de Março, Paranhos
não tardaria em ver nele uma figura destinada ao Parlamento.
É bem conhecida a frase com que surpreendeu e encheu de
júbilo o escritor: — “Sabe? O Imperador muito apreciou as

44
informações que lhe levei ontem e que o senhor redigiu; não
lhe disse de quem eram, mas em compensação capacitei-me
mais uma vez de que precisamos fazê-lo deputado e já”.
Assim foi feito. Taunay, recomendado pelo Visconde do
Rio Branco, ao partido conservador, veio deputado por Goiás
na 14.a legislatura. Representante de uma província longínqua,
das mais atrasadas do Brasil, à qual não Conhecia, embora já
houvesse percorrido as imediações, parece não haver seguido
o exemplo de tantos outros nas mesmas condições, que se desin-
teressavam do eleitorado distante, do qual se tinham feito man-
datários, por conveniência dos chefes. A julgar pelo opúsculo
que publicou, A Província de Goiás na Exposição Nacional de
1875, os problemas goianos não lhe foram estranhos.
Em maio de 1876, Caxias, chefe de gabinete, nomeia-o
presidente de Santa Catarina, província também desconhecida
pelo escritor, mas com a qual logo se familiarizou pela com-
preensão rápida que teve das necessidades locais e o espírito
prático com que a governou.
Reeleito deputado por Goiás, em 1876, bandeia para a opo-
sição, em que permanece até o advento do Ministério Sinimbu,
em 1878. Sentindo a falta de apoio político desiste de disputar
nova eleição, partindo para realizar o sonho de uma longa
peregrinação pela Europa.
De regresso ao Brasil a aplicação, pela primeira vez, da lei
da reforma eleitoral estimula-o a candidatar-se deputado por
Santa Catarina, e depois de uma rude campanha consegue ven-
cer o adversário, por uma diferença de três votos apenas. Em
1885, numa posição melindrosa perante o partido, por haver
divergido do mesmo, dando um voto de apoio ao Ministério
Dantas, pleiteia a reeleição em Santa Catarina, perdendo —
curiosa coincidência — por uma diferença igual à que lhe dera
anteriormente a vitória. Não seria um revés demasiado rude
para uma carreira que, afinal de contas, se vinha fazendo sem
grandes tropeços.

45
Considerado uma figura rebelde dentro do partido, parecia
perder as possibilidades de êxito quando, na chefia do Minis-
tério Conservador de 20 de Agosto, Cotegipe — o próprio Cote-
gipe já atacado por ele — , com surpresa de muitos, nomeia-o
presidente da provincia do Paraná. Em setembro de 1885 o es-
critor assume o governo, desenvolvendo ali uma política admi-
nistrativa progressista, semelhante à que já tinha posto em prá-
tica em Santa Catarina.
Com o falecimento do Barão de Laguna, em 1886, decide-
se a candidatar-se à vaga do velho almirante na senatoria pelo
Paraná. Era buscar um coroamento precoce para essa feliz car-
reira. Como se sabe, os senadores gozavam de uma situação
privilegiada no Império: a vitaliciedade do posto permitia-lhes
uma absoluta independência de movimentos, garantindo-lhes
para sempre uma posição de relevo no quadro da vida nacional.
O monarca costumava considerar os dois melhores lugares exis-
tentes no Brasil o de senador e o de professor do Colégio
Pedro II.
Taunay, se mal havia atingido a idade exigida para o
cargo, aparentava não possuí-la ainda, dada a expressão exces-
sivamente jovem da fisionomia. O Imperador poderia dizer-
lhe, como consta ter dito, há cerca de quinze anos, a José de
Alencar: — “ O senhor está ainda muito moço. . . ”
Ao contrário disso, ao fazer-lhe uma visita de cortesia, em
São Cristóvão, a frase foi outra:
— “Então como vai sua eleição senatorial?” — pergunta
que o Barão do Bom Retiro, procurado por Taunay, na sofre-
guidão de candidato inquieto, interpretou como um índice segu-
ro de que o monarca o escolhería. Assim se deu, realmente. Ao
apresentarem o nome do autor d’A Retirada da Laguna, encabe-
çando a lista séxtupla, o Imperador disse logo, sem relutância:
— “ Escolho o prim eiro.. . ”

46
Em setembro de 89, Taunay vê-se agraciado com o título
de visconde. Que mais lhe falta?
Ser ministro. Sê-lo-á em breve. Muritiba observa-lhe, dias
antes do 15 de novembro:
— “Você, Taunay, da maneira por que vai, dentro em
pouco será presidente do Conselho e marquês”.
A Proclamação da República impediu de realizar-se a
profecia.
Já no Império os partidos políticos não o eram no verda-
deiro sentido da palavra: não obedeciam a um corpo de dou-
trina e princípios definidos. Víamos os conservadores executa-
rem medidas que, pela sua natureza, estavam afeitas aos liberais
e vice-versa, anomalia que culminou na abolição realizada por
um gabinete conservador. A atitude de Taunay ilustra bem
isso. Na Câmara, no Senado, como presidente de província,
foi um antitradicionalista, batendo-se por idéias progressistas e
inovadoras, em completo desacordo com a índole do partido a
que pertencia, desde os tempos da Escola Militar. Tinha razão
o Conde d’Eu, quando pressentindo-lhe as tendências para os
liberais. Mas o fato é que, nenhum dos partidos sendo fiel a si
mesmo, o escritor podería encontrar entre os liberais a mesma
desaprovação que o embaraçara entre os conservadores, com os
quais viveu em constante desacordo.
O autor d’A Retirada da Laguna pugnava por uma larga
política imigratória, ventilando a necessidade de recorrermos
ao colono estrangeiro para o nosso progresso, e como medida
correlata reclamava a lei de grande naturalização, à semelhança
do que haviam decretado os americanos. No governo de Santa
Catarina e do Paraná não hesitou em adotar essa política, pro-
movendo e incentivando a formação de núcleos coloniais estran-
geiros. Batia-se, igualmente, pelo casamento civil, outra reforma
que esbarrou em tenaz oposição e só foi efetivada na República,
ainda pelo governo provisório.

47
“ Eregava idéias, mais que generosas e adiantadas — re-
volucionárias” — diz Afonso Celso (Oito Anos de Parlamento).
Isso sem descurar dos interesses de um dos setores que mais
de perto lhe diziam respeito: o Exército. A causa das Forças
Armadas sempre teve nele o seu advogado natural. Sílvio Ro-
mero e João Ribeiro (Compêndio de História da Literatura
Brasileira) viram nos princípios avançados de Taunay uma
conseqüência da ascendência estrangeira e da educação euro-
péia. Podia ser que assim fosse; tal não impediu o futuro de
haver reconhecido o acerto dos aludidos princípios.
Assíduo na Câmara e no Senado, Taunay falava freqüen-
temente, intervindo em quase todos os debates. “ Orava com
dicacidade, abundância e engenho, mas de ordinário não agra-
dava na tribuna” — diz Afonso Celso (livro citado) — ressal-
vando a impressão de convivência íntima: “Desvaneciam-se as
prevenções contra ele, desde que, tratando-o de perto, se conhe-
cia sua lealdade e lisura”.
Certas atitudes do orador deviam mesmo revestir-se de
afetação, principalmente num ambiente como o nosso. No jor-
nal Novidades, númeró de 16 de agosto de 1888, encontramos
uma referência a este curioso fato: num debate sobre a questão
do casamento civil, Taunay, para justificar-se em determinado
ponto, leu alguns trechos do seu diário íntimo. Foi um explodir
de remoques entre os senadores, que viram logo no gesto uma
pose desfrutável. E o Visconde do Rio Branco, então chefe do
gabinete, não poupou o orador, dizendo-lhe em tom sarcástico:
— “Com que então o senhor se dá ao luxo de ter um diário. .
Inúmeras vezes Taunay provocou reações como essa dos seus
pares, sendo vivamente acossado na tribuna. Homem de espí-
rito, sabia, porém, dar sempre o troco, com finura e malícia.
Essa carreira política precoce, por uma ironia das coisas,
encerrou-se também prematuramente. Depois do 15 de novem-
bro, Taunay abriga-se na Literatura — abrigo extraordinaria-

48
mente generoso para os que dele podem dispor. Mas não perde,
a princípio, a esperança de um golpe restaurador. Defende a
idéia monárquica, ainda, com o risco de uma deportação, jun-
tando-se ao pequeno número daqueles que se mantêm fiéis ao
Imperador e ao regime extinto. Com o tempo, a esperança vai
diminuindo, até que afinal só lhe resta a Literatura. Escreve em
diversos jornais, procura reivindicar a glória de artista do padre
José Maurício, publica novos romances e freqüenta as tertúlias
da Revista Brasileira, onde conversa na maior cordialidade com
os confrades de letras republicanos. Recusa uma cadeira de
senador que lhe manda oferecer Deodoro. Será para sempre
um homem do antigo regime. E, atingido um certo clima de paz
política, chega a esse ponto em que recordar se torna uma ati-
vidade essencial do espírito.

Celso Magalhães e o Naturalismo

Freqüentes referências têm sido feitas pelos nossos críticos


e historiadores literários ao romance incompleto de Celso Ma-
galhães, Um Estudo de Temperamento, como uma das primeiras
manifestações, ou se não a primeira, do Naturalismo no Brasil.
O romance foi publicado na Revista Brasileira, em 1881, num
total de vinte e seis capítulos, constituindo vinte a primeira
parte e seis a segunda, na qual se interrompeu a publicação por-
que a revista deixou de circular. Em 1881, Celso Magalhães já
tinha falecido prematuramente, com trinta anos apenas. Quando
a Revista Brasileira estampou o primeiro capítulo não fez ne-
nhuma declaração, nem disse tratar-se de um romance que o
autor deixara inacabado. Portanto, é de presumir-se que se
continuasse a circulação do periódico iríamos conhecer a obra
completa. Com quem ficaram os originais? Não teria cogitado

49
o seu possuidor de publicá-los em outra parte ou mesmo em
livro? Eis um problema bibliográfico para o meu amigo J.
Galante de Sousa, a quem o remeto, confiante numa solução
satisfatória.
Examinamos aqui os capítulos do romance publicados. Foi
Lúcia Miguel Pereira, creio, quem primeiro impugnou o rótulo
de naturalista que se vem aplicando a essa obra incompleta.
Viu ela, antes, em Um Estudo de Temperamento, uma forte colo-
ração romântica maldisfarçada por alguns toques de veleidades
naturalistas. De pleno acordo. É um pouco arriscado julgar um
romance do qual se conhece apenas uma parte, mas diremos
que a nossa primeira impressão ao lê-lo foi de não estarmos
diante de um legítimo temperamento de romancista. Celso Ma-
galhães nos parece muito intelectualizado, sem aquela capaci-
dade de acreditar nos personagens e impor ao leitor essa crença
— traço primordial da verdadeira ficção. Suas tendências seriam
antes para o ensaio, tendo aliás deixado um trabalho nada des-
prezível sobre A Poesia Popular Brasileira.
Escrever o romance, decerto porque influenciado pelo cien-
tificismo da Escola de Recife e vendo no movimento naturalista
a expressão literária dessa escola, julgou que seria esse o melhor
instrumento para agitar as novas idéias. O Romantismo tivera
no teatro seu gênero mais característico, no qual se exprimiam,
de preferência, os princípios revolucionários do movimento. Já
o Naturalismo concretizou no romance as linhas-mestras de seu
ideal estético.
Mas Celso Magalhães mostra que estava ainda muito li-
gado às sugestões românticas para fazer romance naturalista.
Se quando escreveu Um Estudo de Temperamento pensava como
Zola, decerto continuava a sentir como Alencar, não conseguin-
do libertar-se desse que lhe devia ter sido uma das influências
da primeira mocidade. Porque todos os trechos descritivos, aliás
excelentes, da paisagem do norte, e várias situações do romance
lembram de perto Alencar.

50
A historia começa com a descrição da floresta, através da
qual Álvaro Corrêa viaja a cavalo, juntamente com Antônio
Alves e o filho, Joaquim, em demanda da fazenda do sr. Ribeiro
no sertão maranhense. Este início numa cavalgada já é uma tó-
pica da novelística romântica, freqüente em Walter Scott, onde
foram buscá-la Macedo e Alencar. Macedo n’O Forasteiro;
Alencar, n’O Guarani e n ’O Sertanejo. Os personagens aparecem
caminhando para um determinado lugar, onde acontece alguma
coisa, ponto de partida da ação romanesca.
No decurso da cavalgada, que constitui os cinco primeiros
capítulos, já encontramos outros traços românticos. Notemos
este trecho:
“Era Álvaro Corrêa, o moço que acabamos de apresentar
ao leitor, filho de uma grande fortuna que lhe legara o pai. A
sua história era uma cadeia de gozos e alegrias, uma rede entre-
tecida de mirtos e jasmim”. Alencar a Macedo não escreveríam
em outra forma. E não só nesse trecho; inúmeras vezes o autor
intervém na narrativa, usando e abusando de um processo tipi-
camente romântico. A página 100:
“Explicada a estada de Álvaro no lugar, onde o encontra-
mos no começo deste romance, faremos ao leitor o bosquejo
moral daquele cavalheiro”. A página 114: “ Iremos, pois, escutar
o que ali se diz e ver o que fazem os personagens, que o leitor
já conhece, e que agora conversam”. A insistência nesse pro-
cesso enfraquece a força de convicção da “realidade” ficcional:
é tudo quanto pode haver de contrário à técnica do Naturalis-
mo. E nem se compreende como Celso Magalhães, que devia
ser um leitor de Zola, lançasse mão, com tanta freqüência, de
semelhante artifício.
Procuremos resumir em poucas linhas o enredo até onde
ele é conhecido. Álvaro, moço rico, tendo viajado longamente
à Europa, de regresso ao penate maranhense aceita o convite
do amigo Antônio Alves para assistir a uma festa na fazenda do
sr. Ribeiro. Ali encontra grande movimento, a casa cheia, pondo-

51
se o autor a descrever o ambiente e os tipos. Cecília, filha do
sr. Ribeiro, vai à fazenda vizinha buscar a amiga íntima, Maria,
que se havia esquivado de comparecer à festa. Embora residindo
na roça, Maria havia estudado na capital e possuía certas tintu-
ras intelectuais para entreter-se com Álvaro em palestras que
se transformam em namoro. Mas o que em Álvaro é um senti-
mento discreto, em Maria se concretiza subitamente em violenta
paixão. A notícia de um levante de negros ameaçando aquelas
paragens faz com que todos se transfiram para a vizinha cidade
de Viana, onde aliás nasceu Celso Magalhães. Em Viana con-
tinuam Álvaro e Maria o idilio, de maneira velada, enquanto
o primeiro, juntamente com Estácio, cujas pretensões de cultura
científica assumem no romance aspectos meio caricatos, se põe
a observar as reações psicológicas da pequena. Evidentemente,
o “estudo de temperamento” a que se refere o título tem por
objeto essa personagem feminina. Mas, como o romance ficou
incompleto nesse ponto, não podemos fazer idéia do drama que
desencadearia semelhante “temperamento”. O que vemos é
Maria surgir desde logo, aos nossos olhos, como um modelo
de pureza e bondade, o protótipo da heroína romântica. “Maria
é o botão que se faz rosa. No desabrochar misterioso e poético
das flores há alguma coisa que recorda a metamorfose da me-
nina em mulher”. O capítulo prossegue por várias páginas nesse
teor, dando-nos uma visão essencialmente edulcorante da heroí-
na, para terminar assim: “A puberdade traz isso consigo —
a metamorfose, isto é, o esplendor. Haja visto Diva: Maria
tinha quinze anos”. A palavra Diva figura no texto grifada.
Deve referir-se, indiscutivelmente, à heroína de Alencar, o que
nos parece bastante eloqüente.
Por outro lado, julgamos descobrir na história reminiscên-
cias do Romance de um Moço Pobre, de Feuillet, com a dife-
rença de que no caso Maria é que é pobre, sendo Álvaro rico.
Mas o orgulho e altivez que a impedem de manifestar sua paixão
ao “moço rico” lembram a atitude de Maxime diante de Mar-

52
gueritte, no romance de Feuillet. Também o tema dos amores
embaraçados por diferenças de fortuna é urna constante da
ficção romântica.
No decorrer da narrativa prevalece, aliás, o vocabulário
romântico, com algumas intromissões do jargão naturalista, num
tom de evidente premeditação. Sente-se que o autor quis fazer
naturalismo sem ter-se apropriado da técnica da escola.
Há no romance um personagem, Estácio, representativo
das tendências cientificistas de Celso Magalhães, embora este
diga tratar-se de um tipo que conheceu de perto. Uma das
maiores preocupações de Estácio é o estudo fisionômico e fre-
nológico. “Sabia onde estava a bossa da amatividade e da recep-
tividade”, quais as descobertas por Gall e quais as descober-
tas por Spurzheim. Uma das obras que mais o impressionaram
fora uma Arte de Vestir, em francês, que tinha esta epígrafe:
La Science est le seul feu qui consomme l’ignorance. E não será
sintomático o fato de esse homem apaixonado pela ciência usar
cabelos para trás como o “Sr. de Lamartine”, segundo nos
informa o autor?
Mas esse fragmento de romance, descosido, pobre de téc-
nica, se não nos convence como “estudo de temperamento”,
interessa como quadro de costumes. No capítulo “Explicações
Indispensáveis” (aliás, péssimo título) o folclorista que havia
em Celso Magalhães sente-se perfeitamente à vontade para dar-
nos a descrição animada, viva e sugestiva de uma dessas “fun-
ções” do interior das províncias do Norte. Não será até desca-
bida a hipótese de que foi aí que Aluísio Azevedo, conhecen-
do provavelmente o texto do romance — tal a amizade que o
ligava ao autor —, se inspirou para descrever no capítulo VIII
de O Mulato a festa de São João em casa de Maria Bárbara,
fazendo-o, porém, com mais espírito de romancista. Tudo que
é paisagem e quadro de costumes em Um Estudo de Tempera-
mento supera o que pretende ser fixação de caracteres e análise
psicológica ou fisiológica.

53
Eis o juízo que emitimos com alguma reserva por tratar-se
de um romance incompleto. Mas não acreditamos na possibili-
dade de os capítulos restantes virem a modificar essas impressões.
A verdade é que pela única mostra que possuímos da ficção
de Celso Magalhães, ele não pode ser tido como o iniciador do
Naturalismo no Brasil, segundo pretendeu Graça Aranha, e nem
mesmo, a rigor, incluído no rol dos naturalistas.

Artur de Oliveira — Homem Curioso

Há cem anos, no dia 11 de agosto de 1851, nascia Artur


de Oliveira. Eis um nome que não será familiar à maioria dos
leitores. Quando, na fundação da Academia Brasileira de Letras,
se tratava de escolher os patronos das respectivas cadeiras, Fi-
linto de Almeida optou pelo nome de Artur de Oliveira, do
qual ninguém se lembrara, pois que não deixara obra alguma.
Dizem que Machado de Assis se levantou muito comovido e
abraçou Filinto pela escolha. Machado fora um grande amigo
de Artur de Oliveira e regozijava-se ¡mensamente em ver-lhe o
nome incluído na lista dos patronos.
Afrânio Peixoto oferece-nos uma versão um pouco dife-
rente do caso. Teria sido o próprio autor do Dom Casmurro a
insinuar a Filinto de Almeida o nome de Artur — figura intei-
ramente obscura —, enquanto ele, Machado, preferia ficar sob
a égide de José de Alencar. Não sabemos até onde está com a
razão a malícia de Afrânio. O fato é que sempre causou estra-
nheza a muita gente essa cadeira da Academia, patrocinada por
um escritor do qual ninguém conhecia a obra.
— Quem foi Artur de Oliveira? Que fez ele?
A tal pergunta respondiam alguns:

54
— Não deixou nenhum livro; foi um dispersivo, mas reu-
nindo-se o que escreveu em jornais e revistas ver-se-á a estatura
do homem.
Certas vezes reclamavam mesmo, com veemência, essa
compilação da obra esparsa de Artur. Chegou a haver uma
discussão azeda entre Osório Duque Estrada e Francisco Prisco
por ter este perguntado uma vez o que fizera a Academia dos
versos de Artur de Oliveira. Artur nunca escrevera versos —
respondeu Osório. Ao que retrucou, iracundo, Francisco Prisco,
argumentando com uma citação de Alfredo Pujol e de uma
poesia de Machado de Assis, em que este, traçando o perfil de
Artur, o classificava de “poeta enorme”. Na verdade, ninguém
conhece os versos de Artur de Oliveira e, chamando-lhe poeta,
Machado não quis dizer, naturalmente, que o amigo os escre-
vesse: referia-se ao feitio do homem, à natureza excepcional
desse espírito fora da bitola comum, vivendo sempre no mundo
do sonho e da fantasia.
Afinal, em 1935, apareceu um ensaio biográfico de Luís
Felipe Vieira Souto sobre o desconhecido patrono da cadeira
de Filin to de Almeida e viu-se logo que se tratava de uma vida
curiosissima, das mais curiosas da nossa literatura, capaz de
oferecer palpitante modelo a qualquer romancista. No ano se-
guinte, a publicação dos Dispersos tão reclamados de Artur de
Oliveira — ainda aos cuidados de Luís Felipe Vieira Souto —
veio revelar que o escritor estava longe de ser o que muitos
afirmavam — tratando-se mesmo, no caso, de um destino lite-
rário fracassado — ; o homem era, na verdade, original e digno
de todo o interesse. Pois nesses Dispersos figurava, igualmente,
a correspondência de Artur de Oliveira, de grande valor docu-
mentário e humano pelo qual lhe reconstruímos, em traços ge-
rais, a existência bem característica de uma época de boêmia,
ainda sob o influxo do Romantismo.
O caráter meio anárquico que a Literatura possuía até certa
época, entre nós, favorecia esses casos de dispersividade esteri-

55
lizante e inibição criadora, de que são exemplos um Artur de
Oliveira e um Paula Ney. Espíritos românticos, sem a dose de
senso prático necessária para obterem certa acomodação no
ambiente, como se dava com outros escritores igualmente desa-
justados, acabavam por viver num mundo de sonhos, no qual
“se realizavam” quiméricamente. As mesas de café, os salões,
os vestíbulos dos teatros, todos os recintos em que se cultivava
outrora a palestra, como um verdadeiro gênero literário, con-
sagrando os autores de um mot d’esprit ou de um paradoxo,
criavam situações propícias a tais “realizações”, com as quais
se contentavam num meio onde a Literatura tinha qualquer coisa
de marginal.
Muito jovem, quando começava a aproximar-se dos poetas
e escritores da Corte, Artur de Oliveira foi internado pelo pai
no Colégio do Caraça, em Minas. O pai não queria vê-lo trans-
formado num literato, o que na época queria dizer um boêmio,
sem eira nem beira. As cartas de 1868 a 1869, período em que
Artur esteve no Caraça, constituem interessantíssimo testemu-
nho sobre a vida daquele colégio outrora tão famoso.
Dentro de um ano, devido a um incidente de disciplina
— pois Artur era essencialmente impulsivo e temperamental
— , o jovem deixa o Caraça e vai para o Recife, sob o pretexto
de que só ali poderá fazer os estudos que deseja. Reprovado,
segue para a Alemanha, a mando do pai, a fim de matricular-se
na universidade que cursara Goethe. Artur chega a Paris. Chega,
porém, a Paris nos primeiros dias da guerra franco-prussiana
e, impossibilitado de continuar a viagem, permanece na capital,
onde pelo seu temperamento expansivo consegue relacionar-se
com vários escritores. É ele, assim, um dos primeiros exemplos
de intelectual brasileiro fazendo amizade no meio literário. Cer-
tamente, como uma curiosidade exótica vinda dos trópicos.
Conta-se que indo à casa de Victor Hugo, e impedido de entrar
pelo criado, fez tamanha algazarra que o autor d’Os Miseráveis

56
saiu à janela procurando saber do que se tratava e acabou rece-
bendo-o. O père de la foudre tê-lo-ia chamado Victor Hugo.
Théophile Gautier dar-lhe-ia a antonomásia de mon bon sau-
vage. Mas não se sabe, ao certo, até que ponto tais escritores
permitiram intimidades com o jovem e turbulento intelectual
brasileiro. O único depoimento que temos nesse sentido são as
cartas de Artur e este era um exagerado, deixando-se levar
muito pela imaginação.
Terminada a guerra, Artur parte para Berlim, em cujo
ambiente não consegue adaptar-se, escapando de ser fuzilado
por haver dito “Viva a Franca”, no momento em que desfila-
vam tropas prussianas vitoriosas. Expulso da Alemanha, sem
maiores conseqüências, graças à intervenção diplomática, retor-
na a Paris, onde passa a enfrentar uma vida de dificuldades,
porque o pai lhe restringe a mesada e termina cortando-a. Artur
escreve-lhe, mostrando-lhe a possibilidade de ganhar a vida em
Paris, “traduzindo obras de sucesso para o Brasil e obras brasi-
leiras para o francês”. É evidentemente um sonho ou então
uma manobra para convencer o pai a mantê-lo ali. Quem iria
montar em Paris o tremendo dramalhão de Pinheiro Guimarães
História de uma Moça Rica, que Artur queria traduzir?
Os dias correm-lhe amargos, a miséria aumenta e assisti-
mos ao quadro perfeitamente romântico: o jovem intelectual
brasileiro recusando-se a aceitar a generosidade de Villiers de
Tlsle Adam, que com ele se propõe a repartir o quarto e a
comida.
Voltando ao Rio, Artur torna-se personagem indispensável
à rua do Ouvidor e, sem ter escrito mais do que alguns folhetins
de jornais, falece em 1886 da indefectível tuberculose dos boê-
mios. Não deixou obra, foi verdadeiramente agráfico, mas na
sua correspondência encontramos os delineamentos de um per-
fil humano muito vivo, por onde se justificam a admiração e a
amizade de Machado de Assis.

57
Quando se Começou a Traduzir no Brasil

Temos lido, várias vezes, em revistas e jornais literários


portugueses, reclamações contra o dispositivo legal que impede
a importação no Brasil de livros traduzidos em Portugal. Os
lusos alegam razões de reciprocidade, uma vez que os livros
traduzidos no Brasil continuam a ser vendidos em Portugal.
Mas acontece que hoje nós traduzimos muito mais que eles, e
iria sem dúvida prejudicar os interesses do público português
uma lei que ali proibisse a entrada de traduções brasileiras. No
entanto, antigamente, dava-se justamente o contrário: eram qua-
se somente os portugueses que abasteciam o nosso mercado de
traduções.
Convém fazer um retrospecto histórico, a propósito. Quan-
do teriam começado os editores brasileiros a publicar traduções?
Eis uma pesquisa que, a rigor, ainda não consegui efetuar. É
fácil, porém, concluir que coube à Livraria Garnier a prece-
dência do empreendimento nos meados do século passado. O
gênero de livros estrangeiros que em primeiro lugar interessou
os nossos editores, em matéria literária, foi o romance, e, prin-
cipalmente, o romance-folhetim. Não havia, então, jornal que
não publicasse um romance em rodapé. Era leitura imprescin-
dível para o público. Nessa época, em que ainda não se explo-
rava o sensacionalismo da reportagem policial, o romance-folhe-
tim oferecia ao leitor a emoção quotidiana que ele hoje procura
nos crimes e assassinatos. Motivo também porque se tornavam
indispensáveis ao folhetim tais ingredientes. A necessidade de
proporcionar ao público esse gênero de emoção levava os dire-
tores de jornais a fazerem traduzir romances estrangeiros, que
depois eram, por vezes, editados em volumes.
Mas já, então, Portugal começara a enviar ao Brasil, em
grande escala, traduções de romances dessa e de outras natu-
rezas. O livreiro Garnier tentou lutar com a concorrência lusa,

58
encarregando, entre outros, Salvador de Mendonça (uma espé-
cie de tradutor oficial da casa) de verter os romances-folhetins
mais em voga na época. E, em 1868, Salvador iniciou essa ati-
vidade, desenvolvida de uma maneira intensa até 1875, mais
ou menos. É curioso ver a relação dos livros traduzidos no de-
correr de sete anos por esse infatigável trabalhador. Com ex-
ceção de duas ou três obras, o resto não passa de romances-
folhetins, publicados quase todos em primeira mão nos jornais.
Podemos excetuar apenas o Noventa e Três, de Victor Hugo,
algumas novelas de Théophile Gautier, obras de Musset; o resto
é Paul Féval, Octave Feuilliet, Jules Verne, Sandeau etc. Caúsa-
nos certa estranheza que não se cogitasse de Balzac, autor de
muitas obras capazes também de interessar o grande público.
Quanto a Madame Bovary, de Flaubert, cujo rumor produzido
na França, principalmente devido ao processo que acarretou,
devia ter tido alguma repercussão no Brasil, é curioso que não
se cogitasse de traduzi-la aqui. Também o trabalho de tradução
parecia não merecer grande importância dos que o realizavam,
tanto assim que muitas vezes nem o assinavam.
A iniciativa do livreiro Garnier devia ter sido, porém, um
verdadeiro tour de force na época. E, do pouco êxito alcançado
pelo editor, vamos colher um testemunho expressivo na Corres-
pondência de Machado de Assis. Encontramos aí duas cartas a
Lúcio de Mendonça, bem dignas de comentários. Na primeira,
de 16 de abril de 1873, Machado lhe dá conta do trabalho que
desenvolvera junto ao Garnier no sentido de conseguir para ele,
Lúcio, um lugar de tradutor. “ Conversei com' o Garnier —
escreve o romancista — e miudamente lhe expus a sua pro-
posta com as vantajosas condições que me indicou; sua resposta
foi que neste momento acha-se ele com cinco tradutores que
trabalham assiduamente e são mais que suficientes para forne-
cer o mercado do Rio de Janeiro. Mostrou sentir não poder
aceitar sua proposta, alegando que não podia despedir nenhum
dos outros, um dos quais parece que é o Salvador, se me não

59
engana a memória. Diante dessa resposta compreende que eu
nada podia fazer, salvo alegar da alta importância que tinha
para o meu amigo este negócio, o que fiz logo de princípio”.
Como se vê a iniciativa do Garnier animou Lúcio de Men-
donça a exercitar-se também na atividade profissional de tra-
dutor. E pelo que declarou o livreiro não seria apenas Salvador,
irmão do próprio Lúcio, a trabalhar. Mais quatro se aplicavam
na mesma tarefa. O mister de traduzir começava a se apresentar
aos intelectuais, não diremos como um meio de vida, mas um
recurso econômico semelhante a qualquer outro.
A segunda carta é de 4 de março de 1886, onze anos após
a primeira. Agora, Lúcio de Mendonça, já formado em Direito,
queria não empregar-se como tradutor, mas “colocar” apenas
uma tradução de Sapho de Daudet, por ele feita. Teria resul-
tado o trabalho de uma predileção especial do escritor brasileiro
por esse romance, há pouco publicado na França. Já não se tra-
tava de um roman-feuilleton; era uma obra de qualidade literá-
ria, cuja leitura naturalmente entusiasmara Lúcio, despertando-
lhe o desejo de vertê-la para o nosso idioma e divulgá-la assim
no Brasil. Eis a resposta de Machado de Assis: “Não lhe res-
pondi logo nos primeiros dias porque era preciso tratar de um
ponto de sua carta, e mais tarde, quando já estava tratado o
ponto, meteram-se adiamentos. Peço-lhe que me desculpe. O
ponto é Sapho. Falei ao Araújo, que me disse não convir o
romance para a Gazeta de Notícias por ter o Daudet carregado
a mão em alguns lugares. O Faro e o Garnier não podem tomar
a edição; disse-me este último que cessara inteiramente com as
edições que dava de obras traduzidas, por ter visto que não
eram esgotadas ou por concorrência das de Lisboa, ou porque,
em geral, o público prefira 1er as obras em francês. Não falei
a mais ninguém, porque estes são os editores habituais. Os
outros terão as mesmas razões”.
Em 1886, o Garnier já limitara, pois, o negócio em que
empenhara dez anos antes cinco tradutores, devido, em parte,

60
à concorrência lusa. Acontecia, além disso, que Lúcio de Men-
donça propunha um romance de “classe”, sem requisitos de
atração para o grande público, e no qual havia também certos
condimentos lascivos, capazes de tornar-lhe imprópria a publi-
cação num jornal. A desculpa de Ferreira de Araújo era perfei-
tamente justa, mas não deixa de causar-nos certa surpresa o
fato da Gazeta de Notícias nessa mesma época haver publicado
O Ateneu, de Raul Pompéia, em folhetins diários. Não incor-
reríam as cenas de homossexualismo — descritas aliás, com
muita finura pelo autor — e algumas passagens freudianas do
romance na mesma inconveniência daquelas em que Daudet,
na pitoresca expressão de Machado, havia “carregado a mão”?
Pelos anúncios dos jornais no século passado, verificamos
como era grande o número de obras traduzidas em Portugal e
postas à venda no Brasil. E precisamente a Sapho, de Daudet,
circulava até há poucos anos entre nós na tradução de Belde-
monio, lançada por uma editora portuguesa. O mesmo se deu
com os principais romances de Balzac e quase toda a obra de
Zola. Beldemonio que se empenhou no mister ingrato de tradu-
zir, foi um verdadeiro mestre no gênero, em detrimento até da
sua própria produção original, que se tornou limitada e quase
desconhecida. De maneira geral, os portugueses, pode-se dizer,
só perderam esse comércio río Brasil depois de 1930, quando
começou a verificar-se aqui uma verdadeira avalanche de
traduções.

M araba, o Romance de Salvador de Mendonça

O romance Maraba, de Salvador de Mendonça, hoje intei-


ramente esquecido, estampado em folhetins no jornal O Globo
de Quintino Bocaiúva, apareceu em 1875 em livro, impresso na
tipografia do mesmo jornal, como era freqüente na época.

61
Numa nota “Ao leitor”, Salvador se escusava de ter publi-
cado a obra muito jovem: pelo menos na forma, ela aparecia
“sem a imprescindível colaboração do tempo”. Mas assim o
fazia no sentido de concorrer para o desenvolvimento da lite-
ratura nacional, sendo provável que, em meio da geral indife-
rença por tais empresas, se tivesse de esperar mão mais detida,
o presente romance talvez nunca viesse a lume. “Nas páginas
que se vão 1er — acrescentava — não espere o leitor encontrar,
como de viva voz já se disse ao autor, a sustentação de uma
tese: que para a decisão de certos casos de ordem moral são
insuficientes todas as leis que se preestabeleçam, sendo que para
cada temperamento ou para cada indivíduo se houvera de fazer
legislação peculiar. Este livro não pretende provar coisa algu-
ma; nem sequer que os homens são os mesmos em todos os
tempos com as mesmas paixões. Não tem em mira propagar,
reformar, emendar, nem ao menos discutir. Aspira, quando
muito, a que o leiam com deleite e nobre emoção. Tudo mais
é estranho ao fim da Arte, embora por amor dela se venha a
cogitar nas mais úteis e ponderosas questões com que, aliás, a
Arte nada tem”.
Apreciando Maraba no ensaio bibliográfico Salvador de
Mendonça, Múcio Leão o considerou “um romance de tonalidade
puramente romântica, como não poderia deixar de ser, talvez,
no tempo em que o romancista escrevia”. Mas o interessante no
livro é justamente nele já se manifestarem traços realistas, po-
dendo ser tido assim como uma obra de transição do Roman-
tismo para o Realismo. Nisto reside sobretudo o seu valor his-
tórico. Salvador de Mendonça teria sofrido duas influências:
uma de Alencar, outra de Dumas Filho, ou melhor, do pan-
fleto L’Homme-Femme, que Dumas publicara em 1872, no qual
discutira a legitimidade de o marido assassinar a mulher em
flagrante de adultério. A repercussão desse panfleto no Brasil
foi grande, tendo até suscitado uma resposta de Joaquim Nabuco.

62
E o mais curioso é que, alguns anos depois, Lúcio de Men-
donça, irmão mais moço de Salvador, retomaria o mesmo tema
no romance O Marido da Adúltera, em que se acentua a tran-
sição não somente para o Realismo como para o Naturalismo
de Zola, segundo procurei demonstrar num dos capítulos do
meu livro Horas de Leitura. Ao que não aludi nessa ocasião,
porque não havia ainda lido Maraba, foi ao fato de a tese de
Dumas Filho já haver inspirado anteriormente Salvador. No
entanto, no prefácio, como já vimos, Salvador se escusa de sus-
tentar uma tese, ou de pretender provar o que quer que seja,
desejando com isso certamente preservar o sentido estritamente
literário da obra. Era uma justificação do romântico, do discí-
pulo de Alencar, para contrabalançar a influência realista, enca-
rada com muita reserva entre nós na época. Desde 1859 que
encontramos em jornais e revistas, do Rio e das províncias, cati-
linárias contra o Realismo, malsinado como uma escola de tor-
pezas e imundícies.
Mas mesmo se eximindo de dar a Maraba o caráter de um
romance de tese, é indiscutível que o seu enredo se resume
exatamente no pensamento formulado pelo autor no prefácio:
que para “a decisão de certos casos de ordem moral são insufi-
cientes todas as leis preestabelecidas, agindo cada indivíduo de
acordo com o seu temperamento”.
Lúcia, filha de fazendeiros, no município de Campinas,
teve um idilio na infância com Agenor, também de família
abastada. Mas o jovem vai para o estrangeiro estudar, e tudo
fica esquecido. Já moça, depois de permanecer algum tempo
num internato feminino na Corte, vem ela a conhecer Amâncio,
também rapaz rico, que dilapidava uma herança de família, e
convida-o a visitá-la na fazenda. Amâncio passa uma pequena
temporada ali e logo despede-se, partindo para a Europa. A ação
do romance começa justamente no momento em que ele, regres-
sando do Velho Mundo, vai procurar Lúcia na roça. Os pais

63
da moça acolhem-no amavelmente, ante a perspectiva de um
casamento, mas verifica-se uma desinteligência entre os dois
namorados, deixando Amâncio para sempre a fazenda.
É quando entra em cena Agenor, também de volta do
estrangeiro. Encontrando Lúcia solteira, reata o namoro da
infância, agora com vistas ao casamento. Mas a velha Maraba,
filha de bugres e serva fiel da mãe de Agenor (já falecida),
adverte-o contra a moça.
Renegada por todos, vivendo no mato uma existência quase
selvagem e não merecendo a atenção de ninguém, essa velha é
que dá a tônica romântica à história. Intitulando o livro com
o seu nome, o autor pretendeu decerto pôr em relevo esse cará-
ter da obra. Maraba chega mesmo a falar no tom imagístico
dos indígenas de Alencar. Não obstante, trata-se de uma perso-
nagem subsidiária; as duas figuras principais são Lúcia e Age-
nor, cujos amores constituem o núcleo do enredo.
Em Lúcia tem-se a impressão de que Salvador de Mendonça
quis retratar um temperamento histérico, não chegando, porém,
a acentuá-lo. Embora falando como uma heroína romântica,
nela já se sente qualquer coisa daquele determinismo fisiológico
do Naturalismo. Quando os dois jovens estão para casar-se é
que se sabe que a moça já se tinha entregue a Amâncio, de
onde os temores com que antevia a próxima união. E numa
festa em casa de um desembargador, no Rio, na presença dos
noivos, trava-se o debate sobre a questão do adultério, a propó-
sito do panfleto de Dumas Filho. O anfitrião acha que o marido
deve matar a esposa, e todos o apoiam. Agenor declara-se intei-
ramente contrário à tese, explicando: — “ O autor de A Dama
das Camélias poderá ter hoje boa razão para modificar as opi-
niões que o levaram a iniciar a propaganda da reabilitação da
mulher, mas a não ser em épocas obscurantistas, e em costumes
bárbaros e anacrônicos, não sei onde terá ido obter fundamento
para a sua nova doutrina”.

64

É
— “Em questões de honra” — objeta o anfitrião, ao que
redargue Agenor:
— “ Os princípios de honra são uma coisa muito digna
de respeito, Sr. Desembargador, mas os princípios de humani-
dade não lhe são somenos. O que é um casamento? Um con-
trato para o qual, como todos os contratos, é indispensável a
anuência das partes: deve dissolver-se pura e simplesmente como
se dissolve outro contrato qualquer. Cessa o acordo, cessa a
sociedade feita entre os cônjuges. . . ”
E Agenor vai a ponto de negar ao homem, em qualquer
circunstância, o direito de matar o semelhante, mesmo na guer-
ra, “resultado de mal-entendido amor próprio ou de outro prin-
cípio de mera convenção, hoje aceito como um princípio natural,
o patriotismo”. Opinião que faz um bacharel presente exclamar
horrorizado: — “Doutrina de comunista!” Mas achando que,
no caso do adultério, o homem não deve matar, Agenor alega
também que não deve perdoar e sim remover de casa a parte
que faltou com o contrato, entregar a mulher aos pais, estigma-
tizando-a com o desprezo. No entanto, ao efetuar-se o casamento,
confessando-lhe Lúcia que, amando-o de um amor imaculado,
já pertencera desgraçadamente a outro homem, o moço, num
gesto de fúria, estrangula-a. Não seguira assim as leis que pre-
estabelecera: o temperamento não se subordinara à voz da
razão.
Com esse desabafo, apesar das escusas que já vimos, Sal-
vador de Mendonça dava a Dumas Filho réplica semelhante à
de Eça de Queirós em As Farpas: não adianta legislar se se
deve ou não matar: na hora crítica cada qual obedece ao im-
pulso do próprio temperamento. Em 1882, em O Marido da
Adúltera, retomando a tese, Lúcio de Mendonça proporia, no
entanto, o suicídio do marido, justificando-o com os argumentos
que tivemos ocasião de discutir em Horas de Leitura. Possui
assim Maraba, uma significação histórica pela qual não deve
ficar esquecido.

65
E o que pensaria Alencar da tese? Na carta que endereçou
a Salvador de Mendonça, reproduzida por este no prefácio, o
autor d’O Guarani limita-se a esta alusão ao problema: “ O
drama fisiológico de seu romance suscitou-me dúvidas, que lhe
exporei quando nos encontrarmos. É possível que se desvane-
çam com a sua crítica, pois ninguém conhece melhor o livro
do que o autor que o escreveu”.

Um Folhetinista Brasileiro em Paris

Em junho de 1878 inaugurava-se a Exposição Internacional


de Paris. Depois do colapso sofrido com a guerra franco-prus-
siana, a perda das províncias de Alsácia e Lorena, a França pre-
tendia mostrar ao mundo que já se achava restabelecida do
golpe. A Exposição ia atrair a Paris soberanos, chefes de Esta-
do, jornalistas, artistas e intelectuais de toda parte do mundo.
E Ferreira de Araújo, que havia fundado há pouco tempo a
Gazeta de Notícias, resolveu enviar também um correspondente
àquele grande encontro internacional. Em quem havia de recair
a escolha? Em França Júnior, cronista ágil, fixador de costumes
em tons humorísticos e cujos “Folhetins”, reunidos em livro,
estavam sendo anunciados na própria Gazeta.
França Júnior partiu do Rio em maio. Seria possivelmente
a primeira vez que um jornal brasileiro mandava um corres-
pondente à Europa. Ao chegar a Paris, depois de duas crônicas,
enviadas uma da Bahia e outra de Lisboa, acentuava ele, logo
de início, a diferença de situação de um folhetinista no Rio e
na capital francesa. No Rio, precisava andar à cata de assunto;
em Paris, tinha assunto demais e a dificuldade era escolher. Por
outro lado, lamentava o atraso com que seus folhetins chegavam
aqui. Sucedendo-se os acontecimentos em Paris em ritmo muito

66
acelerado, quando se publicava no Rio um folhetim sobre deter-
minado fato, esse fato já havia sofrido modificações, se achando
o comentário superado.
Não vamos resumir aqui os folhetins parisienses de França
Júnior, o que demandaria muito espaço; abordaremos apenas
os episódios que envolvem o Brasil e os brasileiros em Paris.
A cidade estava cheia de estrangeiros e era natural que os nossos
patrícios pertencentes à burguesia e à aristocracia rurais, vivendo
do trabalho escravo e favorecidos pela desvalorização do franco,
ali figurassem em grande número. Depois de traçar o perfil do
turista inglês e do espanhol, França Júnior diz que para se ter
notícia dos brasileiros não seria preciso incomodar o nosso
ministro, o Visconde de Itajubá, nem tocar no ferrolho da chan-
celaria. Bastava ir a Passage Jouffroy ou percorrer o bulevar
desde aquele ponto do Café Tortoni. Era como se estivéssemos
na rua do Ouvidor. Reproduz então alguns diálogos de brasi-
leiros, que misturando o português com o francês se referiam,
freqüentemente, às largas despesas que faziam, mostrando um
par de luvas há pouco adquirido no “gantier”, a elegância de um
chapéu, ou manifestando esse chauvinismo tolo, que até hoje
muitos brasileiros posam em Paris.
— “Ontem fomos à ópera ouvir o Fausto.
— E que tal?
— A menina gostou, porém eu e minha mulher achamos
que aquela gente do Fênix representa melhor”.
E logo acrescenta o homem: o intérprete do papel de diabo
estava a mil furos abaixo do Galvão (artista lírico brasileiro
muito em evidência na época).
Outros discutem o luxo dos compatriotas, avaliam as ori-
gens equívocas dos rendimentos que lhes permitem gastar tanto.
— “Não sei como essa gente se arranja. A minha despesa
diária é de vinte francos, raras vezes vou ao teatro, não tenho
despesas extraordinárias, e no entanto o dinheiro não me
chega”.

67
Um episódio provoca a irritação de França Júnior contra
o mercantilismo da imprensa parisiense. Tendo Le Figaro repro-
duzido bela litografia do quadro de Victor Meireles, A Primeira
Missa no Brasil, tecendo muitos elogios ao artista, mas sem
declinar-lhe o nome, o folhetinista, cheio de patriotismo, apressou-
se a ir à redação daquele jornal informá-la sobre a identidade
do autor. No elegante palacete da rua Drouot, onde imperava
Villemessant, recebido por um porteiro cheio de dragonas e
dourados, perguntou-lhe se podia falar com algum dos reda-
tores. O porteiro indicou uma sala ao lado. Apareceu o redator
e houve uma troca de mesuras entre os dois jornalistas. França
Júnior explicou-lhe quem era o autor do quadro e agradeceu
os elogios, procurando fazer uma pequena biografia de Victor
Meireles. O francês escutou sem pertanejar, respondendo-lhe
apenas:
— “Nada temos absolutamente com aquele artigo. Foi
pago pelo indivíduo que está encarregado de vender-nos as cro-
molitografías, e por isso. . . ”
Diz França Júnior ter completado mentalmente a reticên-
cia: “ .. .e por isso o senhor vá embora, não nos venha maçar
a paciência com coisas que não nos interessam; se quiser contar
aos leitores parisienses a biografia do senhor Victor Meireles,
faça o que o outro fez, puxe o cordão da bolsa e a nossa pena
estará às ordens”.
Não soube o folhetinista o que alegar e acrescenta haver
saído do palacete do sr. Villemessant com a cara de estudante
que deixa uma banca examinadora, depois de tremenda bomba.
Lembraremos a curiosa circunstância do fato de ter sido glo-
sado humoristicamente por jornais e revistas do Rio.
Falecendo nessa ocasião em Paris o bispo d. Vital, França
Júnior assistiu-lhe às exéquias, e no folhetim de 18 de junho
protesta contra os termos em que lhe fez o elogio fúnebre o
padre Segur, apresentando o prelado como um mártir, que viera
falecer ali em conseqüência dos maus-tratos recebidos no cár-

68
cere. França Júnior não alude à versão divulgada na França,
segundo a qual o bispo, preso na Ilha das Cobras {l’île au
Serpents), se achava num cubículo entre serpentes; mas as pala-
vras do padre Segur deviam ter resultado, até certo ponto, desse
pitoresco equívoco. Depois de defender o governo imperial,
alegando haver sido o prisioneiro tratado com regalias excep-
cionais, passa o folhetinista a reclamar contra a ignorância que
reinava a respeito do Brasil na Europa. Fora apresentado a um
francês, espécie de João Condé, que se empenhava em cole-
cionar jornais de todos os países. Já possuía várias folhas bra-
sileiras, cuja lista mostrou, faltando-lhe, porém, as seguintes:
El Siglo, La Tribuna, El Telegrafo Marítimo. . . França Júnior
deu uma boa risada. Esses jornais não eram do Brasil e sim do
Rio da Prata. “Então o Rio da Prata não fazia parte do Brasil?”
— exclamou surpreso o homem.
Mas como o espaço se esgotou, deixamos de acompanhar
o folhetinista nas suas andanças pela Paris ofuscante da Expo-
sição Internacional de 1878.

Por que não Houve uma Academia


de Letras no Império

Por uma carta de Franklin Távora a José Veríssimo, datada


de 2 de janeiro de 1884 (reproduzida no suplemento literário
de A Manhã de 16 de julho de 1944), somos informados de que
José de Alencar, Francisco Octaviano e Cândido Mendes, em-
bora com o auxílio de Ramiz Galvão e outras figuras de relevo,
tentaram em vão fundar uma Sociedade de Homens de Letras
na Corte. Realmente, num folhetim publicado no Correio Mer-
cantil, em 1854, embora com certa ponta de humor, Alencar

69
lançava uma idéia, que parece relacionar-se muito de perto com
a dessa Sociedade. Alegava ele a vantagem de criar-se uma
ordem honorífica destinada exclusivamente a premiar o mérito
literário, assim como já existia uma para o mérito militar.
Chamar-se-ia “Ordem da Estrela do Sul” à imitação do “Cru-
zeiro”, ou a “Pléiade Imperial”. Constituída com sabedoria e
prudência, essa ordem viria criar uma emulação salutar, incre-
mentando o nosso progresso literário. “Apreciamos todos os
serviços feitos ao país, qualquer que seja a sua natureza —
escrevia o folhetinista. Estimamos que todos sejam galardoados,
mas desejamos que se dê ao talento, à inteligência, à ciência,
e às artes essa nobreza e essa distinção que lhes cabe por todos
os títulos. E deixai-me dizer uma coisa. Esta idéia me sorri ainda
mais, porque o Grão-Mestre da Ordem merecería sê-lo ainda
quando não tivesse uma Coroa. Quanto aos dignitários que
seriam sete, no caso de adotar-se o título de ‘Pléiade Imperial’,
deviam ser escolhidos de entre o que temos de mais distinto e
de ilustre. Para dar à condecoração maior merecimento e para
tirar-se dela grande utilidade, podia fazer-se com que formasse
uma verdadeira ordem, trabalhando em sessões regulares, como
o Instituto de França e sob a presidência de Sua Majestade como
Grão-Mestre ou do dignitário mais antigo. Quem sabe daqui
alguns anos que importância não teria semelhante instituição?”
Acha, porém, que a idéia embora bela e digna de um mo-
narca erudito, de um povo que tanto se distingue pela aptidão
literária não vingará por não ter sido lembrada por um homem
de cabelos brancos, com boa dose de importância e de morgue.
Apesar de certas nuanças humorísticas, aliás bem de acordo
com a índole dos folhetins, em que era de praxe adotar-se um
tom meio faceto, Alencar parecia dar a entender que qualquer
sociedade literária, na época, no Brasil, só podería subsistir com
o bafejo imperial. Todas as academias, durante os tempos colo-
niais, tinham-se fundado à sombra do poder, dos governadores
e dos vice-reis. Proclamada a Independência, era natural que

70
num ambiente literário incipiente, como o nosso, agremiações
dessa natureza não pudessem dispensar a proteção do trono.
Tal o que se tinha verificado com o Instituto Histórico, colo-
cado, logo após a fundação, sob a égide do Imperador. Sabe-se
do interesse com que Dom Pedro II costumava presidir ali as
sessões e do seu hábito de dar temas para os sócios desenvolve-
rem em monografias, à semelhança das tarefas que os profes-
sores dão aos alunos, circunstância que não deixava de suscitar
o remoque de muita gente. No entanto, devemos considerar o
papel desempenhado pelo Instituto no desenvolvimento de nossas
letras; ali se discutiam, a par dos temas históricos ou científicos,
assuntos literários.
Muita informação preciosa sobre figuras da literatura bra-
sileira nos tempos coloniais e no século passado se encontra nos
substanciosos volumes da revista dessa agremiação.
Uma sociedade puramente literária sob a égide do Impe-
rador tornava-se, porém, mais difícil, pois teria, por natureza,
uma feição mais atuante que o Instituto, devendo reunir os ele-
mentos das gerações novas, em que eram mais freqüentes as
tendências oposicionistas. Deve-se admitir que Alencar, Octa-
viano e Cândido Mendes não conseguissem fundar essa socie-
dade ou porque quisessem dispensar o patrocínio do trono ou
porque não lhes fosse possível conciliar todas as opiniões na
aceitação do patrocínio imperial.
Eis, decerto, o motivo pelo qual não tivemos, durante o
Império, uma Academia Brasileira de Letras. O fracasso da ten-
tativa de uma associação literária, idealizada por Franklin Tá-
vora, em 1883, e que poderia vir a tornar-se o germe dessa
Academia, leva-nos a pensar assim. Távora resolveu promover
uma festa, em que seriam lançadas as bases da sociedade e na
qual se prestaria uma homenagem ao ministro argentino Ernesto
Quesada, intelectual de mérito, e seus filhos. Era um pretexto
excepcional que procurava para a reunião. Mas viu logo a difi-
culdade de lograr êxito sem o auxílio do Imperador. Foi ter

71
assim com este, que aplaudiu o empreendimento — principal-
mente porque se achava empenhado numa política de cordiali-
dade com a Argentina — e indicou o nome dos escritores que
deviam tomar parte na festa e prometeu comparecer à mesma.
Não tardaram a surgir as manifestações de despeito e res-
sentimento. Távora excluiu naturalmente alguns elementos que
não lhe agradavam e estes começaram a combater-lhe a idéia.
O Barão de Paranapiacaba ficou muito descontente por ter sido
dada a presidência a Pereira da Silva, enquanto os diplomatas
uruguaios e chilenos se mostravam melindrados com a honra
tributada à Argentina. Assim mesmo, a festa se realizou com
certo brilho e foi muito longa, como costumavam ser todas as
reuniões dessa natureza na época. Presidindo a sessão, Pereira da
Silva propôs que se denominasse a novel sociedade Associação
dos Literatos do Brasil. Num longo discurso, Franklin Távora fa-
lou da necessidade de os escritores brasileiros se arregimentarem
em prol dos seus interesses, e atentando para as damas presentes
fez este apelo, que nos parece interessante transcrever na íntegra:
“Pois bem, respeitabilíssimas senhoras, fiquem certas de que, de
ora avante, a Associação do Literatos estará diante de vós para
pedir-vos ajuda pecuniária; não para dizer-vos que não deveis
empregar vosso dinheiro em sedas e brilhantes, objetos de luxo,
paixões dos países civilizados, mas para dizer-vos que, entre as
crescidas somas dos adornos com que realizais vossos feiticeiros
encantos e naturais louçanias, dediqueis algumas dezenas de mil
réis à aquisição de livros escritos por vossos compatriotas”.
As intrigas se enredaram, porém, de tal forma que impe-
diram a Associação de constituir-se realmente, apesar dos esfor-
ços de Távora. Como depreendemos da carta já citada deste
último a José Veríssimo, o autor de Cenas da Vida Amazônica
aplaudiu a idéia, num artigo do Diário do Grão-Pará, em Belém,
onde residia. Nessa mesma carta Távora se queixa da guerra
que fez ao empreendimento a Gazeta de Notícias aliada à Livra-
ria Faro & Lino, onde se reuniam Aluísio Azevedo, Joaquim

72
Serra, Araripe Júnior, Artur Azevedo e Taunay para fomentar
as intrigas e as hostilidades. Enfim, coisas da vida literária, que
apresentou sempre aspectos semelhantes no século passado como
neste século, no Brasil como na França.

Quando Apareceu O P r im o B a s ilio

Quem folheia os nossos jornais do século passado é levado


a supor que O Primo Basilio, de Eça de Queirós, quando apa-
receu em 1878 teve muito maior repercussão no Brasil do que
em Portugal. Foi realmente notável e mesmo impressionante o
debate de opiniões aqui travado a propósito desse romance.
Desde 1852, quando se começou a falar de Realismo na França,
o termo passou a ter aqui também alguma extração. E encon-
tramos, por vezes, nos jornais, manifestações de aplauso ou de
repulsa à nova escola. José de Alencar, pretendendo fazer Rea-
lismo em Âs Asas de um Anjo vê o drama proibido pela polícia,
apesar da licença do conservatório. Machado de Assis é acusado
de incidir nas imoralidades da escola realista, ao publicar a
novela Confissões de uma Viúva Moça, no Jornal das Famílias.
Mas é com O Primo Basilio que os ânimos se agitam, deter-
minando uma tomada de posição do público com relação ao Rea-
lismo. Curioso: Machado de Assis é um dos primeiros a mani-
festar-se numa severa crítica ao romance de Eça, na qual decla-
rava repudiar a escola, tal como estava sendo compreendida.
As discussões fervem por toda parte. A Gazeta de Notícias, em
doze de abril, através do seu folhetinista, diz terem se dividido
em duas classes os que leram O Primo Basilio; uma a dos que
clamam: isto é um escândalo! Outra a dos que o apontam como
a obra mais profunda, mais digna e meritória da moderna lite-
ratura portuguesa. Para o folhetinista, os livros histéricos de

73
Lamartine, as paixões exaltadas e exageradas dos românticos
são influências perigosas; mas essas influências vão passando
e a Literatura, “mesmo amena e recreativa”, há de tomar um
rumo certo. “Sigamos tranqüilos a evolução — proclama ele —
mas resistamos à revolução”. Ora, o romance de Eça é a revo-
lução; pretende num dia curar um doente de séculos. Para isso
dilacera-lhe as vestes que lhe encobrem as feridas e as pústulas,
e quando todos estão horrorizados de vê-las, quando se mostram
enojados e querem afastar-se, aplica-lhe um cautério violento
e o pobre cai morto, no meio das contorções horríveis de dor,
de gritos dilacerantes, cortados aqui e ali pela gargalhada idiota
dos que não compreendem aquele mártir. Que a sociedade pre-
cisa modificar-se, ela própria o sabe — continua o folhetinista
—, mas o que ela não deseja nem quer é que se ensine a todos
o que só alguns dos seus miseráveis membros sabem, membros
que não se regeneram nem melhoraram e serão com certeza os
mais assíduos leitores das páginas em que aparece o “ Paraíso”
(refere-se ao local onde Basilio se encontrava com Luisa).
Apesar dessa catilinária o folhetinista não deixa de reencon-
trar nas torturas de Luisa a “moralidade da fábula” : um remédio
salutar para todos os que estão a pique de perder-se. Daí a dois
dias no mesmo jornal, outro folhetinista, este se assinando Tra-
galdabas, observa maliciosamente: coincide o aparecimento de
O Primo Basilio com a notícia divulgada pelo Observatório de
Paris, da passagem de Mercúrio entre a Terra e o Sol. Pensem
nisso “os que se dedicam ao estudo da simbólica”. “Até o pre-
sente apenas a luta tinha influência nas cabeças humanas. Insti-
tuam-se, em vez de conservatórios, observatórios literários”.
No dia 23 de abril ainda a Gazeta de Notícias publica na
secção Variedades duas cartas. Numa o signatário, Artur, diri-
ge-se a um amigo, começando nestes termos: “Sou o mais feliz
dos mortais”. E isto porque encontrou a mulher que o ama, de
um amor que deve terminar no casamento. Na outra, o signa-
tário, Basilio, responde: “Tu és tolo. Em todo casamento eu

74
vejo um homem que faz uma asneira e uma mulher que faz
um negócio”. Aconselha o amigo a tomar banhos de cachoeira,
tomar leite, oyos e carne, passear e, quando começar a ter saúde,
estudar. “ Estuda Química, estuda principalmente Biologia. Vê
que curiosa é esta máquina humana, suscetível, ao mesmo tempo,
do flato e da poesia lírica, da política e do embaraço gástrico”.
Termina recomendando-lhe o ácido prússico: “É mais rápido e
não dói”.
Esse debate entre o Romantismo e o Realismo é levado,
em termos de paródia, para o terreno político, no folhetim de
28 de abril. Exemplo da escola realista: o ministro Silveira
Martins dizendo ao Imperador: “A ordem pública está abalada.
Dinheiro e já”. E o Imperador: “Senhor Martins, dinheiro não
tenho, mas aqui está minha assinatura e saque”. Exemplo da
escola romântica: “Às facilidades que a abundância não justifica,
mas pode atenuar, opõe o governo a mais severa economia, pro-
move a cobrança da dívida ativa — sem excessos —, acaba com
todas as gratificações ilegais, dispensa o pessoal inútil etc.” .
A diatribe visava à duplicidade de atitudes do ministro Sil-
veira Martins, mostrando-o como capaz de estabelecer um per-
feito acordo entre o Romantismo e o Realismo. “Está provado
que nos tempos que correm, com a ordem pública abalada, se
pode ser Lamartine e O Primo Basilio” — conclui o folhetinista.
O romance chegou a criar aqui uma verdadeira mania, uma
doença: o basilismo. “Foi acabar a febre amarela — comenta a
Gazeta de Notícias com uma ponta de humor negro — e surgir
o basilismo”. É bom O Primo Basilio? É mau? É sério? É de-
cente? É imoral? Eis as perguntas que se formulavam por toda
parte. A questão fervia.
Esses exemplos bastam para mostrar-nos o interesse des-
pertado pelo livro no Brasil. Seu aparecimento marcou realmente
um instante de efervescência da nossa vida literária no século
passado.

75
Um Jornal Literário-Humorístico em 1881

É espantoso como em 1881 os estudantes da Academia de


Direito de São Paulo pudessem manter ali, durante algum tempo,
um jornal humorístico-literário diário. Pois foi o que se verificou,
embora o jornal não conseguisse durar muito tempo.
Intitulava-se A Comédia e durou de 2 março a 22 de maio
de 1881. Fundaram-no os estudantes Valentim Magalhães e Silva
Jardim, que tiveram como colaboradores os seguintes colegas:
Raul Pompéia, Raul Corrêa, Eduardo Prado, Afonso Celso, Assis
Brasil, Fontoura Xavier e muitos outros. Do Rio concorriam
também para o êxito da folha: Machado de Assis, Filinto de
Almeida e enviando colaborações naturalmente gratuitas. O ar-
tigo de apresentação dizia:
“Todos nós temos lido os bons romances burgueses, em que
o enredo é a vida, a alma da história. Não gostamos então que
venha o vizinho impertinente, alardeando erudição de Ponson
e de Dumas, dizer-nos se o Cavaleiro Armando deu ou não a
estocada prometida no dozel Y ou se raptou Dona Leonora San-
chez. Assim acontece com A Comédia”. Está aberta a cena: as
luzes esclarecem o salão, e quer talvez o leitor apreciá-la, apal-
pá-la, estudá-la e — pretensão de autor! — admirá-la. Contar-lhe
a história futura, o programa, o itinerário, o enredo e vulgarizá-la,
achatá-la, diminuí-la! Nunca!
“Não temos programa, temos atores, o público e nós. O
mundo de todos é o nosso mundo. Como toda comédia acaba
em casamento, esperamos que pela lei dos absurdos inevitáveis,
nesta não se dê o contrário; antes comecemos, nós e o público,
amando-nos, gostando-nos a 40 réis por entrevista, e enlacémo-
nos numa união produtiva, financeira, monetária. Subiu o pano;
venha da platéia o aplauso ou a pareada; nunca o público o
faça, porém, à moda dos chins, isto é, nos volte as costas” .

76
Seguia-se uma outra apresentação feita em versos, da qual
nos limitamos a dar a última estrofe:
“Tem sorrisos, tem pilhérias, muito sérias
Apenas não bastantes Assinantes”.
Para dar uma idéia da feição do jornal, basta reproduzir-
mos esta notícia típica: a do casamento de Capistrano de Abreu.
Encontramo-la no número de 8 de abril de 1881:
“Acabamos de receber a participação do casamento do nosso
amigo Capistrano de Abreu, com a Exma. Sra. Dona Maria José
de Castro Fonseca. Foi a 30 de março. Os noivos partiram logo
para a Tijuca, a narrar aos passarinhos, às flores, ao céu azul,
às auras frescas, seu poema de venturas. O noivo, todos o sabem,
é redator da seção Livros e Letras na Gazeta de Notícias. Os
esponsais haviam-no tornado arredio àquele posto; é provável,
porém, que agora, a felicidade impila de novo o crítico com mais
ardor e menos severidade. Cumprimentos sinceros aos recém-
casados”.
Por mais que fizessem, não puderam os moços manter o
jornal por muito tempo. E ao publicarem o último número, fize-
ram-no tarjado de negro, com emblema fúnebre, e lágrimas de
tinta preta separando os artigos.
“Nós hoje falecemos — dizia o artigo de fundo — Ao dar-
mos esta notícia aos nossos leitores, pedimos-lhes desculpas por
essa falta involuntária. Não dizemos que o país se cobre de luto,
nem tão pouco que nas fileiras da imprensa abre-se um claro
que dificilmente será preenchido. Nada disto. Morremos sem
mais cerimônia. Já na outra vida, traçamos este artigo de fundo,
que é mesmo do fundo da sepultura. Faltaríamos, porém, à mais
comezinha delicadeza para com a memória dos ilustres finados,
se não lhe traçássemos um sentido necrológico”.
Em outro artigo dedicado ao “Respeitável Público”, A Co-
média vinha declarar que, estando à beira do túmulo e não pre-

77
cisando mais de leitores, ia dizer-lhe francamente, como um
irreprimível desabafo, o quanto o achava ridículo e digno de
pena.
O trespasse do jornal era também proclamado pelo estu-
dante Raimundo Correia em versos, dos quais reproduzimos este
quarteto final:

“Morre, soltando uma risada imensa


Entre a vida e o morrer jornal jocundo
De menos um jornal que importa à Imprensa?
Que haya un cadaver más que importa al mundo”.

Houve um Teatro Naturalista no Brasil?

A existência de um romance naturalista devia determinar


logicamente a de um teatro naturalista. Já antes de Zola, os
Goncourts tinham procurado conquistar o público para esse
novo gênero com a peça Henriette Maréchal, representada em
1865 e cujo fracasso foi atribuído a motivos alheios à arte.
O êxito retumbante de L ’Assommoir concorreu para que Zola,
que já havia transplantado para a cena o seu romance Thérèse
Raquin, se decidisse a fazer o mesmo com aquela obra, confian-
do-a a dois colaboradores que realizaram a adaptação cênica
sob o controle do autor. Isto se deu em 1879. Em 1881 o público
parisiense assiste a uma adaptação cênica de Nana, e em seguida,
com intervalo de dois anos, vão sendo transformados em peças
teatrais vários romances de Zola, como Pot-Bouille, Le Ventre
de Paris etc. O mesmo acontece com certas obras naturalistas
dos Goncourts, de Paul Margueritte e outros discípulos da nova
escola. Havia geralmente em tais peças uma nota de escândalo

78
que provocava protestos, suscitava discussões, concorrendo para
despertar o interesse do público. Entretanto, essas adaptações
teatrais nem sempre podiam manter fidelidade ao enredo e a
alguns detalhes essenciais dos romances. Se por um lado era
necessário atenuar determinadas situações, que no palco cho-
cariam rudemente o público, por outro se tinha de recorrer a
artifícios que haviam escapado às cogitações dos romancistas,
emprestando-se às peças um caráter de dramalhão. O verdadeiro
espírito dos romances se esvanecia com freqüência nos arranjos
cênicos.
No Brasil, como se sabe, a estética naturalista chegou tarde.
Veio mais por intermédio de Eça de Queirós — que estava longe
de ser discípulo ortodoxo da escola — do que de Zola. O Primo
Basilio caiu aqui como uma bomba — para usar de uma expres-
são de um crítico da época. O romance causou um sucesso extra-
ordinário, lido, relido e discutidíssimo por todos os cantos. Os
cronistas contemporâneos chegaram a falar numa verdadeira
doença: — o basilismo. De onde a idéia de adaptar-se o romance
ao palco. Foi Cardoso de Meneses, o futuro Barão de Parana-
piacaba, quem extraiu uma peça de O Primo Basilio. Não conse-
guimos encontrar o original da mesma, mas Machado de Assis
dela se ocupa numa de suas crônicas, formulando um juízo um
tanto severo. Para o autor de Várias Histórias, a peça não obti-
vera êxito porque é difícil transformar em obra teatral aquilo
que foi pensado em termos de romance.
Essa primeira tentativa de teatro naturalista, verificada em
1875, ficou sem continuidade até 1881. Nessa data, quando
Aluísio Azevedo publicou no Maranhão O Mulato, nosso tea-
tro como a nossa novelística ainda se achavam em plena voga dos
moldes românticos. Basta lembrar a resistência encontrada por
José de Alencar em 1858 ao pretender, numa peça aliás roma-
nesca, fazer realismo social à maneira de Dumas Filho. Em
1890, comentando o aparecimento de O Cortiço, Aluísio Aze-

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vedo escrevia: “No que respeita ao romance, estamos ainda no
período de Eugène Sue”.
O Mulato, sob a influência de Eça, não era propriamente
um romance naturalista; entremeando o seu realismo havia
mesmo muitas situações românticas. Mas abordava uma tese
social das mais melindrosas e atuais na época. O êxito extraordi-
nário alcançado pela primeira edição do livro em São Luís fez
com que Aluísio, três anos depois, quando já assimilara melhor
os princípios naturalistas, cuidasse de adaptá-lo à cena. A peça
foi representada em 19 de outubro de 1884 em festival artístico
da famosa artista Helena Cavalier. O público acolheu-a com
entusiasmo, aplaudindo freneticamente o autor e os artistas,
cobrindo-os de flores no final do terceiro ato — diz um jornal
da época. Embora elogiando o desempenho de Helena Cavalier,
lamenta o crítico que não houvesse ela lido o romance para
melhor compreender o papel de Ana Rosa. O que não seria
muito de estranhar, pois a primeira edição de O Mulato esgo-
tou-se no Maranhão, sendo o livro ainda pouco conhecido no
Rio em 1890, quando saiu a segunda edição. Mas na realidade
a peça devia ser inferior ao livro. Aluísio não pôde fugir às tira-
das grandiloquentes de dramalhão, tão a gosto do público. No
terceiro ato, quando o Cônego Dias apresenta a Raimundo a
imagem de Cristo o mestiço responde: — “Cristo sofreu muito,
mas não era filho de uma escrava!. . . ” E no final, ao ver morrer
Raimundo, Benedito tira da faca e exclama: — “Aqui ainda há
gente de tua raça”.
Tratando do drama em duas crônicas o crítico do Diário
Fluminense não faz nenhuma alusão à escola naturalista, de que
consideramos, hoje, O Mulato a primeira manifestação no Brasil.
Fato que bem mostra a pouca ressonância que a ortodoxia de
Zola teria tido até então em nosso País.
Em 1890 temos notícia de uma tentativa mais definida de
teatro naturalista no Brasil. O jornalista e escritor Fabregas extrai
de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, uma peça

80
representada com o mesmo título a 24 de abril. Mas o fracasso
artístico da obra parece ter sido completo. Artur Azevedo, na sua
coluna “Flocos”, no Correio do Povo fustigava cruelmente o
autor. “ O Sr. Fabregas” — dizia ele — “reduzira o romance de
Eça a um ridículo dramalhão, tão ridículo que fazia rir, trans-
formando-se numa farsalhada. A intenção do romancista saíra
inteiramente desfigurada, era um verdadeiro sacrilégio literário
menos descupável que o do próprio Padre Amaro. Basta dizer
que na peça o padre acaba assassinado por Carlos Eduardo”,.
E continuava: “As inverossimilhanças e os erros abundam. Há
muitas cenas longas e fatigantes. Quando Eça se cala e começa
a falar o Sr. Fabregas nota-se uma diferença enorme na lingua-
gem. Só há de bom o que o autor não pôde corromper. Além
disso” —prosseguia o crítico — “o drama é obsceno, franca-
mente obsceno. Há ali coisas que nem no celebérrimo Teatro
Livre de Paris se aceitariam”. Artur Azevedo referia-se ao Théâ-
tre Libre, onde Antoine estava montando peças naturalistas, reali-
zando uma verdadeira revolução na mise-en-scène. O crítico
limita-se à alusão, sem discutir a propalada imoralidade do Na-
turalismo. Aliás, também ele não emprega o termo a propósito
da peça. Olavo Bilac secundou o ataque de Artur Azevedo,
procurando desagravar a dignidade artística de Eça, seriamente
atingida. Mas apesar das críticas arrasadoras o público continuou
a encher o teatro, como na noite da estréia, e a aplaudir viva-
mente Furtado Coelho e seus artistas.
Fabregas revidou a verrina do autor de O Dote, conside-
rando-a um simples despique pessoal. Artur Azevedo respondeu
que se o seu pai assinasse tal obra não o levaria a mudar de
opinião. Semelhante debate devia aumentar o interesse do drama,
que esgotava lotações, fá outro teatro anunciava uma comédia
em um ato, paródia da peça: A Prisão do Padre Amaro. Na noite
da trigésima representação (o que constituía um sucesso formi-
dável em 1890) a empresa entregou ao procurador de Eça e ao
Sr. Fabregas um prometido prêmio. Eça de Queirós não leu,

81
naturalmente, os originais desse trabalho. Mas se não leu, pelo
menos consentiu na adaptação teatral. Na sua correspondência
familiar, publicada pelo filho, encontramos uma alusão à peça.
Diz ele que O Crime do Padre Amaro estava fazendo barulho
nos palcos do Brasil.
Quanto ao êxito do drama, parece fora de dúvida que o
escândalo foi o seu principal motivo, não havendo influído no
caso os possíveis méritos literários reclamados pelo autor e ne-
gados peremptoriamente por Artur Azevedo, Olavo Bilac e a
quase unanimidade da crítica.
A 10 de julho do mesmo ano, uma companhia francesa
representava no Rio L ’Assommoir, de Zola. Logo depois subia
à cena no Teatro Lucinda uma nova peça de Aluísio Azeve-
do, de colaboração com Emílio Rouède: Um Caso de Adultério.
Aluísio estava então na sua fase mais nitidamente natura-
lista, a fase de O Cortiço, publicado em maio do mesmo ano;
mas a peça em questão parece ter sido escrita antes sob a in-
fluência de Dumas Filho que de Zola. Novamente não encon-
tramos na crítica nenhuma alusão à escola naturalista. Segundo
o cronista de um jornal da época, Um Caso de Adultério seria,
de todas as produções do teatro brasileiro, a que com maior
razão podería ser qualificada de “peça realista”. E Viveiros de
Castro, no livro Idéias e Fantasias, fazendo um retrospecto do
ano teatral de 1890, referindo-se a esse drama, diz simplesmente
que ele não estava à altura de Aluísio Azevedo. Na verdade
Aluísio parece ter feito teatro com o mesmo espírito com que
escreveu as novelas folhetinescas, hoje postas à margem da sua
verdadeira obra de romancista. O fato é que ainda dessa vez
não vemos a afirmação artística de um teatro propriamente natu-
ralista no Brasil.
Limitamos as nossas pesquisas a esses três casos.
São muito escassas as fontes de informação sobre o assunto.
O único recurso é a busca minuciosa e paciente nos jornais das
últimas décadas do século passado. Mas com essa ausência de

82
dados, o trabalho do pesquisador torna-se sumamente difícil. O
certo é que embora o movimento não se tivesse concretizado em
grandes realizações artísticas, talvez exija uma referência deta-
lhada ou mesmo um pequeno capítulo da história da nossa lite-
ratura contemporânea.

Um Animador: Valentim Magalhães

Quem folheia coleções de jornais do Rio e de São Paulo,


das duas últimas décadas do século passado, encontra, a todo
momento, o nome de Valentim Magalhães, não somente assinan-
do contos, poesias, artigos dos mais diversos feitios, como envol-
vido em toda sorte de iniciativas de cunho literário. Agripino
Grieco (ver Evolução da Prosa Brasileira) diz ter o autor de
Flor de Sangue exercido aqui a “ditadura da mediocridade” e
não perde a ocasião de fazer uma diatribe a propósito desse
romance, cujo fracasso se tornou célebre, embora eu nunca
tivesse encontrado alguém que chegasse a constatar isso pelo
conhecimento direto da obra.
Todos falam mais ou menos pelas informações do famoso
artigo de José Veríssimo, “ Literatura Apressada”. Na Biblioteca
Nacional não há nenhum exemplar de Flor de Sangue, e Lúcia
Miguel Pereira, nas minuciosas buscas que realizou para escrever
Prosa de Ficção 1870-1920, não conseguiu descobrir o romance.
Mas é certo que, dispersando-se numa incessante e múltipla
atividade literária, Valentim Magalhães não logrou jamais ultra-
passar um plano secundário, em que deve ser colocada toda a
sua obra, embora nela se possam assinalar alguns artigos de
crítica bem apreciáveis, como os que compõem o livro Escritores
e Escritos. No entanto, essa atividade deve ser apreciada por
outra perspectiva: pela animação e o estímulo que trouxe ao

83
nosso meio literário nas últimas décadas do século. Bem mais
significativo para nossas letras do que o Valentim Magalhães
escritor, é o Valentim Magalhães fundador de revistas, suscitador
de debates e polêmicas, promotor de agrupamentos de escritores,
incentivando a vida literária e chegando a levar o eco das nossas
letras ao estrangeiro.
Em 1885 fundava ele, no Rio, o hebdomadário cultural
A Semana, acolhendo os nomes já consagrados, como o de Ma-
chado de Assis, ao mesmo tempo que franqueava as colunas aos
novos. A revista adquiriu um grande prestígio, dando origem até
ao aparecimento de publicações similares em outros estados. E
como era natural, formou logo um grupo, uma “capelinha”,
excitando rivalidades e reações. Por não ter sido bem recebido
por esse grupo, ao iniciar a vida na Corte, Sílvio Romero se
desforrou, atacando ferozmente Machado de Assis, uma das prin-
cipais figuras da “panelinha”, no panfleto O Naturalismo em
Literatura.
E para fazer concorrência a A Semana, rompendo com os
companheiros de geração, que ali se agrupavam, Luís Murat
fundou a Vida Moderna. Travou-se a luta. As duas revistas
começavam uma a atacar a outra, e dentro de algum tempo, por
falta de recursos, a publicação de Luís Murat acabou fechando
as portas.
Não tardaria A Semana em despedir-se também do público,
em abril de 1888. Valentim Magalhães confessou, mais tarde,
haver enterrado nela nada menos de cinco contos de réis (grande
dinheiro para a época) saídos do seu pobre bolsinho, ficando
ainda com a responsabilidade de todo o passivo da revista: mais
de quatro contos.
Cinco anos depois, associando-se a Max Fleiuss, Valentim
reabriria A Semana, que nessa segunda fase duraria de 1893 a
96, nela começando a tomar vulto a idéia da fundação da Aca-
demia Brasileira de Letras.

84
Mas, de 1887 a 88, esse grande animador manteve ainda
no Rio uma publicação quinzenal em fascículos, panfletos no
gênero Les Guêpes, de Alphonse Karr, e As Farpas, de Eça e
Ramalho, que já haviam tido aqui uma réplica, em Lucros e
Perdas, de Sílvio Romero e Araripe Júnior. As Farpas de Valen-
tina Magalhães denominavam-se Notas à Margem, e delas con-
segui encontrar alguns exemplares na Biblioteca Nacional. Sem-
pre combativo, Valentim Magalhães não se cansava de clamar
pelas reivindicações dos escritores no Brasil. No fascículo de
janeiro de 1888 reporta-se ao fato de um jornal sob o título
Novo Distrito haver publicado em folhetim O Homem, de Aluí-
sio Azevedo, recentemente aparecido, sem pagar um níquel
de direitos autorais ao romancista. Aluísio ficara furioso, desa-
bafando-se com o folhetinista em protestos pela falta de proteção
para o trabalhador intelectual na época. Logo depois, tocando
na mesma tecla, Valentim alude ao livro Lira de Apolo, em que
se coligaram trabalhos da “malograda” Associação dos Homens
de Letras do Brasil e em cujo prefácio se lia o seguinte: “Não
temos sequer a profissão, quanto mais propriedade literária.
Oferece-se de graça a obra a quem a imprima e nenhum editor
aceita. O escritor brasileiro, se lhe falta tal ou qual posição
política ou administrativa, não vale somente pela sua literária.
Não tem autonomia”.
Comentando essas palavras, Valentim Magalhães escreve:
“Calculo pois o assombro que sentira o indígena ou o estrangeiro
aclimatado entre nós ante Aluísio Azevedo, Guimarães Passos
e Coelho Neto”. Porque tais escritores tinham conseguido o pro-
dígio de viver de literatura naquele tempo.
Em 1888 ainda, de colaboração com Lúcio de Mendonça,
Valentim Magalhães lançava outro panfleto, O Escândalo. No
primeiro número, de 13 de abril, em artigo de apresentação, os
autores explicavam, em primeiro lugar, o título: “Chama-se Es-
cândalo esta revista porque vivemos num tristíssimo tempo, deli-
mitado, contrito, impregnado de convenção e de mentira, tempo

85
em que é escandaloso dizer a verdade. Pois havemos de dizê-la,
nua e crua, em todos os assuntos, custe o que custar, doa o que
doer”.
Vinha, depois, a profissão de fé em matéria de artes e letras.
Eram “naturalistas, realistas, impressionistas, inimigos figadais,
irreconciliáveis, ferozes da convenção, do postiço”. Não sabe-
mos bem a que vem esse “ impressionismo” no caso, uma vez que
não se pode ser realista e impressionista ao mesmo tempo. Mas
um comentário, logo adiante, sobre a publicação de O Ateneu,
de Raul Pompéia, que vinha sendo feita em folhetim, na Gazeta
de Notícias, comentário bastante simpático, nos leva a supor que
o termo impressionismo se refere à arte de Pompéia, cujo caráter
desabusado, de oposição ao preconceito, parecia ser panfletário
de O Escândalo em perfeita harmonia com o Realismo.
Quanto à política, declaram-se os mesmos panfletários repu-
blicanos socialistas, dizendo: “Por isso adotamos para esta re-
vista a magnânima divisa de Rousseau: Vitam impenderá vero,
consumir a vida no culto da verdade”.
Não só as iniciativas literárias, no entanto, seduziam Valen-
tim Magalhães; seu espírito empreendedor se manifestava tam-
bém no terreno econômico. Em 1890, no período do Encilhamen-
to, em que se faziam e se desfaziam fortunas da noite para o dia,
fundou ele, segundo Artur Mota (ver Vultos e Livros), “A Edu-
cadora”, com “o fim humanitário de facilitar o problema da
educação”, e “A Econômica”, companhia de seguros. A primeira,
afirma Artur Mota, foi depois incorporada à “Sul América”.
Mas, deve haver alguma confusão de detalhes nesses infor-
mes. No número de outubro de 1890, do Correio Literário e
Bibliográfico, publicado pela Livraria Laemmert, encontrei a
notícia de que Valentim Magalhães se tornara presidente de uma
companhia de seguros, única no gênero aparecida até o momento,
a Companhia Educadora. A Educadora já figura aqui, pois, como
sendo a própria companhia de seguros e não uma sociedade de
fins humanitários, merecendo mais crédito essa notícia do que a

86
informação de Artur Mota, por se tratar de publicação da época.
Aliás, é curiosa a maneira pela qual o referido periódico enca-
beça a notícia: “Os nossos artistas vendo o atual triunfo das
cifras, que vão pondo embargo às letras e às artes, estão pro-
curando outros países, onde artes e letras não sejam coisas
mortas”.
Assim, pois, aos méritos de Valentim Magalhães, como
animador de nossa vida literária, poderemos juntar-lhe outro
título: o de haver sido o introdutor das companhias de seguros
no Brasil.

A Poesia Revolucionária de Lúcio de Mendonça

O cinqüentenário da morte de Lúcio de Mendonça, que se


comemora no dia 23 do corrente novembro, dá-nos oportunida-
de para relembrar aqui o seu livro Vergastas, uma das expres-
sões mais típicas do surto de poesia social que se verificou na
literatura brasileira nas duas últimas décadas do século passado.
Quando chegou a São Paulo, em agosto de 1868, a chamado
do irmão Salvador, a fim de matricular-se no curso anexo da
Faculdade de Direito, Lúcio de Mendonça ainda ali encontrou
um clima romântico. A 7 de setembro do mesmo ano teria assis-
tido, provavelmente, no Ginásio Literário, ao festival comemo-
rativo da data em que tomaram parte Brasílio Machado, Joaquim
Nabuco e outros, tendo Castro Alves recitado uma poesia sobre
o tráfico escravista, segundo informa um jornal da época, O Aca-
dêmico. Poesia que (afirma-o Pedro Calmon) teria sido “certa-
mente” O Navio Negreiro.
Mas se não compareceu ao festival, ouviu, naturalmente,
comentários a respeito, e não podia tardar em travar conheci-
mento com os poetas num dos freqüentes saraus em que ele cos-

87
tumava recitar. Que impressão teria produzido Castro Alves —
a cabeleira revolta, o gesto largo, a voz sonora — no espírito do
adolescente precoce, já dominado pela Literatura e começando a
encher um caderno de versos? Bem grande, certamente. E nesse
encontro devemos buscar as origens remotas do sentimento lite-
rário de Lúcio de Mendonça e das poesias incendiárias de Ver-
gastas. Numa delas, “A Bandeira Apedrejada”, lá estão como
epígrafe quatro versos de O Navio Negreiro, que o adoles-
cente teria provavelmente escutado no referido festival. Castro
Alves será o poeta de Lúcio de Mendonça. Vinte anos depois,
n’A Semana (primeira fase) defenderá ele a superioridade dos
cantos d’Os Escravos sobre Gonçalves Dias, contra a opinião de
Olavo Bilac. E Castro Alves o levará fatalmente a Victor Hugo,
outra das grandes vozes inspiradoras das Vergastas.
A Guerra do Paraguai chegava ao fim e os anos 70 mar-
cariam um anseio de renovação em todo o país. Surge o mani-
festo republicano, agitam-se idéias político-sociais, Victor Cousin
vai sendo aos poucos substituído por Augusto Comte e os imi-
tadores de Byron e Musset começarão a tornar-se démodés.
Em 1871, quando Lúcio ia iniciar o curso, um decreto infe-
liz do governo, modificando o sistema de exames na Faculdade
de Direito do país, faz eclodir em São Paulo e Recife uma tre-
menda baderna, a famosa “revolução acadêmica”. Tendo tomado
parte do movimento, o rapaz é punido, vendo-se na contingên-
cia de esperar mais três anos para matricular-se de novo. Retorna,
então, à Corte, onde publica o primeiro livro de versos, Névoas
Matutinas, em 1872. É ainda um adolescente, e Machado de
Assis, ao prefaciar-lhe a obra, estranha: “Mas que névoas? Não
as tem na sua idade, que é antes de céu limpo e a z u l...”,
achando que o leitor deverá igualmente surpreender-se ao en-
contrar saudades em lugar de esperanças, e ainda mais desespe-
ranças do que saudades. Maior seria a estranheza de Machado
de Assis se soubesse (e pelo que se conclui do prefácio não
sabia) dos versos petroleiros, como “Ad Majorem Dei Gloriam”,

88
já escritos por esse rapazinho imberbe em 1872, e que figura-
riam, mais tarde, nas Vergastas. Lúcio imprecava, em tom ira-
cundo, contra os Jesuítas, mas sob o signo de Victor Hugo e
não de Guerra Junqueiro, como poderia supor quem deixasse de
verificar a data. Só no ano seguinte, Junqueiro publicaria seu pri-
meiro poema revolucionário, “A Morte de Dom João”. O ataque
aos Jesuítas era, aliás, um tema que vinha do Romantismo liberal
— com Edgard Quinet e Michelet à frente, os mais aguerridos
adversários das sotainas negras na França — tendo até inspirado
a Eugène Sue um romance-folhetim de grande repercussão na
época: Le Juif Errant. Não será despiciendo o fato de nas “No-
tas” das Vergastas encontrarmos duas referências a Michelet.
Em março de 1873, quando Lúcio de Mendonça consegue afinal
matricular-se na Faculdade de Direito de São Paulo, havia de
cair-lhe naturalmente às mãos “A Morte de Dom João”, de Guer-
ra Junqueiro, publicado nesse ano, e que grande escândalo cau-
sou, tanto em Portugal como no Brasil. Já as duas estrofes de
“A Proteção dos Reis”, datadas desse ano, denunciam pela idéia
e pelo vocabulário a inspiração junqueirana. Ei-las:

Ai do poeta que se acolhe a um trono,


E que implora de um rei mão protetora!
Ai dele! nesse pútrido ambiente
Pende-lhe morta a fronte sonhadora.

Assim ao viajor de África adusta


Hospitaleiro abrigo lhe similha
Uma árvore gigante; e ele adormece
Morto à sombra letal da mancenilha!

Antes de Junqueiro, a quem ocorrería empregar a palavra


pútrido num verso, em 1872, quando ainda prevalecia aqui e
em Portugal o vocabulário romântico? A musa escatológica de
Baudelaire não fizera ainda discípulos em língua portuguesa e

89
fora o autor de “A Morte de Dom João” o primeiro a surpreen-
der-nos com o léxico brutal e malcheiroso do seu poema. E quan-
to àquela “letal mancenilha” não pode haver nada de mais
junqueirano.
De agora em diante, pode-se dizer, então, que a poesia
social de Lúcio de Mendonça se fará à sombra de três influên-
cias: Castro Alves, Victor Hugo e Guerra Junqueiro, às quais
juntará uma nota própria, de timbre particular, da mesma ma-
neira que Castro Alves e JuncJueiro somaram novos elementos aos
que receberam de Hugo.
Em Vergastas, as poesias com datas que vão de 1872 a 1882
são, na maioria, de caráter político, pregando um republicanis-
mo feroz, o ódio aos reis e aos tiranos, a todas as forças da
reação. A Polônia tinha sido também um dos temas mais espe-
cificamente românticos. Castro Alves, Machado de Assis, Varela,
todos clamaram pelos direitos da terra escravizada pelo “Urso
Branco”. Mas ninguém o fizera até então no tom junqueirano
de Lúcio de Mendonça, quando foi assassinado o Czar Ale-
xandre II:

Aquele real patife


Era um devorador de carne humana
Aplicaram-lhe em cheio a pena de Talião.
Fizeram dele um bife.

Mais junqueirano ainda vai mostrar-se Lúcio, depois da


publicação d ’A Velhice do Padre Eterno, em livro, quando passa
a satirizar os padres com um sarcasmo que lembra de perto o
do poeta português. O que me intriga, porém, é a poesia “Vozes
do Século” (título hugoano), datada de 1873, em que faz ele
uma invocação à infância e à mãe semelhante à de Guerra Jun-
queiro no exordio d’A Velhice do Padre Eterno. Basta cotejar
alguns versos. Em Lúcio:

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Santo Deus de minha infância
Sagrada religião
Que minha mãe de seus lábios
Verteu-me ao coração.

Em Junqueiro:

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa


Do tempo em que ajoelhava orando ao pé de ti.

Ligeiro encontro de idéias, sem implicar, nem de um lado


nem do outro, qualquer laivo de imitação, sendo curioso de ver,
no caso, como Lúcio precedeu o pensamento do poeta de quem
já experimentava a influência. A segunda parte de Vergastas é
constituída por “Visões do Abismo”, versos que Carlos Süsse-
kind de Mendonça, filho do poeta, presume escritos em 1888.
Aqui já o republicanismo de Lúcio se tinge de um caráter socia-
lista e, quase diremos, anarquista. Pinta a dissolução da família
burguesa, com certos toques até chocantes de humor negro;
clama contra a propriedade que leva a mãe a alugar a fome do
filho, e maldiz na Monarquia a Messalina, a “barregã sombria”
que despoja o povo, o “trabalhador estúpido e enganado” .
Nesse ano de 1888 fundava Lúcio de Mendonça com Va-
lentim Magalhães um panfleto, O Escândalo, para dizer a ver-
dade nua e crua, a verdade que na época se tornava escandalosa.
E declaravam-se em artes e letras: “Naturalistas, realistas, impres-
sionistas, como melhor quiserem, inimigos figadais, irreconciliá-
veis, ferozes da convenção, do postiço” . Em política: “ Republi-
canos socialistas”.
Proclamada a República, Lúcio de Mendonça passaria a
ser um dos esteios da nova ordem, coagindo naturalmente os
ímpetos do socialista. Até onde seria sincero nas suas expansões
poéticas de ferocidade esse homem que se regozijava em ver o

91
Czar reduzido a um bife e sofria com a sorte de um pássaro
ferido? Certamente não podemos tomar ao pé da letra muitos
versos de Vergastas. Mas aí estão os depoimentos dos que o
conheceram de perto: “Amigo capaz de todas as dedicações”
(Antônio Sales), “um meigo, um sentimental” (Afonso Celso),
como adversário, não poupava golpes nem escolhia as armas,
acrescenta ainda o próprio Antônio Sales. A ele se podia aplicar,
talvez, a frase de que a verdadeira bondade é um tanto agressiva.
Da campanha republicana, epi plena praça pública, ao sólio do
Supremo Tribunal, na austeridade da toga, soube manter-se fiel
ao pacto que impôs ao “primeiro filho” na poesia inicial de
Vergastas:

Amou o povo, abominou a tirania, defendeu o fraco,


Lutou contra a maldade, sem trégua nem perdão,
confiando na Justiça, no Amor e na Verdade.

Ramalho Ortigão no Brasil

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão foram, como se sabe,


assíduos colaboradores da Gazeta de Notícias, nela fazendo boa
parte de suas respectivas obras de crônicas.
Aliás, na primeira década deste século, quase nenhum jornal
dispensava a colaboração de escritores portugueses.
Em 1887, Ramalho, já consagrado por As Farpas, mantinha
no referido jornal carioca um folhetim semanal em rodapé, no
qual Comentava não somente assuntos portugueses como euro-
peus em geral.
Nessa ocasião, Ferreira de Araújo, diretor daquela folha
que pelo seu feitio moderno exercera uma ação verdadeiramente
revolucionária na imprensa brasileira, convidou o cronista de

92
John Bull a visitar o Brasil, onde era bastante conhecido e admi-
rado. Ramalho aceita o convite e nos últimos dias de setembro
de 1887 chega ao Rio a bordo do navio francês Senegal.
A recepção do escritor na Corte foi extraordinária. Não se
vira até então, no Brasil, tamanha massa de povo a ovacionar
um homem de letras. Só algumas notáveis, como Sarah Ber-
nhardt e a Candiant, tinham conseguido manifestações seme-
lhantes. Alguns cronistas da época, como Valentim Magalhães,
assinalaram o fato como um sintoma animador num país em
que os intelectuais nunca desfrutaram grande prestígio.
Certamente, a nacionalidade lusa de Ramalho Ortigão teria
concorrido para a entusiástica recepção. O elemento português
possuía, nesse tempo, no Rio, uma influência incomparavel-
mente superior à que hoje ainda possui; mas, apesar de tudo,
não se pode deixar de ver no caso um expressivo movimento de
interesse e curiosidade por um homem que, no fundo, não fazia
outra coisa senão literatura. Além disso, os aparelhamentos de
publicidade eram ainda muito deficientes nesses últimos anos do
Império no Brasil. Não houvera (segundo depreendemos da lei-
tura dos jornais da época) um trabalho de propaganda intenso
em torno da vinda de Ramalho Ortigão. O interesse e a curiosi-
dade teriam assim resultado, quase exclusivamente, da reper-
cussão dos livros e das crônicas do autor de As Farpas no alu-
dido jornal carioca.
Por ocasião do desembarque de Ramalho, Ferreira de
Araújo pusera uma lancha à disposição das pessoas que dese-
jassem ir a bordo ao encontro do escritor. Mas (informa-nos um
noticiarista de então) foi um tumulto enorme que daí se originou
— a lancha se encheu de populares chegando a correr perigo
tão repleta que ficou. Quando as pessoas convidadas pelo jornal
viram a embarcação assim invadida pelo povo, desistiram de
abordá-la e deixaram-se ficar resignadamente no cais, embora
alguns mais impacientes ou mais entusiásticos resolvessem fre-

93
tar, por conta própria, outras lanchas e ir de qualquer forma
receber no navio o escritor. Seja dito de passagem que nesse
tempo os transatlânticos não atracavam no Cais Pharoux.
Deixando entrever certa censura pela falta de melhor orga-
nização na recepção do hóspede ilustre, o noticiarista nos infor-
ma que foi dos que conseguiram, com dificuldade, introduzir-se
na lancha da Gazeta. Ao aproximar-se do paquete, avistou logo
a “figura simpática” de Ramalho Ortigão, trajando um terno de
casimira clara, trazendo, à maneira de John Bull, de que se fizera
ele um apologista, a cabeça coberta por um capacete de linho.
Novo tumulto se deu na hora da baldeação da lancha para
o navio. Ramalho estendia a mão a todos, “falando pelos coto-
velos” . Referindo-se então à entrada da barra — referência de
praxe, a que não podia, aliás, esquivar-se — exclamava: —
“Sublime! Sublime! Não é espetáculo para ser visto de uma
só vez”.
Observa o noticiarista haver a imprensa brilhado na recep-
ção pela ausência. Raros noticiaristas foram a bordo, entre os
quais Filinto de Almeida e Paula Ney. Este último, não se sabe
por que artes, conseguiu penetrar no Senegal mesmo antes do
navio ser visitado pela Polícia Marítima e quando a lancha che-
gou a bordo já estavam Ramalho e Paula Ney conversando cor-
dialmente, como velhos amigos.
O escritor desembarcou somente às sete horas da noite.
O povo cheio de entusiasmo aclamava-o, preparando-se para
levá-lo em charola; ele, porém, se esquivou a tais manifestações
e tomando um carro rumou para a casa do irmão, no Cosme
Velho, onde ficou hospedado.
Quase um mês depois, a 3 de outubro de 1887, Ramalho
era aguardado na Estação do Norte, em São Paulo. O noticiarista
do Diário Mercantil daquela capital diz que entre os presentes
se encontrava o “distinto poeta” Olavo Bilac. O autor de As
Farpas ficou hospedado no Grande Hotel. Logo no dia 5, sob

94
a assinatura de Aristophanes, vinha no referido jornal uma sau-
dação em francês ao escritor nestes termos: “Je me permets
d’adresser à ce Parisien sans boulevard, à cet A. Karr du T age,
les compliments de tous ceux qui connaissent son talent aux mille
facettes, sa verve inépuisable. Que les ‘guêpes’ de Saint Paul
lui soient légères”.
O leitor de hoje estranha naturalmente essa idéia de alguém
saudar num jornal brasileiro um escritor português em francês.
Mas era isso freqüente na época. O autor da saudação seria,
mesmo, talvez, um nosso patrício que, de acordo com o esno-
bismo em voga, recorrera ao francês. Muitos escritores faziam
coisas semelhantes, tal a nossa familiaridade com o francês no
século passado.
Entre as visitas feitas pelo autor de As Farpas em São Paulo,
o noticiarista do Diário Mercantil assinala: a Casa Garraux,
então a maior livraria da Paulicéia, onde se vendiam também
objetos de arte; a Chácara do Carvalho, onde residia dona Veri-
diana Prado, mãe de Eduardo Prado, de quem Ramalho era
íntimo; a Faculdade de Direito; ao filósofo e cientista Pereira
Barreto. Na residência do poeta Ezequiel Freire, manteve ani-
mada palestra com Pinheiro Machado, vindo a conhecer alguns
vocábulos e expressões do vocabulário popular rio-grandense.
Na livraria Teixeira encontrou-se com o poeta Teófilo Dias. E
vindo a conhecer Júlio Ribeiro (este detalhe não corre por conta
do noticialista do Diário Mercantil mas é uma versão muito
divulgada), numa apresentação feita nestes termos: — “Ao
mestre do português em Portugal, o mestre do português no
Brasil”, o autor de A Carne teria respondido nestes termos:
— “Nenhum dos dois é mestre”.
De regresso a Portugal, Ramalho ficou de escrever um livro
sobre o Brasil, o que entretanto nunca chegou a fazer, limitan-
do-se a externar suas impressões em cartas aos amigos e alguns
artigos.

95
A História Literária de Sílvio Romero

Em Sílvio Romero devemos ver a mais alta expressão do


Cientificismo do Século XIX, no Brasil. Possuía ele todos os atri-
butos que caracterizavam esse estado de espírito, tão diretamente
ligado à revolução técnica e ao mundo novo por ela criados,
instinto de luta e de oposição, horror ao fanatismo, a paixão da
verdade com a conseqüente defesa do livre exame e do direito
de pesquisar.
Mas o seu caso se reveste de circunstâncias particulares,
porque é através de um conflito específicamente brasileiro entre
a província e a metrópole que se manifesta. Sílvio Romero en-
carna a sinceridade, a fé ardente, a boa fé, o idealismo e, até
por vezes, o quixotismo do provinciano contra as manhas, as
simulações, os artifícios da metrópole. Nas últimas décadas do
século passado já se começava a notar certa tendência para a
formação de núcleos regionais de cultura nos estados. O caso de
o Rio de Janeiro constituir o centro único de irradiações de valo-
res e consagrações literárias, à semelhança do que acontece com
a maioria das metrópoles — sobretudo na França, o nosso fa-
moso exemplo — , era, até certo ponto, uma anomalia no Brasil,
cuja extensão territorial não comporta essa absorvência da capi-
tal. Até hoje insistimos ainda no erro de admitir, entre nós, o
mesmo conceito de província corrente; os atuais agrupamentos
literários de São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, Pernambuco
e Bahia, com caráter autônomo e exercendo influência, aí estão
a provar o contrário. A tendência a que nos referimos acentua-
va-se, principalmente, no Norte como um prurido de rebeldia
contra a onipotência cultural do Rio de Janeiro. Não se com-
preendia mais que só o Rio falasse, só o Rio desse cartas no
terreno literário, uma vez que a capital nem sempre acolhia as
maiores expressões da cultura brasileira. Com a sua honestidade
intelectual, seu apego ao estudo e o empenho de encarar os

96

i
problemas do espírito pelo ângulo mais sério, Sílvio colocou-se
logo em oposição à capital. Tobias Barreto fizera o mesmo, mas
limitara a ação combativa a um certo círculo de influência no
Nordeste. Sílvio Romero, de ímpeto mais largo, veio para a
metrópole lutar, impor a voz dos legítimos méritos perdidos na
vastidão do Brasil, reabilitar a província.
E sua ardorosa carreira literária, ou antes, sua longa e in-
cessante campanha, desenvolveu-se toda à sombra dessa idéia
tutelar. Idéia que se evidencia, de forma bem nítida, na orienta-
ção da grande História da Literatura Brasileira, hoje reeditada
em cinco volumes com o acréscimo de mais de mil páginas,
introduzidas pelo seu organizador e prefaciador, o professor
Nélson Romero.
O propósito do mestre sergipano fora bem ousado para a
época em que a formulara — 1886 — , estando, porém, de acordo
com as ambições naturais de sua vigorosa personalidade. Não
havia modelos, normas, roteiros para a sistematização histórica
da literatura brasileira. Se se tratasse de um esboço, de uma
visão geral, talvez se encontrassem com facilidade, as diretrizes.
Mas Sílvio não era homem de esboços: tudo no seu tempera-
mento levava-o às grandes iniciativas, às vastas perspectivas.
Essa História da Literatura Brasileira seria um panorama deta-
lhado, tanto quanto possível completo, não apenas das nossas
letras, mas — segundo a concepção da escola alemã, mais tarde
combatida por Veríssimo — de toda a nossa Cultura, incluindo
Filosofia, Economia, Política, Ciências, e até Música e Belas
Artes. Um quadro imenso, onde o autor tinha de agir por si só,
tão escassos e imperfeitos eram os instrumentos de orientação.
Depois, todo esse desenvolvimento cultural devia parecer estru-
turado em bases sociológicas e históricas. Ao contrário da cor-
rente hoje em voga — à frente da qual se encontra o famoso
tratadista holandês Van Thieghen — que manda assinalar na
história da Literatura apenas os resultados, Sílvio Romero pro-
cura, acima de tudo, os motivos, os originais, as filiações do fato

97
literário, apreciando-o no arcabouço geral da civilização brasi-
leira.
A obra foi publicada, primeiramente em capítulos, na Re-
vista Brasileira. A edição de dois volumes, a mais conhecida e
que, como a outra, se achava de há muito esgotada, era de 1902.
Mas Sílvio Romero já tinha reunido material para um terceiro
volume quando veio a falecer: o desenvolvimento da sua obra
estava acompanhando, por assim dizer, a evolução da literatura
nacional. É essa última parte e outros trabalhos de Sílvio que,
inteligentemente distribuídos por Nélson Romero dentro do
plano estabelecido por seu próprio pai, vêm constituir, agora, a
edição definitiva, completa e monumental, em cinco tomos.
Embora adotando o conceito de literatura de escola alemã,
Sílvio Romero deixa transparecer na sua História o predomínio
de duas influências francesas: a de Taine e a de Edmund
Scherer. Taine, com a conhecida teoria do meio, da raça e do
momento histórico havia, naturalmente, de seduzir um evolu-
cionista spenceriano, como o autor d’A Filosofia no Brasil. Sílvio
insiste, com freqüência, nos três fatores, mas não se submete
inteiramente a eles, pois, como declara em certa altura, ao lado
das leis de Taine, considera o valor insubstituível da personali-
dade, elemento preponderante na criação literária. Mas no seu
método entra também a sugestão de Scherer: escrever a história
literária pendendo para as condições gerais, referindo-se aos fa-
tos, às causas, distribuindo, classificando. A predileção por
Edmund Scherer, citado constantemente por Sílvio numa época
em que Sainte-Beuve desfrutava tanto prestígio, poderá parecer
estranha aos leitores de hoje. Scherer, atualmente, dos grandes
críticos franceses, é o menos conhecido no Brasil, estando tam-
bém bastante esquecido na França. A simpatia que Sílvio lhe
votava devia provir, em parte, de ter sido o autor de Études
Critiques um combativo e homem de gauche. Católico, depois
protestante, depois hegeliano, Scherer destacou-se sempre como

98
um defensor da livre pesquisa em matéria religiosa, possuindo
assim certos pontos de contacto com o escritor brasileiro.
Dentro de tais moldes a História foi escrita sob o signo da
luta, das reivindicações que tanto apaixonavam o autor. Com
muita razão protesta Nélson Romero contra a versão dos que
consideravam o velho Sílvio uma espécie de bárbaro, inadaptado
à civilização. O que dá essa impressão ao crítico superficial é a
força do escritor sergipano “muito superior à Medicina do seu
tempo”, segundo, ainda, as expressões de Nélson Romero.
Sílvio era uma grande inteligência animada por um grande
temperamento. Não lhe fossem pedir brilhos fáceis, rutilâncias,
requintes de talento. Toda a cultura européia, assombrosamente
acumulada, não bastou para alienar o que sua personalidade con-
servava de instinto, as heranças bravias do nordestino. Sob esses
aspectos, ele se apresenta com um dos escritores mais brasileiros.
Seria um inadaptado à civilização, se por civilização tomarmos a
teoria de transigências e disfarces, que nos leva a uma ilusória
harmonia; e espécie de bárbaro, se para a barbárie tender a
franqueza, a rompância, a expansão dos ímpetos do coração e
do espírito. Mas é a própria consciência do Brasil que desperta
na obra desse poderoso desbravador (a cultura brasileira estava
cheia de florestas virgens naquela época), desse pioneiro atrevido.
Bem ao contrário das índoles bárbaras, Sílvio não tolerava
o exagero, o excesso. É contra isso que ele a todo momento se
insurge na História da Literatura. Compelido, pela sua formação
materialista e científica, a combater o Romantismo, combateu-o,
precisamente no que parecia ser a deformação da velha escola
— na tendência para o sentimentalismo piegas, lacrimejante,
lamuriento: para a falta de virilidade, que, isto sim, não podería
tolerar um espírito exuberantemente másculo como o seu.
Mas também, todo cientificismo não basta para fazê-lo su-
portar as afetações, o odor de clínica da escola materialista. Nas
páginas da História vê-se como o autor procura sempre o meio-
termo, julgando encontrar a verdade num sistema de vistas opos-

99
it ___
tas. Quando se verificava a superestimação do elemento indígena
em nosso precipitado étnico, ele insiste na importância do negro,
anunciando o que os estudos afro-brasileiros de hoje iam com-
provar. Os exemplos de equilíbrio são frisantes e característicos
nesse impulsivo, constituindo uma das virtudes essenciais da
Historia da Literatura Brasileira — obra gigantesca, grande
movimento de massas que, naquele tempo, só um Silvio Romero
seria capaz de realizar.

A C arne de Júlio Ribeiro

Em 1952 caiu no domínio público um dos romances mais


populares da literatura brasileira: A Carne, de Júlio Ribeiro. E
logo começaram a aparecer novas edições com capas ilustradas
desse livro que foi, durante muito tempo, um dos artigos mais
rendosos da Casa Francisco Alves. Trata-se de uma obra fracas-
sada, cujo sucesso resultou unicamente do seu caráter escanda-
loso, dos ingredientes eróticos, apresentados ao público como a
última novidade do Naturalismo no Brasil, no ano remoto de
1888, quando Zola já estava em vias de encerrar o ciclo dos
Rougon-Macquart. Relembramos alguns detalhes pouco conhe-
cidos sobre o aparecimento desse romance.
Durante muito tempo, O Mulato, de Aluísio Azevedo, pu-
blicado em 1881, foi tido como a primeira manifestação do
Naturalismo em nosso país. Hoje, a tendência é para admitir-se
a prioridade de O Cacaulista e de O Coronel Sangrado, de Inglês
de Sousa, que em 1876 e 77, respectivamente, já havia moldado
essas obras pelos cânones naturalistas. Mas nem Aluísio, nem
Inglês de Sousa, com tais romances, tinham chegado às últimas
conseqüências da escola, afrontando o preconceito da maneira
por que Zola e Eça de Queirós o fizeram. O Mulato, tão influ-

100
enciado por O Primo Basilio, deve mesmo, com mais justeza,
ser considerado uma obra de transição entre Romantismo e
Realismo do que propriamente naturalista.
E de 1881 a 1887, num espaço de seis anos, não tivemos
um romance em que a escola encontrasse, afinal, sua realização
plena, entre nós. Nesse período, Aluísio Azevedo, transferin-
do-se para o Rio, e aí se vendo na contingência de viver da pena,
pôs-se a produzir novelas folhetinescas, como Filomena Borges,
A Condessa Vésper e outras, deixando de lado a idéia de empre-
ender um ciclo naturalista brasileiro à semelhança dos Rougon-
Macquart. Somente em 1887, escreve ele O Homem, revelando,
acima de tudo, uma assimilação da escola. Era o estudo de um
caso de histeria, com propósito de seguir à risca o cientificismo
de Zola, mas feito sem arte e no pior jargão naturalista. A reali-
zação falha, oferecia-se, porém, como um modelo aos brasileiros
entusiastas da renovação do romance e não tardaria para que
Júlio Ribeiro concebesse a idéia de A Carne, publicada em 1888.
Nesse momento em que o Naturalismo já começava a ser
superado na França, entrava ele em plena voga entre nós. Nos
jornais da época, vemos como as teorias de Zola apaixonavam
as opiniões. Depois das crises histéricas e dos delírios eróticos de
Magda, a heroína de O Homem, sentia-se que era preciso ir mais
além. A resistência do elemento conservador e burguês só servia
para excitar o ânimo revolucionário dos naturalistas, quase todos
abolicionistas e republicanos, desdobrando a campanha no plano
literário e no político-social. Nessas condições estava Júlio Ri-
beiro, que em 1887 escandalizava a opinião pública, em São
Paulo, com as audácias de seu panfleto Procelárias. Olavo Bilac,
então na Paulicéia, escrevia para um amigo, dando conta do
rumor produzido pelo desabusado polemista: “Todos vociferam,
todos se arrepelam de indignação contra o Júlio, que fica imper-
turbável, prometendo aumentar ainda o escândalo” — informava
Bilac.
O número de março de 87 das Procelárias iniciava a publi-

101
cação de O Amor na Humanidade, de Montegazza, declarando
na primeira página que a revista não se destinava a colégio de
meninas nem a convento de freiras.
E o aparecimento de A Carne foi precedido de um vasto
reclame feito pelos adeptos do Naturalismo, empenhados em
anunciar o livro como a mais completa realização da escola,
entre nós.
Em Notas à Margem, periódico à semelhança d’As Farpas,
Valentim Magalhães (número de janeiro de 1888) apregoava aos
quatro ventos a próxima publicação de A Carne, como romance
naturalista, à sensation, destinado a um sucesso furioso e ven-
dido ao editor Teixeira, de São Paulo, por muito bom dinheiro.
Logo depois, no número de março, escrevia o mesmo Valen-
tim, procurando fazer trocadilho com o título do livro, que a
isso tanto se prestava: “ Os que acharem A Carne um romance
árido, pouco interessante, chamar-lhe-ão Carne Seca; os que
a considerarem demasiado livre, extremamente cru, dirão que é
Carne. . . Crm; os que a acharem pornográfica, dirão que é
Carne. . . Podre”.
Lançado o romance, a maior parte dos naturalistas não
teve medida nos elogios. Causa estranheza, por exemplo, ver-se
um espírito como Tito Livio de Castro dizendo, em A Província
de São Paulo (a 18 de setembro de 1888): “A grande qualidade
de A Carne é a sua psicologia. O romancista é um psicólogo
provecto da primeira à última página”. Ora, nós todos sabemos
que não há psicologia alguma nos personagens de Júlio Ribeiro
— simples bonecos acionados pelo autor — como não constituía
a psicologia a condição de uma obra naturalista; se a possuísse,
A Carne estaria fora da ortodoxia da escola, que procurava jus-
tamente substituir a psicologia pela fisiología: a alma reduzida
a uma simples questão de órgãos. No mesmo artigo, Tito Livio
de Castro proclama: “ O Naturalismo está vitorioso e a vitória
é assegurada peTA Carne”.

102
A par dos louvores exagerados, os ataques também se su-
cediam. A 12 de agosto, no Diário Mercantil, um jovem intelec-
tual, que então não havia chamado a atenção do público, estam-
pa uma crítica severa ao livro, beneficiando-se com isso do
próprio escândalo que profligava. Refiro-me ao famoso artigo
de Alfredo Pujol, em que, analisando impiedosamente o romance,
mostrando-lhe toda a falsidade, o autor se considerava, entre-
tanto, um adepto do Naturalismo. Aludindo à dedicatória de
Júlio Ribeiro a Zola, Pujol protestava: “Esta grande escola
repele a oferenda de Júlio Ribeiro. A Carne é indigna de ambos.
Não tem a feição ‘natural’, embora seja ‘carne crua’ ”.
Mas parece que o ataque que mais doeu ao romancista foi o
do padre Sena Freitas, suscitando-lhe um revide e a conseqüente
polêmica entre ambos. Sena Freitas era um sacerdote português,
polemista vigoroso, da escola de Agostinho de Macedo e Camilo
Castelo Branco, habituado a golpes de violência e de sarcasmo
feroz. Já em Portugal, publicara ele duas obras típicas no gênero.
Os Lazaristas, pelo Lazarista Sr. Ennes — contra o drama antic-
lerical de Antonio Ennes — e a Autópsia da Velhice do Padre
Eterno. Começando por declinar a amizade que já dedicara a
Júlio Ribeiro e a admiração que votava ao seu “formoso talento”,
entrou na análise da obra, com uma rompância inaudita, engal-
finhando-se os contendores numa discussão na qual, somos leva-
dos a crer, Júlio Ribeiro não levou a melhor.
Parece que o romancista ficou acabrunhado com o sucesso
de escândalo produzido pelo livro e a pecha de haver procurado
explorar a imoralidade. Mas se os ataques foram virulentos, os
elogios, assinados por nomes respeitáveis, teriam sido suficientes
para contrabalançar aqueles.
Quanto aos editores de A Carne, os livreiros Teixeira e
irmão, não esqueçamos de lembrar que, em nota do Diário Mer-
cantil (12 de agosto de 1888), da autoria de Bilac, eram conside-
rados “uns heróis” por se animarem a editar obras literárias de
autores brasileiros naquela época.

103
O Romancista e o Tenor

Meu amigo Otto Maria Carpeaux se diverte sempre que lhe


narro um caso que presenciei há muito tempo em São Paulo.
Uma companhia de ópera popular cantava a Cavalleria Rusti-
cana, de Mascagni, no Brás Politeama. E na cena do brinde,
uma das mais características da ópera, quando um dos perso-
nagens ergue o copo de vinho, cantando questo vino spumeg-
giante, qual não foi o meu espanto, e certamente, de toda a pla-
téia, ao vê-lo prosseguir nestes termos: Viva Guaraná espumante!
Viva Guaraná espumante! Era um reclame do Guaraná interca-
lado da maneira mais pitoresca e desconcertante no libreto.
Lembrei-me desse episódio ante a descoberta que fiz, há
pouco, sobre o verdadeiro sentido de uma passagem de A Carne,
o popularissimo romance de Júlio Ribeiro. Não seria um caso
idêntico, mas apresentando certa semelhança. Também Júlio
Ribeiro se aproveitou do romance para fazer propaganda da
Saint Paul Rail Road, a companhia inglesa que construiu a
Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, procedendo, no entanto, de
maneira bem menos chocante e grotesca da que a do tenor da
Cavalleria Rusticana.
Antes de tudo, acentuemos que nesse romance, em que os
personagens descambam para um artificialismo berrante, Júlio
Ribeiro manifesta em várias passagens suas opiniões e tendên-
cias pessoais, ao mesmo tempo que nos dá testemunho sobre
fatos e coisas da época. E se a obra constitui um lamentável
fracasso como romance, no terreno da ficção naturalista não
deixa de apresentar interesse pelo lado documentário. Aí temos,
por exemplo, um quadro fiel dos usos e costumes de uma fazenda
de café em São Paulo, nos últimos anos da escravidão. Do pro-
gresso urbano de São Paulo, em 1887, também nos dá uma idéia
geral a carta de Lenita a Barbosa, no capítulo XVII, em que
falando pela boca de Júlio Ribeiro ela traça um perfil de Ra-

104
malho Ortigão, surpreendido numa visita à Casa Garraux. (E
neste ponto abrimos um parêntese para uma observação. Costu-
ma-se contar que Júlio Ribeiro fora apresentado a Ramalho Orti-
gão, na Casa Garraux nos seguintes termos: — “Ao mestre do
português em Portugal, o mestre do português no Brasil”. Ao que
Júlio Ribeiro teria obtemperado secamente: — “Nenhum dos
dois é mestre”. A anedota mereceu crédito, porque o gesto, no
fundo grosseiro e indelicado, estava um tanto de acordo com o
que se dizia das atitudes rompantes de Júlio Ribeiro, homem
que não hesitava em exprimir com franqueza brusca seus senti-
mentos. Mas em A Carne vemos Barbosa, depois de nos dar o
perfil de Ramalho Ortigão, declarar-lhe os livros excelentes,
acrescentando: “Bom senso e correção de linguagem até ali ensi-
nam a pensar e ensinam português”. Sendo essa, indiscutivel-
mente, a opinião de Júlio Ribeiro, não é crível que ele fosse
cometer uma indelicadeza daquela espécie para com Ramalho
Ortigão. Fechemos o parêntese e prossigamos no motivo essen-
cial desste artigo.) Júlio Ribeiro era colecionador, tinha a mania
do bric-à-brac, inspirada, talvez, por Zola, seu mestre. Essa ten-
dência ele transferiu para Lenita. Quando vemos Lenita falar em
bibelots, nas reproduções do Gladiador Borghese, da Bacante do
Cacho, de Clodion, percebemos, perfeitamente, que quem está
falando é Júlio Ribeiro. Assim, pois, aquela detalhada descrição
da Estrada de Ferro Inglesa nada tem com Barbosa, com o per-
sonagem do romance: é Júlio Ribeiro que faz muito de propó-
sito, com objetivo inteiramente alheio à ficção.
Estende-se ele por sete páginas, pintando primeiro a paisa-
gem montanhosa da serra, em que foi rasgada a via férrea; exal-
tando essa obra de engenharia, “monumento grandioso da
indústria moderna”, mostra como se galgam aqueles desfiladeiros
através de quatro planos inclinados de dois quilômetros cada um;
descreve minuciosamente o funcionamento dos mesmos, a ma-
neira pela qual se faz o tráfego, como um repórter que ali esti-

105
vesse, interrogando os técnicos e tomando nota de tudo, e
acabando com os maiores louvores à companhia inglesa, apro-
veita a oportunidade para dar uma zargunchada no governo,
esse republicano vermelho: “O progresso assombroso de São
Paulo, a iniciativa industrial do paulista moderno; a rede de
vias férreas que leva a vida, o comércio, a civilização a Botucatu,
a São Manuel, ao Jaú, ao Jaguara, tudo se deve à Saint Paul
Rail Road, à Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, Rule, Britannia!
Hurrah for the English! já que o nosso governo não serve para
nada”.
Mas Barbosa, ou Júlio Ribeiro, acha necessário uma expli-
cação pelo fato de haver descrito talvez demais a serra, os
planos inclinados etc. “Como diabo fiz eu tanta observação,
onde fui apanhar tantos dados? — diz ele — Em uma descida
rápida, vertiginosa, em uma descida de trem? Não era possível.
Uma inspiração, uma comunicação espírita? Nada disso” . E es-
clarecia o motivo: “Um dia desses, nada tendo aqui a fazer, fui
ao alto da serra e de lá vim a pé, vendo, observando, estudando,
aí está como foi”.
Não; não foi propriamente assim, diremos nós, já que Bar-
bosa não é outro senão Júlio Ribeiro, e de Júlio Ribeiro encon-
tramos, no Diário Mercantil de 4 de fevereiro de 1888, a
seguinte carta aos diretores do jornal, Gaspar Martins e Leo
Afonseca: “Meus caros Gaspar e Leo. Querendo eu conhecer
de visu os planos inclinados da Estrada Inglesa de Santos, pedi
permissão ao Sr. W. Speers para percorrê-los a pé. O distinto
cavalheiro não só me concedeu a licença pedida como pôs os
break de todas as viagens à minha disposição, tanto para descer
como para subir. Eu e meu amigo, um dos editores, Sr. Antonio
Teixeira, descemos hoje a pé os quatro planos inclinados e re-
gressando no break. O digno gentleman, Sr. W. Speers, sabe fazer
as coisas: foi completo, foi perfeito de obsequiosidade. Em todas
as estações da serra, na do alto, na da raiz, nas máquinas dos

106
planos, estavam dadas ordens a nosso respeito; telegramas anun-
ciavam de uma para outra estação o ponto em que nos acháva-
mos, ferviam as amabilidades”. Prossegue Júlio Ribeiro, aludindo
a todas as gentilezas recebidas, e prometendo, dentro em pouco,
publicar no Mercantil um longo artigo com as impressões da
visita. Não o publicou; mas como nessa ocasião devia estar termi-
nando de escrever A Carne, que entraria para o prelo daí a uns
três meses, transpôs a descrição para o romance, como um meio
de agradecer as gentilezas recebidas e prestar homenagem aos
ingleses. Eis porque, naquele trecho da carta de Barbosa, tenho
a impressão de ouvir o tenor da Cavalleria Rusticana intercalando
na ária da ópera frases inteiramente alheias ao libreto.

Um Polemista de Outrora

Em 1936 foi reeditada a terrível polêmica que Júlio Ribeiro


manteve com o padre Sena Freitas, a propósito do romance
A Carne. O livrinho despertou tanto interesse que, em pouco
tempo, se esgotou, tornando-se uma raridade bibliográfica nos
sebos.
Procurarei hoje, nesta crônica, reviver a figura desse sacer-
dote português, cujo nome ficou para sempre ligado à nossa
literatura através dessa pendência com Júlio Ribeiro.
O padre Sena Freitas nasceu em 1840, em Ponta Delgada,
Açores. Depois de iniciar os estudos eclesiásticos, primeiro em
Santarém, depois em Coimbra, recebeu ordens em Paris, na Con-
gregação de São Vicente de Paulo. Revelou-se desde cedo um
espírito de luta e uma vocação de missionário. Embarcou para
o Brasil, e pregando missões andou pelas províncias do Rio,
Bahia, Minas e Ceará. Essas jornadas no interior do país, na-

107
quele tempo tão baldo de recursos, prejudicaram-lhe a saúde,
obrigando-o a voltar a Portugal. Já possuía então vasta cultura,
falava perfeitamente o francês e o inglês, e dizem que percorreu
várias terras da Europa, pregando na língua dos respectivos
povos.
Em 1875, encontrava-se em Portugal, quando Antonio
Ennes fez representar a peça Os Lazaristas, encerrando um vio-
lento ataque não somente aos padres dessa congregação mas ao
clero em geral. A peça excitara os ânimos e os teatros que a
anunciavam em Lisboa tinham sempre a platéia cheia de um
público apaixonado, que não cessava de aplaudi-la. É quando
Sena Freitas se ergue, desabusado e temerário, com o folheto
Os Lazaristas, pelo Lazarista Sr. Ennes, reptando o escritor a
provar onde encontrara um lazarista que houvesse procedido
como o padre Bergere, o personagem principal do drama.
“Mas Antonio Ennes nunca apresentou tais documentos,
pois não os tinha” — informa-nos Antero de Figueiredo. Nem
por isso a refrega deixou de ser dura para Sena Freitas, cujo
ataque agitara o ambiente, provocando revides.
Em 1884 transfere-se ele de novo para o Brasil, instalan-
do-se em São Paulo, onde funda um colégio. Quando ainda se
achava em Portugal, tivera notícia do próximo aparecimento do
poema A Morte de Jeová, de Guerra Junqueiro. Foi o próprio
editor quem lhe comunicou, sabendo que Sena Freitas, com o
seu temperamento combativo, não deixaria passar em branca
nuvem uma sátira maligna como aquela. Encontrava-se o sacer-
dote português em Poços de Caldas quando soube da chegada
ao Brasil dos primeiros exemplares da obra, cujo título havia
sido substituído pelo de A Velhice do Padre Eterno. Obteve um
volume de empréstimo e, mal acabou de lê-lo, tomou da pena
retalhando-o peça por peça, com uma virulência correspondente
ao grau de impiedade e blasfêmia do poema. Autópsia da Velhice
do Padre Eterno intitulou-se o poema, em que Sena Freitas,

108
depois de rebater os sacrilégios de Junqueiro, acaba por conci-
tá-lo, como a uma ovelha tresmalhada, a voltar ao redil.
Mas Junqueiro, em lugar de seguir o conselho do antago-
nista, vibrou contra este o panfleto em verso mais violento e
insultuoso que se pode imaginar. “E diante de tais impropérios
que a literatagem dos cafés clamava em coral de vaias, uma vez
ainda, Sena Freitas tomou a sua costumada postura de cruzar os
braços e encarar os inimigos com o superior sorriso do seu abso-
luto desdém”. Tratava-se de um homem de coragem, que não
receava as conseqüências das lutas, em que se envolvia. O tipo
no qual se adestrara constituía em Portugal uma tradição vinda
de Agostinho de Macedo e Camilo Castelo Branco. Aliás, grande
amigo do romancista de Seide, de quem traçou o perfil, Sena
Freitas possuía com o espírito deste último muitos pontos de
contacto. Como polemista, formara-se, pode-se dizer, na escola de
Camilo, em que a discussão recaía sempre no terreno do achin-
calhe, dos baldões pesados e grosseiros. O ímpeto dos seus ata-
ques lhe acarretou muitas situações arriscadas, principalmente
em Portugal, onde, de uma feita, chegou mesmo a ser agredido
na rua. Antero de Figueiredo recorda-lhe o tipo, numa lembrança
de infância: “Alto, aprumado, de passo decidido, na boca ras-
gada e no todo do rosto aliciante abria-se um sorriso franco e
seus grandes olhos de míope coruscavam ímpeto, inteligência e
simpatia por detrás dos seus óculos de aros finos, embutidos nas
lentes de cristal, que às vezes resplandeciam como sóis. De batina
e chapéu preto de lazarista, de sob cujas grandes abas recurvas
saíam as volutas da cabeleira negra, não andava — passava: a
sua tarefa era um apressado palmilhar o mundo em permanentes
missões”.
Ainda o próprio Antero nos reporta esta frase de Sena
Freitas: “A minha espada é a pena de polemista, que só a morte
me arrancará da mão”. Eis o adversário que Júlio Ribeiro teve
pela frente.

109
Em 1888, ano em que apareceu A Carne, Sena Freitas e
Júlio Ribeiro vinham colaborando no Diário Mercantil, de São
Paulo, então o jornal mais literário do Brasil na época, depois
da Gazeta de Notícias, do Rio. Os artigos de ambos eram geral-
mente sobre questões gramaticais. Júlio Ribeiro, professor da
Escola Normal, acabava mesmo de se defender de umas acusa-
ções que lhe tinham sido feitas sobre pontos controversos do
idioma, quando, precedida de grande reclame, apareceu A Carne.
No Diário Mercantil, surgiram logo alguns artigos elogiosos,
inclusive um bastante exagerado de Germano Hasslocher. Mas
a 12 de setembro de 1888 o jornal acolhe a crítica severa e rude
de Alfredo Pujol e, a 26 do mesmo mês, o padre Sena Freitas
inicia a ofensiva contra Júlio Ribeiro, numa análise do romance
que se prolongará por vários dias. É quase certo que nenhum
motivo pessoal influiu nesse ataque. Júlio Ribeiro, no ano ante-
rior, chegara a elogiar o padre Sena Freitas num debate que este
travara com outro antagonista. E o próprio Sena Freitas começa
ressalvando que sempre fora amigo de Júlio Ribeiro e lhe admi-
rava o formoso talento. Mas depois disto não admite nenhuma
contemplação com o romancista: cai de rijo, no cerne, naquele
mesmo tom implacável que acutilara Antonio Ennes e Guerra
Junqueiro. Não vamos analisar nem resumir aqui essa polêmica,
que bem merecia ser reeditada pelo seu valor histórico como
documento da época. Salientarei apenas dois pontos, em que ela
mais refletia o espírito do tempo: a insistência dos adversários
em questões de história natural e em questiúnculas de português.
Era por um lado o cientificismo, então predominante, e, por
outro, a preocupação gramatical, que levava muita gente a con-
fundir estilo com a linguagem gramaticalmente correta.
Lendo essas páginas hoje, numa atitude desapaixonada e
imparcial, temos a impressão de que o padre Sena Freitas se
mostrou um tanto superior ao adversário na justeza dos golpes
e Júlio Ribeiro não conseguiu arrasá-lo, como prometeu, no iní-
cio do debate. Aliás, a causa do romancista era ingrata, tratava-se

110
de um romance literariamente indefensável. Quando Júlio Ri-
beiro estava à morte, em Santos, em 1892, afirma-se que Sena
Freitas se apressou a tomar um trem em São Paulo e em ir
assistir-lhe os últimos instantes, esquecendo todos os ressenti-
mentos dessa violenta polêmica.
E só em 1910 retornaria o sacerdote português à terra natal
para, dentro em pouco, voltar ainda uma vez ao Brasil, onde
veio a falecer, em 1913.

Aluísio Azevedo e o Padre Freitas

Para a reação que o movimento naturalista encontrou no


Brasil (como aliás em toda parte) teria concorrido, certamente,
o bom número de obras de segunda categoria ou verdadeiros
subprodutos literários, que surgiram explorando a voga da nova
escola. Obras hoje inteiramente esquecidas, mas que nas duas
últimas décadas do século passado tiveram o seu público. Pre-
textando seguir à risca os cânones de Zola, escritores secundá-
rios não faziam outra coisa senão obscenidade. E muita gente
via pelo mesmo prisma o que, com todos os condimentos da
escola, era Literatura e o que não passava de subliteratura por-
nográfica.
Parece-nos significativo o fato de encontrarmos em vários
números da Gazeta de Notícias, em 1888, um dos anos mais
fecundos para o Naturalismo entre nós, quando causava grande
escândalo A Carne, de Júlio Ribeiro, um anúncio sob este título:
“Leitura para homens”. Em que consistiam tais leituras? Em
novelas fesceninas de autores anônimos, algumas decerto adap-
tadas de outros idiomas, pura obscenidade sem qualquer valor
literário. Eis aqui os títulos de algumas delas: Clarita, Beatriz,
As Sete Noites de Lucréia, Os Prazeres de Rosália, Morgadinha

111
das Delícias, esta última naturalmente para aproveitar a grande
voga da Morgadinha de Val Flor, então representada com a maior
freqüência em nossos teatros. Cada um desses livrecos custava
seiscentos réis. Vinham depois Camarões Elétricos e Mexilhões
Incendiários, com títulos meio herméticos, talvez propositais, para
açular o apetite malsão do público, pelo preço de mil réis cada
um. Completavam a lista, que era longa, as duas únicas obras
capazes de serem ressalvadas como literatura nessa pornografia
de carregação: as Poesias de Laurindo Rabelo, com a indicação
entre parênteses: As Livres, e o famoso Elixir do Pajé, de Ber-
nardo Guimarães, sem o nome do autor. As Poesias de Laurindo
Rabelo, então vendidas a mil réis o volume, hoje constituem
raridade bibliográfica, atingindo decerto, duzentos ou trezentos
mil cruzeiros nos alfarrabistas.
Esse anúncio, repetido freqüentemente, denuncia, sem dú-
vida, a exploração comercial do Naturalismo. Muito leitor não
distinguiría O Homem, de Aluísio Azevedo de A Carne, de
Júlio Ribeiro, d’Os Prazeres de Rosália e da Morgadinha das De-
lícias. Como não distinguiría a pornografia de bordel das cenas
cruas que alguns subliteratos da época apresentavam com o rótulo
de Naturalismo, exagerando o jargão científico da escola. No
mesmo ano e no mesmo jornal encontramos a notícia de um dos
livros típicos desse gênero: Cm Homem Gasto, com a indicação
zolesca: “Episódio de história social do XIX.° Século’’ e este
acréscimo, bem ao gosto da época: “Romance naturalista de lei-
tura livre”. Entre essa “leitura livre” e as “leituras para homens”
do anúncio não havería grande distância na curiosidade de muita
gente e no julgamento de certos críticos.
Daí, por exemplo, a maneira agressiva com que o padre
Sena Freitas investiu contra Júlio Ribeiro, quando este publicou
A Carne, considerando-a obra repulsiva, nojenta, uma “carniça”,
como se não a distinguisse da pornografia de fancaria. Ninguém
ignora a violência do revide de Júlio Ribeiro. Mas o que poucos,

112
talvez, saberão é que, nesse ano de 1888, em que desancara
A Carne, o padre Sena Freitas publicara Observações Críticas e
Descrições de Viagens, no qual desancava quase com igual viru-
lência O Homem, de Aluísio Azevedo. Sendo o volume com-
posto de trabalhos fragmentários, e até de gêneros diferentes, é de
supor-se tenham sido publicados anteriormente na imprensa. O
ataque ao romance de Aluísio Azevedo figura no capítulo inti-
tulado “Uma revoada de literatos brasileiros”. Depois de passar
em revista alguns aspectos das nossas letras, Sena Freitas volta-se
para o que lhe parece o maior descalabro do momento: a expan-
são do Naturalismo. E põe-se a lamentar o caminho errado se-
guido pelo autor de O Homem. Naturalizara-se ele “naturalista
radical, mas radical até ao luxo, ao desvanecimento do escândalo.
Bom proveito” — diz Sena Freitas. Julgava Aluísio Azevedo
(o crítico português escreve sempre Aloísio de Azevedo) “um
moço de talento positivo que podia dar um romancista aceitabi-
líssimo para românticos e até para seminaturalistas” como ele,
que amava a verdade objetiva e queria a verdade na arte, mas
para quem a verdade compreendia a seleção criteriosa do que
pode ser apreendido pela arte. “Há realidades ignóbeis vedadas
às orientações discretas da arte, o tortulho, por exemplo, o resí-
duo fecal, o water closet, o calão avinhado e nauseabundo da
bodega”. “Mas não — continuava —, o Sr. Aloísio de Azevedo
assentou praça nesse Naturalismo que com mais propriedade
poderemos chamar chulismo literário, no Naturalismo desastrado
que entende que realidade e decência são coisas que colidem
entre si, apesar da cópia de romances de Daudet provar que não
é preciso descer ao bê-á-bá de Santa Justa das realidades afro-
disíacas e soezes para ser discípulo do autor dos Contes Choisis
e Fromont Jeune”. Passa depois a criticar a linguagem de Aluísio,
apontando-lhe erros e impropriedades de português, o que se
tornava muito natural num crítico luso na época: analisa per-
sonagens e episódios reproduzindo alguns diálogos, procurando
mostrar o que havia de inverossímil no romance. Pretendendo
ser naturalista, Aluísio se mostrava apenas anti-realista. Aquilo
seria menos urna novela de costumes que um tratado de histeria
(podería haver dito com mais propriedade, um pretenso tratado
de histeria). Acusa o romancista de fazer obscenidade por “mero
gosto” “por estribilho contrário”, sem que o próprio assunto
lúbrico, tratado por aquele “modo achavascado”, esteja a pedir
linguagem adequada. Cita alguns exemplos para justificar-se,
articulando, em cada altura, esta apóstrofe: “Com que chama-se
isto Literatura, Sr. Aloísio? Denomina-se isto uma Obra de
Arte?!”
Estende-se numa série de considerações generalizadas sobre
o materalismo de hora presente, que parecia anunciar no século
vindouro o “esplêndido reinado da Besta”, arrematando nestes
termos: “Por tudo isto estou anatomizando o último produto
literário de Aloísio de Azevedo. Embora fosse ele placitado por
uma certa aura pública, não hesito em estigmatizar, como escri-
tor, como soldado vigilante da luz esse naturalismo-ultra de que
o Sr. Aloísio fez praça e nos encampou nos seus milheiros de
Homens. De tagatés deve o muito talentoso moço estar refarto.
Excelente coisa é que haja também algum homem indepen-
dente e leal, algum paysan du Danube, que nos fale com rude
mas útil franqueza sem os tatibitates da timidez reticenciosa”.
Esta crítica, como se vê, dava bem o molde daquela que,
logo depois, Sena Freitas escreveria contra Júlio Ribeiro. Acresce
uma circunstância: a heroína de A Carne seria irmã de Magda
de O Homem, tirante a erudição enfática e palavrosa da primeira.
Embora os enredos fossem diversos, percebe-se que, sem Magda,
Júlio Ribeiro não teria imaginado a histeria de Lenita. Os dois
romances fracassados prestavam assim flanco aos inimigos do
Naturalismo, levando-os a ressaltar a obscenidade onde havia
apenas deficiência de realização literária. Mas Aluísio não res-
pondeu a essa crítica tão violenta e não houve polêmica.

114
Os Intelectuais no Advento da República

O ano de 1888, que precedeu o da Proclamação da Repú-


blica, passa por ter sido um dos mais fecundos da literatura
brasileira, sobretudo no que concerne ao Naturalismo, já então
em plena voga entre nos. Foi o ano da publicação d’A Carne,
de Júlio Ribeiro; d’O Ateneu de Raul Pompéia; do Cromo, de
Horácio de Carvalho; e também da primeira coletânea de versos
de Bilac. Notava-se por toda parte certa efervescência literária.
Fundavam-se revistas culturais e surgiam novas editoras no Rio
e em São Paulo.
Entretanto, esse movimento não parecia denunciar nenhum
bafejo do governo imperial. Pelo contrário, a maior parte dos
escritores acusava Dom Pedro II de embaraçar o desenvolvi-
mento das nossas letras, permitindo a tradução de todas as obras
estrangeiras, sem pagamento de direitos no Brasil. O livro euro-
peu fazia uma terrível concorrência ao livro brasileiro. Nem
mesmo os editores portugueses conseguiram fazer valer aqui os
seus direitos. No Diário Mercantil, de São Paulo, a 25 de agosto
de 1888, lia-se uma nota consignando o fato de se terem vendido
apenas mil exemplares d’Os Maias, de Eça de Queirós, no Brasil*
como conseqüência do romance estar sendo publicado em folhe-
tim por vários jornais, o que vinha merecendo censura e cau-
sando estranheza.
A geração que então surgia, inclinando-se no romance para
o Naturalismo e na poesia para o Parnasianismo, manifestava
acentuada tendência republicana. No que concerne aos natura-
listas a atitude era lógica e perfeitamente explicável, como uma
conseqüência da estruturação social proposta por Zola ao lançar
os fundamentos da nova Escola. “ La République sera naturaliste
ou ne sera pas” — proclamava o autor de La Terre.
Júlio Ribeiro, cujo romance A Carne causava em 1888
grande escândalo, formava na vanguarda dos propagandistas da

115
República, escrevendo era jornais de São Paulo os panfletos reu-
nidos em livro, sob o título: Cartas Sertanejas. A mesma orienta-
ção política seguiam Raul Pompéia, Inglês de Sousa, Horácio
de Carvalho, e o mais notável representante da escola, Aluísio
Azevedo.
Mas essa geração de 89, que se caracterizou como a “gera-
ção boêmia”, devia mesmo, por natureza, simpatizar-se com a
idéia republicana. A atitude de rebeldia em que se colocavam
seus componentes, adotando em filosofia o materialismo, em
religião, o ateísmo, havia de fazê-los malsinar o Trono, quando
mais não fosse por uma questão de coerência revolucionária, ou
então de pose. Um “boêmio”, como se intitulavam e tinham or-
gulho de ser, não podia cerrar fileira entre os conservadores;
havia de pregar, conseqüentemente, o mais desbragado radica-
lismo.
De parelha com o Parnasianismo, esboça-se por essa ocasião,
entre nós, uma poesia social, de que derivou um ramo cientifi-
cista, que não chegou a dar nenhum fruto apreciável. Nessa poe-
sia social encartaram-se, entre outros, Lúcio de Mendonça, Me-
deiros e Albuquerque e Augusto de Lima, o último apenas numa
pequena parte da sua produção. Tais poetas pregavam as barri-
cadas em tom meio hugoano, a Revolução com R grande, diri-
gindo toda sorte de imprecações contra o Trono. O livro mais
típico de tal corrente foram as Vergastas, de Lúcio de Mendonça,
que aparecera com uma capa bastante “vermelha” de Raul Pom-
péia.
Mas eram freqüentes, entre os escritores da nova geração,
os ataques ao Imperador. Sílvio Romero mantinha, de parceria
com Araripe Júnior, uma publicação, Lucros e Perdas, à seme-
lhança d’As Farpas, de Ramalho Ortigão, na qual não perdia a
oportunidade de desancar o Monarca, naquela linguagem desa-
brida que lhe era peculiar. Caso entre os muitos que levaram
Valentim Magalhães, numa das páginas do livro Escritores e Es-
critos, a protestar contra o exagero grotesco dos que viviam a

116
pintar Dom Pedro II como um tirano, um'monarca opressor,
indiferente à sorte do povo, quando todo mundo sabia tal não
ser a verdade.
Naturalmente, havia algo de atitude literária no furor anti-
monárquico dos “novos” de então. Mas a verdade é que o Impe-
rador, com as suas preocupações culturais, procurara criar um
detestável aulicismo intelectual no Brasil. Para dispensar prote-
ção a um escritor, desejaria que este lhe reconhecesse a tutela,
e o considerasse uma espécie de mestre ou de guia. Contra isso
protestava a maior parte da geração nova. Sílvio Romero, num
dos números de Lucros e Perdas, em 1883, escrevia:
“O país quer pensar por si” — e atribuindo essa reflexão
ao Monarca, figurava a própria réplica do soberano: “Pois bem,
hão de me encontrar agora por toda parte, como uma implacável
obsessão; e de duas, uma: ou aceitam o meu conselho, ou suas
pretensões dissolvem-se em fumo”.
Mais adiante, comentando a participação de D. Pedro II
numa sociedade literária que veio a dissolver-se justamente pelo
desentendimento resultante da ingerência do Monarca, protesta-
va: “O fato é que não se sabe por que cargas d’água Sua Maje-
tade pôde encartar-se nessa nova sociedade. Com todos os visos
de verdade, o eterno protetor de tudo no Brasil não entrou ali
para fazer com que a vida do homem de letras no Brasil se trans-
forme numa profissão independente e lucrativa”.
Eis a amarga queixa da maioria dos escritores da época
contra Dom Pedro II. O Imperador estava pronto a proteger, a
incentivar o aulicismo literário, mostrando-se, entretanto, indife-
rente à criação de meios que melhorassem a situação do homem
de letras no país.
Tem-se falado muito em boêmia e geração boêmia. Meu
amigo Otto Maria Carpeaux já me declarou achar a expressão
intolerável, à força de ser repetida e decantada. Entretanto, ainda
resta estudar, na sua verdadeira essência, a boêmia de 89, resta
retificar certos equívocos sobre ela. Não será julgá-la com pene-

117
tração, acusá-la de ter-se alheado à nossa realidade, e estranhar
que, após a geração de Alencar, Macedo, Joaquim Serra, Taunay,
Francisco Otaviano, todos homens votados à política, encarando
com seriedade os problemas do país, surgisse uma geração brin-
calhona, a consumir-se em piadas e anedotas pelas mesas de café.
Nenhuma visão mais errônea do famoso grupo a que pertenceram
Bilac, Coelho Neto, Pardal Mallet, Guimarães Passos, Paula Ney,
Aluísio e Artur Azevedo, entre outros. Uma geração brincalho-
na, essa que lutou pelo Abolicionismo, tomou parte ativa na
propaganda republicana, conheceu a prisão e o exílio na ditadura
de Floriano?
Na verdade, os “boêmios” não eram geralmente boêmios na
acepção comum do termo. Na maioria, trabalhavam mais do que
muito intelectual que hoje passa por levar uma vida essencial-
mente ativa e metódica. Bilac sempre escreveu uma crônica diá-
ria em mais de um jornal; o mesmo acontecia com Coelho Neto,
um verdadeiro grilheta da pena; Raul Pompéia além de cola-
borar em jornais do Rio enviava correspondência para periódi-
cos de São Paulo e Minas; Artur Azevedo multiplicava-se, igual-
mente, na imprensa, enquanto escrevia peças originais ou tradu-
zidas, que conseguia sempre fazer representar; Pardal Mallet era
outro trabalhador infatigável; Aluísio Azevedo, sacrificando
seu pendor para o Naturalismo, multiplicava-se em romances-
folhetins, publicados na imprensa e logo editados em livros, avi-
damente procuradores pelo grande público.
Pequeno, bem pequeno mesmo, seria o número dos verda-
deiros “boêmios”, dos que se dispersavam inutilmente pelas me-
sas dos cafés, contentando-se com a glória de uma bela frase ou
de um dito espirituoso. Paula Ney seria o protótipo destes
últimos.
Mas o que acontecia com essa geração, fazendo-a, talvez,
disputar tanto o rótulo de boêmia, era pretender viver da ativi-
dade literária, numa época em que (como certamente, até hoje,
hélasl) isso não se tornava possível, ou antes, se tornava dificílimo

118
no Brasil. Trabalhando da forma por que trabalhavam um Bilac,
um Aluísio, um Coelho Neto, não só sacrificavam a elaboração
das obras de arte superior com as quais sonhavam como não
logravam obter mais do que parcos rendimentos econômicos.
A “boêmia” era, no fundo, a fórmula de um permanente pro-
testo contra essa situação. Em lugar de constituir urna deli-
qüescéncia social, refletia, na maioria dos casos, um esforço de
adaptação da atividade literária à nossa realidade social. E o fato
de isso verificar-se nos últimos tempos do Império e nos primeiros
tempos da República, época de transição, é altamente significa-
tivo. Alencar, Macedo, Octaviano e outros da mesma geração,
nunca imaginaram ser escritores profissionais; enveredaram para
a política, a advocacia, o magistério, em parte porque julgariam
absurdo qualquer tentativa de viver de letras. Os “boêmios”
quiseram libertar-se de outras profissões, serem apenas litera-
tos, fazendo tanto quanto possível da Literatura meio de vida, e
por aí, por causa dessa visão “prática” das letras se tornaram
“boêmios”.
Evidentemente, era bem dura e amarga a luta que tinham
de travar com a indiferença, a incompreensão, e mesmo a hosti-
lidade do meio. Se o Conselheiro José de Alencar, advogado e
jurista, fora encarado por seus pares na Câmara dos Deputados
e depois no Gabinete Itaboraí como um espírito fantasista e
leviano, pelo fato de ser autor de algumas novelas e “roman-
cetes”, quantas barreiras encontraria o escritor que pretendesse
viver da sua literatura?! Não se admitia na época que tal fosse
possível e chegava-se a desconfiar de quem se arrogasse a tanto.
Numa carta para a mãe — estampada em 1947, no suple-
mento pan-americano de A Manhã, “ Pensamento da América” —
Aluísio Azevedo procura convencê-la de um fato, em que a
pobre mulher, muito naturalmente, não queria acreditar: de que
ele estava tirando da pena o único meio de subsistência na
Corte. Mas, numa outra carta, esta endereçada a Afonso Celso
e datada de novembro de 1884 (ver O Touro Negro — Briguiet

119
— 1944), o autor de O Mulato já se mostra desanimado, mani-
festando, em termos comoventes, o anseio de obter aquilo que
poderia libertá-lo da escravidão da pena: um emprego público.
“Eu desejo ardentemente descobrir uma colocação qualquer,
seja onde-for, ainda que na China ou em Mato Grosso, contanto
que me sirva de pretexto para continuar a existir e continuar a
sarroliscar os meus pobres romances, sem ser preciso fazê-los
au jour le jour. Aquela minha pretensão sobre o Asilo de Me-
ninos Desvalidos, há três anos que me foge da frente, e se eu
não abrir mão disso e cuidar de outra coisa, creio que irei parar,
mas é no asilo dos doidos ou no de mendicidade. É para evitar
semelhante catástrofe que venho pedir a tua proteção. Há certos
lugares, certos cargos, certos empregos, dos quais só os próprios
políticos têm notícia quando eles ainda se acham vagos, e que
ao transpirarem cá fora, ao caírem no conhecimento do público,
vêm logo, como uma mulher bonita, escoltados por um enxame
de cobiçosos e guardados à vista pelo feliz mortal que mereceu a
preferência e já traz a nomeação no bolso. Ora, dessa forma,
só fazendo como neste momento faço: vindo a ti e pedindo-te
que logo que te passe pelos olhos um desses cargos lhe ponhas
a mão em cima e me atires com ele, que eu o receberei com
melhor vontade do que a de um náufrago ao receber uma tábua
de salvação. Repito: seja lá o que for tudo serve; contanto que
eu não tenha de fabricar Mistérios da Tijuca e possa escrever
Casa de Pensão. Talvez te pareça feio e até ridículo o que acabo
de fazer; não sei, mas desnorteado como estou, sôfrego por dei-
xar esta maldita existência de boêmio que já se me vai tornando
insuportável, agarro-me a ti, por julgar-te mais perto de mim
e mais apto do que outro qualquer, para compreender a since-
ridade e o desespero do que estou dizendo”.
Segundo parece, porém, Afonso Celso não pôde atender o
romancista que se viu na contingência de continuar a escrever
suas novelas folhetinescas, quer dizer, de continuar no que ele
chamava “a maldita existência de boêmio”. Só com a Procla-

120
clamação da República, iria conseguir o almejado emprego pú-
blico, fazendo concurso e entrando na carreira consular. Fora
sempre um boêmio malgré lui, lutando para libertar-se daquilo
que identificava com a boêmia: o profissionalismo literário. E o
que a geração de 89 reclamava do Trono era, precisamente, a
melhoria das condições de vida para a atividade, a profissão
literária, essa atividade que os “novos” de então exerciam sob o
aspecto rebelde de “boêmia”.

O Aparecimento de O C o r t iç o em 1890

Quando Aluísio publicou O Mulato, em 1881, a crítica


literária, e particularmente a de caráter militante, já começava a
tornar-se um gênero mais cultivado no Brasil. Capistrano de
Abreu mantinha, semanalmente, uma rubrica sobre livros do dia
na Gazeta de Notícias, onde viria a ocupar-se desse romance,
que suscitaria, por outro lado, um famoso artigo de Urbano
Duarte na Gazeta Literária. Iam surgir dentro em pouco os no-
mes de Sílvio Romero e Araripe Júnior. No período romântico
não houve senão manifestações esporádicas de crítica: Bernardo
Guimarães com três ou quatro artigos em Novidades e n’A Re-
forma, Manuel Antônio de Almeida no Correio Mercantil, José
de Alencar investindo contra Gonçalves de Magalhães no Diário
do Rio de Janeiro e enfrentando mais tarde tenaz ofensiva de
Joaquim Nabuco em O Globo, Machado de Assis, cuja aptidão
para o gênero bem cedo se esterilizou. Estas serão talvez as
únicas manifestações dignas de assinalar-se, sem falar no malo-
grado Dutra e Melo, cujo artigo sobre A Moreninha de Macedo
anunciava o nosso primeiro crítico literário, se a morte não o
colhesse tão cedo.
Podemos dizer assim que os românticos, excetuados os

121
teatrólogos, quase não tiveram crítica na sua época. Em estudo
sobre o aparecimento de O Guarani, de Alencar, verificamos o
silêncio com que o livro foi recebido pela imprensa. Romance
e poesia, até 1880, mais ou menos, pouca atenção mereciam dos
jornais, onde se abria largo espaço para o drama ou a comédia
mais medíocre. Por isso mesmo Casimiro de Abreu não devia
ficar tão acabrunhado com o silêncio da crítica, quando publicou
As Primaveras, como imagina Nilo Bruzzi. Teve o poeta, pelo
menos, um artigo muito laudatorio de Pedro Luís.
Com o advento do Naturalismo, a situação iria modifi-
car-se. E no que concerne ao romance, a repercussão na imprensa
passaria a ser cada vez maior, sobretudo pelo escândalo que as
obras feitas nos moldes de Eça de Queirós e de Zola provoca-
riam. Ora, sem falar em Júlio Ribeiro com a sua monstruosa
A Carne, causando um rumor que já preludiava o sensaciona-
lismo moderno, temos de reconhecer que nenhum dos nossos
naturalistas mais escandalizou o público do que Aluísio Aze-
vedo. Desde O Mulato até O Livro de uma Sogra, em 1895, pon-
do de lado, evidentemente, as novelas romanescas (“os livros bas-
tardos”), todos os seus romances despertavam por isso a maior
atenção da crítica, conseguindo grande número de comentários
e notas de publicidade dos jornais. Atacado ou elogiado, Aluísio
Azevedo lograva sempre aquilo que constitui uma das molas
reais do êxito: o reclame. E graças a isso, decerto, pôde viver
somente de literatura até 1896, quando foi nomeado vice-cônsul
em Vigo.
O Cortiço apareceu em maio de 1890, dois anos e meio
após a publicação de O Homem, lançado em dezembro de 1887.
Como se sabe, Aluísio fracassou quase por completo nesse último
romance. Mas os adeptos do Naturalismo, na maior parte, que
já tinham louvado a Casa de Pensão, não reconheceram tudo
quanto havia de artificial em O Homem, na sua insuportável
heroína Magda, irmã gêmea da ridícula Lenita de Júlio Ribeiro.
Se o Jornal do Comércio (pelo espírito conservador, um tanto

122
avesso ao Naturalismo) atacou O Homem/ não faltou quem o
elogiasse, e para testemunhar-lhe o sucesso basta lembrar o fato
de o seu título ter sido aproveitado por Artur Azevedo e Mo-
reira Sampaio numa revista teatral representada no mesmo ano.
Compreende-se, pois, o interesse com que era aguardado
O Cortiço em 1890. Além disso, a República fora proclamada
há pouco, e com a queda da Monarquia muita gente sentia que
se tinham esvanecido também as últimas remanescências do Ro-
mantismo. Novo regime, tempos novos, nova mentalidade. Não
nos devemos esquecer de que os adeptos do Naturalismo eram
quase todos republicanos. Zola julgara, na França, a República
a única estrutura político-social condizente com o espírito revo-
lucionário da Escola. O romance de Aluísio, cujas ousadias já
eram, certamente, anunciadas nas rodas literárias da rua do
Ouvidor, vinha assim num momento mais que oportuno, corres-
pondendo ao “clima” do regime recém-proclamado. Grande teria
sido, pois, a curiosidade que despertaram alguns dos seus trechos
publicados por vários jornais, nos primeiros dias de abril. A 27
desse mês a Gazeta de Notícias, em nota, num tom meio brejeiro,
informava: “A última página de O Cortiço, o já afamado romance
de Aluísio Azevedo, entrou ontem para o prelo. Esperem um
poucochinho, senhores glutões, Aluísio Azevedo já lhes vai
servir essa finíssima iguaria”. Ninguém já duvidava do sentido
revolucionário do livro; seria a mais audaciosa expressão do
movimento Naturalista, plenamente vencedor no Brasil.
No entanto, nesses dias, um grupo de intelectuais se reunia
para festejar com um banquete Luís Murat pelo lançamento das
Ondas, um livro de versos líricos. Versos ainda românticos, numa1

1 Na seção P arolando (8-11-1887) vinha o seguinte p o tin alusivo ao


aparecim ento de O H o m e m :
— “Então o A luísio saiu-se o m ais ferrenho escravocrata do m undo,
hem?
— Como?! N ão há tal!
— Como não há? Pois se chega a vender H om ens a 3$000. . . ”

123
época de Parnasianismo e de Naturalismo, quando se preconizava
mesmo a poesia científica, exprimindo as inquietudes filosófico-
sociais do momento.

Poeta a cantar hoje o colo nu da amante


Não condiz com a evolução do século gigante

proclamara, há poucos anos, um desses anti-românticos exalta-


dos. Como se justificaria esse entusiasmo pelo lirismo de Murat?
E Pardal Mallet, na Gazeta de Notícias ataca, com seu ardor
habitual, o poeta das Ondas.
A 15 de maio o Correio do Povo estampava a notícia sen-
sacional: acabava de ser posto a venda O Cortiço. Daí a três
dias, uma notícia mais sensacional ainda: a edição de O Cortiço
já estava “vai não vai” a esgotar-se. Golpe de publicidade? Custa
crer que um romance, mesmo causando o maior escândalo, pu-
desse esgotar-se no Brasil, no decorrer de tão poucos dias, em
1890.
Não tardariam as manifestações da crítica. Um dos primei-
ros artigos seria do próprio irmão do autor, na sua coluna Flocos,
sob a assinatura A.A., no Correio do Povo de 18 de maio. Menos
crítica do que um elogio fraternal, embora justo. Tratava-se de
um “estudo consciencioso do bas-fond da sociedade fluminense”
— escrevia Artur Azevedo — e o livro mais acentuadamente
popular de quantos nos vinha dando “a pena vigorosa do ilustre
romancista”. Era na literatura brasileira um livro único na gê-
nero, com cenários, tipos, caracteres nunca dantes analisados
pelos nossos escritores. Assegura que Aluísio foi aos cortiços,
meteu-se entre a população heterogênea das estalagens, acoto-
velou-se com cavouqueiros e lavadeiras. Por isso mesmo, por
descrever um ambiente pouco conhecido dos leitores de romance,
a obra parecería um produto “exótico”. Muitos procurariam os
“janotas de Alencar”, “as donzelinhas de Macedo” e torceríam
o nariz não achando coisa que se parecesse com isso.

124
A 19 de maio, uma nota sem assinatura na Gazeta de No-
tícias explicava a origem do romance. Há tempos, Aluísio tivera
a idéia de escrever um livro sobre o comendador. Depois veio-
lhe a de escrever outro, tomando por assunto o cortiço, mas
não era tão completa a mistura para que não se percebesse,
vagamente, como nas fotografias, a superposição. O comendador
primitivo devia ser o Miranda, mas esse tipo pareceu insuficiente
desde que começou a respirar a atmosfera d’0 Cortiço, transfor-
mando-se depois em João Romão. A nota fora escrita, natural-
mente, por informação do próprio romancista, mas precisamos
lembrar que esse livro fazia parte do plano delineado por Aluísio
em A Semana, o de uma obra cíclica, sob o título geral de
Brasileiros Antigos e Modernos. O primeiro romance seria pre-
cisamente O Cortiço, narrando a história de um colono analfa-
beto que de Portugal vinha trabalhar no Brasil, trazendo uma
filhinha de dois anos. Dessa menina é que iria nascer o tipo
do vendeiro amasiado com a preta (João Romão). O comendador
não figura do plano em que aparece um conselheiro do Império,
chefe de uma “família brasileira”, cujos descendentes deveríam
ligar-se aos do colono português. Aluísio — conforme o mostra
Alcides Maya — alterou depois o plano, embora Casa de Pensão,
O Cortiço, O Homem (cuja heroína, Magda, seria a filha do
conselheiro) e O Coruja se encartem, até certo ponto, na idéia
inicial.2
A 23 de maio, ainda na Gazeta de Notícias, Pardal Mallet
inicia uma crítica do já famoso romance, numa série de três
artigos. O autor de O Lar comparecia então, quase diariamente,
em vários jornais do Rio, versando os mais diversos assuntos,
inclusive a crítica literária. “Um talento hercúleo em luta com
uma pobreza de cultura”, assim o definira João Ribeiro a Mallet,
condenando-lhe o ato de filosofar, ressaltando-lhe, no entanto,

2 “Revista da Academ ia Brasileira de Letras”, abril de 1920.

125
os méritos de brilhante folhetinista.3 Parece-nos justa a opinião
a julgar pelos três artigos sobre O Cortiço, nos quais encontra-
mos, ao lado de algumas vistas justas, divagações meio obscuras,
indicando a tendência para doutrinar sem base cultural. “É bem
triste a sorte dos vencedores que continuam a batalhar”, diz
Pardal Mallet. “ Parece que diminuem”. “Vencedor, Aluísio não
podería furtar-se a essa triste fatalidade. Cada livro seu é inferior
aos primogênitos. Embora seja forçoso reconhecer-lhe o aperfei-
çoamento no métier, esse aperfeiçoamento consiste apenas no
modo de fazer”. Como vêem, nenhum juízo mais absurdo, pois
ninguém duvida ser O Cortiço o melhor romance de Aluísio.
Em seguida a uma crítica meio confusa ao Naturalismo, Pardal
Mallet aceitava-o como “evolução, porque é simplesmente método
e lógica dos tempos atuais”, julgando-o prejudicial quando se
convertia em escola e se reduzia à imitação de modelos. Aluísio,
continuava ele, “arma-se cavaleiro com O Mulato”, “ a mais sen-
tida e a mais vivida de todas as suas obras”, sujeitando-se depois
a outras influências, sobretudo à de Zola. “ Ora, Zola tinha duas
feições bem diversas: a do crítico e a do romancista. Doutrinava
de um feitio e fazia de outro. Aluísio preferia imitar o segundo”.
Percebe-se o que sugerira a Pardal Mallet essa conclusão: as
críticas feitas na época a Zola de não obedecer rigorosamente à
ortodoxia do Naturalismo por ele estabelecida, levado pelo surto
do seu élan criador. Pardal Mallet acha que o “documento hu-
mano” deve ser essencialmente psicológico: exige o estudo do
meio, não comportando a absorção do homem pelo meio, como
se dava nos romances de Zola. Fora esse pseudo-Naturalismo que
Aluísio adotara. Ainda aqui notamos o que o escritor queria
dizer, embora não se exprimisse com clareza e precisão: preferia
ele, certamente, ao Naturalismo de Zola, no qual a Psicologia
era substituída pela Fisiología, o dos inglêses — de uma George
Elliot e um Dickens — preconizado por Brunetière e outros

3 C orreio d o P o vo de 28 de agosto de 1890.

126
críticos normaliens quando se insurgiram contra as brutalidades
do autor dos Rougon-Macquart.
Chegamos agora ao artigo mais interessante, ao segundo, o
de 24 de maio, em que o autor levanta esta questão: seria O Cor-
tiço um plágio de L ’Assommoir de Zola? Examinemos, ligeira-
mente, os pontos de semelhança assinalados por Pardal Mallet
entre os dois romances. O polícia Alexandre, n’0 Cortiço, e o
sergent Poisson, em L ’Assommoir aparecem como simples figu-
rantes, não desempenhando propriamente nenhum papel, tendo
como traço característico grande apuro e limpeza de vestuário,
quando estão fardados, e um bom humor complacente, quando
sem a farda. Pela leitura dos dois romances não conseguimos
apreender com exatidão esse traço característico, embora note-
mos a semelhança que pode subsistir entre o soldado brasileiro
e o francês. Mas as intervenções de Alexandre em O Cortiço
diferem das de Poisson em L ’Assommoir.
O velho Libório, no romance de Aluísio, identifica-se com
o père Bru, no de Zola, vivendo ambos por misericordia no canto
infecto de uma residência, ambos convidados para fazer número:
o primeiro no jantar da Rita Baiana, o segundo no jantar de
Gervaise. Pardal Mallet não observa, no entanto, o seguinte:
Aluísio fez do velho Libório um tipo meio antipático na sua
miséria, devido à monstruosa glutoneria, que o leva a ingerir
alimentos demais no jantar da Rita, chegando a engasgar-se, com
grande repugnância e indignação dos presentes. Além disso,
Libório era um falso miserável, pois tinha dinheiro guardado às
ocultas, como sé verifica em outra passagem do romance, ao
passo que o père Bru, realmente pobre, possui maneiras brandas,
lamentando a velhice que fazia com que se lhe fechassem todas
as portas (On ne veut plus de moi nulle part pour travailler,
murmurat-il).’4

4 L ’Assommoir, capítulo V II.

127
Agora a semelhança de episódios. O rolo entre Rita Baiana
e Piedade no cortiço lembra a briga de Gervaise e Virginie em
L’Assommoir. De fato, o “andamento”, os detalhes dos dois con-
flitos se assemelham, tanto mais que são provocados por idêntico
motivo, o ciúme, mas Aluísio tem a seu favor uma circunstância:
os rolos como o que ele descreve eram freqüentes nos cortiços
do Rio de Janeiro da época, segundo veremos logo adiante, tor-
nando-se até certo ponto necessário para a movimentação e a
cor local do romance. Outra identidade de episódios, e este sim,
perfeitamente dispensável, constituindo a reprodução quase ser-
vil de uma passagem de L ’Assommoir: Piedade, muito bêbada,
entregando-se, alta noite, ao Pataca e espreitada pela filha, re-
corda Gervaise com Lantier surpreendidos por Naná. Somente
neste ponto, sem dúvida, é que a questão do “plágio” podería
encontrar alguma justificativa. No entanto, o próprio Pardal
Mallet acaba reconhecendo que essa e outras semelhanças, no
confronto geral das duas obras, não ganham relevo, embora por
isso mesmo lhe pareçam menos perdoáveis — Aluísio não preci-
sava valer-se delas para maior interesse do romance. É que “o
moço brasileiro” vivia muito identificado com Zola e já falara
em escrever O Capital quando lhe chegara a notícia de que o
romancista francês estava trabalhando em L ’Argent.5
Segundo Artur Azevedo, conforme já vimos acima, Aluísio
buscara a experiência direta do que descreve n’O Cortiço. Pardal
Mallet no-lo confirma. “ Os primeiros apontamentos para O Cor-
tiço — diz ele — foram colhidos em minha companhia em 1884,
numas excursões para ‘estudar costumes’, nas quais saíamos
disfarçados com vestimenta de popular — tamanco sem meia,
velhas calças de zuarte remendadas, camisas de meia rotas nos

5 N um artigo intitulado “ O Cortiço” , no suplem ento literário de


O Jornal de 19 de julho de 1953, Fernando Burkinski — nom e que des-
conhecem os inteiram ente — estabelece curiosas correlações entre o ro-
mance de A luísio e o G erm inal de Zola.

128
cotovelos, chapéus forrados e cachimbo no canto da' boca”. Mas
depois, à maneira de Zola — continua Pardal Mallet — Aluísio
começou a enxertar coisas de sua imaginação ou reminiscências
de leituras nessa experiência real, vindo a recair na “falsidade
dos pseudo-naturalistas”. Aponta ainda algumas incongruências
no romance: João Romão não podia tornar-se comendador e
visconde sem o auxílio de um potentado da colônia, e nas cir-
cunstâncias em que fora colocado não conseguirla amealhar
mais do que uns cem contos de réis. A par dessas e outras res-
trições, ressalta os méritos do romance, “livro desse moço que
tem tido a perseverança de viver exclusivamente das letras”,
“estudo da vida nas baixas camadas da nossa sociedade”, em
que o autor começa “a encarar os problemas sociais diretamente
articulados com a política”, “assustando Karl Marx”.
No dia 9 de junho, no Correio do Povo, Medeiros e Albu-
querque, na transcrição de uma correspondência para o Diário
Popular de São Paulo, alude ao diálogo que surpreendera, há
dias, na Garnier: um cidadão dizia ao outro que já lera O Ho-
mem e ficara farto. Medeiros acha que talvez dissesse o mesmo,
pois não gostava de O Homem, mas O Cortiço era infinitamente
superior e merecia-lhe todos os elogios.
No decorrer de maio e junho continuam a aparecer comen-
tários sobre o romance. Em A Cidade do Rio (23 de maio) Con-
tarini Fleming — talvez pseudônimo de José do Patrocínio — ,
depois de considerações em torno das poesias de Murat, diz:
“Abandonemos o banho de ideal em que nos imergiram as Ondas
e chafurdemo-nos um pouco no lodo que Aluísio Azevedo
revolveu ao descrever O Cortiço”. Vendo no romance, antes de
tudo, uma apoteose do “ato genesíaco”, descobre em Aluísio um
poeta, embora este procure sempre subjugar a imaginação. Não
encontra originalidade na idéia da transformação da menina em
mulher, pois Zola em La Joie de Vivre trata do mesmo assunto
de maneira mais verossímil e natural; e julgando excelentes as
descrições da labuta n’O Cortiço, arremata o artigo com uma

129
grave ressalva: não tendo o romancista aludido à participação de
João Romão em sociedades abolicionistas e fazendo intervir uma
delas no desfecho do livro, para recompensar as virtudes do
labrego canalha e ladrão, veio de algum modo irrogar a todos os
que trabalharam pela santa causa um labéu contra o qual o autor
do artigo (“abolicionista que somos”) protesta energicamente.
Testemunhando a veracidade do ambiente e das cenas retra-
tadas por Aluísio, encontramos em jornais da época reclamações
contra a promiscuidade dos cortiços, onde se açoitam malandros.
E melhor ainda, no dia 24 de maio, na mesma A Cidade do Rio,
na secção Atualidades, Bento Barbosa assinava uma ilustração,
figurando tremendo rolo num cortiço, tal como aquele provo-
cado por Rita Baiana e Piedade.
Não terminaremos este artigo sem uma observação. A prin-
cipal qualidade do romance de que nos ocupamos foi a com-
parsaria nova que ele trouxe para a ficção brasileira. Artur Aze-
vedo viu com muita justeza, quando lhe acentuou o caráter
“exotico”. O leitor ia encontrar nessas páginas uma humanidade
desconhecida e estranha, bem diferente daquela que até então
figurara nos romances de Alencar, Macedo, Machado e dos pró-
prios naturalistas. Em 1876, quatorze anos antes, Zola fez a
mesma revelação na França com L ’Assommoir, e aqui está um dos
pontos de contacto entre os dois livros, em que não incidiu
Pardal Mallet. O público francês naquela época, como no Brasil
de 1890, ainda não conhecia “o povo”. Herói de romance
era nobre, burguês ou camponeses mais ou menos idealizados
(os pastores de George Sand correspondiam aos índios e serta-
nejos de Alencar e Bernardo Guimarães). No prefácio de L ’As-
sommoir Zola proclamava ter feito le premier roman sur le peuple
qui ne ment pas et qui ait l’odeur du peuple. Precisamente em
1890, com a abolição dos escravos, a sociedade brasileira co-
meçava a transformar-se, ganhando uma nova estrutura, em que
se corporificava aquilo que chamamos de “proletariado”. O Cor-
tiço, cuja trama se desenrola nos últimos anos do Império, pre-

130
nunciava os problemas de nossa evolução social. Mas dentro de
cinco anos, n’0 Livro de uma Sogra, Aluísio enveredava por
outro rumo. E depois viria o silêncio definitivo. A tradição de
O Cortiço só seria retomada pelos nossos neo-naturalistas de
1932.

Os Goncourt e um Escritor Brasileiro

Estudante em São Paulo, em 1890, Escragnolle Dória leu,


com o maior interesse, os três primeiros volumes do Journal, dos
irmãos Goncourt, que acabavam de aparecer. Como se sabe,
tendo perdido o irmão Jules, com quem vivia na mais estreita
comunhão de sentimentos, escrevendo juntos como se fossem
um só cérebro e uma só sensibilidade, Edmond continuou sozi-
nho o diário e resolveu publicar os três primeiros volumes ainda
em vida. Ora, Escragnolle Dória, que tinha também o coração
ferido pela morte recente de um irmão, Félix Emílio, pôde me-
lhor avaliar a dor que Edmond experimentara com o desapareci-
mento de Jules e daí o seu desejo de corresponder-se com o
Goncourt sobrevivente. Escritor bilingüe, tendo composto três
romances em francês, Coeur d’Ange, Soeur Louise e Mathilde
Mormand, este último dedicado a Edmond, resolveu escrever-lhe
uma carta, enviando-lhe alguns capítulos de Soeur Louise. Ao
contrário dos escritores brasileiros, os franceses, mesmo quando
atingiram grande celebridade, não deixam de responder cartas
e daí a missiva de Edmond de Goncourt que Escragnolle Dória
veio a receber em São Paulo, precisamente quando concluía seu
curso jurídico. Aqui a reproduzimos em tradução portuguesa:
8 de outubro de 90. Meu senhor e caro confrade. O conhe-
cimento íntimo que o senhor tem da obra dos dois irmãos, a
especie de dedicação que testemunha pela prosa e a pessoa dos

131
mesmos me faz aceitar com verdadeira gratidão a dedicatória
que consagrou ao vivo e ao morto. Queira, senhor, receber os
meus sentimentos mais simpáticos e acredite que fiquei sensibi-
lizado por encontrar tão longe da França um admirador tão
fervente e piedoso. Ed. de Goncourt”.
Muito naturalmente alvoroçado com a honra da resposta,
Escragnolle Dória escreveu outra carta a Edmond, enviando-lhe
alguns recortes de jornais do Brasil sobre os Goncourt e a defesa
que fizera da Fille Elise, peça extraída do romance do mesmo
título por Jean Ajalbert e que, representada por Antoine, no
Odeon, em Paris, sofreu muitos ataques. Remeteu-lhe juntamente
grandes e magníficas folhas secas da Floresta Amazônica, ouro e
veludo, pedindo-lhe para depô-las sobre o "túmulo fraterno”,
no cemitério Montmartre.
E desse fato Edmond nos dá conta no Journal, a 27 de abril
de 1891: “Recebi neste mês uma oferta tocante; recebi, num
grande envelope, folhas que parecem prateadas e douradas, fo-
lhas colhidas na Floresta Amazônica por um entusiasta literário
do Brasil que mas envia para colocá-las no túmulo do meu
irmão”.
E logo depois Escragnolle Dória recebia uma carta de
agradecimentos datada de maio de 1891: “ Senhor, fui tocado no
fundo do coração por essas flores piedosamente colhidas pelo
senhor, essas flores magníficas de ouro e prata, destinadas a
serem colocadas sobre o túmulo do meu irmão e estou justa-
mente em vias de ali depositá-las. Não sei ainda como agradecer
a simpatia devotada que encontro no senhor. Isto quer dizer que
lhe dou plena autorização para publicar Soeur Philomène em
português. Queira ainda uma vez, caro senhor, aceitar todos os
meus agradecimentos pela sua dedicação à memória do morto e
seu ardor na defesa do vivo”.
Na Revista Brasileira, de 1896, de onde extraímos estas
informações, Escragnolle Dória, observando um pequeno engano
da parte de Edmond de Goncourt, pois nunca esteve na Ama-
zonia, declara que daí em diante continuou a corresponder-se
com o escritor francés.
O interessante é que, pouco antes de escrever a primeira
carta a Escragnolle Doria, Edmond de Goncourt parecia ter
uma idéia bem confusa do Brasil, como depreendemos desta
anotação de 14 de setembro de 1890, no Journal: “Saint-Gratien.
O jovem Benedetti, que passou dois anos no Brasil como adido
de Legação, acaba de sentar-se ao meu lado e se põe a conversar
sobre a febre amarela, essa horrível moléstia que, mesmo quando
não é epidêmica, continua a matar em Buenos Aires (o grifo é
nosso) não menos de vinte e cinco pessoas”.
É de esperar-se, no entanto, que depois que começou a
corresponder-se com Escragnolle Dória fosse o Goncourt infor-
mado de que Buenos Aires não era precisamente no Brasil.

O Fracasso de uma Sociedade Literária em 1890

O fracasso das agremiações literárias no Brasil já constitui


uma tradição.
Vamos relembrar aqui a tentativa malograda da fundação
de uma dessas sociedades logo nos primeiros dias da República.
A 5 de maio, Pardal Mallet iniciou no Correio do Povo uma
série de artigos chamando a atenção para a necessidade de
fundar-se no Rio uma sociedade capaz de defender os direitos
dos escritores. Estávamos na República; com a mudança do
regime abria-se a oportunidade também para as novas iniciati-
vas. Ora, no Brasil não existira durante a Monarquia uma
lei regulando os direitos autorais. Não somente podia-se publi-
car a obra de qualquer autor brasileiro sem pagar direitos,

133
como traduzir-se a obra de qualquer autor estrangeiro nas mes-
mas condições. Quando Dom Pedro II esteve pela primeira
vez em Lisboa os escritores e editores portugueses quiseram
dirigir-se a ele a fim de pedir-lhe apoio para a assinatura de
um tratado literário entre os dois países; mas desistiram saben-
do que Herculano era contrário ao pagamento de direitos auto-
rais e o Imperador se louvava por ele nesse assunto. Herculano
achava que o Estado é que devia dar os meios de subsistência
aos escritores e que os direitos autorais só serviam para trazer
o enriquecimento de escritores medíocres de grande penetração
popular, como acontecia com Ponson du Terrail, Xavier de
Montépin e outros, na França.
Em artigo de 9 de maio de 1890 Pardal Mallet dizia:
“Aqui no Rio existem dez diários que publicam pelo menos um
romance-folhetim traduzido. Não falta, porém, quem explore,
por meio de transcrições, os jornais portugueses. Corta-se tam-
bém com a maior sem-cerimônia uma poesia ou um conto de
autor brasileiro publicado em qualquer jornal e estampa-se
o mesmo em outro jornal ou revista sem dar a menor satis-
fação ao autor. Os contos de Coelho Neto e Artur Azevedo
são reproduzidos em dezenas de jornais em todo o Brasil sem
que eles recebam um níquel por isso. Enquanto isso a família
de Fagundes Varela está na miséria. Até agora nada se sabe
sobre o pedido de pensão da viúva de Macedo. E a viúva de
José de Alencar costuma comprar um camarote para assistir a
O Guarani”.
Com esse e outros artigos Pardal Mallet mostrava a urgên-
cia de fundar-se uma sociedade literária geradora dos direitos
dos escritores e apelava para os confrades para fazerem causa
comum com ele. Os artigos tiveram um revide antipático na
Gazeta de Notícias. Dizia o jornal de Ferreira de Araújo que
entre as diversas coisas que passaram à categoria de axiomas
entre nós figuram as seguintes: a) a perfeição do nosso Corpo

134
de Bombeiros (isto se dava em 1890; hoje ninguém mais pro-
clama a perfeição do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal;
todos lhe apontam as lamentáveis deficiências); b) a habitual
hospitalidade brasileira; c) a pujança da nossa natureza; d) a
grandeza do Hospital de Misericórdia; e) a falta de proteção às
vocações literárias que se estiolam num meio burguês e mer-
cantil.
Quanto a essa falta de proteção a Gazeta de Notícias
dizia haver um grande exagero. Os escritores a reclamavam com
frequência mas não tinham razão para tanta grita. E citava
exemplos de colaboradores muito bem remunerados no referido
jornal. Machado de Assis, por exemplo, ganhava cinqüenta mil
réis por conto publicado, quantia que, convenhamos, era bem
vultosa para a época. Cinqüenta mil réis em 1980 correspon-
dia a dois mil cruzeiros nos dias atuais, e se tivéssemos outro
Machado de Assis, hoje, acreditamos que nenhum jornal ou
revista lhe pagaria tanto por um conto. Com a ressalva de
modéstia à parte, a Gazeta de Notícias dizia ter feito a verda-
deira revolução nessa matéria. Além de pagar cinqüenta mil
réis a Machado de Assis por um conto, pagava habitualmente
de vinte e cinco a trinta mil réis por crônica e muitos redatores
já ganhavam por secções duzentos e cinqüenta a quinhentos
mil réis. Não só com a Gazeta, porém, se dava isso. Em São
Paulo tínhamos o exemplo eloqüente de um jornal pagando a
Filinto de Almeida trezentos mil réis para fazer apenas uma
secção literária semanal. Referia-se ainda aos concursos literá-
rios de que a Gazeta de Notícias fora pioneira entre nós e arti-
culava todos esses argumentos para concluir: “Se a Literatura
não encontrar estímulo nessas coisas então é o caso de ofere-
cer-lhe casa, comida, roupa lavada e engomada, charutos, di-
nheiro para bonde e outras coisas de que ela diga precisar”.
O artigo teve a resposta pronta de Pardal Mallet no Cor-
reio do Povo. Diga-se de passagem que Pardal Mallet tinha
índole de polemista e discussões desse gênero iam muito bem

135
com o seu feitio. Começa ele dizendo que só se fala em litera-
tos e em valorização do trabalho literário no momento. O pro-
blema é outro. A questão consiste não em dar dinheiro a litera-
tos, mas sim em desenvolver os meios de produção literária.
Além disso a Gazeta de Notícias, citando os escritores bem
remunerados, só se referia a nomes já consagrados como Ma-
chado de Assis, Olavo Bilac, Artur Azevedo e outros. Para os
que ainda não tinham nome a luta era dura; tinham de con-
tentar-se por muito favor em ver os seus artigos publicados
gratuitamente. A sociedade que se visava fundar deveria pre-
tender os direitos dos escritores em geral, novatos e consagra-
dos, abrindo para todos oportunidade de ganhar dinheiro com
o seu trabalho literário. Quanto aos concursos promovidos pela
Gazeta de Notícias, achava tratar-se de um processo condenado.
Em Literatura não vale esse processo de colégio — escrevia
Pardal Mallet; aqui não há primeiros, mas os que são artistas
e os que não o são. Para desenvolver os meios de produção
literária era preciso os escritores se reunirem em sociedade e
obterem do governo um decreto estabelecendo a obrigatoriedade
do pagamento de direitos autorais.
Como se vê, Pardal Mallet não tinha razão em condenar
os concursos; o processo, longe de ser nocivo, longe de asse-
melhar-se a um processo de colégio, é um meio eficaz para
estimular vocações literárias, e o que a Gazeta de Notícias
realizou pela primeira vez no Brasil na última década do século
passado só veio frutificar em nossos dias, quando se multipli-
cam por toda parte os concursos literários.
Afinal os esforços de Pardal Mallet deram algum resul-
tado. No dia 15 de maio o Correio do Povo noticiava a fun-
dação, a 7 do corrente, da Sociedade dos Homens de Letras
e reproduzia os seus estatutos, que já tinham sido redigidos.
Para o leitor de hoje ter uma idéia mais ou menos precisa dos
objetivos da sociedade aqui estampamos alguns artigos desses
estatutos:

136
Artigo l.°, parágrafo l.° — Conseguir do governo brasi-
leiro uma lei regulando os direitos editoriais.
Parágrafo 2.° — Socorrer, a juízo da diretoria, os que sen-
do reconhecidamente homens de letras caírem na indigência,
ou às suas famílias, em caso de morte.
Parágrafo 3.° — Influir para a publicação de obras de re-
conhecido mérito escritas pelos sócios.
Artigo 3.° — Estabelece as condições para a formação de
um fundo social.
Artigo 5.° — Estabelece direitos, entre os quais, no pará-
grafo 2.°, o de encarregar-se a sociedade da cobrança dos ho-
norários dos sócios.
Os outros itens dos estatutos cogitam das assembléias, dos
deveres da diretoria, dos secretários, dos delegados, e não os
reproduzimos aqui para não tornar enfadonho este artigo. A
comissão que assinava os estatutos era formada pelos seguintes
escritores: Valentim Magalhães, Aquiles Varejão, Olavo Bilac,
Aluísio Azevedo, Artur Azevedo. A notícia, bastante circuns-
tanciada, dava a diretoria já constituída da seguinte forma:
Ferreira de Araújo, Machado de Assis, José do Patrocínio, Emí-
lio Rouède, Alcindo Guanabara e Pardal Mallet.
Deve-se assinalar o fato de Ferreira de Araújo, o diretor
da Gazeta de Notícias — jornal que dissera a propósito da
sociedade o que já vimos acima — , colocar-se à frente da dire-
toria.
Logo depois o mesmo jornal estampava o seguinte tele-
grama que Pardal Mallet recebera de São Paulo: “Reunidos
hoje numerosos homens de letras e belas-artes para fundar uma
sociedade de defesa dos seus interesses e dos direitos autorais
deliberaram telegrafar à Sociedade dos Homens de Letras do
Rio, participando a instalação de uma sociedade congênere em
São Paulo — Almeida Nogueira, presidente; Filinto de Almei-
da e Américo de Campos, secretários”.

137
Como se vê a idéia de Pardal Mallet encontrou logo pron-
ta repercussão em São Paulo, mas infelizmente o exemplo não
foi imitado em outros estados.
A 30 de maio o Correio do Povo noticiava a primeira reu-
nião da Sociedade dos Homens de Letras, durante a qual fora
aprovada a redação de uma mensagem a ser enviada ao Governo
Provisório.
No entanto, o mais que Pardal Mallet conseguiu foi uma
audiência de Benjamin Constant durante a qual este declarou
não ser contrário à promulgação de uma lei regulando os direi-
tos autorais, estando disposto a estudar o assunto e a nomear
uma comissão de homens de letras para redigir o projeto. Será
preciso acrescentar que tudo não passou de projeto e que a
Sociedade dos Homens de Letras não foi além de um belo
sonho?

João Ribeiro e os “Enviados Especiais”

Em julho de 1890, Olavo Bilac, muito jovem ainda, alian-


do aos seus êxitos de poeta uma extraordinária atividade na
imprensa carioca, na qual escrevia mais de um artigo diário,
partia para a Europa como representante d’A Cidade do Rio,
o jornal de José do Patrocínio. Bilac — já então — era um nome
conhecido em todo o Brasil. Havia publicado um livro de ver-
sos e encantava pelo ecletismo do seu espírito, a facilidade com
que abordava os mais diversos gêneros, indo do conto à crônica,
desta a fantasias ou ao comentário humorístico (muito em voga
na época), ora assinando o próprio nome, ora servindo-se de
pseudônimos e iniciais em que quase ninguém deixava de iden-
tificá-lo.
Enviar um jornal representante à Europa, naquele tempo,

138
não era coisa comum e seria mesmo uma das primeiras vezes
que o fato se verificava. Coubera a Patrocínio essa iniciativa.
Muitos jornais do Rio e de São Paulo possuíam, certamente,
correspondentes residindo na Europa, sobretudo na França e em
Portugal. As Crônicas de Paris ou Cartas de Lisboa eram co-
muns em nossa imprensa desde 1870, mais ou menos. A Gazeta
de Notícias, sob a orientação moderna e inovadora de Ferreira
de Araújo, contava entre os seus correspondentes europeus os
nomes gloriosos de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Nin-
guém ignora que as Cartas da Inglaterra, os Ecos de Paris e as
Cartas Familiares foram escritas pelo Eça para esse jornal, em
cujas colunas as crônicas de Ramalho Ortigão, hoje quase to-
das reunidas em livro, tinham um vasto público. Promover, po-
rém, a ida de um “enviado especial” ao Velho Mundo consti-
tuía um acontecimento de outro alcance.
Por uma questão de emulação ou porque Ferreira de Araú-
jo, espírito extraordinariamente empreendedor, já tivesse em
mira inovações dessa ordem, mal Bilac embarcava para a Euro-
pa, Pardal Mallet, outro escritor que se dispersava em crônicas
e artigos na imprensa carioca, era enviado pela Gazeta de Notí-
cias à Argentina, a fim de colher impressões sobre o movimento
revolucionário que acabava de perturbar aquele país. Ao mesmo
tempo, um terceiro jornal despachava um redator, Emanuel
Carneiro — nome hoje inteiramente desconhecido para nós — ,
a fim de observar de perto a vida política do Uruguai e da
Argentina.
O que atualmente passaria despercebido por estar dentro
do ritmo normal da nossa imprensa, naquele ano distante de
1890 causou sensação e suscitou comentários. João Ribeiro, o
admirável João Ribeiro, na primeira etapa de sua longa carrei-
ra, mas já historiador e filólogo consagrado, abalou-se a discutir
o fato, numa de suas crônicas no Correio do Povo, do Rio de
Janeiro, e a discuti-lo com certa acrimonia, submetendo as per-
sonalidades de Bilac e Pardal Mallet a uma crítica severa.

139
A crônica figura no número de 28 de agosto de 1890 do
referido órgão, onde a assinalamos, na Biblioteca Nacional, e não
sabemos se está incluída no material compilado por Múcio
Leão para a edição das obras completas de João Ribeiro.
“Três escritores ilustres dessa geração nova” — observa
o autor da Colméia — “eterna como a primavera tropical, fo-
ram enviados pela imprensa a visitar climas estranhos, estudar
o cansaço do Velho Mundo em agonia (o grifo é nosso) e ave-
riguar a filosofia revolucionária dos países novos da nossa Amé-
rica selvagem. Não sei qual desses três nomes ocupará um
grande lugar na história da literatura brasileira. Nenhum, ao
que me parece”.
Aqui, como se vê, a crônica errou em parte. Um dos nomes
ficou; justamente o desse Bilac, que João Ribeiro reconhecia
ser o que mais se avantajava aos outros no trio, embora lhe
apontasse falhas essenciais, não o julgando um espírito capaz
de oferecer ao público brasileiro uma imagem fiel da realidade
européia da época. Depois de um requisitorio contra o futuro
autor de O Caçador de Esmeraldas, concluía: “Através do mo-
vimento rítmico do prosador que encobre o excelente poeta, sen-
te-se por vezes o desespero de sua vaidade em erupção. Daí a
impossibilidade de ser um observador” .
Quanto a Emanuel Carneiro não podia dar um juízo seguro
por não conhecê-lo. Nós também não sabemos quem foi esse
cidadão, cujo nome a História não guardou. Talvez possuísse
algum mérito, mas tão pequeno que acabaria imerso na obscuri-
dade. Tudo é possível no Brasil.
Em seguida João Ribeiro passava a ocupar-se de Pardal
Mallet. Aqui o requisitorio se tornava mais impiedoso. “É o mais
impopular dos literatos populares. Ao passo que se populariza
pelas gravatas, impopulariza-se pela prosa. A gravata e a lin-
guagem no entanto são bem semelhantes: rubras, sanguíneas,
singulares e épatantes”. E mais adiante: “O rubro da lingua-
gem traduz, porém, o paradoxo ultralógico. . . Pardal Mallet
quer sempre filosofar”.
João Ribeiro considera esse o maior erro do escritor. Mallet
encanta pela extravagância e a inclassificação. Todo mundo o
lê e depois o condena, mas no dia seguinte recomeça a lê-lo. Aí
está o segredo do seu mérito. Explora a curiosidade, a bisbilho-
tice de todos “em querer ver o inverossímil, em beber às ocultas
uma mistura de álcool que ninguém em público confessa bebê-la”.
O cronista prossegue no mesmo tom, considerando o maior
equívoco de Pardal Mallet ter abraçado a Filosofia, quando esta
é incompatível com a nula ciência. Vê assim, no caso, o drama
de um talento hercúleo, em luta com uma grande pobreza de
cultura. Mallet faz afirmações absurdas sobre todos os assun-
tos. Seria melhor que não filosofasse tanto. Seus recursos lite-
rários, seu talento seriam suficientes para mais que um brilhante
folhetinista, mas ele se estragava pelo desejo de querer superar
as próprias possibilidades.
A crônica saiu, como já dissemos, em 28 de agosto. Pardal
Mallet achava-se na Argentina na ocasião. Com a sua índole de
espadachim, não era ele homem para tolerar sem revide seme-
lhante ataque. A polêmica, a disputa, o bate-boca constituíam
o seu clima natural; e chegava até, por vezes, a vias de fato
nesse terreno. É bem conhecida a história do seu duelo com
Bilac. João Ribeiro viu-se acusado de haver publicado a crítica
na ausência de Mallet — como numa manobra de cautela que
não lhe seria nada lisonjeira.
Diante disso, qual a sua atitude? Reproduz a crônica no
mesmo jornal a 9 de setembro, quando Pardal Mallet já tinha
regressado ao Rio, e em condições de dar-lhe troco imediato.
Reproduzindo-a, fazia preceder de uma nota, dizendo serem
acusações como aquela um sintoma triste da nossa cultura. “A
nomeada literária — considerava ele — forma-se de um misto
de mérito e terror. Onde se lê nos jornais ‘um gênio’, leia-se
‘um sujeito que mete medo’. O papão e o terror são os melho-

141
res escritores desta terra. Estranha imbecilidade!!!” —, con-
cluía desabusadamente, com três pontos de exclamação. Não
conseguimos localizar em qualquer jornal da época alguma ré-
plica de Pardal Mallet. Mas o episódio que acabamos de recor-
dar mostrar-nos como João Ribeiro, famoso pela índole pacata,
sabia tornar-se por vezes aguerrido e combativo. Aliás, mais
tarde, daria ele muitas outras provas dessa combatividade.

Floriano e os Intelectuais

Quando se proclamou a República, muitos dos escritores


da nova geração, que tinham participado da luta antimonárqui-
ca ou revelado simplesmente simpatias pelo regime republicano,
conseguiram obter empregos públicos, dando assim relativa aco-
modação às respectivas situações econômicas, até então precá-
rias. Foi o que aconteceu com Coelho Neto, Olavo Bilac, Pardal
Mallet e Aluísio Azevedo, entre outros colocados pelo gover-
nador Portela em funções burocráticas no Estado do Rio. Como
nos informa Coelho Neto, em Fogo Fátuo (p. 338), muita gente
não vira com bons olhos a incursão dos literatos na burocracia,
dada a fama de boêmios que possuíam, além de a Literatura já
constituir por si só motivo para desabonar qualquer pessoa em
funções sérias e de responsabilidade, na época.
Com o golpe de estado, “abatido o tronco que era Deodo-
ro” — escreve Coelho Neto, no livro citado — “caíram com
ele vários ramos, um dos quais o governador Portela, ramo a
que se prendiam varas, consideradas parasitas” — isto é, os
escritores jovens que há pouco citei. Deixaram os cargos num
ambiente carregado de desconfiança; não faltava quem imagi-
nasse esses boêmios, freqüentadores turbulentos de cafés e bo-
tequins, gente capaz de tudo. “Atribuíam-lhes dilapidações, ne-

142
gociatas, arranjos e aforçuravam-se renhidamente em devassas,
numa coscuvilhagem esmiuçadora”.
Nada se descobriu, mas a desconfiança permaneceu, e quan-
do veio o sítio, o caso do Acre e a Revolta da Armada, era
natural se tornassem suspeitos os beneficiados por uma situação
que acabava de cair. Por outro lado, Bilac, Pardal Mallet, Neto,
Luís Murat, Aluísio tinham razões para não simpatizar com
um governo que os pusera na rua. Isso, sem falar na possibili-
dade de convicções liberais bastante enraizadas para os levar
a erguer-se contra Floriano. O fato é que o sítio provocou ver-
dadeira debandada no grupo desses escritores jovens, determi-
nando na vida boêmia de que faziam timbre uma ruptura, logo
transformada em morte completa.
Entretanto, um dos boêmios — o mais típico de todos —,
o nunca sobejamente decantado Paula Ney não foi preso e nem
precisou fugir. É o que verificamos na biografia romanceada
Fogo Fátuo, escrita por Coelho Neto. “Neiva [nome com que
Paula Ney figura no livro] queixava-se do vácuo que fizera a
Revolta, dispersando o grupo solidário. ‘Tenho a impressão de
haver explodido entre nós uma granada’. O Patrocínio enterra-
do em Sepetiba. Pardal refugiado em Vassouras. Luís Moraes e
Fortúnio [Murat e Guimarães Passos] depois de grandes riscos,
haviam conseguido passar à Argentina, e, em Buenos Aires,
arrostavam vida miserável, comendo (quando comiam) o pão
negro do exílio”.
Coelho Neto mostra-nos Paula Ney sozinho, no Rio, a sen-
tir a nostalgia dos amigos. Mas por que ficara? Porque não
participava da mesma convicção política dos amigos. Ney era
florianista. E Ciro Vieira da Cunha, em nota n.° 1, no seu
livro recente, No Tempo de Paula Ney, esclarece-nos: “Ney
foi sempre florianista. Admirador do Major, dele recebeu a
graça de uma colocação. Agradecido ao seu benfeitor, a ele
soube o boêmio ser fiel em todos os instantes. E as provas de

143
sua atitude — algumas pelo menos — guardam-nas os jornais
da época: discursos de louvor ao sucessor de Deodoro”.
Circunstância curiosa, na minha opinião, é o fato de Coe-
lho Neto não se haver referido a esse detalhe do emprego na
aludida biografia. Não nos diz também o motivo pelo qual Ney
não partira na hora da debandada geral, como não lhe põe na
boca nenhuma frase em defesa de Floriano. De certo, as diver-
gências políticas não abalariam em nada a velha amizade que
os unia aos companheiros: mas era natural tivessem terríveis
discussões e quase nada distinguimos, nesse sentido, na biogra-
fia (ou romance) em questão. O que se vê é Paula Ney furioso,
quando depois de ter concorrido, juntamente com outros ami-
gos, para que Guimarães Passos não fosse recrutado como sim-
ples soldado e lhe dessem uma patente de alferes, vem a saber da
atitude do poeta, aproveitando-se das regalias do posto para ade-
rir aos revoltosos e abrigar-se a bordo do Aquidaban.
Orientado, naturalmente, pela leitura de Fogo Fátuo, João
Neves da Fontoura cometeu o engano de, no discurso de recep-
ção, na Academia de Letras em 1937, considerar Paula Ney
adversário implacável de Floriano — engano já corrigido por
Ciro Vieira da Cunha no livro citado. Também Aluísio perma-
necera no Rio no período do sítio, sem que dele, no entanto,
se saiba tivesse admiração por Floriano.
De todos, o antiflorianista mais ardoroso foi Pardal Mallet.
Com sua índole quixotesca, o pendor pelos duelos, as maneiras
de espadachim, desenvolveu, na imprensa e em palestras pelas
mesas de café, uma campanha acirrada contra o Marechal. Já
no governo de Prudente de Morais, quando prosseguia nessa
atividade política, foi vítima de uma tremenda agressão a soco.
Ter-lhe-iam magoado os pulmões, já feridos pela tuberculose,
concorrendo assim para a morte que o levou, dentro de poucos
meses, em Caxambu.
Como quase todos os escritores naturalistas, Raul Pom-
péia era republicano. Até o 15 de Novembro não tivera ação

144
militante na política. O quadro que nos deu da partida da Fa-
milia Imperial para o exílio, em admirável página impressio-
nista, “Uma noite histórica”, está longe de ressumar ódio, evi-
denciando a objetividade da melhor reportagem.
Quando viu, porém, as forças reacionárias começando a
mobilizar-se contra o novo regime, não hesitou em formar na
vanguarda dos florianistas, reconhecendo no autoritarismo do
Marechal o único meio de salvar a República. Os liberais, como
Rui Barbosa, passando nessa ocasião, embora indiretamente, a
fazer o jogo dos restauradores, tornavam-se, na realidade, rea-
cionários, enquanto um monarquista, como Eduardo Prado —
segundo já observamos -— assumia o papel de liberal. Eram as
variações das perspectivas, o jogo de cambiantes, comum na
história política de todos países em todos os tempos.
Raul Pompéia preferiu não sacrificar sua fé republicana ao
liberalismo que envolvera e norteara a campanha pela conquis-
ta do 15 de Novembro. Antes de tudo era preciso que a Re-
pública permanecesse, já que o regime em si condicionava a
idéia liberal, superada transitoriamente pelas exigências de um
período anormal, de uma fase de consolidação, mas não atingi-
da na essência. Assim se justificava a atitude de florianistas
cujo liberalismo sempre foi proverbial, a exemplo de Medeiros
e Albuquerque.
Aqui é o caso de perguntarmos: seria Raul Pompéia, com
suas tendências naturalistas, seus ímpetos revolucionários, um
liberal? O traço vivo de passionalismo, a ressaltar-lhe do perfil
psicológico, inclina-o antes para uma família bem diferente: a
dos extremados e dos fanáticos. Sente-se-lhe certo parentesco
com Saint-Just. Além disso, devia ele procurar na atividade mi-
litante uma forma de sublimação para o espírito atormentado
de recalques. Há um mistério ainda não suficientemente pes-
quisado na vida psicológica do autor d’0 Ateneu. Vendo em
Floriano Peixoto a concretização do ideal político a que preci-
sava entregar-se de corpo e alma para restabelecer a dinâmica
interior — que a arte não chegara a equilibrar — lançou-se
desabridamente à luta.
Em discursos nas manifestações públicas, nas colunas dos
jornais pôs-se a defender, com o maior ardor, a causa florianis-
ta. Um círculo de inimigos envolveu-o. Ora, Raul Pompéia não
tinha temperamento para resistir, sem traumatismos íntimos, à
ofensiva dos adversários. A primeira questão com Olavo Bilac,
de que resultou um duelo meio caricato, abalou-o consideravel-
mente.
Morto Floriano, o autor d’0 Ateneu prossegue na campa-
nha, pois o florianismo não morrera. E nos funerais do Mare-
chal, no Cemitério São João Batista, pronuncia, cheio de arreba-
tamento, na presença de Prudente de Morais, então Presidente
da República, o discurso audacioso que lhe acarretou a demis-
são do cargo de diretor da Biblioteca Nacional.
Seguiu-se a questão com Luís Murat, agravando um pro-
fundo desespero — de origem e natureza muito complicados —
a que devemos atribuir-lhe o suicídio. Evidentemente, não foi
a política a causa determinante desse fim trágico.
Homem de sensibilidade enfermiça e delicada, legítimo ar-
tista, Raul Pompéia só na arte podería resolver seu drama
íntimo. A paixão política, no caso, já envolvia a insatisfação
do artista, incapaz de realizar-se no terreno que lhe era próprio.
E não é de estranhar o triste desfecho.

Uma Grande Época Literária em Ouro Preto

Na última década do século passado a “ Imperial Cidade”


da Província de Minas tornou-se o centro de grande ebulição
intelectual. Carlindo Lellis situa essa “idade de ouro” entre 1890
e 1897. Fora, por assim dizer, o canto de cisne da antiga Vila

146
Rica, que já nos fins do Século XVIII vivera outra época lite-
rária famosa: a dos poetas inconfidentes.
Decidida a transferência da capital mineira para o planal-
to de Curral d’El Rei, que recebera o nome de Belo Horizonte,
começaria a decadência de Ouro Preto, decadência que a pre-
servou das transformações do progresso, deixando nela intacto
o passado e tornando-a, na admirável harmonia da sua decrepi-
tude, um monumento histórico.
Para o esplendor cultural da década de 90 concorreram,
de maneira decisiva, dois acontecimentos da mais alta impor-
tância em nossa história: a Proclamação da República e, princi-
palmente, a Revolta da Armada.
Com a República, alguns intelectuais mineiros, que desem-
penhavam funções políticas, caindo no ostracismo, retiraram-se
para a referida cidade. Foi o que se deu, por exemplo, com o
historiador Diogo de Vasconcelos.
Formando-se em Direito pela Faculdade de São Paulo em
1889, poucos dias antes da queda do regime, Afonso Arinos
resolve também fixar residência em Ouro Preto. Monarquista,
teria ele, decerto, logo se encaminhado na política, não fora o
advento da República. Nessa ocasião já lá também se encon-
trava outro intelectual, este poeta e republicano: Augusto de
Lima.
A 13 de abril de 1892 desembarca na velha cidade um
moço pálido, de barba nazarena, trazendo na bagagem o título
de nomeação para diretor da Secretaria de Finanças do Estado
de Minas: era Raimundo Correia. Passou a primeira noite em
um hotel, mas no dia seguinte bateu à porta da residência de
Augusto de Lima, dizendo-lhe: — “Venho para a tua casa.
Manda buscar a minha mala”. E ali ficou vivendo, como se
pertencesse à família. Supersticioso, Raimundo fizera uns ver-
sos em que manifestara o horror de haver chegado à cidade
numa sexta-feira, dia 13, tendo-lhe dado o dono do hotel o
quarto n.° 13. Mas da profunda impressão que causou no espí-

147
rito do poeta a atmosfera brumosa e melancólica de Vila Rica,
com suas igrejas barrocas e suas pedras centenárias, carregadas
de lendas, por onde ainda pareciam pairar os espectros dos in-
confidentes, dá-nos conta Augusto de Lima numa página curio-
sa. Aí nos refere o seguinte episódio: na primeira noite de Ouro
Preto, após haver-se recolhido ao quarto que o amigo lhe des-
tinara, Raimundo procurara vários pretextos para chamá-lo: ora
reclamava um fósforo, ora um copo d’água. Augusto de Lima
percebeu o que se tratava: o poeta estava com medo de ficar
sozinho no quarto, nessa Ouro Preto povoada de fantasmas. E
embora ali viesse a residir cerca de cinco anos, desempenhando
também o cargo de professor de Direito, Raimundo nunca dei-
xou de manifestar — sobretudo em cartas para os amigos — a
nostalgia que lhe causava a paisagem tristonha da cidade.
Outros intelectuais mineiros de nomeada, alguns dos quais
egressos da política, iam-se reunindo à sombra desses casarões
patriarcais: Gastão da Cunha, Arrojado Lisboa, Sabino Barroso,
Aurélio Pires — o Mestre Aurélio tão querido das tertúlias
ouropretanas —, Rodrigo Bretas de Andrade, Nelson de Sena,
José Braga — romancista cuja obra ficou inteiramente esqueci-
da — e também, com seus requintes novi-românticos de simbo-
lista, vindo de Conceição do Serro, o poeta do Septenário das
Dores, então assinando apenas Alphonsus de Guilmar.
A Revolta da Armada, em 1893, enriqueceu o quadro inte-
lectual de Ouro Preto com um grupo de emigrados ilustres:
Émile Rouède, Magalhães de Azeredo, Álvares de Azeredo So-
brinho, Leopoldo de Freitas, e, acima de todos, animando o
ambiente com a vivacidade de um espírito tão sociável e gentil
quanto inteligente e brilhante: Olavo Bilac.
Foi uma grande etapa na vida de Bilac esse estágio forçado
nas montanhas de Minas, não atingidas pelo estado de sítio vi-
gente na Capital Federal, e em cujo clima de liberdade se vi-
nham abrigar aqueles que se tinham tornado suspeitos à polícia
de Floriano. Afonso Arinos acolheu-o carinhosamente, encami-

148
nhando-o para um abrigo seguro: a casa de Diogo de Vascon-
celos, o mesmo homem que o poeta achincalhara um dia em
crônica de A Cidade do Rio. Mas tudo já pertencia a um passa-
do remoto. Agora, monarquistas e antiflorianistas se irmanavam
no mesmo sentimento de oposição ao Marechal. E é perfeito o
entendimento entre eles em passeios e confabulações pelos re-
cantos íngremes da cidade. Nenhuma camaradagem, porém, mais
harmoniosa e espiritual do que a que une Afonso Arinos a
Bilac. Mais tarde, ao receber o autor de Pelo Sertão na Acade-
mia Brasileira, o poeta relembrará esses dias tensos transcorridos
em Ouro Preto e que a amizade entre ambos tornaria tão fe-
cundos e saudosos.
Embora os pais residissem na cidade, e Arinos fosse sol-
teiro, desde que viera de São Paulo montara casa própria, un
ménage de garçon, com luxo sóbrio e conforto, onde vivia absor-
vido pelo estudo e recebia fraternalmente os amigos. Já havia
algo do europeu ultracivilizado nesse homem do sertão. Quem
se poderia lembrar de ter uma sala de esgrima em Ouro Preto
senão o “Senhor de Paracatu”, que discorria largamente sobre
a vida e os hábitos de Paris, sem lá ainda haver estado?
A investigação do passado mineiro, a busca dos arquivos
era uma das ocupações preferidas de Arinos nessa época. E não
tardou que no mesmo sentido viesse a interessar Bilac. Acres-
cente-se que o poeta já havia estado na Europa em 1891, em-
briagando-se na atmosfera parisiense, de onde escrevera cartas
aos amigos, referindo-se ao Brasil como uma Cafraria. Agora,
em Ouro Preto, num cenário genuinamente brasileiro e podero-
samente evocativo, era para as coisas nossas, para as origens
da nacionalidade que o convívio insinuante de Arinos o inclina-
va. Logo nas primeiras crônicas, na Gazeta de Notícias, fazia
sentir os novos ventos que lhe batiam o espírito. O passado, a
história, as tradições, as vozes da terra começavam a exercer a
maior fascinação sobre o espírito do poeta. Mas muita gente
não levou a sério essa atitude. O cantor ardente e sensual da

149
Via Láctea, o eterno fantasista, mergulhado na traça dos arqui-
vos. . . tinha graça!. . .
Na verdade, Bilac não deixou de se interessar pela Histo-
ria senão como artista, e as crónicas que escreveu no género
estão longe de primar pela fidelidade aos textos. Uma delas,
mesmo, em torno dos amores de Gonzaga, chegou a divulgar
sobre Marília certa versão inexata, que tomou vulto e só foi
desmentida muito mais tarde, por Tomás Brandão, em livro
largamente documentado.
Émile Rouède, francês de nascimento, brasileiro de adoção,
colega de Bilac n’A Cidade do Rio, homem de sete instrumen-
tos, também fugindo da polícia de Floriano, montou atelier no
Caminho Novo, onde se pôs a pintar paisagens locais. O poeta
visita-o com freqüência. E não é difícil reunir-se todo um grupo
de exilados, em companhia dos intelectuais da terra, a percor-
rer os arrabaldes da cidade nesses crepúsculos cinzentos de Ouro
Preto que trazem tanta nostalgia. Numa de tais ocasiões Rai-
mundo Correia teria recitado aos amigos, entre os quais se en-
contrava Arinos, o famoso soneto sobre Ouro Preto:
“Aqui outrora bimbalharam sinos” . . . despertando a maior
emoção. O pequeno grupo ficara estático, sem nem mesmo
decidir-se a aplaudir ante a força sugestiva daqueles catorze ver-
sos no cenário crepuscular da velha cidade.
As relações de Bilac com Raimundo em Ouro Preto não
decorreram, entretanto, muito bonançosas. A amizade entre
ambos, já abalada por causa de um discurso de Bilac em Vas-
souras, ainda mais se afrouxou com o duelo de sonetos irônicos
e ferinos que travaram em Vila Rica, e ao qual se referia mais
tarde Alberto de Oliveira em crônica publicada em O Paiz, não
acrescentando detalhes sobre o mesmo.
Afinal, um equívoco lamentável, originado por um roubo
no hotel onde Bilac se achava hospedado, vem empanar a grata
impressão que o poeta levaria da capital mineira. Seu nome

150
passaria então a ser recordado pela quadrinha que um tipo
popular trauteava pelas ruas:

“Os estudantes de Ouro Preto


Todos vestidos de frac
Foram ao Grande Hotel
Expulsar Olavo Bilac”.

A época assinalou também um grande desenvolvimento da


imprensa mineira. Num jornal de Ouro Preto publicou Aluísio
Azevedo, em folhetim, as Memórias de um Condenado; Raul
Soares, com alguns amigos, fundou O Cisne, revista nos moldes
de A Semana, de Valentim Magalhães.
Coelho Neto e Ernesto Sena também visitaram Ouro Preto
nessa década de ouro, o primeiro escrevendo interessantes im-
pressões num livro, Por Montes e Vales. Afinal, com a transfe-
rência da capital para Belo Horizonte (que nos primeiros tem-
pos se chamou Cidade de Minas) no “ano da desgraça” de 1897,
a cidade começa a viver do passado, recuando, na sua deca-
dência material, para o plano superior da História.

“E em torno os olhos úmidos tristonhos


Espraia, e chora como Jeremias
Sobre a Jerusalém de tantos sonhos”.

D o n a G u id in h a d o P o ç o

No seu magnífico Prosa de Ficção 1870-1920, Lúcia


Miguel Pereira dava um lugar de particular destaque a um
romancista de quem muito pouca gente ouvira falar: Manuel
de Oliveira Paiva. Pouca gente? Quase ninguém, pois a própria

151
escritora confessa que se não tivesse sido incumbida de escre-
ver tal livro morreria ignorando completamente a existência de
Oliveira Paiva. Mas a necessidade de pesquisa, dado sobretudo
o fato de muito da nossa literatura no século passado ainda se
encontrar praticamente inédito em jornais e revistas, levou-a a
percorrer na Revista Brasileira as páginas do romance Dona
Guidinha do Poço do referido escritor. E foi uma descoberta.
“Não me esquecerei nunca da emoção experimentada” — diz
Lúcia Miguel Pereira. Sentiu-se logo diante de um verdadeiro
romancista: alguém que numa época de imitação naturalista e
de medíocres remanescências românticas não fazia nem uma
coisa nem outra, dando-nos o romance brasileiro rústico e regio-
nal da melhor qualidade literária. Daí não haver ela hesitado
em situar com relevo a obra de Oliveira Paiva no quadro do
nosso ficcionismo nas últimas décadas do século passado.
Até hoje virtualmente inédito, Dona Guidinha do Poço
acaba afinal de aparecer em livro. Um romance desconhecido
de 1890 entregue atualmente ao público brasileiro. Do longo
e obscuro caminho percorrido por essa obra até seu lançamento
hoje num bonito volume, dá-nos conta em excelente prefácio
Lúcia Miguel Pereira. Fala-nos ela da trabalhosa busca que
realizou para obter os originais de Dona Guidinha — cuja pu-
blicação ficara incompleta na Revista Brasileira —, dirigindo-se
infrutiferamente a várias pessoas amigas, no Ceará, até que um
dia Américo Facó, aqui no Rio, lhe declara estar de posse desse
precioso manuscrito, sem a exclusão de uma só página. Mas
outros obstáculos teve ainda de enfrentar Dona Guidinha, ven-
cendo-os todos com o amparo de sua gentilissima protetora.
Cabe assim a Lúcia Miguel Pereira a honra de haver divulgado
um escritor brasileiro de primeira categoria e injustamente iné-
dito.
Cearense como Adolfo Caminha, e contemporâneo deste
último, Oliveira Paiva morreu muito moço. São poucos os dados
biográficos sobre ele existentes. Nascendo em 1861 faleceu

152
em 1892. Depois de estudos secundários no Ceará, veio para o
Rio matricular-se na Escola Militar. Sem realizar o curso, re-
gressa em 1883 à terra natal, onde se pôs a exercer a atividade
literária e jornalística, de certo já minado pela tuberculose.
À procura de melhores ares e de repouso fez uma longa
temporada num sítio no interior da província, onde teria encon-
trado inspiração para o quadro e a comparsaria de Dona Gui-
dinha do Poço.
De certo, o que particularmente nos toca é o equilíbrio
encontrado por Oliveira Paiva, numa época em que a nossa
ficção deixava os moldes românticos para, com poucas exce-
ções (Machado de Assis, por exemplo), adotar quase servilmente
os “clichês” naturalistas aqui chegados, sobretudo, através de
Eça de Queirós. Adolfo Caminha, na mesma época, fazia de
A Normalista uma transposição cearense de personagem e situa-
ções “queiroseanas”, enquanto no Bom Crioulo, aproveitando a
experiência da vida de marujo num romance, aliás literaria-
mente bem feito, não deixava de carregar na nota naturalista.
E os famosos “estudos de temperamento” reduziam os nossos
escritores. Não nos esqueçamos de que Celso Magalhães chegou
a fazer um deles no mesmo ambiente rural nordestino focalizado
pelo autor de Dona Guidinha do Poço.
Oliveira Paiva soube fugir ao que podia haver de mau nas
influências, tanto românticas como naturalistas, adotando um
sistema de compromisso realista, do qual não se exclui uma
história movimentada, de bom sabor romanesco, nem a repro-
dução fiel do meio com seus caracteres próprios e dos tipos,
falando a sua língua, e revelando-se sem transfigurações idealis-
tas em toda verdade humana.
Alencar e Taunay tinham feito da mulher do campo, da
sertaneja, um padrão de beleza física, de pureza e virtude.
Assim nos aparecem as imagens idealizadas de Ceei, Dona Flor
e Inocência.

153
Em 1891, época em que teria sido escrito Dona Guidinha
do Poço, essa tradição ainda não fora quebrada, porque as he-
roínas naturalistas habitavam, geralmente, a cidade. Oliveira
Paiva quebra-a, sem colocar Dona Guidinha no rol das histó-
rias de Aluísio Azevedo e muito menos da incrível Lenita de
Júlio Ribeiro. Em lugar da sertaneja bela e pura, uma roceira
nem bonita e nem feia, masculinizada no trato da vida rústica,
voluntariosa, mandona, sensível ao amor, mas suscetível também
de crueldade. A influência naturalista, possivelmente existente,
servindo para desencantar o idealismo das “ Inocências”, não
chegou a produzir um desses feixes de nervos e instintos em
que se aprazia o primarismo dos nossos discípulos de Zola.
Por outro lado, Alencar, Bernardo Guimarães e o próprio
Taunay, mesmo que não fossem levados pelo temperamento ro-
mântico, não poderiam dar-nos uma pintura fiel do ambiente
campesino pelo escasso conhecimento que tinham do mesmo.
A Franklin Távora faltavam verdadeiros dons de romancista
para fazê-lo. Esse conhecimento direto teve Oliveira Paiva. Com
ele, pois, se afirma o nosso ruralismo realista, em permanente
oposição a um ruralismo de essência romântica, que ainda se ma-
nifesta nos dias atuais, através do qual o sertão e seus habitan-
tes aparecem sempre sob um aspecto meio iluminado e deco-
rativo.
Na descendência de Dona Guidinha iremos encontrar, logo
mais, Luzia Homem, de Domingos Olímpio, e na de Inocência,
a Maria Bonita, de Afrânio Peixoto.

Raul Pompéia na Biblioteca Nacional

Há um episódio na vida de Raul Pompéia, a que podemos


atribuir influência no estado de exacerbação nervoso que o

154
levou ao suicídio naquele trágico dia de Natal de 1895. Elói
Pontes não o menciona na sua conhecida biografia do autor
d’0 Ateneu. E eu igualmente não o mencionei no resumo bio-
gráfico que escrevi sobre o romancista, pois as dimensões do
trabalho não comportavam tais detalhes. No entanto, não deve-
mos subestimar-lhe a importância.
Pompéia, defensor exaltado de Floriano, em quem via a
salvação da República, seriamente ameaçada pelos reacionários,
teve o prêmio de sua dedicação. O Marechal nomeou-o diretor
da Biblioteca Nacional. A hora era de luta, luta cruenta. Na-
quele elevado cargo o escritor não podia deixar de sofrer a hos-
tilidade dos seus inimigos. E bem sabemos que esse homem,
sempre disposto a atacar, não suportava com a mesma fibra o
revide dos adversários. O cargo de diretor da Biblioteca Nacio-
nal seria o primeiro emprego público que ele exercia — empre-
go de responsabilidade, exigindo um tirocinio burocrático de
cuja falta naturalmente se ressentia. Pois devemos atribuir à
ausência desse tirocinio o fato de deixar ele aparecer o volume
VII dos Anais da Biblioteca com erros e lacunas sensíveis, que
iam levá-lo a prestar flanco às arremetidas dos inimigos.
No entanto, de onde vem a crítica severa? Justamente de
um amigo, José Veríssimo, o diretor da Revista Brasileira, de
que Pompéia era um dos colaboradores. Não temos motivos
para estranhar essa atitude de Veríssimo. Por mais de uma vez
ele não perdoou os amigos ou os confrades a que estava mais
intimamente ligado no ambiente literário. No número de abril
de 1895, da Revista, Pompéia teve a sua dose. Registrando o
aparecimento do referido volume dos Anais, o crítico sob as
iniciais J. V., com que assinava a secção bibliográfica, faz algu-
mas referências elogiosas à publicação, para logo em seguida
ressaltar-lhe as falhas e principalmente este erro imperdoável
(o “imperdoável” é meu): a inclusão de uma obra histórica de
Maspero sobre o Egito e La Bible de l’Humanité, de Michelet,
no “Catálogo das Bíblias”.

155
Pompéia, naturalmente, sentiu-se atingido em vivo com a
crítica e apressou-se a enviar ao diretor da Revista uma carta,
que esta publica no número de maio de 1895, sob o título “A
Revista Brasileira e a Biblioteca Nacional”. Começa dizendo
que quando tivera o prazer de encontrar, há dias, o Sr. fosé
Veríssimo, não havia ainda lido a notícia bibliográfica da Revis-
ta. Agora, que a lera, sentia a necessidade de dizer que ela o
surpreendera “como uma obra-prima da injustiça e de inespera-
do rigor”. Julgava lamentável que os trabalhos como os que
constituíam o último volume dos Anais fossem assim acolhidos
por aqueles que já se achavam em melhor condição de saber o
quanto custavam tais empreendimentos e o quanto podiam va-
ler. E acentuava: “Digo em tempo que posso francamente doer-
me pela crítica feita a esse livro, porque não tive senão parte
mínima na sua organização: estando já concluída a sua impres-
são quando assumi a diretoria da Biblioteca. Por isso, indica a
folha de rosto que o volume foi publicado sob a minha admi-
nistração e não sob a minha direção”.
Procura mostrar o que o volume VII dos Anais representa
como esforço dos funcionários que, apenas excepcionalmente,
no afã do serviço comum da casa, dedicam-se a trabalhos dessa
natureza. A Revista no entanto, pondo de parte os adjetivos
formais de cortesia literária, apenas insistira nos senões. E aqui
vem o golpe infeliz: Pompéia quis fazer passar como certo o
que era um erro injustificável: a inclusão dos livros de Maspero
e Michelet no “Catálogo das Bíblias”. E arranjou este argumento
pernibambo: La Bible de l’Humanité, de Michelet, tinha mais
relação com a Bíblia do que o título fazia supor, como se podia
ver pela designação da matéria de alguns capítulos. Citava em
seguida frases desses capítulos, em que há referências a figuras
e episódios bíblicos. Sua teimosia em não reconhecer o erro, de
que segundo ele, aliás, não fora o autor mas havia sido cometido
sob a sua responsabilidade, parece-nos incompreensível.
A carta termina em termos amargos: “A crítica inexorá-

156
vel — escreve o romancista — nada perdoa, nem os erros tipo-
gráficos. Mas está no seu direito. É uma questão de severidade
mais ou menos cerrada. Apesar de tudo e porque a própria
hostilidade é um estímulo, eu venho agradecer o cuidado que
à Revista Brasileira mereceu a Biblioteca Nacional”.
A resposta de Veríssimo vem no mesmo número, logo abai-
xo da carta. Protesta ele de início contra a palavra hostilidade,
julgando-a mal-empregada, mal-aventurada e sentindo-se magoado
com ela. Insiste então nos reparos procurando mostrar que foi
antes benigno do que severo. Pelo regulamento da Biblioteca, o
diretor tem responsabilidade direta nos Anais, não se compreende
que possa transferi-la para os funcionários. Quanto ao caso de
La Bible de l’Humanité, não pode, de maneira alguma, aceitar
a desculpa. As citações de Pompéia nada provam, pois os que
leram aquela obra do grande historiador concordarão que, por
igual processo, seria considerável o número de livros da Biblio-
teca que poderiam entrar no catálogo das Bíblias. Cita, por
exemplo, A Lenda dos Séculos, de Hugo e O Evangelho nas
Selvas, de Varela. E para mostrar como foi benigno aponta
ainda outros livros classificados erradamente no catálogo, como
Les Premiers Hommes et les Temps Pré-Historiques, de Nadail-
lac, e A História de Jesus para as Criancinhas Lerem, poesias,
de Gomes Leal. Acrescenta Veríssimo ter feito a crítica jus-
tamente como prova de apreço, como desejo de ver desaparecer
as falhas que o próprio diretor reconhece. Não havia motivo
para taxá-la de “obra-prima de injustiça e inesperado rigor” .
Acha que o público, apreciando as razões dos dois lados, há de
concluir que somente uma “benevolente sinceridade” a inspi-
rou. Juntamente com a resposta Veríssimo reproduz, em pé de
página, um trecho da segunda carta de Raul Pompéia, quando
teve conhecimento da referida réplica, antes de publicada. O
romancista declara, em contestação ao azedume do diretor da
Revista, que falara em injustiça literária, não havendo em sua
carta um só qualificativo pessoal, capaz de provocar sombra de

157
ressentimento. Nunca em tempo algum a injustiça literária e o
rigor da crítica se atribuíram como imputação ofensiva. “A
própria hostilidade, perfeitamente definida, se pode registrar
sem o mínimo agravo para quem a promove com a cortesia
que não faltou à crítica da Revista. Em tais condições a réplica
equivale a uma queixa e não a uma censura” — concluía
Pompéia.
A verdade é que a crítica de Veríssimo, confirmada, em
toda extensão, na resposta à carta do romancista, teria ferido
rudemente um homem cheio de melindres como Pompéia. Isso
se passou em maio de 1895: avizinhava-se a crise, que teria
seu arremate no suicídio a 24 de dezembro.

Uma Mistificação Literária

A obra de Aluísio Azevedo divide-se em duas partes,


marcando dois ramos diferentes que caracterizam o drama da
carreira literária do escritor. Uma a parte romanesca, em que se
agrupam novelas folhetinescas, como A Condessa Vésper, Gi-
rándola de Amores, A Mortalha de Alzira; outra a parte natu-
ralista, na qual se incluem: O Mulato, Casa de Pensão, O Ho-
mem e O Cortiço. Se quiséssemos estabelecer uma classificação
mais precisa poderiamos considerar O Mulato e O Livro de uma
Sogra, na categoria de obras de transição entre o Romantismo
e o Naturalismo. Só não sabemos como classificar O Coruja,
que é sob qualquer aspecto o tipo do romance frustrado.
Aluísio lutou com grandes dificuldades econômicas na vida.
Sua vocação inicial parece ter sido a pintura. Veio do Mara-
nhão para o Rio a ver se conseguia meios de aperfeiçoar-se
nessa arte. Tencionava até ir estudar na Europa. Mas encontrou
um ambiente hostil aos seus projetos.

158
A vida inteira, entretanto, não deixará de desenhar, por
diletantismo, por curiosidade. Dizem que pintava os persona-
gens, antes de iniciar um romance, a fim de, por meio dessa
impressão plástica, melhor caracterizá-los.
Retornando ao Maranhão, não podendo ganhar a vida pin-
tando, procuraria meios de ganhá-la escrevendo. Iniciou-se no
jornalismo e publicou uma novela romanesca nos moldes das
de Lamartine, que inspiravam Alencar. Era a literatura em voga
nessa época, embora já existisse Flaubert, na França. Logo de-
pois, leu Balzac, sobretudo Eça de Queirós, e escreveu O Mu-
lato, obra na qual se percebe o bafejo do autor de O Primo
Basilio.
O livro foi recebido com entusiasmo. “Romancista ao Nor-
te” — exclamou Urbano Duarte, uma frase que se tornou fa-
mosa. Começava-se a falar no Naturalismo como de uma grande
revolução estética. O Mulato pareceu a todos a primeira mani-
festação no Brasil dessa nova literatura.
Aluísio — cuja situação no Maranhão se tornava insusten-
tável por causa das animosidades provocadas pelo romance —
transfere-se mais uma vez para o Rio. Agora vinha em melho-
res condições, com um livro consagrado. Firme no propósito de
viver de literatura, põe-se a escrever nos jornais. Lê Zola, pensa
em seguir-lhe a escola no Brasil. Chega mesmo a traçar o plano
de uma obra cíclica, uma espécie de Rougon-Macquart brasilei-
ro. Mas os imperativos econômicos levam-no a distrair-se do
projeto, para escrever, antes, novelas romanescas. O romance-
folhetim era, na época, o mesmo que o rádio-teatro em nossos
dias. Não havia um jornal que não publicasse uma história em
continuação e havia centenas, milhares de leitores que não a
dispensavam. As histórias seriam tanto mais aceitas quanto se-
guissem elas os moldes de Ponson du Terrail e Xavier de
Montépin.
Aluísio Azevedo não encontra outro recurso senão o de
enveredar por esse caminho. Um romance naturalista, por causa

159
de suas cruezas, publicado em folhetim, arriscava escandalizar
o público e prejudicar o jornal. Além disso, tratando-se de obra
mais trabalhada, de categoria superior, contaria com número
menor de leitores. Aluísio entrega-se, pois, afanosamente à pro-
dução de novelas rocambolescas, cuja ação se passa, muitas ve-
zes, fora do Brasil, entre duelos, assassinatos, raptos, amores
contrariados, todos os ingredientes capazes de deixar em sus-
penso a atenção do leitor, para a surpresa que há de vir no dia
seguinte. Memórias de um Condenado ou A Condessa Vésper;
Mistérios da Tijuca ou Girándola de Amores. São os títulos das
primeiras dessas novelas, logo depois publicadas em livros para
não deixar esfriar o interesse do público.
Distraído pelos folhetins, Aluísio não esquecia a arte natu-
ralista. E em 1884 oferece-nos dela uma tentativa feliz na Casa
de Pensão. Seu drama, então, se destina cada vez mais à luta
entre a verdadeira arte — aquela que o seduzia, para a qual
se sentia arrastado — e a que era obrigado a confeccionar, sem
a participação íntima da personalidade, para o gosto do grande
público. Em 1887, revelando ainda uma assimilação imperfeita
do Naturalismo, leva-lhe os defeitos às últimas conseqüências
em O Homem. Em 1889, procurando, talvez, servir a dois se-
nhores e conciliar o romanesco com o Naturalismo, fracassa em
O Coruja. A leitura do L’Assommoir, de Zola, cujo êxito extraor-
dinário na França repercutira em todo o mundo, desperta-lhe
a idéia de fazer um L ’Assommoir brasileiro. Daí surge, em 1890,
seu melhor livro e um dos melhores romances da literatura bra-
sileira: O Cortiço.
Aluísio devia ter-se sentido então diante de uma encruzi-
lhada terrível. Em palestras reportadas pelos amigos, nunca dis-
farçou o amargor da situação. A arte era uma bela coisa, mas o
homem precisava viver. E a 12 de janeiro de 1891, logo depois
da publicação de O Cortiço, vamos encontrá-lo na Gazeta de
Notícias, sob o pseudônimo de Victor Leal, a realizar uma ver-
dadeira mistificação literária, não muito digna talvez de um

160
artista que se preza, somente pelo desejo de servir ao grande
público das novelas folhetinescas.
Anunciando o início, no dia seguinte, do romance A Morta-
lha de Alzira (editado em livro em 1893), Aluísio, na pele de
Victor Leal, escreve uma carta ao diretor do jornal atacando
rudemente o Naturalismo, para salientar a superioridade artísti-
ca das obras romanescas, como o folhetim anunciado.
“ O romance, quando digno desse nome — afirmava ele —
deve desenrolar diante de nossos olhos sublimes quadros e edifi-
cantes exemplos de moral e de honra, e não cenas banais e
ridículas da vida de todo dia, da vida terra-a-terra que nenhum
interesse pode despertar em quem quer que seja, como também
nenhum ensinamento pode trazer àqueles que lêem com o lou-
vável fim de se instruir, formando e desenvolvendo conjunta-
mente seu caráter. O romance deve, ao mesmo tempo que
deleitar o espírito, confortar o coração.
Foi assim que o entenderam os bons mestres da primeira
e melhor metade deste século e é assim que eu igualmente o
entendo”.
Mais adiante, em tom irritado, chega a apostrofar os natu-
ralistas: “Vamos, senhores naturalistas, façam uma grande ba-
gagem de tudo quanto é brilhante, de tudo que é formoso e de
tudo que é balsámico! Carreguem com o Sol que é a cor, carre-
guem com as flores que são o perfume, carreguem com as aves
que são a música; carreguem com a mulher que é o amor e a
vida. Vamos! Dispam-lhe de toda a natureza! Rasguem-lhe os ves-
tidos, furem-lhe os olhos. Arranquem-lhe os cabelos! Vamos,
senhores naturalistas, apaguem as estrelas, mandem dar uma
mão de piche sobre o azul do céu!
Corram a pontapés as rosas e as borboletas! Vamos, le-
vem tudo isso que é poesia e que não fique senão a podridão
e o mal”.
Prossegue, sempre com o mesmo acento iracundo:
“Querem fazer da terra um lameiro vil, nauseabundo? Pois,

161
entao, que nos arranquem a alma e convertam-nos o coração em
máquina de julgar e não de sentir” .
Logo depois confessa ser muito moço, conservando ainda
intactas as fibras do sentimentalismo, ainda tendo ilusões, ainda
tendo crenças. Para ele a virtude é coisa sagrada, o amor um
ideal. E jura que será sempre assim.
“Se me acoimarem de visionário — escreve — direi que
mais iludido ainda é aquele que supõe alcançar glórias perver-
tendo o gosto do público com as repugnantes descrições de
cenas escabrosas”.
Aluísio não se constrangia, como vêem, em atacar rude-
mente a arte que lhe parecia a verdadeira e, há pouco, conse-
guira-lhe o melhor do seu êxito. Tratar-se-ia de uma blague? O
certo é que fazendo causa comum com os inimigos da Escola,
de qualquer maneira, realizava uma propaganda contrária ao
Naturalismo.
Acresce uma circunstância: nessa época, com auxílio dos
amigos que haviam adquirido prestígio político, após o 15 de
Novembro, o autor de Casa de Pensão estava pretendendo obter
um cargo público, capaz de dar-lhe a segurança econômica com
que debalde vinha sonhando e na literatura jamais lograra al-
cançar.
Era natural que receasse na sua pretensão algum efeito
desfavorável da celeuma levantada por O Cortiço, da pecha de
escritor imoral, escandaloso e dissolvente que sobre ele recaíra.
Assim, não será demasiado presumir-se procurasse fazer sob meio
disfarce — já que o pseudônimo de Victor Leal não devia cons-
tituir mais um segredo para grande parte do público — uma
retratação das culpas que lhe imputavam.
Logo depois, nomeado vice-cônsul em Vigo, encerrava vir-
tualmente a carreira literária. Pelo menos nenhum romance
naturalista voltou a escrever. As palavras da carta aberta de
Victor Leal deviam, de qualquer forma, exprimir uma renúncia.

162
A Literatura Brasileira na Europa

Em fins de julho de 1894, Valentim Magalhães, que um


ano antes havia reiniciado, em nova fase, a publicação da re-
vista literária A Semana, desta vez, juntamente com Max Fleiuss,
partia para a Europa, em viagem de estudos e recreio. Espírito
empreendedor, levava o propósito de fazer algo pela divulgação
da literatura brasileira no Velho Mundo, e obter, com isso, ali,
algum cargo diplomático. É o que revela uma de suas primeiras
cartas de Paris a Max Fleiuss (ver o livro Semana deste últi-
mo — 1915). Mandava-lhe os artigos que havia publicado em
O Século, de Lisboa, e no Justice, de Paris, para que o amigo
os mostrasse a Prudente de Morais, então na presidência da
República. Vale a pena transcrever um trechinho da carta: “Sin-
ceramente e sem vaidade, aqui entre nós, penso que o governo
será muito idiota se não me aproveitar para alguma coisa, uma
vez que aqui estou”.
Diz Max Fleiuss haver-se empenhado com o Ministro do
Exterior Antonio Olinto e obtido, afinal, essa comissão no esta-
trangeiro que o dileto companheiro, porém, não quis aceitar.
O certo é que em março do ano seguinte Valentim Ma-
galhães se encontra em Lisboa, onde inicia uma série de confe-
rências sobre a literatura brasileira. Ninguém até então havia
cuidado de semelhante empreendimento, já não dizemos em
Paris ou em outras capitais européias, onde não haveria ambien-
te para isso, mas mesmo em Lisboa, onde tinham servido em
cargos diplomáticos escritores como Porto Alegre e Luís Gui-
marães Júnior, sem falar dos que por ali haviam passado em
excursão. As conferências de Valentim Magalhães, improvisadas,
foram depois reconstituídas por ele de memória e com uma
antologia em prosa e verso, publicação em livro sob o título
A Literatura Brasileira.
Numa carta de março a Max Fleiuss, alude ele ao êxito da

163
primeira palestra: fora ouvido com muita atenção por um audi-
tório escolhido e aplaudido com entusiasmo, os jornais todos
registrando largamente o fato. “Agora que conheço o meu audi-
tório — escreve ele — estou muito mais seguro do sucesso na
segunda conferência (que será no próximo dia 11), espero e
conto agradar muito mais ainda”. Logo adiante vem um trechi-
nho particularmente digno de destaque, confidência muito ex-
pressiva, a mostrar como os intelectuais se parecem em todos os
tempos, nas pequeninas vinganças de suas vaidadezinhas feridas.
Reconhecendo, com muita razão, ser o primeiro brasileiro “que
se lembrava de prestar esse serviço às letras de sua terra”,
Valentim Magalhães acentua: “ Procurei não esquecer ninguém
de merecimento: de certo esqueci alguns, mas a minha memória
nada tem aqui para ajudá-la”. E agora o pedacinho de ouro:
“Propositalmente, só esqueci três nomes, X X X (Max Fleiuss re-
solveu omiti-los na reprodução da carta), pelas razões que co-
nheces: o l.° calou o meu nome no seu livro, citando os de
muitos nulos; o 2° é meu inimigo gratuito e feroz; o 3° é um
miserável”.
Devia tratar-se de figuras de algum mérito, talvez mesmo
representativas da literatura brasileira, naquela época, pois em
caso contrário Valentim não se lembraria de fazer a justificação
perante o amigo; sua atitude ridícula e mesquinha aberra de
toda a probidade literária, mas o escritor que se julgar sem
pecado que lhe atire a primeira pedra. . .
As conferências prosseguiram em meio de grande interesse
e o regozijo de Valentim Magalhães seria completo pela vitória
da iniciativa não viesse a empaná-lo certos motivos resultantes
das condições políticas da época. Depois da posse de Prudente
de Morais, a luta entre florianistas e antiflorianistas continuou,
insistindo os primeiros na campanha de jacobinismo que incidia
na hostilidade aos portugueses. Prudente reatou as nossas rela-
ções diplomáticas com Portugal, rompidas por Floriano Peixoto,

164
pelo fato de o comandante de um navio de guerra lusitano haver
dado abrigo aos cabeças da Revolta da Armada em 93. O
reatamento das relações se deu precisamente no momento em
que Valentim Magalhães se achava em Lisboa, realizando essa
obra de aproximação cultural. Mas os jacobinos no Brasil con-
tinuavam, intransigentes a atacar os portugueses. E entre os
jacobinos se encontravam Lúcio de Mendonça e Araripe Júnior,
o primeiro, principalmente, florianista de corpo e alma, ambos
colaboradores assíduos de A Semana.
Acontece que na mesma ocasião se realizava, em Lisboa,
uma grande homenagem a João de Deus. Valentim nela tomava
parte, saudando o poeta de improviso, em sessão solene do Ate-
neu Comercial, e recebendo muitos abraços, segundo se depreen-
de de uma carta de 10 de março, a Max Fleiuss, na qual lhe
enviava um artigo sobre o autor de Campo de Flores.
O artigo, sob o título “A Glorificação de João de Deus”,
foi publicado no número de 6 de abril de A Semana. Lúcio de
Mendonça e Araripe, juntamente com Raul Pompéia, o mais
exaltado dos três na campanha jacobina, irritaram-se com os
amores de Valentim pelas coisas portuguesas. Pompéia absteve
de manifestar-se. Os dois primeiros, porém, justamente pela con-
dição de “velhos e dedicados amigos” de Valentim, julgaram-se
com o direito a chamar-lhe à ordem. E como Max Fleiuss pro-
curasse dissuadi-los da idéia, declararam que se tratava de “sim-
ples divergência literária”, da qual não podería resultar nenhum
arranhão na amizade de ambos com Valentim.
O artigo de Lúcio saiu a 20 de abril, na rubrica História
dos Sete Dias, mantida pelo próprio Valentim, em A Semana,
quando se achava no Brasil. Em tom chocarreiro, procurava
reduzir a zero o mérito de João de Deus, glorificado por Valen-
tim, estendendo-se em alusões galhofeiras e maliciosas aos por-
tugueses, inclusive ao banquete oferecido ao escritor brasileiro,
em Lisboa, no encerramento das conferências.

165
No número de 27 de abril era Araripe Júnior que tomava
da pena para malhar os portugueses, a propósito do centenário
de Santo Antonio de Lisboa. E os mesmos números que traziam
tais artigos reproduziam notícias dos jornais portugueses sobre
o éxito das conferências e das homenagens prestadas a Valen-
tim, um dos diretores de A Semana, em Lisboa. Isto causava a
maior inquietação a Max Fleiuss, que via, no entanto, a venda
da revista crescer, com a ofensiva jacobina. A Lúcio e Araripe
veio juntar-se Urbano Duarte, ridicularizando João de Deus.
Em O Estado de S. Paulo, onde redigia uma página lite-
rária, Filinto de Almeida correu em defesa do poeta luso, pro-
vocando novos artigos de Lúcio e Araripe.
Já se achava Valentim em Paris, quando tomou conheci-
mento da campanha. Escreveu a Max Fleiuss, muito ressentido
com os amigos. “Que espírito nativista é esse?! Em que desgra-
çada posição me põe A Semanal Que tolas as explicações do
Lúcio!. . . ” E concluía: “Ando aqui a fazer o que posso pelo
meu país e pelos meus amigos e, aí, eles desmancham o que
dificilmente vou construindo aqui. P ílu las!...”
Daí a algumas semanas, Valentim Magalhães, não tendo
conseguido, naturalmente, o cargo diplomático na medida de
suas ambições, regressava da Europa e desligava-se de A Semana.
Com isso, extinguia-se a revista.
Assim terminou a aventura do primeiro “curso” de litera-
tura brasileira no estrangeiro.

Quando um Escritor Brasileiro Entrevistou Zola

Não pode deixar de nos merecer reparo o fato dos escrito-


res brasileiros que viajaram ou residiram na Europa não nos

166
terem deixado depoimentos sobre os seus possíveis contactos
com escritores europeus. Será de presumir-se que esses contac-
tos, na maioria dos casos, não se verificaram e que um Gonçal-
ves Dias ou um Odorico Mendes, permanecendo tanto tempo na
Europa, principalmente em Paris, não procuraram aproximar-
se de um Lamartine, de um Sainte-Beuve? O fato é que na
copiosa correspondência de Gonçalves Dias nenhuma referên-
cia encontramos a uma simples visita a escritores franceses.
Há cerca de um ano, Gilberto Amado, em entrevista que
me concedeu, aludia a um livro de certo memorialista francês
em que se fazia menção à amizade de Balzac com o chevalier
Pereira da Silva, que não seria outro senão o nosso Conselheiro
Pereira da Silva, historiador da Formação do Império Brasileiro
e que, como se sabe, estudou em Paris. Mas Gilberto Amado
esqueceu o nome do livro e do autor, tornando-me portanto
impossível verificar a referência. Há alguns meses, porém, re-
lendo, ao acaso, algumas páginas da Evolução da Prosa Brasi-
leira, de Agripino Grieco, lá encontrei a mesma alusão a essa
amizade de Balzac com Pereira da Silva, embora Agripino emi-
tisse também o nome do livro e do autor.
Mas o estranho, no caso, é Pereira da Silva, que tanto
escreveu e deixou até um livro de reminiscências, Memórias do
meu Tempo, não se ter lembrado de dar-nos o seu depoimento
sobre um escritor tão famoso a quem se presume conhecera de
perto.
É verdade que no século passado não estava ainda em voga
o sensacionalismo; no entanto, tratando-se da amizade com um
Balzac, parece-me incompreensível tal silêncio.
De Lamartine se conhece uma carta a José de Alencar,
que procurara obter no Brasil assinaturas para a obra Cours
Familier de Littérature, com que o poeta procurara minorar as
aperturas financeiras dos últimos anos. Infelizmente, quando
Alencar visitou Paris, em 1875, Lamartine já não existia.

167
As notícias de contactos pessoais entre escritores brasilei-
ros e franceses pode-se dizer começam com Joaquim Nabuco,
na sua primeira viagem à Europa. Em Minha Formação, fala-
nos ele dos encontros que teve com Renan e George Sand.
Depois um outro lá andou por Paris, levando verdadeira
existência de boêmio, às turras com o pai que pretendia cortar-
lhe a mesada, o tumultuoso Artur de Oliveira, do qual se diz
ter freqüentado várias celebridades estrangeiras, como Victor
Hugo, Théophile Gautier, privando intimamente com Villiers
de lTsle Adam que ao vê-lo sem recursos chegara até a oferecer-
lhe a metade do quarto de solteirão. Infelizmente, Artur de
Oliveira era o tipo do escritor agráfico, e a não ser nas rápidas
referências feitas em cartas nenhum outro detalhe sobre essas
relações nos deixou.
Em 1891, Bilac parte para a Europa, como enviado espe-
cial da Gazeta de Notícias. Era a primeira vez, decerto, que
um jornal se dava ao luxo de pagar a viagem de um correspon-
dente à Europa. Ora, nessa época o Naturalismo estava aqui
em franco apogeu. Zola era considerado uma divindade por
muita gente. Não passaria pela cabeça do poeta da Via Láctea
visitar o autor dos Rougon-Macquart e dar conta aos leitores
brasileiros dessa visita, num artigo que havia de despertar, cer-
tamente, a maior sensação?
Pois nas numerosas crônicas européias de Bilac na Gazeta
de Notícias, e mais tarde em outros jornais e revistas, nenhum
descubro, não somente de um encontro com Zola como com
qualquer outro escritor francês célebre na época.
Somente em 1892, ao partir para a Europa, na comitiva de
Campos Sales, então presidente eleito da República, o historia-
dor e jornalista Tobias Monteiro promete entrevistar Émile Zola.
Seria o primeiro contacto de um escritor brasileiro com o ro-
mancista que, então, dado o seu papel no caso Dreyfus, se tor-
nara duplamente célebre. Tobias Monteiro cumpriu a palavra,
e o Jornal do Commercio, daí há alguns meses, reproduzia o

168
relato minucioso de sua visita a Zola, mais tarde incluído no
livro O Presidente Campos Sales na Europa.
O primeiro encontro de Tobias Monteiro com o autor de
L ’Assommoir deu-se no gabinete de Yves Guyot, diretor político
de Le Siècle e amigo íntimo do romancista. Tudo não passou
de uma troca de cumprimentos. Zola declarou que se achava
muito atrapalhado no momento, e como o jornalista brasileiro
estava de partida para Londres, com a comitiva de Campos Sa-
les, a entrevista ficou adiada. De volta de Londres, porém, To-
bias se comunicou com Zola, que se mostra disposto a recebê-lo
na sua residência, na rue Bruxelles 21, onde, depois da conde-
nação do romancista, a fachada amanhecia diariamente cober-
ta de flores e de imundices, maneiras contrastadas pelas quais
se manifestavam os admiradores e os inimigos do mesmo.
Tobias refere-se, logo de início, à decoração do interior, o
grande número de quadros pela parede, indicando que ali mo-
rava um “cultor da arte” . É bem conhecido o pendor exagerado
de Zola pelos adornos, as tapeçarias, o bric-à-brac.
No entanto, no meio daquela suntuosidade, surge o homem
mais simples do mundo. Zola recebe o jornalista estrangeiro
com os trajes com que saíra do quarto de dormir. Tobias fala-
lhe da impressão que lhe deixara Londres, de onde acabava de
vir, julgando-a um magnífico campo de observação para um
romancista. Zola concorda, acha a cidade grandiosa e cheia de
interesse; conhece-a, porém, muito pouco: lá passara apenas
oito dias e lhe seria difícil estudá-la, porque não sabia inglês.
Confessa a sua ignorância e a dos seus compatriotas com rela-
ção ao que se passa fora da Ftança.
Tobias alude agora à reforma de ensino feita pelo governo
francês, e Zola emite pontos de vista a respeito. Chegam, afinal,
ao assunto palpitante: o processo Dreyfus. O romancista diz
que se achava na Itália, documentando-se para o romance Roma,
quando teve notícia da condenação de Dreyfus. Ficou revoltado
com o fato e interveio espontaneamente, sem que houvesse
recebido qualquer solicitação nesse sentido. Tobias faz pergun-
tas sobre detalhes do processo e do papel de Zola, cujas res-
postas omitimos, pois interessando extraordinariamente ao lei-
tor de 1898 muito pouco interessam ao de hoje, quando várias
biografias minuciosas de Zola já nos informaram bastante so-
bre o assunto.
Passando para a Literatura, Tobias pede desculpa pela in-
discrição de jornalista, mas desejava saber se Zola não preten-
dia escrever um novo romance. Depois de procurar furtar-se à
declaração, o escritor acaba dizendo que tencionava tratar do
importante problema do decréscimo de natalidade na França.
E esse romance, como se sabe, Zola o escreveu: intitula-se Fé-
condité. Tobias não perde a ocasião de referir-se ao que se diz
a respeito do romancista: de preferir sempre retratar o que há
de mau na sociedade. Nunca teve a preocupação de escolher
assuntos chocantes — responde Zola. Todo o seu empenho era
servir à verdade e à justiça.
Aqui encontramos oportunidade para um paréntesis. No
livro de um médico francês, dr. Laupts, Perversions et Perver-
sités Sexuelles, encontramos a reprodução da confidência de um
homossexual, enviada por este a Zola para que o romancista
aproveitasse o assunto num romance. Zola remeteu por sua vez
o manuscrito ao dr. Laupts, dizendo que não ousava utilizar-se
do tema, certo das intenções de escândalo que lhe iam empres-
tar. Como se vê, só muitos anos depois Proust teve a coragem
de penetrar no terreno escabroso, ante o qual recuara o calunia-
do autor dos Rougon-Macquart.
E fechando o paréntesis, voltando à entrevista de Tobias
Monteiro, diremos que o escritor brasileiro ficou verdadeiramen-
te encantado com a simplicidade e as maneiras acolhedoras de
Zola.
Capistrano de Abreu, “Lobo da Estepe”

Capistrano de Abreu é uma figura que ainda está esperan-


do seu biógrafo. O livro de Pedro Gomes de Matos, publicado
em 1953, constitui apenas um bom acervo de achegas para essa
biografia. E quanto ao Capistrano de Abreu, de Hélio Viana, é
um excelente estudo sobre a obra e não uma biografia, o mes-
mo se podendo dizer da introdução de fosé Honorio Rodrigues
à Correspondência do historiador. Mas parece-nos que tão cedo
não aparecerá esse biógrafo, dados os problemas de pesquisa
que um levantamento completo da vida de Capistrano oferece,
problemas que Pedro Gomes de Matos foi o primeiro a reco-
nhecer. Pouco se sabe, por exemplo, da infância desse homem
esquisito, sendo mal sabidos também os motivos por que aban-
donou a terra natal, o Ceará, para ir residir na Corte. Da infân-
cia tem-se apenas uma imagem concreta: a do menino rebelde.
Mas isto é quase um lugar-comum biográfico da geração natu-
ralista a que ele pertenceu. Os românticos tinham sido meninos
dóceis, desmandando-se somente mais tarde, na juventude; con-
cordavam em seguir um curso regular, no ginásio e na Aca-
demia, caminho imprescindível para a ascensão na escala social
e política. Os da geração naturalista, que formaram em parte
a “boêmia” de 89, mostraram-se, na maioria, refratários à rea-
lização de estudos regulares, desinteressando-se bem cedo dos
livros impostos pelos mestres, para se entregarem à leitura
absorvente e apaixonante dos livros que lhes agradavam e
eram, muitas vezes, condenados por aqueles mestres. Meninos
indisciplinados, em conflito com os pais, foram Artur e Aluísio
Azevedo, Guimarães Passos, Bilac, todos contemporâneos de
Capistrano. Raul Pompéia, que se curvou à vontade paterna,
submetendo-se ao regime de internato, no Colégio Abílio, vin-
gou-se, depois, dessa situação em O Ateneu, livro típico de um
ressentido. Quer dizer que nesse ponto a vida de Capistrano

171
não se distancia muito da dos outros escritores de sua geração.
Mas a rebeldia no caso parece ter caracteres específicos; fala-
se na impiedade do menino que nem sabia fazer o sinal da
cruz, e costumava sair pelos campos a cantarolar em tom de
desafio: “Não tenho medo do Diabo”; na sua atitude insólita,
trepando à noite nos muros do cemitério, “estranhamente indi-
ferente aos mistérios da morte”. Tudo isso implica traços
particulares, a mostrar o que houve de específico na índole do
pequeno sertanejo, filho de agricultores, de gente simples e
ordeira.
Como e por que veio Capistrano para o Rio de Janeiro? Há
vários depoimentos a respeito, sem que nenhum nos induza a
uma afirmação definitiva. Rodolfo Teófilo, companheiro de co-
légio de Capistrano, diz ter sido Alencar, na última viagem ao
Ceará, que, entusiasmado com a cultura e a inteligência do jo-
vem co-provinciano, dele se fez amigo, trazendo-o para o Rio.
Outros afirmam que Alencar apenas o aconselhou a deixar o
Ceará, tendo Capistrano aceito o alvitre e procurado o roman-
cista, logo ao chegar à Corte, dele obtendo cartas de recomen-
dação e auxílio para os primeiros passos na nova vida que
iniciava.
Essa versão é a mais aceitável. Se José de Alencar tivesse
trazido em sua companhia Capistrano, não é crível que o histo-
riador jamais revelasse o fato a Mário de Alencar, de quem foi
amigo íntimo. Mas em página reproduzida no livro de Pedro
Gomes de Matos, Mário de Alencar, relembrando diversos aspec-
tos da vida e da personalidade de Capistrano, declara: “Do
Ceará quando veio para o Rio, segundo ouvi, por conselho de
meu pai, que lá o conheceu e logo se impressionou do seu
talento. . . ” Nestas linhas estarão, naturalmente, a verdade, em-
bora nos seja lícito imaginar que outros motivos teriam contri-
buído para Capistrano deixar o Ceará. Sem nenhuma ambição
de êxito social ou literário, o exemplo vivo do desprendimento,

172
não havia razões para que a Corte o tentasse como tentava
outros escritores na época.
Ponto controverso, embora de menor importância, é tam-
bém o que se refere à investidura de Capistrano de Abreu nas
funções de crítico literário da Gazeta de Notícias, cuja rubrica
ocupou entre 1879 e 81, mais ou menos. O memorialista Leon-
cio Corrêa, com o seu pendor para o anedótico (ver a obra de
Gomes de Matos), narra uma curiosa história. Por ocasião da
morte de Alencar, Ferreira de Araújo incumbira Machado de
Assis de fazer o elogio do romancista na Gazeta. Chegava Ma-
chado à redação com o artigo quando o diretor lhe apresentou
um original trazido por “um Péri de paletó surrado e cabelos
em desalinho”, que não o assinara, declarando-se apenas cea-
rense e admirador de Alencar. Machado leu-o e tão belo lhe
pareceu o estudo sobre o autor de O Guarani que, depois de
uma exclamação de louvor, rasgou o que havia escrito. Logo
depois, Capistrano seria convidado para exercer a crítica no
jornal. Se isto fosse exato, facilmente se poderia identificar na
coleção da Gazeta de Notícias, na data da morte de Alencar,
o famoso artigo; mas nenhuma página digna de nota ali se en-
contrava.
Não podemos deixar de assinalar ainda como de grande
significação psicológica o problema biográfico que envolve a
amizade do historiador, na mocidade, com Raul Pompéia. O
autor de O Ateneu, homem dificílimo, só teve dois amigos
permanentes: Capistrano e Rodrigo Octávio, segundo o depoi-
mento deste último (Minhas Memórias dos Outros). Com o
primeiro a intimidade foi maior, e dava gosto vê-los juntos,
Capistrano falando de “manso, meigamente”, Raul ouvindo, a
“cabeça inclinada para baixo”, tamborilando com os dedos na
mesa, conforme os descreve Octávio. Certo dia, cortaram brus-
camente as relações, e até hoje ninguém soube dos motivos de
semelhante ruptura, sobre ela ficando a pairar um mistério im-

173
penetrável, em que há de esbarrar a solércia do biógrafo mais
arguto.
Aliás, para atingir nos contornos reais a personalidade e
a vida de Capistrano torna-se necessário desbastar, antes de
tudo, a grande floração anedótica que as envolve. O autor de
Capítulos de História Colonial, pelo seu feitio excêntrico, é um
dos vultos das nossas letras que possui mais copioso anedotário.
Por tudo isso somos levados a concluir que mais facilmen-
te poderemos ter um estudo completo e profundo da obra de
Capistrano do que uma biografia definitiva de sua curiosa e
estranha figura. O homem é por vezes obscuro, nas curvas da
infância distante, nos atalhos da mocidade, nas excentricidades
de “lobo da estepe”.

As C a r t a s L i t e r á r ia s de Caminha

Se o romancista Adolfo Caminha continua vivo, o crítico,


entretanto, ficou inteiramente esquecido. E raramente vemos ci-
tadas as Cartas Literárias, publicadas em volume em 1895 e
nas quais ele deu mostras de um espírito crítico, alerta e tru-
culento. Essas Cartas apareceram primitivamente na Gazeta de
Notícias, em 1893, assinadas com as iniciais C. A., fato que
levou Tristão de Ataide, ao tomar conhecimento delas na cole-
ção do referido jornal, a supor que fossem de autoria de Capis-
trano de Abreu. Concorreu para isso o fato de logo a primeira
ser uma defesa apologética de A Normalista, o conhecido roman-
ce de Caminha. Mas ao publicá-las em livro o escritor alterou-
lhe a redação de maneira a não parecer que estava elogiando a
si mesmo.
Por que teria adotado as iniciais C. A.? Haverá uma razão
provável e outra possível, diz Tristão de Ataíde. A primeira é

174
que, iniciando uma secção em que pretendia atacar o Simbolis-
mo, Caminha desejaria guardar toda independência, desnortean-
do os leitores com a adoção das iniciais invertidas. A segunda
é que talvez pretendesse fazer com que atribuíssem as Cartas
a Capistrano de Abreu, já famoso como historiador e “cronista” .
Reproduzimos a palavra cronista entre aspas. Tristão de Ataíde
devia dizer antes crítico, pois na Gazeta de Notícias Capistrano
de Abreu exercera a crítica literária em caráter permanente
de 1879 a 1881, mais ou menos.
Nessas Cartas, Adolfo Caminha procura fazer um requisi-
torio contra o Simbolismo que então começava a ser cultivado
entre nós, defendendo ao mesmo tempo o Naturalismo pelo
qual moldara os romances A Normalista e Bom Crioulo.
Nesse sentido, atacava frontalmente a geração nova, acusan-
do-a de se haver desviado do bom caminho, aceitando por espí-
rito de imitação o Simbolismo europeu, que na opinião do
crítico não passava de uma simples moda. Dispersavam-se os
novos em fazer literatura por diletantismo, “ sem ideal definido
e civilizador, reproduzindo as mais das vezes, em estilo pobre
e defeituoso, autores estrangeiros”, cujos livros tinham para os
indígenas desta zona americana o valor inestimável de fabulo-
sas pedrarias, ainda mesmo que na verdade nada valessem. Ne-
felibatas, decadistas, independentes viviam a jogar com vocá-
bulos, proclamando o franco declínio do romance naturalista.
Por aí prosseguia Adolfo Caminha, a rejeitar as tendências sim-
bolistas, dizendo não acreditar jamais “na próxima unificação
do pensamento universal, sob a influência do misticismo literá-
rio e religioso” tão preconizado nos últimos tempos. Vinte anos
antes, mais ou menos, Sílvio Romero anunciara em alto e bom
som, na Faculdade de Direito de Recife, a morte da Metafísica.
Adolfo Caminha declarava: “ O renascimento da Metafísica afi-
gura-se-me a renúncia completa de todas as conquistas da ver-
dadeira ciência, a volta ao obscurantismo, a impotência do espí-
rito humano e portanto a negação do progresso” .

175
Mas o curioso é que, ressalvando os méritos de Cruz e Sousa
e B. Lopes nessa nova geração, Caminha assim o fazia por não
considerá-los simbolistas. De Cruz e Sousa dizia:- " . . . é um
dos pouquíssimos que no Brasil tem idéias seguras sobre Arte;
temperamento de eleição, natureza complexa, expandindo-se em
criações admiráveis pela estranha música do verso ou da frase,
onde quase sempre o sensualismo canta a epopéia da carne e
da forma — ele é um independente, um forte, um insubmisso
que honra as letras nacionais”. E mais adiante: “Não tem esco-
la? Sua escola é o seu temperamento, a sua índole, e este é o
maior elogio que se lhe pode fazer”. Ao lado de Cruz e Sousa,
Adolfo Caminha distinguía o talento de B. Lopes, cujo verso
tinha o sabor de um vinho finíssimo.
Na realidade, é difícil estabelecer uma coerência perfeita
entre as idéias do escritor cearense nessas Cartas. Em dada altura
diz ele que sempre se pronunciou contra o antigo veto de se
querer dividir a Arte em escolas, achando que tanto o artista
como a sua obra “devem ser estudados à luz do critério cientí-
fico, pelo prisma da verdade, sem outra preocupação” senão a
de determinar a intensidade do poder criador daquele e a ca-
racterística de sua estesia. Numa carta intitulada “ Indianismo”
e em outra “Nativismo ou Cosmopolitismo” reivindica uma li-
teratura com raízes na terra, exprimindo as peculiaridades do
ambiente brasileiro, em lugar de uma arte toda cheia de abstra-
ções, nebulosa e vaga, que seria naturalmente a simbolista. Re-
conhece por isso a autenticidade do indianismo de Alencar,
increpando contra uma juventude que só lê romances estran-
geiros, copiando os figurinos europeus.
Mas ao formular tais objurgatorias não se lembrava, de-
certo, do quanto A Normalista devia ao figurino de Eça de
Queirós. De qualquer forma são de grande interesse essas Cartas,
que apesar das incoerências revelam um espírito crítico e um
temperamento polêmico.

176
Adolfo Caminha entre a Corte e a Província

De Adolfo Caminha são conhecidos apenas os romances


A Normalista e Bom Crioulo, ambos reeditados ainda recente-
mente. Mas Tentação, publicado em 1896, depois daqueles dois
livros, é raridade bibliográfica. Lúcia Miguel Pereira, na sua
Prosa de Ficção 1870-1920, limita-se a uma ligeira referência,
considerando-o obra secundária, e apenas Sabóia Ribeiro no
Roteiro de Adolfo Caminha (Liv. São José, 1957) dedica-lhe
quatro páginas, resumindo-lhe o enredo e fazendo-lhe uma rápi-
da apreciação. Atribui-lhe muito acertadamente um “incontestá-
vel valor documental”, acrescentando que não sendo um livro
romântico, não possui, no entanto, passagens proibidas. Chega
a ver nele um teste de Adolfo Caminha para mostrar “que as
mesmas mãos que tinham escrito Bom Crioulo também podiam
escrever um quase inocente livro de amores burgueses”. Creio
que Sabóia Ribeiro usou lentes muito róseas para distinguir no
esforço de sedução exercido por Furtado sobre Adelaide, a
esposa do amigo íntimo, naquele beijo que ele lhe roubou e
na ligação adúltera de Dona Branca com o Visconde de Santa
Quitéria apenas “inocentes amores burgueses”. Evidentemente
Tentação não encerra as cenas eróticas, descritas com todo rigor
da técnica naturalista em A Normalista e Bom Crioulo, mas não
chega a ser um romance para menores de dezoito anos, segundo
a classificação adotada no teatro e no cinema.
Tomando, porém, a deixa de Sabóia Ribeiro, quando diz
não tratar-se de um livro romântico, quero tecer aqui alguns
comentários em torno de Tentação. É que, no fundo o enredo
dessa obra me parece justamente inspirar-se numa idéia român-
tica, que esteve muito em voga nos fins do século passado: o
da superioridade da vida rural sobre a vida urbana, o da pro-
víncia sobre a metrópole. Já me referi detalhadamente a essa
idéia, quando procurei estabelecer um paralelo entre o romance

177
A Capital Federal, de Coelho Neto; e a comédia-burleta do mes-
mo título de Artur Azevedo, mostrando a semelhança dos temas
de ambos. Pois Tentação, guardadas certas distâncias, pode ser
colocada na mesma linha. Eis, em duas palavras, o enredo.
Casando-se, depois de formado em Direito, Evaristo vai viver
em Coqueiros, um recanto da Província do Ceará. Inconfor-
mado com aquela existência mesquinha e sem horizontes, resol-
ve abalar para a Corte, prevalecendo-se das facilidades que lhe
faculta o amigo íntimo e ex-condiscípulo, Luís Furtado. Na
Corte, depois da emoção da chegada, começam logo as decep-
ções. Tanto Evaristo como a esposa vão sentindo o artificialis-
mo do meio, os recursos de que seria preciso valer-se para impor-
se na sociedade, a história e o cabotinismo reinantes por toda
parte. Tornava-se necessário, no entanto, adaptar-se à nova vida:
ninguém conseguia progredir num recanto de província. E num
piquenique promovido por Furtado no Jardim Botânico, Ade-
laide é surpreendida pela audácia do amigo do marido que, de-
pois de uma declaração indireta, rouba-lhe um beijo. Mulher
honesta, sente-se com forças para reagir, mas os dias vão pas-
sando, o sedutor, embora com cautela, continua a assediá-la e
ela só vê um meio para fugir ao cerco: propor ao marido o
regresso à província. Nessa altura, Evaristo já farto dos engodos
falazes da metrópole e indisposto com o amigo, também não
alimenta outra idéia senão a de procurar o retiro provinciano
de Coqueiros, onde não havia tanta maldade e os espera a preta
velha Balbina, fiel e amorosa, por eles tão ingratamente aban-
donada.
A idéia romântica a que aludimos está aí perfeitamente
configurada. E como no romance de Coelho Neto, publicado
em 1894, e na peça de Artur Azevedo, em 1897, ambos mais
ou menos da mesma época em que apareceu o livro de Caminha,
o tema pode ser caracterizado no seguinte esquema: sedução
da metrópole, desilusão e regresso à província.
Não obstante, distinguimos um traço naturalista do roman-
ce do escritor cearense. A pressão do ambiente sobre Adelaide,
procurando levá-la ao adultério, lembra a conhecida teoria zo-
lesca, segundo a qual o procedimento dos personagens resultava
das tendências hereditárias somadas com as influências do meio
social. Se o autor não nos esclarece sobre os ascendentes de
Adelaide, dá-nos a entender que ela conseguiu resistir à tenta-
ção do adultério porque era uma criatura pura, sem nenhuma
inclinação viciosa. Mesmo assim lhe atribuiu o desabafo de um
ataque histérico, no momento em que, ficando decidido o re-
gresso à província da esposa de Evaristo, compreendera que
jamais veria o homem que lhe perturbara os sentidos. Eis, por-
tanto, como a idéia romântica do tema prevalece em função de
uma coordenada naturalista.
Sabóia Ribeiro considera, com muita razão, A Normalista
um ajuste de contas de Adolfo Caminha com o meio cearense:
o ambiente provinciano de Fortaleza que tanto se escandalizara
quando ele tivera a ousadia de afrontá-lo, unindo-se livremente
a uma mulher casada. Sim, podemos dizer, sem exagero, que
A Normalista é um romance escrito contra a província, em que
Fortaleza aparece como um antro de maledicências e coscuvilhice,
dominado pelo preconceito e onde quase somente destacamos
criaturas mesquinhas e sem beleza moral. Em Tentação, Adolfo
Caminha fez justamente o contrário: fez a apologia da província;
Coqueiros é um lugarejo nos arredores de Fortaleza, como se
depreende do texto do romance. Devemos admitir que Tenta-
ção tenha sido escrito antes de A Normalista, e portanto antes
do fato que provocou a repulsa do Caminha pelo meio cearense?
Sabóia Ribeiro, autor da mais detalhada biografia do ro-
mancista até agora escrita, nada nos adianta nesse sentido. Mas
de algumas das Cartas Literárias de Caminha e mesmo de alguns
dos seus contos inéditos, que tivemos ocasião de 1er, podemos
concluir que ele não experimentara nenhuma simpatia pelo
meio literário do Rio, onde os novos recém-chegados da pro-
víncia eram sempre hostilizados pelos donos da Rua do Ouvidor.

179
Assim aconteceu com Sílvio Romero: assim teria acontecido com
o autor d’A Normalista. O não-conformismo, a índole rebelde
e independente de Caminha, que concorria para torná-lo tão
pouco feliz na província como na metrópole, devia levá-lo a
voltar suas armas contra ambas. Ou talvez, depois de abando-
nar Fortaleza, sentisse ele que o Rio era, apesar de tudo, muito
pior do que a província.
A intenção de sátira na pintura de vários tipos da Corte,
em Tentação, deixa transparecer o ressentimento do escritor.
Sob esse aspecto é deliciosa a caricatura de Valentim Magalhães
na figura burlesca de Valdemiro Manhães, ou o “Dr. Condicio-
nal”. “Baixo, pequenino, metidinho a crítico, um bigodinho qua-
se imperceptível, sempre de lunetas — era conhecido por Dr.
Condicional, porque nunca dizia as coisas em tom afirmativo:
tinha sempre um mas. . ., um talvez. . . , um se. . . , quando
criticava as obras alheias”.
Adolfo Caminha, como, aliás, vários escritores na época,
devia ter razões de queixas de Valentim Magalhães para carica-
turá-lo impiedosamente. Nas Cartas Literárias já lhe atirara al-
gumas farpas. E Valentim por seu lado lhe pagava na mesma
moeda. Se nas conferências que realizara em Portugal em 1894,
sobre a literatura brasileira, não deixara de citar Caminha —
então estreante, apenas com o romance A Normalista — , jul-
gando-o o verdadeiro continuador de Aluísio Azevedo, mais
tarde, em artigos em A Notícia, passara a hostilizá-lo com fre-
qüência.

Alphonsus de Guimaraens Jornalista

No prefácio que escreveu para a edição das Poesias de


Alphonsus de Guimaraens (Ministério da Educação) João Al-
phonsus diz que o poeta depois de se ter esquivado à idéia do
pai, que pretendia mandá-lo estudar em Coimbra, matriculou-se,
em 1890, na Faculdade de Direito de São Paulo passando a
colaborar nos jornais: O Mercantil, Diário Mercantil, Correio
Paulistano etc. Acrescenta ainda haver ele aí publicado suas
primeiras poesias.
Manuseando as coleções de O Mercantil, de 1891, encon-
trei a 3 de janeiro a seguinte notícia: “Passará a trabalhar nesta
folha o nosso inteligente colaborador Afonso Guimaraens. Poe-
ta delicado e cronista de aptidão, esperamos que o digno moço
preste a O Mercantil sua dedicação”. Em números anteriores
já figuram alguns trabalhos em prosa e verso do “digno moço”,
então primeiranista de Direito. Iria ele agora aparecer regu-
larmente na folha, como redator. Duas secções do mesmo gêne-
ro manterá ele por algum tempo em O Mercantil: “Trechos de
Crônica” e “Spleen”, ambos tipo da croniqueta jornalístico-
literária em fragmentos. Enquanto isso comparece assiduamente
com poesias na secção “ O Parnaso”. Que valor literário possui-
rão essas crônicas de Alphonsus de Guimaraens? Tratava-se de
um jovem, um novo, sem nenhuma experiência nem amadureci-
mento, mas nesse novo o poeta já se revela bem superior ao
prosador, embora, como vim a notar, várias dessas poesias pu-
blicadas em O Mercantil não figurem na edição prefaciada por
João Alphonsus.
No entanto é preciso ter em conta o seguinte: as deficiên-
cias do cronista são mais propriamente as que o gênero apre-
sentava na época. O Simbolismo na poesia deu no Brasil alguns
belos frutos, em que pese a opinião de José Veríssimo; na pro-
sa, produziu geralmente efeitos desastrosos. Basta ver o caso
de Cruz e Souza, como prosador mais ou menos ilegível.
O gênero de crônica praticado por Alphonsus de Guima-
raens em O Mercantil era de evidente inspiração simbolista,
gênero que prevaleceu durante muito tempo entre nós e cuja
influência foi superada, primeiramente, por um Machado e um

181
Bilac; depois, pelos que continuaram a tradiçao destes na pri-
meira década do século: um João do Rio e um Gilberto Amado.
O sentimento poético que no verso nos oferecem as visões
evanescentes e lunares de Kyriale, já em 1891, na crônica dá
coisas assim: “Brilham solitariamente os olhos fixos das estre-
las, que são os olhares das mulheres que para o céu fugiram. . .
E no silêncio das horas mortas, sinto a alma fugir-me do peito,
para encontrar a tua alma que do peito te foge; e a minha
alma e a tua alma, debaixo do pálio azul-marinho do céu, noi-
vam dois pássaros de luz, bicos unidos, asas farfalhantes’’.
Trechos como esse podem ser apontados a todo momento;
era o devaneio romântico, o lirismo hidromélico do tempo de
Álvares de Azevedo, que tomava novo alento, numa época em
que o Simbolismo vinha pôr um certo ar lírico nos jardins, os
gemidos nas sombras, as melancolías ignotas. Submetido a uma
completa filtragem, pela revolução, simbolista na poesia, o Ro-
mantismo continuava a produzir frutos dessorados na prosa. O
novo Alphonsus de Guimaraens, no início da carreira, pagava,
como prosador, um tributo às cloroses da época, enquanto o
poeta de Kyriale já se colocava numa altura pouco comum.
São bem significativos os elogios entusiásticos, e panegíricos,
com que ele saudava o aparecimento do livro Baladilhas de
Coelho Neto (27 de fevereiro de 1891), crônicas e fantasias
mais ou menos no gênero das que escrevia em “Spleen”.
Alphonsus alterna, porém, esse lirismo artificial com nota-
ções críticas, comentários humorísticos sobre fatos do dia, o
que estabelece certas mudanças bruscas de tom nas referidas
páginas.
A 4 de fevereiro, por exemplo, começa no seguinte diapa-
são: “Noite alta lá por fora. Nenhuma estrela abre a pupila
de ouro, espiando a escuridão do espaço. . . ” Vai por aí afora
até certo ponto. Depois, um asterisco e um comentário sobre a
campanha de certo delegado contra o jogo: “Deixe a polícia em

182
paz a roleta” — escreve Alphonsus, achando que cada um tem
o direito de arriscar o que lhe apraz.
Outra vez, é o registro de um acontecimento artístico,
como a representação da ópera “Carmosina” de João Gomes de
Araújo, ou de uma glosa a qualquer debate do momento. Dis-
cutia-se ainda muito em 1891 a conveniência da mulher ser
escritora. Devem ou não devem as mulheres escrever? “Para
mim, deve — responde Alphonsus — logo de saída”. Em outro
tópico tem conclusões assim, que o poeta nunca poria em ver-
so: “A vida é isso. Carnaval e Quaresma: risos e lágrimas” .
Mas o clima geral das crônicas é geralmente o da tristeza
romântica, com laivos de satanismo, visões tumulares e som-
brias, parecendo denunciar leituras mal-assimiladas de Poe com
expressões deste tipo: “Crepúsculo amornado da minha alcova”,
“céu crepado que se concaveia por sobre a minha cabeça”.
Fala, por mais de uma vez, na imagem de um chim que lhe
aparece na solidão do quarto, ora convidando-o a fumar ópio
e aconselhando-o a oferecer à amada o “céu azul transformado
numa turquesa”, ora fitando-o “na sua risonha hediondez” e
exortando-o: “Ao vinho! Ao vinho! Ao vinho!” E numa poesia,
como todas elas muito superior às crônicas e publicada a 11 de
março, sob o título “Cristo Chinês”, alude a um sonho sacríle-
go — “ Perdoa Deus, sonhei que tinha visto” — em que iden-
tificava um chim de porcelana e de cachimbo na boca com a
figura de Cristo.
De quando em quando, também, faz um pouco de crítica
literária. A 16 de janeiro, desanca o livro de versos Vigília de
Armas, de Álvares de Azeredo Sobrinho, “livro vulgarissimo
que dá uma fraca idéia da forte e tão falada literatura dos
novos”. Curioso é o fato de o mesmo jornal iniciar logo depois
uma rubrica de crítica, “ Os novos”, assinada por “Um velho”,
em que os poetas jovens são rudemente tratados, encontrando-se
Cruz e Sousa entre as vítimas preferidas.

183
Também nessas crônicas podemos observar aquilo que cha-
maríamos a evolução do nome do poeta. Primeiro se assina ele
Afonso Guimarães; depois, nas páginas de “Spleen”, passa a
assinar-se simplesmente Guy e, afinal, Afonso Guy.
Precisamente nessa ocasião, O Mercantil estampa uma nota
declarando que o talentoso moço deixava de fazer parte da
redação, embora continuasse a freqüentar aquelas colunas como
colaborador. Ia surgir o grande poeta Alphonsus de Guima-
raens. Mas para o estudo completo que está ainda por fazer-se
sobre o autor de Ismália essas crônicas de Alfonso e Guy repre-
sentam uma contribuição indispensável.

A “Obra de Fôlego” de Valentim Magalhães

Quem folheia as coleções dos jornais e revistas de Rio e


São Paulo, nas duas últimas décadas do século passado, encon-
tra, a todo momento, o nome de Valentim Magalhães, não so-
mente assinando contos, poesia, crítica, artigos polêmicos, como
se envolvendo em toda sorte de iniciativas de caráter literário.
Sua obra, cerca de quinze volumes, ficou completamente esque-
cida e os que a ela se referem hoje fazem-no, geralmente, para
menosprezá-la. Magalhães Júnior chegou a não considerá-lo um
escritor e Agripino Grieco (Evolução da Prosa Brasileira) atri-
buiu-lhe o exercício de uma “ditadura da mediocridade” em
nosso ambiente, na época a que acabamos de nos referir. Vejo
nisso um pouco de exagero, resultante, talvez em parte, de um
conhecimento superficial da larga atividade literária do autor
de Quadros e Contos, de quem dificilmente os alfarrabistas anun-
ciam alguma raridade bibliográfica. Wilson Martins nem lhe
citou o nome, no ensaio A Crítica Literária no Brasil, em que

184
arrolou figuras muito menos significativas. E tal omissão não
se justifica numa obra de caráter histórico, pois fosse uma dita-
dura da mediocridade a exercida por Valentim Magalhães, o
historiador não pode deixar de reconhecer o fato. Ora, acho
que embora crítico secundário, Valentim deixou páginas bem
interessantes no gênero da reviewer. Se reuníssemos tudo o
que dele ficou disperso veriamos quanta contribuição curiosa
para o estudo da nossa literatura, no período naturalista, havía-
mos de encontrar. Disso temos uma mostra no livro Escritores
e Escritos, onde há pelo menos dois trabalhos apreciáveis: um
sobre Aluísio Azevedo e outro sobre Raimundo Correia. Era
este último artigo, juntamente com um de Mário de Alencar,
as duas únicas fontes existentes para o estudo dos poetas até
1916, segundo nos informa Amadeu Amaral, em Letras Flo-
ridas.
Destaca-se em Valentim Magalhães a personalidade do po-
lemista. Manteve em 1888 no Rio uma publicação quinzenal no
gênero de As Farpas, de Ramalho e Eça, e de Os Gatos, de
Fialho, intitulada Notas à Margem. Ficaram célebres suas brigas
com Sílvio Romero e principalmente com Carlos de Laet, nas
quais os adversários se desmandaram na violência das verrinas,
à moda da época. Escreveu também alguns contos interessan-
tes, que já tiveram honras de antologia. A poesia foi talvez o
seu lado mais fraco, embora se tornasse, juntamente com Lúcio
de Mendonça, um dos representantes da chamada “Escola do
Chacal”, a que se filiavam os poetas republicanos e libertários
que escreviam panfletos em versos, atacando o Império e a
Igreja, à feição de Guerra Junqueiro.
Mas uma coisa preocupava Valentim Magalhães: o feitio
fragmentário da sua produção. Escrevendo, continuamente, há
cerca de vinte anos, abordando os mais diversos gêneros, rece-
bia constantes elogios da crítica que lhe opunha, entretanto,
uma ressalva: a de não abalançar-se na elaboração de “uma

185
obra de fôlego”, um “trabalho sério”. A censura lhe calava no
espírito, sobretudo por ser ele o primeiro a fazê-la a si mesmo.
“Mas as necessidades inadiáveis da vida — é o escritor quem
fala — tão pesada para um pai de família pobre nesta terra,
em que das letras ainda não se pode viver exclusivamente, impe-
diram-me sempre de levar por diante esse projeto, cem vezes
formulado e não poucas começado a executar. O tempo que me
deixavam livre as ocupações de que provinha o pão cotidiano
e o meu estado de saúde, precário sempre, chegava apenas
para escrever o conto, a notícia crítica, a crônica faceta, o
artiguinho diário a que me comprometera em um dos vários
jornais; não havia possibilidade de realizar o meu sonho, satis-
fazendo a exigência dos críticos — escrever uma obra de fôlego”.
Seja dito de passagem: é um erro da crítica, muitas vezes,
ver no simples caráter fragmentário de uma obra um motivo
de inferioridade. Fialho de Almeida, por exemplo, torturava-se
nos últimos anos de vida com essa censura. De nada lhe valia
haver escrito os contos admiráveis de A Cidade dos Vícios e de
O País das Uvas, tantas páginas candentes de sátira ou desbor-
dantes de lirismo, em Os Gatos, nas Pasquinadas ou na Vida
Irônica; a crítica considerava tudo isso produção fragmentária,
irregular, sem unidade e pedia-lhe um livro de grande fôlego,
que seria, no caso, um romance. Fialho nunca chegou a produ-
zir esse romance. Mas Valentim Magalhães — e não estamos
fazendo nenhum paralelo qualitativo, no caso — decidiu-se de
qualquer maneira a atender as reclamações dos críticos e fazer
o romance, a obra de fôlego há tanto tempo exigida.
Assim em 1897, numa edição Laemmert, lançou a Flor de
Sangue, com um prefácio de dez páginas. Os prefácios foram
utilizados por alguns realistas e naturalistas para justificar a
moral dos seus romances e evitar os mal-entendidos do público;
com uma espécie de defesa antecipada dos ataques que, por
esse lado, freqüentemente suscitavam. Se Valentim Magalhães

186
se limitasse a fazer isso, utilizar-se-ia de um processo já meio
antiquado em 1897, mas não teria cometido um pecado mais
grave. O que ele fez, porém, foi lamentável e verdadeiramente
ridículo: depois de explicar o motivo que o levou a escrever
o romance — o de oferecer aos críticos a obra reclamada —^^vem
declarar, num tom de ingenuidade inconcebível, que esse livro
saiu com muitas imperfeições de forma, simplesmente por ter
sido escrito às pressas, no primeiro jato, sem o polimento ne-
cessário. Acrescentando, logo em seguida: “A circunstância de
escrever de um jato, sem o polido e o repolido que Boileau
tanto aconselhava aos ferreiros da idéia, só é prejudicial às obras
mal concebidas e mal nascidas, que não trazem dentro alguma
coisa de humano, de luminoso; bem sei, Manon, Le Neveu,
Candide, Adolphe são obras-primas, e no entanto foram escri-
tas sem rasuras, lembra P. Bourget em um dos seus livros”.
Parece que esse raciocínio, tão ingênuo, não comporta discussão.
Afinal de contas, se a obra se apresenta cheia de imperfeições,
foi evidentemente mal nascida. Ninguém pergunta a um roman-
cista se ele escreveu sem rasuras ou se refundiu cinco ou seis
vezes o seu trabalho; o que se leva em conta é o resultado.
Uma vez que este não foi feliz, não há espontaneidade nem
pressa capaz de atenuar-lhe os defeitos. Mas Valentim Maga-
lhães, depois de apelar para a “correntia espontaneidade”, acaba
contraditoriamente reconhecendo não ser isso justificativa das
imperfeições que deslustram o romance. Não é justificativa, mas
é um fato diz ele — e como tal o denuncia à crítica “para que
o registre se lhe aprouver”. A crítica fez mais do que registrar
o fato: na quase unanimidade, desancou o livro. Até Lúcio de
Mendonça, velho companheiro de Valentim, e que com ele co-
laborou na autoria de um panfleto, O Escândalo, não o poupou.
Parece que uma das únicas vozes a se erguerem para defender
o romance foi a de Raimundo Correia — o poeta cuja genero-
sidade era proverbial. Desse coro hostil da crítica nos chegou
uma página famosa: o artigo de José Veríssimo “Literatura

187
Apressada”, publicado na Revista Brasileira e incluído num dos
volumes dos Estudos de Literatura Brasileira.
No entanto, apontando todos os defeitos do romance, a sua
absoluta frustração, Veríssimo não assinalou o que, julgamos,
teria sido o objetivo primordial de Valentim Magalhães ao arqui-
tetar o enredo. O livro divide-se em duas partes, mas na reali-
dade a segunda é uma continuação esporádica da primeira, em
que o conflito essencial encontrara o seu desfecho. E qual esse
conflito? O sentimento de culpa de um homem — o jovem mé-
dico Paulino — que, apaixonado pela esposa do amigo íntimo
e protetor, vindo a traí-lo, só encontra uma solução no suicídio.
Veríssimo mostrou perfeitamente os dados psicológicos falsos
em que o drama é configurado, chegando à conclusão de que
um indivíduo do estofo moral de Paulino jamais se suicidaria.
Alegou, além disso, o repisado do tema: isto é, um homem
trair um amigo íntimo já caíra no rol das velharias romanescas.
Euclides da Cunha achou, porém, que Valentim Magalhães re-
novara esse velho tema. Parece-nos que a verdade é a seguinte:
o autor de Flor de Sangue procurou realmente apresentar, sob
um aspecto novo, o problema da culpa e da punição no adulté-
rio. Ninguém ignora os debates suscitados pelo panfleto de
Dumas Filho: L’Homme Femme. Dumas Filho achava que no
caso de adultério, o marido tinha o legítimo direito de matar
a esposa. Tue-la era a sua palavra de ordem. A essa tese o
nosso Lúcio de Mendonça opôs uma outra, no romance O Ma-
rido da Adúltera, publicado em 1882: em lugar de matar a
esposa o marido devia matar-se, pois seria sempre, no fundo, o
verdadeiro culpado da traição de que fora vítima. Ora, Valentim
Magalhães procurou colocar o mesmo problema em outro ângu-
lo: agora era o amante, reconhecendo a culpa, quem devia
suicidar-se. A inspiração do Tue-la de Dumas Filho torna-se
evidente, embora o autor não faça nenhuma referência a isso
no prefácio, ao defender a moralidade do romance. O tema não

188
seria pois o de um homem traindo o seu amigo, como julgou
Veríssimo, e sim o da responsabilidade no adultério, equacio-
nado de uma nova maneira. Euclides da Cunha teve razão, em
parte. Mas acontece que das intenções de Valentim Magalhães
para a realização foi uma grande distância. Flor de Sangue é,\
certamente, um romance fracassado, embora mereça ser recor-
dado pelo que reflete da influência de um dos grandes problemas
éticos, em torno do qual girou a novelística do século passado.
Mas esse livro que quase ninguém leu, tão difícil de encon-
trar-se (devo a sua leitura à gentileza do jovem e ilustre ensaísta
Valdir Ribeiro do Vai), ficou na memória de muita gente apenas
por causa de um detalhe pitoresco. Valentim Magalhães não
hesitara em pôr-lhe esta errata: “Na página tal, onde se lê estou-
rar os miolos, leia-se cortar o pescoço”. Até Euclides da Cunha,
no discurso de recepção na Academia, falando da atitude dos
críticos contra Flor de Sangue, alude ao fato. O exemplar que
tenho em mãos não traz nenhuma errata. Tratando-se de edição
única, só se pode admitir a hipótese do pudor, arrependendo-se
de havê-la colocado, tê-la suprimido nos exemplares que ainda
se achavam nas livrarias. E não será uma lenda a história dessa
errata, uma dessas perfidias que se cristalizam na tradição oral?
Pois, na verdade a correção se impunha. Valentim Magalhães —-
devido ao ritmo acelerado em que escreveu o romance, segundo
as próprias declarações — depois de fazer Paulino suicidar-se
cortando o pescoço, distraiu-se, e, na segunda parte, levou Cori-
na a recordar o amante nestes termos: “ Se ele a amasse deveras,
como lhe dissera e jurara tantas vezes, em vez de deixá-la e
estourar os miolos. . . ”
Conseqüência da pressa? Sim. Mas muita gente boa tem
incorrido em lapsos semelhantes. Amadeu Amaral arrola dois
deles em Flaubert, que escrevia com todo o cuidado e era o
avesso mesmo do escritor “apressado”.
Coelho Neto na Tribuna Parlamentar

Já se repetiu, erroneamente, e durante muito tempo, o ve-


lho chavão de que Machado de Assis viveu alheio à realidade
político-social do Brasil. São dessas versões absurdas que, à for-
ça de serem aceitas sem exame (dada a nossa irremediável pre-
guiça mental), adquirem uma aparência de verdade, difícil, de-
pois, de ser destruída.
O mesmo se tem dito de Coelho Neto. E como as gerações
novas ignoram quase inteiramente a obra do fecundo escritor,
muita gente talvez não saiba que o autor de Sertão foi também
político, tomando parte na representação maranhense na Câma-
ra Federal, durante três legislaturas. E é esse aspecto de sua
personalidade que vamos aqui esquematizar.
Tem-se dito igualmente que à geração de Alencar, Tavares
Bastos, Francisco Octaviano, homens austeros, preocupados com
os problemas brasileiros, sucedeu uma geração de espíritos le-
vianos e brincalhões, alheios à realidade brasileira, consumindo
o tempo em piadas de café: a famosa geração boêmia. Outra
versão errônea, aceita irrefletidamente. Geração leviana e brin-
calhona, a que lutou pela libertação dos escravos e tomou parte
ativa na propaganda republicana?
Boêmio, Coelho Neto, como Bilac, Aluísio, Raul Pompéia e
tantos outros, também se bateu pela Abolição, formando no
grupo de Patrocínio na Cidade do Rio, e pela República, no
Diário de Notícias de Rui Barbosa. O romancista de Rei Negro
casou-se em julho de 1890, no ano seguinte da queda da Monar-
quia. Fora o fim da sua vida de boêmio. Por outro lado, o novo
regime, criando possibilidades de vida regular para os que por
ele haviam lutado, dera um sério golpe na boêmia.
Em 1891, Bilac parte para a Europa, como correspondente
da Gazeta de Notícias. Raul Pompéia obtém um cargo público.
Não tardará a partir também Aluísio de Azevedo, como cônsul

190
em Vigo. Muitos escritores se distraem da Literatura com a
obtenção de empregos valiosos. Ê o que concluímos pela leitura
dos jornais da época.
Em 1890 ainda, Coelho Neto, que como a maior parte dos
companheiros já abandonara as tertúlias de café (A Conquista
narra o fim desse período), passa a ocupar o cargo de secretário
do governo fluminense; e em 1891 o de diretor de negócios na
Secretaria da Justiça e Legislação do Estado do Rio.
A entrada de Aluísio Azevedo, seu velho e íntimo amigo,
para a carreira consular devia ter-lhe despertado a sedução
da diplomacia. Coelho Neto pensa, por seu lado, em seguir a
carrière. Candidatando-se em concurso a um lugar de secretário
de Legação, consegue ser classificado. Mas recusa-se a ocupar
o posto. Já então iniciara a vida metódica, disciplinada, de
verdadeiro grilheta da pena. As Rapsódias são de 1891; A Ca-
pital Federal, seu primeiro romance, de 1893. Quase vinte anos
depois, tem nova oportunidade de entrar para a diplomacia,
ante um convite de Rio Branco, e mais uma vez recusa. Em 1909
é eleito deputado pelo Maranhão. Começa aqui a vida política
que se prolonga apenas por oito anos.
Gênio verbal por excelência, Coelho Neto encontraria na
tribuna da Câmara meio adequado para expansão de uma ex-
traordinária capacidade oratória. Tive ocasião de ouvi-lo falar.
Foi uma das maiores impressões da minha adolescência. Vivia
eu na cidade do interior onde nascera; já havia lido alguns
livros do escritor, quando me surpreendeu a notícia de que ele
ali iria pronunciar uma conferência. Que noite inesquecível!
Magro, dessa magreza de sertanejo nordestino que exprime rigi-
dez e não fraqueza, Coelho Neto traduzia certo abandono nos
gestos, mas perturbadora vivacidade nos olhos de índio. Impas-
sível permaneceu durante o discurso de apresentação. Afinal,
levantou-se e que surpresa! Daquele ser escanifrado surgia uma
voz poderosa, quente, possuindo todos os registros — a voz
ideal do orador. Na mesa, apenas algumas notas: Coelho Neto

191
lançava, de quando em quando, os olhos por elas e prosseguia,
sempre a improvisar, imaginoso e torrencial, dizendo e represen-
tando, ao mesmo tempo, uma gesticulação sóbria e perfeita. Já
evoquei, certa vez, numa crônica, essa impressão indelével.
Tal devia ser o orador na tribuna parlamentar.
Os primeiros discursos de Coelho Neto, na Câmara, encon-
tram-se reunidos no livro Falando. . . O autor de Rei Negro
não debate, em geral, questões especificamente políticas. São
assuntos de interesse nacional, sem feição partidária, que o le-
vam quase sempre a pedir a palavra.
Assim, logo ao assumir o mandato, pronuncia um discurso
justificando um projeto, que hoje pode ser relembrado bem a
propósito neste momento: o da criação de “um prêmio de dois
conto de réis para a melhor composição poética que se adapte
com todo rigor do ritmo à música do Hino Nacional Brasileiro”.
Era um problema que até então não havia sido solucionado.
Parecia incrível; não tínhamos um hino para cantar. Coelho
Neto, no seu discurso, alude a um fato narrado por Euclides
da Cunha. Quando se achava nas fronteiras do Brasil com o
Peru, no desempenho da missão oficial que ali o levara, Eucli-
des tivera oportunidade de ouvir os peruanos, em plena selva
amazônica, entoar, cheios de entusiasmo, o Hino Nacional na
data máxima da nação vizinha. O escritor ficara pesaroso, fa-
zendo votos para que não se vissem os nossos patrícios na con-
tingência de passar o dia 7 de Setembro ali, a fim de não darem
ao estrangeiro fronteiriço o triste testemunho de um lamentá-
vel silêncio.
Urgia obter-se uma letra para o Hino Nacional Brasileiro,
cuja música é, indiscutivelmente, bela e arrebatadora. Na ver-
dade, de vez em quando, forjavam-se letras não oficializadas,
fazendo-se as crianças cantá-las nas festas escolares. Antônio
Torres cita uma das mais desastradas, cujas primeiras estrofes
aqui reproduzo de memória:

192
“Ave Pátria, surge agora
Ensinando a lei sublime
Que a justiça revigora
E a fraternidade exprime.

Oh! Colombo! Teu invento


É um solo vasto e fecundo.
Não tem o trono um assento
Nas plagas do Novo Mundo”

Diante de tal letra é fácil compreender-se a decisão da co-


missão julgadora que premiou o poema de Osório Duque-Estrada.
De qualquer forma, partiu de Coelho Neto a iniciativa do
projeto que nos deu um hino para cantar. Se a letra não foi
mais feliz, a culpa não teria sido do deputado maranhense.
A 16 de agosto de 1909, Coelho Neto ergue-se a fim de
pedir um voto de pesar pela morte de Euclides da Cunha. Foi
um discurso curto, mas profundamente comovente.
Ainda em 1909, fala para mostrar a necessidade de insta-
lar-se o Parlamento Nacional num prédio condigno. O edifício
da Cadeia Velha, onde funcionava a Câmara, era tradicional,
mas se achava em ruínas. Nele estivera preso Tiradentes. “Esta
casa é mal-assombrada!” — exclamava Coelho Neto nessa ora-
ção, de certo uma das mais literárias de quantas ali pronunciara.
A 3 de agosto de 1910 o escritor fala sobre a transladação
do corpo de Joaquim Nabuco.
A 6 de setembro de 1911 pronuncia um dos discursos mais
longos, aparteado várias vezes, protestando contra a devastação
das florestas, assunto que se presta, sem dúvida, a belas divaga-
ções literárias, das quais o orador tirou, naturalmente, partido;
mas que nem por isso deixa de ser de grande interesse nacional
e de cunho essencialmente prático. Convém lembrar que o pro-
blema, agitado em 1911 pelo “ Literato”, até hoje continua a
preocupar os legisladores e governantes.

193
A 23 de julho de 1912, Coelho Neto ergue a voz para
propor a repatriação dos restos mortais de Dom Pedro II e
Dona Teresa Cristina, que (segundo se afirmava) com a Pro-
clamação da República portuguesa, dois anos antes, se achavam
no mais completo abandono no Panteón dos Braganças, em São
Vicente de Fora (ver, a propósito, livro de Garcia Redondo,
Através da Europa). O discurso começa com uma longa citação
de passagens da tragédia grega, sabida como é a grande impor-
tância política e humana que os gregos davam ao sepultamento
dos proceres em terras da pátria. Coelho Neto relembra, a pro-
pósito, a visita que, na qualidade de secretário do governo do
Estado do Rio, fizera a Deodoro quase moribundo: “Fui — diz
ele. — No Itamarati a ansiedade era grande; temia-se pela vida
do generoso soldado. Guiaram-me à câmara onde ele sofria.
Entrei muito de passo, abeirei-me do leito, ouvindo, com angús-
tia, o sarrido da dispnéia. O valente encarou-me com o seu
olhar vulturino, estendeu-me a mão em silêncio e em silêncio
ficamos. Súbito, como atraído, o meu olhar subiu ao alto da
parede da câmara e lá, à cabeceira do grande leito, fixou-se em
um retrato. Um gesto mal contido denunciou a minha surpresa.
O Marechal percebeu-o, e sorrindo se soerguendo-se nas almo-
fadas disse cansadamente: “ O Imperador. Era meu amigo,
Um bom. . . ”
E terminando o discurso, Coelho Neto dizia que não se devia
deixar no Brasil dois túmulos à espera de dois corpos.
Mas as paixões ainda estavam muito vivas nessa época. A
idéia de Coelho Neto não vingou. Só oito anos depois era apro-
vado um projeto de lei repatriando os despojos dos soberanos
mortos no exílio.
A 24 de fevereiro de 1915, quando a guerra assumia o
aspecto mais trágico e alarmante na Europa, Coelho Neto fazia
causa comum com a campanha patriótica iniciada por Bilac.
Aliás, fora da tribuna parlamentar, secundara ele, com veemên-
cia, a pregação cívica do poeta.

194
Restaria lembrar ainda o discurso de 23 de outubro de 1915
sobre o abandono da terra, outro tema que, embora se pres-
tando a evocações virgilianas, jamais será acoimado de abstrato:
tema de todos os momentos, que ainda atualmente tanto nos
preocupa.
Infelizmente, não encontrei na Biblioteca Nacional o Volu-
me Falando. . ., no qual se acham tais discursos, não podendo
tornar-me assim mais preciso nos comentários e nas citações.
Guiando-me pelas indicações de Paulo Coelho Neto, na obra
que escreveu sobre o autor de Treva (p. 215), consegui apenas
reviver por alto o substrato das referidas orações. Não creio,
por outro lado, que a consulta dos Anais da Câmara possa dar
testemunho muito mais amplo da atividade parlamentar do
deputado maranhense, já que Paulo Coelho Neto assegura se-
rem esses os discursos e projetos que mais merecem destaque.
Simples expansões literárias de um grande orador? Ao
contrário: política — protestaria o romancista de Turbilhão,
avocando para o termo o sentido que lhe emprestou Rui Barbo-
sa, na famosa apóstrofe de Haia — política na legítima expres-
são da palavra.
Não seria essa, porém, a opinião de muita gente, para quem
Coelho Neto, na tribuna parlamentar, não passara nunca de
um “literato”. Em 1918, o governo do Maranhão retira o nome
do escritor da chapa oficial. “A imprensa e os estudantes de
todo Brasil iniciaram um movimento de protesto de tão larga
envergadura que não encontra exemplos na vida política do
País” — diz Paulo Coelho Neto na obra citada (p. 137).
O escritor vai ao Nordeste pleitear como independente a
própria candidatura. Recebe grandes manifestações na Bahia e
em Recife, onde é saudado por Oliveira Lima.
Contou-me um amigo tê-lo visto nessa ocasião, ficando ver-
dadeiramente comovido com a maneira pela qual o romancista
conclamava os eleitores, narrando apólogos, relembrando passa-
gens mitológicas, num estilo tão diverso da demagogia política

195
a que qualquer um recorrerla no caso. Pensaria decerto, assim,
conjurar as forças poderosas que contra ele se erguiam.
Mas da derrota ficou-lhe, acima de tudo, urna carta admi-
rável de Rui Barbosa: " . . . não há de estranhar estes arrancos
de obscurantismo pelas regiões parlamentares, onde tudo vai
baixando, cegando, em progressão constante, de legislatura em
legislatura”.
Logo depois, uma alusão candente ao “povo que, neste
País, se prezava de ateniense”.
Naturalmente o único ateniense no caso continuaria sendo
Coelho Neto. Malgrado as alusões depreciativas era este o
título de louvor que ele mais continuaria a pregar.

Rui e Seus Adversários

Um dos detalhes que particularmente impressionam na


personalidade de Rui Barbosa é o fato de esse erudito cem por
cento, esse homem de livros, homem de gabinete, ser, ao mes-
mo tempo, um homem de rua, habituado a enfrentar as turbas,
a sacudir as multidões, a criar adversários e a dar-lhes combate
com uma impavidez sem nome. Discursando na Biblioteca Na-
cional, por ocasião do seu jubileu, declarava não considerar-se
um escritor, pois bem restrito era o quinhão literário da sua
atividade, derivada quase sempre para a política, a administra-
ção, o direito, as questões morais, as questões sociais etc. “Tudo
mais demonstra — dizia ele — que esses cinqüenta anos me
não correram na contemplação do belo, nos laboratórios da Arte,
no culto das letras pelas letras. Tudo mais está evidenciando
que a minha vida toda se desdobra nos comícios e nos tribunais,
na imprensa militante ou na tribuna parlamentar, em oposições
ou revoluções, em combate a regimes estabelecidos e organiza-
ção de novos regimes. O que ela tem sido, a datar do seu pri-

196
meiro dia, a datar do brinde político a José Bonifácio, a 13
de agosto de 1868, é uma vida inteira de ação, peleja ou apos-
tolado”.
Devemos ver assim na assombrosa fecundidade intelectual
de Rui Barbosa a negação daquilo que chamaríamos a cultura
pela cultura. Decerto, esse homem, quando se encontrava no
silêncio de sua biblioteca — aquela biblioteca imensa, que se
estende por todos os recantos do vasto solar de São Clemente
—, quando ali se achava, curvado sobre um livro, a sublinhar
períodos e frases, segundo o seu costume, não procurava, ape-
nas, a satisfação de armazenar conhecimento, a volúpia da sabe-
doria; muito menos procuraria a cultura como um meio de
alhear-se às misérias do mundo, e por aí manter-se indiferente
aos erros que vão pela terra. Não. Pudesse a cultura apenas
conceder-lhe esse privilégio e ele possivelmente a desprezaria.
O que buscava no livro era um instrumento de ação, de com-
bate. A cultura que não fosse para servir ao mundo, para opor-
se aos erros e às misérias jamais teria sentido para ele. Orador
palavroso, prolixo superabundante, extenuante. Falava, decerto
torrencialmente, mas não usava da palavra pela palavra: tinha
sempre algo a dizer e se o dizia em longas orações era porque
se “em quatro palavras se poderá encartar uma calúnia”, “pode
ser que a demonstração da falsidade não caiba num discurso” .
A ação, a luta, foi assim o clima natural de toda a sua
existência. Desfazer-se-ia, possivelmente, da maior parte dos
livros no momento em que estes já não lhe fornecessem armas
para as campanhas que tinha em mira. Esse lutador impeni-
tente jamais realizaria o tipo do “bom homem”, do indivíduo
amável e inofensivo, disposto a transigir a fim de evitar com-
plicações, e que ninguém tem coragem de magoar e ofender.
A bondade de Rui Barbosa era a bondade dos lutadores, dos
heróis, dos apóstolos, uma bondade ativa, enérgica, viril, pronta
a reverter-se em repulsa e agressão, no instante em que esbarra
na hostilidade, no erro e no mal. Todo homem de grandes ami-

197
gos há de ser forçosamente de grandes inimigos. Rui Barbosa
pertencia a essa família. E acontece que no seu caso os maiores
inimigos foram, geralmente, os que haviam sido antes grandes
amigos. Intransigente nos princípios, nas idéias pelas quais lu-
tava, Rui se via, por vezes, na contingência de sacrificar os
melhores afetos, para seguir o rumo das campanhas em que se
empenhava. Assim rompeu com Floriano, com Azeredo, com
Pinheiro Machado e outros. O caminho estava traçado; havia
um itinerário a seguir; se os amigos não o acompanhavam, iria
só, à frente, não hesitando em combater as afeições do dia
anterior. Poucos homens foram mais admirados no Brasil e
poucos mais detestados. “Com Rui nem para o céu!” — dissera
certa vez Rosa e Silva, quando se ajustava a candidatura Hermes.
Não vamos relembrar aqui todos os adversários de Rui
Barbosa. Seria traçar-lhe a biografia, já que a história dessa
vida é a história das suas lutas. Até as vésperas da morte, em
Petrópolis, Rui se “opunha”, protestava, rebelava-se, conside-
rando o mundo como dividido entre partidários e adversários.
“Talento não é juízo” — dissera-lhe o primo, conselheiro
Albino, quando Rui, jovem, transitara pela Corte, a caminho
de São Paulo, onde ia concluir o curso de Direito. A advertência
de nada valeu a essa índole de lutador. Rui jamais “criou”
juízo no sentido em que o conselheiro Albino aludia. Ainda nos
dias de 89, convidado por Ouro Preto para tomar parte no
ministério, e recusando por uma fidelidade ideológica que qual-
quer outro político não encontraria dificuldades em contornar,
o experimentado Afonso Celso lhe reconhecería a ausência irre-
mediável de juízo: — “Que loucura de homem! Mete os pés
no futuro”. Metia, também, sem a maior cerimônia, os pés nas
amizades.
Os primeiros adversários de Rui foram os adversários de
seu pai, João Barbosa, também político, que militou ardorosa-
mente no Partido Liberal. Já se disse que a vida de Rui deve ser
estudada em função da vida do pai. Tomando por modelo João

198
Barbosa, Rui fez tudo para reproduzir-lhe a existência, seguindo-
lhe as mesmas inclinações, os mesmos ideais. “Esta cabeça em
mim diminuída não é senão a sombra da dele, o maior orador
que jamais vi” (cito de memória).
Quando o pai morreu, Rui adotou-lhe as dívidas, adotan-
do-lhe igualmente os adversários. E entre os inimigos em que
esbarrou logo e aos quais combateu estavam o Barão de Cote-
gipe, chefe do partido conservador na Bahia, e o próprio tio do
jovem político, Luiz Antônio Barbosa de Almeida. Sabe-se ter
o rompimento, deste com o cunhado, ocasionado um profundo
desgosto de família, de que resultara a morte da mãe de Rui,
por volta de 1867.
Em 1881, depois da dissolução da Câmara, no momento
em que Rui pleiteava a renovação do mandato, vem a travar
no Diário da Bahia a mais encarniçada polêmica com o tio,
que se achava por detrás do jornal O Monitor. A assinatura de
Rui, na qualidade de testemunha, posta em confiança num pro-
cesso de inventário, foi denunciada por Luiz Antônio como
fraude, expondo o sobrinho à execração pública. De nada
valeu a réplica incisiva deste último; o inimigo voltou à carga
e a polêmica se travou nos termos mais violentos e corrosivos,
os dois parentes a se retaliarem mutuamente, com grande escân-
dalo dos leitores, numa pequena cidade de província, como era
a Bahia naquela época.
Na República, porém, era que Rui iria encontrar o seu
mais poderoso adversário: Floriano Peixoto. Aqui a oposição
assumiu o aspecto simbólico de dois princípios em choque.
Floriano teria repetido a frase de Ouro Preto, quando começara
a perceber a intransigência do ex-ministro da Fazenda: “Mete
os pés no futuro!” Sabe-se do empenho do Marechal em ter
Rui como aliado. Avaliara melhor do que ninguém a força
daquele homenzinho e concluira o quanto ela podería ser
incômoda se voltada contra o governo. Luiz Viana Filho, no
seu conhecido livro, imagina um ditador — Mefistófeles — a se-

199
duzir um Rui — Fausto. Por ocasião do manifesto dos generais,
quando Floriano já desencadeara francamente o reinado da
prepotência, prendendo e exilando não só os signatários do
manifesto como deputados e senadores, ainda poupara Rui
Barbosa. Não o impedira de defender os prisioneiros e reque-
rer o famoso Habeas-Corpus, negado pela quase unanimidade
do Supremo Tribunal.
Livre, Rui continua pela imprensa na mais feroz campanha
contra Floriano. E é um título de honra para o ditador haver
insistido em dar uma aparência legal ao seu governo discricio-
nário, fazendo à liberdade as concessões que permitiam a opo-
sição furiosa de Rui. Enigmático, com a sua túnica desabotoada,
o cigarro de palha, recebendo os íntimos no Itamarati, Floriano
teria um vago sorriso para as arremetidas daquele homenzinho
ranheta. Deixassem-no gritar, que o barco ia correndo. De qual-
quer forma, as ditaduras do futuro seriam bem mais violentas
e causa-nos certo arrepio pensar o que seria a sorte de Rui diante
de um Hitler.
A hora do exílio veio, afinal, e Rui soube suportá-la com
o destemor que era de esperar-se. Depois de quatro anos na
Inglaterra, de volta ao Brasil, ver-se-á, novamente, cercado de
adversários. Os jacobinos apertarão, debalde, o cerco em torno
do homem que não temera Floriano.
A atitude mais frisante e expressiva de Rui em luta era,
sem dúvida, a do orador na tribuna. Ali, mais do que nos edi-
toriais da imprensa estava ele em toda a plenitude da sua força.
Falava, às vezes, quatro horas em seguida. Os adversários che-
gavam a organizar turmas para ouvi-lo e rebatê-lo. E quando
caía sobre alguém, não o poupava, descobria todos os pontos
vulneráveis do inimigo, ia até o fim. Seria ele a dizer a última
palavra. Em abril de 79, em pleno Império, o conselheiro
Dantas encarregava-o de responder a Silveira Martins o ataque
que este acabava de endereçar ao gabinete do qual saíra na
véspera. Rui, convalescente de grave enfermidade, animado pelas

200
palavras de Dantas, que o concitava a fazer “um dos seus mi-
lagres”, supera a situação num discurso violento e tranchant,
do qual lhe resulta por quase quinze anos a inimizade de Sil-
veira Martins.
Em 1892, depois de ter deixado o Ministério da Fazenda,
no Governo Provisorio, vê-se acusado de haver levado o país
à ruína, com sua política financeira. Ramiro Barcelos ataca-o
no Senado, seguido por toda a bancada rio-grandense. É uma
campanha memorável, em que Rui se multiplica em revidar os
golpes de todos.
Mais tarde, será contra Cesar Zama que deverá mobilizar
essa poderosa dialética. O inimigo atacara-o na vida privada.
Rui paga com a mesma moeda, penetrando fundo no vício
terrível que tanto desdoirava o adversário: o jogo.
Ligar-se-á de amizade a um homem suave, de flor na la-
pela, sem cultura, mas de maneiras insinuantes e sedutoras:
Antônio Azevedo. E nesse homem encontrará, também, certo
dia, um adversário, embora, mais tarde, entre as amarguras das
decepções políticas, reconciliem-se.
Sentirá uma simpatia irresistível pela rompância, o pana-
che, a bravura caudilhesca de Pinheiro Machado. Não tardará
a tê-lo como amigo íntimo. Pinheiro entra no solar de São
Clemente, sem pedir licença, vai ao guarda-roupa de Rui e
escolhe a gravata que melhor lhe agrada, é “gente de casa”,
todos lhe apreciam a rompância, aquelas atitudes de guerreiro
em disponibilidade. Também esse amigo irá para o campo opos-
to. Pinheiro sustenta Hermes contra Rui e depois da campanha
civilista, quando o candidato vencido inicia no Senado mais
uma daquelas suas “ferozes oposições” ao governo, o ex-comen-
sal de São Clemente será dos primeiros visados. Em setembro
de 1916, Rui passará por ter contribuído, com seus freqüentes
e implacáveis discursos, para armar a mão do fanático que assas-
sinara Pinheiro Machado.

201
Mas nessa vida toda desdobrada nos "comícios e nos tri-
bunais, na imprensa militante ou na tribuna parlamentar”, se
Rui consegue ressalvar sempre a nobreza e a dignidade dos
princípios, os triunfos geralmente não se concretizam no campo
prático da ação política. Sentirá ele uma perfeita compensação
nessa vitória moral? Acreditamos que não. Embora insuflado
por uma predestinação mais alta, Rui nunca diría que o seu
reino não era deste mundo. Se abdicava do poder pelos princí-
pios, longe estaria de desdenhar o poder, como meio para fazer
valer os princípios. Assim, as derrotas haviam de doer-lhe pelo
que elas embaraçariam a própria marcha das idéias a que se
votava.
Duas campanhas presidenciais antecipadamente fracassa-
das, mas desesperadamente defendidas, em holocausto aos prin-
cípios, seriam para ele bem árduo sacrifício.
Nqs últimos anos de vida, Rui parece já encontrar certo
gosto masoquista no sacrifício. Chega a romper com a própria
Academia de Letras, por um incidente sem maior importância,
declarando não se considerar digno de sentar-se naquela assem-
bléia. E como sempre não lhe faltam adversários. Antônio
Torres, entre outros, fustiga-o nas suas crônicas, dizendo que
depois de tanto ter desejado ser presidente da República, ainda
se consolaria em ser presidente do Grêmio das Turmalinas
Pretas. Decerto, desperta o espírito fácil dos comentaristas ini-
migos a categoria de eterno candidato derrotado.
Velho, doente, Rui não se resignará à passividade dos
desiludidos. Luta para perder, mas lutará até o último momento.
“Talento não é juízo!” — repetiría, debalde, o bom senso
conformista do conselheiro Albino ao ancião trêmulo e alcachi-
nado, tal como dissera, há cerca de cinqüenta anos, ao jovem e
árdego estudante de Direito. Na “Oração aos Moços”, em 1919,
o velhinho sem “juízo” exaltará a ira dos bons:
“ . . . não somente não peca o que se irar, mas pecará não

202
se irando. Cólera será; mas cólera da mansuétude, cólera da
justiça, cólera que reflete a de Deus, face também celeste do
amor, da misericordia e da santidade”.
Assim o viram alguns amigos e correligionários na casa de
Petrópolis, na noite de 31 de abril de 1923, pronunciando o
seu “último discurso”. No dia seguinte falecia.

A Obra Crítica de Araripe Júnior

Li com relativa rapidez as quinhentas e doze páginas da


Obra Crítica de Araripe Júnior editado pela Casa de Rui Bar-
bosa, sob a direção de Afrânio Coutinho. É esse apenas o
primeiro volume; a obra toda deverá compor-se de cinco, reu-
nindo, além dos livros já publicados por Araripe Júnior, tudo
quanto ele deixou esparso em jornais e revistas e que se encon-
tra praticamente inédito. Já neste volume figurou o ensaio sobre
José de Alencar, que me é muito familiar, motivo por que, a
rigor, posso dizer haver lido as quinhentas e doze páginas, ex-
ceto as cento e trinta e sete de que se compõe o referido
ensaio.
A matéria foi disposta em ordem cronológica, começando
o livro com o artigo "Música”, estampado no Correio Pernam-
bucano de 31 de agosto de 1868, sob o pseudônimo de Oscar
Jagoanhara, e terminando com as crônicas de Araripe em A Se-
mana, em 1887. Deve-se notar no estilo do artigo “Música”
certa influência da ênfase romântica. Eis um pequeno trecho
destacado ao acaso: “O que somos nós? Onde distingue-se a
realidade da ilusão? O que é a melodia? E essa eletrização
prodigiosa, que a despeito da vontade de todos se apodera?. . .
Coisa célebre!. . . Basta o simples nome — música — para

203
sermos assaltados por uma infinidade de pensamentos diversos
e confusos sobre essa divina criação”.
Neste volume verificamos que o pensamento crítico de
Araripe Júnior até 1887 orientou-se num sentido nacionalista,
que foi, aliás, o que marcou o nosso Romantismo. Já no segundo
artigo, mesmo ano e ainda no Correio Pernambucano, sobre o
livrinho Contos da Roça, de Augusto Emílio Zaluar, Araripe
manifesta essa orientação. “Bom é que vão aparecendo entre
nós — escreve ele — propugnadores de uma literatura pura-
mente nacional que se afastando pouco a pouco do francesismo,
possam um dia atrair ao seu grêmio tantos e tão fecundos ta-
lentos; os quais, absorvidos pelos livros franceses, têm-se arre-
dado completamente da trilha, que, sem dúvida, os levaria a
vastíssimas e inexploradas minas, onde as suas imaginações
achariam campo para erguer originais e verdadeiros monumen-
tos à pátria”. Mas não sabemos, precisamente, a quem Araripe
Júnior se referia nesses termos. Aos ficcionistas? Na época só
havia Teixeira e Sousa, Manuel Antônio de Almeida, Macedo,
Alencar, para citar os nomes que a história literária guardou,
e a tendência predominante em todos eles foi a nacionalista,
apesar de certas influências francesas nos dois últimos. Mas tais
influências, sobretudo em Alencar, não os levaram a afastar-se da
diretriz preconizada por Araripe Júnior. Ao contrário, Chateau-
briand, juntamente com Walter Scott, contribuiu para levar Alen-
car ao Indianismo, colocando-o assim na trilha nacionalista.
No entanto, por alusão do mesmo artigo de Araripe, veri-
ficamos que na época se esboçava certa reação contra o India-
nismo e principalmente o Caboclismo, configurado na musa
rural e bucólica de vários poetas como Bittencourt Sampaio,
Bruno Seabra, Juvenal Galeno. E essa reação era encabeçada,
entre outros, por Sotero dos Reis, alvo do veemente protesto
de Araripe Júnior. Mas é preciso lembrar, porém, que nesse
mesmo ano de 1868 Araripe se iniciava no ficcionismo, publi-
cando o volume Contos Brasileiros, prosseguindo no mesmo

204
caminho nos romances O Ninho do Beija-Flor, Jacina, a Marabá
e Luisinha, lançados respectivamente em 1874, 1875 e 1878, e
todos de orientação nacionalista, naquela trilha de Alencar, de
O Guarani e de O Tronco do Ipê. É de supor-se mesmo que
Araripe visse, a princípio, no ficcionismo a sua verdadeira vo-
cação e pretendesse tornar-se um continuador de José de Alen-
car; uma vez que depois de Luisinha, quando com quatro livros
de ficção, não conseguira decerto o êxito que almejava, a voca-
ção do crítico consolida-se no excelente ensaio sobre o autor
de O Guarani. Não podendo ser um continuador de Alencar,
Araripe resolvera tornar-se o seu crítico. Mais tarde, já no fim
da carreira literária, sentindo, talvez, a nostalgia do gênero que
cultivara na mocidade, volta ele ao romance, escrevendo Miss
Kate, publicado sob o pseudônimo de Cosme Velho, e já numa
direção bem diferente da nacionalista. Seria interessante, pois,
publicar a obra do ficcionista, paralelamente à do crítico, para
podermos melhor apreciar o itinerário de Araripe, já que uma
não deixa, até certo ponto, de ilustrar a outra.
Foi a orientação nacionalista que levou a crítica a repudiar
as primeiras manifestações do Naturalismo, entre nós, por virem
moldadas de maneira muito servil, como lhe parecia, no figu-
rino de Zola. E nesse ponto tinha razão: a nossa ficção român-
tica mostrou-se mais original e mais liberta de influências do
que o Naturalismo em que seguimos muito de perto as pegadas
de Eça de Queirós e Zola. Quando Aluísio Azevedo publica
O Mulato, Araripe vê nele, muito justamente, um livro de tran-
sição, “a crisálida de uma obra realista”. “Ali há páginas tão
suaves, tão doces, tão cheias de claridade, de rosicler, alenca-
rianas — escreve o crítico — que sou levado a crer que o
mergulho dado pelo poeta nas águas encapeladas do Estige da
nova escola foi apenas à superfície”. E acrescenta que a crítica
intransigente não perdoará a Aluísio “o crime de não ter acei-
tado a escola em todas as suas escabrosas conseqüências e zóli-
cos arrojos”.

205
Mas em 1884, ao publicar Aluísio Casa de Pensão, Arari-
pe, reconhecendo as qualidades do romance, não perdoa o que
ele chama a manière realista do autor com os processos terro-
ristas de Émile Zola. E o principal motivo que o leva a repelir,
em termos tão enérgicos, a adaptação do “zolismo” no Brasil é
o mesmo ponto de vista nacionalista, que vinha defendendo na
crítica. Não vê em Zola e no Naturalismo a manifestação de
um estado de espirito universal conseqüente dos progressos da
ciência, mas um fenómeno francés, da Franca vencida de 1870.
“Zola — escreve ele — é urna roda exclusiva da engrenagem
parisiense”. E considera a concepção do romancista de L ’Assom-
moir inadaptável ao Brasil — “país novo, apenas lavrado por
vícios de transição e portanto muito diferente da França, onde
o parti pris bonapartista e o pessimismo zolaico acham todo ca-
bimento”. Chega a considerar Zola um “fenómeno de atavismo
neuroniano”, com as possíveis heranças dos germes sifilíticos,
que segundo Beulé produziram na península a degenerescéncia
do sangue de Germánico e a perfidia dos Bórgias — julgamento
meio ingênuo, mas perfeitamente de acordo com os horrores
que se diziam do romancista francés na época. Aliás, a mesma
repulsa Araripe atribui a José de Alencar se este veio a 1er,
como deve supor-se, algum romance de Zola. Mas causa estra-
nheza que Araripe, de outra geração — formada ao influxo do
cientificismo do Século XIX — e que na crítica adotava Taine
por mestre, encarasse Zola com uma severidade tão estreita.
Pois não via ele que Zola saíra de Taine?

Um Romance de Afonso Arinos: Os Jagunços

Por ocasião do cinqüentenário da morte de Euclides da


Cunha, quando o tema da Guerra de Canudos acaba de inspirar

206
a João Felicio dos Santos o romance João Abade, e a Paulo
Dantas Capitão Jagunço, parece-nos oportuno lembrar o único
livro de ficção que até agora existia sobre o assunto: Os Jagun-
ços, de Olívio de Barros, pseudônimo de Afonso Arinos. O
único livro de classe literária, ressalvemos, pois é de supor-se
que um fato que traumatizou a nação tenha dado origem a
novelas e romancetes de cordel muito justamente esquecidos.
Os Jagunços foi publicado em folhetim, em 1897, n’0 Com-
mercio de São Paulo, jornal monarquista, de que Afonso Arinos
era diretor juntamente com Eduardo Prado, aparecendo em
livro em 1898.
É um grosso volume de quatrocentas e setenta e três pá-
ginas, do qual se fez apenas uma tiragem restrita de cem exem-
plares, rapidamente esgotados, não possuindo o autor nem mes-
mo um exemplar, segundo nos informa Tristão de Ataíde.1 Por
felicidade, conseguimos encontrá-lo na Biblioteca Nacional. Fi-
gura como editor Antônio da Rocha Ribeiro, que alude à pressa
com que foi executada a edição, evidentemente para aproveitar
a atualidade do tema. O pseudônimo Olívio de Barros é man-
tido no livro. Afonso Arinos teria resolvido não assinar a obra
com o próprio nome, naturalmente por dois motivos: primeiro
por tratar-se de um romance de circunstância, escrito au jour le
jour, ao correr da pena, em que não lhe convinha empenhar
sua reputação literária; depois porque no momento a situação
dos monarquistas era crítica e Afonso Arinos, fiel ao antigo
regime e defendendo-o no jornal, não queria, talvez, atrair mais
a atenção sobre a sua militância política com esse folhetim. A
18 de março, quinze dias depois da morte de Moreira César e
do tremendo fracasso da primeira expedição regular a Canudos,
Eduardo Prado, diretor d’0 Commercio de São Paulo era obri-
gado a retirar-se do país.

1 Tristão de A taíde, A fon so Arinos, Rio de Janeiro, Anuário do


Brasil, 1927.

207
Os Jagunços divide-se em duas partes, não prevalecendo
entre elas uma estreita correlação. Diz Tristão de Ataíde 2 que
o propósito de Afonso Arinos era refundi-lo, cindindo-o em dois
e dando destaque ao episódio da morte de Conceição. Na pri-
meira parte, o Conselheiro aparece ainda na fase de proselitis-
mo, quando começava a arrebanhar os habitantes daqueles er-
mos para fundar no sertão a Cidade de Deus. O romance se
inicia, mesmo, com uma procissão de penitentes, em que o
escritor procura caracterizar a atmosfera de fanatismo que ia
envolvendo os rudes tabaréus. Tratava-se, aliás, de um culto
muito antigo e freqüente no interior do Brasil, a encomendação
das almas, que naquele momento passava a revestir-se de um
cunho de furiosa exaltação mística, devido à presença estranha
do velho de samarra, de barba grande, parecendo padre, mas
sem coroa na cabeça. É uma bela página impressionista, a da
aproximação do cortejo do rancho onde se achava Luís Pachola:
“Ao longe, num ponto em que não se podia distinguir se era
o píncaro da serra ou uma forma fantástica de nuvem negra,
viam-se agora, não mais uma só, porém três ou quatro luzinhas
trêmulas que oscilavam à direita e à esquerda e não pareciam
avançar”. Suponho que Afonso Arinos fantasia um pouco quan-
do mostra os penitentes, reproduzindo cenas de flagelação idên-
ticas às da Idade Média: “Vestiam uma alva apertada à cintura
por um grosso torçal branco. As mangas, porém, pendiam para
trás, e o tórax aparecia à luz dos archotes, lustroso e nu. As
costas, sarjadas pelas pontas do açoite, pingavam sangue”.
Embora o romance comece com esse episódio, pode-se
dizer que na primeira parte o Conselheiro não tem nenhum
papel de relevo, figurando apenas como um comparsa subsidiá-
rio. A ação decorre então na Fazenda do Periperi, durante uma
festa do Divino, e o enredo é constituído por uma tragédia

2 Tristão de Ataíde, op. cit.

208
passional. Gabriel, jagunço voluntarioso, apaixona-se pela criou-
la Conceição, filha de Joana, mulata de estimação da fazenda.
Devorado pelo ciúme tenta assassinar Luís Pachola, em quem
presumia um rival, mas a moça intervém e acaba sendo vítima
da faca do tabaréu furioso. Desesperado com seu gesto, matando
a mulher que amava, Gabriel enforca-se. Sob o impacto da tra-
gédia, Luís Pachola sente que daí em diante teria o destino defi-
nitivamente ligado ao sacrifício de Conceição, cumprindo-lhe,
para corresponder a este, abandonar o mundo e dedicar-se ao
serviço de Deus. Resolve, então, reunir-se ao grupo dos faná-
ticos do Conselheiro, vindo a desempenhar igualmente um papel
de destaque na segunda parte do romance.
Mas na primeira parte, ao lado dessa tragédia passional
um tanto melodramática, destaca-se o excelente quadro de cos-
tumes que constitui a festa do Divino na Fazenda do Periperi.
Os vaqueiros da redondeza, ali concentrados, promovem uma
tourada. E o espetáculo descrito por Afonso Arinos deve repro-
duzir o que ele, decerto, já teria testemunhado no interior de
Minas e se verificava também nos sertões da Bahia.
A noite, os convidados reúnem-se para as danças na parte
inferior da casa-grande, e são repeniques de violas, lundus,
desafios, numa atmosfera de entusiasmo, muito bem evocada
por esse ficcionista, em que havia, acima de tudo, um pintor.
E no meio de toda a alegria, como a prenunciar a tragédia
que ali se desenrolaria, passa a figura soturna do Conselheiro,
cuja pregação já começava a fanatizar aquela gente.
Arinos deu a Os Jagunços o subtítulo de “novela sertane-
ja”, decerto para indicar que o seu objetivo não era propria-
mente fazer um romance sobre a campanha de Canudos, e sim
aproveitar um acontecimento do dia para nele estruturar uma
intriga romanesca. Podia ser uma precaução de sua parte, re-
ceoso de que os republicanos, enfurecidos contra o jornal mo-
narquista, fossem descobrir no folhetim um sentido polêmico
de defesa dos jagunços. Chegou a substituir o nome de Canudos

209
por Belo Monte, como a procurar acentuar o que havia de
ficção na novela. Misturou personagens reais — o Conselheiro,
João Abade, Macambira e outros, conservando-lhes os nomes
— com fictícios, Luís Pachola, Cipriano etc., dando a estes no
decorrer da narrativa um relevo idêntico ao daqueles. Pode-se
considerar mesmo Luís Pachola o personagem principal do ro-
mance e o drama de Canudos desenrolando-se em torno do seu
drama pessoal.
Não existe, porém, um elo íntimo, como já vimos, a soldar
os acontecimentos da Fazenda do Periperi, em que perdeu a
vida Conceição, com os de Belo Monte, para onde Pachola se
transferiu em companhia de tia Joana, passando a lutar à frente
dos adeptos do Conselheiro. A figura de Pachola ficou assim
fracionada entre as duas linhas-mestras do enredo, embora com
relevo em ambas.
Na segunda parte, cerca de quatrocentas páginas, desenro-
lam-se os episódios da Guerra de Canudos, mais ou menos mol-
dados pela crônica da época, a começar pelo ataque de Juazeiro,
onde se deu o primeiro encontro entre os jagunços e as forças
do governo, surgindo Luís Pachola, desde logo, como figura de
destaque na luta. Tristão de Ataíde considerou o romance “longo
demais, sem unidade de fatura ou de narrativa e freqüentemente
dessaborido, revelando quase sempre a composição apressada
para folhetim”. Quanto ao dessaborido, sinto-o apenas nos tre-
chos que constituem específicamente descrição de operações bé-
licas. Os relatos de batalhas — já tive ocasião de acentuar
alhures — recaem geralmente na monotonia pela repetição das
cenas. Quando li Os Miseráveis de Victor Hugo acabei saltando
muitas páginas da famosa reconstituição da Batalha de Waterloo.
E com que encanto apreciaria mais tarde o mesmo episódio em
La Chartreuse de Parme, ao vê-lo reduzido aos apuros de Fabri-
zio Del Dongo, perdido dos companheiros, atrapalhado com as
botas e sem perceber que ao seu lado se estava desenrolando
um acontecimento que ia modificar o destino do mundo.

210
A atualidade da Guerra de Canudos em 1898 emprestou,
certamente, novo interesse às cenas de operações bélicas da
segunda parte. Lendo-as hoje, não podemos deixar de desejar
que fossem resumidas com a supressão de muitas páginas. O
elemento ficcional dessa parte é representado não só pelas faça-
nhas de Luís Pachola, distinguindo-se constantemente na cam-
panha, em que assume atitudes de herói, como pela tragédia de
S’Aninha — heroína que é uma espécie de réplica de Conceição
— vítima da perfídia de Siá Chica, alma danada do Arraial, e
tornando-se objeto de uma ardente paixão do jovem jagunço
Cipriano. Esses personagens vivem uma situação um tanto seme-
lhante à da intriga da primeira parte. Pois S’Aninha morre tam-
bém inocente, como Conceição, depois de Luís Pachola junta-
mente com Cipriano ter feito tudo para salvá-la, vendo nela a
própria revivescência da mulher que por ele outrora se sacri-
ficara.
Ao contrário do que o leitor de 1898 iria supor, atraído
pelo folhetim, e do que há de supor também o de hoje, ao abrir
esse romance tão volumoso, Afonso Arinos não assumiu atitude
polêmica no relato da Guerra de Canudos. Não procurou fazer
um livro vingativo, como escrevería Euclides da Cunha daí a
quatro anos. Utilizou-se do fato, sem pretender ultrapassar as
dimensões de uma “novela sertaneja”. Mostrou a selvageria tan-
to de um lado quanto do outro.
No episódio de S’Aninha, denunciada inocentemente pela
pérfida Siá Chica, nos fez ver João Abade, um dos heróis ja-
gunços mais aureolados pela fama, sob um aspecto nada sim-
pático, implacável e impiedoso. Atribuiu aos fanáticos uma
cueldade ostensiva no exercício da justiça em Belo Monte; as
mulheres vergastadas na praça pública aos olhos do Conselhei-
ro, cenas que segundo me parece o próprio Euclides da Cunha
não registrou. E outros episódios poderia eu citar, em que o
romancista impediu a intervenção do polemista. Manifestou sim-
patia humana, sem caráter político, pelos jagunços massacrados,

211
encarando-os como heróis obscuros, vítimas do fanatismo, sem
tirar as conclusões de Euclides.
É verdade que à página 236, aludindo ao Conselheiro,
observa: “Deus lhe dissera que ele, o humilde, o desconhecido,
o miserável, ele, o sertanejo sem conhecimento, seria incumbido
da grande missão de reivindicar o direito de todos os homens
do sertão; seria ele o braço vingador da afronta sofrida pelo
Imperador, deposto e banido para sempre de sua terra”. E à
página 243 justifica o fanatismo dos jagunços nos seguintes ter-
mos: “E era natural. Dos graúdos das terras grandes, do go-
verno que eles consideraram a personificação da força e da
riqueza, não conheciam o mínimo benefício. As únicas vezes
que entraram em contato com o governo foi por meio das
balas e das baionetas da Polícia. Desamparados nos seus ser-
tões, eles sentiam, de vez em quando, a ação dos governos à
passagem dos recrutadores ou dos aliciadores de tropas. Nas
suas misérias, nunca lhes chegou lenitivo da parte do poder” .
Mas trechos como esses não chegam a emprestar ao romance
um tom polêmico.
A história termina com a velha tia Joana abandonando o
Arraial reduzido a cinzas, levando sob uma aura protetiva os
sobreviventes da catástrofe: a filha de Luís Alves, Luís Pachola
e Honorio Tico-Tico. Afonso Arinos dá-nos uma visão dessa
caravana, projetada numa “luz etérea” de bem-aventurança, en-
quadrando-a na paisagem como “um grupo bíblico”. “Tia Joana
passeou o olhar demoradamente pelos companheiros, do mais
velho ao mais moço, e deteve-se nos olhos da órfã — abertos,
interrogativos, misteriosos — levantados para a face da velhi-
nha”. Ali estava ela, “como a providência benfazeja, a matriarca
de uma tribo perseguida, a mãe bendita dos beduinos da fé e
do amor” . A última frase: “E a tribo marchou para o deserto”,
lembra a de O Guarani, de Alencar, condizendo aliás com o
matiz romântico da cena que acabamos de resumir.
Mas, afinal de contas, qual o mérito desse romance? Ape-

212
sar dos defeitos, julgo que reeditado hoje, mesmo com o rema-
nuseio a que pretendia submetê-lo Afonso Arinos, seria bem
legível. Alguns morceaux de bravoure oferecem compensação
para as partes fracas, e o poder evocativo do romancista, a
espontaneidade do seu estilo, embora não trabalhado, ressalvam
o que há de improvisação e de folhetinesco na obra.

A Evolução Americanista de Nabuco

São bem conhecidos os termos com que Oliveira Lima


duvidou da sinceridade do pan-americanismo de Nabuco. Ter-
se-ia tornado francês aos primeiros contactos íntimos com a
França; romano, durante uma longa permanência em Roma;
depois inglês, em Londres, e finalmente americano em Washing-
ton. A perfídia envolvia a acusação semelhante à que Sílvio
Romero fizera outrora a Nabuco: a de ser um diletante. Iden-
tificar-se-ia ele facilmente com o país onde encontrava atmos-
fera acolhedora e simpática, passando a proclamar-lhe as exce-
lências e a defender-lhe os interesses sem uma base sólida de
convicção.
A ser exata essa pecha, ainda assim Nabuco não se sairia
mal no processo. Pois o que revelaria semelhante atitude senão
a admirável plasticidade de um espírito capaz de sintonizar com
os mais diferentes povos, por tudo quanto havia dele de supe-
riormente humano e universal? Nabuco seria no caso um exem-
plar típico daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje
cidadão do mundo.
Entretanto, sempre admitindo a referida facilidade de adap-
tação, teríamos a considerar, igualmente, o fato de ela jamais
desnaturar a poderosa personalidade do autor de Um Estadista
do Império.

213
O francês em Paris, o romano em Roma ou o inglês em
Londres nunca deixou de ser o mesmo homem receptivo, assi-
milando o substrato de várias civilizações, sem perder o que
havia nele de genuíno e puro, e sobretudo sem o menor traço
de macaqueação e esnobismo. Basta notar apenas um detalhe:
numa época em que a influência francesa tanto nos descarac-
terizava, Nabuco, que a experimentou mais do que ninguém,
talvez — a ponto de considerar sua própria frase uma tradução
livre do francês de que ela provinha — não comprometeu com
isso a estrutura bem vernácula do seu estilo. Esse estilo que na
elegância, na clareza, na medida é um verdadeiro milagre de
assimilação e filtragem.
Ainda outro detalhe: não foi ele só francês na França ou
romano em Roma; sem nunca ter ido à Grécia, teria sido tam-
bém grego, como a maior parte dos escritores brasileiros até
a primeira década deste século. Em carta a Martim Francisco,
dizia haver começado, na juventude, pelo culto de Platão, ao
qual se dedicava de novo, na maturidade. Mas um grego bem
diferente de quantos se perdiam naquele tempo em invocações
da Helade; bem diferente, sobretudo do seu grande amigo
Graça Aranha, que sem assimilar o pensamento antigo se
comprazia em ostentações enfáticas, como a da célebre carta
ao Barão do Rio Branco, cumprimentando-o pelo banquete a
Guglielmo Ferrero. Lendo os gregos e absorvendo-lhes a sabe-
doria, jamais ocorrería a Nabuco chamar a Machado de Assis
Platão e dizer que haviam jantado em Atenas, a exemplo de
Graça Aranha na referida carta.
Mesmo admitindo-se, pois, até certo ponto, a acusação de
Oliveira Lima, ainda se poderia explicar superiormente a polí-
tica americanista de Nabuco, embaixador em Washington.
Mas o certo é que ela não decorreu da atitude improvisada
de um diletante. Chegaremos forçosamente a essa conclusão ao
terminar a leitura do brilhante ensaio de Olímpio de Sousa

214
Andrade, ora publicado sob o título Joaquim Nabuco e o Pan-
Americanismo (Cia. Editora Nacional — Brasiliana).
Trata-se de um trabalho classificado em primeiro lugar
no concurso interamericano patrocinado pela Comissão Brasi-
leira da Unesco (prêmio Sul América) e no qual tivemos a
revelação de um ensaísta da mais elevada categoria. Não podia
deixar de impressionar a comissão julgadora essa monografia
tão equilibrada, em que o autor desenvolve com rigor lógico
seu pensamento, da primeira à última página, documentando-se
largamente, e manifestando, a par da erudição, da capacidade
dialética, a posse de um estilo inteiramente adequado a tais
gêneros de estudo: sóbrio, enxuto e conciso: um estilo que
Nabuco decerto apreciaria.
Indo de encontro às insinuações de Oliveira Lima, o autor
propõe-se demonstrar a seguinte tese: em lugar de ser um
sentimento improvisado, o pan-americanismo de Nabuco cons-
tituiu o desdobramento coerente, no terreno da ação política,
de convicções de há muito arraigadas nesse grande espírito. A
embaixada em Washington viera apenas dar-lhe ocasião para
pôr em prática o que há longo tempo pensara e sentira. E assim
pensara e sentira justamente porque tivera uma compreensão
lúcida dos problemas brasileiros e americanos, sabendo vê-los
na sua natureza específica, em lugar de contemplá-los pelo pris-
ma da cultura européia, segundo costume tão em voga na
época.
Para provar essa tese, Olímpio de Sousa Andrade começa
reportando-se a passagens da obra e da vida de Nabuco ante-
riores à embaixada americana. No europeu de Paris e Londres
já existia a preocupação sensível pelas coisas do novo conti-
nente. Numa pesquisa metódica, o autor vai destacando aqui
e ali trechos de cartas, de discursos e livros, predileções reve-
ladoras, como a da viagem ao Prata, em meados de 1889,
procurando formar com todos esses fragmentos a imagem de

215
um Nabuco americano, capaz de ajustar-se perfeitamente à do
Nabuco europeu.
Vem a Proclamação da República: o artífice da mais glo-
riosa causa social do Império cai no ostracismo político, po-
dendo, então, seguir aquele conselho de Renan, que lhe pare-
cera tão difícil para os intelectuais no Brasil: o do dedicar-se
aos estudos históricos. E é aí — escrevendo a vida do pai, na
qual nos deu todo um panorama da Monarquia; compondo a
admirável autobiografia espiritual da Minha Formação; tra-
çando os comentários pertinentes e luminosos ao livro de Júlio
Bañados sobre Balmaceda — que a imagem do americano
passa a ganhar realce, acabando por superar a do europeu.
“Quando entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo, que
é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita
forma em que estavam a cozer ao sol meus pequenos debuxos
d’alma: Ustedes me entenden, deixei de ir à Europa, à História,
à Arte, guardando do que é universal: só a religião e as letras”
— escreve Joaquim Nabuco na Minha Formação, em trecho
citado por Olímpio de Sousa Andrade.
Os nove anos de ostracismo, no estudo, no convívio da
História e na meditação, deram a Nabuco uma noção mais viva
da América por uma consciência mais íntima da realidade
brasileira. Os artigos reunidos no livro Balmaceda oferecem-nos
disso uma prova bem eloqüente. Não deixarei de declinar aqui
o quanto me impressionou a primeira leitura dessa obra, em
que Nabuco aprecia com tanta segurança as condições da revo-
lução chilena que apeou do poder a figura trágica de Balma-
ceda. Olímpio de Sousa Andrade soube distinguir, entre as
passagens mais significativas, aquela em que vemos o autor
preocupado em estabelecer relações entre o fenômeno chileno
e o brasileiro.
Ora, bem diversa continuava sendo a mentalidade da
maioria dos monarquistas. Para eles, a verdade política brasi-

216
leira ainda se encontrava na Europa, na tradição monarquista,
que havíamos adotado do Velho Mundo — lá de onde viera
o nosso primeiro imperador e para onde tinha ido o último.
A República era a desordem, a fragmentação, o caudilhismo,
a miragem perigosa dos Estados Unidos. Eduardo Prado pre-
tendera alertar-nos contra esta última, na Ilusão Americana.
Nabuco, em cujo espírito já tinham amadurecido suficiente-
mente as idéias americanistas, devia contrapor, no íntimo, à
miragem denunciada por Eduardo Prado, a esterilidade de uma
outra ilusão: a ilusão monárquica. É dentro desse ponto de
vista que ele, aceitando o convite do presidente Campos Sales,
consente, indiretamente, em servir à República, na defesa dos
interesses brasileiros, na questão das fronteiras com a Guiana
Inglesa. E retornando à vida de ação, vem a criar, antes de
tudo, uma oportunidade feliz: a de poder realizar o ideal pan-
americano que o colocará em perfeita harmonia com o novo
regime.
Olímpio de Sousa Andrade procura mostrar como o pan-
americanismo já possuía também entre nós uma tradição que
os monarquistas esclarecidos, a exemplo de Tavares Bastos,
souberam ver e que o próprio governo imperial reconhecera
quando propusera uma aliança defensiva com os Estados Uni-
dos. Retomar essa linha e por ela reajustar o destino do Brasil
no destino da América, tal a função de que Nabuco se inves-
tira, com um idealismo bem semelhante ao que o animara na
campanha abolicionista. Daí o seu movimento de desviar o
eixo da nossa política exterior, da Europa para o novo conti-
nente, agindo com verdadeira intuição do futuro, como se
antevisse o rumo histórico dos acontecimentos. O presente mos-
trou-nos nada ter havido de romântico no pan-americanismo
do nosso embaixador em Washington. Olímpio de Sousa An-
drade não se esquece, ainda, de acentuar o desenvolvimento
dessa política no campo cultural. O capítulo “Doutrinando nas

217
universidades” bem nos revela a extensão que Nabuco pretendia
dar ao monarquismo, estabelecendo uma compreensão recíproca
entre as duas civilizações, a do novo e a do velho continente.
Provando a sua tese, o jovem ensaísta consegue, assim, fixar
em alto relevo uma das faces mais expressivas da personalidade
do grande brasileiro e por onde esta mais amplamente se
realizou.

Nabuco e Carlos de Laet

“A queda do Império — escreve Joaquim Nabuco na


Minha Formação — pusera fim à minha carreira política” .
A dezembro de 1889 declara, em carta ao Barão do Rio Branco:
“Estamos em república e você, que conhece bem a história das
repúblicas sul-americanas, pode avaliar a via-crúcis que temos
agora que percorrer para recuperar a liberdade e perpetuar a
união”. Como tantos outros monarquistas, Nabuco temia a
fragmentação separatista, profetizada por Eça de Queirós numa
crônica de Últimas Páginas.
Suas cartas aos amigos, reunidas em dois volumes há
pouco publicados, vão dando conta da indignação e da des-
crença com que ele acompanha os acontecimentos. Para pôr-se
ao abrigo do desalento, estuda, escreve, medita — os eternos
refúgios do intelectual. Entre 1892 e 1893 encontra um novo
arrimo: “A religião afasta tudo mais — diz ele — é o período
da volta misteriosa, indefinida da fé, para mim verdadeira
pomba do dilúvio universal, trazendo o ramo da vida remanes-
cente. .. ” Em 1893 compreende que tem uma missão a cum-
prir: escrever a biografia do pai, imortalizar numa obra, abran-
gendo toda uma larga panoramização do Segundo Reinado, a
carreira de um estadista-tipo de tão importante período da nossa

218
historia. Então, nesse grato labor, rememorando figuras, fatos,
caracteres da Monarquia, vai percebendo que, se o regime desa-
pareceu, a essência dos mais belos sentimentos, em função do
mesmo manifestados, continua aderida a uma realidade imu-
tável: o Brasil. É a lição dos antepassados: “ Para tais homens
verdadeiramente fundadores, um terremoto poderia subverter
as instituições, mas o Brasil existiria sempre”. Guardará essa
certeza no decorrer do prolongado trabalho, em que erguerá
o retrato de corpo inteiro do Conselheiro Nabuco de Araújo.
Concluída a obra, prossegue absorvido nas letras. Consi-
dera o interesse político reduzido ao que tem de comum com os
interesses religioso e literário. Acentua, porém, a distinção: fala
no interesse e não no espírito político, porque acompanha com
emoção a sorte do país. “O autor e o ator desapareceram” —
escreve ele. Sim, mas o espectador sente a “ansiedade crescer
e tornar-se angustiosa...” — observa, deixando a frase em
suspensão numa reticência que nos leva à conclusão de que
esse espectador não pode conter o desejo de intervir, de agir,
de maneira talvez diferente da de outrora, mas em todo caso,
agir, embora considere o autor desaparecido.
Por volta de 1899, Nabuco já compreendera de há muito a
impossibilidade de uma restauração monárquica. O Império
era coisa definitivamente liquidada, pertencia ao passado, só
o Brasil continuava vivendo novas fases do seu drama histórico,
e só este, agora, poderia atrair-lhe a atenção. A maior parte
dos monarquistas permanecia fiel ao passado, insistindo em
admitir o Brasil através do ideal restaurador que se dissolvia
cada vez mais nas brumas de um misticismo sebastianista.
Votavam-se, destarte, a uma espécie de exílio voluntário, mesmo
dentro do país, insistindo numa atividade reacionária estéril,
da qual só poderiam tirar certo conforto masoquista, meio idên-
tico ao dos mártires.
Em proporções sensivelmetne reduzidas não era outra coisa
senão a satisfação do martírio que procuravam.

219
A personalidade de Joaquim Nabuco, embora possuísse um
traço de vocação heróica, nada tinha de comum com tais predis-
posições. Nenhuma atitude mais contrária a esse espírito apo-
líneo e eufórico do que a de martírio. Amava a vida, a beleza,
o movimento e via o Brasil como uma realidade apaixonante.
Assim, quando o presidente Campos Salles o convida para de-
fender os direitos do nosso país, no arbitramento das fronteiras
litigiosas entre o Brasil e a Guiana Inglesa, ele, após uma hesi-
tação facilmente vencida, aceita. Não se tratava de missão polí-
tica, nem de cargo governamental: era o interesse da nação
acima de grupos, facções ou regimes. A ocasião feliz de poder
intervir, não na República, mas na continuidade do Brasil.
Se um Rio Branco, um Eduardo Prado — monarquistas de
alta linhagem — apoiaram o gesto de Nabuco, o mesmo não
se deu com a quase totalidade dos que se mantinham fiéis ao
regime decaído e por este prosseguiam lutando com esperança
de êxito. Era um desertor a deixar as trincheiras, e crime tanto
mais grave quanto se tratava de uma figura de primeira gran-
deza. Nabuco viu-se atacado rudemente pelos correligionários,
entre os quais sobressaía a virulência impiedosa de Carlos de
Laet. Em carta a Domingo Alves Ribeiro, ressalvando a cora-
gem leonina de Eduardo Prado ao apoiá-lo, escreve o autor de
Minha Formação: “O sentimento de partido está, porém, com
os analfabetos e os estéreis como o Laet, cujo talento é uma
bolsa de veneno, nada mais, sem uma intuição, uma idéia po-
lítica”.
Desde então, Carlos de Laet tornar-se-á, verdadeiramente,
a bête noire de Nabuco, não o poupando em epigramas e sátiras
as mais cruéis. Acresce o fato de Nabuco haver sido infeliz na
tarefa de que fora incumbido pelo governo da República. Em-
bora tivesse feito o máximo que se podia fazer, na opinião dos
entendidos, produzindo uma defesa brilhantíssima dos nossos
direitos, não conseguiu convencer o árbitro, cujo veredictum
se decidiu a favor da Inglaterra. Da circunstância prevalece-

220
ram-se não somente os monarquistas como também muitos
republicanos para fustigarem o fracasso do “adesista”. Medeiros
e Albuquerque, um dos homens de 15 de Novembro, insinuou
as intenções sutis do governo da República, ao convidar Nabuco
para a referida empresa: se a escolha, como era natural, recaísse
num republicano, o fracasso deste oferecería poderoso trunfo
aos monarquistas contra o novo regime; entregue a Nabuco a
causa, os saudosistas não podiam articular a menor recrimina-
ção à República pelo desastre. Só Nabuco ficava, assim, em má
situação, prestando flanco aos ataques vindos dos dois lados.
O governo, porém, reconhecendo-lhe o esforço e o mérito, ofe-
receu-lhe o cargo de embaixador em comissão, que, logo aceito,
incorporou o autor de Balmaceda ao quadro diplomático, rati-
ficando-se dessa forma o que os amigos correligionários chama-
vam de adesão. E a 5 de julho de 1906, quando Nabuco chegou
ao Rio, depois de haver desenvolvido uma fecunda política pan-
americana e brasileira nos Estados Unidos, sendo recebido com
uma estrondosa manifestação por parte dos estudantes, os mo-
narquistas se agitaram, Carlos de Laet tomou a dianteira, publi-
cando num dos nossos matutinos uma sátira em verso intitu-
lada: “ O Embaixador”, obra de sarcasmo impiedoso e injusto,
na qual não se pode deixar de reconhecer, no entanto, certa dose
de talento. São alexandrinos versos, que soam como vergastadas
e parecem denunciar, não só pelo ritmo como pela natureza
das imagens e o gosto das antíteses, a influência do Guerra
Junqueiro combativo da “Morte de D. João”. Aliás, Junqueiro
era dos poetas mais populares no Brasil nessa ocasião, apaixo-
nadamente admirado e imitado por muita gente.
Num dos pontos culminantes da sátira, Laet exclama:
“Que foi crime negais? Somente ao militar — É defeso o
fugir? Vergonha o desertar? — Pois foi o que ele fez — Trans-
fugiu do ideal.”
E lamenta a manifestação ter partido da classe estudantil:
“Mas o que mais me dói é ver no lago impuro — A flor da

221
mocidade, o germe do futuro. — Moços da minha terra! Ó
nobres corações! Não vades por quem sois, glorificar traições!”
Nesse tom iracundo prossegue, para concluir: “Vinguei no
meu protesto a monarquia ultrajada”.
Mas não terminaria aí a campanha vingativa de Laet.
Continuará ela mesmo depois da morte de Nabuco. A 7 de
janeiro de 1911, Dantas Barreto toma posse na Academia Brasi-
leira, para a qual fora eleito na vaga do autor de Minha For-
mação, sendo designado para recebê-lo Carlos de Laet. A figura
de Nabuco, cuja projeção estava muito viva, pois não se tinham
esvanecido ainda as ressonâncias das homenagens póstumas a
ele prestadas nos Estados Unidos e no Brasil, não foi, entre-
tanto, exaltada com a glorificação perfeita e sem restrições que
era de esperar-se, nessa noite acadêmica. Já o recipiendário,
encarregado de estudar-lhe a personalidade esquivava-se de apre-
ciar-lhe os méritos de escritor, sob a alegação verdadeiramente
imprevista de lhe haver feito apenas uma leitura superficial das
obras. E, em seguida, observava: “ Percebe-se que em Nabuco
predominara o sentimento do aparato, a paixão do ruído mun-
dano e que ele não seria capaz de sacrificar um momento dessa
necessidade psicológica a uma inspiração genial, cuja síntese
fosse preciso aproveitar no isolamento de si próprio, como faria
Coelho Neto, por exemplo”.
Carlos de Laet podería eximir-se de falar em Nabuco; mas,
ao contrário, aproveita a oportunidade para repetir a acusação
de desertor, formulada na sátira, e justificá-la. Apelando para a
própria qualidade de militar do recipiendário, pergunta como
este procedería na guerra, se visse alguém abandonar a trin-
cheira: levaria a arma à cara e faria fogo. Fora o que ele, Laet,
fizera.
Essa justificação política num discurso acadêmico pareceu
não somente extemporânea como de mau gosto. Certo efeito
de escândalo tornou-se inevitável. Vários jornais teceram co-
mentários desfavoráveis a Laet. E Constâncio Alves, no seu

222
tradicional rodapé no Jornal do Comércio, disse que tendo o
discurso passado antes pela censura da Academia, exprimia o
pensamento desta. Fora, pois, a Academia quem fuzilara Na-
buco no tiro desfechado por Laet. No dia 14 de janeiro, na
mesma folha, José Veríssimo faz estampar uma nota, declarando
não considerar-se a Academia absolutamente responsável nem
solidária com tais opiniões, já que a censura se exercia em limi-
tes muito restritos. A questão passou, então, a ser decidida entre
Constâncio e Laet, desfechando o primeiro uma série de ata-
ques, que não ficaram sem revide, no clima de ironia e malícia
em que ambos se compraziam. E assim terminou a vingança
monarquista de Laet em Nabuco.

Oliveira Lima — Advogado do Diabo

Nos processos de canonização, há, como se sabe, um mem-


bro do conclave que procura esmiuçar, na vida daquele a quem
se pretende santificar, tudo o que possa traduzir pecado, fra-
queza ou defeito. O acusador tem de mostrar-se inexorável,
superestimando as menores falhas, pois só dessa forma se con-
segue pôr à prova, em toda extensão, as virtudes do candidato
à auréola dos santos.
Na glorificação terrena dos grandes homens deve-se adotar
o mesmo sistema. Não basta falarem os admiradores, os panegi-
ristas: é preciso ouvir-se também os “advogados do diabo”,
os que se mostram empenhados em somente descobrir os de-
feitos, em ressaltar apenas o lado mau. Não há nada a temer
desses ataques, por mais apaixonados que o sejam; se a perso-
nalidade em questão for verdadeiramente grande, suplantará
todas as agressões; e em qualquer caso chegaremos a uma
justa medida, sempre preferível à visão falsa dos êxtases louva-
minheiros.

223
Esse comentário me ocorreu ao reler, há pouco, as Memó-
rias, de Oliveira Lima. O historiador e diplomata pernambu-
cano faz aí, certamente, o papel de “advogado do diabo” contra
muitos dos nossos grandes homens a começar pelo admirável
Nabuco, cujo centenário acaba de ser comemorado com uma
guirlanda de louvores em todo o país. Investe contra o autor de
Minha Formação, contra Rio Branco, contra Graça Aranha, e
Tobias Monteiro, não perdendo a oportunidade para dar umas
alfinetadas em Domício da Gama, muitas outras em Assis Bra-
sil, chegando a ver em Eduardo Prado, em quem ressalva o
“belo talento”, um “caráter falho”. E se não encontra motivo
para agredir um Rui Barbosa, por exemplo, sempre acha meios
de dizer que lhe detestava a oratória por causa do modo de
falar, martelando as palavras. É assim o homem, uma espécie
de Pio Baroja brasileiro, pois só nas memórias deste último,
recentemente publicadas, encontrei tanta disposição para dizer
mal dos outros.
Os leitores estão lembrados da reação que provocou o
livro de Oliveira Lima, ao aparecer, há doze anos atrás. Falou-se
em despeito, em vingança mesquinha: Tobias Monteiro veio a
público revidar os ataques, não somente à sua pessoa, como
a Nabuco e Rio Branco.
Não julgamos porém, que estes dois grandes vultos ficas-
sem diminuídos com as agressões. Já um Graça Aranha, no
entanto, com esbarrões bem menos violentos, cambaleou algum
tanto. Tal o efeito das arremetidas de um “advogado do dia-
bo” . . .
Quanto a Nabuco, cuja figura tanto aparece nessas Me-
mórias, como se fosse uma verdadeira obsessão do autor, pode-
mos dizer que na maioria dos casos Oliveira Lima não fez
mais do que exagerar pequeninos defeitos, reconhecidos até
por alguns dos admiradores do artista de Minha Formação.
Vaidade, narcisismo, amor à pose, complacência com a lisonja,
isto não passa de pecados veniais, sobretudo num homem como

224
Nabuco. Oliveira Lima apega-se a essas fraquezas, emprestan-
do-lhes proporções desmedidas. Nabuco parece-lhe ridículo, so-
mente porque gostava de encostar-se na parede, a fim de que
o seu vulto melhor se destacasse.
Onde havia, talvez, um simples mot d’esprit, Oliveira Lima
descobre uma intenção pérfida. Tal o caso da resposta de Na-
buco a Salisbury, primeiro-ministro britânico, que lhe pergun-
tou, aludindo a Souza Corrêa, ex-embaixador do Brasil na
Inglaterra:
— “Est-ce vrai ce que Ton m’a dit, que Corrêa ne parlait
pas le portugais?”
— “ Il ne parlait aucune langue, pas même le français”
— teria dito Nabuco. “Era um disparate e uma dupla inver-
dade” — escreve Oliveira Lima num tom que não esconde a
indignação, esquecendo-se de que Nabuco pretendera, certa-
mente, gracejar. Assim o memorialista procura ver tudo pelo
lado mau, exagerar, com uma renitência impiedosa.
É de presumir-se que Oliveira Lima nunca tivesse supor-
tado Nabuco, embora quando jovem o elogiasse, rasgadamente,
num artigo, que determinou a aproximação entre ambos. Oli-
veira Lima era um exasperado, profundamente ressentido pelo
fato de não haver galgado na carreira diplomática os postos
culminantes a que se julgava com direito, e os êxitos de um
Nabuco não podiam deixar de parecer-lhe irritantes.
O que, porém, determinou o rompimento entre ambos foi
a política pan-americana do último, quando o autor das Memó-
rias, chefiando a nossa representação na Venezuela, mostrava-se
francamente contra essa orientação. Lima acusava Nabuco de
ter-se deixado absorver pelo meio: em Roma tornara-se romano;
na França francês; na Inglaterra, inglês; agora nos Estados Uni-
dos, fizera-se americano. Daí as constantes expressões de repro-
vação e censura que lhe enviava em cartas, cada vez mais tru-
culentas. Nabuco declarou-lhe não ter nenhum prazer em ali-
mentar uma correspondência nesses termos. Quando se escreve

225
a um amigo é para agradá-lo e não para aborrecê-lo. Oliveira
Lima insiste no propósito de dizer-lhe verdades, embora estas
lhe sejam desagradáveis. Nabuco não aceita a condição. O desen-
tendimento entre ambos vai todo nesse traço: a impossibilidade
de se dizer verdades molestas a quem sinceramente se estima.
Oliveira Lima desforrou-se, dizendo depois essas “verdades”
nas Memorias, verdades envenenadas por um irremediável res-
sentimento.
Bem mais virulentos e cruéis são os ataques ao Barão do
Rio Branco. Se em Nabuco o memorialista ressalva algumas
qualidades, em Rio Branco só sabe encontrar defeitos. Chega até
a acoimá-lo de labrego pelo tom democrático com que costu-
mava pôr-se em mangas de camisa para comer uma das suas
pantagruélicas peixadas no “Minho”. Chama-o de rancoroso e
atribui-lhe sentimentos nada lisonjeiros. Convém lembrar que
o “chanceler” já teve outro advogado do diabo, o romancista
Lima Barreto, que o pintou sob a luz mais desfavorável na Vida
e Morte de Gonzaga de Sá.
No meio de toda a verrina, surge, porém, um detalhe pito-
resco, com que o próprio memorialista não consegue inocular
o seu veneno. “Rio Branco — escreve ele — não gostava que
o caricaturassem gordo e a mim me disse um dia: ‘Precisamos
passear juntos pela Rua do Ouvidor, sr. Lima, para que essa
gente veja que o senhor é mais gordo do que eu’. ‘Ninguém,
me parece, o contesta, sr. Barão’, respondi”.
Não é possível ver aqui mais do que um traço da pachor-
rice dos gordos, sempre a procurarem consolar-se da própria
obesidade. Entretanto, pudesse Oliveira Lima insinuar algo de
antipático nesse divertido diálogo e não perdería a ocasião de
fazê-lo.
Já com Graça Aranha o advogado do diabo leva certas van-
tagens.
O autor de Çanaã indicia, por vezes na Literatura, que é,
como todo mundo sabe, uma deformação da Literatura. Oliveira

226
Lima refere-se à carta que Graça Aranha dirigiu a Rio Branco,
no dia seguinte ao banquete oferecido a Guglielmo Ferrero, no
Itamarati. “Fazendo-se de desvanecido — diz o memorialista —
Rio Branco mostrava aos íntimos, com um sorriso enigmático,
essa carta em que a reunião era tratada de olímpica, sendo ele
Zeus, sua filha Hortência, Minerva e Machado de Assis, Platão
encantando os deuses. A missiva é, realmente, ridícula pelo tom
declamatório e o helenismo marca “ sloper”, que a caracterizam.
O sr. Alvaro Lins reproduziu-a na sua monumental biografia de
Rio Branco: “Tive a deliciosa ilusão de que Cícero era recebido
por Péricles. . . Jantando em Atenas” — escreve Graça Aranha.
E mais adiante: “Ferrero jamais esquecerá esse momento grego
no Brasil, em que ele foi recebido por Péricles — Rio Branco —
conversou com Platão — Machado de Assis —, e foi iluminado
pelo olhar de Minerva. . . Ainda como os atenienses, nós pode-
riamos dizer ao historiador da antigüidade que o juramento de
Rio Branco na mocidade foi o mesmo da juventude grega no
altar da deusa. . . ”
Como se vê, Oliveira Lima não esqueceu dos principais
paralelos de Graça Aranha. Essa carta nos dias atuais mataria,
evidentemente, de ridículo quem a escrevesse; mas estávamos em
1905, a Grécia continuava em plena voga entre nós, e a gran-
diloqüência do autor de Canaã não parecería tão burlesca assim.
Oliveira Lima fulmina em Graça Aranha a vocação da
lisonja. De fato, o romancista de Viagem Maravilhosa tinha o
louvor fácil. Durante a campanha modernista vimos como seus
elogios não custavam caro. Certa vez — narra o memorialista
— Rio Branco mostrava-se indignado com a maneira pela qual
o caricaturavam os argentinos. Euclides da Cunha, presente, teve
a desconcertante franqueza de achar a caricatura parecida, o
que redobrou os protestos do Barão. Nisso entra Graça Aranha,
e como Rio Branco, mostrando-lhe a “charge”, lhe pedisse opi-
nião, a resposta foi logo esta: “Que horror, que porcaria! Não
tem a menor parecença”. Ora, Graça Aranha era, sob esse as-

227
pecto, um homem do tipo de Nabuco: nunca se sentia com
disposição para dizer verdades desagradáveis aos amigos. Poder-
se-á alegar que no caso o amigo era o chefe, do qual ele depen-
dia, mas estou ciente de que, se se tratasse de outra pessoa, a
atitude do romancista seria a mesma. Como seria a mesma a
franqueza de Euclides.
Aliás, o autor d’Os Sertões não era um temperamento de
molde a sintonizar perfeitamente nem com o autor de Canaã
nem com Joaquim Nabuco. Dizem ter Nabuco observado que
Euclides escrevia com cipó. Foi Afrânio Peixoto, parece-me,
quem vulgarizou essa frase, de cuja autenticidade duvido e que
não chega a ser uma definição exata do estilo de Euclides. Em
todo caso, havia no temperamento deste último algo de cipó, de
rudeza primitiva, capaz de embaraçar-lhe o contacto com espí-
ritos muito requintados e polidos.
Oliveira Lima alude ao fato de Graça Aranha, na caixa
de livros brasileiros, que havia selecionado para oferecer a Fer-
rera, haver colocado em cima o Canaã e, “escondidinho lá no
fundo”, Os Sertões. O próprio Euclides lhe relatara o episódio,
ao que o memorialista retrucara: “Vou quase jurar que, con-
quanto a coleção fosse destinada a um historiador e eu seja um
rabiscador de história, os meus trabalhos não se achavam incluí-
dos”. “E não se achavam mesmo” — respondera-lhe Euclides.
Tal procedimento pode parecer uma lamentável mesquinha-
ria a denunciar sentimentos nada elevados, mas nós todos, habi-
tuados com a comédia da vida literária, bem sabemos não serem
raras picuinhas dessa ordem em espíritos verdadeiramente supe-
riores. É o caso de dizermos aos escritores e poetas que nos
lêem: “Quem se julgar sem pecado que atire a primeira pedra”.
No seu admirável ensaio biográfico sobre Tibério, Gregorio
Marañon considera a necessidade de tirarmos os personagens
históricos dos pedestais — em que nos habituamos a vê-los —
para estudá-los. A História — diz ele — é a própria vida, a vida

228
que passou; não se desenrola ela num palco, nem suas figuras
passaram o tempo a posar para a posteridade. Os grandes ho-
mens incidem em fraqueza e ridicularias e se duvidamos disso
basta lhes interrogarmos os criados de quartos. Daí a utilidade
do advogado do diabo: ele é o indivíduo implacavelmente rea-
lista e desencantado, que se mancomuna com os criados de quar-
tos para surpreender as grandes figuras na intimidade mais pro-
saica, de pijama e chinelos. Talvez seja mal-intencionada seme-
lhante atitude, determinada apenas pelo despeito. Despeitado
foi, indiscutivelmente, um Saint-Simon; mas sem o seu azedu-
me, sua incrível maledicência, não se pode fazer a história do
século de Luís XIV. Quem nos dirá que o historiador do futuro
não se beneficiará, também, da incrível má-língua de um Oliveira
Lima.

Vinte e Cinco Anos de Crítica Militante

Se procurarmos em nossa literatura as origens daquilo que


os franceses chamam de critique des vivants e constitui o prin-
cipal aspecto da crítica militante, teremos de nos reportar às
tentativas de Manuel Antônio de Almeida, Bernardo Guimarães,
Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Todos procuraram co-
mentar nos jornais, na segunda metade do século passado, em
caráter regular, os livros do dia, não chegando a prosseguir por
muito tempo no empreendimento. E isso, em parte, porque os
jornais até 1880, mais ou menos, não comportavam tais secções,
e em parte, talvez, pela impossibilidade de exercer a crítica com
independência, numa época em que predominava no gênero o
panegírico. Então, mais do que hoje, proliferavam os talentos no
Brasil e devia ser perigoso impor restrições a alguns deles. Ma-

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nuel Antônio de Almeida, depois de três ou quatro artigos,
calou-se. O mesmo aconteceu com Bernardo Guimarães em
1860, depois de haver atacado Gonçalves Dias, Macedo e Cor-
rêa de Almeida em A Atualidade. Machado de Assis, embora
revelando extraordinária aptidão para o gênero, também resol-
veu desistir, passando a fazer apenas, em ligeiras notações nos
seus folhetins, uma critique d’accueil, perfeitamente inofensiva.
Em setembro de 1875, Joaquim Nabuco, muito moço, inicia um
rodapé de crítica literária n’O Globo. A propósito das obras
completas de Álvares de Azevedo, então lançadas, começa fa-
zendo sérias restrições ao poeta, de cuja genialidade ninguém
duvidava; investe em seguida contra José de Alencar, enfren-
tando uma dura polêmica com este, finda a qual encerra a cola-
boração. Sobre os motivos que teriam contribuído para isso,
nada adiantaram até agora os biógrafos.
A primeira tentativa de crítica militante, entre nós, que
logrou êxito, foi talvez a de Capistrano de Abreu, mantendo
uma coluna semanal, sob a assinatura C. A., na Gazeta de
Notícias, entre 1881 e 1882. Mas quem ia exercer essa atividade
em caráter regular, pelo espaço de vinte e cinco anos, com
poucos intervalos, transformando-a num verdadeiro magistério,
seria José Veríssimo. Foi ele não só um dos nossos maiores
críticos como o nosso maior crítico militante. Sílvio Romero,
ninguém ignora, era incomparável nas generalizações, no debate
das idéias. Quando individualizava, deixava-se levar, freqüen-
temente, por influências emocionais. Daí o seu propósito de
escrever logo uma História da Literatura Brasileira, cedendo
às seduções dos largos panoramas.
Araripe Júnior, possuindo serenidade nos julgamentos e
sendo capaz de nos dar estudos admiráveis, como os que se
encontram perdidos nas coleções do Novidades, sobre O Ateneu
e o Romance Psicológico, tinha descaídas incompreensíveis, elo-
giando rasgadamente A Carne, de Júlio Ribeiro, e vendo, mais
tarde, no romance de Albertina Berta, Exaltação, uma obra-

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prima, chegando a comparar o estilo da autora ao de Euclides da
Cunha.
José Veríssimo era, indiscutivelmente, dos três o mais bem
dotado para o gênero. Embora no fundo um emotivo (segundo
depoimento recente a seu respeito), sabia defender-se de qual-
quer outra injunção estranha ao mérito próprio da obra, dada
a responsabilidade que assumia perante o público — a de
orientá-lo, levando-o a não aceitar uma coisa por outra — e
perante os autores, impedindo-os de seguir caminho errado ou
de se iludirem a si mesmos. Queremos crer que Veríssimo foi
levado à crítica militante, em parte, pela vocação de educa-
dor, que exercia como quem procura atuar sobre o espírito
de um povo literariamente muito “mal-educado”. Não podemos
deixar de citar, a propósito, a frase tão conhecida de Sainte-
Beuve: “Le critique n’est qu’un homme qui sait lire et qui
apprend à lire aux autres”. Viveu o autor de Estudos Brasilei-
ros quase toda a existência a “ensinar a 1er” o nosso público,
extremamente necessitado de guias e mentores.
Nesse sentido, teve de enfrentar, logo, alguém que, sendo
um mestre, detestava tudo quanto implicava magistério: Sílvio
Romero. Quando o contista de Cenas da Vida Amazônica aqui
chegou, depois da Proclamação da República, com um nome
feito no Pará, Sílvio já tinha feito um nome no Rio, quer dizer:
um nome nacional. Embora respeitando-o e reconhecendo-lhe
o valor, José Veríssimo não podia deixar de “criticá-lo”, como
fazia com os outros autores, e sendo diferentes as idéias e a
orientação de ambos, a crítica havia de ser, frequentemente,
desfavorável. Um considerava as obras através de um prisma
sociológico, histórico ou filosófico: outro encarava-as somente
do ponto de vista literário, não se detendo na infra-estrutura, e
julgando apenas “os resultados”, para usar da expressão de Van
Thiegen. Um influenciado pelo pensamento germânico, apesar
do seu evolucionismo spenceriano; outro, de formação essen-
cialmente francesa. Não é de estranhar que vivessem às turras,

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durante muitos anos, para culminarem as escaramuças na agres-
são desabrida e violenta de Silvio Romero, em 1909, nas Zeve-
rissimações Ineptas da Crítica. Segundo informação de Francis-
co Prisco (José Veríssimo — Bedeschi, 1937), Sílvio, poucos
dias antes de morrer, teria declarado, no entanto, a Alberto de
Oliveira, que considerava o rival “um homem digno do maior
respeito — pelo saber, pelo talento, pelo estudo e pelo trabalho”.
Não somente no terreno da literatura nacional se exercia
a crítica militante de Veríssimo, mas também no da estrangeira.
E aqui, como lá, via geralmente com penetração e lucidez. Es-
tranhando seu excessivo entusiasmo pelo Quo Vadis?, de Sien-
kiewicz, que lhe pareceu “u’a maravilhosa ressurreição da Roma
de Ñero” (e o Quo Vadis?, como se sabe, pertence à literatura
popular), devemos ressaltar a justeza do julgamento sobre o
artificialismo de D’Annunzio (moda da época), o histerismo do
Le Jardin des Supplices, de Mirabeau (negando-se a aceitar o ro-
mance como obra de arte), a Histoire Contemporaine, de Ana-
tole France, e tantas outras “novidades literárias” da Europa e
das Américas. Teve mesmo o mérito de ser um dos primeiros,
senão o primeiro, a fazer a crítica de livros hispano-americanos
em nossa imprensa, frisando muito bem os motivos pelos quais
os escritores do novo continente não se conheciam reciproca-
mente.
Está claro que nem sempre acertava. Precisaremos lem-
brar os exemplos de Sainte-Beuve, injusto com Balzac e Flaubert,
superestimando o pobre Ernest Feydeau, autor de um romance
hoje esquecido; de Brunetière e tantos outros críticos, negando
Baudelaire? Uma das mais freqüentes acusações articuladas
contra o autor de Estudos Brasileiros é a de não ter compreen-
dido os simbolistas. Sabe-se que foram os exageros, as extrava-
gâncias de muitos poetas dessa Escola no Brasil, os chamados
“nefelibatas”, que concorreram em grande parte para isso. Ve-
ríssimo suspeitava-os de mistificação e daí o espírito prevenido
com que passou a encarar o nosso movimento simbolista. Outros

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( Biblioteca Univarsitária
j UFSC

juízos também a posteridade não os ratificou. Assinalou ele, em


Bernardo Guimarães, a superioridade do poeta sobre o roman-
cista. Todo mundo continua a 1er os romances do autor d’A
Escrava Isaura, e o poeta está inteiramente esquecido.
Mas quantas vistas justas, precisas e definitivas! Se fez
muitas restrições a Coelho Neto (cujo processo de reabilitação
tantos comentários tem suscitado últimamente) e apontou-lhe os
defeitos, considerava, em 1896, A Capital Federal, Miragem,
O Morto e Sertão uma contribuição bastante para firmar-lhe o
renome em nossas letras. Mais tarde, poderia acrescentar Turbi-
lhão, Treva e Banzo (publicados posteriormente) e teria dito
quase tudo sobre o escritor.
Iniciando-se na crítica militante em plena voga do Mate-
rialismo no Brasil, julgou-o com severidade, mostrando como
adotamos servilmente os modelos de Eça de Queirós e Zola e
identificando os subprodutos do movimento.
Poderia ter cedido, algumas vezes, às “razões do coração”,
essas razões que a crítica não deve conhecer. Mas a denúncia
de Afrânio Peixoto de que fizera passar o eixo da História da
Literatura Brasileira por Machado de Assis, recuando para se-
gundo plano o autor d’O Guarani, a fim de vingar-se de Mário
de Alencar, é absolutamente inaceitável. O sentido dos valores
literários patenteado por Veríssimo revela que ele jamais po-
deria considerar Alencar superior a Machado.
Como costumavam reagir os amigos ante as restrições, os
éreintements, do crítico? Citaremos alguns exemplos. Goulard
de Andrade não lhe perdoou o requisitorio contra Assunção e
cortou relações. Nabuco, discretamente, em carta a Machado
de Assis, estranhou como se pudesse julgar inatual um livro de
pensamentos (Pensées Détachées), concluindo: “ Ora, isso é do
Veríssimo”. Mas não teria havido estremecimento na amizade
por causa disso. Domício da Gama, depois de 1er uma crítica
às suas Histórias Curtas, escreve-lhe de Londres, em setembro
de 1901: “Não precisava explicar as reservas que faz sobre a

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minha língua; estou inteiramente de acordo com você, e quando
não estivesse, nesse particular, o tom geral de apreço com que
me trata me faria esquecer essas ressalvas. A verdade é que,
lenta e interrompidamente escrito, o meu livro tem muitos des-
cuidos e abandonos de forma, de língua, como você diz” (Tre-
cho de carta inédita).
Em 1901, deixando um jornal conservador, Veríssimo passa
a fazer a crítica literária do Correio da Manhã, numa sintonia
perfeita com a orientação independente e corajosa dessa folha.
Sua atividade irá então multiplicar-se de maneira desnorteante.
As mais importantes revistas do “ 1900” lhe solicitam a colabo-
ração. Escreve nos jornais de São Paulo e de outros estados.
Em 1909, Sílvio Romero, exasperado, acusa-o de vender artigos
a quilo. De toda essa intensa faina, num país como o Brasil,
havia de resultar-lhe, naturalmente, certa desilusão. Volta-se
para o passado e escreve a História da Literatura Brasileira, que
só seria publicada postumamente. Em 1913, em carta a Afrânio
Peixoto, declara sua ambição de viver à parte e sinceramente.
“A isso tudo me impelem minhas opiniões, meus sentimentos,
as reações do meio que me não são favoráveis” — conclui ele.
Palavras melancólicas e significativas, a marcar o fim de car-
reira de um grande crítico militante.

Republicano no Império, Monarquista


na República

Nas suas reminiscências, Afonso Celso Júnior escusa-se de


haver entrado na política pelas mãos de seu pai, o Visconde de
Ouro Preto. Na realidade, todos os candidatos à vida pública
se valem de uma proteção; era natural que ele se valesse da do
pai — chefe político de grande prestígio — como outros se

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apoiavam em determinadas “influências locais” ou “gerais”.
Onde o erro, se o pai o julgava capaz, se empregou somente
meios lícitos, se não era governo na ocasião e, influenciando o
filho, a ninguém prejudicou ou preteriu?
O fato é que apesar desse apoio o jovem Afonso Celso,
com vinte e dois anos apenas, mal saído das bancas da Academia,
foi fazer pessoalmente a propaganda de sua eleição pelo Vigé-
simo Distrito (norte de Minas), proeza que nem todo candidato
costumava praticar naquele tempo.
Era a primeira aplicação da reforma eleitoral, da chamada
Lei Saraiva, em que as chapas oficiais sofreram forte concor-
rência, pela liberdade que o novo sistema vinha facultar ao
eleitorado. Nesse ano de 1881, depois de uma viagem marítima
até a Bahia — o meio então mais prático para se atingir o norte
de Minas, desprovido de estrada de ferro — o jovem bacharel
recém-formados pôs-se a percorrer aqueles povoados distantes de
nomes tão pitorescos — Grão Mogol, Capelinha, Minas Novas
— procurando tratar um a um os eleitores. E ante a juventude
que se lhe devia estampar na face não seria de estranhar se al-
guém lhe desse resposta semelhante à que um aldeão francês
dera a Maurice Barrés quando, mais ou menos na mesma idade,
cabalava votos para eleger-se deputado: “ Pode dizer a seu pai
que esteja descansado: não deixarei de votar nele” .
Afonso Celso recorda com enternecimento essa peregrina-
ção e o ambiente de tranqüilidade, paz e “farta mediania” da
região por onde andou no chou to do animal viageiro. Recorda
igualmente a honestidade e a lisura com que foram feitas as
eleições nas quais logrou bater seu adversário Manuel Fulgên-
cio, competindo ambos não só nos votos como em lealdade e
inteireza moral. Fulgêncio chegou a pedir ao antagonista para
ser portador de papéis contra a eleição dele, Afonso Celso,
comissão que este desempenhou fielmente, com uma nobreza
à altura da do rival.
Em 1881 a Corte só muito tardiamente tomava conheci-

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mento de um pleito travado em regiões distantes, de comuni-
cação difícil, sem imprensa e telégrafo como o norte de Minas.
Ninguém sabia, pois, quem por lá virara deputado, quando
Afonso Celso, após fatigante viagem por terra, chegou ao Rio
de Janeiro com seu diploma. Reconhecida a legitimidade do mes-
mo, não tardou o jovem quase imberbe a tomar assento na
Câmara, nas fileiras do Partido Liberal, como o pai.
Liberal, o futuro autor de Por que me Ufano de meu País
mostra-se, desde logo, coerente com o espírito progressista e
inovador que devia animar-lhe o Partido. O nome de Afonso
Celso ficou para sempre vinculado à idéia de Monarquia no
Brasil, figurando entre os dos mais irredutíveis sebastianistas.
Não há quem, ao evocá-lo, não o relacione logo com as ima-
gens de Dom Pedro II, Império etc. Muita gente experimentará,
assim, certa surpresa ao saber que esse monarquista ferrenho
começou a vida política fazendo, na Câmara dos Deputados, a
mais viva profissão de fé republicana.
“Representante da nova geração — diz ele na sua estréia
parlamentar — eu sou, tenho sido sempre e me prezo de ser
republicano. Adoto o Manifesto de 3 de Dezembro de 1870,
que declara não ser intenção dos seus signatários convulsionar
a sociedade, mas esclarecê-la, cumprindo-lhe, longe de conspi-
rar, apenas discutir, provocando não dissensões nem discórdia,
porém simplesmente a reconstrução moral e pedindo uma Cons-
tituinte com amplas faculdades para instalar um novo regime,
promovendo reformas complexas que abranjam todo o mecanis-
mo social”.
Assim se exprimia o jovem deputado em 1882, em perfeita
correspondência com seus princípios liberais e essa paixão das
idéias novas, peculiar à mocidade.
Cinco anos depois, ante uma Câmara na sua maioria con-
servadora, reafirma ele as mesmas convicções, num discurso
que chega a provocar apartes tumultuosos. Acha necessário ir
preparando o terreno para outra forma de governo, cujo adven-

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to será inevitável, sem convulsões ou perigos, simplesmente em
virtude da revolução moral que se está operando em todos os
espíritos. “Não-apoiados” truculentos interrompem-lhe as pala-
vras. Insiste ele, declarando, sob uma saraivada de protestos,
que a Monarquia se mantém por tolerância, sem nenhum esteio
na alma nacional. O Visconde de Taunay é um dos aparteadores
mais veementes. Prosseguindo resoluto, Afonso Celso analisa o
que ele chama “a essência do atual sistema”, afirmando não
haver um grupo de homens diretamente interessados na manu-
tenção do regime monárquico, a começar pela classe mais po-
derosa e aristocrática: a dos fazendeiros. Fala com experiência
própria, pois tendo viajado no interior do país, ainda não
encontrara um monarquista de convicção, um homem disposto
a pegar em armas e a derramar seu sangue para defender o
governo. Atalha-o o Visconde de Taunay com um aparte, se-
guido de inúmeros “apoiados” : “ O país é monárquico. . . ” E o
deputado Lourenço de Albuquerque, como quem esconjura as
palavras insensatas e agourentas do orador, replica: “Se viesse
agora a República, eu fugiría do Brasil”. Afonso Celso respon-
de-lhe com serenidade: — “Não virá já, mas há de vir mais
breve do que se supõe” — ao que acodem novos e enérgicos
“não-apoiados”. Veio daí a três anos, mais breve do que se
supunha, a República prenunciada pelo parlamentar mineiro.
E quando ela chegou, na manhã de 15 de Novembro de
1889, o homem que a previra, que a desejava, “como a maior
expressão de progresso na direção dos povos”, manifestou-se
francamente monarquista. Assim, no momento em que tantos
monarquistas se apressavam a aderir ao novo regime, o repu-
blicano de 81, de 86 e ainda da véspera partia com seu pai
para o exílio, de onde voltaria dois anos depois o mais entu-
siasta panegirista do Imperador e ardente propagandista da
Monarquia.
Como explicar semelhante transformação? No seu livro
Guerrilhas (1895), reunindo artigos publicados n’0 Commercio

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de São Paulo, Afonso Celso expõe os motivos que o levaram a
tornar-se monarquista, quando havia toda vantagem em reafir-
mar as idéias que defendera na Câmara. Em primeiro lugar, o
dever de acompanhar o pai, o Visconde de Ouro Preto. O
argumento poderia parecer pueril. Prevendo essa impressão,
Afonso Celso atalha logo: não se rissem, era isso mesmo; re-
conhecendo no pai uma perfeita envergadura de estadista e ven-
do-o fiel à Monarquia, chegara só por aí à conclusão de que
o caminho não seria errado. Havia no caso uma submissão não
somente efetiva como intelectiva do filho ao pai, submissão
baseada na consciente certeza de uma superioridade.
Em segundo lugar: a maneira pela qual foi feita a Repú-
blica, “em nome da nação bestializada”. Nos seus discursos na
Câmara, Afonso Celso falava numa República que viesse grada-
tivamente, por uma evolução natural e sem convulsões de qual-
quer espécie. Não seria, pois, aquela a República dos seus so-
nhos. Ponto de vista certamente idealista, pois dificilmente se
verificaria uma mudança assim tão radical de um regime, sem
convulsões ou traumatismo. Analisando a situação do país nos
seus Oito Anos de Parlamento e concluindo que a queda do
Império seria inevitável, Afonso Celso devia compreender que
ela não se daria numa troca de cumprimentos e gentilezas entre
monarquistas e republicanos. O autor de Por que me Ufano de
meu País aludia a uma evolução natural, sem saltos, talvez
influência do Evolucionismo tão em voga na época; mas a His-
tória tem mostrado que os saltos constituem uma lei das trans-
formações políticas dos povos.
Outro motivo da mudança de opinião: o cotejo prático
entre o que foi o Império e o que se tornou a República. Afonso
Celso declarou isso em 1895 depois de cinco anos agitados da
luta pela consolidação do regime. Era natural que essas con-
vulsões chocassem o espírito de quem exercera o mandato de
deputado num período que, com exceção da campanha aboli-
cionista, fora de paz e euforia para a vida nacional.

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Ferreira de Araújo, em artigo na Gazeta de Notícias a 20
de setembro de 1895, glosou as razões apresentadas pelo ex-
deputado, dizendo que, do discurso de estréia deste último, já
se deduzia que a Monarquia estava condenada, “comprovando
a autópsia do cadáver a certeza do diagnóstico então formula-
do”. Afonso Celso protesta o seu direito de mudar de princípios
em face de novas experiências. Já não pensava aos trinta anos
como pensara aos vinte. Durante uma década era natural se lhe
esclarecesse o critério. Mas Ferreira de Araújo apontara com
“indulgente encomio” a intuição política manifestada pelo depu-
tado de 82: prevendo nessa época as condições do advento da
República, não lhe negaria algum discernimento para asseverar
agora que a Monarquia voltaria fatalmente após o malogro do
ensaio republicano (Contraditas Monárquicas — 1896).
O deputado que queria a República de um ponto de vista
um tanto teórico fora, entretanto, mais prático quando abra-
çando o ideal abolicionista pensara em ajustá-lo aos imperativos
econômicos do país. Em maio de 1887 Afonso Celso apresen-
tava à Câmara um projeto declarando livres, da data da pro-
mulgação da lei, todos os escravos do Brasil, obrigados, no
entanto, a prestar serviços aos seus ex-senhores pelo prazo de
dois anos. A par disso visionava outras medidas inéditas ten-
dentes a aplainar a transição entre as duas situações. Era ainda
o mesmo propósito da evolução sem saltos, mas neste terreno
perfeitamente cabível. Pela Gazeta de Notícias, no dia seguinte,
José do Patrocínio saudava o projeto como a “redenção do futu-
ro pela dissolução lenta, mas completa, de uma grande iniqüi-
dade presente”. A lei tinha por fim desdobrar “o escravizado
no trabalhador livre que ele procurava criar pela esperança,
fortalecer pelo salário e completar pela educação e instrução
profissional”. “Belo espécimen de lei é este — proclamava José
do Patrocínio —, o látego substituído pelo livro, a senzala pela
escola, o eito pela aula, o terror pela moral”.
Por votação nominal de 41 votos contra 33, a Câmara

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rejeitou o projeto, não o considerando nem mesmo objeto de
deliberação. E muitos dos conservadores, que se manifestaram
contra, foram daí a um ano cerrar fileiras com os que fizeram
a Abolição, sem cogitar da adaptação dos libertos ao trabalho
livre.
Em 1886, Machado de Assis, preocupado com a sorte do
nosso teatro, escrevia: “ Para que a Literatura e a Arte Dramáti-
ca possam renovar-se, com garantias de futuro, torna-se indis-
pensável a criação de um teatro normal”. E acrescentava que
tal providência só podería partir do Estado. Essa medida não
foi tomada. Dali para cá, quem folheia as velhas coleções de
jornais não vê senão falar em decadência do teatro brasileiro.
Alguns projetos que surgiram, tendentes a melhorar a situação,
não vingaram também.
Em 1888, Afonso Celso retoma o problema, procurando
pleitear não a criação de um teatro normal, o que parecia, talvez,
empreendimento excessivo para as possibilidades do momento,
mas medidas capazes de incentivar a Arte Dramática entre nós.
Enviava assim à mesa um aditivo autorizando o governo a sub-
sidiar, com a quantia de três contos mensais, a empresa de tea-
tro da Corte que, além de outras peças, representasse, pelo
menos, uma composição brasileira cada mês, bem como conce-
der um prêmio anual, de três contos, igualmente, ao autor da
peça nacional representada, cujo nome fosse indicado por um
júri composto de vogais do Conservatório Dramático e de um
representante de cada um dos jornais de maior circulação da
Corte, presidido pelo ministro do Império.
O deputado fundamentou largamente o projeto, analisando
a situação em que se encontrava a cena brasileira na época.
“É uma vergonha o que se representa em alguns teatros” —
dizia ele. “ Só a baixa farsa, os esgares burlescos, os cancans
impudentes, as frases equívocas provocam aplausos” . E não
hesitava em afirmar: “Não há um ator nacional digno desse
nome”. O projeto esbarrou em obstáculos intransponíveis. A
comissão de orçamento negou-lhe apoio. O deputado viu-se
obrigado a restringir as pretensões, mas nem assim conseguiu
êxito.
Como se vê, essa luta pelo teatro brasileiro, hoje em franca
atualidade, teve antecedentes bem remotos. E Afonso Celso deve
ser lembrado entre os políticos de boa vontade que nela se
empenharam.
Após a Proclamação da República Afonso Celso acompa-
nha o pai deportado à Europa e mais cresce sua admiração filial
por esse homem que soubera tão bem cair, “o melhor dos pais”.
Com ele, sente e sofre a rudeza do golpe, numa solidariedade
moral que havia de levá-lo a uma identidade de pensamento e
convicção. E a imagem do pai, indomável e altivo no revés,
justapõe-se, na mesma atmosfera sentimental do exílio, à do
Imperador, precocemente envelhecido, curvando-se estoicamen-
te à situação, buscando derivativo nos livros e a murmurar,
numa comovente esperança: — “ Se me chamarem, voltarei. . . ”
Afonso Celso regressa da Europa disposto a lutar pela res-
tauração monárquica. — “ Se me chamarem, v o lta re i...” O
Imperador morria dentro em pouco e alguns, como Taunay,
perdiam a ilusão dessa “volta”. Não acontecia o mesmo com
Afonso Celso, que via na figura do pai um estímulo, um com-
promisso e uma quase certeza. Conclama os monarquistas para
a campanha restauradora. Escreve artigos sobre artigos em defe-
sa do regime decaído, reunindo-os em livros de caráter essencial-
mente panfletário: Guerrilhas e Contraditas Monárquicas. Dedi-
ca-se, ao mesmo tempo, à literatura pura, à ficção, como um
refúgio, mas essa literatura ainda se impregna, por vezes, da
idéia política que o empolga. Assim acontece com o romance
Um Invejado, história de um moço rico convertido à República
por simples conveniência ou vingança, quando, depois de esban-
jar os bens, vê a Abolição arrebatar-lhe os últimos recursos eco-
nômicos. Alimentando a ilusão de obter elevadas posições no
novo regime, é levado ao suicídio quando se convence de que

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nada mais tem a esperar dos republicanos. O título do livro
vem do fato de esse indivíduo, apesar dos seus gradativos reve-
ses, ser alvo contínuo da inveja de um cunhado. Não nos cabe
aqui apreciar sob o ponto de vista literário a obra; registramos,
apenas, da crítica feita por José Veríssimo, na Revista Brasileira,
e incluída na primeira série dos Estudos de Literatura, a seguin-
te observação: “Como tipo representativo do sujeito que se faz
republicano, por se sentir ferido nos seus interesses de proprie-
tário de escravos, foi mal-escolhido o desse estróina, para quem
a propriedade não podia ter grande apreço” .
Mas os anos passam: a República consolida-se, a ação práti-
ca e combativa de Afonso Celso decerto também se esmorece
ante a realidade. Em 1901 publica ele o livro que se tornaria
mais conhecido e vulgarizado em sua obra Por que me Ufano
do meu País, espécie de suplemento moderno à famosa apologia
de Rocha Pita. Era a transposição do saudosismo monárquico
do autor; esse Brasil exaltado numa visão ideal, seria, no fundo,
o Brasil de paz e de remanso que o deputado Afonso Celso
conheceu nas duas últimas décadas da Monarquia, em cujo
ambiente eufórico se plasmou a obra de um Machado de Assis.
O livro possui qualquer coisa da sublimação de uma paixão
política e teria trazido ao autor o reajustamento afetivo de que
ele necessitava na atmosfera conturbada dos primeiros lustros
da República.

João do Rio e a Crônica Política

A obra de João do Rio está diretamente ligada à remodela-


ção da Capital do Brasil, empreendida no governo Rodrigues
Alves, pelo prefeito Pereira Passos. Rasgava-se a avenida Cen-
tral, arrasavam-se os quarteirões de vielas estreitas e a cidade

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colonial começava a tomar uns ares parisienses, com edifícios à
Luís XIV e Luís XVI. Era a época do “bota abaixo”, do qual
nos deixou um documentário dos mais curiosos o escritor João
Vieira, num romance de mesmo título e infelizmente quase des-
conhecido. “ O Rio civiliza-se” — proclamaria, dentro em pou-
co, o cronista mundano Figueiredo Pimentel, na sua popularissi-
ma secção “O Binóculo”.
Paulo Barreto seria o homem destinado a fixar o “esplên-
dido espetáculo” da metamorfose urbana da nossa Capital. Numa
nota de introdução à Vida Vertiginosa diz ele: “Este livro, como
quantos venho publicando, tem a preocupação do momento,
talvez mais do que os outros. O seu desejo ou a sua vaidade é
trazer uma contribuição de análise à época contemporânea, sus-
citando um pouco de interesse histórico sob o mais curioso
período da nossa vida social que é o da transformação atual
de usos, costumes e idéias”.
Na verdade, essa transformação se operou em menor grau
em outros países do mundo, mas aqui ela coincidiu e foi, ao
mesmo tempo, estimulada pela revolução urbanística do governo
Rodrigues Alves. Com o arrasamento dos velhos quarteirões o
Rio de Machado de Assis recebia um golpe de morte. O autor
do Dom Casmurro, o cronista do Segundo Reinado já na pri-
meira década da República procurava passar a vara a Olavo
Bilac.
Mas o poeta da Via Láctea não tinha o espírito de observa-
ção capaz de realizar uma obra da natureza da que encontramos
em três volumes da Semana e em outros tantos das Crônicas.
De 1904 em diante, a remodelação do Rio reclamava o
aparecimento de um novo “espectador” da cidade. Esse “espec-
tador” foi João do Rio. O cabriolé e o tílburi característicos da
paisagem machadiana cediam lugar ao automóvel. E justamente
com uma página, “A Era do Automóvel”, João do Rio abre seu
livro Vida Vertiginosa: “O monstro transformador irrompeu
bufando por entre os escombros da cidade velha, e como nas

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mágicas e na natureza aspérrima educadora, tudo transformou
com aparências novas e novas aspirações”.
Machado de Assis fora um mestre da crônica do tipo fo-
lhetim, em que os assuntos mais díspares são entrelaçados por
uma deixa artificial. João do Rio transforma a crônica em re-
portagem, de acordo com o espírito da época, em que se im-
planta o sensacionalismo na imprensa. Entretanto, não deixou
ele de recolher algumas heranças machadianas, entre as quais
o gosto pela crônica política de forma literária, sobretudo pelos
retratos, os perfis políticos, em que foi exímio o autor do Dom
Casmurro. José de Alencar teria sido o primeiro a tentar o gê-
nero, nos folhetins do Diário Mercantil, reunidos em volumes
com o título Ao Correr da Pena. Machado apurou-o e João do
Rio imprimiu-lhe o cunho trepidante de reportagem. Como Ma-
chado, Paulo Barreto viu no fato político um tema literário dos
mais atraentes, dele tirando partido em inúmeras páginas incor-
poradas em livros. No “esplêndido espetáculo” que o cronista
visava objetivar, o elemento político não podia ficar de lado,
já que através dele se refletia, também, a “transformação atual
de usos, costumes e idéias”.
Bilac não se inclinaria a fazer uma crônica literária sobre
Pinheiro Machado ou Lauro Müller; João do Rio deixou desses
e de outros estadistas os mais expressivos retratos. Excelentes
são, por exemplo, os perfis de Rodrigues Alves, que figuram
nos livros Pall-Mall-Rio e No Tempo do Wenceslau, onde a
excessiva simpatia não trai a verdade. Rodrigues Alves não
podia, aliás, deixar de ser retratado com entusiasmo pelo escri-
tor que se fizera o cronista do Rio inaugurado pelo presidente
paulista.
Já o retrato de Nilo Peçanha, que encontramos em Vida
Vertiginosa, descamba para o panegírico. Mas o perfil de Pinhei-
ro Machado em No Tempo do Wenceslau, com toda a exube-
rância de tintas e a acentuação dos contornos, transmite-nos um
certo frisson. Pinheiro era uma dessas personalidades que não

244
despertavam senão admiração incondicional ou repulsa decisiva.
Tornava-se difícil manter-se diante dele em atitude de crítico
imparcial e objetivo. Todos os que o admiraram fizeram-no
apaixonadamente, inclusive o próprio Rui Barbosa.
No perfil do chefe gaúcho, João do Rio revela sensíveis
influências de leituras de Nietzsche, que se tornara uma moda
literária qo Brasil de 1900 a 1915, mais ou menos (época em
que Albertina Berta fizera uma famosa conferência sobre o autor
de Vontade de Poder). O que Paulo Barreto admira em Pinhei-
ro é, sobretudo, o homem de vontade, o homem que sabe que-
rer. “ Pinheiro Machado — escreve ele — queria com a violên-
cia dos raros singulares, e a tal violência correspondia o choque
dos que o seu querer contrariava”. E na mesma página: “ Ele
queria para cristalizar na movediça onda humana permanente
e sempre maior o seu querer. Sacrificava amigos, era de pedra
aos rogos, aliciava os inimigos, caminhava sereno para os golpes
mais arriscados por querer. E desse querer cem veias brotavam
das fontes da oposição, cresciam os caudais da raiva”. João do
Rio o classifica de “alma púnica — alma de conquista, de luta,
de domínio”.
E agora, já em pleno domínio da ética de Nietzsche: “Cheio
de erros e de bens, ele foi o exemplo mais tenaz, mais agudo,
mais esmagador do Homem Que Quer, para além do bem e do
mal” . Pura contrafação nietzschiana ainda este trecho: “O ho-
mem nasceu para dominar. É feliz aquele a quem só a Morte
arranca o supremo domínio. Porque é na vida a exceção e o
único que no pó interessa e empolga e prende e domina” .
Sem visão de sociólogo, João do Rio não explica o famoso
caudilho no tempo e no meio em que viveu: transformou-o num
herói de Shakespeare, numa personificação do super-humanismo
nietzschiano.
Aspecto bem curioso da crônica política em Paulo Barreto
é o bafejo do helenismo então em voga. Freqüentemente, com-
para ele os homens do dia com figuras da Grécia ou da Roma

245
Antiga (quem diz helenismo diz, por extensão, antigüidade clás-
sica, pois a mania de citar os gregos corria de parelha com a
de aludir aos romanos). Mas João do Rio tirava partido dessa
“moda” sobretudo pelo lado satírico e humorístico, fazendo dos
grandes vultos da antigüidade transposições irônicas para a
atualidade política do Brasil.
No “cinematógrafo” satiriza o tipo do engrossador profis-
sional, fantasiando um encontro no largo da Lapa com Gnatho.
Quem era Gnatho? Um personagem que nas comédias de Me-
nandro encarnava o bajulador, o homem cuja fortuna se faz à
custa de lisonjas. E Gnatho explica-lhe o quanto tem concor-
rido para o renome e o prestígio de Pinheiro Machado promo-
vendo os presentes de galo constantemente recebidos pelo cau-
dilho gaúcho. Como se sabe, Pinheiro era doido por brigas de
galos e uma das maneiras mais práticas de agradá-lo seria en-
viar-lhe uma dessas aves adestradas na rinha. Em No Tempo
do Wenceslau a antigüidade clássica aparece muitas vezes, ge-
ralmente com objetivo satírico. “Um Capítulo de Tácito”, “Fá-
bula Grega” são apólogos políticos cujo espírito não podemos
perceber bem hoje, distante que estamos dos acontecimentos a
que se referiam.
Duas crônicas no mesmo livro parecem denunciar influên-
cia de Machado de Assis: uma, “O Jogo do Cambodge”, que
lembra o apólogo da Academia do Sião, e outro, “ Conselhos”,
onde o propósito de dar-nos uma nova versão da “Teoria do
Medalhão” torna-se quase evidente. Em lugar do pai a ditar re-
gras de conduta ao filho, temos o padrinho — o Conselheiro
Guedes — a traçar diretrizes ao afilhado Jorge, que acaba de
concluir o curso de Direito. Vejamos ao acaso um trecho: —
“Não sejas amigo de ninguém, certo de que ninguém é teu amigo
senão por interesse. Queres um emprego? Decompõe, chama
de ladrão, de bandido. Depois farás as pazes, se te convier.
Exercita o regime moral da ‘face aos peitos’. Há muito tempo
que há mais oradores no Brasil. Mas em comparação temos a

246
febre do falatório numa língua que assegure a João Ribeiro a
excelência da supressão de Camões nas escolas. Fala! Não pre-
cisas provar coisa alguma nem estudar. Fala! Descompõe na
Câmara, descompõe nos meetings, descompõe nos jornais, des-
compõe pelas esquinas. Desde que te coloques, como os outros,
na convicção de que todos são uns refinados malandros e lá só
o homem de bem, desde que berres diariamente essa opinião
pessoal, o público dar-te-á crédito. . . ”
A receita para o êxito da personagem de João do Rio era
bem diferente da do “Medalhão” de Machado. Mas tempos ti-
nham mudado. O jovem bacharel, porém, hesita: — “Mas Pa-
drinho, pode haver uma reação.
— De que gênero? Pancada? Tiro? Isso é raro. Arma-te
de um capanga e fica tranqüilo. Defesa dos atacados? Nada
adianta. Ataque contra ti? Melhor. Sobes de valor. A questão é
ser bem reles, bem terra-a-terra nas descomponendas e incessan-
te. O principal é tratar de tudo o que ignoras, chamando de
ladrões os mais puros e os mais inteligentes, como os mais teus
colegas. . . ”
Que Machado de Assis estava, não raro, presente no espíri-
to de João do Rio, cronista político, temos uma prova, expressi-
va, na página em que o autor de “Sésamo” compara o tempera-
mento do presidente Wenceslau, freqüentemente criticado na
época pelas suas hesitações, com o do romancista de Quincas
Borba. Depois de exaltar a personalidade do mestre, “o nosso
grande gênio literário”, e acentuar-lhe a timidez, o seu propósito
de não contrariar ninguém, João do Rio acha que Wenceslau
precisava retirar dos seus aposentos o retrato de Machado de
Assis, “porque se os políticos têm retratos-programas nos apo-
sentos, deve ser esse o retrato que o acompanha”. E o que valo-
riza um artista podia só trazer inconvenientes num homem de
ação, como o político.
Tais as heranças machadianas em João do Rio, através das
quais podemos igualmente caracterizar a época de estabilidade,

247
em que um viveu, e o período de transmutação de valores, de
que o segundo se fez o “espectador deslumbrado” (não será
necessário ressalvar que o paralelo com Machado de Assis, no
caso, é puramente quantitativo). Desse período de transmutação
encontramos os mais significativos flagrantes no plano político,
nas crônicas do “Cinematógrafo”, em No Tempo do Wenceslau
e Vida Vertiginosa. Basta lembrar, a propósito, a página “A Futi-
lidade de Informações e os Seis Ministros”, em que João do Rio
denuncia essa curiosidade moderna pelo detalhe anedótico, de
pura influência norte-americana, que ia fazer o êxito popular
dos flashes da atualidade. Inaugurava-se a época em que as
perguntas de sucesso dos repórteres aos grandes homens seriam
estas:
— “Quantas horas dorme V. Exa.? Qual o seu livro de
cabeceira? O seu prato preferido? Passeia a pé, de bicicleta,
de fiacre ou de automóvel?. . . ”
Já sugeri o tema a Agripino Grieco, que ficou de fazer
uma conferência sobre o mesmo.

Graça Aranha Plagiário?

Em artigo sob o título “ Garrafas Vazias”, publicado no


Jornal do Brasil, a 29 de junho de 1924, logo após o tumulto
provocado na Academia pelo famoso discurso de Graça Aranha,
Coelho Neto, defendendo-se das acusações dos modernistas,
escrevia a certa altura: “Um deles, e bem inteligente e engraça-
do, que, mais hoje, mais amanhã, terá a sua poltrona na Acade-
mia, disse há dias que a minha obra não é senão uma adega
de. . . garrafas vazias. Garrafas vazias, sim, mas são minhas, lá
estão os rótulos com a data do engarrafamento. Também meu
é o pequeno copo em que bebo, podendo eu dizer de mim o

248
que disse de si Alfred de Musset: Mon verre n’est pas grand,
mais je bois dans mon verre.
Se as minhas garrafas estão vazias é porque uma delas, uma
pelo menos, foi desarrolhada por um galfarro que lhe escorro-
pichou o vinho. E assim como se meteu na minha adega, andou
pelas propriedades de Dona Júlia Lopes. O vinho, ou zurrapa,
que foi trasfegado de uma de minhas garrafas, é um vinho tinto,
negro, marca urubu, vinho de uma das minhas cepas, ou novelas,
intitulada “Os Velhos”. Dona Júlia Lopes, essa teve prejuízo
maior porque da sua criação foi-se toda uma vara de porcos; e
tanto o meu carrascão ou, digamos, a minha urubusada, como os
cevados da romancista d’A Família Medeiros, passaram-se para
as terras férteis de Canaã e lá figuram. O Moisés que os con-
duziu não os achou indignos de entrarem no êxodo, tanto que
os tirou do Passado fazendo-os emigrar para o Futuro, onde os
instalou, a uns em carniça humana, e dando aos outros o mesmo
cevo com que se fartavam gulosamente nas terras da dona. Que
diabo! Atraía os urubus e porcos com fartum macabro e carne
tenra de recém-nascidos encharcada em molho amniotico; sir-
va-se de tudo à vontade, mas não saia com escândalo, a dizer
dos donos cobras-e-lagartos, pavoneando-se com o que lhes
arrancou”.
Essa citação demasiado longa se tornou necessária, para
bem apreciar-se o sentido metafórico com que Coelho Neto for-
mula uma acusação de plágio contra Graça Aranha. A novela
“Os Velhos” a que ele se refere, se encontra no livro Sertão e é
indiscutivelmente um dos melhores trabalhos desse volume, po-
dendo figurar, sem favor, em qualquer antologia da novela
brasileira. Procuremos resumi-la em duas palavras, para fixar
a cena, ou antes o “vinho”, que Graça Aranha lhe teria sur-
rupiado.
Na encosta agreste de uma colina, numa casinha solitária,
a seis quilômetros da cidade mais próxima, morava um casal
de velhos, Tomé Saíra, cesteiro de profissão, com a esposa,

249
Romana. Tomé costumava ter uns ataques, em que ficava desa-
bordado durante muito tempo, como morto, causando o maior
susto à mulher. Daí o receio de ser enterrado vivo e as reco-
mendações que fazia à Romana para não incidir num equívoco
fatal. Mas acontece que, certo dia, Tomé vem a falecer num
desses ataques, e a esposa alertada pelo que tantas vezes ele lhe
advertira insiste em não julgá-lo morto. É quando os urubus,
pressentindo carniça, começam a rondar a casa. A cena de Ro-
mana acuando os cães contra os urubus e procurando defender
à viva força o corpo do marido, que ela supõe ainda vivo, se
reveste aos nossos olhos de um aspecto profundamente trágico.
Mas, afinal, caindo desfalecida ao lado do marido, não pode
impedir os urubus de realizarem um verdadeiro cerco à habita-
ção. O fato acaba despertando a curiosidade dos moradores dos
arredores, que seguindo o movimento dos urubus, localizam a
casa de Tomé, onde o encontram morto, já em decomposição,
e Romana agonizante.
Os que já leram Canaã hão de lembrar-se de episódio idên-
tico narrado no capítulo VII. Com a diferença de que não se
trata de um casal de velhos, e sim de um imigrante, homem
estranho, residindo numa casa solitária, na zona rural do Rio
Doce, onde se desenrola o romance. Vivia ele apenas em com-
panhia de uma matilha de cães, passando por bruxo para a
vizinhança, cuja convivência refugava. Certo dia, surgem os
urubus, num quadro em tudo semelhante ao da novela de Coelho
Neto. “Ah! temos carniça por aqui. . . opinou Joca, indagando
com os olhos atilados o vôo do corvo”.
Descobrindo a direção em que voam os urubus chegam à
casa do “bruxo”, onde encontram o cadáver já em estado de
putrefação e defendido ferozmente pelos cães, que não querem
permitir, de maneira alguma, aos estranhos tocar no corpo do
dono. Foi uma grande dificuldade para retirá-lo dali e sepultá-
lo. E à noite, quando os trabalhadores de Felicíssimo ouviram
o clamor de uma vara de queixadas, Joca explicou: “ Lá vão as

250
r

almas dos cachorros, feitas caititus, para desenterrar e ressusci-


tar o velho demonio”. “Formava-se assim um novo mito no Rio
Doce. Nas noites tempestuosas ainda hoje, quando o caititu
matraca no mato, todos se recolhem medrosos, melancólicos,
pensando nos cães encantados” — conclui o romancista.
Agora, vejamos o caso dos “cevados” de Júlia Lopes, em
cujas propriedades teria andado também Graça Aranha.
Coelho Neto refere-se ao conto “ Os Porcos”, que se encon-
tra no livro Ânsia Eterna. Quando soube que a cabocla Umbeli-
na estava grávida do filho do patrão, o pai moeu-a de pancadas
e prometeu lançar o neto aos porcos. A mulata ficou impressio-
nada com a ameaça e, embora odiasse a criatura que trazia no
ventre, fazia o propósito de evitar-lhe aquela morte horrenda.
Acontece que uma noite, em que seguia pela estrada deserta
da roça, sentiu-se subitamente assaltada pelas dores do parto
e veio a dar à luz. Agarrando o filho, procurou caminhar com
ele, mas acabou caindo à beira da estrada, enquanto um vulto
se aproximava “arrastando no chão as mamas pelancosas, com
o rabo fino, arqueado sobre as ancas enormes, e pêlo hirto,
irrompendo raro da pele escura e rugosa, e o olhar guloso, estu-
pidamente fixo: era uma porca”. E Umbelina, entre as sombras
da agonia, conseguiu ainda distinguir a porca-a devorar-lhe a
criança.
Não precisarei repetir aqui o episódio do Capítulo IX de
Canaã, em que Maria, sozinha no cafezal, dá à luz um filho
espúrio, e, semidesmaiada, não pode impedir os porcos de sal-
tarem às dentadas sobre o recém-nascido.
Restaria agora responder a questão: houve realmente plá-
gio nos dois casos? A resposta de maneira muito precisa e defi-
nitiva não é fácil, dada a controvérsia reinante sobre o conceito
de plágio, que não poderiamos discutir nos limites deste artigo.
No inquérito de João do Rio, publicado em livro sob o título
O Momento Literário, Júlia Lopes de Almeida declarou que o

251
conto “ Os Porcos” fora inspirado numa história verídica, que
ouvira dos caboclos na roça. Pode-se admitir origem idêntica
para episódio dos porcos em Canaã. Graça Aranha ter-se-ia
utilizado de algum fato recolhido por ele naquela região. A
mesma origem seria plausível atribuir-se ao caso dos urubus,
tanto mais que Graça Aranha — não sabemos se para camuflar
o aproveitamento do assunto — fala num “novo mito do Rio
Doce”.
Mas de qualquer forma não devia ele ignorar a novela de
Coelho Neto, nem o conto de Júlia Lopes, e a utilização dos
dois episódios já desgastados, por assim dizer, na ficção brasi-
leira, denuncia, no mínimo, pobreza de inventiva.

Sílvio Romero e Taunay

Na correspondência inédita de José Veríssimo, que tive


ocasião de compulsar, por gentileza do editor A. Simões dos
Reis, encontram-se três cartas de Afonso Taunay com referên-
cias desairosas a Sílvio Romero. A primeira é datada de 13 de
abril de 1902. Afonso Taunay envia a Veríssimo um exemplar
de edição castelhana de Inocência editada por La Nación, de
Buenos Aires, mostrando-se convicto da satisfação com que o
livro seria recebido por quem fora amigo do autor. E acrescen-
tava: “ É possível que Mocidade Morta fique a lhe perder de
vista, como diz o Sílvio Romero; em todo caso, bem mais vale
para o público, para todos, o juízo expresso em um dos Estudos
Brasileiros por um crítico indestronável do que a opinião inve-
josa de um verdadeiro zoilo”.
Nove anos depois, a 17 de fevereiro de 1911, justamente
quando Sílvio publicava as Zeverissimações Ineptas da Crítica,

252
T

Afonso Taunay, numa carta longa, fazia a seguinte alusão ao


fato: “Dizem-me que o Sílvio Romero agrediu-o num pasquim,
ferozmente, encabulando-o no ódio que professa à memória de
meu Pai e a propósito de Inocência. Que há de verdade nisso?
Desejaria bem dizer-lhe umas verdades, ao invejoso, ao sórdido
invejoso, ao mesquinho atassalhador de quantos no Brasil con-
seguem destacar-se do vulgo”.
Daí a um mês, a 20 de março, torna a aludir ao assunto:
“ O idiota do Sílvio fez a mais solene retratação de quanto pode
maldizer do senhor publicando um livro só para o desbancar,
como pretende. Que sandeu! que sarambé, como por aqui se
diz. Ainda não vi o tal livróide, que por aqui não apareceu”.
Não procuremos julgar das expansões de Afonso Taunay.
Se ele se excedeu nessa carta ao chamar Sílvio Romero de
sandeu e de zoilo, a verdade é que Sílvio se excedeu igualmen-
te nos ataques a José Veríssimo. Estamos em pleno domínio das
paixões exacerbadas.
Mas seria interessante saber quais os juízos de Sílvio sobre
o Visconde de Taunay que motivaram o revide do filho, muito
justamente zeloso da memória do pai. Infelizmente não pudemos
localizar até agora mais do que um artigo do crítico a respeito
do Visconde de Taunay: é o que se encontra no volume Outros
Estudos de Literatura Contemporânea e foi incluído no quarto
volume da História da Literatura Brasileira, edição José Olímpio
organizada por Nélson Romero. Nesse artigo, escrito a propósi-
to da publicação do livro póstumo do Visconde de Taunay, Ao
Entardecer, Sílvio Romero começa reconhecendo ter sido o autor
em vida por ele muitas vezes combatido. Qual a extensão e a
natureza de tais ataques? Como já dissemos, não conseguimos
apurar. Das palavras da primeira carta de Afonso Taunay a
Veríssimo conclui-se, porém, que Sílvio, em um dos seus escri-
tos, possivelmente quando do aparecimento da Mocidade Morta,
de Gonzaga Duque, estabeleceu um paralelo com Inocência,

253
considerando-a muito inferior àquele romance. Além do paralelo
nos parecer estranho, por tratar-se de obras de índole comple-
tamente diversa, acontece que Mocidade Morta tem apenas va-
lor histórico, como romance representativo da prosa simbolista,
enquanto Inocência, dentro de certas dimensões, é um livro per-
feitamente realizado.
Tudo nos indica que essa ojeriza de Silvio Romero ao
Visconde de Taunay deva ser colocada mais no terreno da vida
literária do que no da Literatura. Veríssimo, Machado de Assis,
o Visconde de Taunay formavam num grupo que foi sempre
combatido pelo de Silvio. Era o grupo que negava a grande im-
portância da Escola de Recife, subestimava Tobias Barreto e mos-
trava-se hostil ao Naturalismo. Ao lado de Sílvio, tínhamos o
jovem Tito Livio de Castro, prematuramente falecido, um espí-
rito, sem dúvida, de real mérito, mas terrivelmente setorista.
Considerava o Naturalismo a maior conquista do século e nutria
por Zola uma admiração quase fanática, chegando a colocá-lo
acima de Renan, opinião com que o próprio Sílvio não con-
cordou (ver o prefácio de Questões e Problemas, de Tito Livio
de Castro). Quando o Visconde de Taunay escreveu uma série
de artigos condenando o Naturalismo, sob o título Ensaios Crí-
ticos, Tito Livio saiu em campo para revidá-los, procurando
mostrar que o autor de Inocência “não só não compreendia o
Naturalismo como nunca tinha lido seus produtos”. É ainda
Tito Livio quem no livro acima citado desdenha da maneira
mais apaixonada Machado de Assis, dele dizendo: “Escreve so-
bre tudo, contanto que seja um despropósito” . Há pois no caso
uma querela de grupos, de partidarismos extremados.*
Lancemos os olhos, ligeiramente, agora pelo artigo de Síl-
vio Romero, incluído em Outros Estudos de Literatura Contem-
porânea. O crítico quer dar a entender que em se tratando de
uma obra póstuma, se Taunay já falecera, ele que o atacara
em vida, estava em condições de julgá-lo com isenção de ânimo.

254
Ora, até certo ponto o artigo é severo, mas não se pode consi-
derá-lo um requisitorio impiedoso. Embora fazendo restrições
muito sérias a Taunay, Sílvio Romero ressalva-lhe certo mérito.
Estaria sendo sincero desta feita, colocando-se acima dos parti
pris de grupo? Ou é a este artigo que se refere Afonso Taunay,
ao acusá-lo de professar ódio à memória do romancista? Não
sabemos. O que sabemos é que com relação a Inocência — pois
não podemos apreciar todo o artigo aqui — as opiniões não
nos parecem inteiramente justas. Antes de tudo, Sílvio Romero
incide num dos seus velhos cacoetes: o de procurar classificar
um escritor por paralelos: Taunay teria menos que Machado
de Assis a observação psicológica, embora sobrelevando-o no
sentimento da paisagem; menos que Alencar a imaginação des-
critiva e a poesia, sobrepujando-o no conhecimento direto das
cenas, menos do que Távora o tom realístico, vencendo-o na
espontaneidade da narrativa e na singeleza do estilo. Ê um pro-
cesso falho esse. No fundo, não define exatamente as quali-
dades de um escritor, fazendo a avaliação das mesmas depen-
der de um cotejo com as de outros que, muitas vezes, nada
têm com ele, como no caso de Taunay e Machado de Assis.
Ressalvando em Inocência “o romance bem-feito, o enredo bem
tecido, o desdobrar da fábula singelamente arquitetado”, nota-
lhe o crítico a ausência de vigor, de fortes tintas e a palidez
de estilo. Julga as figuras mais vivas do livro justamente as sub-
sidiárias; Coelho, o empalamado; Garcia, o morfético. Considera
o naturalista Meyer e o camarada José Pinho duas caricaturas,
“sem cunho naturalístico”, restrição que não compreendemos.
Ora, se Inocência é uma criatura idealizada, os outros tipos
participam de um caráter realista, mesmo porque o escritor os
conheceu e cs retirou diretamente da vida real, como podemos
ver nas suas Memórias. Procedia aqui Taunay à maneira de
Camilo Castelo Branco, quando num enredo romântico movi-
menta, muitas vezes, em tom realista, cenas e tipos da vida
portuguesa.

255
O Bom Humor de Taunay

Na juventude, o Visconde de Taunay caracterizou-se por


um gênio alegre e bem-humorado que soube conservar até a
maturidade, mesmo quando já ferido rudemente pela doença
de que viria a falecer. Nas Memórias, refere-se ele à fama de
rapaz brincalhão que passou logo a desfrutar entre os com-
panheiros de jornada na malograda Coluna Expedicionária de
Mato Grosso. Aliás, relembrando os episódios mais trágicos,
nesse livro, ele o faz com uma espécie de otimismo e de confor-
midade com o destino. E não perde a oportunidade de assinalar
episódios burlescos no decorrer da lamentável aventura bélica.
Haja visto a peça que pregou ao colega Chichorro numa das
primeiras paradas da Coluna, em Campinas. Já há muitos dias
ali se encontravam os expedicionários, entre recepções e festas.
O baile de despedida na Câmara Municipal prenunciava um
grande sucesso e Taunay estava desconsolado por não ter con-
seguido adquirir na cidade um par de botinas Meliès, como o
seu colega Chichorro, que lhas mostrava, dizendo só sentir não
serem elas de verniz. Ocorre-lhe então, ao jovem tenente, a
idéia de uma mistificação. Tirando da mala um par de botinas
de certo preparado de borracha, comprado no Rio de Janeiro,
apresentou-as a Chichorro, como se fossem de verniz, dizendo
que elas lhe assentavam às mil maravilhas. O colega entusias-
mou-se e acabou aceitando a troca. Foram para o baile. E ali,
pobre do Chichorro, a passar por ele de vez em quando, per-
guntava-lhe: — “Que diabo de botinas você me deu! Estou
sentindo um calor nos p é s ! ...” Daí a pouco, Taunay comu-
nicava a uma das moças: — “Parece-me que o Chichorro veio
ao baile com sapatos de borracha”. Daí a pouco, todo mundo
começava a interpelar o rapaz: — “ O Sr. Chichorro quando
anda não faz barulho, isto só de fantasmas ou de quem pôs nos
pés sapatos de borracha”. Chichorro encabulou-se e acabou reti-

256
rando-se do baile. Mas, quando Taunay, de volta ao quarto,
supôs encontrá-lo fulo de raiva, achou-o a rir silenciosamente da
esparrela: — “Passe para cá os meus Meliès. Culpa não tem
você, culpa tem o governo que manda crianças para comissões
de gente séria!”
Esse espírito travesso e brincalhão teria concorrido, decerto,
para que Taunay suportasse de ânimo forte as penas de tão dura
jornada. Nas Memórias temos a impressão de que ele não con-
sentia em refletir sobre os riscos que estava correndo, do que
seria, por exemplo, a desgraça de uma mutilação para um jovem
belo, esbelto e sedutor, nas suas condições. Só uma vez, no
decurso da narrativa autobiográfica, o vemos formular tão amar-
ga conjectura.
Não é ainda isento de significação o fato de ele ao escrever
esse romance de amor que tem um desfecho trágico, Inocên-
cia, haver-lhe atenuado as tintas com a presença de um perso-
nagem burlesco: o naturalista alemão Meyer. Até então, nos
romances românticos (com exceção de Memórias de um Sargento
de Milícias, em que, aliás, prevalece o Realismo, não figuravam
geralmente tipos cômicos. Macedo, por exemplo, se tinha graça
como teatrólogo, nos romances só movimentava personagens
melodramáticos — à exceção, talvez, de um velhote lamecha
que aparece n'O Moço Loiro.
Do gênio alegre de Taunay, da graça com que sabia contar
anedotas, nos dá testemunho Afonso Celso em Oito Anos de
Parlamento. E melhor ainda nos revelam o homem bem-humo-
rado, num período em que a vida lhe começava a ser amarga,
algumas de suas cartas inéditas a José Veríssimo, que me foram
comunicadas pelo meu amigo, o bibliógrafo Antônio Simões dos
Reis.
A 11 de novembro de 1896 escreve ele: “Só tarde foi que li
n’A Gazeta a notícia acerca da Academia. Não lhe pude pois em
tempo falar sobre a impressão que me causou. Acho a idéia
viável, generosa e fecunda, contando que lhe dêem para ponto de

257
partida outra data que a de 15 de Novembro. O mais é querer
que as Letras, sem protesto de ninguém, de ora em diante glori-
fiquem esse aniversário. Não acha? Qualquer outro dia, meu
amigo, com exclusão absoluta do pensamento político — cousa
que V. já fez naquele cantinho da Revista, tendo realmente
fundado a Academia Brasileira, com seus chás de duvidosa
caravana, biscoutos de velhas datas, devorados pelo Leão Veloso
e lucullianos jantares na Sala Azul d’O Globo”.
Tivesse ou não Taunay influído no caso, com a sua obser-
vação maliciosa, o certo é que a Academia, que deveria ser
criada oficialmente por decreto a 15 de novembro de 1896,
“para comemorar o sétimo aniversário da Proclamação da Re-
pública”, só o foi um mês depois, a 15 de dezembro, quando
se lavrou a primeira ata.
Cheia de verve a carta de 23 de fevereiro de 1897, que
termina com este trecho: “Vi ontem um colega da Academia no
bota-fora de uma cocotte que tomava a barca de Petrópolis.
Proh pudorl Corri, em nome da veneranda Instituição. Deverá
ser artigo fundamental nosso: Todos os membros são. . . ” (pa-
lavras de cunho rabelaisiano, inventada por Taunay e que somos
obrigados a omitir).
A 18 de março de 97, embora se queixando das nevralgias
de fundo diabético, não perde o bom humor, chamando José
Veríssimo, em tom de troça, de “paraense egoísta, malvado e
mancomunado com os espoliadores da gente”. A 21 de março
do mesmo ano, começa nestes termos: “Então o senhor pretende
tornar-se vil instrumento do Jacobinismo e entregar-me, pedin-
do-me extratos de minhas Memórias? Ou então perdeu de todo
o pouco juízo que trouxe de Óbidos? Vacilo entre estas duas
hipóteses”. O interessante é que as Memórias, hoje publicadas,
não contêm nenhum fundo político, não se compreendendo em
que poderiam prejudicar a quem as divulgasse na época.
E depois de outras cartas espirituosas, cujos trechos alon-
gariam muito este artigo, nós o vemos, a 23 de dezembro de 97,

258
lamentar sua “miséria fisiológica”, para concluir: “Chego a crer
que estou em liquidação, pelo que não o relevo do compromisso
da biografia. Quero coisa chibante, pois bem sabe quanto fui
vaidoso”.
Infelizmente essa biografia, à altura do homem, até hoje
não apareceu.

Artur Lobo e a Novela “O Outro”

Artur Lobo é o tipo do escritor esquecido. Não me lembro


até hoje de ter visto algum dos seus livros anunciados nos alfar-
rabistas. No fichário da Biblioteca Nacional só encontrei, há
uns dez anos, a indicação do romance Rosais. Fiz o pedido e
veio a clássica resposta: fora do lugar. Foi nessa época que
Eduardo Frieiro procurou satisfazer até certo ponto a minha
curiosidade, enviando-me um exemplar de O Outro, em que
figuram duas novelas: a primeira com esse título; a segunda,
“No Cárcere”, narrativa de um prisioneiro. Nesse volume somos
informados de que Artur Lobo, além de Rosais, publicou um
romance de costumes, Um Escândalo, e mais o livro de poesias
Ritmos e Rimas, todos à venda na Casa Laemmert e sem indica-
ção de data. Anunciava ainda a publicar-se Serões e Lazeres,
notas e impressões da vida mineira; Poesia, edição definitiva, e
ainda um volume de Contos. Teriam aparecido essas obras? Não
sabemos. Mas na Biografia Crítica das Letras Mineiras de Wal-
tensir Dutra e Fausto Cunha somos informados de que Artur
Lobo, como poeta, além de Ritmos e Rimas, publicou Evange-
lhos, em 1893, e Kermesses, em 1896.
A edição de O Outro é de 1901, ano em que o autor veio
a falecer. Sempre prestadio, Eduardo Frieiro enviou-me mais um
In Memoriam de Artur Lobo: apenas dezessete páginas, con-

259
tendo cerca de oito artigos sobre o escritor, piedosa homenagem
dos seus amigos. Esse In Memoriam, embora publicado no co-
meço do século, foi feito bem à maneira dos necrológios român-
ticos: quase nenhuma informação biográfica e crítica: apenas
palavras de exaltação ao morto e de mágoa pela perda. Epicédios
mais ou menos semelhantes aos dos discursos dos membros do
Ensaio Filosófico em São Paulo, quando morreu Álvares de
Azevedo. Parece incrível que em 1901 os amigos de um escritor
ainda se reunissem para homenagear-lhe a memória neste estilo:
“Pátria, por que lhe choras a morte? Cessem as tuas lágrimas
sobre o seu túmulo. És a mãe e deves te lembrar daquela Mãe
que, como tu, em longas horas de dor e de infortúnio, chorava,
com lágrimas de fogo a queimar-lhe as pálpebras, a perda do
filho estremecido”. Assina isto Prado Lopes, nome que a História
não guardou. Mas o próprio Aurélio Pires, o Mestre Aurélio a
quem Afonso Arinos admirava, não se afasta muito desse dia-
pasão, quando se refere a Artur Lobo: “Em tua passagem tão
rápida por entre as duas trevas que fecham o ciclo da vida,
segundo a ficção poética, foi tão intenso o brilho que desfe-
riste, oh inditoso obreiro da seara das letras; teve ele cintilações
tão vivazes, de um fulgor tão puro que perdurará através do
tempo e do espaço, mesmo depois de te haveres afundado nessa
temerosa escuridão simbólica”.
Assim, esses homens que conheceram Artur Lobo com
maior ou menor intimidade não se lembraram de deixar um
depoimento sobre o homem, sobre a carreira literária do escritor
e as condições em que veio a produzir essas obras que — como
não imaginariam na época — estavam destinadas ao esqueci-
mento. Não ficamos sabendo nem mesmo onde Artur Lobo
nasceu. Apenas somos informados de que vindo do norte do
estado para Ouro Preto ali se matriculou na Escola de Minas,
abandonando logo em seguida os estudos para dedicar-se ao Jor-
nalismo. Fundou em Sabará O Contemporâneo, folha que fez
época na imprensa mineira. Eis como J. Camelo define Artur

260
Lobo jornalista: “O jornal, instrumento nobre e forte, que hoje
não raro vemos de ambição e covardias, Artur Lobo fê-lo vigo-
roso e sadio, brandiu-o como clava e, vênia à imagem, manejou-o
tal graciosa donzela, como um leque leve e aristocrático”.
Quase nada se podendo saber sobre o homem, voltemos os
olhos para a obra que é, aliás, o que mais interessa no caso.
Como já dissemos, só pudemos conhecer até hoje um livro de
Artur Lobo: O Outro. Waltensir Dutra e Fausto Cunha, na Bio-
grafia Crítica, dizem: “Rosais, seu romance mais conhecido, é
apenas uma curiosidade de biblioteca; a intriga é desinteressante
e a linguagem se reveste dos piores cacoetes da época” . Quanto
às novelas “O Outro” e “No Cárcere”, acham que elas negam a
feição dostoiewskiana e pré-d’annunziana que lhes emprestou
Grieco (não indicando, porém, onde fez Agripino Grieco tal
referência), vendo antes uma influência de Poe e Maupassant.
Também Frieiro, na carta que me escreveu, há dez anos, acom-
panhando o livro fez referências a Le Horia.
Ora, eu acho que essas duas novelas, principalmente “ O
Ouro”, não devem ficar esquecidas, pois não possuem apenas
valor histórico. São dois estudos psicológicos de boa qualidade
literária, dignos de figurar entre as melhores produções da nossa
novelística. Não tenho, entretanto, elementos para reclamar uma
valorização crítica de toda a obra do ficcionista. Waltensir Dutra
e Fausto Cunha, considerando Rosais desprezível, não fazem ne-
nhuma alusão a Um Escândalo, no qual vê J. Camelo “um obser-
vador que soube magistralmente firmar em páginas de estilo
cenas e tipos curiosos da vida brasileira” — opinião, na reali-
dade, sem nenhum sentido crítico. .
Mas tudo indica que Rosais e Um Escândalo são dois roman-
ces de certo cunho naturalista. f á e m O Outro, Artur Lobo tomou
uma direção nova, embora ainda sob a influência do Naturalis-
mo. Procuraremos resumir a novela, o que, aliás, não é nada
fácil, porque a ação se desenrola num plano quase todo interior.

261
Escrita em primeira pessoa, nela temos a confissão angustiosa
e febril de Sérgio. Casando-se, vem ele viver com a esposa Laura
na antiga casa paterna, numa cidade de província que presumi-
mos em Minas. Sucedem-se então as horas de inquietude, naque-
las salas, que parecem povoadas de mistérios e fantasmas, crian-
do uma atmosfera de alucinação para o jovem par. Não tardará
o narrador a experimentar a sensação de forças estranhas e des-
conhecidas a eclodirem dentro do seu ser, como a consciência
trágica de um “segundo eu”, um “hóspede maligno e odioso”
contra o qual se põe a lutar desesperadamente. É o outro a
despertar-lhe tentações diabólicas e a empurrá-lo para as fron-
teiras do absurdo e da insânia. São páginas magníficas essas em
que vamos assistindo ao debate interior do protagonista com
o outro, ao lado da esposa que parece não compreender nada
do que se passa, apegando-se debalde ao marido, enquanto nele
pressentimos, ansiosos, a vítima reclamada pelo “hóspede malig-
no”. Admite o narrador na intimidade do casal um parente, o
jovem Henrique, violinista inspirado, cuja “figura participa da
delicadeza feminina”, evocando o “tipo ideal do menestrel” .
Desse artista, que possui qualquer coisa de angélico, faz o outro
um instrumento para levar o narrador ao crime. Dominado pela
suspeita de que Laura o traía, Sérgio acaba apunhalando-o numa
cena terrífica, que não perde a autenticidade, apesar do caráter
meio grandguignolesco.
Tratando-se de uma novela de “atmosfera”, este resumo
não chega a dar ao leitor senão uma idéia muito imperfeita do
enredo. Mas o que importa no caso é o seguinte: como classi-
ficar “O Outro”? Novela psicológica? Sim. Mas não da psicolo-
gia à Bourget, que predominava na época, e muito menos da psi-
cologia heterodoxa de Dostoiewski. O ilogismo dos personagens
de Dostoiewski é inconsciente; o dos de Sérgio é consciente, pois
ele toma conhecimento desse outro diferente que se agita dentro
do seu ser e luta em vão para dominá-lo. As influências de Poe
e Maupassant me parecem superficiais e talvez elas só existam

262
na idéia da dupla personalidade que possivelmente teria inspi-
rado o autor.
Assim, quero ver em O Outro uma pesquisa psicológica
semelhante à que iria caracterizar mais tarde a obra de dois
romancistas igualmente mineiros, Cornélio Pena e Lúcio Car-
doso, ambos sob o signo de Julien Green. O ritmo do estilo,
o vocabulário, o jogo de luz e sombra, a constante do mistério,
tudo isso parece fazer de Artur Lobo, nessa novela, um pre-
cursor de Cornélio Pena e Lúcio Cardoso. Lamento não poder
citar várias passagens para justificar minha opinião. Mas veja-
mos esta, por exemplo: “ Laura não podia dissimular os receios
e a tristeza que lhe infundia a enorme vivenda, com os seus
salões desertos, seus tetos escuros, suas espessas muralhas e o
aspecto soturno e monástico das antigas construções coloniais.
Desde que se penetrava o vestíbulo sentia-se uma atmosfera
glacial de claustro e um bafio religioso de templo, que persistia
ali mesmo depois dos últimos reparos. Um lampião pendente do
teto derramava uma claridade mortiça que se extinguia nos
corredores povoados de sombras”. “À noite, a casa enchia-se
de mistério e povoava-se de fantasmas; parecia segregada do
resto do mundo. E como os longos muros a isolassem dos quar-
teirões vizinhos, uma imensa solidão se fez em torno de nós,
e nenhum rumor a não ser o dos nossos passos e das nossas
vozes perturbava o seu silêncio”.
Esse trecho, embora curto, talvez baste para o leitor sentir
a diferença que vai de Artur Lobo para Poe e Maupassant.
Temos a impressão de que nesta novela, possivelmente a última
escrita pelo ficcionista mineiro, ele buscava um novo caminho,
conservando, não obstante, certos vínculos naturalistas. Pois
esse despertar do outro, do ser maligno, da fera que Sérgio
tinha dentro de si, não seria, no fundo, uma idéia naturalista,
não partiría daquele princípio tão caro a Zola de que somos
dominados pelo instinto, que irrompe brutalmente como uma
força ignorada? Falei no vocabulário de O Outro: mistérios,

263
fantasmas. . . Mas na última página, lá encontramos o indicio
do jargão científico: “Hoje, longe de todas as ambições huma-
nas e às portas da morte, eü reconstruo esta dolorosa historia
não para invocar a piedade dos homens que já não me apro-
veita e consola, mas para dar-lhes o espetáculo da miséria e
ensiná-los a serem compassivos para com todas as dolorosas
psiquiatrías, que acompanham como um legado de dores a
grande, a eterna, a imensa expiação da vida”. O termo psiquia-
trías, com o seu odeur de clinique, para usarmos da expressão
de Gide, mostra que Artur Lobo não se afastara inteiramente
do Naturalismo, ao conceber O Outro.

No Arquivo de Coelho Neto

Durante mais de uma semana dediquei algumas horas do


dia ao exame minucioso da correspondência passiva de Coelho
Neto, que se encontra na Biblioteca Nacional. Esse vasto acervo
de cartas, cartões e bilhetes postais, orçado em cerca de qui-
nhentos documentos, embora ali depositado há mais de vinte
anos, mantinha-se praticamente inédito, inacessível à consulta
pública, por não se achar de todo catalogado. E só agora, por
gentileza do diretor da Biblioteca, Celso Cunha, e do atual
chefe da Seção de Manuscritos, Darcy Damasceno, que iniciou
a catalogação, me foi dada a oportunidade de apreciar essa parte
tão preciosa do arquivo do escritor, cujo processo póstumo se
vem fazendo últimamente, em termos mais emocionais do que
judicativos.
É sempre apaixonante para o pesquisador tocar em cartas
amarelecidas pelo tempo, principalmente quando elas ainda não
foram franqueadas ao público. Bem sei da rapidez com que
passaram as horas, enquanto lá estive, na Seção de Manuscritos,
sempre na perspectiva de uma descoberta, de uma revelação
imprevista e surpreendente. Mas as circunstâncias não me per-
mitiram deter-me em todas as peças dessa correspondência.
Procurei identificar as que me pareceram mais interessantes e
delas retirar o que pudesse servir de contribuição para a bio-
grafia de algumas figuras das letras brasileiras e estrangeiras
(e do próprio Coelho Neto, naturalmente) e para o conheci-
mento da nossa vida literária. É o substrato dessa laboriosa
recolta que venho apresentar aos leitores, dando-lhe um caráter
tanto quanto possível orgânico, quer dizer, examinando o teor
das cartas à luz das pessoas que as escreveram e da situação
em que o fizeram. Tive de omitir, naturalmente, alguns detalhes
muito íntimos, capazes de atingir a vida particular dos corres-
pondentes. Assim, não vai aqui nenhuma revelação sobre duas
cartas, bem dolorosas, de um filho de Euclides da Cunha. O
que vai, porém, já será o bastante para justificar o empenho
com que me entreguei a essa pesquisa, favorecido pela boa von-
tade do meu amigo e confrade Darcy Damasceno.

Olavo Bilac, a província e Paris


Os correspondentes de Coelho Neto que figuram nesse ar-
quivo são brasileiros e estrangeiros. Começaremos pelos brasi-
leiros. E por quem há de ser? Por um dos maiores amigos do
autor do Rei Negro: Olavo Bilac. Infelizmente são poucas as
cartas de Bilac, embora quase todas curiosas e uma mesmo,
como verão mais adiante, extraordinariamente interessante. A
primeira é de 1894, datada de Juiz de Fora. Depois do inci-
dente que houve em Ouro Preto, entre o poeta, ali foragido dos
esbirros de Floriano, e um velho fazendeiro, viu-se ele obrigado
a deixar a cidade para escapar à sanha dos estudantes, abri-
gando-se em Juiz de Fora.1 Esperávamos encontrar na carta

1 Eduardo Frieiro, O D iabo na L ivraria d o C ônego, Belo H orizonte,


Itatiaia, 1957.

265
algum detalhe novo sobre o fato. Mas Bilac se resume a falar
apenas do Luís (Luís Murat) e do Guimarães (Guimarães Pas-
sos), que se achavam exilados em Buenos Aires, em situação
precária. Mostra-se profundamente mortificado com isso. Diz
já ter escrito a um amigo, Manuel Ribeiro, pedindo-lhe para
socorrer com algum dinheiro aqueles pobres companheiros. No
mais comunica: “ Instalei-me hoje na minha casa. Os rapazes
aqui deram-lhe o nome de Retiro Espiritual. É mesmo um retiro,
apartado da vida e dos homens, com a convivência única dos
sapos que coaxam de minuto a minuto. Esta solidão vai bem
com a minha melancolia. Que vida!” 2 Era uma maneira de
consolar-se. Bilac nunca fora um homem inclinado à solidão.
E a frase interjectiva do logo após, “Que vida!”, bem mostra
como ele se encontrava desolado naquela cidade de província,
longe dos amigos, das rodas truculentas da Rua do Ouvidor.
Sabe-se que o poeta, naturalmente inconformado com essa es-
pécie de exílio, não esperou passar completamente o perigo para
regressar ao Rio. E quando desembarcou na Central do Brasil,
nesse mesmo ano de 1894, ansiando pela vida da metrópole,
foi preso.
A segunda carta, datada do Rio, é de 11 de dezembro de
1901. Coelho Neto já se achava residindo em Campinas, como
lente de literatura do ginásio local, cargo que conquistara por
concurso. Bilac alude a uma operação nos olhos a que tivera
de submeter-se, felizmente com êxito. Mas, quanto susto! A
perspectiva de ficar cego, “feio e cego”, aterrorizara-o. Agora,
exclamava aliviado: “Deus não me abandonou”. E pedindo que
transmita seu agradecimento a Mme. Neto escreve: “Vê como

2 Já tínham os escrito este trabalho, quando na nova edição de A


V ida de Paula N ey (Livraria M artins, São Paulo, 1958) encontram os a
reprodução dessa carta, que julgávam os inédita. Apenas com um a dife-
rença: no original que exam inam os, Bilac, referindo-se a G uim arães Pas-
sos, escreveu Guimarães; na reprodução feita no livro de Raim undo de
M eneses, lê-se Fortúnio, nom e com que o poeta figura com o um dos
personagens da C onquista, de Coelho N eto.

266
estou crente, é a segunda vez que escrevo nesta carta o nome
de Deus (agora é a 3.a); o medo é o pai da crença”. Termina
acrescentando: “Esta literatura anda sórdida. Veríssimo passou
a pontificar no Correio da Manhã e lá vai moendo o seu realejo
como o diabo é servido” .
Parece que Bilac não tinha nenhuma simpatia por Verís-
simo, que lhe devia pagar na mesma moeda. As rodas boêmias
que o poeta ainda freqüentava nessa época eram vistas com
absoluto desdém pelo autor dos Estudos de Literatura Brasileira.
Aliás, criticando severamente A Conquista de Coelho Neto,
Veríssimo a considerou um livro antipático, por encerrar de
certa forma uma apologia da boêmia.3
A 1 de junho de 1902, considera o fato de não haver es-
crito há muito tempo ao querido e velho amigo. A causa desse
silêncio é a preguiça. Odeia a epistolografia. Agora, escreve-lhe
enviando-lhe o seu novo livro. Estranha por sua vez o retrai-
mento de Coelho Neto: . . e tu enlapado nessa medonha e
soturna cidade, trancas-te a sete chaves num silêncio amuado!
Que quer dizer isso? Que tens tu contra mim? Desembucha,
explica-te, explica-te, esvazia o saco da alma, põe para fora as
razões da tua zanga. Quererá isto dizer que já te naturalizaste
campineiro de corpo e alma e que te dedicas ao amor do café
e ao ódio da sociabilidade?”
A 22 de agosto de 1903 regozija-se com o êxito da ope-
ração de Coelho Neto, em São Paulo — agora o amigo é que
fora operado. Lamenta não ter podido ir vê-lo por se achar
sobrecarregado de trabalho no Rio, e sofrendo de uma nevralgia
reumática que não o deixa há dois meses. O romancista perma-
neceu em Campinas até 1904. Ali foi visitá-lo, certa vez, Olavo
Bilac, apesar do seu horror à província — visita de que Coelho
Neto nos deu um relato melancólico na crônica “ O Passado”
do livro A Bico de Pena, publicado em 1904. “Depois de um

3 R evista Brasileira, tom o X , 1899.


ano bem longo de apartamento (o encontro devia ter-se dado
em 1902) estreitam-se num forte abraço. E começam a recordar:
“ ‘Mas tu estás o mesmo’. — ‘E tu?!. . . ’ Como mentíamos: eu
vira-lhe os cabelos brancos e ele também descobrira os meus.
Mentíamos ambos”. Bilac mostrava-se pessimista e amargo. Dizia
que se Deus lhe propusesse voltar à mocidade (e não possuía
ainda quarenta anos) com a condição de experimentar de novo
os sofrimentos que curtira responder-lhe-ia: “Muito obrigado,
Senhor”. Continuam o diálogo. Passam a dar um balanço na
situação de ambos. Bilac considera: “Somos dois entediados”.
Coelho Neto protesta. — “Tu não? E deixastes o Rio e vieste
procurar o silêncio de uma cidade do interior. Que é isso senão
indiferença? O teu prazer hoje é tranqüilo como convém. Tens
a esposa, as filhas, o aconchego seguro, pensas no amanhã —
és homem, enfim. E que eras tu? Um visionário que vivías
acumulando utopias e colhendo desenganos. Queres saber? Eu
não olho para o passado com saudade, senão com tristeza e
pena do que lá deixei, que foi muito, foi tudo, devo dizer”.
Acaba reconhecendo uma triste verdade: para recordar os
dias extintos não precisa da memória — tem os achaques.
Coelho Neto reclamando contra o pessimismo do amigo, con-
vida-o a dar um passeio. Saem, mas o dia estava triste e nu-
blado, tudo era de molde a concorrer para a melancolia que
lhes ia “encharcando a alma” e não tarda a cair uma neblina
fria, a fazê-los levantar a gola do casaco e se refugiar num
café. Bilac inquieta-se com a molhadela. Lembra-se do agua-
ceiro que apanharam num Carnaval, indo a pé do Rocio à Rua
do Riachuelo. Hoje os médicos nem querem que ele tome
sereno. Pedem um grogue. O poeta engole um suspiro e por
fim, não se contentando, conclui — “Estamos velhos, meu
amigo”. Coelho Neto não faz mais do que reconhecer a triste
verdade, “num aceno de descorçoado”.
A 11 de junho de 1904, Bilac escreve de Paris: “Espanta-
me o que dizes da tua nomeação. O caso estava tão firmemente

268
assentado! Três dias antes da minha partida o Rio Branco me
falava de ti com tamanho entusiasmo. Espero que os teus receios
sejam vãos e estas letras já te vão encontrar diplomata”. Quanto
a Paris, o entusiasmo do poeta é sempre o mesmo: “Paris irradia,
deslumbra, esplende, enlouquece, neste rutilante expirar da
Saison”. Apesar de tudo, não conseguiu a Ville Lumière liber-
rá-lo da dor-de-cabeça, essa satânica dor-de-cabeça que o per-
segue por toda parte. Anuncia uma excursão por várias cidades
da Itália e da Suíça, devendo estar de novo em Paris a 15 de
julho, de onde não arredará os pés até regressar ao seio dessa
“infecta e amada pátria”. “Ah! se eu pudesse viver numa per-
pétua viagem!. . . ” — exclama ele, desconsolado.
A 6 de agosto de 1904, naturalmente já tendo retornado
da excursão por aqueles países e novamente em Paris, mani-
festa o espanto que lhe causara a última carta de Coelho Neto.
Contava-o já nomeado, tal a força das promessas que havia e
tal a confiança inspirada pelas palavras do Domício e do Rio
Branco. “Não me espanta a birra de Rodrigues Alves — escreve
ele — , o que me espanta é a falta de energia do Rio Branco que
deveria quebrar lanças por ti” .
Segundo Paulo Coelho Neto 4 o escritor, em 1908, declinou
de um convite do Barão do Rio Branco, que quis fazê-lo entrar
na diplomacia. Mas o que se conclui dessas duas últimas cartas
de Bilac e de outras de Domício da Gama é que, em 1904, ele
se empenhou em obter um posto diplomático, certamente para
fugir à estreita vida que levava em Campinas, não conseguindo
o intento. Bilac procura consolá-lo, mostrando-lhe a necessidade
de vir para a metrópole de qualquer forma: “O que te digo é
que antes Roma do que Rio de Janeiro, mas também antes Rio
de Janeiro do que Campinas. Ao menos vivendo no Rio ficas
no teu meio; tu não nasceste para viver em aldeia”. “Trabalha
e espera”. “ Oh! A política — continua o poeta — eu quando

4 Paulo Coelho N eto, C oelho N e to , R io, Z élio V alverde, 1942.

269
escrevo esta palavra, vou logo correndo para o water-closet. .
Alude então à sua idade — “Quarenta anos!” — para fazer esta
confissão deliciosa, que poderá escandalizar certas pessoas:
“Aos vinte e cinco anos, quando pensava que tinha de sair de
Paris chorava de raiva. E hoje não posso passar aqui quatro
meses sem ter saudade da porcaria, do mijo, da estupidez, do
mexerico, da safadice da pátria. O patriotismo é como o reuma-
tismo, é um achaque da velhice”. (Os grifos são nossos.) Essa
maneira de Bilac referir-se à pátria não deve, entretanto, sur-
preender ninguém. Nas suas cartas a Max Fleiuss, que se en-
contram no arquivo da Academia Brasileira de Letras, suas ex-
pressões são mais ou menos as mesmas. Numa delas, que cito
no meu livro A Vida Literária no Brasil — 1900, considera ele
o Brasil uma “Cafraria Portuguesa”, conhecido por país civili-
zado graças à generosidade dos povos. Em outras, faz perguntas
assim: “ Como vai essa terra ignóbil?” Aludo ao fato de o poeta
ter conheciço Eça de Queirós na casa de Eduardo Prado e dar-
nos a impressão de querer imitá-lo, na maneira pela qual o
romancista costumava referir-se a Portugal. É possível que tenha
havido alguma influência, devendo-se levar em conta ainda o
fato de que na época era um tanto chic para os brasileiros des-
denharem do Brasil. De qualquer forma, somos levados a supor
que as expressões de desprezo de Bilac pela pátria vinham
sobretudo (como, aliás, acontecia com Eça) do seu horror à
politicagem aqui predominante. Numa das páginas do Diário
Secreto (l.° volume), Humberto de Campos recorda uma decla-
ração chocante que o poeta lhe fez na presença de vários ami-
gos, justamente nas vésperas da sua famosa campanha cívica:
— “Sabe? Cada vez eu me convenço mais de que a única salva-
ção do Brasil está numa guerra em que sejamos batidos, venci-
dos, derrotados”. “ Será o único meio de destruir essa máquina
política que aí está, e que é toda a desgraça do Brasil. Uma guer-
ra de que saíssemos vitoriosos seria para nós infelicidade ainda
maior, porque consolidaria ainda mais as posições que hoje

270
desfruta essa camarilha que explora o país. E pelo que eu vejo,
só o estrangeiro, intervindo aqui com as suas esporas de ven-
cedor, poderá desmontar essa oligarquia nacional, permitindo
o aparecimento de figuras novas, saídas do povo e que com-
preendam, por terem sofrido com o povo, as nossas necessida-
des”. De maneira idêntica pensava Eça de Queirós com relação
a Portugal, quando num romance, que não chegou a publicar,
imaginou o soerguimento do país por meio da invasão e da
ocupação espanhola. Também na França, antes da última guerra
mundial, havia quem adotasse essa “técnica patriótica”, se assim
me posso exprimir, achando que só a derrota poderia determinar
um movimento de reação capaz de sanear o país da corrupção
política. No seu último livro La Drôle de Guerre,5 Roland
Dorgelès mostra como foram nefastas as heranças da ocupação,
não tendo a França mais voltado a ser o que era antes da
guerra, apesar de todos os males de que sofria. O remédio
preconizado por Eça e Bilac era muito drástico — desses que
podem curar a doença, aniquilando, por muito tempo, as ener-
gias e as defesas do organismo doente.
Em todo caso, não deixa de ser estranho ver o homem
cuja campanha patriótica empolgaria o Brasil de norte a sul,
entre 1915 e 1917, considerar, numa carta a um amigo em
1904, o patriotismo como o reumatismo, um achaque da velhice.
Eça de Queirós teria pensado o mesmo, quando ofereceu a Por-
tugal uma contrapartida de Os Maias, n’A Ilustre Casa de Ra-
mires e em A Cidade e as Serras?
A sétima carta de Bilac é datada de Milão (9-3-909). Refe-
re-se à remessa de uma edição Calmann Levy de vinte e cinco
volumes das obras completas de Balzac, encadernadas, pedindo
a Coelho Neto que as conserve como lembrança de uma velha
amizade. Descreve em algumas linhas a sua viagem pela Itália
em pleno inverno, os Apeninos todos cobertos de neve. “ . ..

5 Roland D orgelès, La D rô le d e G uerre, Paris, A lbin M ichel, 1957.

271
passei a noite a imaginar coisas fantásticas” — diz ele — “ O
que é espantoso é que o meu reumatismo tão cheio de ‘partes’,
quando o fustigava o frio do Rio de Janeiro, agora nem dá sinal
de vida: queria um castigo o ladrão”.
As cartas de Bilac a Coelho Neto deviam contar-se em
grande número. Basta dizer que o poeta foi cerca de dezessete
ou dezoito vezes à Europa e de todas elas não podia deixar de
escrever, com freqüência, ao mais antigo e ao mais querido dos
amigos. No entanto, no arquivo de Coelho Neto só restaram
essas, em que pudemos respigar pelo menos duas ou três nota-
ções bem curiosas.

Euclides da Cunha, a “ literatura” de Tomás Lopes e os


pontos de vista de Dantas Barreto
De Euclides da Cunha existem apenas duas cartas. O ele-
mento informativo da primeira é prejudicado pela ausência de
data. Euclides escreve: “Um bravo! pela tua delicadeza moral.
Seria cruel se eu recebesse à noite aquele telegrama. Mas não
seguirei o teu conselho. O revés desafoga-me: merecido castigo
de haver tentado deslocar um concorrente oficialmente mais
amparado pelo Direito. A linha reta diante das vacilações do
governo é esta: renunciar. É o que vou fazer já por telegrama.
E sinto-me verdadeiramente feliz, porque nesta longa fox-hunting
que principia no voto do Acioli e termina nas tendências sim-
páticas de alguns poderosos, em tudo isto descobri uma alma
honesta e perfeitamente clara — a tua”.
A que fato se refere Euclides da Cunha? Ao concurso para
a cadeira de Lógica no Pedro II, em que teve como concorrente
Farias Brito? Não parece. Qual teria sido pois essa pretensão,
em que ele foi malsucedido? Eis um problema para os bió-
grafos.
A outra carta, embora com data — “ Lorena, 10-9-1903” —
quase nada oferece de interessante. Apenas nos mostra como

272
Euclides da Cunha, geralmente tão direto e simples na corres-
pondência com os amigos, gostava de literatizar, às vezes, com
Coelho Neto. A carta não passa de uma pequena dissertação,
mais ou menos literária, de que damos exemplo aqui neste
trecho: “O vento sul que aí está destroncando as roseiras de
Campinas, sacode neste momento as palmeiras imperiais da
minha melancólica Lorena. . . e é uma lufada apenas, um frag-
mento do sudoeste bravio que a estas horas se estira e tumultua
precipitando nas planuras dos pampas e dos chacos! O diabo
é que ele também me bate os nervos, e aqui estou doente, a
vibrar, a vibrar à toa, como aquelas harpas da gongórica pero-
ração de Mont’Alverne”. Aqui está um pouco do Euclides
romântico e literato. Só não concordamos com o adjetivo gon-
górico aplicado à conhecida peroração de Mont’Alverne: “ É
tarde! É muito tarde!” Nela não encontramos nenhum gongo-
rismo e talvez Euclides a julgasse assim por identificá-la com
a oratória do Vieira.
Essencialmente literárias, porém, são as cartas de Tomás
Lopes — escritor diplomata, que teve certa voga no “ 1900” .
Aqui se torna evidente o desejo de fazer frases, de escrever
como quem espera ser lido pela posteridade. Agradece muito a
Coelho Neto a atenção que lhe dispensa, tece louvores ao des-
tinatário e queixa-se por vezes da maneira pela qual o tem
tratado a crítica no Brasil. A 29 de agosto de 1911, escrevendo
de Bruxelas, lamenta que a terrível sociedade de elogio mútuo,
no Rio, houvesse matado o seu livro Paisagens de Espanha,
por meio de uma cobarde campanha de silêncio, a exemplo do
que já fizera com Coração Sensível. O livro passara pel’“0 Binó-
culo” como a brochura de um desocupado, um leve folheto de
caixeiro viajante. Em outra carta, a 18 de setembro de 1911,
volta, em tom de profunda mágoa, ao assunto: “ ‘O Binóculo’
matou-me as Paisagens, descompondo a edição”. Este detalhe
merece um ligeiro comentário: “O Binóculo” era, como sabem,
uma secção mundana, iniciada por Figueiredo Pimentel, na

273
Gazeta de Notícias, no começo do século, e depois continuada
por Paulo de Gardênia (Benedito Costa). Uma secção em que
se tratava de recepções, bailes, festas, o vestido de Mme. X,
o chapéu de Mlle. Y, mas na qual Figueiredo Pimentel, que
era um escritor, embora secundário, inseria freqüentemente alu-
sões a escritores e aos livros recém-publicados. Ora, pela queixa
de Tomás Lopes, vê-se que essas referências d’ “ O Binóculo” ti-
nham talvez mais importância para o êxito de um livro do que
o artigo de um crítico. Havería quem se preocupasse menos com
um comentário de José Veríssimo do que com uma nota d’ “ O
Binóculo”. Um artigo desfavorável de Veríssimo não chegaria
possivelmente a matar um livro. Mas a lamentação de Tomás
Lopes é significativa: “ ‘O Binóculo’ matou-me as Paisagens”.
Será que mudamos muito? Em todo caso, acredito que uma
nota de Ibraim Sued ou de Jacinto de Tormes, apesar do incrível
prestígio adquirido pela crônica mundana últimamente, não tem
força para matar nenhum livro em nossos dias.
Tomás Lopes formou no rol dos escritores brasileiros que
mais deliraram por Paris no “ 1900”, escritores que não recea-
vam nem mesmo o ridículo nos exageros dessa admiração. A
16 de novembro de 1911, da capital francesa, escrevia, num
transe quase histérico, a Coelho Neto: “ . . . eu amo Paris como
um parisiense, amo essa cidade maravilhosa com paixão, com
respeito, com amor divino e amor profano”. Tão derramada
paixão, aliás, veio ele a expandir no livro Corpo e Alma de
Paris.
De Aluísio Azevedo existe apenas uma carta, o que não
será muito de estranhar, pois o autor de O Cortiço, depois que
entrou para a carreira consular e caiu na esterilidade literária,
tornou-se parco também na correspondência com os amigos. A
30 de julho de 1912 acusa ele o recebimento de uma carta de
Coelho Neto, pedindo voto para Austregésilo, mas diz que,
pouco depois, lhe chegou outra carta, esta de Paulo Barreto,
fazendo idêntico pedido para Lauro Müller e dizendo que estava

274
a par da missiva anterior e que Coelho Neto também votaria
“no Müller”. “Eu que ia votar no teu ilustre recomendado —
declara Aluísio — apenas para não te contrariar” e “por outro
lado estou convencido de que o Müller é o único candidato que
está a calhar para aquela difícil vaga, não hesitei um momento
em render-lhe um pequeno preito ao seu grande talento e ao
seu prestígio de benfeitor de nossa terra”. Escrevera também
a Mário de Alencar, pedindo-lhe para levantar essa privilegiada
candidatura que devia por si só “fazer enconchar-se toda e
qualquer outra que pretendesse preencher a vaga de Rio Bran-
co”. “Que fiasco faremos nós — continuava ele — se deixarmos
escapar o Lauro Müller! Será o caso de mandar depois fazer
um letreiro como o que a Academia Francesa pôs por baixo do
busto de Molière. Mas creio que não será preciso nenhum le-
treiro, porque ele está aí, está dentro, e tu, sem dúvida, o em-
purrarás nesse sentido” .
Não se compreende muito bem essa atitude de Coelho Neto
pedindo o voto para Austregésilo, quando se sabe que a vaga
de Rio Branco foi disputada apenas por Lauro Müller e Ramiz
Galvão. Naturalmente se esboçara também a candidatura de
Austregésilo com o apoio de Coelho Neto, que, ante a desistên-
cia do candidato, se decidira a votar em Lauro Müller. Mas o
que não pode deixar de merecer um pequeno reparo é o entu-
siasmo de Aluísio Azevedo pelo “Müller” então ocupando a
Pasta do Exterior de que o romancista, como cônsul, dependia.
Lauro Müller era evidentemente um homem de grande talento,
de muito espírito, mas nunca foi um escritor, e sua eleição para
a Academia de Letras, em detrimento de um puro homem de
letras como Ramiz Galvão, não podia passar de uma manobra
política, contra a qual se insurgiram, entre outros, Rui Barbosa,
Salvador de Mendonça e Vicente de Carvalho, tendo à frente
José Veríssimo. Dizer Aluísio Azevedo que Lauro Müller fa-
ria falta à Academia Brasileira, como Molière fez falta à Fran-
cesa, era sem dúvida exagero. . .

275
De Medeiros e Albuquerque destacamos também somente
uma carta, esta mesmo de pouco interesse. Escrevendo de Paris
(24-6-912), depois de tratar de assuntos concernentes à vida in-
terna da Academia, diz ele que vai mandar a Coelho Neto, por
intermédio de uma irmã, que parte para o Brasil, um livro de
Paul Claudel. “Esse Paul Claudel é aqui considerado pelos
‘novos’ um gênio. Não lhe descobri a genialidade. Em todo caso
é um escritor curioso”. Compreende-se facilmente que um espí-
rito como Medeiros e Albuquerque, sem a menor afinidade com
o autor de Partage de Midi, não visse neste mais do que “um
escritor curioso”. Aliás, daí a cinco anos, em plena guerra,
quando Claudel chegou ao Brasil, como chefe da representação
diplomática da França, nos jornais, nas notícias que pudemos
assinalar, quase não se fazia menção ao fato de o novo embai-
xador ser uma das grandes figuras da literatura francesa contem-
porânea. E parece que Claudel, durante o tempo em que per-
maneceu em nosso país, teve raros contactos com os escritores
brasileiros.
Bem interessantes são, porém, as cartas de Dantas Barreto,
pelo que revelam do dessous da vida literária. Afrânio Peixoto,
no prefácio do livro A Academia Brasileira de Letras, de Fernão
Neves, diz que Dantas Barreto, Ministro da Guerra, foi eleito
por haver prometido a Coelho Neto dar a Monroe para sede
da “ilustre companhia”, o que forçou a abstenção dos outros
candidatos. Vitorioso, não cumpriu a palavra. Nas diversas
cartas que examinamos procuramos debalde alguma alusão ou
subentendido a esse respeito. A 17 de novembro de 1909,
Dantas Barreto comunica haver procurado Rio Branco, levando
um cartão de Coelho Neto. “Chama o Barão de “príncipe” e de
“o nosso Metternich”. Acha que tem havido muita intriga, muito
ressentimento e não sabe como vai a sua situação pelo exterior.
Confessa não contar com o voto de Rio Branco. Aguarda, em
todo caso, a resposta de Coelho Neto para apresentar a candi-
datura. Daí a três dias outra carta, referindo-se às démarches
feitas junto a alguns acadêmicos para a sua candidatura. “Se o
Lafayette reparar que escrevi-lhe o nome sem y decerto votará
contra mim” — considera desconsolado. E mais hostil seria,
talvez, a reação de Lafayette — acrescentaremos nós — se lhe
descobrisse um “que escrevi-lhe”, como o que vai na citada
frase. Termina, manifestando a idéia de renunciar à candidatura.
A 23 de janeiro de 1910, diz já haver tomado essa resolução por
conselho de Luís Murat, que lhe mostrara a impossibilidade de
concorrer com Paulo Barreto, dizendo que devia reservar-se para
a vaga de Nabuco.
Estamos agora a 30 de agosto de 1910. A Campanha Civi-
lista dividiu o Brasil de norte a sul, acirrando rivalidades entre
civis e militares. Dantas Barreto articula sua candidatura à vaga
de Nabuco, mas se queixa de que o civilismo está em campo
contra ele. “Este fato deixa-me a triste impressão de uma deca-
dência invencível em intelectuais que entretanto doutrinam em
nosso país pela imprensa e pelo livro. Levar a uma instituição
de letras, a um agrupamento de homens que devem ter em pri-
meiro lugar o sentimento do belo, as paixões pessoais que tumul-
tuam nas lutas políticas do país é depreciar essa instituição até
a nulidade, até o indiferentismo das outras classes da sociedade”.
Aqui seria a ocasião de encontrarmos qualquer subenten-
dido ao caso do Monroe. Mas há coisas que a gente diz e não
escreve. Daí a um mês realizada a eleição, Dantas Barreto foi
eleito por dezoito votos, como candidato único, em virtude da
renúncia de Alfredo de Carvalho, grande historiador pernam-
bucano, e Regueira da Costa. Houve oito votos em branco.
A 30 de junho de 1912, Dantas Barreto escreve de Recife,
onde exercia o cargo de Governador do Estado, tendo desban-
cado a oligarquia Rosa e Silva: “Achas que o teu amigo deve
substituir o Rio Branco, na Academia de Letras? Não conheço
coisa alguma do teu candidato a não ser sua qualidade de mé-
dico e de professor”.
Por aí se verifica que Coelho Neto procurou realmente

277
articular a candidatura de Austregésilo, escrevendo a Aluísio
Azevedo, Dantas Barreto e, naturalmente, a outros confrades.
E Dantas Barreto, não parecendo muito inclinado a votar em
quem não era a seus olhos mais do que “médico e professor”,
sugere a candidatura de Nilo Peçanha, que acabava de se mos-
trar “um escritor empolgante, fino e cultivado”. Muitos leitores
hão de ficar surpreendidos com essa opinião. Nunca lhes constou
que Nilo Peçanha acrescentasse um dia aos seus atributos de
político o de escritor. É que ele, precisamente nessa ocasião, tinha
publicado um livro, Impressões da Europa, tipo da subliteratura
de viagem, sem nenhum mérito particular, mas que por motivos
fáceis de compreender encontrara acolhimento muito favorável
na imprensa. Dantas Barreto, que pouco entendia de coisas lite-
rárias, já viu no caso a revelação de um “escritor empolgante”.
Chegamos agora à carta mais expressiva do autor de Cons-
pirações, datada de Recife, 22 de junho de 1914. Diz ele que
a última missiva de Coelho Neto lhe trouxe dois sentimentos
opostos, alegria e tristeza. A tristeza derivada do seguinte:
“Para encarecer a excelência de Goulart fazes acreditar que
este seria o preferido dos que me guerreavam se o jovem escri-
tor não se esquivasse nobremente da competência a que o indu-
ziram. Conduis daí que tenho a obrigação de dar-lhe o voto”.
Dantas Barreto mostra-se magoado com os motivos em que o
amigo fundava essa imposição. Dizendo estar convencido da
insignificância de sua obra literária, alegava: “Mas não me
devias trazer à lembrança essa verdade com que os meus inimi-
gos pensavam me deprimir. Esse seu modo de ver no caso
não justifica o voto que me pedes: quando muito significa a
superioridade do jovem escritor, cuja obra eu não conheço, e o
favor que me fizeram, dando-me entrada naquela importante
instituição”.
O interessante é que, depois do seu “mas isto pode abor-
recer-te e portanto tomemos outro caminho”, Dantas Barreto
se põe a alertar Coelho Neto sobre a necessidade de a Academia

278
agir com maior rigor na escolha dos seus candidatos. “Sele-
cionar os homens, que em dado tempo, ou que vêm de épocas
distantes, com uma bagagem literária capaz de impressionar
um meio inteligente, eis o nosso dever”. Até parece que Dantas
Barreto estava a fazer ironia consigo mesmo. Pois não reconhe-
cera, pouco antes, a insignificância da sua obra literária? E
agora passava a reclamar de Coelho Neto um critério pelo qual
ele, o autor de Conspirações, jamais entraria na Academia? Não
deixa de ser engraçado.

Osório Duque-Estrada e Patrocínio Filho pedem favores


No seu Diário Secreto (l.° volume), Humberto de Campos
refere-se a uma visita a Coelho Neto (7-7-917), em que vindo
à baila o nome de Osório Duque-Estrada, Neto exclama: — “Que
homem repugnante”. E como a palestra continue sobre o espí-
rito mercantil desse membro da Academia, o autor do Sertão
diz: — “ Queres ver? Há tempos eu tive convite para ir a
Campos fazer uma conferência. Como não conviesse andar fora
de casa, a dar incômodos, pretextei uma doença para não ir.
Pois bem, isso foi o bastante para que Osório me fizesse uma
carta, comprometendo-se a ‘rachar’ (textual) o produto da ex-
pedição literária. É ignóbil não é?”
Humberto de Campos acrescenta que Neto já lhe havia
mostrado “não só essa carta, como vinte ou trinta outras, em que
Osório Duque-Estrada aparece como indivíduo sem compostura
e que não se peja de deixar documento escrito do mercanti-
lismo de suas letras”.
Ora, a carta, a propósito da conferência em Campos, nós
a encontramos no arquivo, com data de 28-6-908, e aqui a
reproduzimos:
“ Ouço dizer que não estás disposto a ir a Campos realizar
a conferência que lá se espera da tua palavra de mestre. Se
assim é, e se aquele bom povo tem de ficar privado do supremo

279
regalo espiritual de ouvir-te, proponho-te uma combinação. Vou
eu e racho fraternalmente contigo o produto da conferência.
Sou lá estimado, ofereceram-me festas e banquetes; é possível
que não recusem uma proposta nesse sentido embora saiam
bastante roubados na troca”.
As demais cartas de Osório não contêm testemunhos do
“mercantilismo das suas letras”, e nem são em tão grande nú-
mero como alude Humberto de Campos; o que quase todas
demonstram é a freqüência com que o temido crítico recorria
aos favores de Coelho Neto, solicitando-lhe a intervenção em
casos que nem sempre seriam, talvez, muito do agrado deste
último. A 10 de abril de 1909, por exemplo, pede a Coelho
Neto pára socorrê-lo numa pretensão junto ao Lira. Numa carta
sem data agradece os bons ofícios do amigo em prol de sua
nomeação para o Ginásio do Espírito Santo. Em outra carta
sem data, novo agradecimento: acabava de obter a nomeação
desejada para dois colégios equiparados ao Ginásio Nacional e
Coelho Neto muito teria trabalhado nesse sentido. Agora, num
cartão sem data, é ele que se excusa dos agradecimentos de
Coelho Neto. Confessa que lhe falta por completo o feitio
de engrossador: “Pouco prático na vida, sou animal de queixo
duro e só digo e escrevo o que penso”.
Em nova carta, ainda sem data, pede o voto de Coelho
Neto, que considera decisivo. Trata-se evidentemente da sua
candidatura à Academia Brasileira na vaga de Sílvio Romero.
A 13 de novembro de 1915, sobre o mesmo assunto, mostra-se
cheio de inquietações. Diz ter ouvido de Nazaré Meneses, que
lhe autorizou não guardar reserva sobre o caso, a informação de
que, “amanhã ou depois”, um jornal publicaria uma reportagem
sobre o próximo pleito, na qual revelaria ter ouvido de Almá-
quio Dinís o seguinte: — “ O único trabalho que me falta fazer
é ir com o Coelho Neto à casa de alguns eleitores do Osório
para impedir que eles compareçam no dia da eleição”. “Tão
inverossímil e estranha me pareceu a notícia — diz o missivista

280
— que não hesitei um momento em pô-la de quarentena, ou
melhor, em julgá-la falsissima”.
A eleição realizou-se daí a doze dias, sendo Osório eleito
por catorze votos contra seis dados a Farias Brito, e sete a
Almáquio Dinís, que não conseguiu, naturalmente, a cumplici-
dade de Coelho Neto para realizar a manobra perigosa a que se
refere a carta. E tanto Coelho Neto, embora amigo de Almáquio,
se manteve fiel a Osório que foi o designado para recebê-lo
na Academia.
A recepção só se realizou daí a um ano, a 25 de outubro
de 1916. Enquanto Coelho Neto escrevia o discurso, Osório
lembrava-lhe a conveniência de um simples período, em que
salientasse não ser o novo imortal um vadio nem um desconhe-
cido no meio intelectual do país, pois já tinha treze volumes
publicados e mais três em preparo, além do que possuía esparso
em jornalismo e crítica, há mais de trinta anos.
Vêm agora algumas cartas capazes de servir de subsídios
para uma crônica humorística, cujo título seria: “Um acadêmico
apreensivo com a possibilidade do fracasso mundano de sua
recepção”. Escrevendo sem data a Coelho Neto, Osório sugere
o dia 18 ou 20 para essa recepção, explicando: a 21 é que seria
um desastre porque quase toda a sociedade do Rio estará com-
prometida com o espetáculo do Guitry no Municipal. Lembra-lhe
em último lugar 23, concluindo: “Depende de ti”. Coelho Neto
devia ter concordado com o dia 23. Mas isto não resolvera o pro-
blema: surgia ainda a sombra do Guitry a perseguir o novo aca-
dêmico: no dia 23 seria precisamente o seu último espetáculo.
“ Já é caiporismo — dizia Osório. Por essa razão tenho convida-
do metade do Rio de Janeiro e conto que a concorrência seja
grande e seleta”. Sobrevem outro embaraço: “Estive com o
Rui — escreve Osório — , disse-me que deseja ir presidir a
sessão, mas só se esta for adiada por 48 horas, pois o dia 23 é
aniversário de Mme. Rui Barbosa, que dá recepção”. “Acresce

281
que o Guitry se despede na terça-feira”. Sempre o Guitry!. . .
Afinal a recepção realizou-se a 25 de outubro, presidida por
Rui Barbosa, ao lado de quem Osório Duque-Estrada pôde apa-
recer numa fotografia, tendo do outro lado Coelho Neto. Essas
apreensões do novo acadêmico com o espetáculo do Municipal
constituem um elemento nada desprezível para o estudo da
época. Demonstram a importância social de que se revestia uma
companhia francesa, em nosso teatro máximo, principalmente
tendo à frente um ator como o Guitry. Toda a sociedade carioca,
no que possuía de mais representativa, era carreada para ali
nessas famosas noitadas. Assim, um espetáculo do Guitry podia
estragar uma recepção na Academia Brasileira. Hoje não se
compreende mais isto, não só porque o prestígio mundano das
temporadas francesas diminuiu como porque o Rio já se tornou
uma cidade suficientemente grande para o Municipal não mono-
polizar o nosso público de elite.
Uma das cartas mais significativas de Osório Duque-Estra-
da tem o seu interesse prejudicado pelo fato de estar sem data,
não nos permitindo identificar e situar os fatos a que alude.
Na perplexidade em que se encontra — diz ele — “por não
saber quais as intenções do Edmundo com relação ao jornal”,
e certo de que será uma das primeiras vítimas do sítio, já pos-
suindo a experiência de 1910, pede a Coelho Neto para, “numa
resposta franca, desafogada e sem sombra de constrangimento”,
dizer-lhe se no caso de ele, Osório, precisar fugir à sanha dos
seus perseguidores, enquanto estiver procurando um refúgio defi-
nitivo, antes que sua casa seja interditada, poderá provisoria-
mente encontrar um asilo junto ao coração do amigo. “Abre-te
com franqueza, porque qualquer resposta constrangida de tua
parte me vexaria mais do que as violências que me fossem
feitas na Correção ou em qualquer regimento de desalmados” .
Tudo indica que o estado de sítio do qual Osório Duque-
Estrada temia as conseqüências seria o que se verificou no
governo do Marechal Hermes, quando o escritor ainda exercia

282
as funções de crítico no Correio da Manhã, achando-se assim
muito ligado a Edmundo Bittencourt.
Passemos agora às cartas de José do Patrocínio Filho. Três
delas, que se encontram no arquivo, já foram reveladas pelo
próprio Coelho Neto em artigo sob o título “Dentada de Cão”,
no Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1923, reproduzido
por Magalhães Júnior no seu livro O Fabuloso Patrocínio Filho.
Não vamos repetir aqui a história desse artigo, justo revide ao
ataque estúpido de um homem cuja ingratidão se manifestou de
maneira verdadeiramente repulsiva. Quem quiser conhecer o
caso em todos os detalhes procure o belo livro de Magalhães
Júnior.
Vamos ver como se situam as cartas inéditas, entre as
reveladas no artigo de Coelho Neto. A primeira destas, em que
Patrocínio Filho lhe solicita duzentos francos emprestados, em
Paris, não tem data. Na segunda, de 23 de outubro de 1913,
Patrocínio se desculpa de não lhe haver escrito, pedindo-lhe
que não o julgue um indivíduo que, tendo recebido noventa e
nove favores, esqueceu-os todos por não haver recebido o cen-
tésimo. “Sou, aliás, tudo quanto há de mais perdoável, pois
sou um homem que não tem mais nada neste imenso Paris:
nem domicílio. Minha vida tem sido, desde o dia em que te
escrevi pela última vez, um escabroso declive. . . Perdoa-me
pois”.
Magalhães Júnior informa-nos de que havendo partido em
março de 1913, como correspondente de vários jornais, Zeca
viu cumprida a promessa de Lauro Müller de nomeá-lo “adido
ao Consulado Geral do Brasil em Paris”. Quando se deu essa
nomeação? Só podia ter sido depois de julho, porque a 31 desse
mês Zeca (carta inédita) escrevia a Coelho Neto, então em
Paris, nos seguintes termos: “Perdoe-me vir tão rapidamente
recorrer à sua amizade. Soube ontem, porém, depois de nos
deixarmos, que o Dr. Sousa Dantas, nosso cônsul, solicitara do
Ministro do Exterior a minha nomeação para o Consulado. Uma

283
palavra sua ao Lauro Müller pode talvez decidir da resolução
deste caso com grande possibilidade de bom êxito e sobretudo
com a urgência que ele reclama. Porque a verdade é que estou
morrendo de fome. Você que me conhece imaginará a minha
situação por esta confissão que é dolorosissima, mesmo quando
feita a um amigo de sua têmpera”.
Mais um favor, portanto, solicitado a Coelho Neto, res-
tando saber até onde este teria contribuído para a referida
nomeação e quando foi esta feita. Em setembro continuaria
ainda Patrocínio desempregado a julgar pela carta inédita, com
data de-26, em que agradecia a Coelho Neto um bilhete para
a Ópera. Não podia aceitá-lo — dizia ele — por falta de
toilette. “Não estranhe também que ainda não os tenha ido ver:
ando num deplorável estado de espírito e faria uma bem triste
visita”.
Na terceira carta idédita, com data de 28 de outubro, Patro-
cínio começa perguntando se Coelho Neto estará zangado, pois
há dois dias lhe escreveu e não teve resposta (carta divulgada
de 23 de outubro, “quatro ou cinco vezes telefonei e não esta-
vas. De sorte que indeciso e confuso não ouso lá ir. . . Prefiro,
porém, que seja zanga a que seja moléstia; se for zanga, tenho
Gabi para defender-me, enquanto com a moléstia. . . Confio,
todavia, em que não seja nem uma nem outra coisa e com o
meu feroz egoísmo logo te pergunto se tiveste resposta do Leio
sobre a Rua da Amargura. Rogo-te que me respondas sincera-
mente o que há, embora já imagine que a resposta me foi má.
Se fora boa, decerto já ma terias dado sem me fazer esperar”.
Vem, finalmente a terceira carta, com data de 27 de no-
vembro, divulgada no referido artigo. Verificamos que Coelho
Neto conseguira a resposta favorável do Lelo, o que não impedia
Patrocínio Filho de se estender numa série de lamentações,
prognosticando a morte próxima.
O confronto da carta de 23 de outubro com a de 26 léva-
nos, porém, a formular uma pergunta: qual seria o centésimo

284
favor que Patrocínio dizia não ter recebido? Talvez a resposta
se encontre na carta de 27 de julho, naquela solicitação para
uma palavra ao Lauro Müller. Este detalhe, aliás de pouca
importância, ficará a cargo de Magalhães Júnior averiguá-lo.
De Miguel Couto, assinalamos três cartas. Em duas delas,
datadas do Rio, o grande médico receita remédios ao escritor,
recomendando-lhe cuidados com a saúde. Na terceira, datada
de Berlim, 2 de setembro de 1912, escreve: “ Que inefável alegria
ao surpreender hoje no Berliner Tageblatt, em puro alemão —
Die Trauben, as suas belas Pombas. Não preciso dizer que a
esta língua incivil, que a gente fala escarrando, eu prefiro o
nosso português, sobretudo o seu português que eu comparo
aqui à música de Wagner, difícil ou estranha talvez aos meus
ouvidos, mas na verdade extraordinária de energia e sentimento”.
Ora, o conto de Coelho Neto, traduzido para o alemão com o
título de Die Tauben, foi Os Pombos, do livro Treva. Mas
como a palavra alemã Tauben tanto significa pombos como
pombas, Miguel Couto, que provavelmente não conhecia o
conto de Coelho Neto, e estava cansado de ouvir falar no famoso
soneto de Raimundo Correia, confundiu o título deste com o
daquele. Acresce ainda o fato de haver ele na carta reproduzido
o título errado: Die Trauben. Isto em alemão quer dizer sim-
plesmente “As Uvas” — nem pombos nem pombas.
É bem conhecida a maneira pela qual Monteiro Lobato
se referia a Coelho Neto, no prefácio de um romance da Sra.
Leandro Dupré.6 Acusou-o de escrever numa língua falsa, arti-
ficial, em que não eram dadas às coisas os seus legítimos nomes
e não conseguia assim comunicar-se com o público. No entanto,
parece que ele pensava de maneira um tanto diversa na oca-
sião em que escreveu a carta cujo conteúdo resumimos aqui.
Concitava Coelho Neto a fazer um livro de “retratos”, fixando
figuras das letras por ele conhecidas, gênero literário muito pou-

8 Paulo Coelho N eto, Im agem d e um a V ida, R io, 1957.

285
co cultivado no Brasil, dizendo ser o autor de A Conquista a
pessoa mais indicada para escrevê-lo. “Quando a minha nova
editorial estiver funcionando — explicava ele (de onde se con-
clui datar a carta de 1926 ou 27) — hei de voltar ao assunto a
ver se contratamos a obra. O meu foro de editor falido — e
portanto com experiência do público maior do que os que não
faliram — faz-me ver nesse livro, a par de um bom negócio, um
régio presente à mais nobre forma de curiosidade nacional”.

Uma revelação curiosa de Gaspar da Silva, e outras cartas


de escritores portugueses
Na correspondência estrangeira de Coelho Neto devemos
destacar os portugueses dos de outras nacionalidades. Os por-
tugueses escrevem-lhe, na maioria dos casos, para lhe pedir
favores; os outros, interessados em traduzir-lhe os livros, tra-
tam quase sempre desse assunto, manifestando a maior admi-
ração pelo escritor e vivo interesse pela literatura brasileira.
Comecemos pelos portugueses e por uma carta bem inte-
ressante de Gaspar da Silva, datada de Lisboa, 19 de agosto,
sem indicação do ano. Mas, para que se ajuize do interesse da
carta, é preciso que se digam duas palavras sobre Gaspar da
Silva, nome decerto desconhecido da quase totalidade dos inte-
lectuais brasileiros. Basta abrir o segundo volume do Cancio-
neiro Alegre, de Camilo Castelo Branco, e veremos que se trata
de um jornalista português que criticou severamente esse livro
num artigo, “ Carta de um Emigrado”. Camilo respondeu-lhe
com a violência do costume, desancando-o e acusando-o até de
usar nome suposto no Brasil. Era verdade. Gaspar da Silva
meteu-se aqui numa série de embrulhadas que lhe deram má
reputação. Acusado de falência fraudulenta em Sorocaba, foi
processado, chegando a cumprir alguns meses de cadeia. Mas
a verdade é que apesar de tudo prestou bons serviços à litera-
tura brasileira. Com Léo Afonseca fundou em São Paulo, por
volta de 1887, o Diário Mercantil, que a par da Gazeta de Notí-

286
cias, no Rio, se tornou o jornal mais literário do Brasil, na
época. Ali acolheu todos os novos da famosa geração de 89,
publicando-lhes os trabalhos e estimulando-os. A colaboração
do Diário Mercantil era de primeira qualidade e Bilac chegou
a figurar no jornal, como redator, quando foi para São Paulo
estudar Direito. Tudo isso Gaspar da Silva alega a Coelho Neto,
mostrando que fez “alguma coisa boa no meio de muita levian-
dade”. Lamenta, pois, que ninguém lhe escreva, só Coelho Neto
tendo tido essa idéia. Não se conforma em ficar completamente
esquecido pelos escritores brasileiros. Mostra que o Diário Mer-
cantil, além do que realizou no campo literário, teve grande
atuação no terreno puramente jornalístico. A ele cabe a prima-
zia de haver introduzido o serviço de telegramas diretos da Eu-
ropa no Brasil, iniciativa que foi vista então como uma louca
aventura. Além disso, “fomos nós — escreve Gaspar da Silva
(ele e Léo Afonseca) —, fomos nós que nos lembramos audacio-
samente de levar Sarah Bernhardt e Coquelin a São Paulo. Nin-
guém pensava nisso. Era impossível. A Sarah só trabalhava em
grandes capitais. Com dois telegramas que lhe expedi, saudan-
do-a à chegada ao Rio e convidando-a a ir a São Paulo, que era
a Capital artística do Brasil, vend tudo. Esta frase que eu pró-
prio atribuí a Sarah foi minha”.
Eis aí uma revelação bem curiosa — a célebre frase até
hoje tão repetida, como sendo de Sarah Bernhardt, não passaria
de um truque jornalístico de Gaspar da Silva. Nessa mesma
carta declara ele o seu propósito de empenhar-se para que
Gualdino Gomes se encarregue de escrever a biografia e a crí-
tica de Adelino Fontoura, mas acha “que lhe devem pagar”.
Fará trabalho completo, porque conviveu com o Adelino, “ouviu-
lhe contar a vida aventurosa, os amores, as pândegas, as fomes
e as raras alegrias. Ninguém mais competente para tratar do
Adelino, para o ressuscitar. Mas o Gualdino — acrescenta Gas-
par da Silva — é um boêmio, vive com muitas dificuldades,
devem pagar-lhe”. E decerto não quiseram pagar-lhe (seria a

287
Academia que estava interessada nessa obra?) porque a biogra-
fia não foi escrita. Na ocasião em que escrevia a Coelho Neto,
Gaspar da Silva já devia ter recebido o título de Visconde de
São Boaventura, com que o agraciara D. Carlos I em 1892, e
lhe serviu de verdadeiro pseudônimo para publicar o livro
Canhenho de um Jornalista.
Carlos Malheiros Dias escreve cartas longas e carinhosas
a Coelho Neto. De Lisboa a 17 de janeiro de 1901 acusa o
recebimento da primeira missiva do amigo, depois que se au-
sentou do Brasil. “Afinal, acordaste. . . não te ouso dizer que
tarde e aqui a tenho pequenina e literária, essa grande carta
que levei centos de dias a esperar. Mas enfim, tu ainda me
escreveste, enquanto os outros não se lembraram de me mandar
duas linhas. . . ” Depois de se ocupar de assuntos da família,
do nascimento de mais dois filhos de Coelho Neto, alude à
doença de que o escritor naturalmente se queixara, pedindo
licença para não acreditar nela. “ O teu rude regime de trabalho
cerebral, há tantos anos porfiado, deve ter-te trazido muita
fadiga, é certo. Mas isso é a moléstia fatal dos intelectuais: a
vingança de um corpo absorvido pelo cérebro”. Concita Coelho
Neto a realizar uma viagem à Europa (o autor da Tormenta
vivia nessa época no ambiente provinciano de Campinas). Diz
que um romance editado por Tavares Cardoso lhe pagaria de
sobejo as despesas da viagem. Nessa altura da carta conclui-se
mesmo que Coelho Neto tinha deixado entrever seu desejo de
fixar residência em Lisboa. Malheiros Dias aplaude a idéia,
dizendo que dois anos em Lisboa lhe seriam muito benéficos,
pois lhe deixariam um grande nome ali e um bom mercado para
os seus livros. Coelho Neto seria recebido de braços abertos.
Além disso, a vida em Lisboa estava muito barata e convidativa.
O escritor podia vir fazer pesquisas na Torre do Tombo, cujos
arquivos se encontravam à espera de um brasileiro que lhe
desentranhasse do bojo a riqueza fabulosa no concernente ao
Brasil, “por lá ignorada, na digestão das traças e das baratas”.
Eduardo Prado ficara deslumbrado e prometera vir residir em
Lisboa para a exploração dessa mina de ouro. “ Isto agora nos
dominios da Literatura começa a ser exclusivamente vosso —
escreve Malheiros Dias — e não vos levo a mal a encarniçada
guerra de silêncio em que vocês estão recebendo a obra portu-
guesa”. Considera o fato de o seu romance O Filho das Ervas
não ter tido imprensa no Brasil, “morrendo como um escândalo
que é preciso abafar”.
A 6 de abril de 1907, de Lisboa, Malheiros Dias comunica
sua próxima ida ao Brasil a serviço da Ilustração Portuguesa,
que dirige e transformou num grande magazine. Vai procurar
interessar a colônia portuguesa. Mas a revista se destina a es-
treitar as relações entre o Brasil e Portugal. “A triste verdade,
meu querido Neto, é que Portugal desconhece ainda hoje o
Brasil. . . que o alimenta. É necessário revelar o Brasil aos
portugueses”. Pretende abordar políticos com intenções políticas
e de homem de letras. Pede a cooperação de Coelho Neto para
o bom êxito da empresa. “Vai comigo um amor nunca amorte-
cido pelo Brasil, de que sou, pelo sangue e pelo afeto, um pouco
filho”.
Já bem diferente é o teor da carta de 18 de fevereiro de
1912, um ano e meio após a Proclamação da República em
Portugal. Alude aos prejuízos que lhe acarretou a publicação do
livro Do Desafio à Debandada, apreendido pela polícia, que
lhe descobriu um caráter subversivo de convite à rebeldia. Isto
criou-lhe incompatibilidade com a direção da Ilustração Portu-
guesa, obrigando-o a demitir-se, daí lhe resultando um desequi-
líbrio no orçamento. Pede a Coelho Neto para conseguir-lhe a
colaboração em alguns dos grandes jornais do Rio sobre assun-
tos portugueses. “ Pelo grande êxito que tem obtido o que es-
crevo para o Correio Paulistano e dada a minha categoria lite-
rária — explica ele — creio que não seria difícil interessar viva-
mente os diretores de jornal que me quisessem aproveitar a
pena”. Roga-lhe que lhe advogue a causa com a veemência de

289
um pai, pois é pai de três filhos. “Procura fazer alguma coisa
por mim nesta hora de adversidade. A ninguém me abriría com
esta confiança que abstrai as mais rudimentais noções de orgu-
lho.”
Dentro de um ou dois anos, mais ou menos, Carlos Ma-
Iheiros Dias viria para o Brasil, onde se tornaria diretor da
Revista da Semana, iniciando uma fase áurea dessa revista e,
naturalmente, adquirindo de novo boa situação financeira.
Paulo Osório, escritor português hoje um tanto esquecido,
autor de uma biografia de Camilo Castelo Branco que não é
destituída de mérito, escreve a Coelho Neto de Lisboa, a 3 de
novembro de 1910, pedindo-lhe licença para dedicar-lhe um
livro. Sobrevêm, no entanto, a Proclamação da República por-
tuguesa, e a 25 de janeiro de 1911, dirige-lhe outra carta, nestes
termos: “Mal sabia que, quando lhe pedira para dedicar-lhe um
livro, viria importuná-lo novamente por um motivo menos agra-
dável”. E com excessiva audácia o faz. Mas acha que um homem
talentoso como Coelho Neto não pode deixar de ser um bom.
Foi diretor de um órgão do governo no Ministério João Franco.
O ministro caiu com o assassinato do rei e ele, afastado do
franquismo (que não tinha razão de ser, sem João Franco),7
apenas apareceu mais tarde na cena política como candidato a
deputado nas últimas eleições da Monarquia. Embora aceitasse
a República, ficou por ela condenado à inatividade, à morte
civil, apontado como thalassa (pergunta a Coelho Neto se co-
nhece a aplicação política do termo) e sempre sujeito a novas
reivinditas. Só lhe restava uma solução: emigrar. Era o que
estava fazendo: ia para Paris. Queria que Coelho Neto lhe

7 Paulo O sório refere-se à ditadura que João Franco procurou im-


plantar em Portugal, com um sentido de regeneração m onárquica, a fim
de conjurar as crises em que se debatia o país e de que se prevalecia a
propaganda republicana. João Franco conseguiu aliciar na sua campanha
alguns escritores, com o Fialho de Alm eida. Thalassa era a designação
popular que se dava aos m onarquistas portugueses nessa época.

290
arranjasse colaboração nos jornais do Brasil, como um meio
de ajudá-lo a viver na França. Embora preferisse escrever sobre
Literatura, estava disposto a fazer artigos puramente noticiosos.
A 5 de agosto de 1911, de Paris, comunica ter-lhe enviado
há seis meses uma longa carta e há dois meses um livro: tudo
ficara sem resposta. “Peço-lhe muito encarecidamente que me
diga se recebeu uma coisa e outra. V. Exa. compreenderá a
razão de ser de todo interesse que ponho nesse pedido e não
verá nele — espero-o — uma censura, que não está e nem
podia estar nas minhas intenções”. Qual a conclusão a tirar daí?
Talvez Coelho Neto, tão assediado de pedidos, tendo tanta
gente para atender aqui ao lado, houvesse esquecido o escritor
português distante, lá em Paris.
Uma carta de Manuel Sousa Pinto (escritor português, aliás
nascido no Brasil e autor de um livro sobre o nosso país, Terra
Moça) vale apenas por algumas referências ao Turbilhão, que
considera o melhor romance de Coelho Neto e um dos melho-
res romances da literatura brasileira. Escreve ele de Florença
(15-10-906), dizendo que afinal, nessa viagem de recreio, pôde
encontrar tempo para 1er os livros do amigo. “ O Turbilhão, ao
lado do opulento cenário e da alucinante prosa do companheiro,
é um lago sereno ao pé de uma cascata irisada”. A imagem
procura exprimir naturalmente a diferença que vai do estilo
luxuriante de Coelho Neto, em certas obras, com abundância
de adjetivação e de um vocabulário pouco usado, para as linhas
severas em que foi composto o Turbilhão, sem sobras nem
demasias. Mas comparar esse romance tão pungente, em que
há jogo tão violento de paixões, a “um lago sereno” é uma
impropriedade, que se ressalta até pelo contraste com o título.
“Agradou-me muito nele a segura, não fácil meia-tinta, em que
o meu caro amigo conservou a adorável figura de D. Júlia —
a mãe — fazendo-a, no entanto, talvez pela verdade das lágri-
mas, a heroína real do drama realíssimo”. Este juízo, sim, parece
perfeitamente justo.

291
A última carta portuguesa a Coelho Neto, e que manusea-
mos, foi a de João de Barros. Quase nada tem de interessante.
Reclama colaboração para a revista Atlântida, fundada por
aquele escritor com o objetivo de intensificar o intercâmbio cul-
tural luso-brasileiro. João de Barros diz ter sido informado por
João do Rio de que Coelho Neto ia enviar-lhe uma novela iné-
dita, mas nenhuma notícia dela teve até o momento. Acha que
só muita antipatia pela revista justificaria essa abstenção.

Gahisto, Philéas Lebesgue e as traduções francesas


de obras de Coelho Neto
Da correspondência francesa a mais vultosa é a de Manoel
Gahisto, escritor lusitanista e hispanizante, que muito fez pela
divulgação das literaturas da América Latina na França. A
primeira carta de Paris, 12 de agosto de 1913, é dirigida a
Coelho Neto quando este se encontrava na Europa, em viagem
de recreio e tratamento de saúde. Gahisto recomenda-lhe algu-
mas atrações turísticas, dizendo-lhe: “Uma especialidade euro-
péia capaz de falar eloqüentemente a um espírito e a uma ima-
ginação tais como a sua é o castelo feudal, a fortaleza maciça
dos barões da Idade Média”. E indica as mais próximas de
Paris: Pierrefonds, maravilhosamente restaurada pelo sábio Viol-
let-le-Duc, e Coney — “ruínas grandiosas, montanhas de torres
ainda inacessíveis à escalada — e a hora e meia de Paris, menos
importante e menos conhecida, Gisors” .
A 30 de novembro de 1913 (todas as suas cartas são da-
tadas de Paris), quando Coelho Neto já se achava no Brasil,
escreve-lhe para desobrigar-se de uma missão particular de que
o encarregou Marius Ary Leblond e a que ele preferia perma-
necer alheio. A revista La Vie (dirigida por Leblond) organizava
no momento um plano de ação para o ano próximo e havia
todo interesse em obter-se uma subvenção do Brasil. Não sabe-
mos que resposta Coelho Neto deu a esse pedido. Digna de nota

292
é, porém, na mesma carta, uma impressão da leitura de Canaã,
de Graça Aranha, cuja tradução francesa aparecera no ano an-
terior. Gahisto achou o livro muito europeu pelos personagens
e pelas apreciações.
A 3 de fevereiro de 1914 alude à recolta de contos que
pretende traduzir com Philéas Lebesgue: Fertilidade, Mandovi,
Cega, A Tapera, Segundas Núpcias. Este último lhe parece ter
a vantagem de apresentar Coelho Neto sob outro aspecto do
seu talento e introduzir na seleção um elemento feminino de
caráter burguês, “o que estabelecerá variedade no conjunto e
pode ter influência no efeito sobre o público francês”. A 29
de abril do mesmo ano declara: “Para ser franco, as narrativas
sertanejas têm a minha preferência. Não li ainda A Conquista,
mas saboreei lentamente o Rei Negro. A primeira metade me
pareceu admirável e acredito que o fim o será também. Lebes-
gue manifesta a mesma opinião. É um belo livro que preten-
demos traduzir, quando a sorte se decidir pelo primeiro”. Acha
que talvez seja preciso custear a edição, como Coelho Neto
propõe, mas o resultado poderá ser o melhor possível. “Quanto
à Cega, não foi aceita pelo Le Temps — acrescenta Gahisto —
e creio que por tratar-se de um jornal protestante. Vou propô-
la ao Journal des Débats. Em caso de novo fracasso, pensarei
no Figaro, que insere comunicados subvencionados do governo
brasileiro. Talvez por essa via se consiga a publicação da novela
em folhetim”.
Que levaria Gahisto a atribuir a recusa de Cega ao fato
de Le Temps ser um jornal protestante? Naturalmente certas
cenas escabrosas da novela e talvez, também, a passagem em
que a heroína reza diante de um oratório, onde crepitava dia
e noite a lamparina. O sertanejo tem uma fé absoluta nos seus
santos e Coelho Neto não podia fugir a esse detalhe tão ex-
pressivo.
Agora começam as cartas datadas do terrível período da
primeira conflagração européia. E não deixa de ser comovente

293
a atitude de Gahisto, sempre preocupado com a divulgação da
literatura brasileira na Europa, mesmo nesses dias trágicos que
se prolongaram por cinco anos. A 19 de outubro de 1914, faz
ele considerações sobre a guerra, dizendo que está esperando
uma affectation militaire, enquanto o colega Lebesgue, pela ida-
de, já se acha isento de qualquer atribuição nesse terreno. Depois
do recuo dos alemães, tem aproveitado os lazeres para iniciar
a tradução do Rei Negro. Vê no tema do romance precisamente
uma expressão da vitalidade, desse princípio de nacionalidade
que parece separar nitidamente hoje os diplomatas do farrapo
de papel e da bomba incendiária dos que se caracterizam pelo
loyalisme e a sã moral. “ Com a extraordinária imparcialidade
que o sr. manteve no estudo do último herói da tribo Munza,
veio a colocá-lo na mais viva atualidade européia. Seu Macam-
bira pertence à grande família dos heróis nascidos do solo an-
cestral com todo o vigor, todo o imprevisto de originalidade,
que o sr. soube emprestar a esse caso estranho e emocionante”.
De acordo quanto ao último período; mas que Coelho Neto
viesse a colocar o seu herói na mais viva atualidade européia
é o que nos escapa. Só se Gahisto quis estabelecer uma seme-
lhança entre o conflito de Macambira, que se tornara escravo,
embora por direito de sangue fosse um rei legítimo, com a
atitude da Alemanha querendo impor o seu domínio sobre os
países europeus mais fracos. Continuando a falar do livro diz
ele: “Admiro a simplicidade da construção, cujos detalhes des-
filam linha por linha aos meus olhos. É um drama de estrutura
clássica, realizado de tal forma com seus elementos estritamente
brasileiros que os intelectuais de cultura latina não poderão
deixar de apreciar”. Julga a tradução uma empresa um pouco
temerária, pois não sabemos se depois da guerra, nous y sommes
encore, não sofreriam a influência de outras modas literárias
ou uma crise editorial, cuja proporção não se pode prever.
Tjsrmina dizendo que a natureza das “narrativas” de Coelho
Neto leva-o a desejar para elas uma tradução inglesa. Pede o

294
endereço de críticos ingleses a quem possa dirigir-se nesse sen-
tido.
Carta de 2 de outubro de 1915: a guerra continua; o movi-
mento literário meio paralisado, salientando-se apenas a publi-
cação de obras sobre o conflito armado. A morte de Rémy
de Gourmont não teve grande repercussão, porque no momento
todas as atenções estavam voltadas para a batalha do Aisne.
Carta de 9 de fevereiro de 1916: ainda a guerra, assunto
naturalmente obrigatório para quem se achava na França: longos
comentários com muitos detalhes em torno dos raides dos zepe-
lins sobre Paris. Recebeu A Tormenta, no qual encontrou per-
sonagens de outra classe social, diferentes de les caboclos, outro
aspecto do “belo talento” de Coelho Neto, outras figuras desse
país risonho que os acontecimentos o impedirão agora, e durante
muito tempo, de visitar. Acha A Tormenta de leitura mais fácil,
porque o seu assunto não exigiu um vocabulário pitoresco e
tão rico quanto o do Rei Negro.
Carta de l.° de fevereiro de 1917, portanto um ano depois
da última: Gahisto considera o longo tempo em que ficaram
sem comunicar-se. A tradução de o Rei Negro está pronta,
quase datilografada e é preciso agora tratar de obter um editor.
Acha preferível a mudança do título para Macambira. Rei
Negro destina-se ao público brasileiro: na Europa ignora-se com
que estranha vitalidade podem subsistir nos negros as tradições
de soberania. Já iniciou démarches junto às casas editoras para
publicar as narrativas do Sertão. Do Journal des Débats recebeu
a seguinte resposta: “ O sr. Nel lera as narrativas exóticas, sobre-
tudo a novela Cega ‘cheia de talento’, e concordaria em publicá-
la, com a supressão para os seus leitores dos trechos marcados
a lápis, notadamente a descrição do prenúncio e do apareci-
mento das regras na jovem”.8 “ Infelizmente o desfecho, a descri-

8 Eis o trecho aludido da novela Cega-. “Foi numa manhã de junho


que a negra, procurando a cega em segredo, deu-lhe a entender que

295
ção do parto, com chagas, sangue etc. torna, o senhor deve Na referida carta Gahisto manifesta a esperança de que
compreender, esse lindo romance impróprio num jornal como Mandovi venha a ser publicado próximamente e acrescenta que
o nosso. As outras narrativas não são precisamente o que ele Albalat, secretário do jornal, costuma sempre respeitar o má-
desejava. Apesar disso, guarda Mandovi”. ximo possível o texto, só recorrendo às supressões em casos
A justificativa do Sr. Nel exige um pequeno comentário de extremos.
nossa parte. Nessa época quase todos os jornais franceses costu- A 6 de julho de 1917, procura ele escrever em português.
mavam publicar contos e novelas em folhetins ou em duas ou Mas nós todos sabemos que conhecer uma língua para 1er e
três colunas. Era ainda a remanescência de um hábito do século traduzir é uma coisa e para escrever é outra. O português de
passado, que os leitores não dispensavam. Mas tais contos não Gahisto saiu numa mistura pitoresca de espanhol com francês
deviam naturalmente, conter detalhes realistas escabrosos, capa- em que Coelho Neto é tratado ora por tu, ora por V. Exa. Diz
zes de comprometer a entrada do jornal em todos os lares. O ter estado com Albalat (que não é outro senão o nosso conhecido
episódio das regras, cuja supressão foi tida como indispensável, autor de Arte de Escrever), o qual lhe declarou não se haver
é realmente um trecho que pode fazer corar certas pessoas pu- esquecido do conto; infelizmente o jornal vinha lutando com
dicas. Eliminá-lo seria, no entanto, prejudicar uma das passa- muita falta de espaço, tivesse paciência, prometia publicá-lo
gens mais interessantes da novela. Quanto à incompatibilidade logo que fosse possível. Em junho de 1918, num dos momentos
do desfecho — o parto, o sangue etc. — com o jornal, vinha cruciais da guerra, quando os alemães desfechavam a chamada
possivelmente do fato de, no momento de dor e luto que atra- “ofensiva de paz” contra a França, ameaçando de novo Paris,
vessava a França, não ser conveniente apresentar-se como lei- Gahisto escrevia a Coelho Neto sobre livros e traduções. Levara
tura recreativa — e outro sentido não tinha a inserção de contos a Cega (L’Aveugle) à Revue de Paris, escrevendo uma carta a
nos diários — uma novela de horror, nos moldes da Cega, capaz Marcel Prévost, seu diretor, em março de 1917. Indo saber a
de pôr à prova os nervos do leitor. resposta foi recebido pelo secretário deste que lhe declarara ser
L ’Aveugle uma obra “muito notável” já tendo feito chegar o
Felicinha desabrochara para a vida, pagando seu tributo virginal à natu- manuscrito às mãos do Sr. Marcel Prévost com uma nota muito
reza:
“A na Rosa pasmou:
particular; não podia prever o que ele ia decidir no caso. Mas
‘Parecia-lhe que a pequena nascera ontem; tinha ainda nos ouvidos permitia a Gahisto cumprimentar o autor e dizer-lhe que o secre-
os seus balbúcios infantis, as suas gracinhas, e já m ulher!’ Felicinha tário lhe defendera calorosamente a causa. Através desse forma-
tím ida, vergonhosa com o de um a falta, evitava os olhos cegos da mãe,
e quando ela a cham ou, atraindo-a m im osam ente entre risonha e chorosa, lismo um tanto afetado, a direção da revista parecia não pro-
amuou: curar outra coisa senão descartar-se, com elegância e polidez,
— Foi Tia Rita. Tam bém conta tudo. Q ue língua! Se eu soubesse
de uma colaboração que não lhe interessava.
não dizia nada. Ana R osa, porém , sorrindo, explica-lhe:
‘Q ue aquilo era natural, havia de acontecer mais dia m enos dia. Gahisto acrescenta algumas linhas sobre o momento críti-
Então, que ela já não era uma criança, devia ter mais cuidado: nada de co que vivia a França. Diz ter mandado a mulher para longe de
andar pelos m atos com o uma bugrezinha, trepando nas árvores; nada
de descer sozinha à beira do rio’ ” (S ertão, 6.a edição, Leio & Irmão,
Paris, para longe dos canhões. Continuava nas suas atividades
Porto, 1943). militares regulares na retaguarda, ao troar da artilharia: não
296 297
conhecia o medo, temia apenas pela destruição dos livros e dos
manuscritos.
Agora, escreve a 1 “ de fevereiro de 1919. Passara o pesa-
delo. Mas o armisticio lhe trouxera muito trabalho; estava ata-
refadíssimo. Não desistira de ver L ’Aveugle publicada na Re-
vue de Paris, continuava a aguardar a resposta.
A 14 de julho do mesmo ano informa: a Revue de Paris
promete agora publicar L’Aveugle. A razão da demora foi a
guerra. E por quê? Eis um motivo bem singular: é que a guer-
ra levara a revista a estampar muitos contos em que apareciam
personagens cegos. Convinha não repetir os tipos. Removido
esse embaraço, seria questão de alguns meses a publicação. Ter-
mina manifestando o seu desejo de vir ao Brasil. Fazia parte
da atual administração da alfândega e possuía amplos conheci-
mentos sobre prática de operações e regulamentos de comércio
internacional. Se ao nosso governo pudesse interessar essa ex-
periência técnica, pediría licença de um ano e iria ao Brasil a
fim de identificar-se com a vida e as coisas do país, antes de
continuar na França a divulgação dos grandes escritores bra-
sileiros. Evidentemente, era preciso que Coelho Neto conseguis-
se do governo essa comissão para o escritor francês aqui. Mas
Coelho Neto não havia sido reeleito deputado e não se acha-
va por certo em cheiro de santidade perante os poderosos do
dia. É de prever-se que se tenha excusado de dar algum passo
nesse sentido ou se o dera não lograra êxito, pois, que nos cons-
te, Gahisto não veio ao Brasil.
A 22 de janeiro de 1920 continua na esperança de que
L’Aveugle seja publicada na Revue de Paris. Disseram-lhe que
uma espera de dois anos ali não era para admirar. Mas, segun-
do depreendemos da informação de Paulo Coelho Neto,9 no
mesmo ano tratou ele de publicar a novela em outra revista:
estampou-a o Courrier Franco-Américain, de Bruxelas. Ainda

n B ibliografia d e C oelho N eto, Rio de Janeiro, Borsoi, 1956.

298
nessa carta anuncia o próximo aparecimento da tradução fran-
cesa do Rei Negro, por “ L’Édition Française Illustrée”, que já
tinha lançado as obras de Stevenson. Pretende dar a maior di-
vulgação ao livro, enviá-lo aos críticos de Madri, Buenos Aires,
Santiago do Chile, Polônia. E termina, mostrando ainda uma
vez a necessidade da mudança do título.
A 27 de julho de 1920 diz que enquanto as provas efetua-
vam a viagem de Paris ao Rio, duas outras circulavam na Fran-
ça e ele e Lebesgue faziam a revisão. Quando as primeiras, re-
vistas pelo autor, chegaram, o livro já estava impresso e bro-
chado. Lamenta o caso. Procuraria introduzir as correções se se
fizesse nova tiragem. De resto não havia senão duas frases ine-
xatas. Informa ter o Figaro dado a primeira notícia, conside-
rando o livro bem-apresentado. A mudança do título para Ma-
cambira se impunha ainda pelo fato de estar sendo representa-
da em Paris no momento, com grande sucesso, uma peça: Ma-
likoka — Roi Nègre. Explica que as supressões de algumas pas-
sagens foram devidas unicamente ao preço do papel (Eis como
o fator econômico pode tornar mais conciso um romance —
comentário nosso). O livro já estava sendo vendido em Roma
e Madri. Queria saber como fora ele recebido no Rio. A 14
de setembro de 1920 ocupa-se ainda do lançamento do Rei
Negro. Manuel Galvez lhe escrevera, dizendo que a tradução
lhe interessara muito, e Pierre Mille lhe declarara: “O autor
desse livro é um grande artista”. Estava pois muito satisfeito
com o êxito. Esperava que, dentro em pouco, o nome de Coe-
lho Neto se tornasse conhecido na França, como o de Perez
Galdós, de Valle-Inclán e, acrescentaria, de D’Annunzio, se
este não tivesse perdido a cabeça por vir sendo considerado o
enfant gâté do seu país. O certo é que, entusiasta das literaturas
de língua espanhola e portuguesa, Gahisto superestimava a vul-
garização de um Galdós e de um Valle-Inclán, na França. Es-
tes escritores nunca foram ali conhecidos senão no círculo res-
trito dos hispanizantes. Basta dizer que em 1920 Galdós já co-

299
meçava a ser menos lido até na Espanha, onde está boje bas-
tante esquecido, como me afirmou Gregorio Marañon, por vol-
ta de 1954, quando por aqui andou.
A última carta de Gahisto data de dezembro de 1932. Jun-
tamente com Philéas Lebesgue, traduzira a novela Os Velhos,
que fora publicada em 1927, em Les Oeuvres Libres, com o
título Les Vieux. Comunica ele agora que lhe foi confiada a ru-
brica Lettres Brésiliennes, no Mercure de France — anterior-
mente ocupada por Severiano de Resende —, que vai escrever
um estudo sobre Coelho Neto e prepara um livro intitulado
Figures Sud-Americaines.
As cartas de Philéas Lebesgue são em menor número do
que as de Gahisto e menos interessantes. Aliás, não podemos
decifrá-las senão em parte: a letra péssima e microscópica tor-
na-lhe penosa e, freqüentemente, impossível a leitura, mesmo
com o auxílio de uma poderosa lente, como a que utilizamos.
Parece que ele começou a corresponder-se com Coelho Neto
sobre a vulgarização da obra deste último na França antes de
Gahisto. A 15 de outubro de 1908 já lhe escrevia, informando-
lhe que quanto à tradução dos contos achava que o melhor meio
seria o escritor brasileiro editar o livro por conta própria. Não
se devia contar com o Mercure de France, embora fosse possível
o aparecimento de alguns contos ali, antes da edição em vo-
lume.
A 30 de setembro de 1909, dizia do seu prazer de conver-
sar com Coelho Neto sob o céu encantado do Brasil, mas não
tinha nem o renome nem os meios do seu ilustre compatriota
Anatole France e só uma tournée de conferências pagas pode-
ría levá-lo ao Brasil. Anatole France havia chegado aqui a 22
de julho desse ano. Philéas Lebesgue acharia que com mais ra-
zão devia visitar esse país, cuja língua conhecia e cuja literatu-
ra muito lhe interessava. Julgamos que, como Gahisto, não
conseguiu ele realizar jamais esse sonho, pois não conseguimos
localizar qualquer notícia a respeito.

300
As diversas cartas escritas durante a conflagração de 1914
incidem, geralmente, em comentários sobre o conflito, com refe-
rências à atuação de Coelho Neto na “ Liga Pelos Aliados”, não
contendo detalhes dignos de destaque. São impressões semelhan-
tes às de tantos outros que se achavam próximos do teatro da
luta. Mas, a 24 de abril de 1918, renovando expressões de louvor
a Coelho Neto pelo que vinha fazendo em prol da causa dos
aliados, alude à edição do Rei Negro, acentuando a necessidade
de esperar melhores dias para levá-la a efeito. Absorvido pelos
problemas de ordem política suscitados pela guerra, o leitor fran-
cês se afastava algum tanto da literatura pura. Assim, pensava
que um livro resumindo o esforço atual do Brasil nos diversos
planos de atividade podería atrair mais a atenção dos franceses,
sobretudo se fosse escrito por um nome em evidência. Um capí-
tulo consagrando às letras havia certamente de despertar o inte-
resse para obras que se viessem a traduzir mais tarde. Ninguém
como Coelho Neto estaria em condições de escrever tal livro, que
ele e Gahisto traduziríam de boa vontade e prestariam o melhor
serviço à aproximação franco-brasileira. Contudo Neto, evidente-
mente, não aceitou o alvitre: estava fora de suas tendências, do
seu próprio feitio intelectual, um trabalho dessa natureza.

Jean Duriau, seu entusiasmo pelo nosso país e a


indiferença dos escritores brasileiros
A correspondência de Jean Duriau, igualmente em francês,
bem numerosa e quase toda no mesmo sentido da vulgarização
das obras de Coelho Neto e da literatura brasileira na França,
leva-nos a encarar com a maior simpatia esse homem que revela
realmente uma verdadeira paixão pelo nosso país e por tudo
quanto é nosso.
Em carta de novembro de 1924 declara ele ter vivido no
Rio de Janeiro e em Santos, durante cinco anos, como funcio-
nário de uma firma francesa, interessando-se não somente pela

301
nossa paisagem como pela riqueza das nossas letras. Leu muitos
livros brasileiros, e depois da guerra, ao voltar à França, onde
teve de permanecer, não esqueceu o português e continuou essas
leituras. Há um mês caiu-lhe nas mãos o Turbilhão, que ainda
não conhecia e ficou vivamente impressionado com esse “mara-
vilhoso romance”, “tão vivo, tão característico da vida carioca”,
e daí o desejo de traduzi-lo, o que, de resto, já começava a fazer.
Diz ser um desconhecido no meio literário francês, mas acha
que o romance há de interessar grande número de intelectuais.
A 15 de janeiro de 1925 escreve: desejava já lhe poder enviar
a tradução se os seus afazeres já lhe tivessem permitido termi-
ná-la. Pouco adiante acrescenta: “Notei um lapsus calami no
primeiro capítulo e resolvi traduzir bengala por guarda-chuva
para ficar mais de acordo com as condições climáticas dessa
noite chuvosa”. Dá assim a entender que Coelho Neto se enga-
nou, escrevendo por distração bengala onde devia escrever
guarda-chuva. Percorremos todo o primeiro capítulo do romance
(3.a edição — Leio & Irmão, Porto) e não descobrimos nenhum
lapso. A história começa com a saída de Paulo do jornal, onde
trabalhava, numa noite de chuva para ao regressar à casa ter a
notícia da fuga da irmã. Na página 13, justamente quando o
jovem deixa a redação, lemos: “Tornou um chapéu e o guarda-
chuva a um canto” . E na página 19, pouco antes de sua chegada
em casa: “ Levantou a gola do casaco, e com o guarda-chuva à
frente, como um escudo, a cabeça encolhida, partiu rompendo a
ventania”. Não figura jamais a palavra bengala em qualquer
trecho desse capítulo. Devemos supor assim que a tradução de
Jean Duriau foi feita de uma edição anterior, provavelmente a
primeira, tendo sido o lapso corrigido na seguinte.
Confessa ele a impossibilidade de traduzir certas palavras
socorrendo-se do dicionário de Vieira, embora lhes perceba per-
feitamente o sentido. Quando enviar os originais da tradução a
Coelho Neto há de acentuá-las à margem. E logo que o trabalho
estiver pronto pretende pôr-se em contacto com Valéry Larbaud,

302
“jovem escritor francês” especializado no trato dos “literatos”
que ali se designam comumente pelo nome de hispanizantes, e
espera graças a ele conseguir editar a obra. Está persuadido de
que Coelho Neto interessará vivamente os intelectuais da língua
francesa, pois a curiosidade pelas coisas exóticas aumenta dia a
dia, dada a penúria atual das letras na França. Além disso,
começa-se a tomar conhecimento da força das literaturas estran-
geiras e notadamente das sul-americanas. Lamenta ser ainda
pouco versado em português para traduzir o Sertão, livro muito
característico. Talvez possa fazê-lo quando já estiver mais senhor
do idioma.
Anuncia agora, a 15 de julho de 1925, o final da tradução
de o Turbilhão. Explica que na França os editores têm ao lado
pessoas de notoriedade literária ou científica que lêem ou não
lêem os manuscritos. Encontrou em Paris um leitor amigo a
quem confiou Turbilhão. Acha provável a necessidade de várias
correções: espera, no entanto, a palavra do amigo. Exprime a
grande alegria que experimentou em poder realizar essa tradu-
ção, seu entusiasmo pelo Brasil e a literatura brasileira, mani-
festando o desejo de voltar ao nosso país.
Não encontramos Turbilhão na lista das traduções de obras
de Coelho Neto, publicadas por Paulo Coelho Neto. Quer dizer
que fracassou o intento a que Jean Duriau se votara com tanto
carinho. Realmente, a 27 de fevereiro de 1926 explica ele:
embora os editores tenham achado a tradução interessante, não
quiseram publicá-la, alegando as dificuldades materiais da hora
presente e o fato de um movimento de opinião favorável à lite-
ratura brasileira, que somente agora começa a esboçar-se graças
à Revue de l’Amérique Latine, não estar ainda suficientemente
desenvolvido para arriscá-los a um lançamento dessa natureza.
A verdade diremos nós — é que Duriau, embora escolhendo o
melhor romance de Coelho Neto, para o fim a que o destinava
escolheu mal. Até hoje a literatura brasileira só tem conseguido
alguma penetração na França na quase totalidade dos casos por

303
meio do exótico. O caso de Machado de Assis constitui uma
exceção, e assim mesmo romances como Dom Casmurro e Brás
Cubas vêm logrando maior êxito em países de língua inglesa
do que nas traduções francesas. Mas, apesar do fracasso, Duriau
declara num tom que não pode deixar de sensibilizar-nos: “Que
importa, trabalharei assim mesmo; esta é uma maneira de viver
num país pelo qual tenho tanta simpatia e que me deixou tantas
saudades”. Aliás, nessa altura já havia ele compreendido o me-
lhor rumo a tomar, pois já tinha traduzido a novela rústica de
Coelho Neto, Fatalidade, que a Revue de l’Amérique Latine pu-
blicara, como se depreende da referida carta. Esperava que a
tradução agradasse ao autor — escrevia — embora houvesse
encontrado muita dificuldade em transpor para o francês o dia-
leto caipira que Coelho Neto reproduzia fielmente; tivera de
contentar-se em traduzir o sentido, sem procurar reproduzir as
deformações lingüísticas características. E terminava com um
equívoco realmente pitoresco, comunicando o seu desejo de
travar relações com Sílvio Romero, de quem acabava de 1er a
Pequena História da Literatura Brasileira, que lhe fora enviada
do Rio por um amigo. Julgava possuir esse escritor uma recolta
de lendas do Brasil e pedia a Coelho Neto para lhe conseguir
tal livro que poderia interessar um editor inteligente na França,
levando-o a incluí-lo numa coleção de todas as lendas do mundo.
A 25 de setembro de 1926, dizia do seu propósito de iniciar
a tradução de No Rancho e outros contos, pretendendo subme-
tê-la a Valéry Larbaud. Solicitava de Coelho Neto plenos pode-
res para tratar em seu nome com um editor e a declaração das
condições em que o autorizava a publicar essas traduções. Pas-
sara a corresponder-se também com Monteiro Lobato, que lhe
enviara alguns livros, mas dentro em pouco ia ficar sem material
de trabalho e, como se esboçava um movimento a favor da litera-
tura brasileira, era preciso aproveitar a oportunidade e malhar
no ferro enquanto estava quente. Queria livros, jornais e revistas
do Brasil.

304
A 21 de novembro de 1926 já tinha submetido a Valéry
Larbaud algumas traduções. Graças à autoridade desse nome —
escrevia — No Rancho ia aparecer na Revue de Paris no ano
próximo. Larbaud lhe assegurava que, de agora em diante, não
teria ele, Duriau, mais necessidade de bater à porta das revistas
nem das editoras, pois seriam elas que lhe fariam encomendas.
Talvez otimismo excessivo de Larbaud para estimular o tradutor
tão bem-intencionado — observaremos nós. Mas também pode-
mos concluir daí que o autor de Enfantines julgara os contos
de Coelho Neto capazes de despertar interesse na França. A carta
termina com novos pedidos de livros. Duriau continua a recla-
mar livros e publicações brasileiras.
Daí a três meses, a 5 de fevereiro de 1927, agradece o
empenho de Coelho Neto junto aos confrades da Academia no
sentido de estes enviarem livros ao intelectual francês que tanto
se dedica às nossas letras. Mas acha que apesar disso eles per-
manecerão na sua torre de marfim, continuando a ignorá-lo. E
queixa-se amargamente dessa indiferença: “ Embalava-me na ilu-
são de que minha tentativa suscitaria um movimento de simpatia
capaz de trazer-me apoio de parte daqueles que, em suma —
como pelo menos eu acreditava — seriam os primeiros a bene-
ficiar-se com o êxito da minha empresa” — escrevia. Profunda-
mente magoado constatava, porém, que os intelectuais brasileiros
não se interessavam em ser conhecidos na França, não pare-
ciam, como Coelho Neto, experimentar o desejo de um entendi-
mento íntimo entre os dois povos da mesma raça, das mesmas
tendências, da mesma cultura. De qualquer forma continuaria a
pedir livros, revistas, jornais, embora já começasse a ter vergo-
nha de mendigar ao perceber que os seus propósitos não encon-
travam nenhuma simpatia. Prosseguiría trabalhando apenas com
os livros de Coelho Neto e Monteiro Lobato, incorrendo no risco
de ser acusado de parcial e de preferir somente esses dois escri-
tores. Infelizmente eram os próprios brasileiros que assim o
queriam não lhe correspondendo ao entusiasmo pelo Brasil. Per-

305
cebia no Brasil certa propensão para a América do Norte. Os
ianques eram ricos: o fascínio do “bezerro de ouro” tinha muita
força. Pedia a Coelho Neto a peça O Dinheiro para traduzi-la.
E perguntava: “Quem é esse Francen que poderá, talvez, mon-
tá-la? Não o conheço absolutamente”. Por aí se vê o alheamento
em que Jean Duriau vivia do ambiente teatral parisiense: “Esse
Francen” era um ator famoso que já nessa época havia estado
no Brasil duas vezes, em temporadas oficiais francesas, uma em
1922 e outra em 1923. Coelho Neto por certo o conhecera pes-
soalmente aqui e dele tivera talvez a promessa de representar-lhe
algum dia uma peça em Paris. Duriau finaliza, dizendo que,
quando No Rancho fosse publicado na Revue de Paris, as portas
se abriríam tanto para ele quanto para o seu colega Gahisto, que
traduzira Praga.
Na última carta, datada de 5 de fevereiro de 1928, comuni-
ca que Plon lhe deixou entrever a possibilidade de publicar ao
ano próximo uma recolta de cláusulas que o ligavam ao editor
português. As condições dos contratos editoriais na França — ex-
plicava Duriau — eram as seguintes: dez por cento da venda a
repartir entre o tradutor e o autor. Pedia autorização para tratar
com o Plon a respeito. A Revue de Paris não pudera ainda publi-
car a tradução de No Rancho por estar carregada de colabora-
ções. Achava isso bem desanimador, mas que fazer, a culpa não
era sua. E numa atitude de desabafo, confessava: o Brasil conti-
nuava a ser totalmente desconhecido na França, não por má
vontade dos franceses, mas atualmente o país vivia horas tão
conturbadas, tão pouco propícias à vida intelectual que não se
devia estranhar o pouco êxito das tentativas inteligentes. “Reina
o dinheiro, reina a brutalidade, é uma hora desprovida de ele-
gância e de gosto”. Lembra-se com saudade de sua casinha à
beira-mar em Santos.
Essas expressões de Jean Duriau são bem significativas:
traduzem o sentimento de muitos franceses que, tendo vivido
na América e regressando à França depois da Primeira Guerra

306
Mundial, ali não mais encontraram o ambiente de outrora, sen-
tindo o fracasso da paz e da vitória e prevendo uma nova confla-
gração. Começavam, então, a experimentar a nostalgia do novo
continente, que para eles representava uma segurança já não
mais existente numa Europa convulsionada. O armistício fora
assinado em novembro de 1918, mas la douceur de vivre, la
belle époque, terminara em agosto de 1914.
Por tudo quanto ficou enunciado nessas cartas, o nome de
Jean Duriau devia ser mais caro aos brasileiros. A julgar pelas
informações bibliográficas de Paulo Coelho Neto não conseguiu
Duriau publicar a tradução de nenhum livro do autor de Mira-
gem e, como acontecera a Gahisto, não teria logrado êxito na
inacessível Revue de Paris — onde pontificava a mediocridade
de Marcel Prévost — apesar do prognóstico favorável de Valéry
Larbaud. Sabe-se no entanto que obteve editor, mais tarde, para
um livro de Tristão de Ataíde. Faltava-lhe nome, prestígio no
meio literário francês para lutar ali com êxito em prol das nossas
letras. Pois se os próprios escritores brasileiros por considerá-lo,
certamente, um ilustre desconhecido não se dignaram a enviar-lhe
livros! Devemos, no entanto, colocá-lo ao lado de Gahisto e
Lebesgue como pioneiro desse movimento de interesse que hoje
tem levado ao público francês um Graciliano Ramos, um Érico
Veríssimo, um Jorge Amado e outras figuras das nossas letras.

Martin Brussot, a guerra e a estranha pergunta


de um estudante sueco
Passemos agora a Martim Brussot, que apesar do nome
francês, e de escrever sempre a Coelho Neto em francês, era
austríaco. Escritor de segunda categoria, mas de boa vontade,
interessava-se pelas literaturas da América Latina. Já em 1912
desenvolvia atividade em prol da vulgarização das nossas letras
em língua alemã, circunstância que levou Coelho Neto a pro-

307
por-lhe o nome para sócio correspondente da Academia Brasi-
leira, conseguindo elegê-lo por nove votos.
Em junho de 1913, quando o autor do Rei Negro se achava
na Europa, Brussot envia-lhe algumas linhas de Viena, mostran-
do-se encantado com a notícia de que ia receber-lhe a visita,
lamentando apenas que o estado de saúde do escritor brasileiro
o forçasse a procurar restabelecimento num sanatório. Sobre o
que tem feito pela obra de Coelho Neto, declara que este não
precisa agradecer-lhe. Fê-lo “por puro amor” e sente-se conten-
te no momento em que o sabe também contente.
Já por outra carta, datada de Bazni (Hungria), somos infor-
mados de que o encontro entre os dois escritores não se realizou.
Coelho Neto viu-se obrigado a regressar ao Brasil, sem tempo
para ir à Áustria. A 29 de março de 1914, quando Coelho Neto
já estava aqui, manifesta-lhe o entusiasmo pelo Rei Negro. Acha
o romance “fascinante, muito plástico e convincente. A vida
selvagem, o homem, a natureza são pintados com extraordinária
vivacidade”. Informa Coelho Neto sobre o gosto do público
alemão no momento; preferem-se, sobretudo, contos do feitio
de Assombramento e Segundas Núpcias, isto é, misteriosos e
sobrenaturais. E dá-lhe sugestão: a de escrever algum dia um
romance meio histórico sobre a época das bandeiras, descre-
vendo a vida primitiva da população aborígine do Brasil. Via
ele assim muito bem o gênero em que Coelho Neto poderia obter
o melhor êxito: esses largos painéis, que se ajustavam às ten-
dências de uma imaginação exuberante. Aliás, o romancista d’A
Tormenta nutrira a idéia na mocidade de realizar uma grande
obra cíclica, romanceando numa série de livros toda a história
do Brasil.
A 15 de junho de 1914, nas vésperas da guerra, Brussot
não pensa senão em literatura. Escreve pedindo esclarecimentos
sobre algumas palavras intraduzíveis como braúna, codorna, jan-
daia, podengo, calongo, caapora, bem-te-vi, embaúba etc. Quer
saber o correspondente em francês da palavra paineira.

308
Passa-se um ano e meio. A 20 de janeiro de 1915, estamos
em plena guerra. Brussot agradece comovido a Coelho Neto o
“calor de suas palavras” dando-nos a entender que elas se refe-
riam ao conflito europeu. Não pode deixar de intrigar-nos esse
trecho. Francófilo exaltado, escrevendo em defesa da França
artigos veementes, um dos quais chegou a ser transcrito no
Le Temps, como nos informa Gahisto, numa de suas cartas, que
prodígios de diplomacia faria Coelho Neto para ressalvar as
atenções devidas ao confrade austríaco na repulsa que lhe cau-
sava a barbárie dos hunos? Nessa mesma carta, Brussot comu-
nica o adiamento da tradução do Banzo (Urwald) para melhores
dias.
Terminada a luta envia ele uma longa carta a Coelho Neto,
dizendo que durante todo o período da guerra lhe escrevera
umas cinco ou seis vezes, mas as cartas acabavam voltando-lhe
às mãos dada a impossibilidade de comunicação postal com o
Brasil. Agora, com as cartas de Coelho Neto, porém, fora mais
feliz, porque o censor francês dera o laissez-passer. “Assim,
recebi duas vezes suas epístolas encantadoras para a minha
grande alegria e que me impressionaram tão profundamente pelo
seu sentimento nobre, puro e cavalheiresco que eu as fazia
publicar parcialmente — embora lamentando não me ser pos-
sível pedir-lhe licença para isso — em alguns jornais e revistas
em que despertavam nos círculos literários da Alemanha certa
admiração”. Não conhecemos infelizmente o teor dessas cartas.
Mas Coelho Neto realizava por certo verdadeiro tour de force,
conseguindo despertar as mesmas reações de simpatia nos cír-
culos da Alemanha e da França, numa hora em que os dois
países se achavam empenhados na mais cruenta das guerras.
Martin Brussot continua a carta, dando conta de tudo que
fez pela divulgação do nome do escritor brasileiro na Alemanha,
durante a guerra, dizendo do seu intento de publicar na Revue
Sud-Américaine-Allemande um artigo sobre a arte poética de
Coelho Neto, e tudo isso somente por admiração e idealismo,

309
longe do menor interesse, sem nenhum propósito egoísta, para
que Coelho Neto se tornasse conhecido entre os alemães. Já
traduzira Rei Negro, Inverno em Paris e Água de Juventa, mas
esbarrava em dificuldades imensas. O papel encarecera extraordi-
nariamente; os salários dos operários gráficos assumiam propor-
ções astronômicas, dada a situação de esgotamento em que se
encontrava o país. Para editar agora um livro os autores tinham
de contribuir sempre com uma parte das despesas, que depois
lhes seria devolvida. Se Coelho Neto quisesse entrar com 800
mil réis ou um conto as traduções poderiam aparecer imediata-
mente. Hesitara algum tanto em fazer essa proposta, mas achava
que se tratava de uma soma pequena para um escritor do Brasil,
“país muito feliz”. O dinheiro lhe voltaria às mãos em face do
lucro que o livro pudesse dar. Era um negócio de confiança.
A versão alemã do Rei Negro sob o título Schwartz Koenig só
apareceu, no entanto, em 1922. Daí a dois anos Martin Brussot
publicou Die Tapera, versão alemã da novela A Tapera, na cole-
tânea Das Buck der Liebe, Berlim, Inverno em Flor e Água de
Juventa não chegaram a ser publicadas.
Giulio Mediei, da Itália, escrevia a Coelho Neto a 18 de
dezembro de 1919, participando-lhe que por feliz coincidência
pudera comprar um exemplar do romance Turbilhão e estava
verdadeiramente encantado. Formulara o projeto de traduzi-lo
para o italiano e pedia-lhe permissão para isso. A casa editora
estabelecia como condição básica o autor renunciar a qualquer
direito.
Mais tarde, porém, a 19 de janeiro de 1921, mostra que
havia compreendido melhor o problema da vulgarização de um
escritor brasileiro na Europa. Lera Treva, Rei Bárbaro (sic),
Miragem, Sertão, e julgava que estes, refletindo o esplendor de
um país tropical, deviam ser traduzidos antes de Turbilhão,
o Rei Bárbaro (sic) em primeiro lugar.
E agora, depois de uma carta a Stanislas Pazurkiewicz, de
Varsóvia, pedindo os endereços de Bilac e Graça Aranha, em

310
19 de outubro de 1931, quando ambos já haviam falecido,
esta, do jovem sueco Hialmar Lind, estudante em Copenhague,
16-5-1921, e escrita em castelhano. Dizia ter lido num periódico
que Coelho Neto era o maior poeta do Brasil e queria saber-lhe
o nome do melhor livro, quanto custava e onde podería adqui-
ri-lo. Num tom de verdadeiro entusiasmo escrevia: “ O senhor é
filho da raça orgulhosa dos índios. Nós somos amigos dessa
antiga e formosíssima raça. Li algumas notícias sôbre os inkas
que por desgraça não existem mais”. Pedia a Coelho Neto algu-
mas palavras sôbre o futuro de sua raça, para chegar a esta
indagação realmente desconcertante: por que não havia uma
universidade dos índios?
Chegamos aqui ao fim da nossa pesquisa e o que concluí-
mos dessas e outras cartas, cujo conteúdo, pelos motivos já ex-
postos, não resumimos nem comentamos, é que se alguém insiste
na idéia de negar importância a Coelho Neto na literatura brasi-
leira, não poderá negar, de maneira alguma, o extraordinário
prestígio que ele desfrutou em nossas letras nas duas primeiras
décadas do século. O romancista do Rei Negro estava por assim
dizer no centro de nossa vida literária. Todos o procuravam
como uma das figuras mais influentes, cujo apoio e intervenção
se tornavam sempre valiosos, quando não decisivos, desde os
poderosos, como um Dantas Barreto, a um literatelho de pro-
víncia. Todos lhe discutiam e lhe admiravam a obra. Era, ao
mesmo tempo, talvez o único escritor brasileiro que conseguira
interessar os europeus e os confrades hispano-americanos, na
época. Ao lado das cartas de Gahisto, Lebesgue, George Nor-
mandy, encontramos as de um Manuel Gálvez, um Javier de
Viana, de diretores de jornais argentinos, pedindo colaboração
e tratando de assuntos semelhantes. Por tudo merecia, pois, essa
correspondência ser divulgada nos seus trechos principais e
menos íntimos, como acabamos de fazer. Ela oferece um dossier
de indiscutível interesse para a história da vida literária no
Brasil.

311
Camilo e Monteiro Lobato

A influência de Camilo Castelo Branco em Monteiro Lo-


bato é uma tema magnífico para um ensaio de crítica estilística.
Não iremos abordá-lo aqui, que esse gênero constitui proprie-
dade de certos senhores, e não queremos incorrer nos riscos de
quem penetra em terreno alheio. Apenas algumas notações des-
pretensiosas, à margem. Ledor constante de Camilo e admiran-
do-o extraordinariamente, como provam as cartas a Godofre-
do Rangel, em A Barca de Gleyre, Lobato adotava, com freqüên-
cia, não somente o vocabulário, mas também a sintaxe cami-
liana. Lembro-me de uma vez em que conversando comigo e
aludindo a certa crítica que lhe fizera Osório Duque-Estrada,
justificou-se dizendo: — “ Osório era um sujeito estreito, eu es-
crevi assim estribado em Camilo e estava muito certo”.
Numa das cartas a Godofredo Rangel, o autor de Urupês
louva este início de “Maria Moisés”, uma das Novelas do Minho,
de Camilo, como exemplo da perícia com que este costumava
iniciar a narrativa: “O pegureiro contou as cabras à porta do
curral, e dando pela falta de uma desatou a chorar com a maior
boca e bulha que podia fazer. Tinha medo de voltar ao monte,
porque se afirmava que a alma do defunto capitão-mor andava
penando na Angra da Cruz, onde aparecera o cadáver de um
estudante de Coimbra muitos anos antes” .
Agora, vejamos o início do conto “O Despique”, de Montei-
ro Lobato, publicado no número 86 da Revista do Brasil (feve-
reiro de 1923) e que, segundo nos parece, não foi reunido em li-
vro: “O carreiro deu volta ao campo à cata dos bois e só en-
controu três. Faltava o Chibante, boi malvado, cerqueiro até
ali. Em pilhando vedo de mourões combalidos, blaf, metia-se de
chifre entre os arames e varava mesmo com a idéia na que-
rencia. Bem o coração avisara que até o sono perdera iimagi-
nando aquilo”.
A lembrança da novela de Camilo se toma visível. A si-
tuação inicial das duas narrativas é a mesma, exposta de ma-
neira idêntica. Camilo prossegue, descrevendo o pegureiro trê-
mulo de medo, pela noite escura, à procura da cabra e conse-
guindo afinal a companhia do moleiro, o Tio Luís que vem au-
xiliá-lo e afugentar-lhe os receios. Eis que ouvem um gemido
e descobrem a Senhora Zefinha, com o corpo mergulhado na
água do Tâmega e os braços enrolados no esgalho de uma ár-
vore. Socorrem-na prontamente, mas a pobre criatura vem a
morrer.
No conto de Lobato o carreirinho sai a procurar o boi e
acaba por encontrá-lo. Mas quinze dias depois, ao voltar da
serra, ouve também um gemido, como o pegureiro de Camilo,
e dominando o espanto, pensando a princípio tratar-se do Ca-
apora, descobre num socavão o corpo de Labrego, o português
que o maltratara e a quem odiava. Presta-lhe socorro e ajudado
por outros viajantes leva-o para casa, onde o Labrego vem a
falecer. A aproximação de situações é pois muito sensível en-
tre as duas narrativas, mostrando que Lobato tinha a novela
camiliana na mente quando escreveu “ O Despique”.
Mas aqui trata-se mais propriamente de reminiscências do
que de influência, duas coisas no fundo diferentes. Julgamos
não exagerar, no entanto, se dissermos que Camilo contribuiu
para que Lobato encarasse o caipira, o caboclo, sob um aspecto
essencialmente realista, despindo-o do idealismo e do pitoresco
com que o vinham enfeitando os nossos ficcionistas. É que pa-
ra Camilo, ao contrário do que se verificava na novelística ro-
mântica em Portugal, cuja expressão mais característica seria
a obra de Júlio Dinis, o homem do campo também se apresen-
tava rude, estúpido, sem nenhuma poesia.
No volume Mosaico e Silva de Curiosidades Históricas, Li-
terárias e Biográficas (Porto, 1868) Camilo tem uma página
muito concludente sobre o que acabamos de afirmar. Intitula-
se “Inocência das Aldeias” e começa nestes termos: “Meus ami-

313
gos, não procurem nas aldeias do Minho as alegrias da inocên-
cia, as cândidas pastoras e os puros amores do camponês, que
ama e canta, casa e reproduz-se, envelhece e morre, sempre à
sombra de suas árvores, em cuja ramaria as gerações dos pin-
tassilgos lhe cantaram o nascer e o amor, parecendo chorá-lo ao
morrer. Ai, meus amigos, as aldeias do Minho! Como aquilo é
torpe e melancólico, como tudo degenerou para nojos e tris-
tezas”.
E depois de mostrar como o conhecimento direto do am-
biente aldeão lhe desmentiu as églogas de Sá de Miranda, Brás
Garcia e outros endeusadores do camponês, conclui: “Ai, meus
amigos, se fordes ao Minho, subi ao pico das montanhas, be-
bei a sorvo aquele ar balsámico, vede-me que céu aquele, que
azulado escabelo onde pousam os pés do Senhor! Não vades
às aldeias que alvejam por entre o cerrado da floresta; que aí,
tirante algum lombo de porco, tudo mais é esquálido e re-
pulsivo”.
Pois tal não foi a visão que Lobato teve do nosso ambiente
rural; a natureza bela em contraste com a fealdade do homem
que nela vive.
O conto “Bucólica” é muito significativo nesse sentido e pa-
rece até inspirado na referida página de Camilo. Lobato pinta
com matizes poéticos a paisagem da roça: “A natureza orvalha-
da tem a frescura de uma criancinha ao deixar o banho. Inda
há rolos de cerração vadia nas grotas. O sol já nato e ela com
tanta preguiça de recolher os véus de neblina”. Uma verdadei-
ra mancha bucólica. “Que ar! A gente das cidades, afeita a sor-
ver um indecoroso gás feito de pó em suspensão num misto de
mau azoto e pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é sentir
os pulmões borbulhantes deste fluido vital em estado de virgin-
dade”.
E neste ambiente encantador, o homem é o Urunduva, dis-
posto a vender a paineira ao Chico Bastião para que ele derru-
be e colha a paina. “Não vê que é mais fácil derrubar”. O es-

314
critor foge dali horrorizado, considerando com ironia: “O Urun-
duva está classificado no gênero homo. Goza de direitos. É rei
da criação e dizem que feito à imagem e semelhança de Deus”.
Mais adiante passa pelo sítio de Maria Veva, criatura medo-
nha, “beiço rachado, olhar mau”. E vem a saber da perversi-
dade com que ela deixou o filho morrer de sede.
Foi durante sua permanência na Fazenda Buquira — se-
gundo depreendemos das cartas a Godofredo Rangel — que
Lobato mais se entregou à leitura de Camilo. Chegava mesmo
a manifestar o desejo de vender a fazenda e ir a Portugal, per-
correr as terras do Minho, a fim de contemplar em carne e osso
os tipos da comparsaria camiliana. Assim, embora sua visão
pessimista do caboclo tenha resultado de uma experiência pes-
soal e muito íntima, não será exagerado supor-se que a sugestão
dos personagens de Camilo o levasse a carregar nas tintas. O
Jeca Tatu seria, pois, um parente remoto daqueles aldeãos do
Minho, onde, “tirante o lombo de porco, tudo mais é esquálido
e repulsivo”.

Um Livro Esquecido

O Por que me Ufano de meu País, do Conde de Afonso


Celso, publicado em 1900, quando começávamos a viver uma
época de euforia, era um livro essencialmente idealista, che-
gando a criar a expressão me ufanismo para designar um sen-
timento de otimismo exagerado com relação a tudo quanto é
nosso.
Daí a três lustros, mudando o panorama do mundo, o que
não podia deixar de refletir em nós, devia-se esperar uma ré-
plica a esse livro. E foi Afrânio Peixoto quem a deu, em 1916,
com Minha T erra e Minha Gente, obra de cunho didático e que

315
provocou muitas discussões na imprensa. Não se tinha mesmo
lembrança de um livro escolar que houvesse suscitado tanto
rumor. Numa nota de introdução Afrânio Peixoto explicava
o seu propósito. Os brasileiros costumavam oscilar, geralmen-
te, entre um absoluto pessimismo e um otimismo ridículo (alu-
são clara ao livrinho de Afonso Celso). Enquanto, desde a car-
ta de Caminha, a terra é louvada em todos os tons, como a
mais rica e a mais bela, não falta quem viva a remoer o estri-
bilho de que “o país está na beira do abismo”. “Sempre anda-
mos entre os macambúzios e os gabolas”. Ora, nem o lirismo
nem as lamúrias produzem coisa alguma. Julgou pois o autor
“novidade útil, escrever para as crianças, pequenas e grandes
de sua terra, um livro sincero, sem reserva nem veemência, no
qual procurasse sobre os problemas essenciais da nossa nacio-
nalidade dizer-lhes verdades necessárias”. Não julga outro ca-
minho mais adequado para a educação cívica do que este, o
“da verdade honestamente procurada e dita com franqueza”.
Ao idealismo de Afonso Celso, Afrânio Peixoto procura-
va opor uma visão realista do Brasil. Acreditamos, no entanto,
não errar atribuindo à História do Brasil, de João Ribeiro (tam-
bém escrita como um livro didático, mas superando o gênero),
a fonte de inspiração de Minha Terra e Minha Gente. Pois
João Ribeiro já tivera a coragem de dizer naquele compêndio
certas verdades sobre a nossa história, que Afrânio Peixoto, com
muita oportunidade, repetia, citando, aliás em mais de uma
passagem, o próprio João Ribeiro.
Minha Terra e Minha Gente era dividida em três partes.
Na primeira, “As Origens”, ia buscar as nossas raízes mais
remotas na civilização heleno-cristã, que tivera continuidade em
Portugal. E aqui exaltava os portugueses, os “nossos maiores”,
dedicando um capítulo a Camões, “a voz de um povo”. Na se-
gunda parte, “A Formação Nacional”, tratava do descobrimen-
to, a posse da terra, os primitivos donos, o trabalho escravo e
o trabalho livre, franquias de comércio e indústria, colabora-

316
ção de estrangeiros. Era natural que em 1916 considerasse o
negro “uma raça inferior”, embora ressalvando, melhor que o
indígena. Quanto ao trabalho livre criticava a política imigra-
tória, tal como vinha sendo posta em prática, declarando: “Cum-
pre não esquecer que, além dos elementos materiais de pro-
gresso das novas colônias, essencial é que demos aos colonos
vantagens que compensem a adoção da nossa nacionalidade,
tornada obrigatória a língua portuguesa em todos os atos pú-
blicos que lhes interessem e dadas aos filhos deles escolas idô-
neas da língua vernácula”.
A terceira parte, “Da Emancipação Política para a Eco-
nomia”, era a mais interessante, sobretudo pelo fato de reves-
tir-se de um aspecto mais polêmico. No reinado de Dom Pe-
dro II apontava muitos acertos, mas também erros. Nenhuma
exaltação patriótica da Guerra do Paraguai. Nenhuma descrição
de batalhas e de feitos heróicos. Dedica-lhe apenas algumas li-
nhas, dizendo que essa luta “na qual três nações grandes ven-
ceram, e muito lhes custou, uma pequena, aniquilando-a de vez,
não nos envergonha, porque fomos provocados por um déspota,
que se preparara com tempo, bom armamento e soldados faná-
ticos para nos assaltar”, não seria certamente motivo de orgu-
lho. A provação servira para experimentar os brasileiros. Re-
ferindo-se a Dom Pedro II diz que o “poder pessoal era e é
tudo no país”. Vê o monarca mais preocupado com minúcias
administrativas, em que se revelava uma “honestidade escrupu-
losa” do que com o destino do país, que ia ao Deus-dará. “ Os
homens não o ajudavam, é certo, mas ele não sabia escolher
os poucos que havia”. Com o mesmo realismo encara o autor
a República, reconhecendo-lhe a superioridade teórica e as de-
cepções práticas. E depois de denunciar várias dessas decepções,
conclui pela certeza de que só a instrução, a educação salvará
o Brasil.
O livro, como era de esperar-se, foi muito elogiado por
uns e atacado por outros. Entre os que o elogiaram: João do

317
Rio, Mário Brant, Leão Veloso Filho, João de Barros. Entre os
que o atacaram, Antonio Torres. E o certo é que não podemos
deixar de considerar Afrânio Peixoto, nessa obra, como um re-
moto precursor do Paulo Prado do Retrato do Brasil.

Boêmia e Profissionalismo

Já se disse que foi o romance de Murger, Cenas da Vida


Boêmia, que se vulgarizando no Brasil nos meados do século
passado concorreu para a implantação, entre nós, da boêmia li-
terária. De fato, os chamados boêmios podiam sofrer a suges-
tão dos heróis de Murger e procurar imitá-los, mas a verdade
é que a boêmia se tornou aqui uma conseqüência direta das
novas condições de vida que se criaram para os intelectuais,
depois de 1875, mais ou menos. Contribuiu poderosamente pa-
ra isso a fundação da Gazeta de Notícias, no Rio. Antes o ca-
minho de todo intelectual era fazer um curso superior, de pre-
ferência o de Direito. O canudo de bacharel abria o caminho
seguro do êxito social. Quase todos os românticos procuraram
formar-se em Direito. Era na Advocacia, na Magistratura, no
Magistério, na Política ou na alta Burocracia que eles iriam
buscar um meio de vida. Da Literatura ninguém esperava pro-
ventos financeiros. Mas com o desenvolvimento da imprensa e
do lugar que passaram a dar à Literatura, jornais como a Ga-
zeta de Notícias e mais tarde A Cidade do Rio, Novidades e
em São Paulo o Diário Mercantil e A Província de São Paulo,
os intelectuais começaram a encontrar no Jornalismo uma va-
lorização econômica para as suas atividades. Ao contrário do
que hoje imaginamos, os jornais nas duas últimas décadas do
século pagavam muito bem a colaboração literária. Por volta de
1888, Machado de Assis ganhava cinqüenta mil réis pela pu-

318
blicação de um conto; Artur Azevedo quinze a vinte mil por
uma crônica. Cinqüenta mil réis em 1888 quer dizer quatro
contos em nossos dias. Evidentemente, nem todos ganhavam
nessa proporção, mas a imprensa sempre facultava algum re-
curso aos intelectuais que outrora jamais pensavam em fazer
dinheiro com as letras.
Ora, isso veio concorrer para que muitos escritores desis-
tissem de estudar Direito ou Medicina, acenados pela possibi-
lidade de viverem do jornalismo profissional. Foi o que acon-
teceu com Olavo Bilac e Coelho Neto. Ambos não chegaram a
concluir um curso superior, certamente porque julgaram ad-
missível a carreira das letras sem o canudo de bacharel, no
momento em que a imprensa ou bem ou mal lhes facultava re-
cursos financeiros. Artur e Aluísio Azevedo, vindos para a
Corte, nem cogitam de estudar Direito: passam logo a viver da
atividade jornalística. E um Raul Pompéia, conseguindo bacha-
relar-se em Recife, de regresso ao Rio, em lugar de abrir escri-
tório de advocacia ou de obter um lugar de promotor, põe-se
a fazer jornalismo profissional.
Então, ao que assistimos é o seguinte: o jornalismo, favo-
recendo os intelectuais, dando-lhes trabalho, vem contribuir, ao
mesmo tempo, de maneira decisiva para a vida irregular a que
eles se entregam. Bilac, Pardal Mallet e tantos outros, poden-
do fazer nas mesas dos cafés as crônicas que lhes garantiam a
subsistência diária, acabavam passando o resto do tempo ali, a
bebericar e conversar. No Romantismo, José de Alencar, Ma-
nuel Antônio de Almeida, ou Joaquim Manuel de Macedo, es-
critor que não tivesse uma profissão fora das letras, não podia
viver. De 1880 em diante, o Jornalismo possibilita ao escritor
não morrer de fome, consumindo as horas nas mesas dos ba-
res e dos cafés. Mas acontece que essa vida é precária. Embo-
ra remunerando bem a colaboração literária, como já vimos,
o jornal somente em alguns casos propiciava recursos para uma

319
existência folgada. Na maioria dos casos, os escritores tinham
de lutar com dificuldades e fazer acrobacias para se manterem
com o produto da atividade jornalística. Seduzidos, no entan-
to, por um teor de vida em que não precisavam constranger as
tendências naturais do espírito preferiam essa precariedade ao
aburguesamento de uma profissão liberal. A boêmia resultou,
assim, paradoxalmente, da valorização do trabalho intelectual
nas duas últimas décadas do século, entre nós. Mas enquanto
muitos “boêmios”, como Olavo Bilac, Coelho Neto e Aluísio
Azevedo pautavam esse trabalho num ritmo regular, dentro da
própria irregularidade da boêmia, outros se abandonavam in-
teiramente a essa irregularidade, dispersando-se nas rodas de
café e inutilizando-se na alcoolatria.

O Caipira no Teatro Brasileiro

A reação nacionalista, que começou a verificar-se na li-


teratura brasileira em 1910, mais ou menos, e atingiu o ápi-
ce por volta de 1920, tendia para um conceito idealista da vida
rural, que implicava uma supervalorização do caipira, como
protótipo das virtudes brasileiras, em contraste com os vícios
e as perversões do cosmopolitismo urbano.
Na medida em que os contistas e romancistas escreviam
histórias, mostrando as grandes qualidades do caipira (o que
iria provocar a réplica realista do Jeca Tatu, digamos de pas-
sagem), e que os poetas, como Catulo Cearense, cantavam um
caboclo lírico, desafiando a sabença da gente da cidade, era
natural que os teatrólogos se sentissem inclinados a fazer viver
esse tipo no palco. Ele é falso no romance, no canto, na poesia,
não podería deixar de sê-lo também na cena.
O sertanejo, personagem freqüente em nossa novelística no

320
século passado, raramente aparecia no teatro até a época a que
nos referíamos. Mas já um prenúncio dessa reação nacionalista
temos em 1897, na comédia-burleta de Artur Azevedo, Capital
Federal, representada com o maior êxito. Seo Euzébio, fazen-
deiro em São João do Sabará, vem com a família ao Rio para
conhecer as delícias da metrópole. Mas aqui só encontra decep-
ções, e resolvendo voltar o mais depressa para a roça, exclama:
— “A vida da capitá não se fez para nós. . . E que tem
isso?. . . É na roça, é no campo, é no sertão, é na lavoura que
está a vida e o progresso da nossa querida Pátria”.
Os comediógrafos, que depois de 1910 iam introduzir o
caipirismo nacionalista em nosso teatro, não fizeram mais do
que tomar essa deixa. Ora, se no campo é que estava o pro-
gresso do Brasil, urgia, naturalmente, mostrar o homem do cam-
po dotado de melhores predicados do que o da cidade.
Viriato Corrêa foi uma das principais figuras desse mo-
vimento, com as suas comédias e burletas, em que aparecia o
ambiente do Nordeste, cujo pitoresco já se prestava por si mes-
mo aos efeitos cênicos. Bailaricos, cantares, folguedos popula-
res, no meio dos quais surgia o vilão, geralmente moço da ci-
dade, disputando a linda sertaneja, que acabava se inclinando
pela alma simples de um caboclo — eis, de maneira geral, o as-
sunto de muitas dessas peças que ofereciam ao público uma
imagem decorativa da vida rural. A Sertaneja, com música de
Chiquinha Gonzaga, foi um sucesso: o mesmo se deu com A
Juriti e A Menjerona. Em A Juriti, Viriato Corrêa criou uma
espécie de Quasímodo sertanejo, um corcundinha, flauteando
um amor infeliz, que enternecia o público.
Não tardou esse nacionalismo a ser explorado por teatró-
logos aqui no sul, principalmente de São Paulo. Em 1917, Go-
mes Cardim arrendava a Companhia Dramática de São Paulo,
com o objetivo de proporcionar ao público bons espetáculos,
em que predominassem autores nacionais — dizia o progra-
ma. O maior êxito da temporada foi o “dramazinho ingênuo”,

321
h Caipirinha, do conhecido educador Cesário Mota. Uma peça
que não resistia a uma crítica severa — dizia a Revista do
fosil (maio-agosto de 1917), considerando, no entanto: era
tãogrande a sede de nacionalismo do nosso público, tão gran-
deo cansaço em que o teatro estrangeiro o prostrara que essa
Peça “com todas as suas máculas, com todas as velharias de es-
tilo e de ação”, lhe dera um prazer imenso, e enquanto as de
fora, traçadas com todos os primores da arte, apenas figura-
vamnos cartazes duas ou três vezes, ela se eternizava na cena,
aplaudida por numerosa assistência.
Do mesmo ano é o extraordinário êxito da comédia Flores
■■■:Sombra, de Cláudio de Sousa, na interpretação de Leopoldo
Próes, que segundo dizem enxertou muito do seu espírito no
texto. A peça tinha uns visos de sátira aos fazendeiros ricos
de São Paulo, habituados a mandar educar os filhos em Paris.
0 rapaz, de volta da Europa, trazia um criado francês e pu-
na a fazenda em polvorosa com as suas maluquices, deixan-
do o pai desesperado. Flores de Sombra era a heroína, uma
Provincianazinha delicada, fora do bafejo cosmopolita das gran-
ds cidades, cujo coração se decidia, finalmente, por um jovem
Provinciano, antítese do estróina educado em Paris.
A comédia pretendia insinuar a superioridade dos que per-
manecem junto à terra sobre os que vão buscar instrução na
Püropa e voltam deformados pelo espírito estrangeiro. Mas a
I(féia, no caso, pecava pela base, porque o filho do fazendeiro,
Papel desempenhado por Leopoldo Fróes, era um fátuo, que
Paris só conhecia os cabarés e as mulheres, não podendo en-
ternar assim os inconvenientes da educação européia.
Mais ou menos nessa época o autor de Flores de Sombra,
Pronunciando uma conferência no Instituto Histórico sobre
ú Primeiro Teatrólogo Brasileiro” iniciava-a criticando seve-
temente o hábito de se abusar da terminologia francesa no Bra-
Assunto idêntico ao que ia constituir um dos artigos de
'fonteiro Lobato, incluído depois no livro Idéias de Jeca Tatu.

322
Com a aproximação do centenário da Independência cres-
ce a vaga de sertanejismo nacionalista. Outros títulos, indican-
do bem a natureza das peças, podemos assinalar. A Brasileiri-
nha, O Marroeiro, teatralização do conhecido poema de Catu-
lo Cearense, Nhá Moça, Flor do Sertão, Cenas da Roça. E em
maio de 1920, Oduvaldo Viana marca uma data do teatro bra-
sileiro desse gênero, com a primeira representação, no Trianon,
da comédia Terra Natal. Casa cheia. Grande interesse por par-
te do público. Numa frisa via-se o Presidente Epitácio Pessoa
ao lado do Prefeito do Distrito Federal. Ao subir o pano, a
mise-en-scène, acentuadamente realista, concorria para fazer o
público sentir melhor o ambiente de uma velha fazenda brasi-
leira. O tema: as vantagens do nacional sobre o estrangeiro.
Mas apresentado de que maneira? Pelos erros e os fracassos
de um rapaz, que tendo estudado engenharia nos Estados Uni-
dos pretende reformar a fazenda, empregando as técnicas avan-
çadas aprendidas no estrangeiro. O autor procura fazer o per-
sonagem antipático, materialão e frio nas suas idéias progres-
sistas. E em certa altura, a máquina que ele não conseguira
consertar é posta em movimento pela perícia de um caboclo
ignorante da roça. Quando o negro Benedito anunciou no pal-
co essa vitória, mostrando o quinau dado na engenharia ame-
ricana por um “produto nacional legítimo”, o Presidente Epi-
tácio Pessoa prorrompeu em palmas, no que foi secundado pe-
la assistência. Encontramos em jornais da época diversas re-
ferências ao fato. E recordando-o, no seu livrinho Exumação,
Modesto de Abreu informa-nos de que, desde esse dia, a aludi-
da cena passou a ser invariavelmente saudada por uma salva
de palmas.
Não precisaremos, acrescentar o que havia de pueril no
sentido nacionalista desse episódio. Pois o amor às coisas nos-
sas pode levar-nos a admitir a superioridade de um caipira,
agindo por simples empirismo, sobre o que ensinam as esco-
las de Engenharia, em países como os Estados Unidos? E só o

323
clima da época explica esse gênero de exaltação do “produto
nacioná”.
Mas não tardou o protesto por parte de alguns escritores
e críticos teatrais. Na Folha a 11 de maio, na rubrica Crónica
Teatral, Mário Simonsen escrevia: “É uma idéia muito triste do
Nacionalismo essa que faz crer na superioridade do carro de
boi sobre o automóvel e da enxada sobre os monocul tores”, de-
clarando não acreditar mesmo fosse ela adotada pelo Ministério
da Agricultura. “Que nós, recebendo o influxo das idéias de
povos mais adiantados, voltemos a adotar a dos caboclos, não
constituirá isso nenhuma prova do valor nacional. Saibamos
receber o estrangeiro com o que tem de bom e superior a nós,
façamos dele uma adaptação conveniente ao nosso desenvolvi-
mento, aproveitemos as suas energias, transformemos para o
nosso uso e conforme as necessidades as suas idéias e os seus
costumes e então teremos criado um nacionalismo forte, capaz
de crescer e lutar com os mais fortes. Dele há de surgir uma
grande arte de caráter geral”.
Esse folhetim suscitou o revide de Danton Vampré, tea-
trólogo paulista, autor de Uma Festa na Freguesia do Ó, um
dos que exploravam o veio do Regionalismo rústico. Ao que
treplicou Mário Simonsen com outro folhetim, no qual consi-
derava os caipiras das chamadas peças regionais verdadeiros
bonecos a imitar a gente da cidade, estropiando-lhe as expres-
sões, sem uma graça autêntica.
O interessante é que o entusiasmo de Epitácio Pessoa pela
comédia de Oduvaldo Viana, e a versão veiculada de ter ele
declarado que preferiu assistir a uma peça nacional a uma es-
trangeira, levou-o a ser convidado, logo depois, para o Carlos
Gomes, onde se representava um original brasileiro. Mas li-
mitou-se a mandar um secretário em seu lugar. Nessa noite sen-
tiu-se melhor numa frisa do Municipal, aplaudindo a compa-
nhia lírica.

324
Veríssimo e Marinetti

O primeiro escritor a tratar de Marinetti, no Brasil, foi


José Veríssimo, num artigo n’O Imparcial, de 5 de setembro
de 1913 — eis uma coisa que quase ninguém, decerto, saberá.
Iniciando o movimento futurista na Itália, Marinetti publicou
num grosso volume de quatrocentas e vinte e oito páginas /
Poeti Futuristi, numa proclamação aos jovens italianos, na qual
lhes apresentava o “Manifesto Técnico da Literatura Futuris-
ta”, acompanhado de uma antologia. Esse volume foi ter às
mãos de José Veríssimo por “intermédio de dois distintos ca-
valheiros de São Paulo”, como nos informa o crítico. É bem
conhecida a austeridade que caracteriza o autor de Estudos
de Literatura Brasileira. Não sendo um espírito estreito, ao
contrário, muito esclarecido nos julgamentos, refugava ante
tudo que lhe parecia busca sincera da originalidade e lhe des-
pertava a suspeita de mistificação. E foi essa rigidez, essa es-
pécie de receio de deixar-se empulhar que o pôs em guarda
contra os simbolistas, encarando-os com má vontade e não per-
cebendo a verdadeira revolução poética que eles vinham rea-
lizar.
Por aí se pode logo concluir a maneira hostil pela qual
veio ele a receber o manifesto futurista de Marinetti. “Nesta
rebusca sôfrega, doentia mesmo, do novo — escrevia — che-
gou-se a toda sorte de extravagância, algumas já estudadas e clas-
sificadas em forma de vesania. A procura da novidade a todo
o transe, de originalidade a todo custo devia, forçosamente, le-
var ao desgarramento em matéria de literatura e de arte. Daí
também essa multiplicidade de escolas, grupos, carrilhos, par-
cerias em ismo, essa corrida doida na disputa do prêmio de
épater le bourgeois, que aliás não se assombra de nada. São
simbolistas deliqíiescentes, decadistas, nefelibatas, naturistas,
egotistas, cubistas, veristas, afora os que me escapam. Uns são

325
capazes de talento desnorteado, outros, meros ralés, engenhos
gorados mas presumidos, e ainda outros, simples pândegos, que
apenas quereríam divertir-se”. E prossegue, no mesmo tom rís-
pido considerando ainda maior o número dos sandeus, sem-
pre prontos a acompanhar os últimos cartazes somente pelo de-
sejo de dar na vista. Tais seriam, por via de regra, os que cons-
tituíam esses movimentos de radicalismo na Europa. E frisa
na Europa, porque na América não haviam chegado jamais a
ser movimentos merecedores de qualquer atenção: resumiam-
se, na maioria dos casos, em simples macaqueação. Em 1913,
Veríssimo ainda continuava irredutível no seu juízo com rela-
ção aos simbolistas avançados, os decadistas e os nefelibatas,
embora tivesse reconhecido o mérito de um Alphonsus de Gui-
maraens.
E dessa catilinária passa aos futuristas: considera-os ir-
mãos gêmeos dos cubistas franceses, um produto do nacionalis-
mo, do jacobinismo patriótico que se manifestara últimamente
na Itália. Desconfiava da sinceridade das manifestações nacio-
nalistas muito berradas, como nunca se deixara levar pela gri-
ta e os pregões de novidades, nem tentar “pelo chamariz dos
bufarinheiros mais ou menos loquazes de originalidades e exo-
tismos”. A divisa grega de Merimée e que era a do nosso Ma-
chado de Assis, “lembra-te de desconfiar”, parecia-lhe ditada
pela própria sabedoria. Com essa precaução passava a exami-
nar o livro recebido — revelando a perplexidade ante frases
como aquela de que a guerra é a única higiene do mundo e os
pacifistas uns pobres diabos “encovados no seu ridículo palácio
de Haia” — para concluir que nesse arranque dos futuristas
italianos alguma coisa, no terreno estético, poderia interessar-
nos “como sintoma do que os positivistas chamam de anarquia
mental”. Transcreve então alguns itens do Manifesto, dizendo
que preferia deixar o comentário à pachorra do leitor, se este
achasse que valia a pena. Observava, no entanto: se Marinetti
prescrevia a destruição da sintaxe, o emprego do verbo somen-

326
te no infinitivo, supressão do adjetivo, do advérbio e da pontua-
ção, os poemas da antologia futurista não obedeciam à risca
esses preceitos. E arrematava com esta interrogação: “Estamos
diante de um fenômeno daquela degenerescência já estudada por
Nordau ou de uma formidável falácia?”

Bilac e Juó Bananére

Para que Olavo Bilac, em 1915, viesse dar início na Ca-


pital de São Paulo à sua campanha cívica, teriam concorrido
dois motivos: o grande surto de progresso que então se acen-
tuava, não somente ali mas em todo estado, e o desenvolvimen-
to intelectual que corria paralelo com esse progresso. São Pau-
lo tornara-se o melhor lugar, de onde alguém, erguendo a voz,
podería ser ouvido em todo o Brasil. Influía ainda nesse senti-
do o prestígio político do estado, sob o governo do Conselheiro
Rodrigues Alves, dentro de dois anos reeleito Presidente da
República. E estavam bem vivas as ressonâncias da campanha
civilista, de que São Paulo fora um dos redutos mais poderosos.
Eram freqüentes, na época, as visitas de escritores do Rio
à Capital bandeirante, onde encontravam o mais vivo acolhi-
mento, falando para um público seleto e entusiástico, quando
faziam conferências ou davam recitais de poesia. A Sociedade
de Cultura Artística, tendo à frente Luís Silveira, Pinheiro Jú-
nior e o jovem poeta Nuto Sant’Ana, que vinham insuflando
extraordinariamente a atmosfera intelectual, convidava-os, não
raro, para realizarem palestras, sempre concorridas. Criara-se
ao mesmo tempo, a praxe da Faculdade de Direito recepcioná-
los. Isso acontecera com Emílio de Meneses, cujas visitas a São
Paulo se repetiam, principalmente devido às suas relações com a
revista O Pirralho e o diretor da mesma, Oswald de Andrade.

327
Emílio escreveu um soneto, Non ducor, duco, inspirado no bra-
são de São Paulo, e dedicado a Washington Luís, então pre-
feito da cidade. Não faltou quem imaginasse o poeta fazeúdo-
se pagar bem caro pelos versos duros e enfáticos, Ninguém elo-
giara gratuitamente São Paulo. No mínimo Washington Luís te-
ria levado uma racada, idêntica às que Emílio de Meneses cos-
tumava dar nos amigos, na porta da Confeitaria Colombo. Mas
uma racada bem mais “profunda”.
A mesma acusação se fazia a João do Rio, quando ele, com
a sua proverbial elegância, desembarcando do noturno de luxo,
hospedava-se na Rôtisserie Sportman — então o melhor hotel
da cidade. Vinha buscar o preço dos artigos que escrevera,
exaltando o situacionismo paulista — diziam. No livro Na Ca-
ravana da Vida, Mário Guastini mostra-nos o escritor defenden-
do-se, muito ressentido, dessa pecha. Também João do Rio fora
recebido na Faculdade de Direito, no começo de 1915, produ-
zindo um discurso, “Oração à Mocidade”, que se encontra no
livro Sésamo. Nele concitara os moços a um movimento de re-
generação nacional, na hora crítica que atravessava o mundo
em guerra. O discurso terminava com estas palavras: “Eu creio
em vós, roseiral do mundo! Eu creio em vós, esperança gene-
rosa dos povos! Eu creio em vós, mocidade, único deus eterna-
mente bom”. Mário Guastini, no livro citado, reivindica, aliás,
para João do Rio a prioridade na campanha cívica, dizendo que
Bilac ao iniciar sua pregação à juventude já encontrara o ter-
reno preparado.
A verdade é que a visita do poeta a São Paulo, em outu-
bro de 1915, se fizera como uma decorrência dessas constantes
peregrinações de escritores do Rio à Capital bandeirante. Lo-
go depois dele, ali chegaria também Alberto de Oliveira, para
dizer verso e ser muito aclamado. No cáso de Bilac pode-se
ainda falar em intercâmbio literário entre as duas capitais. Pou-
co antes da sua visita, embarcara para o Rio Amadeu Amaral,
que se viu ali cercado das mesmas efusões de que eram alvo os

328
poetas e escritores federais em São Paulo. Ofereceram-lhe um
grande banquete, com cardápio impresso, na Rôtisserie Rio
Branco, encontrando-se presentes, entre outros, Bilac, Olegário
Mariano, Humberto de Campos, Alcides Maya, Bastos Tigre,
Ildefonso Falcão, Lindolfo Xavier, Luís Edmundo. No dia se-
guinte, outro grupo de escritores leva-o para almoçar em Ni-
terói, onde à sobremesa Hermes Fontes o saúda com um sone-
to de que reproduzimos apenas o primeiro quarteto:

São Paulo não é só Pátria dos Bandeirantes


Berço da Independência e terra do Café
São Paulo é mais; São Paulo é terra de gigantes
que deitados são mais do que muita gente em pé.

Amadeu Amaral fez uma conferência no salão do Jornal


do Comércio, e segundo uma nota de O Pirralho foi tido como
o candidato mais cotado, numa próxima vaga, na Academia Bra-
sileira. Pedro Lessa, Inglês de Sousa, Bilac, Alberto de Oliveira,
Alcides Maya, Goulart de Andrade já haviam manifestado o
prazer com que o acolheriam na “ilustre companhia”. Amadeu
Amaral seria eleito realmente em 1919, mas para a vaga de Bi-
lac, que tanto desejava vê-lo na Academia.
Essa visita do poeta a São Paulo, nos primeiros dias de ou-
tubro, parecia ser, pois, uma retribuição da de Amadeu Ama-
ral. Aliás, veio ele acompanhado por Amadeu Amaral e convida-
da pela Sociedade de Cultura Artística para dizer versos, num
recital, no Salão Germânia. Foi como lhe anunciaram a chega-
da: uma visita de objetivos essencialmente literários. O poeta tra-
zia os originais do último livro, Tarde, versos da maturidade,
sem o sensualismo das Sarças de Fogo e da Via Láctea, e seria
um encanto ouvi-lo declamar com aquela sua magnífica dicção.
Há quatro anos não vinha a São Paulo, onde iniciara, sem con-
cluir, o curso de Direito, na juventude, e essa circunstância au-
mentara a efusão do acolhimento. Os jornais abriram grande

329
espaço para o fato e o recital no Salão Germânia foi não só
um acontecimento literário como também mundano. No audi-
tório salientava-se o elemento feminino.
O destaque com que O Pirralho publicava as notícias so-
bre Bilac, os termos altamente louvaminheiros em que elas
eram moldadas, dão-nos a impressão de que a revista, então a
mais importante de São Paulo, estava muito ligada ao poeta e
havia contribuído para a sua visita. Além disso, Amadeu Ama-
ral era gente da casa em O Pirralho, e Oswald de Andrade
parecia manter com Bilac as mesmas relações de amizade que
tinha com Emílio de Meneses. Entre as secções mais apreciadas
de O Pirralho figuravam As Cartas d’Abaxo o Piques, de Juó
Bananére, o admirável humorista, cujas crônicas em dialeto
ítalo-brasileiro deliciavam os leitores. Juó Bananére não deixou
escapar o assunto, e no número de outubro da revista lá encon-
tramos o tópico “A Vesta do Bilacco”, que aqui reproduzimos:

Quartaffera teve a nunciada vesta du Bilacco, princi-


pe dus poeta brasiliero, o Dante anazionalo. Uh!, ma-
mma mia, che sucesso! O saló stava xiigno, piore do
garnevale na Rua 15. Os lustre de gaz stava xiigno
di gente pindurada. Gada lustro apparicia um gaxo
di banana di gente.
Bilacco disse moltos suneto gotuba. Im publicamos
imbaxo uno insemplare.

Vinha, em seguida, a paródia de “Ouvir Estrelas”, uma das


peças mais interessantes de Juó Bananére.
No dia 8 de outubro, Bilac visita a Faculdade de Direito
e ali pronuncia o discurso inicial da campanha cívica. Foi uma
data na vida do país. A oração repercutiu profundamente de
norte a sul e o poeta se viu logo sagrado o apóstolo de um Bra-
sil novo, o Brasil que ele anunciava, conclamando os moços:

330
“Para o ideal!” A palavra Nacionalismo iria ter daí em diante
um largo curso. Em São Paulo fundava-se, dias depois, o Cen-
tro Nacionalista para congregar os jovens na cruzada regenera-
dora, e no Rio não tardaria a surgir a Liga Nacionalista. Mas
no meio de todo esse entusiasmo, dessa efervescência cívica, no
próprio O Pirralho, que publicava na capa uma expressiva ilus-
tração — Bilac, com a armadura de cavaleiro andante, partindo
para a jornada de salvação nacional — e onde Dolor de Brito,
um dos diretores, exaltava o apelo do poeta, lá vinha Juó Bana-
nére com uma paródia implacável. Paródia em que satirizava
aquele acontecimento tão sério, que acabava de empolgar a na-
ção. As Cartas d’Abaxo o Piques de 30 de outubro trazia o se-
guinte título: “A migna visita na Gademia di Comerço du Braiz
— O discursismo — O intusiasmo du pissoalo”.

Non é só o Bilacco che é ulecomo de lettera — io


també — dizia Juó Bananére — io també scrivo ver-
so, io també scrivo livro di poisies citi o Xiquigno
vai inditá i chi undio vá vê si non é miglore dus livro
du Bilacco. Intó pru causa che io só um nomo de te-
tera gotuba oa studanti da Gademia di Comerço du
Braiz mi furo acunvidá esta settimana p’a i avisitá a
rifirita Gademia. Intó io qui só un gamarada molto
amabile acceité o cunvito i onti fui lá. UH! che fes-
ta gotuba che fizero pr’a mim! No larghe da Sé te-
ña dois bondi speciali pr’a livá io cos studenti.

E depois de aludir a fatos verificados no percurso, pros-


seguia:

Fui aricibido pero gorpo indecente da Gademia che


me livaro nu saló nobile. Agora o direto pegó a pa-
lavria i mi buto un bunito discursimo inzima de mim,
mi xamano di una purço de cosa gotuba: inlustre,

331
barbiere, nutabile poete, giernalista di talentimo e pu-
litico fruente, ecc. ecc.
Disposa aparlô també un studenti i disposa aparlê io.

Infelizmente, não podemos transcrever na íntegra a oração


de Juó Bananére. Temos de resumi-la em parte. Aludiu ele à
importância da colonia italiana de São Paulo, tão numerosa
que, se quisesse, podería botar o Duque de Abruzzos no lugar
do “Rogrigo Alveros”. Mas em vez disso que faziam os italia-
nos? Vendiam banana, vinho falsificado, passavam nota falsa,
andavam roubando galinha e catando papel sujo pela rua. E Juó
Bananére interpela-os de maneira semelhante à que Bilac inter-
pelava os brasileiros, no Discurso da Faculdade de Direito:

I qualié a consequenza deste relaxamento? Ê qui os


italiano qui non manda nada, quanto puteva aguverná
ista porcheria! Quale é a consequenza da bidicação
de nostra forza e du nostro nazionalismo? Ê chei nas-
ce una grianza, a maia é intaliana, o paio é intaliano e
illo nasce é um garadi brasiliano. Isto non podi ingonti-
nuâ, no. A voiz chi sono giovani i forte cumpete afa-
zé a reacço, cumbaté vencê i dinominá isto tudo!

Mesmo que as intenções de Juó Bananére não fossem feri-


nas nem antipatrióticas e não pretendesse ele ridicularizar Bilac,
o riso despertado por essa paródia tão espirituosa não podia
deixar de comprometer a solenidade do apelo cívico do poeta.
Nenhuma indicação, porém, conseguimos sobre o efeito da sá-
tira. Nas coleções incompletas de O Pirralho na Biblioteca Na-
cional, depois desse número de 30 de outubro, encontramos o
de 27 de novembro, no qual lemos no canto esquerdo da pri-
meira página a seguinte nota, em destaque:
“Deixou de fazer parte desta revista o talentoso moço Ale-
xandre Marcondes Machado, que sob o interessante pseudôni-

332
j Biblioteca Universitária
UFSC

mo de Juó Bananére vinha, há muitos anos, com suas magnífi-


cas Cartas d’Abaxo o Piques, desopilando o fígado dos nossos
leitores. Ao ótimo companheiro, os nossos agradecimentos, com
os melhores votos de felicidade”.
Havería alguma relação entre essa retirada de Juó Banané-
re de O Pirralho e a paródia ao discurso de Bilac, poucos dias
antes? Não sabemos. Mas a coincidência leva-nos a supor que
sim.

Os “Últimos Boêmios”

Quando B. Lopes faleceu em 1916, O Paiz, noticiando o


fato, dizia ter sido o poeta o “último boêmio”, pois as condições
de vida na época já não comportavam a boêmia. Aludindo a
isso no meu livro A Vida Literária no Brasil — 1900, observei
que, na verdade, em 1916 a situação já mudara, não se justifi-
cando mais a espécie de desajustamento que levava os escrito-
res a se dispersarem pelas mesas de café. Contudo, ainda haviam
de sobreviver por algum tempo os “últimos boêmios”. Em crô-
nica publicada no Rio-Jornal, em 1922, e incluída no livro Vida
Fútil, Peregrino Júnior ressaltava a circunstância de nesse ano,
em que se comemora o centenário da Independência, subsistirem
boêmios no Rio. E apontava entre eles: Coelho Cavalcanti, Li-
ma Barreto e Raimundo Magalhães. Este último era o pai de
Magalhães Júnior e seu nome ficou injustamente esquecido. Os
que o conheceram — como o caricaturista e escritor Antônio
Vieira da Cunha, também já falecido — atribuem-lhe um gran-
de talento que, infelizmente, não pôde dar a devida medida do
seu valor. No entanto, a boêmia nunca o impediu, como no ca-
so de Lima Barreto, de trabalhar, exercendo o jornalismo mili-
tante e deixando muitas crônicas e críticas literárias capazes de

333
resistir à sobrevivência do livro. Publicou também um volume,
que merecia uma reedição, Vocabulário Popular, dedicado à
Academia Brasileira de Letras, e postumamente O Orgulho dos
Humildes, em 1945. Como crítico literário cabe-lhe um mérito:
o de ter sido o primeiro a saudar o aparecimento do Juca Mu-
lato, de Ménotti Del Picchia, e do Urupês, de Monteiro Lobato,
em artigos lúcidos, em que reconhecia a importância dessas
obras e o papel que iam desempenhar na literatura brasileira.
Espírito não-conformista e combativo, via-se, entretanto,
às vezes, por dever profissional — como acontece a muitos que
militam na tarimba jornalística — a aplaudir em notas ou no-
tícias, figurões do dia que lhe eram antipáticos. Mas não perdia
jamais a oportunidade de tirar um desforço desses constrangi-
mentos com que havia de sofrer a sua índole rebelde. Trabalhan-
do em O Jornal, fez a mando de Assis Chateaubriand uma ex-
celente nota louvando o livro Pela Verdade, em que Epitácio
Pessoa procurou defender-se dos ataques acirrados ao seu go-
verno. O ex-presidente da República ficou tão satisfeito com o
comentário que se dirigiu à redação de O Jornal, a fim de sa-
ber quem o tinha escrito, a fim de agradecer-lhe pessoalmente.
Interrogou o secretário, que lhe indicou Raimundo Magalhães,
num canto da sala, na banca de trabalho. Epitácio aproximou-
se, declarando: — “Sou Epitácio Pessoa; li a nota que o senhor
escreveu sobre o meu livro e achei-a tão bela que vim agrade-
cê-la, não somente à direção do jornal como também ao senhor”.
Medindo-o de alto a baixo, Raimundo Magalhães limitou-se
a responder com toda calma: — “Não tem absolutamente o que
me agradecer, mesmo porque minha opinião a seu respeito é
exatamente o contrário do que está na nota”. É bem fácil cal-
cular o desconcerto de Epitácio Pessoa em tal circunstância.
Sem mais uma palavra, fez meia-volta e desceu, em passo rígi-
do, as escadas da redação, onde em má hora entrara. Seja dito
de passagem que Raimundo Magalhães trabalhara em O Com-
bate, jornal ferozmente oposicionista dirigido por Caio de Mon-

334
teiro de Barros, que foi advogado de Manso Paiva, o assassino
de Pinheiro Machado.
Em O Paiz, quando esta folha era dirigida por João Laje,
também ali militou Magalhães. Certo dia o diretor chamou-o, e
de charuto na boca, como era o seu costume, disse-lhe: — “O
senhor vai escrever uma nota de aniversário”. Magalhães pro-
testou contra a escolha. Notícia de aniversário, em que havia
sempre largo consumo de adjetivos laudatorios, não era o seu
gênero.
— “Não faça cara feia — volveu João Laje — trata-se do
aniversário de um grande amigo meu, o João Ribeiro. . . ” Mu-
dou, então, completamente o semblante do redator: — “Ah! Essa
notícia faço-a com grande prazer, pois se trata de um escritor
que muito admiro; ainda há poucos dias ele me ofereceu o seu
último livro, Notas de um Estudante”. Laje deu uma larga ba-
forada no charuto e volveu: — “Mas Seu Magalhães, o senhor
está pensando que eu tenho tempo para perder com pés rapa-
dos? O meu amigo João Ribeiro é o Ministro da Fazenda. Faça
uma nota bem comprida e boa. Chame-o muitas vezes de ín-
tegro, probo, honrado. . . ” E abaixando a voz, acrescentou pa-
ra ser ouvido somente pelo interlocutor: — “Está nos ajudando
aí numa marmeladazinha. . . ”
Este episódio nos foi contado por contemporâneo de Rai-
mundo Magalhães. Aqui o damos pelo custo. A confusão entre
o João Ribeiro escritor e o seu homônimo, político e financista,
que foi diretor do Banco do Brasil e Ministro da Fazenda, era
muito freqüente na época.
Ainda outro depoimento sobre Magalhães e vindo da mes-
ma fonte. Estava ele, juntamente com Armando Gonzaga, Nes-
tor Guimarães e outros companheiros de jornal, bebericando num
bar da Rua da Quitanda, quando ali entrou um carroceiro, ver-
dadeiro brutamontes, e dirigindo-se ao balcão pediu um copo
de água. Magalhães que, como os seus amigos, tinha inclinações

335
maximalistas e socializantes, voltou-se para o carroceiro, dizen-
do-lhe: — “Não faça isso, meu caro, não tome esse copo de
água; venha tomar um chopp conosco”. Mas o brutamontes,
com grande surpresa de todos, respondeu em tom ríspido: —
“Não estou pedindo favor a ninguém”. Era o cúmulo da estu-
pidez. Raimundo Magalhães ergueu-se, de pronto, exclamando:
— “Oh! Animal! Estragaste toda a beleza de um gesto”. Con-
seqüência: o carroceiro reagiu, travou-se um conflito e foi to-
do mundo acabar no distrito policial.
Raimundo Magalhães era igualmente ótimo repórter. De
uma feita arranjou um meio de ser internado no Hospício da
Praia Vermelha e, depois de lá permanecer dez dias, escreveu
uma reportagem sensacional, na Gazeta de Notícias. Contou-me
Magalhães Júnior que, quando Anatole France morreu, em ou-
tubro de 1924, o pai chamou o filho, então muito jovem, para
que o acompanhasse à Biblioteca Nacional. Levava um rolo de
papel e quatro lápis. Ali pediu os Contes de Jacques Tourne-
broche e foi ditando ao jovem a tradução de quatro contos, feita
com a máxima rapidez, no espaço de algumas horas. Logo de-
pois, dirigiu-se à redação de vários jornais e vendeu todas as
traduções. Era assim, trabalhador e expedito, esse “último
boêmio”.

O P ir r a lh o — Uma Revista de Transição

No século passado, a Academia de Direito centralizara o


movimento editorial de revistas e jornais literários de São Pau-
lo. Mas à medida em que as letras começaram a deslocar-se para
fora das arcadas — o que já se verificara em 1885 — , o número
dessas publicações, dirigidas por estudantes, começou igualmen-
te a diminuir e a perderem elas a projeção de outrora. Em 1887,

336
o jornal mais literário de São Paulo já não tinha nenhuma li-
gação com o ambiente acadêmico: era o Diário Mercantil, de
Gaspar da Silva, onde colaboravam Júlio Ribeiro, Sena Freitas,
Bilac, Teófilo Dias, Augusto de Lima e muitos outros, sem fa-
lar na copiosa colaboração de escritores portugueses.
No começo deste século, porém, a ausência de um perió-
dico literário de vulto em São Paulo, se torna sensível. Perce-
bemos, então, o esforço de alguns estudantes para retomar a
tradição da fase romântica, em que as revistas e as sociedades
literárias se multiplicavam na Capital provinciana.
Em 1901 aparecia o primeiro número da Arcádia Acadê-
mica, cujo artigo de apresentação dizia o seguinte: “Um grupo
de rapazes sacudindo o jugo opressor da apatia, encarando a
satisfação íntima como prêmio principal do esforço, o trabalho
constante como primordial elemento de felicidade, reunido, de-
lineou as bases para a organização de um grêmio que, pelo es-
tudo, obrigasse os sócios ao estudo. Como concretizar esse sonho?
l.°) reuniões semanais, nas quais haverá quatro oradores de-
terminados pelo acaso para dissertar sobre assuntos científicos
e literários;
2°) tiragem bissemanal de uma revista”.
Segundo Afonso de Freitas (A Imprensa Periódica de São
Paulo), Monteiro Lobato colaborou no primeiro número da
Arcádia Acadêmica. No entanto, nem a revista nem a socieda-
de duraram muito tempo.
Outras tentativas semelhantes, sem maior repercussão, po-
dem ser assinaladas: A Musa (1905), fundada por Júlio Prestes,
René Thiolier e Mário Porto, que teve a colaboração de Batista
Cepelos; a Imprensa Acadêmica (1906), de Vilalva Júnior, Ri-
cardo Gonçalves e Adriano Marrey, que em março do ano se-
guinte passou a denominar-se Revista Nova, com a colabora-
ção de Flexa Ribeiro, Tito Franco, Rodrigues Dória, Carlindo de
Lellis; enquanto fora dos círculos da Faculdade, no Brás, o

337
Cromo, folha literária quinzenal, acolhia as primicias do talen-
to de Afonso Schmidt.
A Vida Moderna, aparecendo em 1907, traria, certamente,
a ambição de se formar em São Paulo uma revista ilustrada
literária da importância da Kosmos, no Rio. Mas esse papel só
viria a desempenhá-lo O Pirralho, cujo primeiro número surgiu
a 12 de agosto de 1911 e cuja publicação se prolongou até 1917.
Sendo a revista mais típica e importante do 1900 paulistano, se-
ria também a mais representativa do nosso Pré-Modernismo.
Como o Fon-Fon, A Careta e outros periódicos ilustrados
da época, possuía o caráter humorístico. O artigo de apresenta-
ção era feito nos seguintes termos: O Pirralho passava a contar
como arranjara um padrinho. Nascera num sábado ao meio-dia.
Mais tarde, com extravagante precocidade, rimara sobrinho com
biscoitinho. Os circunstantes, pasmados, viram nisso uma gran-
de vocação de poeta declarada. Logo, porém, vieram a firmar-
se os seus puros instintos de crítica: “incorrigível caçador, ri-
sonho”. Foi por esse tempo que apareceu em São Paulo a gran-
de atriz italiana Mimi Aguglia. O Pirralho conta que, louco de
amor, a ela se apresentou, uma noite, declarando-lhe: “Ó sa-
cerdotisa da dor! Eu amo o teu olhar que corta fundo. . .” e
por aí foi a exaltar-lhe a alma siciliana, a paixão estonteadora,
a vida soberba, até que Mimi, não podendo mais conter-se de
rir, perguntou-lhe se queria um autógrafo. Encabulado, O Pir-
ralho respondeu: “Não é isso, eu não sou nenhum anarquista
para nascer e não me batizar. Eu quero que a senhora seja minha
madrinha”. Mimi gostou, riu, aceitou o convite, e juntamente
com Mascagni, que na ocasião também se achava em São Pau-
lo, levou O Pirralho à pia batismal.
Essa história, cujo espírito hoje nos parece terrivelmente
“vieux jeu”, nos induz à conclusão de que a revista teria sido
fundada ao bafejo da excitação intelectual e artística produzida
pela presença, em São Paulo, da grande trágica e do grande
compositor italiano.

338
Quem percorrer a coleção d ’O Pirralho verificará o que
há pouco assinalamos: como a revista se ligava por um lado ao
clima 1900, e como, por outro, já prenunciava o Modernismo.
Não dispensava, ainda, umas colunas de prosa melíflua, com os
“bilhetinhos a Myriam”, gênero subsimbolista, com larga acei-
tação na época. Mas só a presença de Juó Bananére nas suas
páginas constituía uma nota viva de irreverência e demolição.
Foi O Pirralho que lançou esse escritor tão original e pitoresco
em dialeto macarrónico ítalo-brasileiro, cujas crônicas, de uma
inventiva desopilante, prepararam terreno para o Modernismo,
ridicularizando muitos valores formais, em que repousava en-
tão a nossa literatura. Qual o admirador de Fradique Mendes,
empenhado em adotar o figurino de Eça, que não se sentiría
démodé ao ver Juó Bananére chamar o famoso personagem de
Frederico Mendeso, acrescentando que este não passava de un
tipo indiale, uma criaçó literarima, sé pé nê gabeza?
Mais tarde, em 1916, Juó Bananére seria substituído na sua
secção As Cartas d’Abaxo o Piques por Juó Larangére, pseudó-
nimo de Geswaldo Castiglione, que nas crônicas do Pirralho
Maccaronigo jamais atingiría o mesmo grau de humor do ante-
cessor: esse que na vida civil foi o cidadão pacato Alexandre
Marcondes Machado.
O Pirralho desenvolveu um grande programa de inquéritos
literários, em que eram ouvidos tanto os escritores de São Paulo
quanto os do Rio. A estes últimos, por exemplo, interrogava,
em 1915, sobre o estado atual das letras, na Capital da Repú-
blica, ao que respondia Lima Barreto: “Minha opinião é que o
Rio está inteiramente idiota”; ao contrário de Antônio Torres,
que, estreante em jornalismo da metrópole, mostrava-se otimista,
julgando a situação muito lisonjeira.
Uma das maiores figuras da revista, o seu animador, era
Oswald de Andrade, um Oswald pré-modernista, de cavanha-
que alourado, lembrando um oficial da guarda imperial russa,
escrevendo de colaboração com Guilherme de Almeida peças

339
em francês (Mon Coeur Balance) e saudando Emílio de Meneses
em vésperas parnasianas. Apesar disso, já revela o futuro autor
de Serafim Ponte Grande os pruridos iconoclastas que sempre
o caracterizavam.
Na secção Lanterna Mágica mostra-se, não raro, comba-
tivo, embora manejando armas que se assemelham às Farpas, de
Ramalho 'e Eça.
N’O Pirralho publicara ele alguns capítulos das Memórias
Sentimentais de João Miramar, romance cuja forma, submetida
a um completo desmonte, iria produzir a versão modernista de
1924.
Em 1915, O Pirralho lamentava a ausência dos colabora-
dores franceses — Léon Werth, Gabriel Reuillard, Max Gotl,
Marcel Milliet, René Morand — “talvez caídos na defesa da
pátria invadida” . Seria ainda um vestígio do Simbolismo, essa
colaboração francesa?
O certo é que, a 23 de janeiro do mesmo ano, já surpreen-
demos num potin uma referência à “literatura futurista”, entre
aspas, de onde concluímos que, pelo menos com a reserva pru-
dente das aspas, já se começava a falar no Brasil em Futurismo.

Escritores que Ficaram Démodés

Há dias, um amigo referia-se em termos muito elogiosos a


um dos nossos escritores, que se acha à beira dos setenta anos,
fazendo esta restrição tão entristecedora quanto me pareceu
justa:
— “Um belo talento, uma admirável cultura, mas já está
meio démodé”.
De fato era essa a impressão que eu também experimen-

340
ta va diante do grande escritor. E por aí fui levado a algumas
reflexões sobre os motivos pelos quais os nossos homens de le-
tras envelhecem “literariamente” tão depressa. Se há coisa qua-
se sempre precária e efêmera no Brasil essa é, por certo, o êxi-
to literário. E quem diz êxito, diz o favor do público. O nos-
so público esquece com maior rapidez daqueles que na véspera
incensara, e se volta com uma volubilidade cruel para os no-
vos ídolos. Vejamos alguns casos expressivos. Se houver es-
critor no Brasil que, em certa época, gozou da maior populari-
dade, este foi indiscutivelmente Théo Filho. Seus romances Vir-
gens Amorosas, Ídolos de Barro eram grandes êxitos de livraria.
Escandalizavam pelo realismo cru, suscitavam discussões, o re-
trato do autor andava nas revistas e nos jornais. O mesmo se
pode dizer de Benjamin Costallat. Este chegou a ser entre 1922
e 25 um dos escritores mais discutidos e mais lidos do Brasil.
O sucesso de Mlle. Cinema, réplica brasileira a La Garçonne,
de Victor Margueritte, constituiu um acontecimento marcante na
história da nossa vida literária nos últimos quarenta anos. A
exemplo dos folhetinistas de outrora, que ante o êxito de um
romance lhe arranjavam uma continuação, procurando tirar maior
rendimento do interesse do público, Costallat escreveu, em se-
guida, Os Maridos, que seria o pendant masculino de Mlle.
Cinema. Explorando ainda o filão deu-nos Os Mistérios do Rio,
livro meio à moda dos de Paulo Barreto, e que despertou tan-
to mais curiosidade quanto nele se reconheceram muitas figu-
ras da sociedade carioca. Lembro-me do empenho com que por
volta de 1924, no interior, eu juntava tostão a tostão para man-
dar comprar no Rio os livros de Benjamin Costallat. E como
eu, quanta gente de todas as idades ter-se-ia deliciado na épo-
ca com as crônicas de Mutt e Jeff & Cia. ou os contos de Luz
Vermelha.
No entanto, de um momento para outro, Costallat e Théo
Filho vão saindo de mansinho do cartaz, até caírem num abso-
luto esquecimento. É um curioso fenômeno. Ambos não deixa-

341

■ ■
ram de escrever. Théo Filho de cinco em cinco anos, mais ou
menos, publica um novo romance. Acredito que não sejam in-
feriores aos de outrora. Talvez sejam até melhores. Mas o pú-
blico não mais lhes dispensa os mesmos favores. Costallat con-
tinua, como há vinte anos atrás, publicando suas crônicas no
Jornal do Brasil e ninguém fala dele, ninguém mais toma conhe-
cimento de sua existência. Li há algum tempo uma delas e não
encontrei nenhuma diferença com relação às páginas de Mutt
e Jeff & Cia. Entretanto, o cronista que o Rio inteiro lia e dis-
cutia “desapareceu”. Outros casos tão significativos como esses
poderiamos apontar.
Qual o motivo do desinteresse do público por escritores
que, afinal de contas, lhe dão hoje o mesmo que lhe davam há
vinte ou trinta anos atrás? Creio encontrar uma explicação no
seguinte: a rapidez com que se opera a mudança dos quadros
em nossa vida literária, como conseqüência das transformações
vertiginosas do progresso no Brasil. Assim, o escritor, se não
for dotado de uma grande plasticidade, de uma capacidade de
readaptar-se continuamente, perde o seu instrumento de comu-
nicação com o meio. Lê-se uma crônica de Costallat e vê-se que
a sua “linguagem”, no sentido afetivo da palavra, já não é a dos
nossos dias. Por quê? Porque o êxito desse escritor, como o de
Théo Filho e outros, se fez integrado mirria “paisagem” que
não mais existe. O Rio mudou radicalmente de trinta anos pa-
ra cá — o Rio, São Paulo, a própria vida do interior. Diferen-
ça total nos aspectos urbanos, nos usos, nos costumes, modifi-
cando por completo a perspectiva em que eram vistos tais es-
critores. Muitos deles perderam a graça, porque a sua graça es-
tava ligada às mesas do café, às reuniões vesperais à porta do
Alvear e às remanescências de boêmia da Lapa. A incapacida-
de de readaptar-se levou-os a um progressivo afastamento, que
acabou por torná-los deslocados no ambiente literário e, conse-
qüentemente, fora de foco: démodés.
Falando do Rio, citarei um exemplo, frisante, dessa mudan-

342
ça de quadros. As reuniões de escritores na Livraria José Olím-
pio marcaram época, entre 1935 e 45, mais ou menos, quando
então começaram a decair. E houve algumas figuras de nossas
letras que de tal maneira se identificaram com o teor dessas
tertúlias quotidianas que já não compreendíamos a livraria à
tarde sem a presença delas. Ora, as tertúlias acabaram, o es-
tabelecimento fechou e hoje os escritores passaram a encontrar-
se na Livraria São José.
Mas o estilo de vida literária é outro. Não se compreendem
mais aquelas agitadas discussões que punham às vezes Graci-
liano fora do sério ou levavam Zé Lins do Rêgo a tumultuar o
ambiente. Agora são as tardes de autógrafos, com uísques, os
discursos de Jaime Adour da Câmara. Isto em dez anos apenas.
Imagine-se qual foi a transformação de trinta ou quarenta anos
para cá, e o que isso importa em perda de perspectiva para os
escritores que conseguiram reajustar-se. Tal seria, por exemplo,
o que teria levado Graça Aranha, em 1921, de regresso da Eu-
ropa, a colocar-se à frente dos jovens para liderar a revolução
modernista. O seu meio, propriamente, já havia desaparecido:
não mais existiam Nabuco, Machado de Assis, Veríssimo; não
mais existia igualmente o Rio do 1900 que aplaudira Canaã.
O escritor compreendeu a dura verdade: ia tornar-se démodé.
Então só viu um recurso: juntar-se aos novos, aderir às turbu-
lências daquela juventude inquieta, que no fundo não sabia o
que queria. Foi um esforço de sobrevivência, ou antes, o arti-
fício de que lançou mãq para renovar-se.
Na Europa, os escritores não experimentaram, geralmente,
com a idade, esse drama. E isto porque a “paisagem” pouco se
modifica, os quadros quase não se alteram no decorrer de mui-
tas décadas. Um homem, como Paul. Fort, aos oitenta e seis
anos, é visto em Paris na configuração urbana de uma cidade
que não mudou; freqüenta os mesmos cafés que freqüentava
aos vinte e encontra o mesmo ambiente, convive ainda ali com
os companheiros de mocidade, movimentando-se no mesmo “es-

343
paço literário” de outrora. O Paris de hoje, continua a ser o
Paris de Paul Fort, de Léautaud, de Claudel, de Gide e de todos
os que já ultrapassaram os setenta, como Maurois, sem ficar
absolutamente démodés.
Entre nós, as coisas se passam de outra maneira. E um dos
casos mais característicos de capacidade de renovação que co-
nheço é Gilberto Amado. Pertencendo a um mundo já desapa-
recido, ele, sem recorrer a qualquer gênero de artifício e sem
abdicar ao que há de específico na sua personalidade, consegue
manter o mais íntimo contacto com o público, dinamizando-se,
por assim dizer, na nova paisagem literária do Brasil. E o fato
é tanto mais notável quanto se trata de um escritor que tem vi-
vido a maior parte da existência no estrangeiro.

Um Velho Debate

Há dias, por feliz acaso, me veio às mãos um livro que


eu há muito tempo desejava 1er: Jeca Tatu e Mané Xique-Xique,
de Ildefonso Albano. Trata-se de uma obra de significação his-
tórica, que marcou um momento crucial do debate travado em
torno da famosa criação de Monteiro Lobato. Ao Jeca Tatu de
cócoras, Ildefonso Albano opunha àquele sertanejo “antes de
tudo um forte”, de Euclides da Cunha, o caboclo nordestino,
que há trezentos anos flagelado pela seca conseguia reagir com
extraordinária energia às inclemências do meio. O livro nasceu
de um parecer parlamentar do autor, deputado pelo Ceará. É
dedicado à memória de José de Alencar, cujo idealismo Lobato
atacara frontalmente, e traz um prefácio de Mário de Alencar.
O nome Mané Xique-Xique tinha um sentido simbólico. “O
xique-xique — explicava Ildefonso Albano — é um cardo da
pátria de Mané. Nasce e prospera em qualquer terreno, bom,

344
medíocre ou ruim, mas sóbrio, resistente, prefere a todos, a pedra
nua, a rocha dura. Ali onde parece impossível a vida, onde qual-
quer planta estiolaria, e outra semente encontraria a morte, ali
ele se firma, ali encontra seus elementos de vida”. Tal seria o
Mané, resistente, sóbrio, tenaz, mas preferindo a todas, a região
árida e pedregosa em que nascera.
Lobato mostrara o Jeca Tatu indiferente aos acontecimen-
tos da nossa história. Ildefonso Albano considera o Mané Xi-
que-Xique o verdadeiro protagonista de todos esses acontecimen-
tos, desde a Independência à moderna epopéia do desbravamen-
to da Amazônia. Jeca e Xique-Xique são irmãos, mas um cons-
titui a antítese do outro; em muitas famílias acontece isso, fi-
lhos do mesmo pai, com o mesmo sangue, mas de índoles com-
pletamente diversas. Por que não havia de se dar o mesmo na
grande família brasileira? Se Jeca Tatu degenerou, Mané Xi-
que-Xique herdou as qualidades nobres e viris dos Tabajaras,
dos Jenipapos, dos Cariris, dos Pitiguaras e dos Apinagés.
E põe-se o autor então a detalhar as diferenças radicais no
comportamento dos dois tipos. Enquanto Jeca está de cócoras,
Mané Xique-Xique trabalha ativamente, lutando contra a terra,
áspera, necessitada de chuva e conseguindo finalmente fecun-
dá-la com o suor do rosto. Se há fartura, Mané come bem, mas
quando não há, aperta o cós da calça e sai para o roçado, sem-
pre disposto. Enquanto Jeca vegeta, de cócoras, Mané, de gi-
bão e chapéu de couro, leva a vida agitada do campo, “monta-
do no seu cavalo árdego, persegue a rês tresmalhada, falsean-
do como um raio caatinga adentro, passando por onde pas-
sar o cavalo”. Enquanto Jeca modorra, com medo da “friage da
manhã”, Mané está em mar alto, na sua jangada, forte, deste-
mido, sem temer o oceano que sobre ele exerce verdadeiro fas-
cínio. E foi nessa, jangada que, outrora, escreveu o poema da
redenção dos escravos. Enquanto Jeca se arrasta como uma les-
ma, Mané, no extremo norte, escreve uma epopéia. Corrido do
lar pela seca, atraído pelas falsas promessas dos agenciadores,

345
vai ter à Amazônia, num lance desesperado de quem sentindo-se
afundar agarra-se à primeira tábua de salvação. Ali sofre toda
sorte de privações, além de castigado pela doença. E se vier a
perecer, como tantos dos seus companheiros, outros sobrevive-
rão, e a terra será desbravada palmo a palmo, “o Acre con-
quistado a rifle será brasileiro, porque brasileiros são os marcos
de ossadas humanas que alvejam aquele vasto cemitério”.
Ildefonso Albano se estende ainda em especificar outras
atividades que distanciam o Xique-Xique do Jeca. Se mal sabe
assinar o nome, a perspicácia nele substitui a instrução. “Es-
tradas? Sem instrumentos complicados e esdrúxulos, ele lhes
conhece o traçado mais certo”. “Açudes?. . . Ora, mió que os
doutô eu os construo sem riscá papé”. Industrioso, sabe manu-
faturar vários objetos. Alma de artista, revela a habilidade co-
mo músico, entalhador, escultor, sabendo fabricar rendas de
extrema finura. Mecânico, maneja com destreza a bolandeira
e o engenho de fiá. Sociável, para Mané não há hierarquia, to-
dos são amigos, todos são cumpades. E para folguedos e samba,
ninguém sabe como Mané cantar um desafio. Junta a todas as
suas qualidades a de poeta.
Aí está em resumo o livrinho de Ildefonso Albano, muito
interessante, sobretudo porque, aludindo às habilidades de Ma-
né Xique-Xique, o autor traça um quadro colorido e movimenta-
do da vida no sertão nordestino. Mas aqui tenho um número da
Revista do Brasil, em que Luís da Câmara Cascudo, com seu
senso realista, afirma que ao lado do Xique-Xique também sub-
siste no Nordeste o Jeca Tatu.

De Catulo ao Jeca Tatu

O nativismo pitoresco que começou a florescer em nossas


letras, depois de 1915, mais ou menos, teve na consagração li-

346
terária de Catulo Cearense uma de suas expressões mais típicas.
É preciso acentuar ainda que esse nativismo, além de sua feição
pitoresca, caracterizava-se por uma certa unilateralidade. Pois
o Brasil para ele estava apenas no campo, no sertão, nos rocei-
ros e nas caipirinhas. O desenvolvimento das cidades, o surto
industrial, que já começava a verificar-se, nada disso exprimia
genuinamente o Brasil aos olhos dos nativistas extremados, não
passando de arremedos da civilização européia. Catulo Cearen-
se, num dos descantes, desafiava o homem formado, dizendo:
“Os livros dá inteligência, dá sabença, mas porém o mato vir-
ge tem poesia como que”. A inteligência e a sabença valiam,
indiscutivelmente, menos do que a poesia que só encontraríamos
no sertão, na roça. Assim, pois, esse nativismo reproduzia, no
fundo, aquilo que tem sido uma das constantes do espírito hu-
mano, através dos séculos: o velho ideal dos pastorais, da vida
feliz na solidão iluminada do campo, distante do ambiente per-
vertido das cidades. Já em vários livros da literatura brasileira
ele vinha anteriormente se manifestando, sob o aspecto român-
tico do bucolismo, sem revestir-se de um caráter de reivindica-
ção nacionalista, e muito menos sem criar um clima e uma moda.
Não será difícil identificar as origens desse movimento.
Vivíamos seduzidos pela civilização européia, fascinados por Pa-
ris, preferindo, tudo que Vinha da Europa ao que era brasileiro.
Quando Brulé ou Guitry representavam no palco do Municipal,
do Rio, toda sociedade carioca para lá se deslocava. Numa car-
ta inédita de Osório Duque-Estrada a Coelho Neto, datada de
1915, vemos aquele escritor muito preocupado com o fato de a
noite de sua recepção, na Academia, ser a mesma da despedida
de Lucien Guitry, no Municipal. O autor francês impediría o
escritor brasileiro de ter um grande público. Mas em todo ter-
reno o que era brasileiro havia de ser preterido pelo que vinha
da Europa.
De um momento para outro, porém, deflagra-se a mais
cruenta das guerras no Velho Mundo. A França, a Inglaterra, a

347
Alemanha, a Áustria, a Itália se envolvem no desastroso conflito,
o maior que a humanidade tinha até então presenciado. São ci-
dades inteiras destruídas, milhares de criaturas sacrificadas dia-
riamente, em suma, um verdadeiro colapso da civilização que
tanto admirávamos e cujos modelos procurávamos imitar. As
horrorosas proporções dessa guerra iriam trazer, de início, aos
povos da América, como aos brasileiros, uma idéia de insegu-
rança, de perigo à vista e da necessidade de uma mobilização
de forças para a defesa dos seus respectivos patrimônios. De
onde o movimento nacionalista, que determinou a fundação da
Liga da Defesa Nacional e a campanha cívica de Bilac. Mas
trazendo a idéia do fracasso da civilização européia, a guerra
inclinaria esse movimento em outro sentido: no da procura do
Brasil genuíno e autêntico em tudo que estava isento do verniz
europeu: de onde a supervalorização do caipira e da vida cam-
pesina. É preciso notar ainda que isso se fazia com o propósito,
talvez inconsciente, de fuga a uma realidade atroz. No campo,
onde estava o Brasil legítimamente brasileiro, estava também a
tranqüilidade, a paz, a possibilidade de uma vida feliz, nesse mo-
mento, em que os homens se perdiam num verdadeiro pande-
mônio. A supervalorização da vida campesina se processava as-
sim numa perspectiva idealista, de que havia de resultar, natu-
ralmente, o seu caráter pitoresco. Era uma nova modalidade do
velho sonho da Arcádia, que se tem repetido, com freqüência,
na história literária de vários povos. Evidentemente, quase to-
dos os povos que idealizavam o caipira e a vida campesina não
tinham a menor experiência da roça, ou a conheciam de manei-
ra muito superficial, em curtas temporadas de passeio. Daí em-
prestarem, não raro, ao caipira sentimentos e atitudes de ho-
mens da cidade; eram caipiras muito polidos os que apareciam
nas comédias, nas burletas, na poesia ou na novelística rústica
dessa época, vivendo conflitos sentimentais só admissíveis em
gente mais ou menos civilizada. Isto quando o pitoresco não
incidia no lado cômico, explorando, sob uma luz simpática, a
presença de espírito, o bom humor, a solércia ou chocarrice do
matuto.
Quem, num golpe de mestre, desencantou esse tipo foi, in-
discutivelmente, Monteiro Lobato, com a sua admirável carica-
tura do Jeca Tatu. Ao Nativismo idealista pitoresco e otimista
ele opôs um Nativismo realista e pessimista. Essa atitude teria
resultado, por certo, de uma experiência pessoal. Como já dis-
semos, os que pintavam o caipira na maioria não o conheciam.
Lobato, como fazendeiro, entrou em contacto direto com o ma-
tuto e pôde verificar ser ele bem diverso da imagem idealizada
que nos ofereciam. Em belo artigo, Ménotti Del Picchia esta-
beleceu um paralelo muito justo entre Euclides da Cunha e o
autor de Urupês. De fato, o Realismo de Lobato saiu de Eucli-
des, mas saiu também da experiência pessoal que lhe deu do
caipira das margens do Paraíba uma idéia bem diversa da que
Euclides nos oferece do sertanejo. “O sertanejo é antes de tudo
um forte” — são as palavras endeusadoras com que o autor de
Os Sertões começa um trecho da antologia, tão conhecido, do
seu grande livro. Até onde o padrão estabelecido por Lobato po-
derá ser generalizado, aplicando-se ao caipira de todo o Brasil,
como uma contrapartida do “sertanejo forte” de Euclides da
Cunha, eis o que foi muito discutido na época e escapa ao pla-
no deste artigo. Rui Barbosa, ninguém o ignora, quis fazer do
Jeca até a própria personificação do brasileiro. O que preten-
demos acentuar é o choque entre o caráter do tipo descrito por
Lobato e o conceito em voga do caipira na época: Jeca Tatu é
feio, sem graça, sem poesia, sem romanesco, sem nenhuma das
qualidades com que então se costumava apresentar o matuto na
Literatura e na Arte. Não faltou por isso quem atacasse o es-
critor severamente, acusando-o de derrotismo. O nosso homem
do campo não era aquela criatura ridícula. Sim, talvez Lobato
exagerasse um pouco, mas veio contrapor-se, assim, de maneira
brusca, a uma outra forma de exagero mais enganosa, contri-

349
buindo para colocar o nosso Nacionalismo na linha realista,
que assinalaria a principal diretriz do Modernismo.
É interessante notar, entretanto, que a figura do Jeca Tatu,
desencantando o pitoresco do caipira, acabou por se revestir
também de um certo pitoresco. Como depreendemos de uma crô-
nica de Peregrino Júnior, no Rio Jornal, datada de 1922: nas
festas elegantes do Rio, o Nativismo esnobe já começava a re-
clamar nessa época, ao lado da viola de Catulo, o tipo desen-
gonçado do herói de Lobato.

Relendo um Velho Livro de Ronald de Carvalho

O pretexto de uma consulta me levou a reler, num dos dias


barulhentos de Carnaval, alguns capítulos da Pequena História
da Literatura Brasileira, de Ronald de Carvalho. Pude então
verificar, mais uma vez, as deficiências e as impropriedades des-
se livrinho que continua a ser citado, a todo instante, como se
os seus julgamentos trouxessem algo de novo ao que encontra-
mos nas obras similares de Sílvio Romero e José Veríssimo,
ambas já reclamando uma revisão acurada, apesar do mérito que
possuem.
O êxito da obra de Ronald explica-se na época em que foi
publicado: 1919. Os dois volumes da História, de Sílvio Ro-
mero, se achavam de há muito esgotados, e o de José Veríssimo
não possuía, como tudo que o crítico escreveu, a leveza tão a
gosto do nosso público, sempre disposto a preferir a facilidade
à profundidade. Vai, porém, algum exagero no que Medeiros
e Albuquerque afirma no prefácio do livro em questão, consi-
derando, entre os nossos grandes historiadores da literatura na-
cional, Ronald de Carvalho o primeiro “que sabe escrever”.
Se o estilo de Veríssimo era, realmente, duro e áspero, embora

350
T

de uma clareza meridiana, o mesmo não se dava com o de Sílvio


Romero, em que se encontra asperidade apenas nas idéias e
nunca no estilo, simples, fluente e nada pedregoso. Medeiros e
Albuquerque faria melhor dizendo ter sido Ronald de Carvalho,
dos três historiadores, o único artista, o único a seduzir o pú-
blico pelo torneio gracioso da frase, o uso freqüente das ima-
gens, trabalhando essa Pequena História como uma obra de
arte. Mas não é exatamente por esse processo que se escreve
uma história da Literatura. Ronald resumiu apenas, com leveza
e elegância, numa forma artística, o que Sílvio Romero já ha-
via dito; não evidenciou um conhecimento pessoal e seguro da
nossa evolução literária e dos problemas que ela implica; não
superou os equívocos e as falhas de Sílvio.
A obra do sergipano é de 1888, pleno período naturalista,
e realizada sob a influência de Taine, de onde a preocupação do
autor de estudar demoradamente o meio' físico, social e etno-
gráfico em que se desenvolveu a nossa literatura. Isto, em 1888,
compreendia-se pela voga das teorias de então. Mas já José Ve-
ríssimo pusera de parte semelhante preocupação por considerá-
la naturalmente superada. Ronald de Carvalho, em 1919, não
hesita em revivê-la, e fiel ao modelo de Sílvio, faz preceder a
Pequena História de uma longa “Introdução” sobre o homem,
a raça, os fatores mesológicos etc., coisas que hoje já não cons-
tituem objeto dos historiadores da Literatura. Também admite
classificações errôneas de uma escola mineira e uma escola
baiana, em que incidiu Sílvio. E como este, por escrever em
1888, quando Vicente de Carvalho não se tornara ainda um
dos nossos maiores parnasianos, deixa de citá-lo, Ronald, em
1919, nem sequer menciona o nome do autor do “Pequenino
Morto”.
Em dada altura do livro, o autor condena, muito justamen-
te, os processos críticos do cônego Fernandes Pinheiro, que,
no Curso Elementar de Literatura Nacional, se vale a todo mo-
mento de paralelos com grandes figuras das letras universais pa-

351
ra classificar os nossos escritores. No entanto, Ronald incide,
por vezes, na mesma falha. Ao referir-se à historiografia de Na-
buco diz ele: “Há páginas suas que lembram Michelet, pela
magia das imagens, pela vibração do pensamento etc.” Ora,
todo mundo sabe que não existe nenhum parentesco entre Mi-
chelet e Nabuco; onde o primeiro é enfático, grandiloqüente,
com verdadeiros transportes de visionário; o segundo é exato,
lógico e sereno.
Sente-se, freqüentemente, a pobreza do vocabulário críti-
co de Ronald, no seu pendor para as fórmulas comparativas.
Ao classificar a obra de Aluísio Azevedo, o que lhe ocorre lo-
go é dizer que nela “não se encontra nem o desencanto de Quin-
cas Borba, nem aquela intuição risonha de Brás Cubas”, o que
está longe de traduzir qualquer idéia justa sobre essa obra. E
em outros pontos verificamos a mesma tendência para classifi-
car, procurando mostrar aquilo de que a obra difere, em para-
lelos muitas vezes extravagantes, se bem que feitos em estilo
brilhante e imagístico. No capítulo sobre o Naturalismo, lemos
esta frase: “Machado de Assis não era um puro mental, não ti-
nha por exemplo o brilho dos punhais com que a perversidade
galante e fascinadora do Senhor João do Rio costuma apresentar-
se” — e por aí vai, numa sonoridade verbal que no fundo nada
exprime a respeito de Machado ou de João do Rio.
Álvares de Azevedo, Laurindo Rabelo, Junqueira Freire, Ca-
simiro e Varela são colocados sob o rótulo de poetas da dúvi-
da, sem que saibamos exatamente o motivo; o autor não che-
ga a explicar em que consista, na poesia desses românticos, a
dúvida. Considera Varela uma figura de transição para o Par-
nasianismo, quando Mário de Andrade já o demonstrou sobe-
jamente ter sido o cantor do Evangelho nas Selvas um dos ro-
mânticos que menos valor plástico deu à palavra. Vê em Ma-
nuel Antônio de Almeida um discípulo de Balzac, desconhe-
cendo, como aliás tem acontecido com muitos críticos e histo-

352
r

riadores das nossas letras, a origem picaresca das Memórias de


um Sargento de Milícias.
De Joaquim Norberto de Sousa Silva diz não haver deixa-
do este senão meia dúzia de páginas aproveitáveis. E algumas
biografias notáveis pelo valor da documentação; e enumeran-
do-lhe as obras se esquece da principal, digna pelo menos de
uma referência, História da Conjuração Mineira, obra que, ape-
sar dos erros, constitui um dos primeiros esforços de crítica
histórica verificados entre nós.
No teatro de Martins Pena acha que a tese é “substituída
geralmente pela simples anedota de costumes” etc., como se
nos quisesse dar a entender ser a tese um elemento comumente
exigido nas peças teatrais.
Outros deslizes menos significativos mereceram ainda o
traço do nosso lápis. Depois de referir-se à prisão de Silva Al-
varenga, por ordem do Conde de Rezende, após o fechamento
da Sociedade Literária, escreve o autor: “Alvarenga foi solto,
ainda que contra a vontade de Antônio Dinis da Cruz e Sil-
va . . . ” É uma versão antiga, colhida certamente em Joaquim
Norberto, e de há muito retificada. Alvarenga foi solto justa-
mente por decisão de Antônio Dinis, consultado a respeito pe-
lo vice-rei (Ver Malas e Estevas, de Afrânio Peixoto).
Sobre José de Alencar: “Nós aprendemos com ele a ter
estilo, isto é, a considerar o romance como uma obra de arte”
— repetição de um juízo de Sílvio Romero, mais tarde tam-
bém adotado por Manuel Bandeira e muito citado, como se fos-
se opinião original deste (José de Alencar, quem introduziu o
valor estilístico em nossa ficção — eis mais ou menos as pala-
vras de Bandeira).
E, agora, ainda uma observação: o livro foi escrito entre
1918 e 19. Nessa época, já não seria tempo de reconhecer o va-
lor de Augusto dos Anjos? Não sei se em edições posteriores Ro-
nald de Carvalho corrigiu algumas das falhas que acabamos de
assinalar. Referimo-nos, evidentemente, à primeira edição, pu-

353

I
blicada em 1919, na qual incidiu a nossa releitura, apressada
e incompleta, feita ao rumor do batuque carnavalesco e da chu-
va a cair lá fora.
Bem sabemos que uma obra desse gênero presta sempre
flanco à férula dos que se dispuserem a lhe descobrir falhas;
mas há no pequeno livro de Ronald insuficiências evidentes,
que, não lhe tirando de todo o mérito, bastariam para enfra-
quecer a autoridade com que ele é com tanta freqüência citado.

Antônio Torres Contra João do Rio

A reedição do livro Razões da Inconfidência, de Antônio


Torres, vem recordar o movimento de indignação por parte dos
admiradores de João do Rio, que essa obra produziu quando
apareceu, em 1925. Paulo Barreto foi, como se sabe, uma das
bêtes noires de Antônio Torres. O cronista de Pasquinadas Ca-
riocas jamais o poupou. E essa ojeriza provinha de duas cir-
cunstâncias: primeira, a de João do Rio pertencer ao grupo de
escritores aureolados pela consagração social, como Afrânio Pei-
xoto e Coelho Neto e, ainda — se bem que em outro plano
literário — , Antônio Austregésilo; segunda, o culto incessante
e exagerado que o autor de Vida Vertiginosa prestava a Portu-
gal, defendendo a toda linha os interesses lusos no Brasil.
Embora não fosse um revolucionário, Antônio Torres ti-
nha, como Lima Barreto, um fundo de ressentimento que o le-
vava a colocar-se contra corrente, assumindo uma posição não-
conformista e naturalmente antiburguesa. Ora, João do Rio,
apesar de imitar os modelos franceses de espíritos dissolventes,
como Jean Lorrain, e por sensacionalismo chegar até a osten-
tar perversões sexuais, era na verdade um escritor represen-
tativo da burguesia; o seu êxito se fizera, em parte, nos salões,

354
nas rodas mundanas, na chamada haute gamme. Fora mesmo,
por excelência, o cronista elegante do 1900. Somente por esse
aspecto, Antônio Torres já não podia encará-lo com simpatia.
Na vida literária do Rio, na época, pertenciam a grupos sociais
diferentes e distantes. A diferenciação social, outrora, influía
nos antagonismos literários, o que hoje já não mais acontece.
Antônio Torres bandeava para a roda de Lima Barreto, embo-
ra estivesse longe de chegar aos extremos deste na dipsomanía
e na atitude anárquica. Um anarquismo que — devemos acen-
tuar — em ambos refletia mais um sentimento de frustação
burguesa.
Por outro lado, João do Rio, defendendo os portugueses,
que eram então os donos da imprensa carioca, havia de irritar
forçosamente todos os que, como Antônio Torres, viviam qua-
se somente da atividade jornalística. A lusofobia do autor de
Verdades Indiscretas, hoje incompreensível e sobretudo anti-
pática, justificava-se num tempo em que os capitais da colônia
lusa decidiam as opiniões dos jornais, não somente no Rio de
Janeiro, onde essa influência assumia um caráter ditatorial, co-
mo em parte em São Paulo e em outros estados. Nas Razões da
Inconfidência, Antônio Torres procurou oferecer uma estrutura-
ção histórica para a sua extremada repulsa aos portugueses.
Mas o fato é que essa repulsa tinha origem, essencialmente emo-
cional. Depois que abandonou a batina e veio para o Rio lutar
pela vida, na imprensa, revoltando-se contra a subordinação
desta aos portugueses, é que o panfletário de Pasquinadas Ca-
riocas foi buscar na História uma justificativa da sua lusofobia.
Razões da Inconfidência seriam antes: razões da hostilidade de
Antônio Torres à ingerência dos portugueses no jornalismo bra-
sileiro. A parte principal do livro é, aliás, a introdução, em que
o autor procura mostrar a atividade da colônia lusitana como
nefasta ao Brasil, escolhendo naturalmente, os exemplos que
melhor possam servir à defesa de sua tese. E nesse propósi-
to vai extravasando um verdadeiro sentimento de rancor inves-

355
tindo, sem a menor contemplação, contra João do Rio e o avia-
dor português Sacadura Cabral, ambos já falecidos, sendo que o
último num desastre de avião. Quando João do Rio era vivo
se Torres frequentemente o atacara, fizera-o geralmente em tom
galhofeiro, satirizando a prosápia do cronista, chamando-o de
João do Rio Minho. Só uma vez se excedera um pouco, dando-
lhe o título de “frescalhote”, alusão direta ao homossexualismo
que se atribuía a Paulo Barreto. Como este, porém, segundo
dizem, procurava até alimentar essa fama pouco recomendável,
dela fazendo um motivo de êxito, não devia magoar-se com o
rótulo insultuoso.
Morto João do Rio, é nestes termos impiedosos que Torres
a ele se refere: “Eu não estava no Rio, quando morreu Paulo
Barreto de abjeta memória. Mas de longe ou de perto, procuro
sempre acompanhar com atenção os eventos da pátria”. E lo-
go adiante “Paulo Barreto foi uma das criaturas mais vis, um
dos caracteres mais baixos, uma das larvas mais nojentas que
eu tenho conhecido. Não tinha senso moral. Não tinha senti-
mentos cavalheirescos. Não tinha a menor noção de brio. Nun-
ca pôde aprender a significação da palavra dignidade. Além
de um talentozinho seco e fosforescente, o que ele possuía era
uma instrução muito falha e uma avidez de dinheiro”. E vai
daí acusando João do Rio de ter vivido sempre a soldo da co-
lônia portuguesa e com auxílio desta haver fundado o jornal
A Pátria, no qual se empenhava em defender os portugueses,
atacando os brasileiros. Alude em seguida ao enterro do escri-
tor — mais imponente que o de Rui Barbosa e só igual ao de
Rio Branco, segundo Medeiros e Albuquerque (Minha Vida,
2.” vol.) — considerando-o uma verdadeira comédia, ou antes,
uma demonstração de força da colônia lusa. Os motoristas por-
tugueses, que constituíam a grande maioria da classe no Rio,
nessa época (1921) puseram à disposição do povo os seus carros,
formando-se um cortejo imenso, que perturbou toda a vida da
cidade.

356
Ora, injuriando João do Rio, depois de morto, em termos
tão violentos, como não chegara a fazer quando o cronista era
vivo, Antônio Torres não podia deixar de provocar uma viva
reação. E o movimento partiu de A Pátria, o jornal fundado por
Paulo Barreto, do qual era então diretor Dinis Júnior. “Demons-
tração de Desagravo à Memória de João do Rio” era o título
com o qual o jornal encimava a reprodução de artigos assina-
dos por figuras de relevo das letras e publicados na imprensa de
todo o Brasil, cartas, telegramas etc. Isto se deu em 1925, em
plena batalha modernista, sem que os vanguardeiros da Sema-
na de Arte Moderna se manifestassem a respeito. João do Rio
era uma figura que não interessava ao Modernismo, embora
tivesse exercido influência em dois dos seus elementos repre-
sentativos: Ribeiro Couto e Peregrino Júnior. Hoje, relendo
esse ataque iracundo e, na realidade, deselegante e antipático à
memória de Paulo Barreto, sentimos a inatualidade dos moti-
vos que o determinaram. A atitude já não tem sentido em nossos
dias, como não tem mais sentido a lusofobia de Antônio Torres.
Vinte e oito anos se passaram: foi o bastante para que o fato
viesse a situar-se no plano da História, único ângulo pelo qual
deve ser agora apreciado.

Um Duelo Frustrado

Por volta de 1920, Humberto de Campos passou a manter


em O Imparcial uma secção, sob a assinatura do Conselheiro
XX. Eram pequenos contos brejeiros, à maneira de certos au-
tores franceses, como André Birabeau, nos quais o escritor se
aproveitava freqüentemente de anedotas conhecidas, dando-lhes
uma forma nova com aquela facilidade que tinha de tirar do
assunto mais insignificante uma página capaz de interessar o

357
público. O detalhe picante, às vezes mesmo muito picante, vi-
nha sendo atenuado pela habilidade do narrador, nas dobras
de um subentendido capaz de acomodar a malícia às exigências
de um jornal destinado a penetrar em todos os lares.
O êxito dessas historietas foi enorme, dando grande po-
pularidade ao Conselheiro XX, cujo retrato aparecia em O Im-
parcial: um velho de longas barbas brancas. E Humberto de
Campos não renegou a produção do seu heterônimo, reunindo-a
em vários livros que alcançaram repetidas edições.
Mas no começo de 1922, aproveitando a voga do Conse-
lheiro XX, Humberto de Campos resolve fundar uma revista
brejeira, A Maçã, quase toda redigida por ele próprio e que ob-
teve igualmente grande aceitação do público. A exploração des-
se gênero literário não podia, no entanto, deixar de provocar
muitas críticas severas. Assim é que a 10 de março de 1922,'no
panfleto Gil Blas, num artigo sob o título “Do Caprinismo como
Base de uma Literatura Perniciosa”, Artur Gaspar Viana se
insurgia contra as licenças do Conselheiro XX. Dizia ele que no
momento em que as atenções do país se voltavam para os gran-
des problemas de cuja solução dependia o nosso progresso —
o ensino profissional, o nacionalismo econômico, o “abrasilei-
ramento do brasileiro”, a moralização do poder público e tan-
tas outras — havia um certo elemento que trabalhava à luz
meridiana “com o único intuito de amealhar dinheiro, produ-
zindo historietas imorais para regalo da serenidade despudora-
da dos burgueses e da juventude”.
E acusava Humberto de Campos, membro da Academia
Brasileira de Letras, de, com a responsabilidade do seu nome e
de vários acadêmicos, entre os quais Afrânio Peixoto e Goulart
de Andrade, ter a ousadia de lançar nas bancas de jornais uma
revista pornográfica intitulada A Maçã: “ Quererá a ilustre Com-
panhia da Rua do Passeio pactuar com o enigmático Conse-
lheiro X X — escrevia Artur Garpar Viana — alugando os seus

358
salões às senhoritas do vizinho Beco das Carmelitas, ou reagi-
rá nobremente contra a audácia desse bastardo das letras?”
O Beco das Carmelitas, que fica na proximidade do edifí-
cio do Silogeu, onde se achava instalada a Academia em 1922,
era uma rua de meretrício, o que deu motivo à perfídia do cro-
nista.
Ora, acontece que nessa ocasião o professor Henrique Ro-
xo, nome muito conhecido na Medicina brasileira contemporâ-
nea, publicou um Manual de Psiquiatria, de caráter didático,
especialmente destinado aos seus alunos. Num artigo no Cor-
reio da Manhã, a 23 de janeiro de 1922, Antônio Leão Veloso
criticou severamente o livro, sobretudo no que concernia à te-
rapêutica sexual preconizada no tratamento dos psicópatas.
Foi esse ataque, naturalmente, que levou Jackson de Fi-
gueiredo a 1er o Manual, obra, pela sua natureza técnica, de
molde a não lhe despertar a atenção. E daí o longo e violento
artigo publicado em O Jornal, sob o título Je vous remets à la
grande chronique pantagruélique. Mostra-se Jackson estupefa-
to com os pontos de vista do ilustre psiquiatra e cita como um
trecho de ouro esta passagem na qual já havia incidido a crítica
de Antonio Leão Veloso: “Recomendo aos que cuidam de alie-
nados que os façam levar a meretrizes, por ser isso de utilidade
fisiológica. Quer no Hospital de Alienados, quer em casas de
saúde, tenho empregado com sensível proveito, o método da
prática sexual”. Não sei o que pensarão hoje de tal método os
psiquiatras. Para Jackson de Figueiredo ia nisso um disparate
sem nome, a mais revoltante falta de senso moral. E seria bem
um sinal dos tempos — dizia ele —, da vaga sensualidade que
tudo absorvia, a atitude desse catedrático de uma faculdade de
Medicina, vindo preconizar o meretrício como método eficaz
para a cura dos alienados. Terapêutica da orgia, do erotismo:
Je vous remets à la grande chronique pantagruélique. E aqui
surgia a ocasião para atingir em vivo Humberto de Campos.
“O senhor Henrique Roxo — escrevia Jackson de Figueiredo —

359
já terá mesmo o seu biógrafo natural entre os historiadores da
nossa sociedade nesta hora crepuscular. Não duvido de que o
senhor Humberto de Campos, com a máscara do Conselheiro
XX , lhe dedique, durante muito tempo, aquela sua já célebre
coluna de O Imparcial. Devem entender-se muito bem, histo-
riador e herói pedagogo”.
E, em seguida, este trecho cujas conseqüências iam sendo
graves, como adiante veremos: “Avalio com que graça, com que
requinte de patifaria, o ilustre acadêmico e distinto chefe de
família, que é o senhor Humberto de Campos, contará as pe-
ripécias do tratamento de qualquer menina demente entregue
aos cuidados do professor Roxo! Digo isto porque suponho
que o método da prática sexual abrange os dois sexos e o se-
nhor Humberto de Campos se dedica principalmente a desmo-
ralizar meninas ledoras e, por conseguinte, candidatas à clínica
psiquiátrica”.
No mesmo dia em que apareceu este artigo, correu à tarde
pelas portas das livrarias e dos cafés da Avenida Rio Branco a
notícia sensacional: Humberto de Campos mandara desafiar
Jackson de Figueiredo para um duelo. Duelos de escritores não
eram uma novidade no Brasil. No século passado, Bilac batera-
se com Raul Pompéia, Pardal Mallet com Paula Ney. E ainda
neste século, sem falar nos duelos caricatos de José do Patro-
cínio Filho, havia o caso recente de Antônio Torres e Paulo
Hasslocher terçando florete num desafio de que resultou o fe-
rimento do primeiro.
Compreende-se a curiosidade despertada pela notícia e os
comentários que logo se perderam pelas mesas dos cafés. Mas
ter-se-ia realizado o duelo? Acreditamos que não, embora so-
mente no Rio-Jornal encontrássemos uma nota vaga sobre o
caso, sem dizer as condições em que ele foi solucionado. Hum-
berto de Campos continuou a escrever as suas historietas mali-
ciosas em O Imparcial e o público a se divertir com elas.
Mas a publicação d’A Maçã foi suspensa, logo depois, pe-

360
Io chefe de Polícia, provocando a manifestação de vários es-
critores, uns favoráveis, outros contra o ato. Humberto de Cam-
pos defendeu-se pelo O Imparcial, tachando de injustificável
arbitrariedade a apreensão de uma revista em tudo semelhan-
te a outras existentes no estrangeiro, como Le Rire e Le Sourire,
e que quase só se limitava a reproduzir páginas de autores con-
sagrados, membros da Academia Brasileira de Letras. Mas co-
mo estávamos numa democracia, ia agir pelos meios legais con-
tra essa prepotência.
E decerto o chefe de Polícia reconsiderou o ato, porque a
revista voltou a circular, durando ainda cerca de um ano.

Um Debate sobre Literatura Paulista”

A 5 de fevereiro de 1922, poucos dias antes do início da


Semana de Arte Moderna, apareceu em O Jornal, do Rio, um
rodapé sob o título “A Literatura em São Paulo”, assinado por
José Maria Belo. Esse artigo provocou a mais viva reação por
parte de alguns escritores paulistas, vindo pôr em debate jus-
tamente um dos pontos em que, desde o começo da campanha,
insistiam os modernistas: a necessidade de renovação, ou an-
tes, da criação de uma literatura autenticamente brasileira, fo-
ra dos limites do que eles chamavam de “Regionalismo”.
José Maria Belo começava o artigo reportando-se ao últi-
mo número da Revista do Brasil, em que figurava a estatística
das edições de Monteiro Lobato & Cia., em 1921: cento e cin-
qüenta mil exemplares lançados durante o ano. Tal o eloqüen-
te atestado da vitalidade intelectual de São Paulo, então apre-
goada. Mas seria mesmo esse lisonjeiro índice material uma
prova indubitável dessa vitalidade? — interrogava o crítico —
E se punha a examinar o caso. Começava dizendo que nos úl-

361
timos anos do Império e durante a República até aquele mo-
mento, São Paulo, “preocupado como seu aparelhamento eco-
nómico se distanciara de muitos outros estados no que se refe-
ria à Literatura”. Agora, porém, surgiam vozes de todos os can-
tos a falar numa literatura paulista. De viagem à Capital ban-
deirante, confessava José Maria Belo haver conhecido pessoal-
mente três ou quatro escritores de reconhecido valor como Lo-
bato, Menotti, Leo Vaz, Amadeu Amaral, que lhe deram ex-
celentes mostras da capacidade literária das gerações paulistas.
Mas três ou quatro nomes apenas. As cifras editoriais não cor-
respondiam, portanto, a um verdadeiro progresso literário do
estado e nem bastaria citá-las para justificar este. Que faziam
os escritores paulistas de maior destaque? Procuravam exprimir
a prodigiosa transformação por que ia passando aquele recan-
to do Brasil, “as ânsias da subraça” que ali se plasma? Não.
Cogitavam, sobretudo, de pintar o caipira, de fixar aspectos e
tipos da vida rural, confinados aos estreitos limites daquilo que
José Maria Belo rotulava de “Regionalismo”.
E contra isso protestava, veemente, o crítico. “O Brasil
não está nem no Jeca Tatu nem no Mané Xique-Xique — diz
ele — , nem no caipira paulista ou mineiro, nem no sertanejo
nordestino, poeta ou herói do Senhor Catulo ou do Senhor Leo-
nardo Mota. Não o sentiram ainda os nossos homens de le-
tras . . . ” E é justamente essa ausência do verdadeiro “brasilei-
ro” no “regionalismo” paulista, como em outros “regionalis-
mos”, aliás, que leva José Maria Belo a descrer da vitalidade
apregoada da literatura bandeirante, pretensamente demonstra-
da pelas cifras. O que os paulistas estão fazendo, para o críti-
co, é retomar, sob novas formas, os clichês convencionais de
Alencar e outros românticos, pois a “literatura caipira será sem-
pre uma curiosidade”. No entanto, acha ele que “através das
tentativas regionais e das incertezas presentes”, os escritores
brasileiros ainda hão de encontrar a sua “forma triunfante” e
descobrir a nossa verdade. “E é possível, então, que São Paulo

362
tome mais uma vez a sua missão histórica de guia da nacio-
nalidade”.
Como se vê, não levando em conta o Movimento Moder-
nista, em plena fermentação em São Paulo, José Maria Belo
concordava com os modernistas, quando repelia o Jeca e seus
descendentes, a literatura caipira, o “Regionalismo”, enfim.
Também os modernos nada queriam com esse “Regiona-
lismo”, mas acontecia que não se resumia nele a realidade li-
terária de São Paulo, no momento.
É o que procura mostrar Ménotti Del Picchia, ao dar ré-
plica ao referido artigo na sua coluna de Hélios, no Correio
Paulistano. O engano lamentável de José Maria Belo consisti-
ría no seguinte: ninguém mais que viesse acompanhando com
carinho o movimento literário de São Paulo poderia acreditar
no “Regionalismo”. “Não era ele uma derivante sincera do
nosso meio senão um artifício quase cabotinamente jacobino,
destinado a dedilhar a atrofia das cordas sentimentais de uma
raça que se transforma, dia a dia, numa estirpe decidida e
máscula, americanizada, ou melhor abrasileirada”. Não estava
mais em jogo essa estreita concepção literária em São Paulo, pois
um povo em franca ascensão jamais ficaria com o cérebro em
retrocesso, a contemplar “as ruínas das últimas taperas”. O que
José Maria Belo não via era o grupo de jovens que aqui acaba-
va de surgir, “acompanhando o ritmo das novas correntes de
pós-guerra”, propugnando por um neobrasileirismo, cujas rea-
lizações já se concretizavam e por onde somente se devia aqui-
latar da força da verdadeira literatura paulista.
A par dessa réplica de um modernista, teve o crítico per-
nambucano, nos números 74 e 75 da Revista do Brasil, a res-
posta de um passadista: Bruno Ferraz. Este, depois de procurar
refutar o desacordo alegado pelo crítico entre o progresso ma-
terial de São Paulo e o progresso intelectual, colocou a questão
do “Regionalismo” em termos diferentes. Não se poderia ne-
gar a força, o valor, a expressão de grande número de escrito-

363
res dos mais diversos matizes, que vinham constituindo a lite-
ratura paulista nos últimos tempos, somente pelo fato de con-
siderá-los regionalistas. E aqui entrou Bruno Ferraz no terreno
das definições, em que até hoje não foi suficientemente escla-
recida a questão:
“Que é Regionalismo? Uma palavra tão vazia de sentido
que comporta, nos limites de sua acepção, toda a literatura uni-
versal; no fundo, toda obra — a menos que se trate de fantasia
à Júlio Verne — será regionalista, e na acepção restrita e pe-
jorativa adotada pelo crítico até Madame Bovary seria posta no
índice”.
Ora, o engano de José Maria Belo se prendia em parte a
esse erro até hoje corrente — e demonstrado, há pouco, em dois
admiráveis artigos, por Alcântara Silveira —, o de enquadrar o
termo regionalista apenas na acepção de Ruralismo, de Serta-
nejismo, quando ele deve possuir um sentido muito mais am-
plo, havendo também um Regionalismo urbano, no qual se in-
serem uma infinidade de obras que justamente por não as con-
siderarmos regionais nos parecem superiores.
Menotti aceitou o termo na acepção corrente, e desse pon-
to de vista rebateu o artigo, achou que: “Regionalismo” havia,
mas não era no que se deveria procurar a verdadeira literatura
paulista. Bruno Ferraz tomou posição diferente, tratava-se de
saber por que uma dada literatura paulista não poderia ser re-
gionalista, com isso suscitou um debate que não foi até hoje
encerrado.

Lima Barreto e o Esporte

É realmente uma singularidade o fato de Lima Barreto, o


romancista mais visceralmente carioca, que mais se identificou

364
com a alma popular da cidade onde nasceu e sempre viveu, ter
hostilizado o Futebol e o Carnaval (compreendendo o samba co-
mo um derivativo deste). Se o Futebol desperta, sem dúvida,
o mesmo entusiasmo em toda parte, no Rio de Janeiro, esse en-
tusiasmo apresenta talvez certas características específicas. E
quanto ao Carnaval e o samba não é preciso acrescentar que
constituem produtos essencialmente cariocas, embora a popula-
ção do Rio hoje se constitua, na sua maior parte, de filhos de
outros estados.
Mas a ojeriza de Lima Barreto pelo Futebol explica-se: ele
não o encarava como um esporte popular, com raízes profundas
no povo brasileiro: via-o como um produto estrangeiro aclima-
tado em nosso país por uma classe aristocrática. Esse ponto de
vista podería justificar-se até 1922, ano em que o romancista
faleceu. O Futebol no Rio e em São Paulo foi implantado, real-
mente, por moços da alta sociedade. Filhos das melhores famí-
lias paulistas, entre os quais lembraremos de passagem Rubens
e Fernão Sales, Hugo de Morais e Cunha Bueno, constituíram
os primeiros quadros de Futebol de São Paulo. No Rio acon-
teceu o mesmo: o Fluminense, pioneiro do esporte bretão, man-
tinha uma tradição de aristocracia. Era esse aspecto que irrita-
va Lima Barreto. Mantinha-se pois ele perfeitamente coerente
com as suas tendências socializantes e libertárias quando se
insurgia contra o Futebol, no qual não via o Rio encarnado pelo
filósofo Gonzaga de Sá: o Rio “com os seus tamoios, seus ne-
gros, seus cafusos, seus galegos também”. O Rio do Fluminen-
se, do Flamengo ou do Botafogo era, para o romancista, um
Rio esnobe e de importação. Hoje seria absurdo tal ponto de
vista, que mesmo em 1920 ou 21 já era um tanto errôneo.
Mas para compreendermos melhor a ojeriza de Lima Bar-
reto devemos remontar a certas particularidades da época. Em
1919 o Brasil ganhava, no Rio, pela primeira vez, o Campeo-
nato Sul-Americano de Futebol e o fato tivera naturalmente
grande repercussão em todo o país, aumentando o entusiasmo

365
por esse esporte. Ao mesmo tempo, o serviço militar obrigató-
rio, conseqüente da primeira conflagração mundial, viera im-
plicar uma estimação da cultura física, como requisito indis-
pensável ao fortalecimento da raça. Não nos esqueçamos de
que a prática dos esportes na Inglaterra — onde surgiu o Fu-
tebol — no último quartel do século passado — resultou da
euforia da era vitoriana, da idéia de um inglês fisicamente for-
te para dominar o mundo. Conosco, o caso era um pouco dife-
rente, mas precisávamos ser também fisicamente fortes, no sen-
tido de defesa e da segurança do país, no momento em que a
situação do mundo se tornava ameaçadora. O entusiasmo de um
Coelho Neto pelos esportes parece, pois, perfeitamente com-
preensível, quando atentarmos para o fato de o autor do Rei Ne-
gro ter secundado Bilac na campanha pelo serviço militar e ha-
ver exercidp até junho de 1922 as funções de secretário da Li-
ga da Defesa Nacional. Libertário e pacifista, Lima Barreto de-
via sentir com pouca simpatia essa afinidade entre a caserna e
os esportes. Basta 1er uma de suas crônicas, “Educação Física"’,
datada de 9-4-1921 e incluída no livro Feiras e Mafuás. Refe-
re-se ele a um articulista d’0 Jornal que, “na edição de 31 do
mês último”, sob aquela epígrafe afirmara ser a educação es-
portiva uma preparação para a guerra. A França — segundo
o jornalista — por se haver descurado disso, vira-se às voltas
na guerra com grandes dificuldades, enquanto a Inglaterra e
os Estados Unidos, que sempre procederam de maneira diver-
sa, conseguiram pôr em campo, em breve espaço de tempo, exér-
citos consideráveis. Lima Barreto refuta ardorosamente essa con-
clusão. Quem vencera a guerra tinham sido os generais fran-
ceses e para haver generais hábeis era necessário haver cultura
militar, coisa muito diferente do esporte. “ O que o esporte em-
presta à alma humana — escrevia ele — é o amor à luta, ao
batalhar, mas nunca às qualidades intelectuais, que são preci-
sas a um general, já não direi grande, mas razoável”. E nesse,
amor à luta, ao batalhar via o escritor os males da chamada

366
educação esportiva: o de conduzir diretamente à guerra. A opi-
nião não me parece procedente. Ao contrário: apesar da afini-
dade que se estabelecera no nosso caso entre a caserna e o es-
porte, acho que este pode até ser uma válvula de segurança
para os nossos instintos belicosos. Mas Lima Barreto, racioci-
nando de maneira contrária e odiando a guerra, acabava por
combater o esporte, como ele dizia: “De todos os modos e fei-
tios”. E apelando para alguns exemplos históricos, que não jul-
gamos muito adequados ao caso, concluía: se a guerra tinha
de continuar, devia ser feita com pequenos efetivos e o afervo-
ramento para a luta guerreira por intermédio do esporte, levan-
do toda uma nação a pensar na guerra, era um mal dos piores
que podiam advir à humanidade.
Esse artigo data, como vimos, de 9 de maio. Em setembro,
quando o preparo do selecionado brasileiro, que devia tomar
parte no Campeonato Sul-Americano em Buenos Aires, se vi-
nha arrastando de maneira estranha, com marchas e contra-
marchas, o Correio da Manhã divulga: um dos motivos que
estavam atrapalhando a escalação dos jogadores era a necessi-
dade de se excluir dela os “homens de cor”. O governo auxilia-
ra com algumas dezenas de contos a Confederação Brasileira
de Desportos, mas impusera uma cláusula: o de não irem para
Buenos Aires jogadores que não fossem rigorosamente brancos.
Fora o Presidente Epitácio Pessoa quem exigira: nada de ne-
gros no scratch brasileiro.
Num artigo “Bendito Futebol”, em A Careta, em l.° de
outubro de 1921, Lima Barreto protesta num tom violento e
sarcástico contra tão absurda deliberação. Com que então o Se-
nhor Presidente da República, habituado a solucionar questões
mais difíceis, “como sejam a cor das calças com que os convi-
dados devem comparecer às recepções de Palácio; as regras
de precedência que convém sejam observadas nos cumprimen-
tos a pessoas reais e principescas” não teve dúvida em resolver

367
aquele problema: “ Gente tão ordinária e comprometedora” co-
mo os pretos não devia figurar nas exportáveis turmas de joga-
dores; lá fora não se precisava saber que tínhamos no Brasil
“semelhante esterco humano” — são as palavras de duro sar-
casmo do escritor. Era verdade que os estrangeiros possuíam
os retratos dos nossos senadores, dos nossos deputados, dos
nossos lentes e estudantes, dos nossos acadêmicos etc. etc., mas
isto não passava de fatos domésticos, com que nada tinham a
ver os estranhos, mas numa representação nacional não seria
decente que tal gente figurasse. E continuava no mesmo tom
mordaz para arrematar um post scriptum: “A nossa vingança é
que os argentinos não distinguem em nós as cores, todos nós
para eles somos macaquitos”.
Eis aí, as circunstâncias que concorreram para que Lima
Barreto viesse a detestar e combater o esporte que apaixona a
alma popular no Rio. Em nossos dias, quando essas remanes-
cências do preconceito de cor não mais subsistem, isto possi-
velmente havia de influir numa mudança de atitude de Lima
Barreto com relação ao Futebol. E quanto a ver ele no esporte
uma preparação para a guerra, nesta época da bomba atômica,
seria inconcebível.

Documento d e uma Época

A reação que se processou, na década de 20, no Brasil,


contra os modelos europeus, e principalmente parisienses, que
haviam predominado no 1900, não impediu a sobrevivência
acentuada dos mesmos através de duas correntes: uma neona-
turalista, outra decadente e mórbida. Deve-se notar, porém,
que muitas vezes os escritores representativos de uma se en-
cartavam também na outra. Tal o que acontecia, por exemplo,

368
com Théo Filho e um Benjamin Costallat: em alguns livros cul-
tivavam o Neonaturalismo e o Decadentismo a um só tempo. A
característica das duas correntes era, no fundo, chocar a mo-
ral burguesa, escandalizar, o que não se tornava em certos ca-
sos incompatível com a sinceridade artística. Enquanto os mo-
dernistas escandalizavam, pregando a destruição a toda linha
(como se deu na primeira fase do movimento), fazendo guerra
ao passado, querendo, como no caso de Oswald de Andrade,
retornar ao primitivismo, os neonaturalistas e os decadentes
(não confundir a acepção do termo neste caso com aquela pela
qual tinham sido designados os simbolistas) esforçavam-se por
escandalizar a seu modo, narrando amores mórbidos, taras, ví-
cios de toda espécie. Nessa época de nacionalismo literário,
quando se falava em voltar às fontes puras do sentimento popu-
lar, em buscar inspiração no que o Brasil tinha de mais genuí-
no e autêntico, a sobrevivência das duas correntes se, do ponto
de vista social, revestia-se de um caráter anárquico e revolu-
cionário, do ponto de vista estético se tingia, no entanto, de
um colorido essencialmente reacionário.
Quase todos os neonaturalistas e decadentes declaravam-
se contra o Modernismo ou pelo menos indiferentes à campa-
nha renovadora que então se travava. O próprio Coelho Neto
já vinha ká algum tempo cultivando em alguns contos e nove-
las cenas de horror e morbidez semelhantes às que iam pre-
dominar nessa literatura da década de 20. Em maio de 1917
comunicava ele a Humberto de Campos (como se lê no Diário
Secreto deste último) estar trabalhando numa novela que qua-
lificava de “brutal” e lhe seria dedicada, na qual empregaria
todo o seu poder criador. “Brutal”, entre aspas, segundo gra-
fou Humberto de Campos, deve-se compreender: casos terato-
lógicos, crimes sexuais e ingredientes do mesmo gênero.
Mas já antes, outro escritor, este secundário, Carlos de
Vasconcelos, vinha explorando o gênero. No mesmo Diário Se-
creto, de Humberto de Campos, a 5 de janeiro de 1915 encon-

369
tramos esta notação: “Há dias anda o Carlos de Vasconcelos a
perseguir-me para que escreva sobre o seu livro Tragédia Divi-
na. O livro é mau e tem como único mérito o de ser escanda-
loso”. Essa nota de escândalo continuaria o escritor a cultivar
mais tarde em 1923, no livro de contos Torturas do Desejo,
em que os títulos de algumas narrativas bastam para dar uma
idéia dos temas: “Noivicídio de Dusseldorf”, “Vingança de Lá-
zaro”, “Veneno da Beleza”, “ Paixão Lésbia”, “ Os Miolos do
Amigo”, “Heroísmo Macabro”, “Mlle. Esquelette”. Era, como
se vê, uma mistura de Poe, Wilde e Jean Lorrain.
No mesmo ano, um jovem muito pálido, Jarbas Andréa,
publicava um livro de gênero um tanto semelhante, porém de
qualidade superior, A Ronda dos Vícios, com um prefácio de
Renato Viana, que começava nestes termos: “Jarbas Andréa tem
vinte anos incompletos. Com essa idade não joga futebol, não
dança o tango, não discute os músculos de George Walsh. Jar-
bas Andréa com vinte anos pensa. E sofre, naturalmente, por-
que pensar é a Dor máxima do homem”. Aqui se fazia sentir
mais a influência de Wilde, lembranças da Salomé ou da He-
rodíade, de Mallarmé com vestígios de Baudelaire. O autor,
que tenho o prazer de possuir entre os meus melhores amigos,
ri-se hoje de todos esses decadentismos de uma quase adoles-
cência distante.
Pouco antes, em 1922, Madame Crysanthème (pseudônimo
de Emilia Moncorvo Bandeira de Melo, filha da escritora Car-
men Dolores) espantava os leitores com a galeria de heroínas
mórbidas da novela Enervadas: Lúcia, uma morfinômana in-
curável, procurando debalde no amor uma satisfação que nun-
ca encontrava; Maria Helena, uma pervertida com suas atitu-
des equívocas; Madalena Fragoso, dominada pela cocaína. To-
das “enervadas”, sofrendo a condenação do tédio, sem encon-
trar na vida um destino.
Mais ou menos na mesma época, Raul de Polito no roman-
ce Dança do Fogo (que Monteiro Lobato, no propósito de dar

370
1

I
oportunismo aos novos de todas as tendências, editava junta-
mente com a Alma Cabocla, de Paulo Setúbal, e o Professor
Jeremias, de Léo Vaz) contava-nos a história arrepiante do es-
cultor Eugênio Land. Necrófilo, sentindo “uma atração irresis-
tível pela carne morta, pela frialdade cadavérica”, o artista aca-
bava assassinando a mulher amada para possuí-la plenamente,
como desejava. Em 1925, publicaria outro romance num clima
menos macabro, mas igualmente mórbido: Kilmah, Sereia do
Vício Moderno. Nessas duas obras fazia-se, sentir entre outras,
a influência do Marquês de Hoyos y Vinent, romancista espa-
nhol de vida misteriosa e equívoca, que se comprazia em cul-
tivar monstros em suas histórias.
Um escritor, decerto, completamente esquecido, Sílvio B.
Pereira surgia em 1922 com o livro de contos Torturados, nar-
rativa cuja natureza podemos avaliar pelos títulos de alguns
deles: "O Ebrio”, “ O Tarado” etc.
E um grande sucesso de livraria viria assinalar o volume
de versos Sensações, da autoria de Regina de Alencar. A pri-
meira edição esgotou-se em poucos dias. É que nunca se tinha
visto uma mulher confessar em verso, com tamanha franque-
za, seus anseios sensuais. O escândalo teve grande repercussão;
ergueram-se vozes severas condenando a licenciosidade da poe-
tisa, que na realidade ninguém conhecia. Quem era Regina de
Alencar? Quem era afinal de contas, essa mulhefc tão audacio-
sa? Pelas rodas de imprensa já se sabia de quem se tratava. Era
o jornalista Eduardo Faria, autor de várias peças teatrais e re-
dator de O Imparcial.
Uma mistificação, como em nossos dias a de Nélson Ro-
drigues, escrevendo sob o pseudônimo de Susana Flag o ro-
mance Meu Destino é Pecar. Mas o decalque fotográfico do
retrato de uma atriz de cinema na capa constituía uma verdadeira
tentação para os leitores, levados pela convicção de que se tra-
tava da autora do livro.

É
<

Toda essa literatura sensacionalista — e não recordamos


senão algumas obras, de memória — passou sem deixar vestí-
gio. Aliás, na maioria dos casos, foi apenas subliteratura. Não
podemos, porém, deixar de reconhecer-lhe a significação como
documento de uma época.

372
INDICE ONOMASTICO

A b reu , C asim iro José M arques d e, 122, 3 52.


A b reu , João C apistrano d e, 7 7 ,1 2 1 , 171, 1 7 2 ,1 7 3 , 174, 175, 23 0 .
A b ru zzo s, D u q u e d e, 332.
A c io li, 2 7 2 .
A d am , V illiers d e F Isle, 5 7 , 168.
A fo n se c a , L é o , 106, 2 8 6 , 28 7 .
A g u g lia , M im i, 338.
A jalbert, Jean, 132.
A lbalat, 2 9 7 .
A lb a n o , Ild e fo n so , 3 4 4 , 3 4 5 , 346.
A lb in o , C o n selh eiro, 198, 2 0 2 .
A lb uquerque, L ou ren ço d e, 2 37.
A lb u q u erq u e, M ed eiros e , 116, 129, 145, 2 2 1 , 2 7 6 , 3 5 0 , 3 5 1 , 356.
A len ca r, J osé M artiniano d e, 19, 2 0 , 2 5 , 2 6 , 3 2 , 4 6 , 5 0 , 5 1 , 5 2 , 5 4 , 6 2 , 6 3 , 64,
6 6, 6 9 , 7 0 , 7 1 , 7 3 , 7 9 , 118, 119, 121, 122, 124, 130, 134, 15 3 , 154, 159,
167, 172, 173, 176, 19 0 , 2 0 3 , 2 0 4 , 2 0 5 , 2 0 6 , 2 1 2 , 2 3 0 , 2 3 3 , 2 4 4 , 2 5 5 , 3 1 9 ,
3 4 4 , 3 5 3 , 362.
A len ca r, M ário d e, 1 7 2 ,1 8 5 , 2 3 3 , 2 7 5 , 344.
A len ca r, R egin a d e, 37 1 .
A lex a n d re II, C zar, 90.
A lfr e d o , C on selh eiro João, 28.
A lm eid a, C orrêa d e, 230.
A lm eid a, F ialho d e, 1 8 5 ,1 8 6 , 29 0 .
A lm eid a, F ilinto d e, 5 4 , 5 5, 7 6 , 9 4, 13 5 , 137, 166.
A lm eid a, G uilherm e d e, 33 9 .
A lm eid a, Julia L o p es de, 2 4 9 , 2 5 1 , 2 5 2 .
A lm eid a, L u ís A n to n io B arb osa d e, 199.
A lm eid a, M anuel A n tô n io de, 121, 2 0 4 , 2 3 9 , 3 1 9 , 35 2 .
A lp h on su s, João, 180.
A lva ren g a S ilva, 353.
A lv ern e, Frei F ran cisco d e M on te, 2 1 ,2 2 , 2 7 3 .
A lv e s , A n tô n io F rederico d e C astro, 8 7 , 8 8 , 90.
A lv e s, C on stân cio, 2 2 2 , 2 23.
A m a d o , G ilb erto, 3 0 , 167, 182, 3 34.
A m a d o , J orge, 3 07.
A m aral, A m ad eu , 185, 189, 3 2 8 , 3 2 9 , 3 3 0 , 36 2 .
A n d rad e, M ário d e, 352.

373
t
A ndrade, O lím p io de S o u sa , 2 1 4 , 2 1 5 , 2 1 6 , 217.
A ndrade, O sw a ld d e, 3 2 7 , 3 3 0 , 3 3 9 , 3 6 9 .
A nd rad e, R o d rig o B retas d e, 148.
A ndréa, Jarbas, 3 7 0 .
A n jo s, A u g u sto d os, 353.
A n to in e, A n d ré, 132.
A ranha, J o sé da G raça, 5 4 , 2 1 4 , 2 2 4 , 2 2 6 , 2 2 7 , 2 4 8 , 2 4 9 , 2 5 1 ,2 5 2 , 2 9 3 , 3 10.
A raripe Júnior, T ristão, 7 3 , 8 5 , 116, 1 2 1 ,1 6 5 , 166, 2 0 3 , 2 0 4 , 2 0 5 , 2 0 6 , 23 0 .
A raújo, Ferreira de, 6 0, 61, 66, 9 2 , 9 3 , 134, 13 7 , 139, 17 3 , 2 3 9 .
A raújo, João G o m es d e, 183.
A rin o s, A fo n s o d e M elo F ranco, 147, 148, 149, 150, 2 0 6 , 2 0 7 , 2 0 8 , 2 0 9 , 2 1 1 ,
21 2 , 21 3 , 260.
A rrojado L isb o a , 148.
A ssis, Joaquim M aria M achado d e, 2 4 , 4 0 , 5 4 , 5 5 , 5 7 , 5 9 , 6 0 , 61, 7 4 , 7 6 , 79,
8 4 , 8 8 , 9 0 , 121, 135, 136, 137, 153, 173, 1 81, 19 0 , 2 1 4 , 2 2 7 , 2 2 9 , 2 3 0 ,
233, 240, 242, 243, 244, 246, 247, 248, 254, 255, 304, 318, 326, 343, 352.
A ta íd e, T ristão de (A lceu A m o ro so L im a), 174, 175, 2 0 7 , 2 0 8 , 2 1 0 , 3 07.
A u streg ésilo , A n tô n io , 2 7 4 , 2 7 8 , 354.
A z ered o S ob rin h o, Á lva res d e, 14 8 , 1 8 3 ,1 9 8 .
A z e v e d o , A lu ísio , 5 3 , 7 2 , 7 9 , 80, 8 2 , 8 5 , 100, 101, 11 1 , 112, 1 13, 114, 116,
1 1 8 , 119, 1 2 1 , 122, 12 3 , 1 2 4 ,1 2 5 , 126, 127, 128, 1 2 9 ,1 3 1 , 1 3 7 ,1 4 2 , 143,
144, 151, 154, 158, 15 9 , 160, 162, 171, 185, 190, 191, 2 0 5 , 2 0 6 , 2 7 4 , 2 7 5 ,
2 7 8 ,3 1 9 , 3 2 0 , 3 4 3 , 3 5 2 .
A z e v e d o , A rtur, 7 3 , 8 1, 8 2 , 118, 123, 124, 128, 1 3 0, 134, 13 6 , 137, 171, 178,
3 1 9 , 32 1 .
A z e v e d o , M anuel A n tô n io Á lvares d e, 2 8 , 2 9 , 182, 2 3 0 , 2 6 0 , 35 2 .

B alm aced a, 2 1 6 .
B a lzac, H o n o ré d e, 5 9 , 6 1, 159, 167, 2 3 2 , 352.
B añ ad os, Júlio, 21 6 .
B an an ére, Juó (A lex a n d re R ibeiro M arcondes M achado), 3 2 7 , 3 3 0 , 3 3 1 , 3 3 2 ,
3 3 3 , 339.
B andeira, M anuel, 3 5 3 .
B arb o sa , Joã o , 198.
B arb osa, R ui, 2 1 , 1 4 5 , 195, 196, 1 9 7 ,1 9 8 , 199, 2 0 0 , 2 0 1 , 2 0 2 , 2 0 3 , 2 2 4 , 2 4 5 ,
2 7 5 , 2 8 2 , 3 4 9 , 356.
B arcelo s, R am iro, 2 0 1 .

í
374
B aroja, P io, 22 4 .
B arrés, M aurice, 23 5 .
B arreto, D an tas, 2 2 2 , 2 7 2 , 2 7 6 , 2 7 7 , 2 7 8 , 2 7 9 , 3 1 1.
/B a r r e t o , A fo n s o H en riq u es de Lim a, 2 2 6 , 3 3 3 , 3 3 9 , 3 5 4 , 3 5 5 , 3 6 5 , 3 6 6 , 3 6 7 ,
36 8 .
B arreto, P aulo (v er R io , João do).
B arreto , Pereira, 9 5 .
B arreto, T ob ias, 3 0 , 3 4 , 3 5 , 36, 37 , 3 9 , 4 0 , 4 1 , 9 7 , 2 5 4 .
B arro s, A d o lfo d e, 38.
B arros, C aio de M on teiro d e, 33 4 .
B arros, João d e, 2 9 2 , 318.
B arros, O lív io de (A fo n so A rin os), 2 0 7 .
B a sto s, T avares, 2 6 , 2 8 , 2 9 , 3 0 , 3 1 , 3 2 , 3 4 , 190.
B a sto s T ig re, 329.
B a tista C e p e lo s, 3 37.
B audelaire, C harles, 8 9 , 232,, 3 70.
B eld em o n io , 61.
B e lo , J o sé M aria, 3 6 1 , 3 6 2 , 3 6 3 , 36 4 .
B en ed etti, 133.
B em h a rd t, Sarah, 9 3 , 28 7 .
B erta , A lb ertin a, 2 3 0 , 24 3 .
B e u lé , 2 0 6 .
B ila c, O la v o , 81, 82, 8 8 ,9 4 , 1 0 1 , 103, 115, 118, 119, 136, 137, 1 3 8 ,1 3 9 , 140,
14 1 , 142, 143, 146, 1 4 8 , 1 4 9 ,1 5 0 , 168, 171, 182, 1 9 0 , 2 4 3 , 2 4 4 , 2 6 5 , 2 6 6 ,
267, 268, 269, 270, 271, 272, 287, 310, 319, 320, 327, 328, 329, 330, 331,
3 3 2 , 3 3 3 , 3 3 7 , 3 4 8 , 3 6 0 , 366.
B irabeau, A n d ré, 357.
B itten co u rt, E dm undo, 2 8 2 , 28 3 .
B itten co u rt Sam paio, 20 4 .
B o ca iu v a, Q u in tin o, 61.
B o m C o n selh o , V isc o n d e d o, 26.
B o m R etiro , B arão d o, 46.
B o n ifá c io , J o sé, “ o M o ç o ” , 2 6 , 197.
B o u rg et, Paul, 18 7 , 26 2 .
B raga, J o sé, 148.
B randão, T om ás, 150.
B ran t, M ário, 318.
B rás G arcia, 314.
B rasil, A ssis, 7 6 , 2 2 4 .
B rito , D o lo r d e, 33 1 .
B ru lé, 347.

375
t-

B runetière, 126, 2 3 2 .
B ru ssot, M artim , 3 0 7 , 3 0 8 , 3 0 9 , 3 1 0 .
B ru zzi, N ilo , 122.
I
B u ll, John, 94.
B urkinski, Fernando, 128.
B y ro n , G eo rg e , 29 , 88.

C abrai, Sacadura, 356.


C alm on, P ed ro, 87.
Cám ara, Jaim e A d ou r da, 3 4 3 .
C am elo, J., 2 6 0 , 261.
C am inha, A d o lfo , 3 8 , 152, 153, 174, 175, 176, 177, 1 7 8 , 179, 180.
C am inha, P ero V az d e, 3 1 6 .
C a m ões, L uís V a z d e, 2 4 7 , 3 1 6 .
C a m p o s, A m érico d e, 137. i
C am pos, H um b erto d e, 2 7 0 , 2 7 9 , 3 2 9 , 3 5 7 , 3 5 8 , 3 5 9 , 3 6 0 , 3 6 1 ,3 6 9 .
C a m p o s, M artinho d e, 20.
C am pos S a les, 2 5, 168, 1 6 9 , 2 1 7 .
C andiant, 93. I
C ard oso, L ú cio , 2 6 3 .
C ard oso, T avares, 28 8 .
C arlos I, 2 8 8 .
C arneiro, E m anuel, 139, 140.
C arpeaux, O tto M aria, 104, 117.
C arvalho, A lfr e d o d e, 2 7 7 .
C arvalho, H orácio d e, 115, 116.
C arvalho, R onald d e, 3 5 0 , 3 5 1 , 3 5 2 , 3 5 3 , 354.
C arvalh o, V ic e n te d e, 2 7 5 , 351.
C ascu d o, L uís da Câm ara, 346.
C a stelo B ra n co , C am ilo, 103, 109, 2 5 5 , 2 8 6 , 2 9 0 , 3 1 2 , 3 1 3 , 3 1 4 , 3 1 5 .
C astig lio n e, G e sw a ld o , 3 3 9 .
C astro, T ito L iv io d e, 102, 2 5 4 .
C a valcan te, C o elh o , 3 3 3 .
C avalier, H elen a, 80.
C axias, D u q u e de (L uís A lv e s de L im a e S ilv a ), 4 5 .
C ea ren ce, C atu lo da P aix ã o , 3 2 0 , 3 2 3 , 3 4 6 , 3 4 7 , 3 5 0 , 362.

376
C e lso , C o n d e de A fo n so , 2 1 , 2 6, 4 8 , 7 6 , 9 2 , 119, 120, 198, 2 3 4 , 2 3 5 , 2 3 6 ,
2 3 7 , 2 3 8 , 2 3 9 , 2 4 0 , 2 4 1 , 2 4 2 , 2 5 7 , 3 1 5 , 316.
C hateaubriand, A ssis, 2 0 4 , 334.
C h ich orro, 2 56.
C laudel, Paul, 2 7 6 , 344.
C lo d ion , 105.
C o elh o N e to , H enrique M axim iniano, 8 5 , 118, 119, 134, 142, 143, 144, 151,
178, 182, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 2 2 2 , 2 3 3 ,2 4 8 , 249, 251, 252,
264, 265, 266, 267, 268, 269, 271, 272, 273, 274, 2 7 5 ,2 7 6 , 277, 278,279,
280, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 288, 289, 2 9 0 ,2 9 1 , 292, 293,294,
295, 297, 298, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 305, 3 0 6 ,3 0 7 , 308, 3 0 9 , 31 0 ,
3 1 1 , 3 1 9 , 3 2 0 , 3 4 7 , 3 5 4 , 3 6 6 , 369.
C o elh o N e to , P aulo, 195, 2 6 9 , 2 9 8 , 3 0 3 , 30 7 .
C o m te, A u g u ste, 88.
C o n d é, Joã o , 69.
C o n d e d’E u (G astão d e O rléans), 2 0 , 4 3 , 4 4 , 4 7.
C o n stan t, B enjam in, 138.
C ontarini F lem ing, 129.
C oq u elin , 2 8 7 .
C orrêa, L eo n cio , 173.
C orrea, R aúl, 76.
C orrea, S o u sa, 225.
C orrea, V iriato, 32 1 .
C orreia, R aim undo, 7 8 , 147, 148, 150, 185, 187.
C ostallat, B enjam in, 3 4 1 , 3 4 2 , 36 9 .
C o teg ip e, B arão d e, 19, 2 6 , 4 6 , 199.
C o u sin , V icto r, 88.
C o u tin h o, A frân io, 20 3 .
C o u to , M igu el, 28 5 .
C o u to , R ib eiro, 357.
C ruz e S o u sa , 176, 181, 183.
C rysan th èm e, M adam e (v er M eló, E m ilia M o n corvo B andeira de).
C unha, A n to n io V ieira da, 333.
C unha B u e n o , 365.
C unha, C e lso , 264.
C unha, C iro V ieira da, 143, 144.
C unha, E u clid es da, 3 0, 188, 189, 192, 193, 2 0 6 , 2 1 1 , 2 2 7 , 2 2 8 , 2 3 1 , 2 6 5 ,
2 7 2 , 2 7 3 , 3 4 4 , 349.
C unha, F au sto, 2 5 9 , 26 1 .
C unha, F ernandes da, 28.
C unha, G astão da, 148.

377
D

D a m a scen o , D a rcy , 2 6 4 , 2 6 5 .
D ’A n n u n z io , G ab riele, 2 3 2 , 2 9 9 .
D an tas, C on selh eiro , 2 0 0 , 2 0 1 .
D an tas, S o u sa , 2 2 5 .
D au d et, 6 0 , 6 1 , 113.
D e u s, J oão d e, 165.
D ia s, C arlos M alheiros, 2 8 8 , 2 8 9 , 2 9 0 .
D ia s, G o n ça lv es, 8 8 , 167, 2 3 0 .
D ia s, T e ó filo , 9 5 , 33 7 .
D ick en s, C harles, 126.
D in ís, A lm áq u io, 2 8 0 ,2 8 1 .
D in is, Júlio, 3 1 3 .
D in is Júnior, 3 5 7 .
D in iz , F rei Jo ã o , 22.
D o lo r e s, C arm en, 37 0 .
D o r g e lè s, R olan d , 2 7 1 .
D ória, R o d rig u es, 3 37 .
D o sto ie w sk i, F iód o r, 2 62 .
D u a rte, U rb an o , 1 2 1 ,1 5 9 ,1 6 6 .
D u m a s F ilh o, A lex an d re, 6 2 , 6 3 , 6 4 , 6 5 , 7 6 , 7 9 , 8 2 , 188.
D uriau, Jean, 3 0 1 , 3 0 2 , 3 0 3 , 3 0 4 , 3 0 5 , 3 0 6 , 3 0 7 .
D u tra e M elo , 121.
D u tra, W altensir, 2 5 9 , 2 61 .

E dm undo, L u ís, 32 9 .
E llio t, G e o r g e , 126.
E n n es, A n to n io , 1 0 3 ,1 0 8 , 110.
E scra gn o le, B a rão d ’, 4 3 .
E scrag n olle D ó ria , 1 3 1 ,1 3 2 , 133.
E strada, Joaquim O só rio D u q u e, 5 5 , 193, 2 7 9 , 2 8 0 , 2 8 1 , 2 8 2 , 3 1 2 , 3 4 7 .

378
F

F ab regas, 8 0 , 81.
F a có , A m é r ic o , 152.
F alcã o , Ild e fo n so , 32 9 .
Faria, E duardo, 3 71.
FariaS B r ito , 2 7 2 , 28 1 .
F aro, 60.
F élix E m ílio, 131.
F é lix , C o ro n el Jo ã o , 3 4 , 35.
F em ão N eves, 276.
F erraz, B ru n o , 3 6 3 , 36 4 .
F erreira de R ezen d e, 24.
F errero, G u g lielm o , 2 1 4 , 2 2 7 , 2 28.
F év al, P aul, 59.
F eu illet, O c ta v e , 5 2 , 5 3 , 59.
F eyd ea u , E rn est, 2 3 2 .
F igu eira, A nd rad e, 2 9.
F igu eired o, A n tero d e, 109.
F ig u eired o , Jack son d e, 3 5 9 , 36 0 .
F ig u eired o P im en tel, 2 4 3 , 2 7 3 , 27 4 .
F lag, Susan a (N é lso n R od rigu es), 3 7 1 .
Flaubert, G u sta v e, 5 9 ,1 5 9 , 1 8 9 , 2 3 2 .
F leiu ss, M a x , 8 4 , 1 6 3 , 1 6 4 , 1 6 5 ,1 6 6 , 2 7 0 .
F lex a R ib eiro, 33 7 .
F o n seca , D e o d o r o da, 4 9 ,1 4 4 ,1 9 4 .
F o n seca , H erm es da, 198, 2 0 1 , 28 2 .
F o n seca , M aria J o sé d e C astro, 7 7.
F o n tes, H erm es, 32 9 .
F o n tou ra, A d elin o , 2 8 7 .
F o n tou ra, João N e v e s da, 144.
F o rt, P aul, 3 4 3 , 344.
F rança Júnior, 3 8 , 6 6 , 6 7 , 6 8 , 69.
F rance, A n a to le , 2 3 2 , 3 0 0 , 336.
F rancen, 3 0 6 .
F ran co, Joã o, 2 90.
F ran co, T ito , 33 7 .
F reire, E zeq u iel, 9 5.
F reire, L u ís J o sé Junqueira, 35 2 .

379
F reitas, A fo n s o d e, 337.
F reitas, L eo p o ld o d e, 148.
F reitas, Padre S en a , 103, 107, 108, 109, 110, 1 1 1 , 112, 113, 1 1 4 , 337.
F rieiro, E duardo, 2 5 9 , 2 6 1 , 2 6 5 .
F róes, L eo p o ld o , 32 2 .
F u lg ên cio , M anuel, 2 3 5 .
Furtado C o elh o , 81.

G ah isto, M anoel, 2 9 2 , 2 9 3 , 2 9 4 , 2 9 5 , 2 9 7 , 2 9 9 , 3 0 0 , 3 0 1 , 3 0 6 , 3 0 7 , 3 0 9 , 3 1 1 .
G ald ós, B e n ito P erez, 2 9 9 .
G alen o, Ju venal, 20 4 .
G all, 5 3.
G alvão, 67.
G a lv ez, M anuel, 2 9 9 , 3 1 1 .
G am a, D o m íc io da, 2 2 4 , 2 3 3 , 2 6 9 .
G ardênia, P aulo d e (B en ed ito C o sta ), 2 7 4 .
G am ier, 5 8 , 5 9 , 60.
G autier, T h éop h ile, 5 7 , 5 9 , 168.
G id e, A n d ré, 4 3 , 2 6 4 , 3 4 4 .
G o eth e, 5 6.
G o m es, G ald in o, 28 7 .
G o n ça lv es, R icardo, 337.
G o n co u rt, E dm ond e Jules, 7 8 , 1 3 1 ,1 3 2 , 133.
G on za ga, A rm ando, 3 3 5 .
G on zaga , C hiquinha, 3 2 1 .
G on zaga , T om ás A n tô n io , 150.
G o tl, M ax, 34 0 .
G oulart d e A nd rad e, 2 2 9 , 2 3 3 , 2 5 8 , 2 7 8 .
G ou rm on t, R ém y de, 2 9 5 .
G reen , Julien, 26 3 .
G rieco, A g rip in o , 8 3 ,1 6 7 , 184, 2 4 8 , 2 6 1 .
G uanabara, A lcin d o , 137.
G uastini, M ário, 3 28.
G uilm ar, A lp h o n su s d e, 148.
G uim araens, A lp h on su s d e, 148, 180, 1 8 1 ,1 8 2 , 183, 1 8 4 , 3 2 6 .
G uim arães, B ern ard o, 112, 121, 130, 1 5 4 , 2 2 9 , 2 3 0 , 2 3 3

f
380
G uim arães Júnior, L u ís, 163.
G uim arães, N e sto r , 33 5 .
G uim arães, Pinheiro, 57.
G u itry , L u cien , 2 8 1 , 2 8 2 , 347.
G u y o t, Y v e s, 169.

H a sslo ch er, G erm ano, 110.


H a ssloch er, P aulo, 360.
H erculan o, A lexan d re, 134.
H itler, A d o lp h , 20 0 .
H o m em , S ales T orres, 19, 2 0, 2 8 , 3 1 , 32.
H o y o s y V in en t, M arquês de, 37 1 .
H u g o , V icto r, 5 7 , 5 9 , 8 8 , 8 9 , 9 0 , 157, 168, 210.

Itajubá, V isc o n d e d e, 6 7 , 116.

Jellin eck , A d o lfo , 39.


Junqueiro, G uerra, 8 9 , 9 0 , 185.

K arr, A lp h o n se, 85.

381
L

L a B ru y ère, 2 1 .
L aet, C arlos d e, 185, 2 1 8 , 2 2 0 , 2 2 1 , 2 2 2 , 2 23.
L a fa y ette, 2 7 7 .
L a g e, Joã o, 3 3 5 .
L aguna, B a rão d e, 4 6.
L am artine, A lp h o n se d e, 5 3 , 7 4 , 7 5 ,1 5 9 , 167.
L and, E u g ên io , 37 1 .
L arangére, Juô (G esw a ld o C astig lion e), 339.
L arbaud, V a léry , 3 0 2 , 3 0 4 , 3 0 5 , 307.
L aupts, 170.
L eal, G o m es, 157.
L eal, V ic to r (A lu ísio A z e v e d o ), 1 6 0, 161, 162.
L eã o , M ú cio , 6 2 , 140.
L éautaud, 3 4 4 .
L eb esg u e, P hiléas, 2 9 2 , 2 9 3 ,2 9 4 , 2 9 9 , 3 0 0 , 3 1 1 .
L eb lon d , M arius A r y , 29 2 .
L ellis, C arlindo d e, 146, 33 7 .
L essa , P ed ro , 3 2 9 .
L im a, A u g u sto d e, 1 1 6 ,1 4 7 , 148, 33 7 .
L im a, H erm es, 34.
L im a, O liveira, 195, 2 1 3 , 2 1 4 , 2 1 5 , 2 2 3 , 2 2 4 , 2 2 5 , 2 2 6 , 2 2 7 , 2 2 8 , 2 29 .
L ind, H ialm ar, 3 1 1 .
L in s, Á lv a ro , 2 2 7 .
L isb oa, F ra n cisco , 30.
L ob a to , M on teiro , 3 0 4 , 3 1 2 , 3 1 3 , 3 1 4 , 3 1 5 , 3 2 2 , 3 3 4 , 3 3 7 , 3 4 4 , 3 4 5 , 3 4 9 ,
350, 362, 370.
L o b o , A rtur, 2 5 9 , 2 6 0 ,2 6 1 , 2 6 3 , 2 6 4 .
L o p es. B em a rd in o , 1 7 6 , 3 3 3 .
L o p es d e A ssu n ç ã o , 2 7 .
L o p es, T o m á s, 2 7 2 ,2 7 3 , 2 7 4 .
L orrain, Jean, 3 5 4 , 37 0 .
L u ís X I V , 2 2 9 .

382
M

M aced o, Joaquim M anuel d e, 19, 5 1 , 118, 119, 124, 130, 134, 2 0 4 , 2 3 0 , 2 5 7 ,


31 9 .
M aced o, A g o stin h o d e, 103, 109.
M achado, A lexan d re R. M arcondes (ver B an an ére, Juó).
M achado, B ra sílio , 87.
M agalhães de A zered o , 148.
M agalhães, C elso d e, 4 9 , 5 0 , 5 1 , 5 2 , 5 3 , 5 4 ,1 5 3 .
M agalhães, G o n ça lv es d e, 121.
M agalhães Júnior, R aim undo, 184, 2 8 3 , 2 8 5 , 3 3 3 , 3 3 4 , 3 3 5 , 3 36.
M agalhães, V alen tim , 7 6 , 8 3 , 8 4, 8 5 , 86, 8 7 , 9 1 , 9 3 , 10 2 , 116, 137, 151, 163,
164, 165, 1 6 6 ,1 8 0 , 184, 185, 186, 187, 188, 189.
M allarm é, S tép h an e, 370.
M allet, Pardal, 118, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 13 0 , 13 3 , 134, 13 5 , 136,
137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 3 1 9 , 36 0 .
M an oel, Padre João, 2 4 , 2 5 , 2 6 , 2 7 , 28.
M arañon, G reg o rio , 2 2 8 , 3 0 0 .
M argueritte, Paul, 78.
M argu eritte, V icto r, 341.
M ariano, O legário, 32 9 .
M arinetti, 3 2 5 , 3 2 6 .
M arrey, A d rian o, 337.
M artinez E strada, 33.
M artins, F ran cisco, 3 2 , 2 1 4 .
M artins, G aspar, 106.
M artins, W ilson, 184.
M arx, K arl, 129.
M ascagn i, 104, 338.
M aspero, 1 5 5 ,1 5 6 .
M atos, P ed ro G o m es d e, 171, 172, 173.
M a to so , E rn esto , 24.
M aupassant, G u y d e, 2 6 1 , 2 6 2 , 2 6 3 .
M auricio, Padre Jo sé, 4 9 .

383
M aurois, 34 4 .
M aya, A lc id e s, 125, 329.
M ed iei, G iu lio, 310.
M eireles, V ic to r , 68
M elo , E m ilia M o n co rv o B an d eira d e, 37 0 .
M en d es, C ân d id o, 6 9 , 71.
M en d es, O d orico , 167.
M en d on ça, C arlos S ü ssek in d d e, 91.
M en d on ça, L ú cio d e, 5 9 , 6 0 , 6 1 , 6 3, 6 5, 8 5 , 8 7, 8 8 , 8 9 , 9 0 , 9 1 , 116, 1 6 5 ,1 6 6 ,
1 8 5 ,1 8 7 ,1 8 8 .
M en d on ça, Salvad or d e, 5 9 , 6 1 , 6 2 , 6 3 , 6 5, 6 6, 8 7 , 27 5 .
M en eses, C ard oso de (B arão d e P aranapiacaba), 7 2 , 7 9.
M en eses, E m ílio d e, 3 2 7 , 3 2 8 , 3 3 0 , 34 0 .
M en eses, N azaré, 28 0 .
M en eses, R aim undo de, 26 6 .
M erim ée, P rosp er, 32 6 .
M ich elet, 8 9 , 155, 156, 35 2 .
M ille, P ierre, 2 9 9 .
M illiet, M arcel, 340.
M irabeau, 2 3 2 .
M iranda, S á d e, 314.
M o lière, 2 7 5 .
M o n tegazza, 102.
M on tép in , X a v ier d e, 134, 159.
M orais, H u g o d e, 36 5 .
M orais, P rudente d e, 2 1 , 14 4 , 146, 1 6 3 ,1 6 4 .
M orand, R en é, 340.
M oreira C ésar, 20 7 .
M oreira Sam paio, 123.
M ota, A rtur, 8 6 , 87.
M ota, C esário , 322.
M ota, L eon ard o, 36 3 .
M üller, L auro, 2 4 4 , 2 7 4 , 2 7 5 , 2 8 3 , 2 8 4 , 28 5 .
M urat, L u ís, 8 4 , 1 2 3 ,1 2 4 , 1 2 9 ,1 4 3 , 146, 2 6 6 , 27 7 .
M urger, 31 8 .
M u sset, A lfred d e, 2 9 , 5 9 , 8 8, 24 9 .

384
N

N ab u co , Joaquim , 2 1 , 2 7 , 3 3 , 4 0 , 4 1 , 6 2 , 8 7 , 1 21 , 16 8 , 2 1 3 , 2 1 4 , 2 1 5 , 2 1 6 ,
2 1 7 , 2 1 8 , 2 1 9 , 2 2 0 , 2 2 1 ,2 2 2 , 2 2 3 , 2 2 4 , 2 2 5 , 2 2 6 , 2 2 8 , 2 2 9 , 2 3 0 , 2 3 3 , 2 7 7 ,
3 4 3 , 35 2 .
N ad aillae, 157.
N e l, 2 9 5 , 2 9 6 .
N e y , P aula, 5 6 , 9 4 , 118, 14 3 , 144, 2 6 6 , 36 0 .
N ie tz sc h e , 2 4 5 .
N o g u eira , A lm eid a, 137.
N o g u eira da G am a, V isc o n d e , 2 1 , 2 2 , 23.
N o rb erto , Joaquim , 353.
N ord au , 3 2 7 .
N orm an d y, G e o r g e , 31 1 .

O cta v ia n o , F ran cisco, 6 9 , 7 1 , 118, 119, 190.


O c tá v io , R o d rig o , 173.
O lím pio, D o m in g o s, 154.
O lin to, A n tô n io , 163.
O liveira, A lb erto d e, 150, 2 3 2 , 3 2 8 , 3 2 9 .
O liv eira, A rtur d e, 5 4 , 5 5 , 5 6 , 5 7 , 168.
O rtigã o, R am alho, 8 5, 9 2 , 9 3 , 9 4 , 9 5 , 104, 105, 1 1 6 ,1 3 9 , 1 8 5 , 34 0 .
O só rio , P au lo, 29 0 .
O u ro P reto, V isc o n d e de, 2 4 , 2 6 , 2 3 4 . 23 8 .

P aiva, M an so, 335.


P aiva, M anuel de O liveira, 151, 152, 1 5 3 ,1 5 4 .
P aranhos, 4 4.
Paranapiacaba, B arão d e (ver M en eses, C ard oso de).
P a sso s, G uim arães, 8 5 , 1 1 8 ,1 4 3 ,1 4 4 , 17 1 , 2 2 6 .

385
P assos, P ereira, 2 4 2 .
P atrocínio, J osé d o , 1 2 9 ,1 3 7 , 138, 139, 143, 2 3 9 .
P atrocínio F ilho, J o sé d o (Z eca ), 2 7 9 , 2 8 3 , 2 8 4 , 2 8 5 , 3 6 0 .
P azu rk iew icz, S tanislas, 31 0 .
P eçanha, N ilo , 2 4 4 , 2 7 8 .
P edro II, Im perador d o B rasil, 2 1 , 2 3 , 2 4 , 2 7 , 2 8 , 3 2 , 3 3 , 3 6 , 4 4 , 4 6 , 4 9 , 7 1 ,
7 5 , 1 1 5 , 1 1 6 , 1 1 7 , 134, 194, 2 3 6 , 2 4 1 , 3 17.
P e ix o to , A frâ n io , 5 4 ,1 5 4 , 2 2 8 , 2 3 3 , 2 3 4 , 2 7 6 , 3 1 5 , 3 1 6 , 3 1 8 , 3 5 3 , 3 5 4 , 35 8 .
P e ix o to , F lorian o, 2 5 , 118, 142, 143, 144, 145, 14 6 , 14 8 , 15 0 , 155, 1 6 4 ,1 9 8 ,
199, 2 0 0 , 2 6 5 .
P ena, C o m é lio , 2 6 3 .
P ena, L u ís C arlos M artins, 353.
P eregrin o Júnior, 3 3 3 , 3 5 0 , 35 7 .
P ereira, L úcia M igu el, 5 0 , 8 3 , 151, 1 5 2 ,1 7 7 .
P ereira, S ílv io B ., 37 1 .
P esso a , E p itácio, 3 2 3 , 3 2 4 , 3 3 4 , 36 7 .
P icch ia, M én otti D e l, 3 3 4 , 3 4 9 , 3 6 2 , 3 6 3 , 36 4 .
P inheiro, F ernandes, 3 5 1 .
P inheiro Júnior, 3 27.
P inheiro M ach ad o, 9 5 , 198, 2 0 1 , 2 4 4 , 2 4 5 , 2 4 6 , 3 35.
P in to, M anuel S o u sa , 29 1 .
P ires, A u rélio , 148, 26 0 .
P lon , 30 6 .
P o e , E dgar A llan , 2 6 1 , 2 6 2 , 2 6 3 , 37 0 .
P o lito , R aul d e, 37 0 .
P om p éia, R aul, 61, 7 6 , 8 6 , 11 5 , 116, 118, 144, 145, 146, 15 4 , 1 5 6 ,1 5 7 , 158,
1 6 5 ,1 7 1 ,1 7 3 , 190, 3 1 9 , 360.
P on tes, C arlos, 3 0 , 3 1 , 32.
P on tes, E ló i, 155.
P o rto , M ário, 33 7 .
P rado, E duardo, 7 6 , 9 5 ,1 4 5 , 2 0 7 , 2 1 7 , 2 2 0 , 2 2 4 , 2 7 0 , 28 9 .
Prado L o p es, 2 6 0 .
P rado, P aulo, 31 8 .
P rado, V eridiana, 95.
P restes, Júlio, 3 3 7 .
P rév o st, M arcel, 2 9 7 , 3 07.
P risco, F ran cisco, 5 5 , 2 32.
P rou st, M arcel, 170.
P ujol, A lfr e d o , 5 5 ,1 0 3 , 110.

386
Q

Q u eiró s, E ça d e, 6 5 , 7 3 , 7 4 , 7 9 , 8 0 , 8 1 , 8 5 , 9 2 , 1 0 0 , 1 1 5 , 1 2 2 , 1 3 9 , 1 5 3 ,1 5 9 ,
1 7 6 ,1 8 5 , 2 0 5 , 2 1 8 , 2 3 3 , 2 7 1 , 3 3 9 , 34 0 .
Q u esad a, E rn esto, 71.
Q u in et, E dgard, 89.

R ab elo , Laurindo, 11 2 , 3 5 2 .
R am iz G a lv ã o , 6 9, 2 7 5 .
R am os, G raciliano, 3 0 7 , 34 3 .
R an g el, G o d o fr e d o , 3 1 2 , 31 5 .
R eb o u ça s, 23.
R ê g o , J o sé L in s d o, 34 3 .
R eg u eira da C osta, 2 7 7 .
R eis, A n tô n io S im õ es d o s, 25 7 .
R e is, S o te r o d o s, 2 04.
R en an , E rn est, 168, 2 1 6 , 2 5 4 .
R esen d e, C o n d e d e, 353.
R esen d e, S everian o d e, 30 0 .
R euillard, G abriel, 34 0 .
R ib eiro , A n tô n io da R och a, 20 7 .
R ib eiro , D o m in g o s A lv e s, 22 0 .
R ib eiro , João (M inistro da F azenda), 33 5 .
R ib eiro , J o ã o , 4 8 , 1 2 5 , 1 3 8 , 1 3 9 , 1 4 0 , 141, 142, 2 4 7 , 3 1 6 , 3 3 5 .
R ib eiro , Júlio, 9 5 , 100, 1 0 1 ,1 0 2 , 103, 104, 10 5 , 106, 10 7 , 110, 1 1 1 ,1 1 2 , 114,
1 1 5 , 1 2 2 ,1 5 4 , 2 3 0 , 3 3 7 .
R ib eiro , M anuel, 26 6 .
R io B ra n co , B arão do (J o sé M aria da S ilva Paranhos Jr.), 2 1 4 , 2 1 8 , 2 2 0 , 2 2 4 ,
2 2 6 , 2 2 7 , 2 6 9 , 2 7 5 , 2 7 6 , 356.
R io B ra n co , V isc o n d e d o, 4 4 ,4 5 , 4 8.
R io , J o ão d o (P aulo B arreto), 182, 2 4 2 , 2 4 3 , 2 4 4 , 2 4 5 , 2 4 6 , 2 4 7 , 2 4 8 , 2 5 1 ,
274, 277, 292, 317, 328, 341, 352, 354, 355, 356, 357.

387
R od rigu es A lv e s, 2 4 2 , 2 4 3 , 2 4 4 , 2 6 9 , 3 27.
R od rigu es, J o sé H o n o rio, 171.
R od rigu es, N é lso n , 3 7 1 .
R o m ero , N é lso n , 9 7 , 9 8 , 9 9 , 253.
R o m ero , S ilv io , 3 0 , 3 9 , 8 4 , 8 5, 9 6 , 9 7 , 9 8 , 9 9 , 100, 116, 117, 121, 175, 180,
185, 2 1 3 , 2 3 0 , 2 3 1 , 2 3 2 , 2 3 4 , 2 5 2 , 2 5 3 , 2 5 4 , 2 5 5 , 2 8 0 , 3 0 4 , 3 5 0 , 3 5 1 , 353.
R o sa e S ilv a , 1 9 8 , 2 7 7 .
R o u èd e, E m ílio, 8 2 , 137, 148, 150.
R o ssea u , Jea n -J a cq u es, 86.
R o x o , H en riq u e, 3 5 9 , 360.

S á , G o n za g a d e, 3 6 5 .
S abino B a rro so , 148.
S ab óia R ib eiro, 1 7 7 ,1 7 9 .
Santa Justa, 113.
S a n t’A n a , N u to , 327.
S a in te -B e u v e , 9 8 , 167, 2 3 1 ,2 3 2 .
S a in t-J u st, 145.
S a in t-S im o n , 2 1 , 2 2 9 .
Saldanha da G am a, 21.
S a les, A n to n io , 9 2 .
S a les, F e m á o , 3 6 5 .
S a les, R u b en s, 3 6 5 .
S alisbury, 2 2 5 .
Sand, G e o r g e , 1 3 0 ,1 6 8 .
Sandeau, 59.
S a n to s, João F elicio d o s, 20 7 .
Saraiva, 21.
S chm idt, A fo n so , 3 3 8 .
S ch erer, Edm und, 98.
S c o tt, W alter, 5 1 , 2 0 4 .
Seabra, B ru n o , 2 0 4 .
S eg u r, P adre, 6 8 , 69.
S en a , E rn esto , 151.
S ena, N é lso n , 148.
Serra, Joaquim , 7 2 , 118.

388
S h ak esp eare, 245.
S ie n k ie w ic z , 23 2 .
S ilv a , A n to n io D in is da C ruz e , 353.
S ilv a , G aspar da (V isco n d e da B oaven tu ra), 2 8 7 , 2 8 8 , 337.
S ilv a , Jardim , 76.
S ilv a , Joaquim N orb erto d e S ou sa, 35 3 .
S ilv a , P ereira da, 2 0 , 7 2 ,1 6 7 .
S ilveira, A lcântara, 364.
S ilveira , L u ís, 32 7 .
S ilveira M artins, 19, 4 4 , 7 5 , 2 0 0 , 2 01.
S im o n sen , M ário, 32 4 .
S oa res, R aul, 151.
S o u sa , C láu d io d e, 32 2 .
S o u sa , In g lês d e, 10 0 , 32 9 .
S o u sa , J. G alante d e, 50.
S p eers, W ., 106.
S purzheim , 53.
S u e, E u g èn e, 89.
S u ed , Ibrahim , 27 4 .

T ain e, H y p p o lite, 9 8 , 351.


T aunay, A fo n s o , 2 5 2 , 2 5 3 , 255.
T aunay, V isco n d e de (A lfr e d o d’E scragn olle), 2 0 , 2 1 , 2 5 , 2 7 , 4 2 , 4 3 , 4 4 , 4 5 ,
4 6 , 4 7 , 4 8 , 7 3 , 118, 1 5 3 ,1 5 4 , 2 1 7 , 2 3 7 , 2 4 1 , 2 5 2 , 2 5 3 , 2 5 4 , 2 5 5 , 2 5 6 , 2 5 7 ,
258.
T á v ora , Franklin, 6 9, 7 1 , 7 2 , 154, 2 55.
T eix eira , A n to n io , 102, 103, 106.
T eix eira e S ou sa, 2 0 4 .
T e ó filo , R o d o lfo , 172.
T eresa C ristina, D on a, 194.
T errail, P o n so n du, 7 6 ,1 3 4 ,1 5 9 .
T h éo F ilho, 3 4 1 , 3 4 2 , 36 9 .
T h iolier, R en é, 33 7 .
T irad en tes, 193.
T o b ia s M o n teiro, 1 6 8 ,1 6 9 , 170, 22 4 .
T o rg a , M ig u el, 33.

389
T o rm es, Jacin to d e, 2 7 4 .
T orres, A n to n io , 192, 2 0 2 , 3 1 8 , 3 5 4 , 3 5 5 , 3 5 6 , 3 5 7 , 3 6 0 .

V a l, V aldir R ib eiro d o , 189.


V a lle-In clá n , 2 9 9 .
V am p ré, D a n to n , 32 4 .
V a n T h iegh en , 9 7 ,1 3 4 .
V arela, F agu n d es, 9 0 ,1 5 7 , 352.
V arejão, A q u iles, 137.
V a sc o n c e lo s, C arlos d e, 3 6 9 , 3 7 0 .
V a sc o n c e lo s, D io g o d e, 1 4 7 , 149.
V a z , L é o , 3 6 2 , 371.
V e lo so , A n tô n io L eã o , 2 5 8 , 3 5 9 .
V e lo so F ilh o, L eão , 31 8 .
V eríssim o , E rico, 3 07.
V eríssim o , Jo sé, 2 5 , 3 0 , 3 1 , 6 9 , 7 2 , 8 3 , 9 7 , 155, 1 5 6 , 157, 158, 1 8 1 ,1 8 7 , 188,
189, 2 2 3 , 2 3 0 , 2 3 1 , 2 3 2 , 2 3 3 , 2 3 4 , 2 4 2 , 2 5 2 , 2 5 3 , 2 5 4 , 2 5 7 , 2 5 8 , 2 6 7 , 2 7 4 ,
275, 325, 326, 343, 350, 351.
V e m e , Júlio, 5 9 , 36 4 .
V ian a, A rtur G aspar, 358.
V ian a, H é lio , 171.
V iana, Javier d e, 311.
V ian a F ilho, L u ís, 199.
V iana, O d u vald o, 3 2 3 , 3 2 4 .
V iana, P ed ro L u ís F erreira, 19, 2 9 , 3 2 , 122.
V ian a, R en a to , 37 0 .
V ieira (dicionarista), 3 0 2 .
V ieira, João, 2 4 3 .
V ieira, P adre, 2 7 3 .
V ieira S o u to , L uís F elip e, 55.
V ilalva Júnior, 337.
V illem essan t, 68.
V ital, B isp o , 68.
V iv e ir o s d e C astro, 82.

390
w

W alsh, G e o r g e , 370.
W ashington L u ís, 3 28 .
W enceslau, P resid en te, 24 7 .
W erth, L éo n , 340.
W ilde, O scar, 370.

X a v ier, F ontoura, 76.


X a v ier, L in d o lfo , 329.

Zaluar, A u g u sto E m ílio, 2 0 4 .


Z am a, C esar, 20 1 .
Z acarias, C on selh eiro, 2 0 , 2 6 , 2 7 , 32.
Z ola, É m ile, 5 0 , 5 1 , 6 1 , 6 3 , 7 8 , 7 9 , 8 0 , 82, 1 0 0 , 101, 1 0 3 ,1 0 5 , 111, 115, 122,
123, 126, 127, 128, 1 2 9 ,1 3 0 , 154, 159, 1 6 0 ,1 6 6 ,1 6 8 , 169, 17 0 , 2 0 5 , 2 0 6 ,
2 3 3 , 2 5 4 , 26 3 .

391
Obras Reunidas de Brito Broca

1. Românticos, pré-rom ánticos, ultra-románticos: vida literária e


romantismo brasileiro (São Paulo: Polis; Brasília: INL, 1979).
Prefácio de Alexandre Eulalio.

2. Ensaios da mão canhestra (São Paulo: Polis; Brasília: INL,


1981). Prefácio de Antonio Candido.

3. Machado de A ssis e a política: mais outros estudos (São Paulo,


Polis, Brasília: INL, Fundação Pró-Memória, 1983). Prefácio de
Silviano Santiago.

4. Papéis de Alceste (Campinas: Unicamp, 1991). Prefácio de Ho


mero Senna.

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