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Samuel Rawet Contos e novelas reunidos Organizacao André Sefiin FLUP-- BIBLIOTECA 935657 Samuel Rawet: fiel a si mesmo “O que hi de belo no homem é a capacidade de sonhar um ideal. De trigico, a de confronti-lo com o real — Quando realmente sonha e confrontal” Samuel Rawet “Bu mesmo sou a matéria do meu livro.” Montaigne Sob o impacto da leitura do poeta Vicente Huidobro, Samuel Rawet escreveu que “a visio” das obras completas de um autor no o atrata, ele que no gostava de livros volumosos: “Gosto de catar entre os volumes isolados 0 que me oferece em cheiro, tato e visio a garra do monstro.” A imagem é boa ¢ ecoa curiosamente nesta reunigo de sua ficgo. Nas ilti- mas trés décadas, ele foi lido muito a seu gosto, em volumes isolados, geralmente garimpados em sebos, ou em pequenas antologias, téo raras e diffceis de encontrar como a maioria dos seus livros, (Quais seriam as caracteristicas basicas de sua obra? Em linhas gerais, petsonagens imersos na angtistia da inadaptagio e da incomunicabilidade, a condigdo ambigua do imigrante (cindido entre dois mundos, duas lin- guagens), a experitncia dramética do exilio (a condigéo judaica), a desa- ‘gregacio social, a marginalidade, a alienagio. Nesse sentido, poucos es- critores brasileiros terdo enfrentado tio frontalmente essa condigéo —na vida, na literatura —, naquele plano que Kazantzakis definiu como iden- tidade profunda (da raga), nfo como idéia abstrata, mas como uma reali- dade de sangue ¢ carne. Nao por acaso Samuel Rawet se fixou, em mais, de um momento, na obra e na figura de Cruz € Sousa, seu igual. A certa altura de O terreno de wma polegada quadrada, diz. o narrador: “Judeu & isso, € aquilo, qualquer coisa parecida com o que enfrentara pessoalmen- te em sua condigio de mulato, ¢ mulato é negro, ¢ negro € isso, € aquilo. ‘Nenhuma violéncia, nenhum obstéculo, conereto, um estado de espirito, apenas, a criar barreiras, um incémodo feito de miudezas que moem, tri- turam, dilaceram e exacerbam pequenos impulsos, sonhos. (...) Pensara acaso alguma vez na dor de Farias Brito, na dor de Cruz e Sousa, na dor de Lima Barreto?” ‘Quase nunca lembrado pela maioria dos historiadores literérios, visto como um antfpoda ou um excéntrico, incompreendido, estigmatizado, Rawet foi gradualmente se afastando da luta literétia, passando a viver € publicar seus livros 4 margem do circuito literdvio. Edigdes precariamen- te distribuidas, pagas pelo proprio bolso e esquecidas em salas de peque- nos editores ignorados e inescrupulosos, como observou Fausto Cunha. Assim, comegou a ser ido anonimamente, culruado em silencio, distante do burburinho das festas ¢ badalagées do chamado mundo da literatura, Samuel Urys Rawet nasceu em Klimontow, pequena aldeia préxima de Vars6via, Pol6nia, a 23 de julho de 1929. Naturalizado brasileiro em 1936 (“Aqui cheguei quando tinha sete anos, aqui comegou minha de imigrante”, escreve em Devaneios de um solitdrio aprendiz da ironia), ctiado no subéitbio carioca, de acordo com a entrevista concedida a FlA- vio Moreira da Costa em 1969 — “Até os vinte e poucos anos morei nos subéirbios da Leopoldina. Sou fundamentalmente suburbano, o subiirbio std muito ligado a mim. Aprendi o portugués na rua, apanhando e falan- do etrado — acho até que este é 0 melhor método pedagégico em todos os sentidos, Aprendi tudo na rua.” Entre 1949 ¢ 1951, sob a lideranca de Dinah Silveira de Queiroz, integrou o grupo Café da Mana, ao lado de Fausto Cunha, Renard Perez, Jones Rocha, Luiz Canabrava ¢ Nataniel 10 | prerscio Dantas, entre outros. Por essa mesma época, passou também a colaborar com a Revista Branca, de Saldanha Coelho. Engenheiro formado pela antiga Escola Nacional de Engenharia (1949-1953), a partir de 1957 tra- balhou como calculista de concreto atmado na equipe de Oscar Niemeyer, Licio Costa ¢ Joaquim Cardozo. Ajudou construir Brasilia, calculou sozinho o prédio do Congreso Nacional e, no Rio, o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra. Em Israel, durante um ano acompanhou Niemeyer no projeto da Universidade de Haifa. Ainda em Devaneios de sum solitdrio aprendis da ironia: “No fundo, bem no fundo de meu deses- pero, tinha meus sonhos. (..) Bu nao precisava de drogas para delirat. Eu delirava.” Fascinado pelo teatro e pelo ensafsmo, em ambos os géneros deixou vasta produséo, em grande parte inédita em livro. Residiu sobre- tudo no Rio de Janeiro. Em Brasilia, permaneceu de 1962 a 1969 e de 1974 a 1984, ano em que, na tiltima semana de agosto, foi encontrado ‘morto em casa, na cidade satélite de Sobradinho. Para Antonio Carlos Village, Rawet isolara-se, talvez.cansado, ou desiludido. De 1956 a 1981, publicou doze livros. Entre 1967 ¢ 1972, a fase mais intensa: sete livros novos e duas reedigSes (vendeu um apartamento em Brasilia para isso), sem falar nas suas edigbes artesanais, entre elas, Devaneios de um solitd- tio aprendiz da ironia. Ele néo podia esperar: “Percebo que nfo preciso de respostas para prosseguir. Preciso de perguntas.” Com a morte, chegou 0 momento do oblivio e, posteriormente, das inevitaveis exumag6es literdrias. Hist6ria arrastada que eventualmente se agrega a aspectos dolorosos da sua vida, da sua personalidade explosiva, da sua inadequagio. Bssas extimacdes quase sempre tomam como ponto de partida ou chegada o ensaio “Kafka e a mineralidade judaica owa tonga da mironga do kabuleté” (Bscrita, n. 24, set. 197), no qual Rawet rompe ‘com os judeus, numa atitude resultante, segundo Moacyr Scliar, de auto- 6dio judaico. Assis Brasil, todavia, toca a ferida mais de perto: “A familia foi o principal motivo da sua libertagio.” Sob este ponto de vista, 0 en- saio Angiistia e conbecimento é desmistficadar, bem como a observacéo de Gilda Salem Szklo, que considerou esse rompimento com as rafzes jue daicas um “ato de transfiguragdo” dentro do seu “itinerério espiritual”. Deacordo com uma bela imagem de Isaac Deutscher, ele parecia estar, 20 ‘mesmo tempo, dentro ¢ fora do judafsmo. © que equivale a dizer que Samuel Rawer foi fil a si mesmo até o fim. Sob o impacto da morte, Alberto Dines assinalou a esse respeito: “Mudaram tanto assim os judeus para que seu inventor na moderna lite- ratura brasileira fosse designado como antijudeu? Aquele que optou pelo despojamento, pela humildade, pela singeleza de viver, aquele que era todo pensamento, um despossuido — tal e qual os profetas— dedicado apenas a compreender 0 mundo, aquela termura pelo bicho solitdtio e marginal poderia ser anti-semita? Duvido. Viveu em siléncio, morreu em siléncio, deixou-se destrogar pela vida como se tivesse muitas para desperdicat, Bis ‘um herofsmo ¢ uma generosidade que nao se tem noticia nas paginas lite- rérias de hoje em dia, iluminadas pelas lantejoulas da amizade e da empulhacdo. Rawet no encontron protegao na prancheta de engenhei- ro, nem nas pens6es baratas da rua do Catete onde morou no Rio.” Ultrapassando 0 aspecto polémico, Rosana Kohl Bines, no excelente estudo “A prosa desbocada do ilustre escritor estrangeiro”, tocou num ponto que me parece crucial: “Uma identidade hifenizada de judeu-brasi- leiro, que se traduz como linguagem partida. Entre a palavra chula e a palavra filoséfica, nao hé mediacao, s6 atrito. Nao se vislumbra a via do didlogo. © hifen marca antes um abismo entre duas figuras, duas condu- tas, duas graméticas que se tomam por irreconciliéveis. De um lado, Rawet, co judeu imigrante, educado no cheder, afcito 20s livros ¢& indagacso inte- lectual, évido leitor ¢ escritor sofisticado. De outro, Rawet, 0 carioca su- burbano, educado na pedagogia das ruas, boémio, malandro e desbocado, para quem o palavrao se torna sinénimo de ‘prosa saborose, brasileira’. ‘embate entre estas duas polaridades se trava em linguagem e € feroz. (..) Avoz narrativa sustenta uma veeméncia que beira o insuportavel. A pala- vra soa como grito ¢ como grito nos compele a uma espécie de escuta forgada a ferro e fogo, da qual saimos sempre ‘chamuscados’.” E certo que a temética judaica, adensada ou rarefeita, nunca o aban- donou. E, dos Contos do imigrante aos tltimos contos, no volume Que os ‘mortos entervem seus mortos, ou do “poema sinf6nico” Abana as pégi- nas de Viagens de Ahasverus & terra albeia ent busca de um passado que ido existe porque é futuro e de wm futuro que jd passou porque sonhado, 12 pneracio, Rawet terminou o seu périplo tal como em si mesmo transformado. Pou- oa pouco, e sobretudo depois de Os setes sonhos, a matéria que o anima passa 2 alimentar uma via de mao dupla que o leva da ficgio ao ensaio € vice-versa. Na inteng&o de libertar-se “de algumas idéias obsessivas” (Cons- ciéncia e valor), comeca a dedicar-se a0 ensaio propriamente dito ¢, 20 freqlientar os dois géneros simultaneamente, num entrecruzar de indaga- ‘goes éticas e estéticas, ele observa em Alienacdo e reatidade: “Hoje a pala- vyvra mudou para mim. £ pura ambigitidade em relagio ao real, ¢ os dois cextremos experimentados me convencem ainda mais: delitio e ironia.” Logo mais, em Eu-tu-ele, chega a admitir que “a literatura para mim ago- ra éuma forma de autoconhecimento. Apenas.” E sintomatico que Almeida Fischer tenha preferido ver hermetismo e Gificuldades de leitura em O terreno de uma polegada quadrada. Nao aten- ica social e moral, 0 radica- éolivro tou para o nonsense, a ironia ¢ a violenta lismo de seu imaginério. Helio Pélvora, contudo, nao se enganou: mais espontaneo de Rawet. O recorte ensaistico, como em grande parte dos contos de Os sete somos, esté presente, e os pequenos detalhes auto- biogréficos deixam de atuar como fundo de palco apenas (como em Con tos do imigrante ou em Didlogo), uma ver. que ensaio e conto, circulando em espagos limitrofes, liberam a passagem para a evasto memorialfstica. Talvez destoem deste conjunto “Madrugada seca” e “O pio de nossa mi- sétia”, um flerte de Rawet com o que seria a moda da época. Nesses con- tos, ele no parece estar em seu elemento. Mas sem diivida estd em seu elemento em alguns contos extraordinarios — “O terreno de uma pole- gada quadrada”, “Reinvencao de Lézaro”, “Lisboa a noite”, “Johny Golem”, assim como estava plenamente em seu elemento em “Os sete sonhos”, “Fé de oficio”, “Sobolos rios que véo”, “Kelevim” e “Cronica de uum vagabundo”, de Os sete sonbos, principalmente ao evocar um univer- so em constante desagregacao, emblematico de sua literatura, Nesse con- texto, “Cronica de um vagabundo” é passo inaugural para o encantatério, para o fmpeto de celebragdo do cotidiano alcangado em O terreno de uta polegada quadrada e, mais adiante, para a aspera iluminago de Viagens de Ahasverus... Nesse passo, no seré dificil vislumbrar em “Cronica de um vagabundo” sinais que prenunciam as Viagens de Abasverus...: “Galo- 13 pa tens sonhos e revive-os exatamente nessa estrada de asfalto ¢ pocira. Ou entio retém a visdo de um segundo que te custou anos de trabalho de esforgo. O instante em que pela primeira vez te destumbraste com um entardecer metilico de uma franja vermelha na ctista dos montes e uma chapa résea se esbatendo em roxo, azul, cinza e noite. Quem sabe desgra- ‘caste tua vida apenas para conquistar esse instante, que nunca mais se repetit, nem te interessa mais.” ‘Novamente em Devaneios de um solitério aprendiz da ironia: “Sou ‘eterno imigrantes parto de mim para mim mesmo, de meu corpo para mew corpo, mutvel.” Na famosa entrevista & Farida Issa, em O Globo, seu depoimento também é veemente e provocador: “Acho que sempre falta tudo a0 homem, daf a sua grandeza. Ele tem que conquistar a cada mo- mento a sua realidade. O problema é que ignora isso. Faltarlhe a consci- éncia de que sua consciéncia é permanente criadora de realidade, entre o8 limites de nascimento e morte. Falta-Ihea consciéncia de sua insignificdn- cia no mundo, para ter realmente 0 direito de conquistar um significado. Falta-lhe a consciéncia da propria morte, para diante dela afirmar seus valores fandamentais, ¢ afastar, repugnado, os valores eternos que The oferecem. © homem ainda néo existe, ele esté sempre no futuro. Dai a grandeza de seu presente. E a miséria.” Tudo isso converge para um livro densamente construfdo, que em certa medida concentra todas as suas preo- capagées formais ¢ existenciais, como pereebeu logo de infcio Assis Brasil —Viagens de Ahasverus... & como se Rawet procurasse canais de respira ‘ggoem meio a angiistia (“um sentimento que de to familiar lhe era agra~ davel”), como se pudesse enfim libertar-se dos grilhes de sua intermitente ‘méquina de pensat, agora deliberadamente onirico, criador “permanente de realidades singulares”. No metamorfismo simb6lico de Ahasverus, ele se acerca da “exigéncia interna do ser”, e estabelece “um sentido pessoal de ética”, © que talvez lhe permita, por alguns momentos, respirar mais, solto, como em Consciéncia e valor: “Gostaria de finalizar com um so- ho. Eu vivo sob os signos dos sonhos. Provavelmente um dia sonharei que estou morrendo e a0 acordar... acordar?” ‘Em suma, a obra de Rawet, como escreveu em 1967 Anatol Rosenfeld ‘arespeito da obra de Kafka, pode ser considerada toda ela “uma epopéia | | i PrerAcio da frustragao, da procura baldada de integracZo ¢ ajustamento”. Dos Contos do imigrante, nos quais se travam lutas ferozes de adaptagio a0 desconhecido, até chegar & mitologia do cotidiano insélito dos contos de Os sete sonhos, de O terreno de unta polegada quadrada, de Que os mor- tos enterrem seus mortos, em tudo que escreveu, Rawet desce & raiz de uum “sofrimento triturado” que se traduz em desejo de aproximago com © outro, com o diferente, detalhe que no escapou ao olhar emotivo de Gilda Salem Szklo: “Seus contos tratam as personagens de forma fragmen- ‘ria, insatisfatéria, incompleta, que néo deixa de ser 0 modo com que elaboramos o conhecimento de nossos semelhantes.” J4 em Didlogo, 0 narrador adverte: “Um homem é sempre um estranho diante do outro.” E ainda Gilda Szklo quem sugere 0 melhor didlogo do leitor com a obra de Rawet: “Na realidade, a melhor maneira de ler Rawet nao é racio- nalmente; nao é intelectualizar. Devemos entrar na obra quase telepatica- mente, penetrar na sua esséncia através da sua linguagem, dos movimentos, das pausas, dos gestos que sao sinais e evidéncias das motivagées das per- sonagens. Requer de nés uma empatia natural, aquilo que Goethe cha- mou de ‘afinidades eletivas’.” Em outras palavras, s6 a empatia profunda pode nos aproximar de um autor, nessa confluéncia de acasos que € 0 encontro do leitor com o autor e vice-versa. Isso porque Samuel Rawet, ‘como Machado de Assis, Clarice Lispector ou Dalton Trevisan, na esfera dos escritores que valem realmente, exige o leitor razoavelmente prepa- ado, familiarizado coma selva escura da condigio humana, Assim: pronto para catar o que the oferece em cheiro, tato ¢ visso a garra do monstro. Awpré SEFFRIN Rio, julho de 2004, CONTOS Contos do imigrante (1956) A Dinah Silveira de Queiroz, Prudente de Morais, Neto. A Helena e Renard Perez, a segunda edigdo. ‘ara evitar equivacos ou mal-entendidos declaro que, tal como o pro- tagonista deste romance ndo & autobiografico, da mesma forma a Sictlia que 0 enquadra e acompanha sb é Sicilia por mero acasos ‘apenas porque o nome Sicilia me soa melhor que 0 nome Persia ou Venezuela, De resto ereio que todos os manuscritos se encontram uma garrafa, ELIO VITTORINI Gente da Sicilia O profeta ‘Todas as ilusoes perdidas, s6 Ihe restara mesmo aquele gesto. Suspenso 8.0 passadigo, e tendo soado o iltimo apito, o vapor levantaria a ancora. Olhou de novo os guindastes meneando fardos, os montes de minérios. Lé embaixo correrias ¢ linguas estranhas. Pescogos estirados em gritos para 605 que 0 rodeavam no parapeito do convés. Lengos. De longe o buzinar de automéveis a denunciar a vida que continuava na cidade que estava agora abandonando. Pouco Ihe importavam os olhares zombeteiros de alguns, Em outra ocasido sentir-se-ia magoado. Compreendera que a bar- ba branca ¢ 0 capotio além do joelho compunham uma figura estranha para eles, Acostumara-se. Agora mesmo ririam da magea figura toda ne- ‘a, exceto 0 rosto, a batba e as maos mais brancas ainda. Ninguém ousa- va, entretanto, o desafio com os olhos que impunham respeito e confiavam lum certo ar majestoso ao conjunto. Relutou com os punhos trancados nas témporas & fuga de seu interior da serenidade que até ali o trouxera. Ao apito sutdo teve consciéncia plena da solido em que mergulhava. O re- torno, tinica safda que encontrara, afigurava-se-lhe vazio e inconseqiien- te. Pensow, no momento de hesitagdo, ter agido como crianga. A idéia que se fora agigantando nos iltimos tempos ¢ que culminara com a sua pre- senga no convés, tinha receio de vé-la esboroada no instante de dfvida. O medo da solidao aterrava-o mais pela experiéncia adquirida no contato diétio com a morte. Em tempo ainda. — Desgam o passadigo, por favor, descam!... [A figura gorda da mulher a sew lado girou ao ouvir, ou a0 julgar ouvir, as palavras do velho, — 0 senhor falou comigo? Intl. A barreira da lingua, sabia-o, ndo Ihe permitiria mais nada. O rosto da mulher desfigurou-se com a negativa ¢ os olhos de stiplica do velho. Com exceg6es, 0 recurso mesmo seria a mfmica ¢ isso Ihe acentua~ riaa infantilidade que o dominava. $6 entio percebeu que murmurara a frase, e envergonhado fechou os olhos. — Minha mulher, meus filhos, meu genro. Arurdido mirava o grupo que ia abragando ¢ beijando, grupo estranho {mesmo 0 irmio e 0s primos, nao fossem as fotografias remetidas antes ser Ihe-iam estranhos, também), e as lagrimas que entio rolaram nfo eram de ternura, mas gratidio. Os mais velhos conhecera-os quando criangas. O préprio irmao havia trinta anos era pouco mais que um adolescente, Aqui se casara, tivera filhos e filhas, e casara a filha também. Nem recolhido as ‘molas macias do carro que o geno guiava cessaram de correr as lagrimas. As perguntas em assalto respondia com gestos, meias-palavras, ou ento com ‘o siléncio. O corpo magro, mas rio, que apesar da idade produzita traba- Tho, e garantira sua vida, oscilava com as hesitagSes do tréfego, e a vista nenhuma vez procurou a paisagem. Mais parecia concentrar-se como que respondendo a avalanche de ternura. © que Ihe ia por dentro seria impos- sivel transmitir no contato superficial que iniciava agora. Deduziu que seus siléacios exam constrangedores. Os siléncios que se sucediam ao question4- rio sobre si mesmo, sobre o que de mais terrivel experimentara, Esquecer 0 acontecido, nunca. Mas como amesquinhé-lo, tirar-lhe a esséncia do hor- ror ante uma mesa bem posta, ou um ché tomado entre finas almofadas e racias poltronas? Os olhos évidos inquiridores que o rodeavam nfo teriam ouvido e visto o bastante para também se horrorizarem ¢ com ele participar dos siléncios? Um mundo s6. Supunha encontrar aquém-mar 0 conforto dos que como ele haviam sofrido, mas que 0 acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. E consciente disso partilhariam com ele em bumildade o encontro. Vislumbrou, porém, um ligeiro engano. Opartamento ocupado pelo irmao ficava no diltimo andar do prédio. ‘A varanda aberta para o mat recebia & noite o chogue das ondas com mais 26 furor que de dia. Ali gostava de sentar-se (voltando da sinagoga apés a rece noturna) com o sobrinho-neto no colo a balbuciarem ambos coisas nio sabidas. Os dedos da crianga embaragavam-se na barba e 3s vezes ten- teavam com forga uma ou outra mecha. Esfregava entéo seu nariz, duro 20 arredondado e cattilaginoso e riam ambos um iso solto e sem inten- 6es. Entretinham-se até a hora em que o irmo voltava e iam jantar. ‘Nas primeiras semanas houve alvorogo e muitas casas a percorrer, rmuitas mesas em que comer, ¢ em todas revoltava-o 0 aspecto de coisa curiosa que assumia. Com 0 tempo, atrefecidos os entusiasmos ¢ a curio- sidade, ficara s6 com 0 irmao. Falar mesmo 86 com este ou a mulher. Os outros quase ndo o entendiam, nem os sobrinhos, muito menos o genro, por quem principiava a nutrir antipatia, — Afvem 0 “Profeta”! Mal abrira a porta, a frase e o riso debochado do genro surpreende- ram-no. Fez. como se nio tivesse notado o constrangimento dos outros. ‘Atrasara-se no caminho da sinagoga ¢ eles jé 0 esperavam a mesa. De re- lance, percebeu o olhar de censura do irmio ¢ o riso cortado de um dos pequenos. $6 Paulo (assim batizaram o neto, que em realidade se chama- va Pinkos) agitou as mos num blé-blé como a reclamar a brincadeira perdida. Mudo, depositou o chapéu no cabide, ficando s6 com a boina preta de seda, Da lingua nada havia ainda aprendido. Mas, observador, se ‘bem que néo arriscasse, conseguiu por associagao gravar alguma coisa. E © “profeta” que o riso moleque Ihe pespegara a entrada, ia-se tornando familiar. Seu significado no o atingia. Pouco importava, no entanto. A palavca nunca andava sem um olhar irénico, uma ruga de riso. No bankeiro (lavava as maos) recordou as intimeras vezes em que os mesmos sons fo- ram pronunciados & sua frente. Eligon cenas. Do fundo boiou a lembran- ga de coisa andloga no templo. engano esbogado no primeiro dia acentuava'se. A sensagio de que o mundo deles era bem ontro, de que nao participaram em nada do que fora (para ele) a noite horrivel, ia se transformando lentamente em objeto consciente, Eram-lhe enfadonhos os jantares reunidos nos quais ficava & ‘margem. Quando as criangas dormiam e outros casais vinham conversa, apalermava-se com o tom da palestra, as piadas concupiscentes, as cifras 27 sempre jogadas, a prop6sito de tudo, e, 2s vezes, sem nenhum. A guerra o despojara de todas as ilusGes anteriores ¢ afirmara-lhe a precariedade do que antes era sélido. $6 ficara intacta sua f em Deus e na religiio, tio arraigada, que mesmo nos transes mais amargos nao conseguira expulsar. (J&o tentara, reconhecia, em vdo.) Nem bem se passara um ano ¢ tinha & sua frente numa monétona repeticao o que julgava terminado. A situagéo arasitdria do genro despertou-lhe 6dio, ¢a muito custo, dominou-o. Vira outras mos em outros acenos. E as unas tratadas e os anéis, ¢ 0 corpo oligo ¢ 0 riso estipido ¢ a inutilidade concentravam a revolta que era geral. Quantas vezes (meia-noite ia longe) deixava-se esquecer na varan~ da com o cigarro aceso a ouvir mama fala bilingtie risadas canalhas (para ele) entre um cartear € outro. — Entio é isso? s outros julgariam caduquice. Ele bem sabia que néo. O monélogo fora-the atil quando pensava endoidar. Hoje era habito. Quando 86, des- carregava a tensio com uma que outra frase sem nexo seno para ele. Recordava-se que um dia (no infcio, logo) esbogara em meio a alguma conversa um ténue protesto, dera um sinal fraco de revolta, e talvez seu indicador cortasse o ar em acenos carregados de intengées. O mesmo na sinagoga quando a displicéncia da maioria tumultuara uma prece. — Esses gordos senhores da vida e da fartura nada tém a fazer aqui —murmurara algum dia para si mesmo. Talvez daf 0 profeta. (Descobrira, depois, o significado.) Pensou em alterar um pouco aquela ordem e principion a narrar 0 que hhavia negado antes. Mas agora nfo patecia interessar-lhes. Por condescen- déncia (no compreendiam o que de sacrificio isso representava para ele) ouviram-no das primeisas vezes ¢ nfo faltaram légrimas nos olhos das mu- Iheres, Depois, notou-lhes aborrecimento, enfaro, pensou descobrir censuras ‘em alguns olhares e adivinhou frases como estas: “Que quer com tudo isso? Por que nos atormenta com coisas que no nos dizem respeito?” Havia rages de remorso quando recordavam alguém que lhes diziarespeito, sim. Maseram répidas. Sumiam como um vineo em boneco de borracha. Nao tardou que as ‘manifestagSes se tornassem abertas, se bem que mascaradas. — 0 senhor softe com isso. Por que insiste tanto? 28 conros 50 imicranre Calou. E mais que isso, emudeceu. Poucas vezes he ouviram a palavra, € no repararam que se ia colocando numa sitwagéo marginal. $6 Pinkos (ele assim o chamava) contimuava a trancar sua barba, esfregar o natiz, € contar hist6rias intermindveis com seus olhos redondos. Inutilidade. © mar trazia lembrancas tristes e langava incdgnitas. Solidao sobre solidéo, Interrogava-se, 2s vezes, sobre sua capacidade de resistir a um meio que no era mais seu. Chiados de ondas. Um dedo pequeno mergulha- do em sua boca e um riso a0 chogue. Riso sacudido. Poderia condenar? ‘Nis, se fosse gozo apés a tormenta. Nao, nfo poderia nem condenar a si ‘mesmo se por qualquer motivo aderisse, apesar da idade, Mas 0s outros? ‘Cegos e surdos na insensiblidade e auto-suficéncia! Erguia-se entdo, Ca- ‘minhava pelos cimodos, perscrutando no conforto um contraste que sabia de antemao néo existir, Aliciava argumentos contra si mesmo, inutilmente. E do fundo um gosto amargo, decepcionante. Os dias se acumulavam na rotina e Ihe era penosa a estada aos sébados na sinagoga, O livro de ora- ges aberto (desnecessério, de cor rmurmurava todas as preces), fechava os olhos as intrigas e se punha de lado, sempre de lado. No caminho ad- ‘mirava as cores vistosas das vitrinas, os arranha-céus se perdendo na volta do pescoco, e o incessante arrastar de automéveis. B nisso tudo pesava- Ihe a solidao, o estado de espirito que nao encontrara afinidade, Soube ser recente a fortuna do irmao. Numa pausa contara-Ihe os anos de luta e subtrbio, etriunfante, em gestos largos, conclufa pela seguranga atual. Mais que as outras sensagSes essa ecoou fundo. Concluiu ser im- possivel aafinidade, pois as experiéncias eram opostas. A sua, amarg. A outra, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempol? Deus, meu Deus! As noites de insOnia sucederam-se. Tentou concluir que um sentimento de inveja carregava-lhe 0 dio. Impossivel. Honesto consigo mesmo entre- viu sem forgas essa conclusio. E suportou o oposto, mais diffi As for- mas na penumbra do quarto (dormia com 0 neto) compunham cenas que no esperava rever. Madrugadas horriveis e ossadas. Rostos de angfstia e preces evolando das cinzas humanas. As feigGes da mulher apertando 0 xale no tiltimo instante. Onde os olhos, onde os ollios que mudos traftam ‘© grito animal? Risada canalha. Carteado. Cifras. Olha 0 “profeta” af! E ccaras de gozo gargalhando do capote suspenso na cadeira. Imposstvel. Gritos amontoados deram-Ihe a noticia da safda. Olhou o cais, Lenta- mente a faixa dégua aumentava aos acenos finais, Retesou todas as fibras. do corpo. Quando voltassem da estagio de éguas encontrariam a carta sobre a mesa. E seriam inéteis os protestos, porque tardios. Aproveitara as duas semanas de auséncia. O passaporte de rurista (depois pensavam em torné-lo permanente) facilitara-lhe 0 plano, O dinheiro que possufa esgotou-se a compra da passagem. Regresso. A empregada estranhou um pouco ao vé-lo sait coma mala, Mas juntou o fato 2 figura excéntrica que no inicio Ihe infundira um pouco de medo. Planos? Nao os tinha. Ia ape- nas em busca da companhia de semelhantes, semelhantes, sim. Talvez do fim. As energias que o gesto exigiu esgotaram-no, e a fraqueza trouxera hhesitag6es. E ante 0 irremedidvel os olhos frustrados dilataram-se na an- sia de travar 0 pranto, Mittdas, j4, as figuras acenando. O fundo monta~ nhoso, ezulando nur céu de meio-dia. Blocos verdes de ilhotas e espurias nos suleos dos lanchées. (H4 sempre gaivotas. Mas nao conseguiu vé-las.) Novamente os punhos cerrando e trangando, as témporas apoiadas nos bragos, e a figura negra, em forma de gancho, trepidando em légrimas. A prece A entrada do patio, muro que um caminhio arriou, ninguém mais le- vantou, Zico junton a molecada. — Afa velha ai! Dobrando a esquina, o xale preto envolvia o pescogo enquanto as mos uras retesavam-se a0 longo do corpo, estendidas por dois pacotes imen- s0s. © passo apressado, pisadas firmes de sapatos sem saltos, furou os olhares dos moleques, que a susto, s6 Ihe viam o perfil marcado ¢ os cabe- los, grisalhos, repuxados em coque. Nunca tiveram coragem de olhé-la de frente, ¢ quando the atiraram a primeira pedra, raspando nos pés, na expectativa de ouvir a ingua engrolada, s6 encontraram um olhar pélido © uma boca crispada. O gozo antevisto e frustrado deixou-os sempre & espera. Por isso a encaravam de perfil, on entéo iam espioné-la pela jane- la, Nao havia uma igual no casarfo. Zico, o mais velho, garantia. Conhe- cia os trinta e tantos moradores do sobrado, e nunca ouvira falar de caso semelhante, A velha chegou de repente, coisa de dias, silenciosa, Ajeitou 0s trastes, que um preto trouxera na cabeca, no quarto dos fundos, e sem ter falado com ninguém, iae vinha, muda, 0s sapatos ferindo o madeirame podre do corredor. $6 lhe ouviram a voz uma vez. No segundo dia da chegada foi pedir f6sforos a velha Genoveva, que sentada num banco, descansava do tanque, acendendo o pito. Genoveva abriu: um olho meio fechado, livrou a boca e sorziu com a meia ditzia de dentes espalhados na gengiva. Custou a compreender o desejo da estranha, “Favor... Empres- ay Judith Mansamente. Do mar a brisa enfunava 0 cortinado branco agitando as franjas das poltronas. Sentou-se. A criada pediu-Ihe que esperasse al- guns instantes. Em outra ocasifio varreria com os olhos as paredes ¢ 08 méveis pesados, Acharia engracadas as figurinhas barsocas emolduradas ‘emi mau gosto, Sentiria os fios macios das molas que cederam a0 seu peso, recolhendo-se em convexa superficie para acomodi-la. Hoje, impossfvel. Tinha medo que lhe ouvissem as palpitagdes ou que o arfar dos seios des- pertasse atengio. Hoje era toda hesitacio, criara para si um invélucro que a obrigava a tolher os movimentos, ¢ que, vez por outra, tentava, revolta- da, romper. O dedo pressionando o botio do elevador transmitira-Ihe a energia necesséria para suportar a abertura da porta. Agora, cruzando os sapatos, parecia té-la perdido por completo. Biqueiras rotas. Salpicos de lama na dobra da sola. Tremor. Recolhendo a perna do tapete pousou-a no trecho encerado, A cena fora toda imaginada. A noite, os olhos presos 20 teto (cle dormira apés um choro manhoso. O cortinado envolvia-lhe 0 bergo), sufocava a légrima em antecipacio. A irma, Seria a nica a quem poderia recorrer. Os outros distanciaram-se na teimosia, na incom- preensio, $6, no leito, esbogava caricias no corpo ausente sufocando 0 ‘travesseiro. A itma. Poucos anos as separavam. Por certo nao esquecera ‘08 sonhos mtituos & vidraga em dia de chuva, ou ao dormir, no quarto comum, as confidéncias trocadas. Rodeado por dois pratos o retrato dos pais, de brago, sorrindo, surpreendeu-a com a expresso de conforto 36 amparo. E té-los-ia se em troca oferecesse tudo. Hoje nada mais tinha a pedir. Soube que o luto acompanhou sua safda, e que no dia da ceriménia (Civil, somente, como ambos tinham acertado) houve choros e lamtirias como que acompanhando a safda de um morto. Depois osiléncio que aterra e deprime, A solidao. A incomunicabilidade, Quando a noite ele a condu- 2ira para o subtirbio sabia que uma rutura se tinha processado, e por mais Animo que se tivesse imbufdo nao pode conter 0 choro amargo, de quem, apesar de convicgées, trazia em sie fazia romper todo um lastro de afei- ges, A irm4, Tinka a certeza. Sempre participara de suas idéias apenas com maior reserva ¢ com certa hesitagéo quando acaso alguém nelas to- cava. Mas participava. Os gatos, as vezes, perturbavam-lhe 0 sono com suas corretias e amores, e hoje mais do que nunca, apés arrast6es, um deles etigara-Ihe a pele com um lamento mais parecido a choro de crianca, O corpo girou rapidamente apoiando-se a cabeca na mao. O bergo imével com o cortinado. Alivio. Abragou com as maos os joelhos e deixou-se fi- car estética com os olhos presos em nada. Depois de amanha faz um més que 0 trouxeram, jé morto, da fébrica. (A bala atingira-Ihe o crénio.) Ti- nha ao seio a crianga quando a porta se abriu e alguns homens o carrega- ram até a cama, em vio. Depois de amanha faz um més. Afastou com as mos os cabelos que Ihe cafam sobre os olhos, num esfregar automético da testa. Ouvia nitidamente os zumbidos, os pequenos sons que se aglo- meravam, compondo-se em estranhas dissonfncias a seus ouvidos pedin- do siléncio. © pouco que os amigos puderam cotizar estava quase em exaustdo. O dia que ndo tarda agigantava-se com a promessa dos tempos Giffccis. Sobre a mesinha-de-cabeceira um recibo selado, deixando em confianga, & espera do aluguel. Os outros, amortecido 0 sentimento pelo tempo, davam mostras de impaciéncia, E em seu interior um fio entupin- doa laringe, enrolando-se na lingua, e prendendo-se nos interstfcios dos dentes que cismavam em se pressionar mutuamente, como a medo, para que néo escapem coisas nao sabidas. Trabalharia. Nao hé diivida. Nunca se amedrontara com tal idéia. Quando se resolvera unir com outro que no de sua raga tinhaa perfeita consciéncia do ato, que néo representava uma total rentincia a sua origem (havia arraigado em si um peso que um simples gesto ou atitude néo desloca), nem ele a obrigava ou exigia a fazer tal coisa. Havia naquilo um desejo de superacio, de coisa que transcende a um simples costume, Sabia dificil a compreensio. Mas, ato praticado, julgava-se pura em consciéncia, que sabia amadurecida. A hesitagdo vi nha-lhe do bergo. E ele? Dois meses ¢ dois dias. Seus olhos por certo niio gravaram as feigdes do pai, nem o timbre da voz lhe ficara nos ouvidos. Estava completamente isolado, sem rafzes ainda que Ihe pudessem mar- car 0s passos. O rosto avermelhado encol ou. as maos tateavam Avidas o seio. A irmé. or outras fontes, jé que estava & margem. Imaginou contrastes entre 0 quarto solitétio e um hipotético apartamento. Olhos intrusos veriam a pelicula brilhante prenunciando a lagrima, Comp6s para si um ambiente de emogdes de uma imaginéria acolhida, O rosto magro da irma, 0 jeito de sonho, colaria os labios na face antevendo a integracéo. Superpunham- se as emogbes criando quase uma presenga concreta. O rosto magro da irmé seria um peito aberto aos solugos. £ possfvel que um filho a preocu- passe também, ndo sabia. Se verdade, quéo facil seria. A afinidade exis- tente juntar-se-ia uma outra que nao a palavra mas s6 0 sentimento reproduz. Emaranhara-se. A custo dominou a hesitaglo, nfo de orgulho, ‘mas de medo, A imagem do ficus na vidraca oscilava projetando em seu interior formas que alternavam com a respiragio. A auséncia do compa- nheiro abrira-Ihe vdos em sua seguranga e firmeza, onde encontravam acolhida facil elementos fugidios de dtivida, como que em tentativa de miné-la, Agora ali na sala, os sapatos cruzados, os olhos fixos na expres- sto dos pais, vacilava e quase se arrependia da caminhada, do bergo dei- xado em mos vizinhas. Nao sentira no ar 0 cheiro de crianga, um cheiro de fralda lavada ¢ talco a que tanto se acostumara. Estaria geévida a iema. Imaginou-a assim, Olhos grandes. Rosto magro. Maos finas pendendo. O ventre enorme em prentincio. Por onde entraria? Um estouro de azeite em frigideira fé-la imaginar chegando da cozinha, com o avental. Como reagiria? A empregada dissera ser apenas conhecida, amiga. — Judithel Visio aterradora da inutilidade da visita. A intuiggo dera-Ihe a certeza cconcreta de um gesto feito em vio, duma gratuidade de ato. Nao 0 abra- G0, nem 0 rosto colado, o rosto magro que se perdera e arredondara em feigdes de fartura, o jeito de sonho perdido em balofa expressfio vazia. Nemo ventre inflado mas uma adiposidade geral sem prentincio de nada. A mio engordurada escorregara como um salsichao entre seus dedos. De- frontaram-se sentadas. Nos olhos, sim, nos olhos vislumbrava acidental- mente um brilho que era a rememoragio dos sonhos. Mas, fugidio. Ou inexistente, quem sabe. Talvez pura criaglo de sua mente que procuravaa forca identificar na outa a imagem que viera recompondo a noite inteira, Um hiato. Talvez procurassem ambas um fio que as reatasse, mas era inexistente este. Ligeira ondulagdo sob 0 queixo que Ihe arredondava mais, ‘o cardter inexpressivo. Onde 0s signos particulares que a distinguiam, onde a feigdo delicada, transpirando a coisa frégil, sensibilidade? Curtas as fra- ses trocadas, de informagio, Protocolo, Siléncio quanto ao resto. Siléncio em relagao ao ocorrido. Como duas estranhas, quase, em sala de espera, de médico ou dentista. “Toda a carga afetiva em potencial de exploséo recolhera-se, recalcada, por forca de um destnimo, Arriscon uma pergunta. Monossilabica a resposta. Recordou vizinhangas. Iam bem, obrigado. Lembrou o menino da casa ao lado. ‘Ambas empurravam-lhe o carrinho. Sete meses na época. Cresceu, Mudou-se, Nao sabia para onde, ‘As amigas da infancia onde andavam. Por af, casadas. Ea Julieta? ‘Nunca mais avira, Lembrava-se do Maia, velho professor de francés? Sim, Encontrara-o noutro dia Sim? Até quando agitentaria aquela estaticidade, Procurou nos olhos da irma uum qué que significasse recusa, desprezo, desgosto. Um signo que the in- dicasse a retirada, a inconveniéncia de sua estada ali. Houve como que 38 ‘um amortecimento nos sentidos da irma. Aparadas as arestas do movi- ‘mento restara uma figura parada, sem volicio. Onde morava? Nos subirbios. Longe? Sim. Viera de trem? Sim. Horrfvel, no, apertado? Sim, Sentix erigarem-se-Ihe os pélos, e um empolamento nos poros. Perce- beu nas entrelinhas um despertar vitalizante da irmi. Por certo uma inibi- gio impedia-a de ferisla em cheio. E nesse momento responderia tudo. Tudo. A morte do marido. O filho. Queria tanto falar no filho, Descrever- Ihe os gestos, 0 jeito. Por que isso? Rodeios. Fugas. Subterfigios. Pelos olhos langou um apelo para que aprofundasse as perguntas. Intl. Pode- ria continuar sustentando o diélogo. Para qué? Perguntar-lhe coisas jé sabidas, ou de facil intuigéo. O marido estaria trabalhando. O apartamen- to (onde o bom gosto de outros anos?) confiava-Ihe uma seguranca. Que mais? Pouco importam os detalhes. A essas horas a vizinha estaria distrain- doo menino, Ou mudando-Ihe uma fralda. Ou agitando o chocalho para desfazer o choro arrastado. Remexeu-se na poltrona. Viua irma levantar- se para atender o telefon. Nem ouvira os chamados. Lé fora carro buzinan- do, rdio em novela ¢ alguma empregada tranteando samba. Novamente airma sentada. Queria tomar alguma coisa? Nao, obrigada. (Safra apres- sada pela manha. Dera o seio ao filho e esquecera de comer. Ou nao se importata.) A pontada de fome jé a estava sentindo subir-lhe do estéma- go. Lé embaixo compraria qualquer coisa, uma fruta. — Papai Tivesse ido embora mais cedo e no teria a decepgéo da pergunta sem eco, do jeite contrafeito de quem tocara em tabu. Nenhum movimento Por parte da irma. Nem de distragao aparentando nao ouvir. Mas de fren- te. Os olhos nos seus. Vie nitidamente sua imagem na pupila, apesar da distancia. A ruga do queixo ondulara como quem engole em seco. Nao | | queria odiar, mas a carga afetiva transitara de pélo. O passado, ela no o destrufra, Tinka 8 sua frente alguém que perdera, tinha a certeza, a vida. Errata. Entrara em local onde o tempo estava morto ¢ onde no a com- preenderiam mais. Estagnacao. A porta fechou-se apés uma fria despedi- da, Novamente, como salsichéo, os dedos engordurados escorregaram centre os sens. Ao chamar o elevador pressentin um soluco surdo de quem se arremessa, Como um letreiro huminoso os niimeros se sucediam num acende-apaga até se fixar. A mao na tranca, esperou, estertor final, a pre- cipitagdo que seria reconhecimento de erto. A cigarra soava no carro. Alguém, impaciente, esperava o elevador. Contow alguns segundos. Abismou-se com o siléncio quase simultineo da campainha e do choro. Vazio completo. Na descida havia um rumo tragado, Impossivel negar 0 passado, Sabia, porém, que impossivel, também, é 0 retrocesso. Amanha levatia o filho & circuncisio, De resto sabera conduzi-lo de modo a lem- brar o pai morto ¢a compreendé-la, Ao ser golpeada pela brisa sentiu uma alegria infantil de quem descobre mundos novos numa velha caixa de sa- patos, de quem, apés luto, redescobre pequenos detalhes alegres no am- biente cinza que o cercava, Agora, 0 trem. O seio pronto em oferecimento onde ele mergulharia para mamar. Salmo 151 A face negra de Gamaliel ergue-se da Biblia para a janela. Entardecer de outono, uma brisa a farfalhar 0 verde das bananeiras, a asa cinzenta ‘que risca o espaco na diregao do pombal. Os olhos ressentem-se da leitu- ra na penumbra, ¢ as pilpebras recuam no contato com restos de luz. Es- frega as palmas calosas no rosto, acompanhando com os dedos o suspiro. Um dedo fere 0 violéo. Velho Caetano no banco de palha sob o puxado vizinho ensaia umas notas. Num dia comum Gamaliel sairia da cadeira junto a janela, eiria ter com Caetano, na tentativa de conversio mansa. — Liicifer domina o mundo! rosto do velho nao se alterava. Comprimia os labios com mais for- $2, oscilando o cigarro preso. Nenhum movimento. Agcadava-lhe a voz grave do negro (abia que era negro porque a filha assim o dissera) man- sa, numa fala suave, com finais de frase um nada cantantes, lembrando o bordaio que seu dedo alisava. Sentia-se um pouco triste, as vezes, ao per- ceber que os esforcos do companheiro nfo conseguiam arrancé-lo de sua obstinagéo. Inteligente, aquele negro. As frases vinham com facilidade, ‘enquanto ele mofa umas idéias parcas. Ouvia com gosto a saudagéo de Tonge, ¢ afrouxava as feig6es quando percebia que os passos estavam mais préximos. — Abanque-se! elo artastar da cadeira sabia para onde dirigir sua atengao. Girava seu proprio banco, ¢, forga do habito, tinha a certeza de o estar encaran- se do, Nem sempre falava logo. Na pausa ouvia-lhe a respiraglo perrurbada por algum cacarejar ou Iatido, ou ainda um grito longo que descia do moto, grito de moleque soltando pipa. Nesses intervalos, quando um calor de sol se pondo aquecia-lhe o corpo, gostava de ouvir 0 canto da serra circular, de um madeizeiro préximo. Gemido sem dor. Queixume. Lamento sem revolta. E quando o vento era favoravel, vinha-lhe de vez em quando © cheiro dos troncos verdes, ou da resina esvaindo-se dos lenhos, fazen- do-o esquecer os anos da respiracio sufocante, dos acessos de tosse, pro- duto das chaminés e das valas do curtume. O fedor dos pogos, dos ranques, ‘um agitar de asas agourentas. — Um filho de Davi, porém... “Velho sem religido”, dizia-lhe a filha em certas horas, com leve nota amarga alterando o tom jocoso. Sorria antes de mergulhar num siléncio de cismas prolongadas. Havia um cansago em seus membros ea modorra na cabega, Nenhuma vibracao. Nem desejos de zanga Ihe vinham, Acredi- tava na sucesso dos dias, pela alterndncia de sonos ¢ vigilias, ¢ imagina- va-os ora belos ora tristes. Um calor nas pilpebras dava-lhe sensacées de ‘cu azul, reminiscéncias de nuvens esgargadas, que um pio de ave amon- toava em flocos brancos. Amava ent 0s rudos, e distrafa-se em indivi- dualizé-los. Localizava-os numa topografia particular, partindo dos sons planos, ascendentes ou descendentes. E tinha o morro, a ladeira, as esqui- nas 0s quintais, Nao chegava a odiar os dias de chuva, entristecia-se, ‘apenas, Era obrigado a ficar no quarto, quase sempre na cama. A umida- de tirava-lhe 0 Animo, nem mesmo tocava. Safa um pouco da sonoléncia quando cessavam as pancadas de chuva nas telhas, e distinguia a vazio acelerada das valas, ¢ 0 chiado de cascatas repentinas em alguna riban- ceira. Um odor intenso de tabatinga a devolver-Ihe uma infancia distante, de cobras, barcos e monstros, de um amarelo sujo secando ao sol. Agitava ‘entio as pernas, expelindo alguns restos de dorméncia, lembrava-se do ‘gosto do cigarro que a inanigéo lhe tirava, eestendendo o brago comprazia- se com os sons despertados, pelos dedos tamborilando, no o¢o da viola, Principiava uma cantoria monétona, sem articular palavras, grunhido de ‘algum resto de toada. Raramente tocava mesmo. Bastava-Ihe a presenga do instrumento, ¢ a possibilidade de acaricié-lo, retesar as cordas, golpeat de leve uma ou outra, ¢ mais do que isso, sua existéncia ali, com ele. Ape- g0 nos dias de solidao, que eram todos os seus dias. — ww descerd da Cruz... “Velho sem religio.” Nada fizera para perdé-la, tinha a certeza, Ape- nas se aquictara na apatia serena que ndo exige maiores explicacées, fruindo dos sentidos ainda vivos as alegrias que antecedem 0 corpo mor to, a carcaga focinhando a terra. E 0 negro Ihe falava de alguém que ja vira em procisséo, quando menino. Persistem as notas no ouvido de Gamaliel, mas ele néo se exguerd para a conversa do costume. Tenta fixar os olhos em algum ponto, enquanto 08 dedos alisam a capa de percalina do livro, Nem mesmo os hinos de que tanto gostava Ihe vinham & meméria. Cantava-os em vor alta, entusias- ‘mando a sala com 0 acento sentido, (No quarto ao lado, Légia dobrada sobre 0 bergo de Isafas, chorava, as escondidas. Por quanto tempo, ain- a2) Gamaliel pensa em Caetano. “Velho sem religiéo.” Mas era dificil associar o Deménio com 0 velho que o ouvia em siléncio, fumando, ti- rando uma nota. De repente, em alguma pausa, vie-Ihe a cabega girat son- dando o espago, as narinas um pouco dilatadas. Depois, sem ligagéo com © assunto comecava uma hist6ria que raramente ia até ao fim. — Niko sei se em 1927, ou 28, eu trabalhava na colocagéo dos trilhos de bonde, que naquela época terminavam bem antes do baitro. Isso aqui ‘era mato fechado, nem picada. A estagfo, uma pracinha suja, pozca. Mi- nha filha deve se lembrar. Morava perto do lugar onde botaram agora 0 curtume, Uma fedentina. Depeis Gamaliel se acostumara. Participava dos siléncios que sucediam a es- sas interrupgées. Via 0 menear insistente da cabeca do velho, como se estivesse terminando a hist6ria para si mesmo. — Nao, Gamaliel! Nao pare! Continue falando... Caduquice.. — .» descerd da Cruz, iluminado por mil s6is, tendo & sua direita Salomao e o anjo Rafael, ¢ 8 esquerda todos os santos gloriosos, e com a face dourada chamaré os justos. Isafas no completara um ano, ainda, E seus olhos imensos no rosto negro despertavam sorrisos largos em Gamal, e cantigas em Ligia, sua mulher. Seus dedos hesitantes mergulhavam nos labios grossos, interrom- 70 pendo alguma narrativa que nfo poderia compreender, € 0 que Ihe conta- vam nada tinha a ver com o casebre de dois cOmodos, os varais além da janela, ou o batuque do terreiro, no morro, durante as madrugadas. O pai costumava ergué-lo nos bracos, seu corpo quase rogava o teto, bradando seu nome com um orgulho que os pés aflitos teimavam em ignorar. — ~». enquanto os anjos pairando num céu de diamantes e marfim entoardo aleluias... Um soluco de Ligia atravessa 0 quarto e chega & sala, A dor nao se externa em sua face, deslocando-se no interior. Esbogava constantemente ‘uma interrogagio que néo tomava corpo. Ba énsia era de gritos. Um, pelo menos, gigantesco, que fizesse tremer os arredores, na mesma escala de suas emogées, Durante a guerra, enquanto os amigos da fundi¢ao acom- panhavam com mapas os avangos das tropas, 6 Ihe vinha & mente a Bes- ta, Quando um deles 0 procurou com uma lista de adesbes para uma greve, 86 encontrou como resposta urn versiculo de salmo. — 1 € 08 Arcanjos, os Principados, os Querubins, os Tronos... Caetano gostava de ouvir aqueles nomes na voz grave do negro. Instin- tivamente os dedos embalados corriam as cordas numa antecipacao de har- pas futuras, Quase sempre provocavam uma pauss. Gamaliel,fitando-o, procurava uma jusificativa para a serenidade do velho, “Velho sem religiao.” Mesmo quando blasfemava, nfo podia vislumbrar a danagéo que lhe apla- caria o sentimento contradit6rio. Via-lhe a cabeca erguida, as vezes encos- tavaanuca na parede, a face parada, um rosto de bronze fundido pelo sol, com malhas estriadas. — Meu pai gostava de contar esse caso. — Falava com a fumaga sain- dorthe pelas narinas ¢ pela boca. Um intervalo. Cogava 0 queixo mergu- Ihando 0s dedos na gola, ¢ parava um pouco em cima do ombro. O cigarro espetado nos labios oscilava com a salivagéo automética, — Sasa do sftio onde trabalhava, perto de Rezende, meu pai nasceu 14, com dois cavalos para um carregamento, Isso de noitinha, que era coi- sa de muita pressa, Com uma hora estava If, num passo apertado. Voltou noite fechada, ji, o cavalo escumando no galope, com as ventas inchada.. Da janela Gamaliel via o anoitecer lento. Mais um pouco ¢ Caetano deixaria 0 puxado, e entraria. Teria a noite dentro de sua noite, como quem sonha que esté sonhando. E 0 fillto, no quarto, findaria a ronda dos Gltimos meses pelos corredores de hospitais e clinicas, deixando a figura do pai projetada num muro imenso, alto, opaco, os bragos ergui- dos, mas sem seu corpo, bradando seu nome, mas jé em outra dimen sio, Isaias morrendo, Voltaza-Ihe as frases que costumava dizer ao velho no entusiasmo para conquisté-lo. Acreditara que a insisténcia curvaria a serenidade de Caetano, numa repetigio de fabula antiga. E agora, per- plexo, sente que nada mais tem a Ihe dizer. Um desespero mal definido projeta-se dos pulsos em atrito na testa, As suas palavras, que antes tra- iam uma carga densa, ¢ agora teimavam em permanecer sem sentido fisico, o velho contrapunba fragmentos de hist6rias aparentemente ba~ najs. Quase com terror, verfica a ocorréncia do inverso. As dificuldades com a doenga do filho revelaram-lhe uma outra realidade, bem presente ha vor rouca de Caetano. E no intimo um atropelo, dévidas tomando corpo, angiistia lancada pelos olhos arregalados na quase noite. Lenta- mente se infiltravam nele as atiudes do velho, ¢ sua apatia ganhara ele mentos dindmicos. E ali estava ele, Gamaliel, perplexo diante de um mundo ignorado. Os solugos de Ligia se tornam mais intensos. Ergue- se, deixando a Biblia cafda no cho. Contorna a grade de sua casa, enca- minhando-se para a cadeira do vizinho, — Demorou hoje, Gamaliel.. Ainda a face serena. Como sempre reconhecera seus passos. Recusou a cadeira, sentando-se num tijolo junto a porta. Viu 0 gato apoiado nas patas dianteiras, 0 corpo em corcova, ea linha do salto para o muro. Um Iatido nervoso, de longe, ¢ 0 despertar dos sapos na vala, cortando a rua. Enquanto aguardava a resposta, Caetano principiou a tocar. Era alegre a misica, stisfagio pela vinda do negro, que interrompia suas cismas tristes. — Por qué, velho Caerano? ‘A.vor mais grave, quase um lamento, f¢-lo parar. Os dedos truncados nas costas, Girou 0 rosto na directo da frase aprofundando as estrias. Um jorro surdo subindo-lhe do est6mago comunica uma vibragéo hé muito rio sentida pelo corpo velho. Hé quanto tempo esperava por essa per gunta do negro! Gostaria de Ihe narrar uma hist6ria bem simples, agora, mas o choto de Ligia, varando a drea entre as duas casas, cortara qualquer intengdo de ternura. Sobrava apenas um sarcasmo estiipido, doentio, a cexigir um esforgo para a frase. — Conte, Gamaliel, conte novamente, para vocé mesmo, a histéria dos Anjos, dos Arcanjos, dos Principados, dos Querubins... "Notas soltas enchiam o espago entre os dois. Graves. Bruscas. A pri- ma rudemente golpeada interrompeu sua vibragio aguda com um estali- do na madeira. O negro chorava. Didlogo (1963) ingere de novo. Talver necessite da palavra. E nao quer empecilhos. Con- tragbes no estOmago. Tonteira. A légrima rola, mas nfo do pranto, expul- sa pela pressfo dos olhos. E dera naquilo o entendimento desejado. Os ‘membros no espaco ¢ um ajuste de ago frio suportando o resto, a compri- mir sem movimento, a distender ¢ a relaxar mtisculos em anulagao do equillbrio. Estridente agora o apito da locomotiva, e mais nitido o jato expelido pelo émbolo. Siléncio repentino apés 0 coro obsceno da calea- da. Um odor acre de améndoa verde no retingulo da janela, ea trepidacéo ciciante dos galhos de folhas largas. A mesma brisa traz.o cheiro barrento da gua na vala, 0 grito de revolta do papagaio espicacado, o choro de flauta no radio aceso, e um gosto de pao quente, ilrima fornada da pada- ria. A mio do pai desce calma e oscila lassamente junto & coxa. O corpo do filho acompanha-a na volta posigdo normal. O sapato firme de novo sobre 0 taco, o brago em atrito com o estofo da poltrona. O velho senta- .8¢ mas tem no rosto um travo de pesar, acende um cigarro, apéia 0 coto- velo sobre a cOmoda, ea cabeca no punho cerrado. Mas no ha reflexos em suas pupilas. Baixara as pélpebras. Frente a frente, 26 (iin A fuga Findara-se entfo a seqiiéncia de desesperos e de dios surdos? Com tanta facilidade se elimina a crosta acumulada necesséria que ber ou ‘mal cumpriu sua misséo? Como seria 0 cégado sem seu casco, € a ostra sem a sua concha? Ouvira falar certa vez de planta ou animal que nfo pode viver sem o seu patasita, Estaria nesse duclo, nesse constante despo- jar-se de elementos vitais a condigao de sua sobrevivéncia, encontrando nele alento para renovar-se, para fazer fluir de um centro ignorado a car- ga suficiente com que continuar, e ainda? E tudo isso visando a qué? Sal- var-se! Mas de qué? Que possibilidade de salvacéo ainda Ihe restava? A solidao! Que solidio? Alguma outra maior do que a sua, mais ampla, mais densa, mais sélida, mais rarefeita? E logo nele, massa homogénea de si- lincios ¢ expectativas, ndo massa porém pasta, p6, triturado entre duas, més, dois olhos, dois blocos que mais assustavam quando inertes, porque de um instante a outro, acionados por energias tempestuosas, ndo se con- tentariam com moer a vontade que se Ihes impusesse, mas fariam ranger ‘08 seus eixos com impetos de devastacio, cientes, sem diivida, de que cer- tos agos temperados no édio ganhavam com 0 uso maior tenacidade ¢ ccertas espadas quanto mais eriam mais vibréteistinham as liminas ¢ menos cespessos os gumes, No entanto, precisou opor & engrenagem um gesto de revolta. Um cansago momentaneo, mas s6 dele, fé-lo romper com um habito: jamais conceber uma atitude drstica, nunca anular um passado, ainda que recente. Também nao Ihe passou pela mente a idéia de saber se essa acomodacdo viera determinada por um quadro rigido a emoldurar seu comportamento, ou, reagio instintiva e constante, prefigurava defi- cigncia de energias. E por mais decisivo que fosse o seu gesto no instante de lucides, jf se afrouxava aos vinte minutos da partida do énibus. Senta- do no banco da estagio rodovidria, a mala a seus pés, principia a sentir asco de si mesmo, da auséneia de uma firmeza que gostaria se mantivesse mesmo no erro. E ali vinha sub-repticia, a consciéncia da inutilidade do gesto a corroer um passo meio dado. Ali mesmo, entre o baledo do café- em-pé ¢ 0 restaurante, entre a pista dos énibus ¢ o toldo de lona que pro- tegia a entrada, entre os grupos que partiam e chegavam, entre os casais e seus embrulhos, os fumantes e scus cigarros, os soldados ¢ suas botas, os jornais, as caixas de frutas, as revistas coloridas, os frascos na prateleira, os carregadores e seu andar de macaco, quatro malas em cada corpo, duas junto as costelas, comprimidas pelos brags, duas ao longo dos dedos, quarta falange a se arrastar pelo chao, ali mesmo, ao sentir o primeiro contato com tim mundo estranho vacilon, E compreendeu entio que hé das solidées, a solidéo do monélogo ¢ a do didlogo. A primeira ele a comegava a sentir na proximidade com os de fora, e eram sempre de fora (08 que nfo pertenciam ao seu nticleo. Esse estado Ihe foi sempre penoso, trazia uma hostilidade na reserva que mantinha e provocara. Um homem € sempre um estranho diante de outro, sabia-o bem, mesmo ligado pela care, pelo sangue, pelo instante de gozo entre duas fragées de 6dio. A segunda era a sua solidéo de sempre. A que comprime, modela e torna estanques dois seres que se conhecem nos minimos anseios, poro por poro, hausto por hausto, até que se cristaliza entre os dois esse fluxo de recrimi- nagbes recfproco, e produto final, a pedra do siléncio. Mas cada um sabe da presenga do outro, Esse conhecimento os destr6i e sustenta, aniquila e ttaz certeza de uma continuidade, Nenhuma variante. Nenhum impeto de adicionar um novo elemento. © mesmo n6 no mesmo ponto, ase fazer desfazer, 0 mesmo intervalo de aparéncia para garantir uma normalida- de e apés o intervalo 0 espago pastoso em que se caminha, o prisma de um cémodo com sua realidade rarefeita, um mastro invisfvel fincado no centro, ¢ dois seres agrilhoados ao mastro giram e se perseguem sobre a mesma citcunferéncia, sem nunca se alcangarem. Apés algumas horas sa- piatoso bia que nada havia de fantastico nesse circulo sempre renovado e idénti- co. Vinha o cansago com a madrugada e a promessa de uma possibilidade igual para o dia seguinte. Era o signo concreto, real, de que ainda estavam vivos participavam de certas convengées, o amanhecer, por exemplo. E sem uma palayra sequer; deitavam-se lado a lado, com o mesmo apelo, talvez, no pensamento: vem sono, ¢ limita sobre as palpebras a fronteira de dois pesadelos. Havia um despertar, &s vezes, mas em que regiGes da meméria, em que estégios da consciéncia, em que fronteiras do espirito? Ao se ir girava o corpo da mulher, e defrontavam-se de olhos fecha- dos, petrficados, talvez, ou com alguma forma do que seria pedra: nem de reflexos nem de habitos se notariam vestigios. Dois troncos nfo se defrontariam de maneira distinta, dois matacSes. As mdos se escoravam sem esforgo muscular, rijas. E quando se dava o agoite dos galhos, o cho- {que das rochas, as bocas se uniam com rancor € o dio se completava, se complementava, num todo erigado, estético, absoluto, E da repulsio de dois corpos apés o segundo de totalidade, surgia ou um Caim ou um Abel, ambos infelizes, ambos marcados, ambos s6s e sempre s6s, ambos mortos por aceitar ou nfo aceitar uma Ordem, ambos vitimas da virtude ou do ici, ambos inocentes. As botas, ou melhor, os canos das botas, sempre 0 impressionaram, amedrontaram, mesmo. Signo de autoridade. Voz defi- rida e imperiosa, sem reticéncias de hesitaclo. Dois pontos de exclama- io enfiticos no bater dos saltos. As botas se deslocam ¢ assumem 0 ar displicente de pernas cruzadas no banco ao lado. Um casal e dois filhos localizam-se perto dele, O marido, terno cinza, gravata azulada, trinta € oito anos, talver, traz no rosto nervoso e na vor meio rouca um resto de sono. A mulher, da mesma idade, cabelos castanho claro, rosto regular, a boca um tanto larga, senta-se com um dos filhos, aconchegando a seus pés as duas malas, uma bolsa de lona, uma pasta de couro negro e um embrulho irregular amarrado firme com ziguezague de cordao. Mas tudo placidamente. O pai de pé com o filho mais velho, no méximo doze anos, explica a este o sentido de um termo impresso nos jornais da tarde, e diante da incompreensao, alonga um pouco mais o significado, e remata-o com ‘outro exemplo. Um sorriso acolhe satisfeito a ligdo. O menino enfia as 1miios nos bolsos, ejocoso repete a palavra em vor.alta para o irméo que o 99 cencara com espanto no inicio ¢ logo depois aperta os olhos, retesa os labios, irOnico, e balanga a cabega, condescendente com a intengao do outro. Apenas viram o velho que se ergueu, brusco, a mala nos dedos, e se diri- gu & outra ponta da estacio. A mulher referiu qualquer coisa ao marido sobre a presenga desagradavel daquele homem estranho, silencioso, é ver- dade, mas estranho de qualquer modo, a seu lado, Acompanharam-Ihe o8 passos. Estatia af pelos sessenta anos. A roupa bem cortada, a mala quase nova, 0s sapatos engraxados, nfo seria um homem pobre. © marido ob- servou-lhe melhor 0 rosto no instante em que se levantou, um rosto sem cor definida, nem queimado nem branco, os cabelos grisalhos, de um gri- salho doentio, esverdeado, a testa contraida de rugas e 0s olos de espan- to, mas naquele espanto poder-se-ia incluir tudo. Encaixou na palma de sua mao direita os dedos da mulher comprimiu-os. Esta nao péde dei- xat de repetir que a presenga era estranha, perturbadora, inquietante, que mesmo sem saber de sua existéncia a seu lado, sentia no ar em torno de si agi dele. Imagine em fluxo qualquer de silénciose édios, uma imanéncia apenas percebida pela respiragao. O filho mais novo apoiou a cabesa em seu ombzo, 0 mais velho aptoximou-se, dobrando o joelho sobre o ban- co, o marido agitou cordial a mao da mulher e como brago esquerdo pou- sado na cabeca do rapaz conseguiu trazer um sorriso ao rosto de todos. De longe, antes de ganhar a plataforma de sada dos 6nibus, ele ainda os vi, j4 compactos, encerrados na trama de afetos, envolvidos na teia tecida por um fio longo e antigo, fiado no ventre de tantos tentaculos. Pequenos grupos se amontoam junto as diversas placas. Cada qual com seu cami- nho, Malas, sacolas, embrulhos, capas, cestas, tudo amontoado a espera da safda, Na pista, manchas de 6leo e sulcos de pneu no asfalto. O relégio marca dez para as onze, Dez para as onze horas de uma noite de outono mais quente que as de verdo. A brisa sopra em dirego ao mar, e de lf, um apito surdo de rebocador. Ele se encosta a uma parede e deixa atenuar-se a emogo que o arrancou de seu lugar. Uma breve palpitagdo, acompa- mhada de necessidade de movimento ¢ pequenos tremores pelo corpo. Nada de grave. Conhecia-se bem. Apesar de tudo o organismo resistiu, (ou por isso mesmo. Quatro jovens, entre os vinte ¢ os trinta anos postam- meio-fio, e enquanto se desembaragam de seus vidoco. objetos falam, conversam, esbravejam, julgam, recriminam, solucionam, gargalham, Nova irritagao involuntéria, Ele vé satisfeito a chegada de seu Onibus ¢ apés entregar a passagem ao agente da companhia procura a poltrona. A mocidade é tola em seus arrebatamentos de inexperiéncia, guase pronuncia 20 localizar o seu ntimeros jd sentado, completa, a velhi- ce 6 imbecil com sua experincia imdtil. Esfrega 0 rosto com as mos € comprime os olhos, gesto habitual, a ponto de senti-los doloridos. Ainda cerradas as pélpebras ¢ os dedos varrem o nariz convergem & altura da boca como se tivessem algo mais.a oferecer & lingua do que o suor carreado ede mistura alguma lfgrima seca, nfo chorada, mas presente. Sete para as onze. Outros passageiros embarcam e se comprimem na estreita passagem central. Um a um, foram primeiro os filhos, quatro, para o Norte, para 0 Sul, para o Leste, para o Oeste, levando com eles a semente apodrecida de estufa, machucada pelas tentativas de afago desastrosas, corrompida pela cegueira obstinada até o tiltimo instante. Havia duas horas apenas entre a compreensio e os minutos que faltavam para a safda do dnibus. Girou no mesmo circulo, em torno do mesmo eixo, giraram, ele ea mur Iher. Houve uma pausa, porém. Pararam, Ede relance, viu-a envelhecida, viu-a velha, como nunca chegara a supor. E compreendeu, compreendeu que se havia esquecido de muita coisa nesse intervalo de... quanto tempo? Ametade itil de uma existéncia. Inspizou. Expirou. Sentou-se numa pol- trona e sorveu com altvio o primeiro siléncio total, siléncio definigao per- feita, auséncia absoluta, Foi nesse estado que fez capidamente a mala e saiu. A observacao provocada pelo grupo de rapazes sugere-lhe outra. Tudo resolvido, pois chegara finalmente & compreensio? Bastava entio trans- formar o sucedido em esquemas conscientes, e com eles resolver tudo? E 08 insultos, as palavras ditas, ou nao ditas, os gestos, os golpes, os anos, sim, os anos, o pogo envenenado em que se dessedentara e cuja gua sex- vira aos outros, com imperativos, o miasma que deixou gerar no seu cubo de ar e que imp6s aos outros, 0 fruto dessorado que servia aos bagacos na ‘mesa unida pelo rancor e pela contrafagio de mesa? Podia com essa com- preensio estender-se sobre os eixos do mundo, e com a cabega, os pés e cada mio, arrastar para 0 seu centro os quatro pontos cardiais? Repete ‘movimento da mao, ¢ o polegat ¢ 0 anelar se encaixam sobre as rbitas. Intil compreensio se além da dor ainda the dé a consciéncia da dor, € no anula um esboco de gesto sequer do que foi dito ou feito. Quase cheio co Snibus. A mulher que ocupou o lugar ao lado do seu nao deixa de recri- minar 0 marido, na ponta de outra poltrona, para lé do corredor, por néo ter conseguido dois nimeros num mesmo banco. Era gorda, a cabega trapezoidal ligada ao busto pela papada, ¢ do busto aos pés, uma linha sinuosa de panos ¢ rugas, 0s scios acomodados sobre o ventre. Falava com. ‘5 bragos, com 0 atrito dos tecidos, com o ranger das molas ainda néo acomodadas, com a respiragio alterada, com todo o seu peso de carne € obstinagéo. O motorista testou o painel de luzes. Na penumbra prosse- guia o grasnar, o crocitar, o baliz, o resmungar. Para onde? Para onde? Logo ali, apés a curva, os armazéns do cais e a estada. Ba-a, bé-a, bé-as beée, beée, beée; breke ke ke kex koax koax, brrke ke ke kex koax koax, brrke ke ke kex koax koax. Ergue-se. Passa a custo esfregando os joelhos da mulher, ainda a tempo de ouvir o agradecimento pela ttoca de lugares implicita no sew gesto, um minuto antes de partir. Desculpa-se com 0 motorista e consegue reaver a mala do depésito jé fechado. O dnibus par- te, Atravessa de novo a estagdo, recusa carregador, eno carto de praca dé 0 seu endereco, © automével contorna a ilha do estacionamento, passa 20 lado do bar onde um grupo de marinheiros se embebeda. A esquerda véo pfer novo em funcionamento, e a proa de um navio iluminada, Abre a porta, deixa a mala no chao ao lado da cadeira, senta-se de novo na poltrona, diante dos mesmos olhios na mesma posigao. O ar se rarefaz um. pouco. As Srbitas se dilatam, As pupilasse fixam. O mastro. On6. Os fios retesados, A circunferéncia. O impulso inicial. Brrke ke ke kex koax koax. Brrke ke ke kex koax koax. Brrke ke ke kex koax koax. — Toma, devora-me o figado, pois cometi um crime, no roubei a luz, aceitei-a quando me ofereceram, 102 A porta © essencial é néo transpor a porta, Nao abri-la. Permanecer ali, diante dela, encarando-a de rijo com todas as suas possibilidades de porta, Fecha- da. A lingiicta no furo exato, encaixada. A horizontalidade da macaneta na devida posigao do equilfbrio justo. Nada que possa alterar o estado pleno de funcionamento, Nenhuma rotacao desarticuladora, Nem o rangido das dobradigas, ow o oscilar dos pinos verticais com os extremos arredondados a feigdo de gota dégua. Porta simplesmente. Nao ceder & tentacéo das fres- tas que a madeira ressequida fizera surgir unto as aduelas e 20 piso, da gros- sura de um dedo quase. Frestas, redugio de sua potencialidade de porta. Excapat-lhes ao jeitoinsinuante de seres contradit6rios, resisti-Ihes ao con- vite de uma penetragio agucada por curiosidade repontada ao movimento involuntério da meméria. Estancar todlos os fimpetos diante da superficie polida, opaca, manchada de dedos. Placa de cedro, talvez, ou de imbuia, com seus veios em cunha, ou desorientados, nervosos, as vezes, em que vesttgios de nés definiam olhos demoniacos, em meio aalgum rosto rajado. Focinho. A idade do tronco na rectiagio de hipotéticasjubas. Manter assim as mdos espalmadas sobre a almofada. Quando muito um ligeito movimen- to, mas sem ruido, permitindo aos dedos um rapido contato com as moldu- ras, ou a pressio mais enérgica nas espessas congoeiras. Méos dilatadas, amplitude méxima dos dedos curtos e grosseiros, broncos, de unhas moles, irregulares. Tentativa de integragdo naquilo que € porta. Mas 0 desejo de ‘nunca ultrapassar o limite de alguns milimetros. 103 — Mais um prato. Alice, temos visita! ‘A mesma frase, as mesmas palavras, mas com outra inflexo, bastariam para arrancé-lo do torpor que o dominara ao encarar 0 grupo & espera do jantar. E nunca se destr6i o édio? Nunca se extirpa o sarcasmo na frase feita com intengées mal acobertadas? Sempre a carga demolidora no ges- 10 visual, o desprezo no ato comum? A empregada, nova na casa, olhou-o também com tique aborrecido nas palpebras € no canto dos olhos, fun- dindo as suas as emogées do ambiente. De que valeria uma identificagio para restabelecer um principio de autoridade, de hierarquia? Puro de gaste de energias quando na sala imensa um olhar tigido, macigo, um olhar ‘monstruoso concentrando vérias faces, conjunto de muitas lentes a con vergitem raios para um s6 ponto. A mie, ligeiramente dobrada para a fren- te, equilibrando a cadeira de balango com os bragos estendidos, o irméo mais mogo esparramado no banco de palha, cigarro na boca ¢ bochechas Iuzidias com os cabelos empastados, tia solteirona, dura, ressequida, obtu- sa como todas as solteironas, expelindo complexos nos dedos magros cocupados com uma agulha em trabalho infinito, o irmao mais velho, pe- quena calva, no sofé ao lado da mulher, reproduzindo nos movimentos e na roupa os ideais paternos, a cunhada, gravida, de rosto inexpressivo, arredondado, os cabelos curtos, raspados acima da nuca, mas contagiada pelo espirito do cla. E& sua frente, do outro lado da mesa, surpreendido no instante em que abria uma gaveta, o pai. A calva reluzente no alto emen- dando com a testa, 0 cabelo meio ralo lateralmente, aparado com a pre- caugio de nfo alterar 0 volume que sempre the foi grato, de modo a recompor o efeito duplamente triangular do rosto, que afilava para o queixo e para a fronte. Nada nas roupas poderia indicar um tempo irreversivel. Sempre a camisa justa, sem rugas, sempre a calga com vincos nitidamente marcados, arestas de algum sélido, que nem as oscilagdes do joclho alteravam. Nao teria outra coisa a lhe dizer? Os dedos se apsiam ‘num espaldar e impedem o movimento de avango jé esbocado. Atingit 0 quarto, além do corredor, na ala esquerda, era a Gnica idéia. Bastaria con- rornar a mesa, j4 que o alimento nfo o atrafa, e ganhar 0 corredor em cotovelo, sucessio de portas para os cmodos rodeando o patio interno. Estender-se na cama com a face encravada no travessciro enquanto os 108 piAtoso membros retesados lhe dariam a feigio de crucificado em madciro oblon- go. E dotmir um sono compacta, inerte, sono de mitmia tempordria, sono sem visceras nem alma, son metélico. Mas havia a mesa a contornar, a figura junto a gaveta, eo feixe de olhos a queimar-Ihe o corpo com a intensi- dade de ondas invistveis. Uma palavra, apenas, dita por ele, e provocaria 6 tumulto propicio a um reatamento, ainda que entremeado de insultos. ‘Mas sempre haveria lugar para uma expresso mais rude, um gesto mais desenvolio, a coragem de readquirit um dominio seu, mesmo contra a vontade de todos, e a sua prépria, Nao um estrankho introduzindo a pre- senga intrusa, importuna, e sim o dono de certa parcela tomando posse apesar da hostilidade afirmada sem disfarces. E essa palavra? De onde a arrancaria? Da sarsivada que Ihe assomava & boca qual delas serviria? “— Dormir.” Intl, ridicula. Perceberiam, acaso, 0 dormir como ele 0 sentia? “—Imbecis.” Para isso voltara, para num arremedo infantil lancar apedrada moleque, e mostrar a lingua em contrafagio simiesca da face? “—Voltei.” Desnecesséria, pela evidéncia. Reconhece que qualquer uma produziria 0 efeito previsto, e conclui que o que desejava evitar era esse mesmo efeiro. Por que viera, ent4o? Sonhara com rompantes de ternura? Nunca! Ponto por ponto recompusera a acolhida, ¢ no houvera a intro- isso do elemento surpresa. Por que viera, entio? Por que vai um ho- mem a caminho de sua danagdo com a Incidez do suicida? Passo sobre asso com 2 intengao firme de desisténcia, ndo péde evitar sua presenga ali. Como é sélido esse espaco, como € denso 0 ar triturado pelo corpo lento no caminho para varanda aberta. E necessécio recorrer 20 actimulo de energias extremas dispontveis em um miisculo para deslocar a perna, ¢ uplicé-las para mover a outa, Romper com os bragos uma consisténcia de pedra ¢ impulsionar o peito em uma ansiedade de golpes e colisées constantes. Quase ultrapassada a figura do pai. Restam os outros. Estranha ‘matéria precipitada pela condensagio de fluxos visuais. A varanda! A va- anda! Sob a sola chia 0 tapete resistindo & presséo sobre as fibras, que se vergam em atropelo para retornar & vertical com estalidos inaudtveis de mintsculos chicotes. Mais um pouco e a rigidez ambiente se modifica, atuando apenas nas costas, e impri que, mais desenvolto, possa atingir a abertura. Jé ndo os ve. Pressente-os nindo-Ihe a celecidade suficiente com 10s apenas, pelo atrito dos assentos 2o girar dos corpos com que lhe acompa- nham a trajetéria. A varanda! Talvez fosse esse chao ali, trés degraus abai- ‘x0, o motivo de sua vinda. O quintal profundo separado do patio interno, para onde dio as janelas do quarto, por uma cerca de bambu cravada na terra, e cortada & altura de um homem. Seixos acumulados criam a i de embasamento, e pequenos reflexos fafscam em pontos brilhantes. Des- ce 0s degraus. Mames mitidos se apertam protegidos por folhas larges. Bananeira, Tamarineiro, Pé de carambola. Mangueira velha, gigante, a copa Jonginqua, no alto, bem 14 em cima, acima da janela do s6tdo, enfiada entre as duas aguas do telhado. E no fundo, além do muro divisério, j& em ou- tro lote, a linha erecta de uma palmeita € seu capitel imével na auséncia_ de vento. Talvez esse chio o atrafsse. Sem reminiscéncias, sem incidentes de infancia (ali nascera), sem perturbagées afetivas. Chao, apenas, Um pouco seu. Eno cansago, melhor do que outro qualquer para acolhé-lo. A terra cede ao seu peso. A grama se inclina, Soba quaresma tecolhe péralas soltas, Debruga-se no pequeno tanque e perturba o reflexo lunar da face com a agitago dos dedos na agua. A profundidade de um palmo a cama- da ténue de um musgo quase transliicido cobrindo a laje de pedra. E os outros, 14 dentro, na mesma atitude; nao ouvira um sé movimento ou palavra, Ficaria ali a noite toda, o dia seguinte, os meses, os anos? A beira do tanque, encarando o casal de criangas de pedra, bochechudas ¢ felizes sob um guarda-sol de cimento e placas de esmalte coloridas? Néo, no vale a pena rememorar incidentes e explosdes que cavaram ou aprofun- daram a distincia entre ele e os outros. Nem elaborar hipéteses que pos- ‘sam justificé-los a seus olhos, ¢ inverter a sua condigao de vitima na de confessor todo-poderoso para absolver culpas nao ouvidas. Violara as leis deles, de trangtiilidade e ordem duas vezes seculares, a0 nao aceitar 0 que fora assentado sobre a rapina, e continuava sendo, num mecanismo bem mais complexo, agora, com a vantagem de estar fixado jé em algo que implicava uma determinagao vinda nao se sabe de onde. E foram tio du- rasas palavras ditas, e descobriram-se nele impetos téo selvagens (de onde vinham, de onde?) que a resposta foi essa de h& pouco, numa incrfvel sub- versio afetiva. Pouco importam os detalhes, e ao seu feitio rebelde basta~ va o instante ali, irresoluto. De que sangue fora feito? Que esferas 106 prose demontfacas se conjugaram no ato em que foi gerado? Longe deles, longe da cadeia de sobrenomes justapostos que la dentro velava pela integrida- de desses elos, nao Ihe fora melhor sorte. Olha o céu. Claro. Pontilhado. Calmo. Calmo, agora. E ele jf conheceu outras noites de desespero e sor- didez, impelido pela fome. A sordidez de um remanso que se olha com desprezo de si mesmo. Mas afugentar as idéias, As maos. Essas mos pou- co habeis em permanecer além-muros, figis mente em ebulicio. Contor- na a cerca de bambu e pensa em atingir o parapeito da janela de um salto. ‘Medea distancia, ¢ desanima 20 tomar consciéncia da solugio furtiva. No centro, com a moldura da faixa cimentada a se apertar rente as paredes, 0 jardim cuidado. Algum tempo, oco, aestragalhar folhas, a untar os dedos com a resina expelida, e a trincar algum talo que Ihe inunda a lingua de cica. Bruscamente toma distancia e sOfrego, durante o salto, arquela os bragos ¢ engancha-os no parapeito do quarto. Um esforgo a mais e estaria 14 dentro, mas imobiliza-se. Os pés jé nao tocam o cho. Pendente 0 cor- po € 0 antebrago dolorido pela quina de marmore, A posigio ideal do instante insolivel. Vaga sombra colada a um muro, fantasma de si mes- mo, semivivo, ainda, por acZo da gravidade. Entre os olhos e o muro, distancia de uma vida. E agora? E agora? E agora? E depois? E depois? Sabe que o essencial € nao transpor a porta. Nao abri-la, Permanecer ali diante dela, encarando-a de rijo com todas as suas possibilidades de porta. Fechada. Mas os dedos escorregam na madeira, e uum ranger de pinos ressoa em sua indeciséo. — Mais um prato, Alice, temos visital Pardbola do filho e da fabula Eali na cama, 0s olhos abertos apés 0 delitio. Ladeando a cabeceira, 0 corpo magro ¢ 0 rosto nervoso da mae, ¢ o perfil contrafdo do pai, ambos sentados em pequenos bancos de estofo verde, ¢ uma das méos sobre o len- gol, Uma luz serena vinha do quintal, pela janela aberta, luz mansa de trés horas da tarde de um dia de sol e céu lavado por outros dias de chuva, cla- ridade sem rufdo, impregnada de um cansago pelas vizinhangas, densa de modorra ¢ isenta de quaisquer ondulagées de galhos ou brisas. essa a luz que os olhos do filho, bem abervos, aspiram no teto branco, sem intengio de movimento, e adivinham, lé fora, a cor de um horizonte sem manchas, azul, ainda que néo visto. O calor sob o lengol no o incomoda, 20 contré- rio, dé-lhe uma nogio de conforto e de bem-estar temporéios que gostaria se prolongessem com 0 siléncio, sem a intromissao de palavras, embora soubesse que nao tardatiam, pois os outros doisali estavam para sso, simples- mente, ¢ dai a instantes principiariam um suposto diflogo. O amontoado de equivocos trouxera-o aquele estado, misto de loucura e lucidez, e se ali estava, na cama, com os olhos abertos ap6s o delitio, e néo em outro lugar, morto, talver, devia-o a uma persisténcia ilus6ria em permanecer ainda, € sobretudo. Mas nao Ihe viessem com palavras que delas nada esperava, Porque em sua teimosia ouvia-as ¢ lias sempre de trés para diante, cle, um espelho, ¢ para espanto dos outros maravilhava-se com o sentido que de ‘modo algum percebiam, Ainda no tempo dos mitos dera inal de desconhe~ cimento de fronteiras. Olhou o fogo certa ver. tentou dobrar a chama com 134 piAtoco apalma da mio. Chorara. Mas passada a dor, insistu, Castigaram-no, en- to, Se nao repetix 0 gesto nao foi pela dor da chama, mas pela degradacéo do castigo que de modo vago intuiu. Mas nunca the haviam dito que na cor da chama estava a dor. Ainda no tempo das lendas destespeitara fronteiras. Com uma vara tentou desencantar 0 gato da casa, ¢ como este insistisse em conservar a feigio de sempre, afastando coma pata a ponta que lhe pousa- vva no focinho, ronronando e arregalando os beicos, pronto para a brinca- deira, ele enfureceu-se € passou a fustigé-lo com violéncia. O bichano esquecido de outros afagos, e nfo se lembrando também de fagir investi contra o amigo de sempre e deixou-o ensanguentado. Castigaram-no en- to, Se no insistiu na faganha, ndo foi pelo sangue ou pelas légrimas, mas pelo mesmo motivo anterior, jé agora mais nitido. Mas nunca the haviam dito que os gatos desconheciam as lendas. E agora ali estava, na cama, com 0s olhos abertos apés o delirio. — Filho, vou contar-te uma fébula—era a vor da mae, quase sumi- da, — Quando o inverno chegou, ¢ tudo era neve e gelo, a cigarra que passara o verdo inteiro a cantar sentiu fome. Procurou entao a formiga que outra coisa nao fez nos bons tempos a nfo ser guardar e guardar co- ida para os meses de frio, e pediu-lhe um pouco dessa comida para a sua fome. Pergunta-lhe a formiga, porém: “E no verdo o que fizeste?!” “Can- tava, cantava sempre, semprel”, respondew a cigarra. “Pois danga agora!”, diz a formiga e tranca-the a porta. — Mas sea cigarra proceder como a formiga, quem cantaré no verdo? — Filho, vou contar-te uma fabula — era a voz do pai, fé um pouco agressiva. — Quando a peste grassava entre os animais, 0 lef, certo de que provinha dos pecados ali cometidos, convocou uma assembléia, para que cada tum confessasse 06 seus, ¢ 0 mais culpado morreria entao. Reco- mheceu ele proprio as mortes injustas praticadas, mas a assembléia per- doou-lhe, O mesmo fez.com o urso, como tigee, com o leopardo e como lobo. A todos esses a assembléia perdoou. Que nfo era pecado matar, roubar, estragalhar, ferir covardemente. E veio 0 burro, e disse que a0 pas- sar com fome no prado de um convento, ndo resistiu, e provou do capim. Ea assembléia em peso, horrorizada com tamanha calamidade, rugia, ui- vvava, regougava, exigindo a punicéo. E 0 burro foi imolado. 135 — Pai, admiro esse burro! — Filho, vou contar-te uma fabula— era a vor da mie, jé quase cho- rosa. —Um pastor dormia, sem cuidados, e ao longe os cies Ihe guardavam © rebanho. Nisso uma serpente se aproxima, e est pronta para atacé-lo, quando um mosquito, que por ali estava também, s6 encontra um meio de salvar o pastor, 0 de picé-lo. Acordando, o pastor ainda péde se apos- sar do cajado e esmigalhar a cabega da serpente. Mas dota-lhe a picada na testa, ¢ irtitado com o mosquito deixa cair sobre ele a sua mio com vio- encia. — Mie, eu jé fi esse mosquito! Ea cabega da mae se dobra em solucos. E na modorra da tarde, na serenidade de um silencio desejado, 86 a voz grave e ronca do pai se faz ouvir: — Filho, se queres viver esquece as fabulas! A chuva de hé pouco Exgueu-se sobressaltado como habitualmente, nos tltimos tempos. Sentado na poltrona nao levava mais de dez minutos para cair num cochi- Jo, € no maximo meia hora depois, presa de um terror, despertava. Du- rante o dia isso Ihe acontecia umas quinze vezes, antes de dormir 0 sono habitual, que era curto, mas continuo ¢ repousado. De raro em raro Ihe vinham sonhos, ¢ nunca nesses poucos instantes em que abria os olhos, assustado, ¢ procutava em torno de sia disposicio habitual dos objetos, a ‘mesma cor das paredes, o mesmo globo no centro do teto. Agora de pé ia recuperando o senso da ordem e das imagens, enquanto se regularizavam, as batidas do coragio, ¢ evaporavam as gotas de suor na testa, no peito ras costas. © velho Cléudio tinha setenta ¢ cinco anos, um metro e ses- senta ¢ cinco de altura, pesava cingjienta e trés quilos, os cabelos brancos € ralos, 0 rosto claro e pouco enrugado, e sua vida fora uma enfiada de surdos desesperos em que sempre se afirmara pela omissdo diante de qual- quer gesto, ou passo necessério para atenuar um impacto doloroso. Em resumo, inconsciéncia dos atos, ¢ ignorancia da conseqiiéncia dessa in- consciéncia. Cruzou os bracos comprimindo ainda mais o casaco de li, devido ao frio repentino, Quinze para as quatro. A porta da sala para a varanda estava fechada, e 0 aposento em penumbra salientava 0 siléncio em torno, Triturou um pouco de saliva entre os dentes ¢ estalow a Ifngua A sensagio de desgosto na boca. Comeria uma laranja agora, se houvesse alguém que pudesse se lembrar de seu desejo e o servisse, Mas nao havia ‘eiculos, ¢ vira-se entio pela primeira vez para o neto, um rapaz de seus ‘quinze anos, com a cabeca escondida pelo jornal, ¢ lhe diz: — Vés, choveu hé pouco, e a rua jf esté completamente seca. (0 neto ergue os othos dos jornais e encara-o com uma expresso de forgada naturalidade, sem mesmo langar uma vista A rua. —f Baixa os olhos e retoma a leitura, Havia chovido na véspera. | (1967) sentimento nao se entoscasse sutilmente travando o gesto prometido. ‘Agulou-o mais um peuco. Principiowa tirar o dinheiro que pusera no bolso da camisa, ea soltar as notas uma a uma, Percebia pelas pausas dos passos ‘que 0 seguiam que o tipo se abaixava para recolhé-las. Também ele prin- cipiow a fazer pausas. Soltava as notas de cinco em cinco, depois de duas em duas. Prolongave-se o instante, e cada vez mais longe iam ficando as luzes, até que delas se apercebia apenas o halo leitoso franjando o hori- zonte. Entio voltou-se, O tipo encarou-o duro, macigamente duro, na certeza de que além do trabalho, e além do que havia recolhido, haveria ainda mais pelos bolsos. E mais duro ainda porque era suficientemente sagaz para perceber a humilhagéo. Foi entio que ele deixou cair o tiltimo mago de notas no centro da pequena clarcira em que se encontravam, a dois passos um do outro. Ese aproximou do tipo qie 0 esperava tendo jé na mao o brilho de uma faca, lamina larga, dois gumes, e ainda conseguiu abragé-lo e beijé-lo antes que um reflexo de prata ¢ sangue lhe tingisse os olhos. Duas frases Duas frases se revezavam com insisténcia desde a véspera. A segunda -a de um estrondo, enquanto aguardava a torrada no café da esqui chuva o dia ou nna. Chovera um pouco depois do almogo, ¢ mesmo cessada, continuou penumbrento ¢ 0 cu compacto de nuvens que nem mavens se viam, A estada no centro irritava-o sempre. A sucesso de bencos ¢ gui- chés, de repartigées e espera, de tabelides e formulérios a preencher, a rotina necesséria uma vez por més pata garantir o andamento regular da oficina, Safra sem capa e guarda-chuva, e a roupa jé seca mas deformada guardava ainda junto as axilas e nas costas uma soma de umidade ¢ suor. Voc# come queijo sem po? Brusco derramou o leite no piresao apoiar a xfcara e virou-se para a outra mesa, O tipo era baixo, meio gordo, um cabelo cor de palha, desordem de pequenas ondulagdes até o meio do cctinio. © jeito nervoso das maos sobre a toalha ¢ os tiques do rosto carre~ ‘garam a frase com acentos de espanto e inseguranga, ‘A primeira frase ouvira-a hd uns cinco anos, em casa do futuro s0- gro, numa tarde de domingo. Sentado na varanda junto A mesa baixa recusow a bebida e os bolos e pés-se a cortar em tiras a porcéo de queijo do seu prato; depois partiu com golpes de faca as tiras em quadrados, € com um palito comegou a mastigé-los. O pai da noiva, mitido mas fir- me, de rosto nervoso e decidido, depois de observé-lo por alguns ins- tantes pronunciou de um modo seguro a frase: voc# come queijo sem pao? Continuou em siléncio, transformou em sorriso uma careta, ¢ con- 159 siderou a frase uma afirmacéo qualquer, suficiente para reatar a conver: sa. Mas ndo era. Responden com irritagdo ao faxinciro que reclamara as vassouras jé gastas, € um novo estoque de sapélio, Pelo vidro corrido que ligava 0 ¢5- rit6rio ao resto do gilpao ainda ouviu osresmungos ¢ os golpes dos taman- cosno cimento, Jé pela manbé, ao chegar, fora recebido pelos carpinteiros ue de eécoras na calzada jogavam porrinha. Um defeito na instalacio clétrica paralisara as méquinas. Meia hora depois pagava ao eletricista o Conserto e podis abrir, sem interrupg6es, as pastas de papel da escrivani- aha. Vestigios ainda de uma operacio malfeita de hemorr6idas incomo- davam-no desde a madrugada, quando acordou cou um ligeiro desaztanjo intestinal. Aplicou um supositério, tomou meio comprimido de um hip- Rético nao barbitérico que the fora receitado junto com estimulantes para ap6sas refeicbes, ¢ conseguiu dormir até as sete horas da manha. De novo 0 faxineiro a sua frente, j4 sem tamancos, e de roupa trocada. Queria as

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