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DANIEL GUÉRIN

O ANARQUISMO
Da doutrina à ação

Tradução
Manuel Pedroso

Prefácio de
Davi Galhardo

2a. Edição
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softwares livres LaTeX, Texmaker, Sigil e Calibre

Tradução
Manuel Pedroso

Diagramação e Revisão
Mauro José Cavalcanti

Capa
Angela Barbirato

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Uso não-Comercial-Compartilhamento)

FICHA CATALOGRÁFICA

Guérin, Daniel, 1904-1988


O anarquismo - da doutrina à ação [recurso eletrônico] / Daniel Guérin;
tradução Manuel Pedroso — 2. ed. — Rio de Janeiro : Rizoma, 2015.

ISBN 978-85-5700-005-6 (versão impressa)

1. Anarquismo e anarquistas 2. Autogestão social 3. Revolução russa 4.


Revolução espanhola I. Título.

CDD 320
CDU 321

Rizoma Editorial GEAPI - Grupo de Estudos


Caixa Postal 46521 Anarquistas do Piauí
20551-970, Rio de Janeiro, RJ anarquistas-pi.blogspot.com
rizomaeditorial.com geapi.phb@riseup.net
rizomaeditorial@yahoo.com.br
1a. edição - Germinal 1968
2a. edição - Rizoma 2015
PREFÁCIO À SEGUNDA
EDIÇÃO
Em 1965 vinha à tona uma obra que tornaria-se célebre no campo da
Ciência Política, trata-se de O Anarquismo: da doutrina à ação, escrito pelo
francês Daniel Guérin (1904 - 1988). Há quem diga que o livrinho - como
costumava escrever o seu autor - foi juntamente com A Sociedade do
Espetáculo, o magnum opus de Guy Debord, dos mais influentes, para os
acontecimentos do famoso Maio de 1968 francês.
Passadas cinco décadas de sua publicação original, a obra de Guérin
segue como referência aos estudiosos do Anarquismo, e já foi traduzido
para diversos idiomas, como o alemão, espanhol, esperanto, e inglês. Neste
último saiu pela primeira vez em 1970, acompanhado do já famoso Notas
Sobre o Anarquismo, de Noam Chomsky, que veio a ganhar autonomia, e
hoje aparece numa obra à parte, já publicada em 2011 pela editora Hedra,
com tradução de Felipe Corrêa et al para a língua portuguesa.
No Brasil, a primeira edição de O Anarquismo, data de 1968, graças aos
esforços da extinta editora luso-carioca Germinal, que apresenta-nos uma
tradução de Manuel Pedroso, acompanhada de notas do conhecido
anarquista individualista Roberto das Neves. A presente edição serviu-se
inteiramente desta última, corrigindo sempre que possível os inúmeros erros
que ela originalmente apresentou, os quais pedimos antecipadamente
desculpas ao leitor, caso sejam recorrentes, mesmo após inúmeras revisões.
Apareciam com frequência o aportuguesamento de nomes próprios, p. ex.:
Bacúnine, Pedro-José Proudhon, Pedro Kropótkine, Estáline, Lenine, etc.
Dentre outros, que no entanto não prejudicam a compreensão da totalidade -
para usarmos uma categoria Hegeliana -= do texto.
No que tange ao corpo do escrito em questão, não apresentaremos um
resumo da obra de Guérin, visto que a mesma já é um resumo de mais de
um século de teoria e militância libertária, o que a torna portanto quase que
uma leitura obrigatória em seu conjunto, nem mesmo de sua vida e obra,
pois Pietro Ferrua, já realizou tal tarefa com grande êxito. Limitaremos-nos
a comentar brevemente algumas das suas fontes, e suas respectivas
publicações em língua portuguesa, que se dividem em: Anarquismo, Stirner,
Proudhon, Bakunin, Primeira Internacional, Comuna de 1871, Kropotkin,
Sindicalismo, Revolução Russa, Conselhos de Fábrica, Revolução
Espanhola e Autogestão Contemporanea. À maneira de Aristóteles,
começaremos pelas coisas primeiras.
1) Anarquismo: no Brasil a tradução dos dois volumes da História das
Idéias e Movimentos Anarquistas fora publicada pela L&PM de Porto
Alegre, e apresenta um fácil acesso, tanto em conteúdo, como em custeio.
The Anarchists de James Joll é outra grande obra, que ainda aguarda
tradução para o português, embora já possa ser encontrada facilmente em
espanhol.
2) Stirner: a primeira tradução de O Único e a Sua Propriedade apareceu
em 2003, graças a edição preparada por João Barrento para a editora
Antígona de Portugal, que no Brasil fora lançada apenas em 2009 pela
Coleção Dialética, da Martins Fontes. A obra de Henri Arvon utilizada
como referência por Guérin é outra que aguarda tradução em nossa língua.
3) Proudhon: das obras citadas por Guérin apenas a Teoria da
Propriedade encontra-se traduzida para o português, embora ainda não
tenha sido publicada, pode ser encontrada numa tradução anônima na
internet. Na verdade poucas sãos as obras deste que já o foram: O que é a
propriedade? Saiu em 1975 pela Editorial Estampa de Portugal e em 1988
pela Martins Fontes de São Paulo, ambas as edições estão esgotadas. O
tomo I do Sistema de Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria
saiu em 2003 pela Coleção Fundamentos de Filosofia da Editora Ícone, os
dois volumes da mesma obra também aparecem pela Editora Escala, que é
tida de pouco crédito pelos estudiosos mais exigentes. O pequeno texto
Sobre o Princípio da Associação e o Capítulo VIII de Guerra e paz:
expressões correlativas aparecem na Revista Verve da PUC-SP. Pela Editora
Imaginário e Nu-Sol saíram Do Princípio Federativo em 2001, com
tradução e notas do estudioso do anarquista francês Francisco Trindade,
edição fac-simile daquela que saiu pela Edições Colibri de Portugal, em
1996. Mas, os mais conhecidos entre o público são sem dúvidas os títulos
da L&PM, A Propriedade é um Roubo e outros Escritos com inúmeras
edições, e o esgotado Textos Escolhidos, organizados por Daniel Guérin e
lançados em 1983 pela editora. Recentemente saiu também a Solução do
Problema Social pela incansável Editora Imaginário em parceria com o
Instituo de Estudos Libertários.
4) Bakunin: o trabalho teórico do anarquista russo tem sido esquartejado
aos longo dos anos. Aparece aqui e ali em pequenos escritos, coletâneas, e
fragmentos que dificultam a compreensão de seu pensamento em conjunto.
As Obras Completas utilizadas por Guérin não constam em língua
portuguesa. Por hora, dos títulos citados pelo francês, dispomos apenas das
Cartas completas, publicadas no livro Bakunin Por Bakunin: Cartas da
extinta editora Novos Tempos e também no Revolução e Liberdade: Cartas
de 1845 a 1875 da Editora Hedra e ainda de O Conceito de Liberdade,
lançado pela Edições RÉS limitada de Portugual, que apresenta tradução
direta da edição francesa citada por Guérin. Acaba de ser lançado também
as Obras Escolhidas do autor, pela Editora Hedra e Imaginário, com
organização e tradução de Plínio Augusto Coêllho, contendo mais de vinte e
cinco textos deste anarquista.
4) Primeira Internacional: Dos quatro volumes de A internacional:
Documentos e recordações de James Guillaume citados por Guérin,
dispomos apenas do primeiro em nosso idioma, lançado pela Editora
Imaginário em 2010.
5) Comuna de 1871: A Historia da Comuna de 1871 de Prosper Olivier
Lissagaray saiu pela editora paulista Ensaio, em 1991. Em 2011, o polêmico
livro A Guerra Civil na França de Karl Marx teve uma belíssima reedição,
com tradução direto do original alemão por Ruberns Enderle, publicado
pela Boitempo Editorial. Os textos de Bakunin e Lefebvre aparecem na
coletânea organizada por Nildo Viana, Escritos Revolucionários Sobre a
Comuna de Paris lançada em 2012 pela Rizoma Editorial.
6) Kropotkin: o famoso livro Pierre Kroptkine: le prince anarchiste de
Woodcock e Avakoumovitch citado por Daniel Guérin é mais um que
carece de tradução para o português. O Geógrafo Russo é outro que tem um
limitado número de suas obras publicadas no Brasil. No entanto,
limitaremo-nos a citar a edição preparada pelo filósofo Maurício
Tragtenberg, e que fora publicada pela L&PM também sob o título de
Textos Escolhidos, que embora esteja esgotada desde a última década de 80,
é de fácil acesso, e aos nossos olhos parece se aproximar melhor daquela
obra consultada pelo francês.
7) Malatesta: dos citados por Guérin, apenas o livro A Anarquia e
outros Escritos fora publicado em 1987 pela extinta editora Novos Tempos,
os demais (assim como tantos outros) aguardam a primeira publicação em
língua portuguesa. Mas, vale lembrar que alguns outros títulos do
Anarquista Italiano já apareceram no Brasil.
8) Sindicalismo: Os Sindicatos Operários e a Revolução Social Vol. 1 de
Pierre Besnard saiu em 1988, também pela Editora Novos Tempos, bem
como Ravachol e os Anarquistas teve sua primeira edição em 1981 pela
Editora Antígona de Portugal.
9) Revolução Russa: A trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotsky e a
revolução russa: I) O Profeta Armado 1879-1921; II) O Profeta Desarmado
1921-1929; III) O Profeta Banido 1929-1940; é uma velha conhecida do
grande público. Dos textos de Emma Goldman citados por Guérin,
podemos encontrar boa parte destes nas seguintes publicações: Dois Anos
na Rússia: dez artigos publicados no The World de Emma Goldman,
traduzidos e publicados em português pelo coletivo Barricada Libertária de
Campinas, SP em 2012, e no livro Kronstadt de Emma Goldman e
Alexander Berman lançado pela Ateneu Diego Giménez, de Piraciba, São
Paulo em 2011. De Rudolf Rocker, temos Os Sovietes Traídos Pelos
Bolcheviques publicado pela editora Hedra em 2007.
10) Conselhos de Fábrica: Lançado pela Rizoma Editorial Partidos,
Sindicatos e Conselhos Operários de Anton Pannekoek conta ainda com
uma apresentação de Nildo Viana.
11) Revolução Espanhola: Talvez o campo mais escasso do Anarquismo
no Brasil, no entanto dispomos do clássico de Diego Abad Santillan O
Organismo Econômico da Revolução - Revolução e Auto Gestão na Guerra
Civil Espanhola lançado pela Editora Brasiliense, com prefácio de Maurício
Tragtenberg. Alguns trechos de Gaston Leval aparecem na Coletânea
Organização Anarquista na Guerra Civil Espanhola, lançada pela editora
paulista Imprensa Marginal.
12) Autogestão Contemporânea: Infelizmente as obras de Stane Kavcic
e Albert Meister ainda não vieram à tona em nosso idioma.
Por fim, gostaríamos de esclarecer sumariamente os motivos que
levaram a esta reimpressão: na ocasião de um encontro acadêmico realizado
na Universidade Federal do Maranhão sobre Filosofia, Cinema e Literatura,
Alexandre Santos do Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí, veio até a
minha cidade, e hospedou-se na minha casa, e ao visitar minha biblioteca
pessoal, logo que viu alguns títulos esgotados, lamentou que o mercado dos
livreiros esteja sequestrando a literatura anarquista, cobrando como resgate
altos preços, dentre os quais encontra-se este importantíssimo livro de
Guérin, vendido em média por bem mais que cem reais nos sítios da rede
mundial de computadores. Concordamos no ato em tentar recolocar tal obra
a disposição do grande público. O mesmo partiu, e pouco depois informou-
me sobre o interesse da Rizoma Editorial em poder oferecer novamente esta
publicação com um preço justo. Coube a mim a produção destas poucas
linhas introdutórias, desta obra que dispensa maiores elogios. O resultado
encontra-se agora nas mãos do leitor.
Davi Galhardo
Fevereiro de 2015
DANIEL GUÉRIN: O HOMEM, O
MILITANTE, O ESCRITOR
Daniel Guérin nasceu em Paris a 19 de maio de 1904, duma família
burguesa, que lhe assegurou uma educação católica, da qual, como ele
salienta em suas memórias (“Un jeune homme excentrique”, Julliard,
1965), custaria a libertar-se.
Após uma juventude aventurosa, durante a qual percorre vários países e
se inicia nas letras com poesias de algum talento (“Le livre de la dix-
huitième année”, Albin Michel, 1922) e dois romances que não tiveram
grande repercussão literária (“Lenchantement du Vendredi Saint”, 1925, e
“La vie selon la chair”, 1922, ed. Albin Michel), torna-se, por volta de
1930, militante sindicalista e socialista, aderindo à S.F.I.O. Conheceu, então
Léon Blum e Leon Trotsky, o último dos quais o fascinou pela sua lucidez,
mas de quem se afasta por seu sectarismo. Visita a Itália e a Alemanha pré-
nazistas e revela-se um agudo analista do perigo totalitário, ao denunciar
numa reportagem, em 1933 (“La peste brune a passé par là”), a ascensão do
31o. Reich, que ele estudará, mais tarde, em suas causas e consequências
deletérias (“Fascisme et grand capital: ltalie-Allemagne”, 1936).
A partir de então. Daniel Guérin abraça todas as causas dos humildes e
perseguidos, sejam eles os negros americanos (“0ù va le peuple
américain?”, 1950; “Décolonisation du Noir Américain” 1963) e “Pouvoir
Noir”, 1967) ou os argelinos lutando por sua independência, nos anos 50, e
de novo, nos últimos anos, após o golpe militarista; condena o colonialismo
(“Au service des colonisés”, 1954; “Les Antilles décolonisées”, 1956);
assina o famoso “Manifesto dos 121”, funda o “Mouvement Laique des
Auberges de Jeunesse”; é secretário sindical e participa de todas as lutas
políticas da esquerda francesa, dentro e fora do pais, - com verdadeiro
espírito universalista.
Publicou além disso livros sobre sexologia, defendendo a plena
liberdade sexual da juventude e considerando o erotismo como um dos
instrumentos da liberdade, em “Kinsey et la Sexualité” (Julliard, 1955); e
em “Shakespeare et Gide en Correctionnelle?” (Ed. du Scorpion, 1959)
avalizará uma interpretação homossexual dos famosos sonetos de
Shakespeare. Homem de teatro (foi, durante algum tempo, co-diretor do
“Théatre des Nations”), adaptou à cena o “Vautrin”, de Balzac, e “Le grain
sous la neige”, do italiano Ignazio Silone (estreada, no Teatro Popular
Mundial a 19 de fevereiro de 1961), à qual deu uma conotação libertária.
No campo histórico, Guérin impôs-se com um extraordinário ensaio sobre a
Revolução Francesa (“La lutte des classes sous la Première République,
1793-1797”, Gallimard, 1946), que lhe valeu elogios de historiadores
profissionais e de Sartre, que chegou a considerada como a mais válida das
interpretações marxistas, e que atraiu, pela primeira vez, a atenção dos
anarquistas sobre sua obra.
Minhas relações com Daniel Guérin datam de há cerca de dez anos.
Dirigia eu o “Centre International de Recherches sur lAnarchisme”, em
Genebra, quando ele me escreveu pedindo informações sobre a situação do
anarquismo no mundo contemporâneo, para uma reportagem destinada à
revista “La Nef”. Militava ele, então, no Partido Socialista Unificado,
nascido do impacto causado na intelectualidade da esquerda francesa pela
divulgação do relatório do 201o. Congresso do Partido Comunista Russo.
Numa carta em fins de 1958, informava-me que as relações entre ele e a
revista “La Nef” tinham-se tornado incompatíveis, por causa das
divergências suscitadas pelo gaulismo, acrescentando que estava
pesquisando seriamente sobre o anarquismo e anunciava para fevereiro de
1959 um ensaio intitulado “Jeunesse du socialisme libertaire”, depois
editado pela Ed. Marcel Rivière. Procedendo a uma redução
fenomenológica de tipo husserliano, que consistia em pôr entre parênteses o
jacobinismo marxista-leninista, propunha Guérin reconstituir desde zero o
socialismo, insuflando-lhe um sopro de pureza libertaria. Após a falência do
estalinismo e do reformismo, tratava-se (dizia-me) de purgar Lênin dos
germes autoritários, de preferir o Marx jovem, libertário, ao Marx adulto,
ditatorial; de reconhecer a franqueza ideológica de Proudhon e de reavaliar
o marxismo com uma vigilância libertária. Teses que não satisfizeram a
muitos dos nossos militantes, mas que nos induziram, com isenção de
ânimo e ante a seriedade e a originalidade do seu trabalho, a nomeei-lo
membro de honra do Comité Internacional do C.l.R.A., que reúne,
independentemente de sua formação e filiação políticas, todos os estudiosos
do anarquismo, bem como biógrafos, bibliógrafos e historiadores.
Em julho de 1966, numa viagem a Paris, onde fôramos buscar um
caminhão de documentação para os nossos arquivos na Suíça, tive
oportunidade de travar conhecimento direto com Daniel Guérin. Estava ele
em companhia de Samuel Beclcett, no “Theatre des Nations”, e, desde
então, a nossa colaboração não cessou de ser frutuosa. Em outubro do
mesmo ano, ei-lo perseguido por ter assinado, ao lado da filha, também
escritora, e de outros intelectuais, o “Manifesto dos 121”. A Liga Central
Suíça dos Direitos do Homem, de cujo comité eu fazia parte, envia
protestos a vários jornais por ele indicados. Durante toda a época da luta em
favor da independência da Argélia, tivemos oportunidade de colaborar,
estreita e fraternalmente.
Entretanto, Guérin distancia-se ainda mais do marxismo e ocupa-se
cada vez mais do anarquismo, sem, todavia, chegar a uma adesão total ao
movimento libertário. Em 1965, sai do prelo o livro “LAnarchisme, de la
doctrine àlaction” (Galilmard); em 1966, “Ni Dieu ni maiter” (Ed. de
De1phes); em 1968, “Le mouvement ouvrier aux Etats-Unis, 1867-1967”. E
a fonte não está prestes a esgotar-se. Em carta de julho de 1966, confessa
ainda Guérin encontrar-se numa posição solitária entre o marxismo e o
anarquismo. Declarara, numa entrevista a 5 de maio de 1966, que em todos
os países se multiplicavam estudos sobre este movimento, que talvez não
mais tivesse muitos porta-vozes, mas que “suas ideias talvez tenham
sobrevivido melhor do que seus partidários”.
Segundo Guérin, a atualidade do anarquismo revelar-se-ia sobre dois
planos: num passado honrado e profético (por ter previsto, há um século, os
crimes do socialismo autoritário), e na proposição de um socialismo
libertário, baseado na iniciativa criadora do indivíduo e na participação
espontânea de vastas massas. Mantém-se, porém, Guérin, convicto da
possibilidade de uma síntese entre anarquismo e marxismo (as disputas
encaradas como brigas de família), permanecendo o desacordo apenas sobre
alguns meios de se chegar à sociedade sem classe.
A majestosa obra “Ni Dieu ni maitre” que, segundo o autor, deveria
chamar-se “Antologia Histórica do Anarquismo”, é uma verdadeira Suma
sobre o assunto, onde se revelam, pela primeira vez, documentos
importantíssimos sobre a atuação anarquista na revolução russa (entre
outros, uma entrevista de Makhno com Lênin e a reprodução das
“Izvestias” de Kronstadt).
Mas examinaremos agora, brevemente, o livro que estamos
apresentando e cuja repercussão tem sido enorme, através da grande difusão
na França e das traduções espanhola e alemã, que precederam a portuguesa.
A obra foi desigualmente recebida pela critica anarquista: Claude
Frochaux (“Bulletin du C.I.R.A.” n. 12) considera-a “autêntico vade mecum
do anarquista contemporâneo”, enquanto Victor Garcia (“Tierra y
Libertad”, maio de 1967) censura Guérin por algumas afirmações inexatas.
Já tive oportunidade de expor a Guérin, a seu pedido, o que pensava do
livro. Não cabe aqui reeditar as poucas falhas e omissões atribuíveis à falta
de documentação e a algumas interpretações apressadas. Basta dizer que
não existia em francês, nem talvez em outro idioma, um livro que
condenasse com tamanha honestidade, vivacidade e acuidade, o que é
necessário informar sobre o anarquismo, numa primeira leitura, para um
público virgem. Mas o livro não tem somente esta qualidade: é ainda
estimulado por um repensamento da problemática moderna do anarquismo,
ao mesmo tempo que é um convite ao reconhecimento de alguns erros
passados e uma avaliação de perspectivas novas.
Os recentes acontecimentos franceses permitem-me acrescentar
algumas palavras sobre a grande influência exercida por este pequeno livro,
bem como pelas outras obras do mesmo autor. Mesmo antes de receber a
última carta de Guérin, e antes de estar de posse do material que me foi
enviado de Paris para documentar os acontecimentos, fá eu havia declarado
a importância de tais influências, numa série de palestras sobre o
anarquismo que, patrocinadas pelo C.I.R.A., estou realizando no Teatro
Carioca, no Rio de Janeiro.
Quando Guérin escreveu o ensaio sobre a Revolução Francesa, quis ele
considerá-la unicamente do ponto-de-vista das relações entre as classe
sociais e insistiu em estudar o movimento das massas, fugindo a qualquer
interpretação idealista, como foi um pouco o caso de Kropotkin, na “Grande
Revolução”.
Talvez Guérin não goste de saber que eu lhe reconheço (mérito ou
responsabilidade?) aquela influência que a imprensa atribui a Marcuse e
que foi negada pelos representantes dos estudantes. Mas o que acontece é
que, em seu livro “LAnarchisme”, Guérin ressuscita o principio de
“autogestão” de Proudhon e dedica-lhe os últimos capítulos. Mais tarde,
publica na revista anarquista de Paris “Noir et Rouge” (19 de outubro de
1965) um estudo sobre a “Autogestão Contemporânea”. Segue-se-lhe um
trabalho sobre a autogestão na Argélia (“LAlgérie caporalisée”, dezembro
de 1965), continuação de “LAlgérie qui se cherche” (1963-64). Em 1966,
ajuda a fundar a revista sociológica “Autogestion”, de cujo comité de
redação faz parte.
O mínimo que pode ser dito é que não é por acaso que o lema anarquista
da autogestão, por uma parte, e, por outra parte, a tônica marxista-libertária
das ocupações das fábricas, corno, entre outros, salienta Edgard Morin,
tenham sido as constantes maiores da recente Comuna estudantil de Paris.
Escreve-me, a propósito, Daniel Guérin, a 5 de julho de 1968: “O que
houve de verdadeiramente novo neste movimento não foram, a meu ver,
nem as barricadas nem mesmo a ocupação das fábricas, mas a contestação
radical de todos os valores estabelecidos e a democracia direta, as
assembleias populares discutindo tudo sem cansar e repondo tudo em
questão. Nesta contestação, o anarquismo, ou socialismo libertário, saiu
vencedor. E absolutamente inacreditável o número de exemplares vendidos
de meu livrinho. Animei debates sobre a autogestão num certo número de
faculdades, de escolas superiores, de colégios e até numa fábrica ocupada.
A questão apaixona literalmente o público. Trata-se da aquisição mais
duradoura, parece-me, da revolução de maio”.
Quer se acredite no valor de experiências revolucionárias deste tipo,
como Guérin, ou o neguemos, como o fez outro anarquista, não-violento, o
famoso compositor americano John Cage, que há pouco esteve
prelecionando no curso de anarquismo, que estamos realizando no Teatro
Carioca, do Rio de Janeiro, os fatos não mudam. Resta interpretá-los
devidamente: numa ótica marxista, Daniel Guérin terá sido simplesmente
um analista de leis dialéticas, que previu e talvez ajudou o inevitável
deflagrar de algumas contradições da sociedade estatal-capitalista; numa
ótica idealista, teria ele contribuído, com seu trabalho incansável de anos,
com suas sínteses lúcidas, para o esclarecimento e a conscientização das
forças revolucionárias estudantis.
Cada um poderá escolher a versão que mais convier a seus postulados
filosóficos básicos.
Pietro Ferrua
Diretor-fundador do Centro Internacional de Pesquisas sobre o
Anarquismo.
Rio de Janeiro, 6 de Agosto de 1968.
PREFÁCIO
O anarquismo suscita, de há algum tempo a esta parte, um renovado
interesse. Ensaios, monografias e antologias são-lhe consagrados, sem que
este esforço livresco seja, em todos os casos, verdadeiramente eficaz. Os
traços do anarquismo são difíceis de recortar. Os seus teóricos raramente
condensaram o seu pensamento em obras sistemáticas, e quando o tentaram
não realizaram mais que pequenas brochuras de propaganda e vulgarização.
Além disto, existem muitas espécies de anarquismo e numerosas variações
no pensamento de cada um dos grandes teóricos libertários1.
A recusa da autoridade e a aceitação da prioridade do julgamento
individual incitam particularmente os libertários a “fazer profissão de
antidogmatismo”. “Não nos façamos chefes de uma nova religião - escrevia
Proudhon a Marx - ainda que ela seja a religião da lógica, a religião da
razão”. Também os pontos de vista dos socialistas “libertários” são mais
diversos, mais fluidos, mais difíceis de apreender que os dos socialistas
“autoritários”, cujas igrejas rivais conseguem, no mínimo, impor cânones
aos seus zeladores.
Numa carta escrita ao diretor da Conciergeríe2, pouco antes de ser
enviado à guilhotina, O terrorista Emile Henry explicava: “Livrai-vos de
acreditar que a Anarquia é um dogma, uma doutrina inatacável,
indiscutível, venerada por seus adeptos, à semelhança do Corão pelos
muçulmanos. Não! A liberdade que nós reivindicamos desenvolve sem
cessar as nossas ideias, eleva-se para horizontes novos, com a amplidão dos
cérebros dos diferentes indivíduos, e lança-as fora dos quadros estreitos de
toda a regulamentação e de toda a codificação. Nós não somos crentes”. E o
condenado à morte proclamava a liberdade de rejeitar a “fé cega” dos
marxistas franceses de seu tempo, “que acreditam numa coisa porque
Guesdes disse que era necessário acreditar e que têm um catecismo cuja
discussão será sacrilégio”.
Com efeito, malgrado a variedade e a riqueza do pensamento
anarquista, malgrado as suas contradições, malgrado as suas disputas
doutrinais, centradas, não raramente, à volta de falsos problemas, estamos
perante um conjunto de concepções muito homogêneas. Sem dúvida que
existem, pelo menos à primeira vista, divergências importantes entre o
individualismo anarquista de Stirner (1806-1856) e o anarquismo societário.
Uma análise mais detida revela, porém, que os partidários da liberdade total
e os da organização social se encontram menos afastados uns dos outros do
que eles próprios imaginam e do que se pode crer à priori. O anarquista
societário é também um individualista. O anarquista individualista ê um
societário que não ousa dizer o seu nome.
A relativa unidade do anarquismo societário provém do fato de haver
sido elaborado, quase na mesma época, por dois mestres, um dos quais foi
discípulo e continuador do outro: o francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-
1865) e o exilado russo Mikhail Bakunin (1814-1876). Bakunin definiu o
anarquismo como “O proudhonismo amplamente desenvolvido e levado às
suas extremas consequências”. Este anarquismo chamou-se coletivista.
Mas os seus prosélitos recusaram a denominação eproclamaram-se
comunistas (“comunistas libertários”, entenda-se). Um deles, Piotr
Kropotkin (1842-1921), também exilado russo, infletiu a doutrina para um
utopismo e um otimismo onde o “cienticismo” mal dissimula as fraquezas.
Quanto ao italiano Errico Malatesta (1853-1922), orienta o anarquismo para
um ativismo temerário e, por vezes, pueril, enriquecendo-o de polêmicas
intransigentes e quase sempre lúcidas. Mais tarde, a experiência da
Revolução Russa produziu uma das obras mais notáveis do anarquismo, a
de Volin3 (1842-1945).

***

O terrorismo anarquista do fim do século passado apresenta, nos seus


aspectos dramáticos e anedóticos, um cheiro a sangue que cativou o gosto
do grande público. Todavia, se o terrorismo constituiu, naquela época, uma
escola de energia individual e de coragem, que merece respeito, se ele teve
o mérito de chamar a atenção da opinião pública para a injustiça social, ele
aparece, hoje, como um desvio episódico e esterilizante do anarquismo. O
terrorismo anarquista é uma recordação do passado. Ter os olhos fixos,
como sugeria a capa de uma publicação recente, na “marmita” de Ravachol,
conduzirá a ignorar, ou a subestimar, os traços fundamentais duma
concepção de reorganização social que, longe de ser destrutiva, como
pretendiam os seus adversários, surge, à análise, altamente construtiva. Ora
é sobre este anarquismo que pretendemos dirigir a atenção do leitor. Com
que direito e em nome de que critério? Simplesmente porque os assuntos de
que se trata não estão esclerosados, mas, ao contrário. vivos. Porque os
problemas colocados são mais do que nunca atuais. Se os ruidosos desafios
sociais e as cargas de explosivos pertencem a um passado morto, as
antecipações libertarias suscitam a reflexão. Apercebemo-nos de que estas
respondem, em grande parte, às necessidades do nosso tempo, que podem
contribuir para a edificação do nosso futuro.
Ao contrário dos que o antecederam, o presente livro não pretende ser
nem uma história nem uma bibliografia do anarquismo. Os eruditos que lhe
consagraram os seus trabalhos preocuparam-se, sobretudo, em não omitir
nenhum nome no seu fichário. Atraídos por semelhanças superficiais,
acreditaram haver descoberto múltiplos precursores anarquistas. Conferiram
quase a mesma importância aos gênios e às figuras de segundo plano.
Elaboraram as biografias com uma riqueza de pormenores por vezes
supérfluos, sem aprofundarem realmente as suas ideias. O resultado é que
os seus sábios compiladores proporcionam ao leitor uma impressão de
dispersão, de relativa incoerência, de tal modo que, no fim de contas, o
leitor fica sem saber o que é verdadeiramente o anarquismo.
O método que tentamos adotar é diferente. A bibliografia dos mestres
do pensamento libertário é aqui supostamente conhecida. Aliás, ela
esclarece, por vezes, muito menos o nosso assunto do que certos escritores
o creem. Com efeito, estes mestres não foram uniformemente anarquistas
ao longo da sua existência, e as suas obras completas compreendem
numerosas páginas que não têm relação nenhuma com o anarquismo.
Assim, Proudhon, na segunda parte de sua carreira, imprimiu uma
reviravolta conservadora ao seu pensamento. A sua prolixa c monumental
Justiça na Revolução e na Igreja (1858) é sobretudo consagrada ao
problema religioso, e a conclusão é bem pouco libertária, pois que, a
despeito de um anticlericalismo endiabrado, aceita todas as categorias do
catolicismo, embora escusando-se a interpretá-las; proclama que haveria
uma real vantagem, para a instrução e moralização do povo, em conservar a
simbólica cristã, e se mostra disposto, no momento de pousar a caneta, a
fazer uma oração. Por veneração à sua memória, mencionaremos apenas de
passagem a sua “saudação à guerra”, as suas diatribes contra a mulher ou os
seus acessos de racismo.
Quanto a Bakunin, o fenômeno é inverso. É a primeira parte de sua vida
agitada de conspirador revolucionário que não está de acordo com o
anarquismo. Aliás, somente a partir de 1864, após o fracasso da insurreição
polonesa, na qual participou, é que abraça as ideias libertárias. Seus escritos
anteriores a esta data dificilmente encontram lugar numa antologia
anarquista.
No caso de Kropotkin, a parte puramente científica da sua obra, que lhe
vale ser hoje celebrado na U.R.S.S. como um brilhante porta-estandarte da
geografia nacional, é estranha ao anarquismo, assim como, noutro plano, a
sua tomada de posição belicista durante a Primeira Grande Guerra.
Na evolução histórica e cronológica, preferimos adotar, também, outro
método: Não apresentamos as personalidades, uma após outra, ao leitor,
mas sim os principais temas construtivos do anarquismo. Destes temas
foram voluntariamente afastados apenas os que não são especificamente
anarquistas, tais como a crítica ao capitalismo, o ateísmo, o antimilitarismo,
o amor-livre etc. Antes de procedermos a um resumo em segunda mão,
portanto fastidioso, e sem provas a apoiá-lo, deixamos, sempre que
possível, falar as citações. Assim, os temas são acessíveis ao leitor na sua
forma original, com todo o calor e toda a verve com que surgiram da pena
dos mestres.
Em seguida, a doutrina é reconsiderada sob outro ângulo: Ela é revelada
nos grandes momentos em que esteve submetida à prova dos fatos: a
Revolução russa de 1917, a Itália dos anos após 1918, e a Revolução
espanhola de 1936. Um último capítulo apresenta a autogestão operária
(sem dúvida, a criação mais original do anarquismo) em contato com a
realidade contemporânea: na Iugoslávia, na Argélia - quem sabe, no futuro,
talvez também na U.R.S.S.
Finalmente, podemos ver, através deste livrinho,defrontarem-se
incessantemente, e por vezes conciliarem-se, as duas concepções de
socialismo: A autoritária e a libertária. A qual das duas pertence o futuro,
tal é, em última análise, o problema colocado à inteligência do leitor.
PRIMEIRA PARTE
AS IDEIAS-FORÇA DO
ANARQUISMO
QUESTÃO DE VOCABULÁRIO
A palavra anarquia é tão velha quanto o mundo. Deriva de duas palavras
do grego antigo: an (sem) e arkhê (autoridade, governo), e significa
ausência de autoridade ou de governo. Mas o preconceito, reinante durante
milênios, segundo o qual os homens não poderiam viver sem autoridade
nem governo, deu ao termo anarquia um sentido pejorativo: sinônimo de
desordem, de caos, de desorganização.
Proudhon, numa das suas anedotas (tais como “a propriedade é o
roubo”) envolveu a palavra anarquismo. Como se pretendesse chocar ao
máximo, empreendeu, com um burguês, este provocante diálogo:
- Você é republicano?
- Republicano, sim; mas esta palavra não define nada. Res publica é a
coisa pública... Os reis também são republicanos.
- Então, você é democrata?
- Não!
- Então você é monárquico?
- Não!
- Constitucionalista?
- Deus me livre!
- Aristocrata?
- Absolutamente, não!
- E partidário de um governo misto?
- Ainda menos!
- Que é você, então?
- Anarquista!
Por anarquia, que Proudhon, por vezes, costumava grafar an-arquia, a
fim de se furtar às brincadeiras dos seus adversários, este mestre, mais
construtor, apesar das aparências, que destrutor, entendia, como se verá, o
contrário de toda a desordem. A seu ver, o governo é que era o fautor da
desordem. Só uma sociedade sem governo poderia restabelecer a ordem
natural, restaurar a harmonia social. Para designar esta panaceia,
argumentando que a língua não lhe fornecia outro vocábulo, acedeu a
restituir à velha palavra anarquia o seu restrito sentido etimológico.
Paradoxalmente, porém, Proudhon persistia, no fulgor das suas
polêmicas (e o seu discípulo Mikhail Bakunin persistiria após ele), em
empregar também a palavra anarquia no sentido pejorativo de desordem -
como se as coisas não estivessem já suficientemente embaralhadas.
Melhor ainda, Proudhon e Bakunin manifestavam um estranho prazer
em se divertir com as duas acepções antinômicas da palavra: Anarquia era
para eles a desordem mais colossal e a desorganização mais completa da
sociedade, e, para lá desta gigantesca mutação revolucionária, a construção
de uma ordem nova, estável e racional, baseada sobre a liberdade e a
solidariedade.
Os discípulos imediatos dos dois pais do anarquismo hesitaram em
empregar um termo cuja elasticidade era deplorável, que exprimia, para o
não iniciado, apenas uma ideia negativa, prestando-se a equívocos, no
mínimo, irritantes. Em vez da palavra anarquismo, a pequena-burguesia
preferiu a de mutualismo, e a corrente socialista o termo coletivismo, em
breve substituído por comunismo. Mais tarde, em França, no fim do século
19, Sébastien Faure retoma uma palavra usada, desde 1858, por um certo
Joseph Déjacque e fez dela o título de um jornal: Le Libertaire. Hoje, os
dois termos, anarquista e libertário, tornaram-se sinônimos.
Contudo, a maior parte destes vocábulos apresentam um grave
inconveniente: omitem a expressão do aspecto fundamental das doutrinas
que pretendem qualificar. Anarquismo é, com efeito, e antes de tudo,
sinônimo de socialismo. O anarquista é, em primeiro lugar, um socialista
que visa abolir a exploração do homem pelo homem. o anarquismo é um
dos ramos do pensamento socialista, onde predominam, fundamentalmente,
o culto da liberdade e a vontade de abolir o Estado. Para o anarquista
Adolfo Fischer, um dos mártires de Chicago, “todo anarquista é socialista,
mas nem todo socialista é, necessariamente, anarquista”.
Certos anarquistas consideram-se os socialistas mais autênticos e
consequentes. As roupagens que eles envergaram e nas quais se deixaram
agasalhar, em certas situações compartilhadas com os terroristas, temos
feito passar, injustamente, porém, como uma espécie de “gente estranha” à
família socialista. Deste fato redundou uma série de mal-entendidos e de
querelas de palavras, não raramente destituídas de objetivo. Alguns
anarquistas contemporâneos têm contribuído para dissipar o equívoco,
adotando uma terminologia mais explícita: socialismo ou comunismo
libertário.
UMA REVOLTA VISCERAL
O anarquismo é o que se poderia chamar de uma revolta visceral.
Augustin Hamon, procedendo a uma sondagem da opinião nos meios
libertários, no fim do século passado, concluiu que o anarquista é, em
princípio e antes de mais, um revoltado. Recusa a sociedade na sua
totalidade com a sua chusma de policiais. Liberta-se, proclama Max Stirner,
de tudo quanto é sagrado. Realiza uma imensa paganização. Estes
“vagabundos da inteligência”, estes “tresloucados”, “em lugar de
considerarem como verdades intocáveis o que dá a milhares de homens a
consolação e o repouso, saltam por cima das barreiras do tradicionalismo e
abandonam-se, desenfreados, às fantasias da sua crítica impudica”.
Proudhon rejeita completamente a “gente oficial”, os filósofos, os
padres, os magistrados, os acadêmicos, os jornalistas, os parlamentares,
etc., para quem “o povo é sempre o monstro que se combate, amordaça e
agrilhoa; que se conduz com habilidade, como o rinoceronte e o elefante;
que se domina pela fome; que se sangra pela colonização e a guerra”. Elisée
Reclus explica por que a sociedade aparece aos seus guardiões tão fácil de
manter: “Depois que há ricos e pobres, poderosos e submetidos, senhores e
servos, imperadores que ordenam o combate e gladiadores que se matam, as
pessoas avisadas apenas têm que se colocar do lado dos ricos e dos senhores
e fazer-se cortesãos dos imperadores”.
O seu estado permanente de revolta conduz o anarquista a sentir
simpatia por todo o irregular, e a abraçar a causa do réprobo ou do foragido.
E muito injustamente, acreditava Bakunin, que Marx e Engels falavam com
profundo desprezo do Lumpenprolerariat (“proletariado esfarrapado”),
“pois é nele e só nele, e não na camada burguesa da massa operária, que
residem o espírito e a força da futura revolução social”.
Na boca de Vautrin, poderosa encarnação do protesto social, meio
rebelde e meio criminoso, fez Balzac explodir proposições que um
anarquista não desapoiaria.
O HORROR AO ESTADO
Para o anarquista, o Estado é, de todos os preconceitos que embrutecem
os homens, o mais nefasto. Stirner vocifera contra aqueles que “por toda a
eternidade” “são possuídos da ideia do Estado”.
Proudhon não fulmina menos esta “fantasmagoria do nosso espírito, que
o primeiro dever de uma razão livre é enviar aos museus e às bibliotecas” e,
desmontando o mecanismo: “O que tem sustentado esta predisposição
mental e tomado esta fascinação invencível, durante tanto tempo, é o fato
de o governo se apresentar sempre aos espíritos como o órgão natural da
Justiça, o protetor dos fracos”. Zombando dos “autoritários” inveterados,
que “se inclinam diante do poder, como sacristões diante dos santos
sacramentos”, maltratando “todos os partidos políticos” que voltam
“incessantemente os seus olhares para a autoridade, como para o seu único
polo”, Proudhon anseia pelo dia em que “a renúncia à autoridade tenha
substituído, no catecismo político, a fé na autoridade”.
Kropotkin, por sua vez, zomba dos burgueses que “consideram o povo
uma espécie de aglomerado de selvagens, comendo o nariz uns aos outros
se o governo não funcionasse mais”. Malatesta, antecipando-se à
psicanálise, revela o medo à liberdade, que existe no subconsciente dos
“autoritários”.
Quais são, para os anarquistas, os inconvenientes do Estado?
Escutemos Stirner: “Nós somos os dois, o Estado e eu, inimigos”.
“Todo o Estado é uma tirania, seja a tirania de um só ou de vários”. Todo o
Estado é, como se diria hoje, totalitário: “O Estado tem por único fim:
limitar, ligar, obrigar o indivíduo a sujeitar-se à coisa geral (...). O Estado
procura, pela censura, pela vigilância e pela polícia, impedir toda a
atividade livre e tem esta repressão por seu dever, pois ela lhe é imposta (...)
pelo instinto da conservação pessoal”. “O Estado não me permite extrair
dos meus pensamentos todo o seu valor, e de os comunicar aos homens (...),
como se eles fossem seus (...) Isto é, O Estado fecha-me a boca”.
Proudhon repete, no mesmo sentido de Stirner: “O governo do homem
pelo homem é a servidão? “Quem puser a mão sobre mim, para me
governar, é um usurpador e um tirano. Declaro-o meu inimigo”. E,
lançando-se numa tirada digna de Molière ou de Beaumarchais: “Ser
governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido,
legislado, regulamentado, parqueado, doutrinado, predicado, controlado,
calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o
título, nem a ciência, nem a virtude (... ). Ser governado é Ser, a cada
operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado,
recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado,
licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado,
reenviado, corrigido. E, sob o pretexto de utilidade pública e em nome do
interesse. geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado,
explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado;
depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido,
multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espancado,
desarmado, garrotado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado,
condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau,
jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis a sua justiça,
eis a sua moral! (...). Oh, personalidade humana! Como foi possível
deixares-te afundar, durante sessenta séculos, nesta abjeção?”.
Para Bakunin, o Estado é uma “abstração devoradora da vida popular”,
um “imenso cemitério onde, à sombra e sob o pretexto desta abstração, vêm
generosamente, com beatitude, sacrificar-se, envilecer-se todas as
aspirações reais, todas as forças vivas de um país”. - “Longe de ser criador
de energia, o governo (segundo Malatesta) desperdiça, paralisa e destrói,
por seus métodos de ação, forças enormes”.
À medida que se ampliam as atribuições do Estado e da sua burocracia,
o perigo se agrava. Numa visão profética, Proudhon anuncia o maior flagelo
do século 20: “O funcionalismo (...) conduz ao comunismo de Estado, à
absorção de toda a vida local e individual no mecanismo administrativo, à
destruição de todo o pensamento livre. Toda a gente procura se abrigar sob
a asa do poder e viver sobre o comum”. E tempo de se lhe pôr fim:
“Fortificando-se a centralização cada vez mais (...), as coisas chegaram a
um ponto em que a sociedade e o governo já não podem viver em
conjunto”. “Não há nada, absolutamente nada, no Estado, desde o alto da
hierarquia até a sua base, que não seja abuso a reformar, parasitismo a
suprimir, instrumento de tirania a destruir. E vocês falam-nos de conservar o
Estado, de aumentar as suas atribuições, de tornar mais forte o poder do
Estado! Vocês não são revolucionários!”
Bakunin não é menos lúcido na sua visão angustiada de um Estado cada
vez mais totalitário. A seu ver, as forças da contrarrevolução mundial,
“apoiadas em enormes orçamentos, em exércitos permanentes, numa
burocracia formidável”, dotadas “de todos os terríveis meios que lhes dá a
centralização moderna”, são “uma realidade monstruosa, ameaçadora,
arrasadora”.
NA DEMOCRACIA BURGUESA
O anarquista denuncia mais asperamente do que o faz o socialista
“autoritário” o logro da democracia burguesa.
O Estado burguês democrático, batizado de “nação”, não parece menos
terrível a Stirner que o antigo Estado absolutista: “O monarca (...) era
bastante miserável, comparado, no presente, à “nação soberana”. No
liberalismo, tivemos a continuação do antigo desprezo do Eu”.
“Certamente, muitos privilégios foram extirpados com o tempo, mas
exclusivamente em proveito do Estado (...) e sem valorizar o indivíduo”.
Na opinião de Proudhon, “a democracia é simplesmente um arbítrio
constitucional”. Por uma “arapuca” dos nossos pais, é que o povo foi
proclamado soberano. Na realidade, ele é um rei sem domínio, o único dos
reis que da grandeza e da generosidade reais apenas conserva o título. Reina
mas não governa. Delegando a sua soberania pelo exercício periódico do
sufrágio universal, renova, todos os três ou cinco anos, a sua abdicação. A
dinastia foi afastada do trono, mas a realeza foi mantida organizada. A
cédula de voto “nas mãos de um povo, cuja instrução foi voluntariamente
descuidada, é uma sábia intrujice, da qual só beneficia a coligação de
barões da propriedade, do comércio e da indústria”.
A teoria da soberania do povo encerra a sua própria negação. Se o povo
fosse soberano, não haveria mais governo nem governados. O soberano
seria reduzido a zero. O Estado não teria mais razão de existir, identificar-
se-ia com a sociedade, desapareceria na organização industrial.
Para Bakunin, “o sistema representativo, longe de ser garantia para o
povo, cria e garante, ao contrário, a existência permanente de uma
aristocracia governamental contra o povo”.
O sufrágio universal é um conto do vigário, um logro, uma válvula de
segurança, uma máscara atrás da qual “se esconde o poder realmente
despótico do Estado, alicerçado sobre a banca, a polícia e o exército”, “um
meio excelente para oprimir e arruinar um povo, em nome e sob o pretexto
da chamada vontade popular”.
O anarquista não crê na emancipação através do voto. Proudhon é, pelo
menos em teoria, abstencionista. E pensa que “a revolução social será
seriamente comprometida se ela surgir por vias políticas”. Votar será um
contrassenso, um ato de fraqueza, uma cumplicidade com a corrupção do
regime: “Para fazer guerra a todos os partidos reunidos, não é no
parlamento, legalmente, que devemos procurar o nosso campo de batalha,
mas fora dele”. “O sufrágio universal é a contrarrevolução”. Para se
constituir em classe, o proletariado deve, de princípio, “separar-se” da
democracia burguesa.
Porém, a esta posição de princípio, o militante Proudhon fez numerosas
distorções. Em junho de 1848, se deixa eleger deputado e prende-se, por
momentos, no visco parlamentar. Duas vezes seguidas, nas eleições parciais
de setembro de 1848 e na eleição presidencial de 10 de dezembro do
mesmo ano, apoiou a candidatura de Raspail, um dos líderes da extrema-
esquerda, então na prisão. Proudhon chegou mesmo a deixar-se entusiasmar
pela tática do “mal menor”, preferindo o general Cavaignac, carrasco do
proletariado parisiense, ao aprendiz de ditador, Luís Napoleão. Mais tarde,
nas eleições de 1863 e 1864, preconiza o “voto em branco”, a título de
manifestação contra a ditadura imperial, e não por oposição ao sufrágio
universal, que apelidava agora de “princípio democrático por excelência”.
Bakunin e seus partidários na Primeira Internacional protestam contra o
epíteto de “abstencionistas”, que os marxistas lhes assacam. O boicote das
urnas não constitui para eles um ponto de fé, mas uma simples questão de
tática. Se os anarquistas afirmam a prioridade da luta de classes sobre o
plano econômico, não aceitam, todavia, que os acusem de abstração da
“política”. Não rejeitam a “política”, mas apenas a política burguesa. Não
condenam a revolução política, se ela preceder a revolução social. Não se
afastam senão dos movimentos políticos, que não têm por finalidade
imediata e direta a completa emancipação dos trabalhadores.
O que temem e denunciam os anarquistas são as alianças eleitorais
equívocas com partidos do radicalismo burguês, do tipo “l848”, ou do tipo
“frente popular”, como se diria hoje. Compreendem igualmente os
anarquistas, que os operários eleitos deputados, transportados para
condições de existência burguesa, cessam de ser trabalhadores para se
tornarem homens-de-Estado, e acabam mais burgueses que os próprios
burgueses.
A atitude anarquista a respeito do sufrágio universal está longe de ser
coerente e consequente. Uns consideram a cédula de voto como un pis-aller.
É, também, entre estes irredutíveis, para os quais o voto é prejudicial em
todas as situações, que são considerados os aspetos de pureza doutrinal.
Assim, Malatesta, por ocasião das eleições do cartel das Esquerdas, em
maio de 1924, em França, recusou-se a toda e qualquer concessão:
Admitiria que, em certas circunstâncias, o resultado das eleições poderia ter
consequências “boas” ou “más”, e que este resultado dependeria por vezes
do voto dos anarquistas, sobretudo quando as forças dos agrupamentos
políticos fossem quase iguais. “Mas, que importa! Mesmo se alguns
pequenos progressos fossem a consequência direta de uma vitória eleitoral,
os anarquistas não deveriam concorrer às urnas”. Em conclusão: “Os
anarquistas têm-se mantido puros e continuam sendo o partido
revolucionário por excelência, o partido do futuro, porque têm sabido
resistir à sereia e1eitoral”.
A incoerência da doutrina anarquista, nesta matéria, seria ilustrada em
Espanha. Em 1930, os anarquistas enfileiravam ao lado dos partidos da
democracia burguesa para derrubarem a ditadura de Primo de Rivera. No
ano seguinte, apesar do abstencionismo oficial, muitos deles acorriam às
urnas, quando das eleições municipais que precipitaram a queda da
monarquia. Nas eleições gerais de 19 de novembro de 1933, preconizaram
energicamente a abstenção eleitoral, que contribuiria para a entrega do
poder, por mais dois anos, a uma direita violentamente anti-operária. Antes,
teriam o cuidado de anunciar que, se a sua atitude abstencionista conduzisse
à vitória da Reação, os anarquistas responderiam com o desencadear da
revolução social. Revolução que, aliás, tentaram pouco depois, mas em vão
e à custa de numerosas perdas (mortos, feridos e presos). Quando, em
princípios de 1936, os partidos da Esquerda se associaram na Frente
Popular, a Central anarcossindicalista sentiu-se em dificuldades quanto à
atitude a tomar. Pronunciaram-se, finalmente, sem alarde, pela abstenção,
mas fizeram uma campanha bastante discreta para não serem ouvidos pelas
massas populares, já que, em qualquer dos casos, a participação destas no
escrutínio era antecipadamente assegurada. Comparecendo às umas, o
corpo eleitoral faria triunfar a Frente Popular: 263 deputados da esquerda
contra 181 da direita.
Deve-se notar que os anarquistas, malgrado os seus ataques endiabrados
contra a democracia burguesa, admitem o seu caráter relativamente
progressivo. O próprio Stirner, o mais intransigente, lhe concede, de vez em
quando, a categoria de “progresso”. “Sem dúvida (admite Proudhon), logo
que um povo passa do estado monárquico ao democrático, há progresso”; e
Bakunin: “Que não se pense que queremos fazer (...) a crítica do governo
democrático em proveito da monarquia (...). A mais imperfeita república
vale mil vezes mais do que a monarquia mais esclarecida (...). O regime
democrático eleva, pouco a pouco, as massas à vida púb1ica”. Assim se
encontra desmentida a opinião emitida por Lênin, segundo a qual “a1guns
anarquistas” professavam que “a forma de opressão é indiferente ao
proletariado”. E, do mesmo modo, se afasta a suspeita, expressa por Henry
Arvon no seu opúsculo sobre Anarquismo, de que o antidemocratismo
anarquista possa confundir-se com o antidemocratismo
contrarrevolucionário.
CRÍTICA DO SOCIALISMO “AUTORITÁRIO”
Os anarquistas são unânimes em submeter O socialismo “autoritário” a
uma crítica severa. Quando as suas primeiras acusações foram formuladas,
o comunismo não estava ainda inteiramente fundamentado e os comunistas,
a quem se dirigiam, ou o eram primitiva e grosseiramente, pois não se havia
ainda fecundado o humanismo marxista, ou, como no caso de Marx e
Engels, não eram tão unilateralmente apaixonados pela autoridade e pelo
estatismo, como o pretendiam os anarquistas. Nos nossos dias, porém, as
tendências “autoritárias” que, no século 19, não se manifestavam ainda no
pensamento socialista, senão de modo embrionário e imperfeito,
proliferaram. No contexto destas excrescências, a crítica anarquista parece,
hoje, menos tendenciosa e injusta; adquire mesmo, assaz frequentemente,
um cunho profético.
Stirner, o anarquista-individualista, aceita numerosas premissas do
comunismo, mas com este corolário: Se, para os vencidos da sociedade
atual, a sua profissão de fé comunista constitui um primeiro passo na via da
sua total emancipação, eles não estarão completamente “desalienados”,
embora não possam verdadeiramente valorizar a sua individualidade senão
ultrapassando o comunismo. Para Stirner, o trabalhador, em regime
comunista, continua submetido à supremacia de uma sociedade de
trabalhadores. O trabalho que a sociedade lhe impõe representa apenas um
castigo ou um tributo. Não escreveu o comunista Weitling: “que as
faculdades só podem ser desenvolvidas enquanto não prejudiquem a
harmonia social?” A isto respondeu Stirner: “Que eu seja leal sob um tirano
ou na “sociedade” de Weitling, trata-se, num caso como no outro, da mesma
ausência de direito”.
O comunista pouco se interessa pelo homem, para além do trabalhador,
ou pelo lazer do indivíduo. Negligencia o essencial: permite-lhe fruir de si,
como indivíduo, apenas depois de haver cumprido a sua tarefa como
produtor. Stirner entrevê, sobretudo, o perigo de uma sociedade comunista,
em que a apropriação coletiva dos meios de produção conferiria ao Estado
poderes muito mais exorbitantes do que os da sociedade atual: “O
comunismo, pela abolição de toda a propriedade individual, lança-me ainda
mais sob a dependência dos outros, da generalidade ou da totalidade, e,
malgrado os seus ataques ao Estado, a sua intenção é também a de
estabelecer o seu Estado, (...) uma situação que paralisa a minha atividade
livre e se traduz numa autoridade soberana sobre mim. Contra a opressão
que eu sofro da parte dos proprietários individuais, o comunismo se insurge
com toda a razão; porém, mais terrível é o poder que ele concentra nas
mãos da totalidade”.
Proudhon pragueja outro tanto contra o “sistema comunista,
governamental, ditatorial, autoritário, doutrinário”, que “parte do princípio
de que o indivíduo é essencialmente subordinado à coletividade”. A
concepção que os comunistas têm do poder do Estado é absolutamente a
mesma que tinham os seus antigos senhores. Ela é, até, muito menos liberal.
“Ta1 como um exército que raptasse canhões ao seu inimigo, o comunismo
não fez outra coisa senão voltar contra o exército dos proprietários a sua
própria artilharia”. “O escravo mudou de amo”. Proudhon descreve nos
seguintes termos o sistema político que ele atribui aos comunistas:
“Uma ditadura compacta, fundada na aparência sobre a ditadura das
massas, mas onde as massas só têm o poder que lhes é necessário para
assegurar a servidão universal, depois das fórmulas seguintes, copiadas do
antigo absolutismo:
Unificação do poder;
Centralização absorvente;
Destruição sistemática de todo o pensamento individual, corporativo e
local, reputado secessionista;
Polícia inquisitorial;”
Os socialistas “autoritários” apelam para uma “revolução de cima”.
“Sustentam que depois da revolução é necessário que o Estado continue.
Mantêm e aumentam, ainda, o Estado, o poder, a autoridade e o governo. O
que eles fazem é mudar os nomes (...) Como se bastasse mudar as palavras
para transformar as coisas!” E. Proudhon lança esta boutade: “O governo é,
por natureza, contrarrevolucionário (...) Ponha-se um São Vicente de Paula
no poder e teremos um Guizot ou um Talleyrand”.
Bakunin desenvolve a crítica do comunismo “autoritário”: “Detesto o
comunismo porque ele é a negação da liberdade e porque não posso
conceber nada de humano sem liberdade. Não sou comunista porque o
comunismo concentra e faz absorver todas as potencialidades da sociedade
pelo Estado, porque conduz necessariamente à centralização da propriedade
nas mãos do Estado, enquanto eu quero a abolição do Estado - a extirpação
radical deste princípio da autoridade e da tutela do Estado, que, sob o
pretexto de civilizar e moralizar os homens, os tem, até hoje, escravizado,
oprimido, explorado e depravado.
Quero a organização da sociedade e da propriedade coletiva ou social de
baixo para cima, pela via da livre associação, e não de cima para baixo, por
meio de qualquer autoridade que seja (...) Este, o sentido pelo qual eu sou
coletivista e não comunista.”
Pouco depois deste discurso (1868), Bakunin adere à Primeira
Internacional, onde, com seus partidários, atacaria, não apenas Marx e
Engels, mas outros que, muito mais que os dois fundadores do “socialismo
científico”, oferecem o flanco às suas acusações: de um lado, os sociais
democratas alemães, que têm o fanatismo do Estado e se propõem instaurar,
através da cédula de voto e de alianças eleitorais, um equívoco “Estado
popular” (Volkstadt); por outro lado, os blanquistas, que preconizam uma
ditadura revolucionária minoritária, de caráter transitório. Bakunin combate
ardentemente estas duas concepções divergentes, embora ambas
“autoritárias”, entre as quais Marx e Engels, por motivos de tática,
oscilavam e que resolveram, impulsionados pela crítica anarquista, mais ou
menos abandonar.
Foi, porém, a forma sectária e pessoal com que Marx, sobretudo, a
partir de 1870, pretendeu reger a Internacional, que o opôs a Bakunin. Nesta
querela, cuja motivação era o controle da organização, ou seja, do
movimento operário internacional, não há dúvida que ambos os
protagonistas mostraram alguns erros. Bakunin não se comportou sem
merecer censuras, e o processo que intenta contra Marx carece de equidade
e de boa-fé. Contudo, e é isto que importa para o leitor de hoje, Bakunin
teve o mérito de lançar, desde 1870, um grito de alarme contra certas
concepções de organização do movimento operário e do poder “proletário”,
que, muito mais tarde, desvirtuaram a Revolução Russa. No marxismo, este
autor crê aperceber-se, umas vezes injustamente, outras com razão, do
embrião daquilo que viria a ser o leninismo e, depois, seu câncer, o
estalinismo.
Atribuindo maliciosamente a Marx e a Engels intenções que, se
realmente nutriam, jamais as exprimiram abertamente, Bakunin escreve:
“Mas, diremos, nem todos os operários (...) podem tomar-se sábios. E não
basta que no seio desta organização (a Internacional) se encontre um grupo
de homens que possua, tão completamente quanto é possível, a ciência, a
filosofia e a política do socialismo, para que a maioria (...), obedecendo
com fé à sua direção (...), possa estar segura de não se afastar do caminho
que deve conduzi-la à emancipação definitiva do proletariado? (...) Este
raciocínio entendemo-lo não abertamente emitido - nem sempre se é
suficientemente sincero e corajoso - mas desenvolvido sub-repticiamente,
com toda a sorte de reticências, mais ou menos hábeis”. E Bakunin
continua: “Tendo adotado por base o princípio de que o pensamento tem
prioridade sobre a vida e que a teoria abstrata tem prioridade sobre a prática
social, e que, por consequência, a ciência sociológica deve constituir o
ponto-de-partida das sublevações sociais e da reconstrução social, inferiram
necessariamente a conclusão de que, estando o pensamento, a teoria e a
ciência no domínio de um número restrito de pessoas, esta minoria deveria
dirigir a vida Social”. O pretenso “Estado popular” não seria mais do que
um governo despótico das massas populares por uma nova e muito restrita
aristocracia de verdadeiros ou pretensos sábios. Bakunin revela contudo
viva admiração pela capacidade intelectual de Marx, de quem traduziu para
o russo a obra principal, “O Capital”, e adere plenamente à concepção
materialista da história. Aprecia melhor do que ninguém a contribuição
teórica de Marx para a emancipação do proletariado. O que Bakunin não
admite é que a superioridade intelectual possa conferir o direito de direção
do movimento operário: “Pretender que um grupo de indivíduos, mesmo os
mais inteligentes e melhor intencionados, sejam capazes de encamar o
pensamento, a alma, a vontade dirigente e unificadora do movimento
revolucionário e da organização econômica do proletariado de todos os
países, representa uma tal heresia contra o bom-senso e contra a experiência
histórica, que se pode perguntar, com espanto, como é que um homem tão
inteligente como o Sr. Marx a concebeu (...). O estabelecimento de uma
ditadura universal (...), que necessitaria de um engenheiro-chefe da
revolução mundial, regulando e dirigindo o movimento insurrecional das
massas de todos os países como se dirige uma máquina (...), o
estabelecimento de tal ditadura seria suficiente para matar a revolução, para
paralisar e falsear todos os movimentos populares (...). E que pensar de um
congresso internacional que, no sedizente interesse desta revolução, impõe
ao proletariado de todo o mundo civilizado um governo investido de
poderes ditatoriais?”
A experiência da Terceira internacional mostrou que, embora Bakunin
forçasse o pensamento de Marx, atribuindo-lhe uma concepção assaz
universalmente “autoritária”, o perigo contra o qual alertava veio, muito
mais tarde, a se concretizar.
No que respeita ao estatismo em regime comunista, o exilado russo não
foi menos clarividente. Os socialistas “doutrinários” aspiram, segundo ele, a
“colocar o povo num novo arnês”. Admitem, como os libertários, que todo
Estado é um jugo, mas sustentam que só a ditadura - a deles, bem entendido
- pode criar a liberdade do povo; a isto nós respondemos que nenhuma
ditadura pode ter outro objetivo que não seja o de perdurar o maior tempo
possível. Em lugar de deixarem o proletariado desunir o Estado, querem
“transformá-lo (...), nas mãos dos seus benfeitores, guardiães e professores,
os chefes do Partido Comunista”. Apercebendo-se, porém, de que tal
governo será, “sob qualquer das suas formas, uma verdadeira ditadura”, eles
“consolam-se com a ideia de que esta ditadura será temporária e de curta
duração”. Esta ditadura, porém (responde Bakunin aos socialistas),
conduzirá inevitavelmente à “reconstrução do Estado com todos os seus
privilégios, desigualdades e opressões”, à. formação de uma aristocracia
governamental, “que recomeça a explorar, sob o pretexto do bem comum ou
para salvar o Estado”. E este Estado será “tanto mais absoluto, quanto mais
o seu despotismo se esconda cuidadosamente sob as aparências de um
respeito obsequioso (...) pela vontade do povo”.
Bakunin, sempre com acurada lucidez, acredita na Revolução russa: “Se
os operários do Ocidente demorarem muito, serão os camponeses russos
que lhes darão o exemplo. A Revolução, na Rússia, será essencialmente
“anárquica”. Mas cuidado! Os revolucionários poderiam apenas continuar o
Estado de Pedro o Grande, “baseado na (...) supressão de toda a
manifestação da vida popular”, pois “podemos mudar o título do nosso
Estado, a sua forma (...), sem que ele deixe de ser, na essência, o mesmo”.
Ou é preciso destruir o Estado, ou “reconciliarmo-nos com a mentira mais
vil e censurável, que jamais se engendrou no nosso século (...): A
burocracia vermelha”.
E Bakunin continua com esta piada: “Coloquem o mais radical dos
revolucionários no trono de todos os russos, ou coloquem-lhe um poder
ditatorial (...), e antes de um ano ele tomar-se-á pior do que o próprio
Czar!”4
Uma vez efetuada a Revolução na Rússia, Volin, que seria
simultaneamente autor, testemunha e historiador dela, reconhecerá que a
lição dos fatos confirmaria a lição dos mestres. Decididamente, escreve,
“poder socialista e revolução social são elementos contraditórios”. E
impossíveis de reconciliar: “Uma revolução que se inspire no socialismo de
Estado e lhe confie a sua sorte não será simplesmente “provisória”, ou
“transitória”, mas perdida: ela embrenha-se por um falso caminho, numa
decadência cada vez mais acentuada (...). Apoiado na Revolução, o poder é
obrigado a criar o seu aparelho burocrático e coercitivo, indispensável a
toda a autoridade que queira manter-se de pé, comandar, ordenar, numa
palavra, governar (...). Forma também uma espécie de nova nobreza (...):
Dirigentes, funcionários, militares, agentes da Polícia, membros do partido
no poder (...). Todo o poder procura tomar entre as suas mãos as rédeas da
vida social, predispondo as massas à passividade e esvaziando-as do
espírito de iniciativa pela mera existência do poder (...). O poder
“comunista” é um verdadeiro porrete (...). Inchado de sua “autoridade”, (...)
tem medo de qualquer ato espontâneo. Toda a iniciativa autônoma se lhe
afigura suspeita, ameaçadora, pois ele quer manter o monopólio do
governo. Qualquer iniciativa lhe parece uma ingerência no seu domínio e
nas suas prerrogativas. São-lhe insuportáveis? Todavia, porquê este
provisório e este transitório? O anarquismo contesta categoricamente a sua
alegada necessidade. Nas vésperas da Revolução Espanhola de 1936, Diego
Abad de Santillan colocou o socialismo “autoritário” no dilema seguinte:
“Ou a revolução dá riqueza social aos produtores, ou ela não lhe dá. No
primeiro caso, os produtores organizam-se para produzir e distribuir
coletivamente, e o Estado nada mais tem a fazer. No segundo caso, a
revolução é apenas um logro, e o Estado subsiste? Dilema que muitos
julgarão simplista, mas que terá maior significado se se conjugar com a
seguinte direção de intenções: os anarquistas não são tão ingênuos para
sonhar com o desaparecimento das sobrevivências estatais de um dia para o
outro, mas têm vontade de as fazer desaparecer o mais depressa possível,
enquanto que os “autoritários” se comprazem na perspectiva da perenidade
de um Estado transitório, arbitrariamente batizado de “proletário”.
AS FONTES DE ENERGIA: O INDIVÍDUO
Às hierarquias e às coações do socialismo “autoritário”, o anarquismo
opõe duas fontes de energia revolucionária: o indivíduo e a espontaneidade
das massas. O anarquismo é, segundo o caso, mais individualista que
societário, ou mais societário que individualista. Como, porém, observou
Augustin Hamon, na sondagem de opinião já mencionada, não se pode
conceber um libertário que não seja individualista.
Stirner reabilitou o individuo numa época em que, no plano filosófico,
dominava o anti-individualismo hegeliano, e em que, no plano da critica
social, os danos causados pelo egoísmo burguês conduziam a maior parte
dos reformadores a realçar o seu contrário: não é verdade que a palavra
socialismo nasceu como antônimo de individualismo?
Stirner exalta o valor intrínseco do individuo, do “único”, ou seja, não
semelhante a qualquer outro, criado pela Natureza em um só exemplar
(noção que confirma as mais recentes descobertas da biologia). Durante
muito tempo, este filósofo permaneceu, nos círculos do pensamento
anarquista, como um isolado, um excêntrico, que seguia sozinho uma
pequena seita de individualistas impenitentes. Hoje, porém, “a audácia e a
grandeza das suas proposições aparecem em pleno esplendor. Com efeito, o
mundo contemporâneo parece empenhar-se na tarefa de salvar o indivíduo
de todas as alienações que O esmagam, tanto as da escravidão industrial,
como as do conformismo totalitário. Simone Weil, em célebre artigo escrito
em 1933, queixa-se de não encontrar na literatura marxista resposta às
questões postas pelas necessidades de defesa do indivíduo contra as novas
formas de opressão que sucedem à clássica opressão capitalista. Era esta
lacuna, da máxima importância, que Stirner, desde os primórdios do século
19, se esforçou por preencher.
Escritor de um estilo vivo, percuciente, exprime-se num crepitar de
aforismos: “Não procureis na renúncia a vós mesmos uma liberdade que
vos priva precisamente de vós mesmos, mas procurai-vos a vós mesmos
(...). Que cada um de vós seja um Eu todo-poderoso”. “Não há outra
liberdade senão aquela que o indivíduo conquista para si mesmo. A
liberdade concedida, outorgada, não é uma liberdade, mas uma “mercadoria
roubada”. “Não há outro julgamento, senão o meu, para decidir se tenho
razão ou não”. “As únicas coisas que não tenho o direito de fazer são as que
não faço com o espírito livre”. “Tens o direito de ser o que tiveres a força de
ser”. “O que realizas é como e enquanto individuo único. O Estado, a
Sociedade, a Humanidade não podem domar este Diabo”.
Para se libertar, o individuo deve começar por exercer a critica sobre a
formação que seus país e educadores lhe deram. E um vasto trabalho de
profanação, que deve iniciar-se pela moral burguesa: “Como a burguesia,
esta moral tem o seu terreno ainda muito ligado ao céu religioso, pelo que
lhe impõe as suas leis, sem nenhuma crítica (...), em lugar de criar doutrinas
próprias e independentes”.
Stirner chamou a atenção particularmente para a moral sexual. Os
apóstolos do laicismo subscrevem inteiramente o que o cristianismo
“engendrou contra a paixão”. Recusam compreensão às “tentações da
carne” e combatem a “imoralidade desenfreada”. O preconceito moral que o
cristianismo inculcou grassa, nomeadamente no seio das massas populares:
“O povo impele furiosamente a Polícia contra tudo quanto lhe parece
imoral, ou simplesmente inconveniente, de modo que esta fúria popular em
favor da moral protege mais a instituição da Polícia do que jamais o poderia
fazer o próprio governo”.
Desafiando a psicanálise contemporânea, Stirner observa e denuncia a
interiorização. Desde a infância que nos ingurgitam preconceitos morais. A
moral torna-se “uma força interior, à qual não posso subtrair-me”. E Stirner,
iconoclasta: “Deus, a consciência, os deveres, as leis, tudo isto são mentiras
com que nos encheram o cérebro e o coração”. “Os verdadeiros sedutores e
corruptores da juventude são os padres e os pais que atolam os jovens
espíritos e estupidificam as cabeças imberbes”.
“Se há uma obra diabólica, é esta pretensa voz divina, que se introduz
na consciência”.
Stirner descobre também, na sua reabilitação do indivíduo, o
subconsciente freudiano. O Eu não se deixa apreender. Contra ele, “o
império do pensamento, da cogitação e do espírito se desfaz em migalhas”.
E inexprimível, inconcebível e imponderável. Através dos seus brilhantes
aforismos, tem-se de considerar Stirner como um dos pais da filosofia
existencialista: “Parto de uma hipótese, tomando-Me por hipótese (...).
Sirvo-me unicamente para gozar e me saciar (...). Não existo senão
enquanto Me alimento (...). 0 fato de Me absorver significa que Eu existo”.
Sem dúvida que a verve adquirida pela pena de Stirner o extravia. de
vez em quando, nos seus paradoxos. Solta aforismos associais, chegando a
concluir a impossibilidade da vida em sociedade: “Nós não aspiramos à
vida em comum, mas à vida à parte”. “Morte ao povo! Salve Eu!” “A
felicidade do povo é a minha desgraça”. “Se é justo para Mim, é justo. E
possível (...) que o mesmo não seja justo para os outros; o problema é deles
e não Meu: que se defendam!”
Estas atoardas ocasionais não traduzem porém o pensamento de Stirner.
A despeito das suas fanfarronadas de eremita, aspirava à vida comunitária.
Como a maioria dos isolados, dos introvertidos, era possuído por uma
lancinante nostalgia. Aos que lhe perguntavam como o seu exclusivismo lhe
permitiria viver em sociedade, respondia que só O homem que
compreendeu a sua “condição de único” pode ter relações com os seus
semelhantes. O indivíduo tem necessidade de amigos, de assistência; se, por
exemplo, escreve livros, tem necessidade de leitores. Ele une-se com o seu
próximo para reforçar suas potencialidades e realizar mais facilmente, pela
força comum, o que não poderia cada um isoladamente. Mas há uma
condição: as relações entre os indivíduos devem ser voluntárias e livres,
constantemente desligáveis. Stirner distingue a sociedade preestabelecida,
que é coercitiva, da associação, que é um ato livre: “A sociedade serve-se
de ti, e tu serves-te da associação”. Certamente que a associação implica
num sacrifício, numa limitação da liberdade. Este sacrifício, porém, não é
consentido à coisa pública: “É o Meu interesse pessoal que Me conduz”.
O autor do Único e sua Propriedade defronta, quando da abordagem dos
problemas do Partido Comunista, algumas das preocupações
contemporâneas. Entrega-se a uma crítica severa do Partido. “É preciso
seguir sempre e por todo o lado o Partido; é preciso apoiar e sustentar os
seus princípios essenciais”. “Os membros se vergam aos menores desejos
do Partido”. O programa do Partido deve “Ser, para eles, o certo, o
indubitável (...). Deve-se pertencer de corpo e alma ao Partido (...). Quem
passar de um Partido para outro (...) é renegado”. Um partido monolítico
cessa, para Stirner, de ser uma associação; será simplesmente um cadáver.
Rejeita Stirner um tal partido, mas não a esperança de entrar numa
associação política: “Encontrarei bastante gente que se associará comigo
sem prestar juramento à minha bandeira”. Ele só poderia aderir ao Partido
(comunista) se ele não tivesse “nada de obrigatório”. A condição para a sua
eventual adesão seria que ele possa “não se deixar prender pelo Partido”.
“Um partido é sempre, para Stirner, uma parte; ele é da parte; ele toma
parte”. “Ele associa-se livremente e retoma a sua liberdade”.
Falta uma explicação apenas no raciocínio de Stirner, ainda que esteja
subjacente nos seus escritos: a sua concepção da unicidade individual não é
somente “egoísta”, benéfica ao seu “Eu”, mas é proveitosa também para a
coletividade. Uma associação humana só será fecunda se não esmagar o
indivíduo, e se, pelo contrário, desenvolver a sua iniciativa e a sua força
criadora. Não é porventura a força de um partido a adição de todas as forças
individuais que o compõem? A lacuna em questão provém do fato de a
síntese Stirneriana do indivíduo e da sociedade permanecer incompleta,
defeituosa. O associal e o social defrontam-se no pensamento deste
revoltado, sem jamais se fundirem. Os anarquistas societários (ou
coletivistas) opuseram-se, com toda a razão, a Stirner, E o fizeram com a
acrimônia inerente ao erro de Stirner, que por má informação considerou
Proudhon entre os comunistas “autoritários”, que em nome do “dever
social” condenam a aspiração individualista. Ora, se é verdade que
Proudhon persistiu na “adoração” Stirneriana do individuo5, não o é menos
que a sua obra inteira traduz a procura de uma síntese, ou, melhor, de um
“equilíbrio” entre o culto do indivíduo e o interesse social, entre a força
individual e a força coletiva. “Assim como o individualismo é o fato
primordial da humanidade, a associação é o seu termo complementar”.
“Alguns, considerando que o homem só tem valor como ser social, (...)
tendem a absorver o individuo na coletividade. Tal é (...) o sistema
comunista, a decadência da personalidade, em nome da sociedade (...). E a
tirania, uma tirania mística e anônima, o contrário da associação (...). A
personalidade humana destituída das suas prerrogativas e a sociedade
desprovida do seu princípio vital”.
Em sentido contrário, Proudhon deitou as culpas à utopia individualista,
que aglomera individualidades justapostas, sem nada de orgânico e sem
força coletiva, e se revela incapaz de resolver o problema da concordância
de interesses. Em resumo: nem comunismo nem liberdade ilimitada. “Nós
temos muitos interesses solidários e muitas coisas comuns”. Bakunin, por
sua vez, é ao mesmo tempo individualista e coletivista. Não deixa de repetir
que é, partindo de um individuo livre, que se poderá fundar uma sociedade
livre. Cada vez que enuncia os direitos que devem ser garantidos às
coletividades, tais como o direito de autodeterminação e de secessão, toma
o cuidado de colocar o individuo à cabeça dos seus beneficiários. O
individuo só tem deveres para com a sociedade na medida em que consentiu
livremente fazer parte dela. Cada um é livre de se associar ou de não se
associar, de ir, se o desejar, “viver no deserto ou na floresta, entre as feras”.
“A liberdade é o direito absoluto de cada ser humano de não procurar outra
sanção para os seus atos que a da sua própria consciência, de determinar os
seus atos exclusivamente pela sua vontade própria, e de ser, por
consequência, apenas responsável perante os seus próprios princípios”. A
sociedade que o indivíduo escolheu livremente para dela fazer parte figura,
na referida enumeração de responsabilidades, em segundo plano. E a
sociedade tem, vis-à-vis do indivíduo, mais deveres que direitos: não
exerce, sobre este, na condição de maior, “nem vigilância nem autoridade”,
e dá-lhe “proteção da sua liberdade”.
Bakunin leva demasiado longe a prática de uma “liberdade absoluta e
completa”. “Tenho o direito de dispor da minha pessoa à minha maneira, de
ser malandro ou ativo, de viver honestamente, seja do meu próprio trabalho,
seja da exploração vergonhosa da caridade ou da confiança privadas. Uma
só condição é exigida: que esta caridade e esta confiança sejam voluntárias
e me sejam prodigalizadas apenas por indivíduos maiores. Eu tenho mesmo
o direito de entrar em associações que, pelo seu objetivo, sejam ou pareçam
imorais”. Bakunin chega a admitir, no seu culto da liberdade, que adira a
associações que teriam por objeto a corrupção e a destruição da liberdade,
individual ou pública: “A liberdade não pode e não deve defender-se senão
pela liberdade; e é um contrassenso perigoso querer feri-la, sob o pretexto
especial de a protegem”.
Quanto ao problema ético, Bakunin está persuadido de que a
“imoralidade” é a consequência de uma organização viciada da sociedade.
Há, pois, que destruir esta última de cima a baixo. Só a liberdade pode
moralizar. Toda a restrição imposta Sob o pretexto de proteger a moral tem
sempre resultado em detrimento dela. A repressão, longe de sustar o
alastramento da imoralidade, tem contribuído sempre para a sua expansão e
desenvolvimento. É, então, ocioso opor-lhe os rigores de uma legislação
que coarte a liberdade individual. Para as pessoas parasitárias, ociosas,
malfeitoras, Bakunin admite apenas a sanção seguinte: a privação dos
direitos políticos, isto é, das garantias concedidas pela sociedade ao
indivíduo. Do mesmo modo, todo o indivíduo tem o direito de alienar a sua
própria liberdade; então, será destituído do gozo dos seus direitos políticos,
durante o período desta servidão voluntária.
Se se trata de crimes, os indivíduos devem ser resguardados como uma
doença, e a sua punição mais considerada como uma cura do que como uma
vingança da sociedade. Acresce que o indivíduo condenado deve conservar
o direito de não se submeter à pena em que incorreu, declarando que não
quer mais fazer parte da sociedade em questão. Esta, por seu turno, tem o
direito de o expulsar de seu seio e de o declarar fora da sua garantia e
proteção.
Bakunin não é, porém, um niilista. A proclamação de absoluta liberdade
individual não o faz renegar toda a obrigação social. Eu só me torno livre
através da liberdade dos outros. “O Homem realiza a sua plena e livre
individualidade, completando-a com a de todos os indivíduos que o cercam
e somente graças ao trabalho e à força coletiva da sociedade”. A associação
é voluntária, mas não há a menor dúvida para Bakunin de que, à vista das
suas enormes vantagens, “a associação será preferida por toda a gente”. O
homem é, ao mesmo tempo, o “mais individual e o mais social de todos os
animais”. Também o nosso autor não está inclinado para a compreensão do
egoísmo, no sentido vulgar da palavra, ou do individualismo burguês, “que
impele o indivíduo a conquistar e estabelecer o seu bem-estar (...), apesar
dos outros ou em detrimento e à custa dos outros”. “Este indivíduo humano,
solitário e abstrato, é uma ficção, semelhante à de Deus: “O isolamento
absoluto é a morte intelectual, moral e materia1”.
Espírito rasgado e de capacidade de síntese, Bakunin propõe o
lançamento de uma ponte entre os indivíduos e os movimentos de massas:
“Toda a vida social se resume nesta dependência mútua e incessante dos
indivíduos e das massas. Todos os indivíduos, mesmo os mais inteligentes e
fortes, são, a cada instante da sua vida, simultaneamente promotores e
produtos da vontade e da ação das massas”. Para o anarquista, o movimento
revolucionário é um efeito desta ação recíproca; do ponto de vista da
eficácia militante, também Bakunin estima de igual importância, quer a
ação individual, quer a ação coletiva, autônoma, das massas.
Os herdeiros espirituais deste mestre, os anarquistas espanhóis, apesar
de imbuídos de princípios socialistas, não omitiram a garantia solene, às
vésperas da Revolução de julho de 1936, da autonomia sagrada do
indivíduo: “A eterna aspiração à unicicidade - escreveria Diego Abad de
Santillan - expressar-se-á de mil maneiras: o indivíduo não será esmagado
por qualquer nivelamento (...). O individualismo, o gosto particular e a
singularidade encontrarão campo suficiente para se manifestarem”.
AS FONTES DE ENERGIA: AS MASSAS
A Revolução de 1848 fez descobrir a Proudhon que as massas
constituem a força motriz das revoluções: “As revoluções (observa no fim
do ano seguinte) não conhecem iniciadores; surgem, quando os seus
destinatários as provocam; param, quando a força misteriosa, que as fez
eclodir, for esgotada”. “Todas as revoluções se realizaram através de uma
espontaneidade popular; se, por vezes, os governantes seguiram a iniciativa
do povo, foi porque não tinham outra saída; ordinariamente, os governantes
impedem, comprimem, esmagam”. “O povo, quando entregue à sua
intuição, vê sempre com mais justiça do que quando conduzido pela política
dos seus líderes”. “Uma revolução social não chega ao conhecimento de um
teórico através de uma teoria completamente elaborada, ou de um relato de
qualquer vidente (...). Uma revolução verdadeiramente orgânica é um
produto da vida universal, ainda que possua os seus mensageiros e obreiros;
não é produto de pessoas”. A revolução deve ser feita da base para a cúpula,
e não da cúpula para a base. Uma vez ultrapassada a crise revolucionária, a
reconstrução social deve ser trabalho das massas populares. Proudhon, a
este respeito, proclama “a personalidade e autonomia das massas”.
Bakunin, por sua vez, não deixa de repetir que uma revolução social não
pode ser decretada nem organizada pelo governo, e que, ao contrário, a
revolução só atingirá 0 seu pleno desenvolvimento pela ação espontânea e
contínua das massas. “As revoluções são produzidas pela “força das
coisas”. “Preparam-se, durante muito tempo, na consciência instintiva das
massas populares, e deflagram, depois, suscitadas na aparência, não
raramente, por causas fúteis”. “Pode-se prever, pressentir, a sua
aproximação (...), mas jamais acelerar a sua explosão”. “A revolução social
anarquista (...) surge dela mesmo, no seio do povo, destruindo tudo o que se
opõe ao transbordar generoso da vida popular, a fim de criar, em seguida e a
partir da própria alma popular, novas formas de vida social livre”. Na
experiência da Comuna de 1871, Bakunin encontra a retumbante
confirmação dos seus pontos de vista. Os comuneiros tinham a convicção
de que “a ação de indivíduos era quase nula e que, a ação espontânea das
massas devia ser tudo”.
Kropotkin, como os seus precursores, celebra “este admirável espírito
de organização espontânea, que o povo possui em tão elevado grau e que só
raramente se lhe permite exercer”. E acrescenta, irônico: “É preciso ter
andado toda a vida com o nariz dentro de papéis, para duvidar deste fato”.
Com estas afirmações generosamente otimistas, os anarquistas
encontram-se, como, aliás, os seus irmãos inimigos,6 os marxistas, em face
de uma contradição grave. A espontaneidade das massas é essencial,
prioritária, mas não resolve tudo. Para que elas tomem consciência, é
necessária a assistência de uma minoria de revolucionários capazes de
passar à revolução. Como evitar que esta elite não beneficie da sua
superioridade intelectual, para se substituir às massas, paralisar a sua
iniciativa, impor-hes uma nova dominação?
Proudhon, após a sua exaltação idílica da espontaneidade das massas,
acaba por reconhecer a sua inércia e deplorar o preconceito governamental,
o sentimento de deferência e o complexo de inferioridade, que entravam o
élan popular. A ação coletiva do povo deve, por consequência, concorda,
ser suscitada. A servidão das classes inferiores pode prolongar-se
indefinidamente, se não lhes vier uma revelação de fora. E Proudhon
admite, ainda, que “as ideias que sempre agitaram as massas estavam,
anteriormente, encerradas no cérebro de alguns pensadores (...). A
prioridade não pertenceu jamais às multidões (...). A prioridade, em
qualquer ato do espirito, é de foro individual”. O ideal será que as minorias
conscientes transmitam a sua ciência, a ciência revolucionária, ao povo.
Mas Proudhon revela ceticismo, quanto à prática de tal síntese: isto seria,
segundo ele, desconhecer a natureza usurpadora da autoridade. No máximo,
poder-se-á “equilibrar” os dois elementos.
Bakunin, antes de se converter ao anarquismo, por volta de 1864, esteve
envolvido em conspirações e em sociedades secretas, e familiarizou-se com
a ideia, tipicamente blanquista, de que a ação minoritária deve anteceder o
despertar das grandes massas, para que estas, logo que despegadas da sua
letargia, se reúnam aos seus elementos mais avançados. Na Internacional
operária, o mais vasto movimento que se constituiu, o problema colocava-
Se de maneira muito diferente. Bakunin, todavia, continua convencido da
necessidade de uma vanguarda consciente, mesmo depois de se tomar
anarquista: “Para a vitória da revolução contra a reação, é imprescindível
que, no meio da anarquia popular, que constituirá a vida e toda a energia da
revolução, a unidade de pensamento e de ação revolucionários disponham
de um órgão”. Um grupo mais ou menos numeroso de indivíduos inspirados
pelo mesmo pensamento e com os mesmos objetivos devem exercer uma
ação natural sobre as massas”. “O que devemos formar são estados-maiores
bem organizados e chefes bem inspirados do movimento popular”.
Os meios preconizados por Bakunin assemelham-se aos que o jargão
político moderno designa pelo nome de “ativismo”. Trata-se de preparar os
indivíduos mais inteligentes e mais influentes de cada localidade “para que
esta organização seja, tanto quanto possível, conforme aos nossos
princípios; todo o segredo da nossa influência está nela”. Os anarquistas
devem ser como que “pilotos invisíveis”, no meio da tempestade popular.
Devem dirigir, não por um “poder ostensivo”, mas por uma “ditadura sem
forma, sem título, sem direito oficial e tanto mais poderosa quanto mais
fraca nas aparências de poder”.
Bakunin não ignora quanto a sua terminologia (“chefes”, “ditadura”,
etc.) se assemelha à dos adversários do anarquismo, e replica
antecipadamente “a todos os que pretendessem que uma ação assim
organizada seria um atentado à liberdade das massas, uma tentativa de criar
uma nova potência autoritária”: Não! a vanguarda consciente não deve ser
nem a benfeitora, nem o chefe ditatorial do povo, mas a parteira da sua
autodeterminação. Tudo o que a vanguarda deve realizar é a divulgação,
entre as massas, das ideias correspondentes aos seus instintos; nada mais. O
resto só o povo deve e pode fazê-lo. As “autoridades revolucionárias”
(Bakunin não recua diante desta palavra e desculpa-se fazendo votos para
“que ela seja tão fraca quanto possível”) devem, não impor a revolução às
massas, mas provoca-la no seio delas; não submetê-las a uma organização
qualquer, mas suscitar a sua organização autônoma, de baixo para cima.
Como também explicaria, muito mais tarde, Rosa Luxemburgo,
Bakunin entrevê que a contradição entre a espontaneidade libertária e a
necessidade de intervenção de vanguardas conscientes será verdadeiramente
resolvida no dia em que se operar a difusão da ciência na classe operária,
onde a massa tornada plenamente consciente não mais precisará de
“chefes”, mas apenas de “órgãos executivos” de sua “ação consciente”.
Depois de haver sublinhado que faltam ainda ao proletariado a
organização e a ciência, o anarquista nisso chega à conclusão de que a
Internacional não se tornará um instrumento de emancipação “enquanto não
fizer penetrar na consciência de cada um dos seus membros a ciência, a
filosofia e a política do socialismo”.
Mas esta síntese, satisfatória sob o ponto de vista teórico, é uma
esperança lançada para um futuro longínquo. E, enquanto esperam que a
evolução histórica permita a sua realização, os anarquistas, assim como os
marxistas, continuam mais ou menos prisioneiros de uma contradição. Esta
contradição prejudicaria a Revolução russa, assediada pelo poder
espontâneo dos sovietes e a pretensão de “papel dirigente” do partido
bolchevista, assim como se manifestaria na Revolução espanhola, onde os
libertários oscilavam entre dois polos: o do movimento de massas e o da
elite anarquista consciente.
Limitar-nos-emos a ilustrar esta contradição através de duas citações:
Da experiência da Revolução russa, os anarquistas tiraram uma
conclusão categórica: a condenação do “papel dirigente” do Partido. Volin
formula-a nos seguintes termos: “A ideia básica do anarquismo é simples:
nenhum partido, agrupamento político ou ideológico, colocando-se acima
ou fora das massas trabalhadoras, para as “governar” ou as “guiar”,
conseguirá jamais emancipá-las, ainda que sinceramente o deseje. A
emancipação efetiva só poderá ser realizada por uma atividade direta (...)
dos interessados, dos próprios trabalhadores, agrupados, não sob a bandeira
de um partido ou de uma formação ideológica, mas dentro dos seus
organismos de classe (sindicatos de produção, comitês de fábrica,
cooperativas, etc.); organismos estabelecidos sobre a base de uma ação
concreta e de uma “auto-administração”, ajudados, mas não governados,
pelos revolucionários trabalhando no seu seio, e não acima da massa (...). A
ideia anarquista e a verdadeira revolução emancipadora não poderão ser
realizadas pelos anarquistas como tais, mas unicamente por grandes massas
(...). Os anarquistas, ou, melhor, os revolucionários em geral, apenas são
chamados para esclarecer e ajudar, em certas circunstâncias. Se os
anarquistas pretenderem realizar a revolução social, “guiando” as massas,
tal pretensão será ilusória, como o foi a dos bolchevistas, pelas mesmas
razões”.
Contudo, os anarquistas espanhóis sentiram, por sua vez, a necessidade
de organizar uma minoria consciente - a Federação Anarquista Ibérica (FAI)
- dentro da sua vasta Central sindical - a Confederação Nacional do
Trabalho (CNT) - a fim de nela combater as tendências reformistas de
certos sindicalistas “puros” e as manobras dos agentes da chamada
“ditadura do proletariado”. Inspirando-se nas recomendações de Bakunin, a
FAI esforçou-se mais em elucidar do que em dirigir a consciência libertária,
relativamente elevada, de numerosos membros de base da CNT, que a
ajudaria a não cair nos excessos dos partidos revolucionários “autoritários”.
Todavia, a FAI desempenhou, de forma bastante medíocre, O seu papel de
liderança dos sindicatos, indecisos na sua estratégia e mais férteis em
ativistas e em demagogos do que em revolucionários consequentes, tanto
sob o ponto de vista teórico como prático.
As relações entre a massa e a minoria consciente constituem um
problema, cuja solução não foi ainda plenamente encontrada, mesmo pelos
anarquistas, e sobre o quê a última palavra parece não ter ainda sido
pronunciada.
SEGUNDA PARTE
EM BUSCA DA SOCIEDADE
FUTURA
O ANARQUISMO NÃO É UTÓPICO
Do mesmo modo que se afirma construtivo, o anarquismo rejeita, ab
initio, a acusação de utópico. Recorre ao método histórico para provar que a
sociedade livre não é produto de sua invenção, mas Sim de um trabalho do
passado. Proudhon assevera que a humanidade, sob o inexorável sistema da
autoridade, que a esmagou durante seis mil anos, foi sustentada por uma
“virtude secreta”: “Por baixo do aparelho governamental, à sombra das
instituições políticas, a sociedade produzia, lentamente e em silêncio, o seu
próprio organismo; ela se constituía numa ordem nova, expressão da sua
vitalidade e da sua autonomia”.
O governo, tão prejudicial quanto O tenha sido, contém a sua própria
negação. E um “fenômeno da vida coletiva, a representação externa do
nosso direito, uma manifestação da espontaneidade social, uma preparação
da humanidade para um estado superior. O que a humanidade procura na
religião, e o que ela chama Deus, é ela mesma. O que o cidadão procura no
governo (...) é também ele mesmo, é a liberdade”. A Revolução francesa
acelerou esta marcha invencível para a anarquia: “No dia em que os nossos
pais (...) implantaram o princípio do livre exercício das faculdades do
homem e do cidadão, a autoridade foi negada no Céu e na Terra, e o
governo, mesmo através da delegação de poderes, tomou-se impossível”.
A revolução industrial fez o resto. A política é, doravante,
subalternizada pela economia. O governo não pode mais afastar-se do
concurso direto dos produtores e, na realidade, passou a constituir uma
relação de interesses. A formação do proletariado conseguiu esta evolução.
O poder, mal ado os seus protestos, não exprime senão o socialismo. “O
código de Napoleão é tão incapaz de servir para a nova sociedade, como
para a república de Platão; mais alguns anos recorridos, e teremos O direito
absoluto da propriedade substituído pelo direito relativo e móbil da
mutualidade industrial; e será preciso, então, reconstruir de cima para baixo
este palácio de cartão”.
Bakunin, por seu lado, saúda a “incontestável Revolução francesa, da
qual todos nós somos filhos”. O princípio da autoridade foi aniquilado na
consciência do povo; a ordem inspirada de cima para baixo tornou-se
impossível de sustentar. Resta, agora, “organizar a sociedade, de maneira
que ela possa viver sem governo”. Bakunin apoiou-se sobre a tradição
popular. As massas, “apesar da tutela opressiva e prejudicial do Estado”,
têm, através dos séculos, “desenvolvido espontaneamente no seu seio,
senão todos os elementos, pelos menos muitos dos elementos essenciais à
ordem moral e material constitutiva da real unidade humana”.
NECESSIDADE DE ORGANIZAÇÃO
O anarquismo não é sinônimo de desorganização. Proudhon foi o
primeiro a proclamar que a anarquia não \'c a desordem, mas a ordem, a
ordem natural, por oposição à ordem artificial, imposta de Cima, e que ela é
a unidade verdadeira. Uma sociedade assim “pensa, fala, age, como um
homem, e isto precisamente porque ela não é representada por um homem,
porque não reconhece mais autoridade pessoal, porque nela, como em todo
o ser organizado e vivo, como no infinito de Pascal, o centro está em todo o
lugar e a circunferência em parte nenhuma”. A anarquia é “a sociedade
organizada e viva”, “o mais alto grau de liberdade e ordem a que a
humanidade pode chegar”. A certos anarquistas, que têm pensado de outro
modo, adverte o italiano Errico Malatesta: “Crentes, sob a influência da
educação autoritária recebida, de que a autoridade é a alma da organização
social, para combater aquela, negam esta (...). O erro fundamental dos
anarquistas-adversários da organização é o de se haverem convencido de
que uma organização não é possível sem autoridade - e de preferirem, uma
vez admitida esta hipótese, renunciar a toda a organização, antes de aceitar
um mínimo de autoridade (...). Se tivermos de acreditar que não pode haver
organização sem autoridade, então seremos autoritários, porque
preferiremos a autoridade, que entrava a vida e a torna triste, à
desorganização, que a toma impossível? Em resumo, o coletivismo
proudhoniano rejeita categoricamente o estatismo e defende a abolição da
propriedade. A comunidade, no sentido que lhe dá o comunismo
“autoritário” constitui opressão e servidão. Então, procura uma combinação
de comunidade e propriedade. E a associação. Os instrumentos de produção
e de troca não devem ser geridos pelo Estado nem por empresas capitalistas,
mas sim pelas associações de trabalhadores. Deixarão, assim, as forças
coletivas de ser “alienadas” em proveito de alguns exploradores. “Nós,
produtores associados ou em vias de associação, escreve Proudhon em
estilo de manifesto, não temos necessidade do Estado (...). Não queremos
mais o governo do homem pelo homem, nem da exploração do homem pelo
homem. O socialismo é o contrário do governamentalismo (...). Queremos
que a livre associação seja o elo fundamental da vasta federação de
companhias e de sociedades, reunidas no interesse e no ideal comum da
república democrática e social”.
Abordando atentamente o problema da autogestão operária, Proudhon
enumera os dados essenciais com bastante precisão:
Cada indivíduo associado tem um direito indivisível no ativo da
companhia ou associação;
Cada trabalhador deve assumir a sua parte nas tarefas repugnantes ou
penosas;
Deve realizar uma série de trabalhos de diferentes níveis, de modo a
adquirir uma formação enciclopédica no seu ramo de atividade;
As funções são eletivas, e os regulamentos submetidos à aprovação dos
associados;
As remunerações são proporcionais à natureza da função, à participação
do talento individual e à extensão da responsabilidade; todo o associado é
beneficiário, na proporção dos seus serviços;
Cada um é livre de abandonar, por sua vontade, a associação, de exigir o
pagamento do que lhe é devido e de liquidar os seus direitos;
Os trabalhadores associados escolhem os seus operários- chefes, os
engenheiros, arquitetos, contadores, etc.
Proudhon insiste sobre o fato de que o proletariado não tem técnicos, do
que deriva a necessidade de associar à autogestão operária as “sumidades
industriais e comerciais”, que foi inventada por um teórico nem pregada por
doutrinários. Foi o povo, e não o Estado, quem deu o primeiro impulso. E
Proudhon concita os trabalhadores a se organizarem em todos os pontos,
paralelamente, e a chamarem a si, primeiro, a pequena propriedade, o
pequeno comércio e a pequena indústria e, depois, as grandes propriedades
e as grandes empresas, até às explorações mais vastas (minas, canais,
estradas de ferro, etc.) e, assim, “se tornarem senhores de tudo”.
Tem-se, modernamente, a tendência para relembrar, de Proudhon,
apenas as veleidades, ingênuas, certamente, e antieconômicas, sem dúvida,
como a pequena empresa artesanal e comercial. O seu pensamento é
ambivalente, sobre este ponto. Proudhon era uma contradição viva.
Fustigava a propriedade, fonte de injustiças e de exploração, mas
condescendia com ela na medida em que proporcionava independência
pessoal. Além disto, Proudhon aparece frequentemente confundido com o
pequeno “círculo proudhoniano”, que, no dizer de Bakunin, se constituiu à
sua volta nos últimos anos da sua vida. Este círculo tentou opor, em vão, na
Primeira internacional, a concepção da propriedade privada dos meios de
produção à do coletivismo. E se não foi mais longe foi porque Bakunin
conseguiu convencer a maioria dos adeptos de Proudhon a trocar a chamada
concepção proudhoniana pela coletivista.
Aliás, os mutualistas, como se intitulavam os proudhonianos, rejeitavam
a propriedade coletiva apenas parcialmente: Combatiam-na na agricultura,
dado o individualismo do camponês francês; aceitavam-na, contudo, nos
transportes, e, em matéria de autogestão industrial, reclamavam a mesma
coisa que os coletivistas, embora recusassem este qualificativo, diante da
frente única, temporária, que os discípulos de Bakunin entabularam com
certos marxistas “autoritários”, mal disfarçados no seu partidarismo da
gestão estatal da economia.
Com efeito, Proudhon apresenta-se suficientemente realista para
compreender, como consigna nos seus Carnets, que “a pequena indústria é
uma realidade tão condenável como a pequena cultura”. Para a grande
indústria moderna, exigente de importante mão-de-obra e extrema
mecanização, Proudhon é coletivista: “A grande indústria e a civilização
farão nascer a associação”. “Não faremos escolha”, conclui. E também se
indigna quando o apodam de adversário do progresso técnico.
Volin, um dos maiores anarquistas russos do século 20, encarece e
precisa: “Uma interpretação errônea - ou, o mais frequente e
cientificamente, inexata - pretende que a concepção libertária signifique
ausência de organização (...). Nada mais falso. Trata-se, não de organização
ou de não-organização, mas de dois princípios diferentes de organização.
Naturalmente, dizem os anarquistas, é preciso que a sociedade seja
organizada. Mas esta organização deve fazer-se livremente, socialmente, e,
ames de tudo, partindo da base. o princípio de organização deve partir, não
de um centro, criado antecipadamente para açambarcar o conjunto e se
impor a ele, mas - o que é exatamente o contrário - de todos os pontos, para
originar os nós de coordenação, centros naturais destinados a servir todos
estes pontos. Por outro lado, a velha “organização”, decalcada na opressão e
exploração da sociedade tradicional, leva os vícios desta ao paroxismo (...).
E só à custa de um artifício se poderá manter”.
Os anarquistas não serão somente partidários da verdadeira organização,
mas, como concordou Henri Lefebre, num livro recente sobre a Comuna,
são “organizadores de primeira ordem”. Este filósofo crê aperceber-se de
uma contradição “bastante surpreendente - observa - que se encontra na
história do movimento operário até nossos dias, nomeadamente em
Espanha”. Contradição que, em boa verdade, só pode “surpreender” aqueles
que consideram os libertários, a priori, desorganizadores.
A AUTOGESTÃO
Quando o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, redigido nos
princípios de 1848, às vésperas da Revolução de Fevereiro, não apresentava
outra solução - pelo menos por um longo período transitório - senão a
centralização, nas mãos do Estado, do conjunto dos instrumentos de
produção, e tomava de Louis Blanc a ideia autoritária de enquadrar os
trabalhadores das fábricas e os do campo nos “exércitos industriais”, foi
Proudhon o primeiro a propor uma concepção antiestatal da - gestão
econômica.
Nesta época, floresciam, em Paris e em Lyon, associações operárias de
produção. Esta autogestão nascente é, para Proudhon, muito mais
importante que a revolução política. Não iniciariam os operários no
conhecimento dos negócios, e que seriam remunerados numa base fixa: “há
lugar para todo o mundo sob o sol da revolução”.
Esta autogestão libertária é antípoda da autogestão paternalista e estatal,
esboçada por Louis Blanc num projeto de decreto de 15 de setembro de
1849. O autor da Organização do Trabalho quis criar associações operárias
sob a égide do Estado e por este comanditadas. Previu, para elas, uma
repartição autoritária dos rendimentos, na seguinte base:
25% para um fundo de amortização do capital;
25% para um fundo de segurança social;
25% para um fundo de reserva;
25% para dividir pelos trabalhadores7.
Verificamos, pois, que Proudhon não advoga uma autogestão deste tipo.
Para ele, os trabalhadores associados não devem “Submeter-se ao Estado”,
mas “ser o Estado”. “A associação pode tudo: reformar sem a assistência do
poder, invadir e submeter o próprio poder”. Proudhon pretende “marchar
sobre o governo, através da associação, e não sobre a associação, através do
governo”, advertindo, ainda, que constitui profundo equívoco dos
socialistas “autoritários” a convicção de que o Estado poderá tolerar uma
autogestão verdadeiramente livre: “Nada é feito pela iniciativa, pela
espontaneidade, pela ação independente dos indivíduos e das coletividades,
enquanto estejam em presença desta força colossal, da qual O Estado está
investido pela centralização”.
Convém salientar, aqui, que foi a concepção libertaria e não a estatal de
autogestão, que prevaleceu nos congressos da Primeira Internacional.
No congresso de Lausanne, em 1867, tendo o belga César de Paepe
proposto que se entregasse ao Estado a propriedade das empresas
nacionalizadas, Charles Longuet, então anarquista, declarou: “De acordo,
com a condição de que definamos o Estado como a coletividade dos
cidadãos (...) e que assentemos que os seus serviços não serão
administrados por funcionários do Estado, mas por associações
operárias...”. O debate continuou no ano seguinte, no congresso de
Bruxelas, e o mesmo relator, desta vez, teve o cuidado de precisar melhor a
sua proposta: “A propriedade coletiva pertence à sociedade inteira, mas será
concedida às associações de trabalhadores. O Estado será, simplesmente, a
federação dos diversos grupos de trabalhado- res”. A proposição assim
esclarecida foi aprovada.
Todavia, o optimismo que Proudhon havia manifestado, em 1848, a
respeito da autogestão, seria desmentido pela lição dos fatos. Alguns anos
mais tarde (1957), ele próprio submete as associações existentes a uma
severa crítica. A sua inspiração fora ingênua, ilusória e utópica. Elas tinham
pago o tributo da inexperiência. Haviam caído no exclusivismo e no
particularismo. Funcionavam como um patronato coletivo, corroído de
ideias de supremacia e hierarquia. Todos os abusos das sociedades
capitalistas haviam sido “exagerados nas associações sedizentes fraternais”.
De várias centenas de associações operárias criadas em 1848, não restavam
mais de uma vintena em 1857.
Tentou, então, Proudhon opor a esta mentalidade estreita e particularista
uma concepção de autogestão “universal” e “sintética”. As associações
operárias futuras deveriam, “em lugar de agir em benefício de alguns,
trabalhar para todos”. A autogestão exigia certa educação dos
autogestionários; a tarefa mais difícil das associações é a de “civilizar os
associados”; trata-se menos de formar “uma massa de capitais” do que um
“fundo de homens”.
Sob o plano jurídico, Proudhon encarara, inicialmente, como vantajosa,
a consignação da propriedade das empresas às respectivas associações
operárias. Agora, rejeita esta solução particularista. E, para tal, distingue
entre propriedade e posse. Esta última consiste no usufruto de uma
concessão interminável e inalienável. Os produtores receberiam, a título de
empréstimo, os seus instrumentos de produção. A propriedade resultaria
numa co-propriedade federativa atribuída ao conjunto de produtores
reunidos numa vasta federação agrícola e industrial.
Preocupado com o futuro da autogestão, Proudhon prossegue: “Não é a
retórica vã que o declara, mas sim a necessidade econômica e social:
chegou o momento em que só poderemos avançar com novas condições
(...); as classes devem resolver-se a compartilhar de uma só e mesma
associação de produtores”. “Do progresso da autogestão depende o futuro
dos trabalhadores, e um novo mundo se pode abrir à humanidade (...)”
AS BASES DA TROCA
Sobre que bases assegurar as trocas entre as diversas associações
operárias? Proudhon sustentou, a princípio, que o valor de troca de todas as
mercadorias poderia ser medido pela quantidade de trabalho necessário para
as produzir. As diversas associações de produção cederiam os seus produtos
ao preço de “custo”. Os trabalhadores, retribuídos em “senhas de trabalho”,
compravam, nos armazéns sociais, as mercadorias ao preço a que estas
ficavam, em função das horas de trabalho necessárias para as produzir. As
trocas mais importantes efetuavam-se por intermédio de um clearing
compensador, ou Banco do Povo, que aceitava as senhas de trabalho em
pagamento. Este banco desempenharia também o papel de um
estabelecimento de crédito. Emprestaria dinheiro às associações operárias
de produção, permitindo-lhes a sua evolução, mas sem obter, pelo
empréstimo, qualquer juro.
Esta concepção, chamada mutualista, era um pouco utópica e de difícil
implantação num regime capitalista. O Banco do Povo, fundado por
Proudhon em 1849, conseguiu obter em poucas semanas cerca de 20.000
adesões, mas a sua existência foi efêmera.
Quanto à remuneração baseada nas horas de trabalho, os “comunistas
libertários” da escola de Kropotkin, Malatesta, Elisée Reclus, Carlo Cafiero,
etc. desencadearam imediatamente as suas críticas, pois, a seus olhos,
tratava-se de uma grande injustiça. “Três horas do trabalho de Paulo (objeta
Cafiero) podem valer cinco de Pedro”. Outros fatores, além da duração,
intervém na determinação do valor do trabalho: a intensidade, a formação
profissional e intelectual, etc. E preciso também ter em conta os encargos
familiares do operário8. Além disto, trabalhador continua, no regime
coletivista, a ser um assalariado, escravo da comunidade que compra e vigia
a sua força de trabalho. A remuneração proporcional às horas de trabalho
não pode consumir um ideal, mas apenas um mal menor, temporário. Tal
seria a moral social extraída dos livros de contabilidade, com a filosofia do
“Dever-Haver”. Este modo de retribuição procede de um individualismo
mitigado em contradição com a propriedade coletiva dos meios de
produção. É incompatível com a “anarquia”. Uma forma nova de posse da
propriedade exige uma nova forma de retribuição. Os serviços prestados à
comunidade não podem ser avaliados em unidades monetárias.
É mister colocar as necessidades acima dos serviços. Todos os produtos
devidos ao trabalho de todos devem pertencer a todos e cada um deve tomar
livremente a sua parte. A cada um segundo as suas necessidades deveria ser
a divisa do “comunismo libertário”.
O próprio Proudhon revê, mais tarde, a sua primeira concepção, ao que
parece, sem que seus amigos Kropotkin e Malatesta se houvessem
apercebido. A sua Teoria da Propriedade, publicada depois da sua morte,
explica que somente nas suas Primeiras Memórias sustentou a tese da
igualdade de salário à igualdade de trabalho: “Tinha esquecido de dizer
duas coisas: A primeira, que o trabalho se mede na dúplice função da sua
duração e da sua intensidade; a segunda, que não é preciso compreender no
salário do trabalhador nem a amortização das despesas de educação e do
trabalho, que ele fez como aprendiz não remunerado, nem o prêmio de
Seguro contra riscos que ele corre, os quais estão longe de ser os mesmos
em cada profissão”. Este “esquecimento”, afirma Proudhon tê-lo “reparado”
nos escritos seguintes, onde compensa, através de sociedades cooperativas
de seguros mútuos, as despesas e riscos desiguais. Aliás, Proudhon não
considera de modo algum a retribuição dos membros de uma associação de
trabalhadores como um “salário”, mas sim como uma repartição de
benefícios, livremente decidida entre trabalhadores associados e
corresponsáveis. De contrário, como acentua a este propósito um dos mais
recentes exegetas proudhonianos, Pierre Haubtmann, numa tese ainda
inédita, a autogestão não fazia sentido.
Os “comunistas libertários” creem dever censurar ao mutualismo de
Proudhon e ao coletivismo, mais consequente, de Bakunin, o fato de não
haverem consolidado a forma que a remuneração do trabalho adquiriria em
regime socialista. Estes censores perderam de vista que os dois fundadores
do anarquismo tiveram o cuidado de não imprimir, prematuramente, à
sociedade, um quadro rígido. De resto, a recusa de soluções precipitadas e a
justificação de ductilidade também foram invocadas pelos “comunistas
libertários”. Redigindo em 1884 o Programa de uma Internacional
Anarquista, Malatesta admitiu que é o comunismo é imediatamente
realizável apenas em setores restritos e que, “para o resto”, é forçoso
aceitar, a título transitório, o coletivismo. “O comunismo, para ser
realizável, carece de um grande desenvolvimento moral dos membros da
sociedade, de um sentimento elevado e profundo de solidariedade, que o
élan revolucionário não chegará a produzir, tanto mais que, nos primeiros
tempos da revolução, as condições materiais favoráveis a um tal
desenvolvimento não serão suficientes”.
Às vésperas da Revolução Espanhola de 1936, em que o anarquismo
enfrentou a prova dos fatos, Diego Abad de Santillan demonstrará, quase
nos mesmos termos, a impraticabilidade imediata do comunismo libertário.
Na sua opinião, o sistema capitalista, ao invés de desenvolver no homem os
seus instintos sociais, tende, de todas as maneiras, a banir e reprovar estes
sentimentos.
Santillan invoca as experiências da Revolução Russa para concitar os
anarquistas a um maior realismo. Censura-lhes a atitude de desconfiança ou
soberba para com as lições mais recentes da história. Duvidando que uma
revolução redunde na realização do ideal comunista-anarquista, afirma
Santillan que a fórmula coletivista, “a cada um o produto do seu trabalho”,
responderia melhor que o comunismo às exigências da realidade, na
primeira fase de um período revolucionário no qual a vida econômica
estaria desorganizada e o combate à penúria e o abastecimento seriam
tarefas prioritárias. As formas econômicas que se poriam em prática já
marcavam uma evolução gradual para o comunismo. Enquadrar
brutalmente seres humanos em formas rígidas de vida social, constitui um
autoritarismo que prejudica esta evolução. Mutualismo, coletivismo e
comunismo são meios diferentes de atingir os mesmos fins. Apoiado no
sábio empirismo de Proudhon e de Bakunin, Santillan reclama para a
Revolução Espanhola o direito à sua livre experiência: “Em cada
localidade, em cada meio será definido o grau de mutualismo, de
coletivismo ou de comunismo que poderá ser atingido”.
Como veremos mais adiante, a experiência das “coletividades”
espanholas de 1936 fará surgir dificuldades de aplicação prematura de um
comunismo integral.
A CONCORRÊNCIA
Entre os princípios herdados da economia burguesa, há um cuja
manutenção na economia coletivista ou autogestionária levanta dificuldades
espinhosas: O da concorrência. Esta é, para Proudhon, “a expressão da
espontaneidade social”, o produto da “liberdade” das associações. Além
disso, a concorrência constitui um estimulante, sem o qual “uma imensa
paralização” sucederia à dinâmica constante da indústria. E concretiza este
autor: “As associações operárias, face à sociedade, estão empenhadas em
fornecer os produtos e os serviços que lhes são pedidos, a um preço cada
vez mais baixo, cada vez mais próximo do preço por que lhes ficam os
produtos produzidos ou os serviços prestados (...). A associação operária
abstém-se de qualquer coligação (monopolística) e submete-se à lei da
concorrência, tendo os seus livros e arquivos à disposição da sociedade que,
evidentemente, conserva o direito de fiscalização e a faculdade de a
dissolver”. “A concorrência e a associação apoiam-se uma sobre a outra
(...). O mais deplorável erro do socialismo consiste em haver encarado a
concorrência como uma sublevação da sociedade. Não (...) se trata de
destruir a concorrência (...). Trata-se de encontrar um equilíbrio na
concorrência, ou melhor, uma polícia.”
Esta adoção do princípio da concorrência valeu aProudhon os sarcasmos
de Luis Blanc: “Enxertar a associação na concorrência é uma ideia pobre: é
substituir eunucos por hermafroditas”. L. Blanc pretendia chegar a um
preço “uniforme”, fixado pelo Estado, e impedir toda a concorrência entre
as unidades de uma mesma produção industrial. Proudhon responde-lhe que
o “preço só se regula pela concorrência, isto é, pela faculdade que o
consumidor encontra de se utilizar dos serviços de quem o satisfaça (...)”.
“Postergai a concorrência (...), e a sociedade, privada da sua força motriz,
paralisar-se-á como um pêndulo cuja mola fica frouxa”.
Proudhon não dissimula os inconvenientes da concorrência, aliás,
exaustivamente descritos no seu tratado de economia. Reconhece que a
concorrência é uma fonte de desigualdade e admite que a “vitória está
assegurada aos mais pesados bata1hões”. Porque “anarquista” (no sentido
pejorativo do termo) a concorrência se exerce em proveito de interesses
privados e origina, necessariamente, a oligarquia. “A concorrência mata a
concorrência”.
Todavia, na opinião de Proudhon, a ausência de concorrência não será
menos perniciosa. Apresentando vários exemplos de monopólios da sua
época, como o dos tabacos, conclui que, se todas as empresas de um Estado
fossem monopolistas, a nação jamais lograria um equilíbrio entre as suas
receitas e as suas despesas. Ademais, a concorrência defendida por
Proudhon não é aquela, abandonada a si mesma, da sociedade capitalista,
mas antes uma concorrência dotada de um princípio superior que a
“socializa”, que operaria numa base de troca leal, num espírito de
solidariedade; uma concorrência que, Salvaguardando a iniciativa
individual, restituiria à coletividade as riquezas que atualmente a
apropriação capitalista lhe subtrai.
Evidentemente que há nesta concepção uma boa parte de utopia. A
concorrência, ou a economia dita de mercado, produz fatalmente a
desigualdade e a exploração, mesmo que se parta de uma situação de
perfeita igualdade. Assim, elas seriam acopladas à autogestão operária, a
título transitório, como um mal necessário, enquanto:
11o. Uma mentalidade de “sinceridade de troca”, como diz
Proudhon, não se haja desenvolvido nos autogestionários;
21o. Sobretudo, a sociedade passe do estado de penúria para o de
abundância, a partir do qual a concorrência perde a sua razão de ser.
Neste período de transição parece conveniente que a concorrência seja
limitada - como é o caso, hoje em dia, da Iugoslávia - à esfera dos meios de
consumo, onde há, no mínimo, a vantagem de defender os interesses do
consumidor.
Os “comunistas libertários” opor-se-iam a uma economia coletivista de
tipo proudhoniano, fundada Sobre o principio da luta, que apenas
restabeleceria, entre os competidores, a igualdade do ponto de partida, para,
em seguida, os lançar numa batalha, da qual resultariam, necessariamente,
vencedores e vencidos, e em que a troca dos produtos acabaria por se fazer
segundo as leis da oferta e da procura, “o que seria cair, de novo, em plena
concorrência, em pleno mundo burguês”. Esta linguagem assemelha-se à
sustentada, hoje, em relação à experiência iugoslava, por alguns detratores
do mundo comunista. Eles creem dever alimentar contra a autogestão a
hostilidade que lhes inspira a economia de mercado concorrencial, como se
as duas noções fossem, na sua essência e indefinidamente, inseparáveis uma
da outra.
UNIDADE E PLANIFICAÇÃO
Proudhon apercebe-se de que a gestão por associações operárias terá de
ser unitária e centralizada. “O que nós colocamos no lugar da centralização
política ê a centralização econômica”.
Proudhon, todavia, teme uma planificação autoritária (e é por esta razão
que prefere, instintivamente, uma concorrência de inspiração solidarista). O
anarquismo veio, depois, a tornar-se defensor da planificação democrática e
libertária, elaborada, debaixo para cima, pela federação das empresas
autogeridas. Bakunin entrevê as perspectivas de planificação em escala
mundial, que se abrem à autogestão: “As associações cooperativas operárias
constituem um fato novo na história. Assistimos hoje ao seu nascimento e
podemos já pressentir, embora não determinar, o imenso desenvolvimento
que sem dúvida nenhuma elas adquirirão, e as novas condições políticas e
sociais que surgirão no futuro. É possível e mesmo muito provável que,
ultrapassando um dia os limites das comunas, das províncias e dos Estados
atuais, as associações venham a imprimir nova constituição à sociedade
humana, dividida não mais em nações, mas em grupos industriais”. As
associações formarão uma “vasta federação econômica”, com uma
assembleia suprema por cúpula. À luz dos “dados tão amplos, quanto
precisos e minuciosos, de uma estatística mundial”, elas combinarão a
oferta com a procura, para dirigir, determinar e repartir, entre os diferentes
países, a produção da indústria mundial, de modo que não haverá mais, ou
quase nunca, nem crises comerciais ou industriais, nem estagnação forçada,
nem prejuízos ou capitais perdidos.
SOCIALIZAÇÃO INTEGRAL?
A concepção proudhoniana de gestão pelas associações de trabalhadores
comportava uma situação um tanto equívoca, pois não precisava se os
grupos autogestionários continuariam a competir com as empresas
capitalistas, ou seja, como se diz hoje na Argélia, se o setor socialista
coexistia com um setor privado, ou se, pelo contrário, a produção no seu
conjunto seria socializada e autogerida.
Bakunin é coletivista consequente. Apercebe-se claramente dos perigos
de uma coexistência dos dois setores. Os trabalhadores, mesmo associados,
não podem constituir capitais capazes de lutar contra os grandes capitais
burgueses. Além disto, existia o perigo de, no seio das próprias associações
de trabalhadores, surgir “uma nova classe de exploradores do proletariado”,
desenvolvida por contágio do meio capitalista. A autogestão contém em si o
germe da emancipação econômica das massas operárias, mas só poderá
desenvolver realmente todos estes germes quando “os capitais, os
estabelecimentos industriais, as matérias-primas e os instrumentos de
trabalho (...) se tornarem propriedade coletiva das associações operárias
produtoras, tanto industriais como agrícolas, livremente organizadas e
federadas entre si”. “A transformação social só poderá operar-se de forma
radical e definitiva pela ação de meios Sobre o conjunto da sociedade”, ou
seja, por uma revolução social transformadora da propriedade individual e
coletiva. Numa tal organização social, os operários seriam coletivamente os
seus próprios capitalistas, os seus próprios patrões. A propriedade
individual seria restringida “a coisas que serviriam, realmente, para uso
pessoal”.
Enquanto a revolução social não estivesse iniciada, Bakunin, admitindo
que as cooperativas de produção têm a vantagem de habituar os operários a
se organizarem, a dirigirem eles mesmos os seus negócios; admitindo que
elas criam os primeiros germes de uma ação operária coletiva, mas
reconhecendo que têm uma eficácia limitada, Bakunin incita os
trabalhadores “a ocuparem-se menos de cooperativas que de greves”.
SINDICALISMO OPERÁRIO
Também Bakunin valoriza bastante o papel dos sindicatos, “organização
natural das massas”, “único instrumento de guerra verdadeiramente eficaz”,
que os trabalhadores podem empregar contra a burguesia. Para dotar a
classe operária da plena consciência do seu valor, para fazer nascer nela um
pensamento socialista, que corresponda ao seu instinto, e também - para
organizar as forças do proletariado contra o radicalismo burguês, Bakunin
espera muito menos resultados dos ideólogos do que do movimento dos
sindicatos. O futuro pertence, segundo ele, às federações nacional e
internacional das associações operárias.
Nos primeiros congressos da Internacional, o sindicalismo operário não
foi mencionado expressamente. A partir do congresso de Basileia, em 1869,
sob a influência dos anarquistas, o sindicalismo passa para primeiro plano:
Após a abolição do assalariado, os sindicatos constituirão o fulcro da
administração do futuro, e o governo será substituído pelos conselhos das
federações das associações de trabalhadores.
Em 1876, James Guillaume, discípulo de Bakunin, expondo as suas
Ideias sobre organização social, integra o sindicalismo operário na
autogestão. Preconiza a constituição de federações corporativas por ramo de
atividade, unindo-se “não para protegerem o salário dos trabalhadores
contra a rapacidade dos patrões, mas (...) para garantirem o uso mútuo, por
parte de cada um dos grupos, dos instrumentos de trabalho, que se tomarão,
por contrato recíproco, propriedade coletiva das federações”. Estas
federações desempenhariam um papel planificador, segundo as perspectivas
abertas por Bakunin.
E assim se encontra eliminada uma das lacunas da autogestão, tal como
Proudhon a havia concebido: a ligação, que funcionaria entre as diversas
associações de produção e as impediria de gerir os seus assuntos segundo
um espírito egoísta, sem cuidar do interesse geral, ignorando as outras
empresas autogestionárias. O sindicalismo completa o edifício: ele articula
a autogestão, surgindo como instrumento de planificação e de unidade de
produção.
AS COMUNAS
Nos primeiros anos de sua carreira, Proudhon preocupa-se unicamente
com a organização econômica. A sua desconfiança por tudo o que toca “o
político” fá-lo desprezar o problema da administração social. Contenta-se
com afirmar que os trabalhadores devem substituir-se ao Estado, tornar-se
eles mesmos o Estado, embora não concretize sob que forma.
É nos últimos anos da sua vida que Proudhon aborda “a política”, de
baixo para cima, à maneira anarquista. Os homens formam entre si, numa
base local, o que chamou de “grupo natural”, que “se constitui em cidade ou
organização política, afirmando-se, nas suas unidades, independência, vida
ou autonomia”. “Grupos semelhantes, distanciados uns dos outros, podem
ter interesses comuns e, pela associação, formar um grupo superior”. Aqui,
o espectro do Estado assalta o pensador anarquista: “Que jamais os grupos
locais, unindo-se para garantia dos seus interesses e desenvolvimento das
suas riquezas (...), sejam forçados à abdicação por uma espécie de imolação
de si próprios diante deste novo Moloque”.
E Proudhon define, com relativa precisão, a comuna autônoma. Ela é,
na essência, “um ser soberano”. Nesta qualidade, “tem o direito de se
governar, administrar, se atribuir impostos, dispor das suas propriedades,
rendimentos, criar escolas, nomear professores”, etc. Assim especificada a
vida coletiva ou política da comuna, concretiza que ela deve “rejeitar todo o
entrave à sua vida, não reconhecendo outro limite além de o dela própria;
toda a coerção de fora lhe é hostil e mortal”.
Resumindo, a autogestão, para Proudhon, é incompatível com a
existência de um Estado autoritário; a comuna não pode coexistir com o
poder estabelecido ao seu invés: centralizado de cima para baixo. “Nada de
meio termo: a comuna será soberana ou dependente; tudo ou nada; desde o
instante em que ela reconhece uma lei superior (...), que o grande grupo
(...), do qual faz parte, é declarado superior (...), é inevitável que surja uma
contradição, e um conflito se desencadeie. Ora, desde que haja conflito, a
lógica e a força mandam que seja o poder central que resolva o dissídio,
sem discussões, sem julgamento, sem transação, (...) e então o debate entre
o superior e o subalterno é inadmissível, escandaloso, absurdo”.
Bakunin, de maneira mais consequente que Proudhon, íntegra a comuna
na organização da sociedade futura. As associações operárias de produção
deverão ser ligadas livremente ao seio das comunas; e as comunas, por sua
vez, livremente federadas entre si. “A vida e a ação espontâneas, suspensas
durante séculos pela ação, pela absorção todo-poderosa do Estado, serão
devolvidas às comunas pela abdicação do Estado”.
Quais são as ligações entre as comunas e o sindicalismo operário? O
distrito de Courtelary, da Federação jurassiana9, não hesita em declarar, em
1880: “O órgão desta vida local será a Federação das corporações de
ofícios, e é esta federação local que constituirá a futura comuna”. Os
redatores deste texto foram, porém, assediados por uma dúvida: “Reunirá
esta assembleia geral todos os habitantes? Serão estas delegações das
corporações (...) que redigirão o contrato da comuna?” Acabaram por
concluir que os dois sistemas podem ser encarados. A questão de
estabelecer se a prioridade caberá à comuna ou ao sindicato veio, mais
tarde, a ser objeto de dissensões, nomeadamente na Rússia e na Espanha,
pelos anarco-comunistas e anarcossindicalistas.
Para Bakunin, a comuna é o instrumento adequado à expropriação dos
meios de produção. em proveito da autogestão. Em compensação dos bens
confiscados, a comuna daria, numa primeira fase da organização social, o
estritamente necessário a cada um dos indivíduos “expropriados”.
Competir-lhe-ia também estabelecer com a máxima precisão a sua
organização interna. Seria administrada por um conselho constituído por
delegados eleitos e investidos de mandatos imperativos, responsáveis e
revogáveis. O conselho comunal poderá escolher no seu seio as comissões
executivas para cada ramo de administração revolucionária da comuna. Esta
divisão das responsabilidades da administração tem a vantagem de reunir o
maior número de elementos de base na autogestão e de reduzir os
inconvenientes do sistema de representação, em que um pequeno número de
eleitos desempenha todas as funções, enquanto a população continua mais
ou menos passiva ante as assembleias gerais raramente convocadas.
Bakunin advogou, por instinto, a ideia de que os conselhos eleitos devem
constituir “assembleias de trabalho”, umas vezes legislativas, outras
executivas, autêntica “democracia sem parlamentarismo”, como diria mais
tarde Lênin, num dos seus momentos libertários. O distrito de Courtelary,
por sua vez, torna explícita esta concepção: “Para não cairmos nos erros da
administração centralizada e burocrática, pensamos que os interesses gerais
da comuna não devem ser geridos por uma só e única administração local,
mas por diferentes comissões especializadas para cada ramo de atividade
(...). Este procedimento dava à administração da comuna a nota
governamental”.
Um sentido tão lúcido das etapas necessárias ao desenvolvimento
histórico faltaria aos continuadores de Bakunin, que, por volta de 1880,
entabularam polêmica com alguns anarquistas-coletivistas. Criticando o
precedente da Comuna de Paris, em 1871, Kropotkin censurará o povo por
haver aplicado, uma vez mais, no seio da Comuna, “o sistema
representativo, abdicando de sua iniciativa em proveito de uma assembleia
de membros eleitos mais ou menos ao acaso”, e ainda, manifestará
inquietação pelo fato de alguns reformadores “procurarem conservar, a todo
o custo, este sistema de governo por procuração”. Segundo este mestre do
anarquismo, “o regime representativo, sendo o modo de denominação
organizada da burguesia, tende a desaparecer com ela”. “Para a nova fase
econômica, que se anuncia, a sociedade terá de encontrar novas formas de
organização política (...) não baseada em princípios de representação (...) e
de encontrar a sua forma de relações políticas, que deverão ser mais
populares que o governo representativo, (...) mais self-government, mais
governo de si mesmos por si mesmos”.
Esta democracia direta que, levada às suas últimas consequências e que,
tanto no plano de autogestão econômica, como no de administração
territorial, eliminará os últimos vestígios de toda a autoridade, constitui, na
verdade, para qualquer socialista, quer seja “autoritário”, quer libertário, o
ideal a alcançar. A condição necessária será, evidentemente, um estado de
evolução social em que cada trabalhador estará de posse da ciência e da
consciência e, paralelamente, a queda do reino da penúria e a ascensão do
da abundância. Desde 1880 que o distrito de Courtelary anunciava, muito
antes de Lênin: “A prática mais ou menos democrática do sufrágio
universal perderá, irremediavelmente, a sua importância numa sociedade
organizada cientificamente”. Não antes.
UMA PALAVRA LITIGIOSA: O “ESTADO”
O leitor já sabe que os anarquistas se recusam a empregar, mesmo a
título transitório, a palavra Estado. Sobre este ponto, o fosso nem sempre
foi intransponível entre “autoritários” e libertários. Na Primeira
Internacional, os coletivistas, dos quais Bakunin era o porta-voz, admitiam,
como sinônimo da expressão “coletividade social”, a de Estado regenerado,
Estudo revolucionário e novo, ou Estado socialista. Não demorou muito,
porém, que os anarquistas se apercebessem do perigo que residia na
aplicação da mesma palavra que os “autoritários”, dando-lhe um sentido tão
diferente. Assim, deixaram de designar sob o nome de Estado a coletividade
social livre, do futuro.
Os marxistas, ansiosos, por seu turno, de obter o concurso dos
anarquistas, a fim de fazerem triunfar, na Primeira Internacional, o princípio
da propriedade coletiva contra o último bastião dos individualistas
reacionários pós-proudhonianos, aceitaram fazer concessões de
vocabulário. Aceitaram, então, sem alarde, o substituto proposto pelos
anarquistas à palavra Estado, o de Federação ou de solidarização das
comunas. No mesmo espírito, alguns anos mais tarde, Engels, advertindo o
seu amigo e compatriota Augusto Bebel, a propósito do programa de Gotha
da socialdemocracia alemã, propôs-lhe “substituir a expressão Estado por
Gemeinwesen, velho vocábulo alemão, cujo sentido equivale ao da palavra
Commune em francês”.
No congresso de Basileia, em 1869, os anarquistas coletivistas e os
marxistas tinham decidido, em comum acordo, que a propriedade, uma vez
socializada, deveria ser explorada pelas “comunas solidarizadas”. Bakunin
concretizava num discurso: “Voto pela coletivização do solo, em particular,
e, em geral, de toda a riqueza, num sentido de liquidação social. Entendo
por liquidação social a expropriação, por direito, de todos os proprietários
atuais, pela abolição do Estado jurídico e político que constitui a sanção e a
única garantia da propriedade atual. Quanto à organização posterior,
concluo pela solidarização das comunas (...), tão voluntária quanto esta
solidarização implica na organização da sociedade a partir da base”.
COMO GERIR OS SERVIÇOS PÚBLICOS
O compromisso, atrás aludido, entre marxistas e anarquistas, não
dissipou durante muito tempo os equívocos, pois, no mesmo congresso de
Basileia, os delegados socialistas “autoritários” não se dispensaram de
celebrar a gestão econômica da economia através do Estado. Em seguida, o
problema viria a revelar-se mais espinhoso, a propósito da administração
dos grandes serviços públicos, tais como estradas de ferro, serviços de
correio, etc. Três anos depois, no congresso de Haia, em 1872, a cisão
tinha-se consumado, no seio da Primeira Internacional, entre anarquistas e
marxistas. A questão dos serviços públicos não levantou problemas apenas
durante a Primeira Internacional, chamada impropriamente “antiautoritária”
e que sobreviveu à cisão referida. Esta questão voltou a suscitar novos
desacordos entre anarquistas e socialistas mais ou menos estatais que,
dessolidarizando-se com Marx, haviam, contudo, permanecido no seio da
Primeira Internacional.
Tais serviços públicos, pelo fato de serem de interesse nacional, não
deveriam ser geridos somente pelas associações operárias nem somente
pelas comunas. Proudhon tentara resolver, muito antes, esta dificuldade,
“equilibrando” a gestão operária por meio de uma “iniciativa pública”
muito vagamente explícita. Quem administraria, então, os serviços
públicos? A Federação das comunas! - respondiam os libertários. O Estado!
- eram tentados a responder os “autoritários”. No congresso da
Internacional de Bruxelas, em 1874, o socialista belga César de Paepe tenta
uma conciliação entre as duas teses. Os serviços públicos locais ficariam
confiados a uma direção local, nomeada pelos sindicatos operários. Quanto
aos serviços públicos mais extensos, seriam geridos por uma administração
regional, nomeada pela federação das comunas e funcionando sob o
controle de uma câmara regional do trabalho, ou, no caso de grandes
empresas nacionais, pelo “Estado operário”, isto é, pelo “Estado baseado no
agrupamento de comunas operárias livres”. Esta definição, aliás ambígua,
pareceu suspeita aos anarquistas. A seus olhos, a lógica das coisas deveria
fatalmente conduzir o “Estado operário” a um “Estado autoritário”. E se
não se trata apenas de uma questão de palavra, os libertários não viam por
que razão dar à nova sociedade sem governo (sem autoridade, entenda-se) o
nome que tinha servido à organização abolida. Num congresso posterior,
em Berna (1876), Malatesta admitiu que os serviços públicos necessitavam
de uma organização única e centralizada; recusou-se, contudo, a culminar
essa organização por um Estado. Os seus contraditores pareciam, na sua
opinião, confundir Estado com sociedade, “corpo orgânico vivo”. No ano
seguinte (1877), no congresso universal socialista de Gand, César de Paepe
admite que o famoso Estado operário, ou Estado popular, “poderia
efetivamente, durante algum tempo, ser essencialmente um Estado de
assalariados”. Esta fase transitória, imposta pelas circunstâncias, seria
sucedida pela entrega dos instrumentos de trabalho às associações
operárias. Esta perspectiva, tão longínqua quanto problemática, não
convenceu os anarquistas: o Estado jamais devolve aquilo que toma.
FEDERALISMO
Resumindo, a futura sociedade libertária deveria ser dotada de uma
dupla estrutura: a econômica, compreendendo a federação das associações
operárias, e a administrativa, compreendendo a federação das comunas.
Restava como cúpula, ao mesmo tempo que a articular 0 edifício, uma
concepção de superestrutura, suscetível de ser alargada ao mundo inteiro: O
federalismo.
À medida que o pensamento de Proudhon frutifica, a ideia de
federalismo desenvolve-se e prevalece. Uma das suas últimas obras intitula-
se Do Princípio Federativo, de acordo com o qual, no final da sua vida,
Proudhon se declara mais federalista que anarquista. “Não vivemos mais a
idade das pequenas cidades antigas, que, aliás, de tempos a tempos, se
uniram por elos federativos. O problema moderno é o da administração de
grandes países”. “Se a extensão do Estado (observa Proudhon) não
ultrapassasse a de uma cidade ou comuna, admitiria que cada um se
governasse à sua maneira. Mas não esqueçamos que se trata de vastas
aglomerações de territórios, onde as cidades, vilas e aldeias se contam por
milhares”. Nada de fragmentar a sociedade em microcosmos. A unidade é
indispensável.
Os “autoritários”, porém, têm a pretensão de reger estes grupos locais
segundo as leis da “conquista”, “o que (objetava Proudhon), em virtude da
lei da unidade, era absolutamente impossível”. Todos estes grupos (...) são
organismos indestrutíveis (...), que não podem mais separar-se da sua
independência soberana, como um membro da cidade não pode, na sua
qualidade de cidadão, perder as prerrogativas de homem livre (...). Tudo o
que se obteria (...) era o antagonismo irreconciliável entre a soberania geral
e cada uma das soberanias particulares, a elevação da autoridade contra a
autoridade”.
Num tal sistema de “absorção unitária”, as cidades ou grupos naturais
seriam “Condenados a desaparecer no seio da aglomeração superior, que se
poderia considerar artificial”. A centralização, que consiste em “manter na
governação indivisa os grupos que a natureza fez autônomos”, é, “para a
sociedade moderna, a verdadeira tirania”.
Em contrapartida, a unidade, a verdadeira unidade, a centralização, a
verdadeira centralização, seriam indestrutíveis, se uma ligação de direito,
um contrato de mutualidade, um pacto de federação, fossem concluídos
entre as diversas unidades territoriais. “O que faz a centralização de uma
sociedade de homens livres (...) é o contrato. A unidade social (contínua
Proudhon) é o produto da livre adesão dos cidadãos (...). Para que uma
nação se manifeste na sua unidade, é preciso que esta unidade seja
centralizada (...) em todas as suas funções e faculdades e que a
centralização se efetue de baixo para cima, da circunferência para o centro,
que todas as funções sejam independentes e que cada uma se governe por si
mesma”.
O sistema federativo é o oposto da centralização governamental. A
autoridade e a liberdade são dois princípios em luta, condenados a transigir
um com o outro. “A Federação resolve todas as dificuldades levantadas,
pelo acordo entre a autoridade e a liberdade. A Revolução francesa fundou
as premissas de uma nova ordem, da qual a sua herdeira, a classe operária,
possui o segredo. Esta nova ordem reúne todos os povos numa
“confederação de confederações”. A expressão não foi empregada por
acaso: uma confederação universal seria muito vasta; há que federar os
grandes conjuntos parciais. E Proudhon, que gostava de vaticinar, não hesita
em anunciar: “O século 20 abrirá a era das federações”.
Bakunin, quanto ao federalismo, limita-se a desenvolver e aprofundar as
ideias federalistas de Proudhon. Como ele, enaltece a superioridade da
unidade federativa sobre a da unidade “autoritária”: “Logo que desaparecer
o maldito poder do Estado para forçar os indivíduos, as associações, as
comunas, as províncias e as regiões, a viverem em conjunto, estas serão
muito mais estreitamente ligadas, e constituirão uma unidade muito mais
viva, mais real, mais poderosa do que as que hoje são coagidas a constituir,
sob a pressão, para todas igualmente esmagadora, do Estado”. “Os
autoritários confundiram sempre a unidade formal, dogmática e
governamental, com a unidade viva e real, resultante do mais livre
desenvolvimento de todas as individualidades e de todas as coletividades e
da aliança federativa e absolutamente livre (...) das associações nas
comunas e, para além destas, nas regiões e das regiões nas nações”.
Bakunin insiste na necessidade de um intermediário entre a comuna e o
organismo federativo nacional: a província ou região, como federação livre
de comunas autônomas. Não se imagine, porém, que o federalismo conduz
ao isolamento, ao egoísmo. A solidariedade é inseparável da liberdade. “As
comunas, embora absolutamente autônomas, sentem-se (...) solidárias entre
si e, sem nada sacrificarem da sua liberdade, unem-se estreitamente”. No
mundo moderno, necessidades materiais, morais e intelectuais criaram.
entre todas as partes de uma nação e mesmo entre nações diferentes, uma
unidade poderosa e real. E esta unidade sobreviverá aos Estados.
O federalismo, porém, tem constituído uma arma de dois gumes. O
federalismo girondino, por exemplo, foi, durante a Revolução francesa,
contrarrevolucionário. A escola realista de Charles Maurras propugnou pelo
regionalismo. Em certos países, como os Estados Unidos, o caráter federal
das constituições é explorado por alguns, que negam os direitos cívicos aos
homens de cor. Só o socialismo, pensa Bakunin, pode levar um conteúdo
revolucionário ao federalismo. Por esta razão, os partidários espanhóis do
federalismo mostraram-se apáticos ante o federalismo burguês de Pi y
Margall, que se dizia proudhoniano, assim como em relação à sua ala
esquerda - os “cantonalistas” - quando do breve episódio da república
abortada em 187310.
INTERNACIONALISMO
O princípio federalista conduz logicamente ao internacionalismo, isto é,
à organização federativa das nações “na grande e fraternal união
internacional humana”. Também a este propósito, Bakunin desmascara a
utopia burguesa de um federalismo que não proceda de um socialismo
universal e revolucionário. Podemos Considerá-lo um “europeu”, como se
diz hoje. Bakunin apela para a constituição dos Estados Unidos da Europa,
única forma de “tornar impossível a guerra civil entre os diferentes povos
que compõem a família europeia”. Mas toma o cuidado de prevenir contra
toda a federação que agrupe os Estados europeus “tal como eles estão hoje
constituídos”: “Nenhum Estado centralizado, burocrático e militar, mesmo
intitulando-se república, pode, legítima e sinceramente, participar de uma
confederação internacional. (...) A denegação, aberta ou encapotada, da
liberdade interna será uma ameaça permanente contra a existência dos
países vizinhos”. Qualquer aliança com um país reacionário será uma
“traição à Revolução”. Os Estados Unidos da Europa, a princípio, e, mais
tarde, os do mundo inteiro11 só poderão ser constituídos quando a
organização antiga, fundada de cima para baixo e baseada na violência e no
princípio da autoridade, estiver completamente banida.
O verdadeiro internacionalismo12 repousa sobre o princípio de
autodeterminação e tem como corolário o direito de secessão. “Todo o
indivíduo (proclama Bakunin depois de Proudhon), toda a associação, toda
a comuna, província, região, ou nação tem o direito absoluto de se associar
ou de não se associar, de se aliar com quem quiser ou de romper as suas
alianças, sem o menor respeito pelos chamados direitos históricos nem
pelas conveniências dos países vizinhos”. “O direito à livre reunião e à
secessão igualmente livre é o primeiro e o mais importante de todos os
direitos políticos, sem o qual a confederação seria uma centralização
mascarada”.
Este princípio, porém, não significa, para os anarquistas, qualquer
inspiração secionista ou isolacionista. Pelo contrário, eles têm a convicção
de que, “uma vez reconhecido o direito de separação. esta se tornará
impossível, porque as unidades nacionais cessam de ser produto da
violência e da mentira históricas e serão formadas livremente”. Só, então, as
nações se tornarão “verdadeiramente fortes, fecundas e indissolúveis”.
Mais tarde, Lênin e, de acordo com ele, os primeiros congressos da
Terceira Internacional atribuíram a Bakunin esta concepção, da qual os
bolchevistas extrairiam a base da sua política das nacionalidades e da sua
estratégia anticolonialista, base que veio a ser desmentida em proveito de
uma centralização autoritária e de um colonialismo camuflado.
DESCOLONIZAÇÃO
O federalismo, por uma dedução lógica dos seus fundadores, conduziu à
antecipação profética do problema da descolonização. Distinguindo a
unidade “conquistada” da unidade “racional”, Proudhon apercebe-se de que
“todo o organismo que ultrapassa os seus justos limites e tende a invadir ou
anexar outros organismos perde em força o que ganha em extensão e
caminha para a sua dissolução”.
“Quando uma cidade (leia-se uma nação) estabelece, junto a ela ou a
alguma distância, sucursais ou colônias, cedo ou tarde estas colônias ou
sucursais se transformam em novas cidades, que apenas conservarão com a
cidade-mãe uma ligação de federação, ou possivelmente não manterão
ligação alguma (...)”.
“Quando uma nova cidade está em condições de se manter, ela
proclama a sua independência: com que direito a cidade-mãe a trata de
vassala e a explora?”
“Foi assim que nos nossos dias os Estados Unidos se separaram da
Inglaterra; que o Canadá igualmente se separou, pelo menos de fato, senão
ainda de uma maneira oficial; que a Austrália, já em vias de separação,
dispõe do consentimento e da inteira satisfação da mãe-pátria; é assim que,
hoje ou mais tarde, a Argélia se constituirá numa França africana, a menos
que, por abomináveis intuitos, persistamos em mantê-la pela força da
miséria no estado de anexação”.
Bakunin, por sua vez, também se pronunciou Sobre os países
subdesenvolvidos. Duvida que a Europa imperialista possa “manter na
servidão oitocentos milhões de asiáticos”. “O Oriente, dois terços da
humanidade adormecidos, será impelido a despertar e a pôr-se em
movimento. Mas em que direção?”
Proclama Bakunin as suas “mais calorosas simpatias por toda a
insurreição nacional contra qualquer opressão”. Propõe aos povos
oprimidos o exemplo fascinante do povo espanhol sublevado contra
Napoleão, que, malgrado a desproporção entre os guerrilheiros autóctones e
as tropas imperiais, não foi dominado pelos ocupantes e acabou por
expulsar os franceses de Espanha.
“Cada povo tem o direito de ser ele mesmo, e ninguém tem o direito de
lhe impor seus costumes, seus hábitos, sua língua, suas opiniões e leis”.
Também a este propósito, Bakunin afirma que não há verdadeiro
federalismo sem socialismo. Deseja que a libertação nacional se realize “no
interesse político e econômico das massas populares”, e “não com a
intenção de fundar um Estado poderoso”. Toda a revolução de
independência nacional, que se articule fora do povo, “terá de se apoiar
numa classe privilegiada (...), acabando fatalmente contra o povo”, e será,
por consequência, “um movimento retrógrado, funesto,
contrarrevolucionário”.
Será lamentável que as antigas colônias se libertem do jugo exterior
para caírem sob um jugo autóctone, político e religioso. O que é preciso
fazer para os emancipar “é destruir nas suas massas populares a fé em
qualquer autoridade, seja divina ou humana”. A questão nacional esbate-se
historicamente ante a questão social. 0 sucesso de uma revolução nacional
isolada é impossível. A revolução nacional torna-se necessariamente uma
revolução mundial.
Para além da descolonização, Bakunin antevia uma federação
internacionalismo13 particularmente extensiva aos povos revolucionários:
“O futuro pertence, em primeiro lugar, à internacionalidade europeia-
americana. Mais tarde, muito mais tarde, esta grande nação se confundirá
organicamente com a aglomeração asiática e africana”.
Ao termo da análise deste mestre, salvadas as devidas proporções,
encontramo-nos situados em pleno século 20.
TERCEIRA PARTE
O ANARQUISMO NA PRÁTICA
REVOLUCIONÁRIA
CAPÍTULO I
DE 1880 A 1914
O ANARQUISMO ISOLA-SE DO MOVIMENTO PROLETÁRIO
Falta-nos agora encarar o anarquismo na ação. E, deste modo, entramos
no século 20. Embora não queiramos com isto dizer que a ideia libertária
estivesse inteiramente ausente das revoluções do século 19, não há dúvida
que ela mal chegou a desempenhar o seu papel. Antes mesmo que a ação
eclodisse, Proudhon havia tomado o partido contrário à revolução de 1848.
Reprovava-lhe o caráter de revolução política, de armadilha burguesa, o
que, em certa medida, era exato. Censurava-lhe, também, o fato de surgir de
maneira inoportuna, adotando os velhos meios de barricadas nas ruas,
enquanto que ele sonhava com a vitória da sua panaceia: o coletivismo
mutualista. Quanto à Comuna, se ela rompeu espontaneamente com o
“centralismo estatal tradicional”, foi o fruto, como observa Henry Lefebre,
de “um acordo”, de uma espécie de “frente comum” entre proudhonianos e
bakuninistas, de um lado, e de jacobinistas e blanquistas, do outro. Ela
constituiu uma “negação audaciosa do Estado”, embora os anarquistas
internacionalistas, segundo a opinião de Bakunin, formassem apenas “uma
ínfima minoria”.
Todavia, o anarquismo conseguira, graças à influência de Bakunin,
participar de um movimento de massas, de caráter proletário, apolítico e
internacionalista: A “Primeira Internacional”. À volta de 1880, porém, o
anarquismo mete-se a ridicularizar a “tímida Internacional dos primeiros
tempos” e pretende fazê-la substituir, segundo a expressão empregada por
Malatesta em 1884, por “uma Internacional temida”, que fosse, ao mesmo
tempo, comunista, anarquista, anti-religiosa, revolucionária e
antiparlamentar. Esta atitude teve como consequência o isolamento do
anarquismo dos movimentos proletários e, por redundância, a estiolação e
desgaste no sectarismo e num ativismo minoritário.
Uma das razões deste fato reside no desenvolvimento industrial e na
rápida conquista de direitos políticos, que tornaram os trabalhadores mais
receptivos ao reformismo parlamentar. Daqui, o açambarcamento do
movimento operário pela socialdemocracia, politicista, eleitoralista e
reformista, visando, não a revolução social, mas a conquista legal do Estado
burguês e a satisfação de reivindicações imediatas.
Permanecendo uma fraca minoria, os anarquistas renunciaram à ideia de
militar no seio de vastos movimentos populares. Sob a capa de pureza
doutrinal - de uma doutrina em que a utopia, como arranjo de antecipações
prematuras e de evocações nostálgicas do passado, tomava grande vulto -
Kropotkin, Malatesta e os seus amigos voltaram as costas à via aberta por
Bakunin. Acusaram a literatura anarquista e o próprio Bakunin de estarem
“impregnados de marxismo”. Encouraçaram-se, então, neles mesmos. E
organizaram pequenos grupos clandestinos de ação direta, onde, aliás, a
polícia em breve introduziu seus agentes.
Foi, assim, a partir de 1876, após a retirada e pouco depois da morte de
Bakunin, que o vírus quimérico e aventureirista penetrou no anarquismo. O
congresso de Berna lança o estribilho da “propaganda através da ação”. A
primeira lição seria ministrada por Cafiero e Malatesta. A 5 de abril de
1877, sob a sua direção, uma trintena de militantes armados surgiram nas
montanhas da província italiana de Benevento, queimaram os arquivos de
um município, distribuíram pelos pobres o montante encontrado na
tesouraria, enfim, tentaram aplicar um “comunismo libertário” em
miniatura e infantil. Acabaram deixando-se capturar nas montanhas,
transidos de frio e fome. Três anos mais tarde, a 25 de dezembro de 1880,
Kropotkin brada no seu jornal, Le Révolté: “A revolta permanente pela
palavra falada e escrita, pelo punhal, pelo fuzil, pela dinamite (...), tudo o
que não pertença à legalidade, é bom para nós”. Da “propaganda pela ação”
aos atentados individuais, vai um passo, que foi dado rapidamente.
Se a defecção das massas operárias tinha constituído uma das causas do
recurso ao terrorismo, não há dúvida que a “propaganda pela ação”
contribuiu para o despertar das massas mergulhadas numa letargia ignóbil.
Como sustenta Robert Louzon, num artigo em La Révoluzíon Proletaríenne
(novembro de 1937), esta tática foi um alerta, que despertou O proletariado
francês do estado de prostração em que o haviam mergulhado os massacres
da Comuna (...), o prelúdio da fundação da CGT e do movimento sindical
de massas dos anos l900-l910”. Afirmação algo otimista, que retifica ou
completa14 o testemunho de Fernand Pelloutier, jovem anarquista que aderiu
ao sindicalismo revolucionário: para ele, o emprego da dinamite afastou os
trabalhadores desiludidos do socialismo parlamentar e que fariam profissão
de fé do socialismo libertário; nenhum deles ousava intitular-se anarquista
por temer parecer optar pela revolta isolada, em prejuízo da ação coletiva.
A combinação da bomba com as utopias kropotkinianas prodigalizaram
aos socialdemocratas as armas que viriam a ser usadas contra os
anarquistas.
OS SOCIALDEMOCRATAS VITUPERAM OS ANARQUISTAS
Durante longos anos, o movimento proletário socialista dividiu-se em
duas facções irreconciliáveis: enquanto o anarquismo oscilava entre o
terrorismo e a apatia da espera do milênio, um movimento político,
arvorando-se cada vez mais fraudulentamente em marxista, afundava-se nas
areias movediças do “cretinismo parlamentar”. Como recorda mais tarde o
anarcossindicalista Pierre Monatte, “O espírito revolucionário em França
morre (...) de ano para ano. O revolucionarismo de Guesde (...) é
simplesmente verbal, ou, ainda pior, meramente eleitoralista e parlamentar;
o revolucionarismo de Jaurès acentua-se mais ainda francamente ministerial
e governamental”. Em França, o divórcio entre anarquistas e socialistas foi
consumado logo que, no Congresso de Havre, em 1880, o partido
trabalhista nascente se lançou numa ação eleitoral.
Em 1889, os socialdemocratas de vários países decidiram, em Paris,
ressuscitar, após um longo eclipse, a prática de congressos internacionais, o
que deu voz à Segunda Internacional. Alguns anarquistas entenderam dever
participar nesta reunião. A sua presença ocasionou violentos incidentes, e
os socialdemocratas, possuindo a força do número, sufocaram toda a
contradição levantada pelos seus adversários. No congresso de Bruxelas,
em 1891, os libertários foram expulsos, no meio de grandes vaias. Desta
vez, grande parte dos delegados ingleses, holandeses e italianos, todos
reformistas, retiraram-se em protesto. No congresso seguinte, em Zurique
(1893), os socialdemocratas pretenderam não admitir, para futuro, outras
organizações sindicais, que não fossem socialistas e reconhecessem a
necessidade da “ação política”, isto é, da Conquista do poder burguês pelo
voto.
No congresso de Londres, em 1896, alguns anarquistas franceses e
italianos contornaram esta condição eliminatória, fazendo-se delegar por
sindicatos. Isto constitui, aliás, uma tática de atuação: Os anarquistas
vinham, como veremos mais adiante, a reencontrar o caminho realista,
Situando-se dentro do movimento sindical. Mas, quando o anarquista Paul
Delesalle experimentou subir à tribuna. no referido congresso, foi lançado
violentamente pelas escadas abaixo e ferido. Jaurès acusa os anarquistas de
transformarem os sindicatos em agrupamentos revolucionários e
anarquistas, de os desorganizarem, como estavam desorganizando o
congresso, “em proveito da reação burguesa”.
Os chefes da socialdemocracia alemã, eleitoralistas inveterados, como
Wilhelm Liebknecht e August Bebel, mostraram-se, como haviam já feito
durante a Primeira Internacional, os mais encarniçados opositores dos
anarquistas. Secundados por Mme. Aveling, filha de Karl Marx, que tratava
os libertários de “loucos”, conseguiram conduzir a assembleia à sua
maneira, fazendo aprovar uma resolução que excluía dos congressos futuros
os “antiparlamentaristas”, qualquer que fosse o título com que eles se
apresentassem.
Mais tarde, em O Estado e a Revolução, Lênin,estendendo-lhes um
bouquet onde os espinhos se misturam com as flores, dará razão aos
anarquistas contra os socialdemocratas. Reprovou a estes últimos o terem
“abandonado aos anarquistas o monopólio da crítica ao parlamentarismo” e
de terem “qualificado esta crítica de anarquista”. Nada surpreenderia que o
proletariado dos países parlamentares, descoroçoados de tais socialistas,
dedicassem cada vez mais simpatias ao anarquismo. Os socialdemocratas
taxaram de anarquia toda e qualquer tentativa de quebrar as raízes do
Estado burguês. Os anarquistas denunciaram, “com justiça, o caráter
oportunista das ideias sobre o Estado professadas pela maior parte dos
partidos socialistas”.
Marx, ainda segundo Lênin, concorda com Proudhon no que ambos
representam “para a demolição da máquina do Estado”. “Esta analogia entre
marxismo e 0 anarquismo de Proudhon e o de Bakunin, não é vista pelos
oportunistas”. Os sociais democratas empenharam-se numa discussão com
os anarquistas de um modo “não marxista”. A sua crítica ao anarquismo
reduz-se a esta pura banalidade burguesa: “Nós admitimos o Estado, os
anarquistas não!” Também os anarquistas estavam em boa posição de
ripostar a esta social democracia que faltava ao seu dever, que era o de fazer
a educação revolucionária dos trabalhadores. Lênin prossegue, acusando
uma brochura antianarquista do socialdemocrata russo Plekhanov, de
“muito injusta para os anarquistas”, “sofística”, “eivada de raciocínios
grosseiros, tendentes a insinuar que nada distingue um anarquista de um
bandido”.
OS ANARQUISTAS NOS SINDICATOS
Por volta de 1890, os anarquistas encontravam-se num grande impasse.
Isolados do mundo proletário, monopolizado pelos socialdemocratas, os
anarquistas ingurgitavam-se em pequenas capelas e barricavam-se nas suas
torres de marfim, para aí recalcitrarem numa ideologia cada vez mais
afastada da realidade. Outras vezes, entregavam-se à prática de atentados
individuais, deixando-se prender nas engrenagens da repressão e das
represálias.
Kropotkin foi um dos primeiros a ter o mérito de fazer o seu meu culpa
e de reconhecer a esterilidade da “propaganda pela ação isolada”. Numa
série de artigos em 1890, afirma: “É preciso é estar com o povo, o qual não
pede mais atos isolados, mas sim homens de ação nas suas fileiras”. Põe-se,
também, em guarda contra a “ilusão de que se podem vencer as coligações
de exploradores com alguns livros explosivos”. Propugna pelo retorno ao
sindicalismo de massas, de que a Primeira Internacional havia sido o
embrião e a propagadora: “Uniões-monstro, englobando milhões de
proletários”.
Para separar as massas operarias dos pretensos socialistas, que as
menosprezavam, o dever dos anarquistas residia em penetrar nos sindicatos.
Num artigo publicado em 1895, num hebdomadário anarquista, Les Temps
Nouveaux, sob O título “O anarquismo e os sindicatos operários”, Fernand
Pelloutier expôs a nova tática. O anarquismo poderia perfeitamente passar
da tática da dinamite a um contato com as massas, propagar num vasto
meio as ideias anarquistas e arrancar o movimento sindicalista ao
corporativismo estreito em que se afundara. O sindicato devia constituir
“uma escola prática de anarquismo”. Laboratório de lutas econômicas,
alheio às competições eleitorais, administrando-se anarquicamente, não
seria o sindicato a organização revolucionaria e libertaria que, por si só,
poderia neutralizar e destruir a ação nefasta dos políticos sociais
democratas? Com esta ótica, Pelloutier afeta os sindicatos operários à
sociedade “comunista libertaria”, que continuaria sendo o objetivo último
dos anarquistas: “no dia em que eclodir a revolução (interroga-se), uma
organização quase libertaria não estará pronta a suceder à organização atual,
suprimindo de fato todo o poder político, e na qual cada parte, detentora dos
instrumentos de produção, regulara todos os seus assuntos, soberanamente e
por livre consentimento dos seus membros?”
Pierre Monatte declara, mais tarde, no congresso anarquista mundial de
1907: “O sindicalismo (...) abre ao anarquismo, que durante muito tempo
viveu isolado, perspectivas e esperanças novas”. Por um lado, “o
sindicalismo (...) lembrou ao anarquismo o sentimento das suas origens
proletárias; mas também os anarquistas contribuíram em muito para o
movimento operário enveredar pela via revolucionária e para a
popularização da ideia de ação direta”. Neste mesmo congresso, foi
adotada, depois de intensa polêmica. uma resolução de síntese, que abria
pela seguinte declaração de princípios: “O congresso anarquista mundial
considera os sindicatos simultaneamente como organizações de combate na
luta de classes, em vista de melhoria de condições de trabalho, e como
uniões de produtores em vista de servir à transformação da sociedade
capitalista na sociedade comunista-anarquista”.
Os anarquistas-sindicalistas esforçavam-se, não sem dificuldade, para
encaminhar o conjunto do movimento libertário nesta nova via escolhida.
Os “puristas” do anarquismo nutriam, a respeito do movimento sindical,
uma irreprimível desconfiança. Acusavam-no de ter os pés demasiado sobre
a terra, de se comprazerem em integrar a sociedade capitalista e de se
baterem pelas reivindicações imediatas. Contestavam-lhe a pretensão de
resolver sozinho o problema social. No congresso de 1907, Malatesta,
replicando a Monatte, argumenta que o movimento operário era um meio e
não um fim para os anarquistas: “o sindicalismo é, e jamais deixará de ser,
um movimento legalista e conservador, sem outro objetivo acessível, além
da melhoria de condições de trabalho”. Ficando míope pela prossecução de
vantagens imediatas, o movimento sindical desviou os trabalhadores da luta
final: “Não se trata de incitar os trabalhadores a que deixem o trabalho, mas
antes a que o continuem por sua conta”. Por fim, Malatesta adotava uma
atitude de prevenção contra o conservadorismo dos burocratas sindicalistas:
“O funcionalismo, dentro do movimento proletário, é um perigo só
comparável ao do parlamentarismo. O anarquista que aceita ser funcionário
permanente e assalariado de um sindicato está perdido para o anarquismo”.
Monatte replicava que o movimento sindical, como toda a obra humana,
não era, certamente, despida de imperfeições: “Longe de as esconder,
parece-me útil tê-las bem presentes no espírito, a fim de reagir contra elas.”
Admitia que o funcionalismo sindical inspirasse sérias críticas, muitas
vezes justificadas. Mas protestava contra a acusação de que sacrificava o
anarquismo e a revolução ao sindicalismo: “Como para todo o mundo, a
anarquia é o nosso objetivo final. Apenas porque os tempos mudaram, nós
mudamos, também, a nossa concepção do movimento e da revolução (...).
Se, em vez de criticarem os vícios passados, presentes ou mesmo futuros do
sindicalismo, os anarquistas se unissem mais intimamente na ação, os
perigos que o sindicalismo pode encobrir seriam totalmente neutralizados”.
A ira dos sectários do anarquismo não era absolutamente sem
fundamento. O tipo de sindicatos por eles atacado pertencia já, porém, a
uma era passada: eram os pura e simplesmente corporativos, rebocados
pelos políticos sociais democratas e que tinham proliferado em França
durante os longos anos de perseguição contra a Comuna. Em sentido
contrário, o sindicalismo da luta de classes, regenerado pela penetração dos
anarcossindicalistas, apresentava, para os anarquistas “puros”, um
inconveniente inverso: O de pretender segregar sua ideologia própria e o de
“bastar-se a si mesmo”. O seu porta-voz mais contundente, Emile Pouget,
proclamava: “A supremacia do sindicato sobre os outros modos de coesão
dos indivíduos reside no fato de a obra de melhorias parciais e, a mais
decisiva, a de transformações sociais serem conduzidas pelo sindicato no
mesmo plano de igualdade. E é precisamente porque o sindicato responde a
esta dupla tendência (...), sem sacrificar o presente ao futuro, nem este ao
presente, que se erige como o agrupamento social por excelência”.
O cuidado do novo movimento sindicalista em afirmar e preservar a sua
independência, proclamada numa célebre Carta do Congresso da CGT, em
Amiens (1906), era menos dirigido contra os anarquistas, que inspirado pela
preocupação de rejeitar a tutela da democracia burguesa e do seu
prolongamento no movimento proletário: a socialdemocracia. Além disto, a
independência era motivada, acessoriamente, pela vontade de preservar a
coesão do movimento sindical, face a uma proliferação de seitas políticas
rivais, como se verificara em França, quando da “unidade socialista”. Da
obra de Proudhon, De la capacíté politique das classes ouvríères, que era a
sua bíblia, os sindicalistas revolucionários guardaram, nomeadamente, a
ideia de “separação”: constituindo uma classe distinta, o proletariado tinha
de recusar todo o apoio da classe adversa.
Certos anarquistas, porém, ofuscados pelas pretensões do sindicalismo
operário, passaram a acolitá-lo, o que Malatesta acusava de ameaçar o
anarquismo na sua própria existência. Jean Grave, por sua vez, dizia: “O
sindicalismo pode - e deve - bastar-se a si mesmo, na luta contra a
exploração patronal, mas não pode manter a pretensão de resolver sozinho o
problema social”.
A despeito destas recriminações, e graças ao fermento revolucionário
que nele depositaram os anarquistas convertidos ao sindicalismo, o
movimento sindical em França, como noutros países latinos, tornou-se, nos
anos que precederam a Grande Guerra, uma força que pesava no esquema
político, não somente da burguesia, dos governos, mas também dos
políticos sociais-democratas, a quem, a partir de então, escapara, numa
larga medida, o controle do movimento operário. O filósofo Georges Sorel
considerava a entrada dos anarquistas nos sindicatos como um dos maiores
acontecimentos do seu tempo. A doutrina anarquista diluía-se no
movimento das massas, para se reencontrar sob novas formas e se
retemperar.
O movimento libertário deveria continuar impregnado da fusão operada
entre a ideia anarquista e a ideia sindicalista. A CGT francesa, até 1914, foi
o produto efêmero desta síntese. Mas o seu fruto mais realizado e durável
viria a ser a CNT espanhola (Confederación Nacional del Trabajo), fundada
em 1910, quando da desagregação do partido radical do político Alexandre
Lerroux. Um dos coriféus do anarcossindicalismo espanhol, Diego Abad de
Santillan, não deixou de prestar homenagem a Fernand Pelloutier, a Emile
Pouget e a outros anarquistas, que compreenderam a necessidade de fazer
frutificar as suas ideias, em primeiro lugar, nas organizações econômicas do
proletariado.
CAPÍTULO II
O ANARQUISMO NA REVOLUÇÃO RUSSA
O anarquismo, depois de haver descoberto uma segunda fonte de
inspiração no sindicalismo revolucionário, encontrou uma terceira na
Revolução russa. Esta afirmação pode, à primeira vista, surpreender o leitor
habituado a considerar a grande mutação revolucionária de Outubro de
1917 como obra e apanágio exclusivo dos bolchevistas. Na realidade, a
Revolução Russa iniciou-se por um vasto movimento de massas, uma onda
de base popular que submergiu as formações ideológicas. Não pertenceu a
ninguém, senão ao povo. Na medida em que esta revolução foi autêntica,
impulsionada de baixo para cima, produzindo espontaneamente órgãos de
democracia direta, apresentou todas as características de uma revolução
social de tendências libertárias. Todavia, a relativa fraqueza dos socialistas
libertários russos impediu-os de explorar as condições excepcionalmente
favoráveis à vitória das suas ideias.
A Revolução foi, por fim, confiscada e desnaturada pela mestria, dirão
uns, astúcia, dirão outros, da equipe de revolucionários profissionais
agrupados à volta de Lênin. Mas esta derrota para o anarquismo e para a
autêntica revolução popular não foi inteiramente estéril para as ideias
libertarias. Para começar, a apropriação coletiva dos meios de produção foi
realizada, o que permitirá, um dia, que o socialismo de baixo para cima
venha a prevalecer sobre o capitalismo de Estado; depois, a experiência da
URSS proporcionou aos anarquistas russos e de outros países a
possibilidade de extrair lições complexas de um temporário fracasso - lições
das quais o próprio Lênin parecia ter tomado consciência pouco antes de
falecer - e a possibilidade de reformular os problemas da revolução e do
anarquismo no seu conjunto. Segundo a expressão de Kropotkin, retomada
por Volin, a Revolução ter-lhes-ia ensinado, se necessário fosse, como não
se deve fazer uma revolução. Longe de provar a impraticabilidade do
socialismo libertário, a experiência Soviética, em larga medida, confirmou o
contrário, a precisão profética dos pontos de vista expressos pelos
fundadores do anarquismo e, nomeadamente, da sua crítica ao socialismo
“autoritário”.
UMA REVOLUÇÄO LIBERTÁRIA
O ponto de partida da Revolução de 1917 tinha sido a de 1905, durante
a qual surgiram órgãos revolucionários de um novo tipo: os sovietes.
Nasceram nas fábricas de São Petersburgo, por ocasião de uma greve geral
espontânea. Em vista da ausência quase completa de um movimento
sindical e de uma tradição sindicalista, os sovietes preencheram uma lacuna
e coordenaram a luta das fábricas em greve. O anarquista Volin pertenceu
ao primeiro grupo que, em ligação com os operários, teve a ideias de criar o
primeiro soviete. 0 seu testemunho coincide com o de Trotsky que, alguns
anos mais tarde, veio a ser presidente do Soviete, e que, sem nenhuma
intenção pejorativa, antes pelo contrário, escreve, nas suas impressões sobre
1905: “A atividade do soviete significa a organização da anarquia. A sua
existência e o seu desenvolvimento ulteriores traduziam a consolidação da
anarquia”.
Esta experiência se gravou indelevelmente na consciência operária, e
quando eclodiu a Revolução de Fevereiro de 1917, os dirigentes
revolucionários não tiveram nada a inventar. Os trabalhadores apoderaram-
se espontaneamente das fábricas. Os sovietes ressurgiram naturalmente.
Uma vez mais tomaram de surpresa os profissionais da Revolução. Como
reconheceu o próprio Lênin, as massas operárias e campesinas eram “cem
vezes mais esquerdistas” que os bolchevistas. Os sovietes gozavam de um
prestígio tão difundido, que a insurreição de Outubro só poderia ser
desencadeada em seu nome e com o seu apelo. Mas a despeito do seu élan,
careciam de homogeneidade, de experiência revolucionária e de preparação
ideológica.
Assim, constituíam uma presa fácil para os partidos políticos com ideias
revolucionárias vacilantes. O partido bolchevista, apesar de organização
minoritária, constituía a única força revolucionária realmente organizada e
dinamizada por objetivos definidos. Não tinha quase rivais no campo das
forças socialistas, quer no plano político, quer no sindical. Dispunha, por
outro lado, de quadros de primeira ordem e desenvolvia “uma atividade
frenética, febril, impressionante”, como admitiu Volin.
Todavia, o aparelho do Partido - no qual Stálin era, na época, figura
modesta - encarava os Sovietes com certa desconfiança, pela concorrência
que lhe faziam. Imediatamente a seguir à tomada do poder, a tendência
espontânea e irresistível à socialização da produção foi, a princípio,
canalizada através do controle operário. 0 decreto de 14 de novembro de
1917 legalizou a ingerência dos trabalhadores na direção das empresas e no
cálculo de custos, aboliu o segredo comercial e obrigou os patrões a mostrar
a sua escrita.
“As intenções dos dirigentes da Revolução não eram as de ir mais além”
- informa Victor Serge. Em abril de 1918, “ainda admitiam a possibilidade
(...) da formação de sociedades mistas por ações, nas quais tivesse
participação, com o Estado soviético, o capital russo e estrangeiro”. “A
iniciativa das medidas de expropriação pertenceu às massas, e não ao
poder”.
A 20 de outubro de 1917, no primeiro congresso dos conselhos de
fábrica, apresentou-se uma moção de acentuada inspiração anarquista, que
reclamava: “O controle da produção e as comissões de controle não devem
ser apenas comissões de verificação, mas também (...) as células do futuro,
que preparam, desde já, a transferência da produção para as mãos dos
trabalhadores”. Nesta altura, A. Pankratova observa: “Estas tendências
anarquistas afirmam-se com tanto maior facilidade e êxito, quanto maior
resistência os capitalistas opuserem à aplicação do decreto sobre o controle
operário e continuarem a recusar a ingerência dos trabalhadores na
produção”.
O controle operário, com efeito, revelou-se, em breve, uma medida
tíbia, inoperante e deficiente. Os empregadores sabotavam, subtraíam os
estoques e as ferramentas, provocavam os operários e despediam-nos; por
vezes, serviam-se dos comitês de fábrica como simples agentes ou
auxiliares da administração, e houve muitos patrões que trataram de fazer
nacionalizar o seu estabelecimento por se beneficiarem com o fato. Como
resposta a estas manobras, os trabalhadores apoderavam-se das fábricas e
punham-nas a funcionar por sua própria conta. Nas suas moções,
proclamavam: “Não afastaremos os industriais, mas tomaremos conta da
produção, se eles não quiserem assegurar o funcionamento das fábricas”.
Pankratova acrescenta que, neste primeiro período de socialização “caótica”
e “primitiva”, os conselhos de fábrica “apossaram-se frequentemente da
direção das fábricas cujos proprietários haviam sido eliminados ou tinham
preferido fugir”.
Em breve, o controle operário se esfumou diante da socialização. Lênin
obrigou, literalmente, os seus lugares tenentes a se lançarem “no cadinho da
viva criação popular”, usando uma linguagem autenticamente libertária. A
base da reconstrução revolucionária devia ser a autogestão, e só esta podia
suscitar nas massas o entusiasmo revolucionário capaz de tornar possível o
impossível. Quando o mais insignificante servente, o mais irremediável
desempregado, ou a mais humilde cozinheira virem as fábricas, a terra e a
administração confiadas às associações de operários, empregados,
funcionários, camponeses, e constituídas as comissões de reabastecimento,
etc., criadas espontaneamente pelo povo... “Quando os pobres virem e
sentirem tudo isto, nenhum força poderá vencer a revolução social”. O
futuro pertencia, como vemos, a uma república do tipo da Comuna de 1871,
a uma república de Sovietes.
“Com o objetivo de impressionar as massas, de obter a sua confiança, o
partido bolchevista começou por lançar palavras de ordem, que, até então,
caracterizavam o anarquismo”, avisa-nos Volin. Slogans como o de Todo o
poder aos Sovietes! eram imediatamente compreendidos pelas massas no
seu sentido libertário. Assim, testemunha Archinoff, “os trabalhadores
interpretaram o poder soviético como a liberdade de dispor do seu próprio
destino social e econômico”. No 31o. congresso dos Sovietes (princípios de
1918), Lênin asseverou: “As ideias anarquistas revestem agora formas
vivas”. Pouco depois, no 71o. Congresso do Partido (6 a 8 de março do
mesmo ano), Lênin fazia adotar teses que, entre outras coisas, tratavam da
socialização, da produção administrada pelas organizações de trabalhadores
(sindicatos, comitês de fábrica, etc.), da eliminação de funcionários
profissionais, da polícia e do exército, da igualdade de salários e soldos, da
participação de todos os membros dos sovietes na gestão e administração do
Estado, bem como da supressão completa e progressiva do referido Estado
e da moeda. No congresso dos Sindicatos (primavera de 1918), Lênin
descreveu as fábricas como “comunas autogeridas de produtores e
consumidores”. O anarcossindicalista Maximoff chegou a declarar: “Os
bolchevistas não somente abandonaram a teoria do enfraquecimento
gradual do Estado como também a ideologia marxista no seu conjunto.
Tornaram- se uma espécie de anarquistas”.
UMA REVOLUÇÃO “AUTORITÁRIA”
Mas este audacioso alinhamento com o instinto e a disposição
revolucionários das massas, se logrou colocar os bolchevistas na direção da
Revolução, não correspondia nem à sua ideologia tradicional nem às suas
verdadeiras intenções. Desde sempre, foram “autoritários”, entusiastas das
ideias de Estado, de ditadura, de centralização, de partido dirigente, de
gestão da economia a partir de cima, e uma série de coisas em contradição
com a concepção realmente libertária da democracia soviética.
O Estado e a Revolução, escrito às vésperas da insurreição de Outubro,
é um espelho onde se reflete a ambivalência do pensamento de Lênin.
Algumas páginas poderiam ser assinadas por um libertário e, como vimos
atrás, nessa obra, é prestada homenagem, pelo menos parcialmente, aos
anarquistas. Porém, este apelo à revolução pela base se desdobra numa
defesa em favor da revolução pela cúpula. As concepções de Estado,
centralização e hierarquia, não estão insinuadas de forma dissimulada; pelo
contrário, estão francamente expostas: O Estado sobreviverá à conquista do
poder pelo proletariado e só desaparecerá após um período transitório.
Quanto tempo durará esse purgatório? Lênin não nos oculta a verdade, diz-
no-la sem pena e, parece, com alívio: o processo será “lento” e de “longa
duração”. O que a Revolução parturejará, sob a aparência do poder dos
sovietes, será “o Estado proletário” ou “a ditadura do proletariado”, “o
Estado burguês sem burguesia”, como admite o próprio autor quando se
aprofunda no seu pensamento. Tal Estado omnívoro tem por certo a
intenção de tudo absorver.
Lênin segue a escola sua contemporânea, o capitalismo de Estado
alemão, a Kriegwirtschaft (economia de guerra). A organização da grande
indústria moderna, com sua “disciplina de ferro”, constitui outro dos seus
modelos. Diante de um monopólio estatal como o dos correios, Lênin
declara, entusiasmado: “Que mecanismo admiravelmente aperfeiçoado!
Toda a vida econômica organizada como os Correios (...), eis o Estado, eis a
vida econômica de que necessitamos? Querer prescindir da “autoridade” e
da “Subordinação” não é mais do que um “sonho anarquista”, afirma.
Pouco antes, animava-o a ideias de confiar a produção e a troca às
associações de trabalhadores, à autogestão. Mas havia um engano na
equação de todo os parâmetros do seu pensamento. Assim, não oculta a sua
receita mágica: todos os cidadãos transformados em “empregados e em
trabalhadores de um truste universal de Estado, toda a sociedade convertida
em um grande escritório ou numa grande fábrica”. Quanto aos sovietes, eles
estariam colocados sob a égide do partido que tinha a missão histórica de
“dirigir” o proletariado.
Os mais lúcidos dos anarquistas russos não se deixaram enganar. No
apogeu do período libertário de Lênin, incitavam já as massas a se
precaverem: no seu jornal, Golos Truda (A Voz do Trabalho), Volin
publicava, nos últimos meses de 1917 e primeiros do ano seguinte, estas
palavras proféticas: “Uma vez consolidado e legalizado o seu poder, os
bolchevistas - que são socialistas políticos e estatais, isto é, homens de ação
centralista e autoritária - tratarão da vida do país e do povo, através de
meios governamentais e ditatoriais, impostos a partir do centro (...). Os
vossos sovietes tornar-se-ão, pouco a pouco, simples órgãos executivos da
vontade do poder central (...). Assistiremos ao estabelecimento de um poder
autoritário, político e estatal, que agirá de cima e tudo esmagará (...) com
sua mão de ferro (...). Infeliz daquele que não estiver de acordo com o
poder central! “Todo o poder aos sovietes passará a constituir, de fato, a
autoridade dos chefes do Partido”.
Ainda segundo Volin, a tendência anarquizante das massas obrigou
Lênin a afastar-se, durante algum tempo, do velho caminho. Assim, deixaria
subsistir o Estado apenas pelo tempo necessário. Depois, seria o
“anarquismo”. “Mas, pelos deuses, imaginai (...) o que diria o cidadão
Lênin, logo que o poder atual estivesse consolidado e tornasse impossível o
diálogo com as massas!” Naturalmente, voltaria aos velhos caminhos
abandonados. E criaria o “Estado marxista” de um tipo mais aperfeiçoado.
Como se compreende, seria pura fantasia supor que Lênin e a sua
equipe armaram conscientemente uma tal armadilha ao povo. O que existia
neles era mais dualismo doutrinário que duplicidade. A contradição era tão
evidente, tão flagrante, entre os dois polos do seu pensamento, que era
facilmente previsível a sua manifestação no domínio dos fatos. Ou a
pressão anarquizante das massas obrigaria os bolchevistas a esquecerem a
inclinação autoritária das suas concepções, ou, pelo contrário, a
consolidação do seu poder, ao mesmo tempo que o esvaziamento da
revolução popular, os levaria a relegar as suas veleidades anarquistas para o
porão dos trastes velhos.
Os dados do problema se complicam com a intervenção de um novo e
perturbador elemento: as terríveis circunstâncias da guerra civil e da
intervenção estrangeira, a desorganização dos transportes e a penúria de
técnicos. Estas circunstâncias impeliram os comunistas à adoção de
medidas excepcionais, à ditadura, à centralização, aos recursos ao “punho
de ferro”. Os anarquistas, porém, contestavam que estas dificuldades
fossem simplesmente redundância de causas “objetivas” e exteriores à
Revolução. Opinavam que eram devidas, por um lado, à lógica interna das
concepções autoritárias do bolchevismo, à impotência de um poder
burocratizado e centralizado em excesso. Segundo Volin, a incompetência
do Estado e a sua pretensão de tudo querer dirigir e controlar
incapacitaram-no para reorganizar a vida econômica do país e conduziram a
um verdadeiro colapso, concretizado na paralisação da atividade industrial,
na ruína da agricultura e na destruição de todos os laços entre os diversos
ramos da economia.
Volin relata, a propósito, o caso da antiga refinaria de petróleo Nobel,
em Petrogrado, abandonada pelos proprietários. Os seus quatro mil
operários dispuseram-se coletivamente a pô-la a funcionar. Animados deste
intento, dirigiram-se em vão ao governo. Tentaram, então, pôr a fábrica a
trabalhar pelos seus próprios meios. Dividiram-se em grupos móveis, que se
esforçaram por encontrar combustíveis, matérias-primas, mercados e
transportes. Para este efeito haviam já entabulado negociações com os seus
camaradas ferroviários. O governo irritou-se. Responsável perante 0 país
inteiro, não poderia permitir que cada empresa agisse à sua maneira.
Obstinado, o conselho de trabalhadores da fábrica convocou uma
assembleia geral dos trabalhadores. O comissário do povo para o Trabalho
teve o cuidado de se deslocar a esta assembleia e avisar os trabalhadores de
que tal assembleia constituía “um ato de indisciplina grave”, e reprovou a
sua atitude “anarquista e egoísta”, ameaçando-os de despedimento sem
indenização. Os trabalhadores replicaram que não solicitavam nenhum
privilégio: o governo não tinha mais a fazer que deixar os trabalhadores e os
camponeses agirem do mesmo modo em todo o país. Tudo em vão. O
governo manteve o seu ponto de vista e a fábrica foi encerrada.
O testemunho de Volin é corroborado pelo de uma comunista, a
escritora Alexandra Kolontai, que em 1921 lamentava os inumeráveis
exemplos de iniciativas dos trabalhadores perdidas na papelada burocrática
e no palavreado estéril da administração: “Que amargura para os operários
(...), ao aperceberem-se do que poderiam ter realizado, se lhes houvéssemos
dado o direito e a possibilidade de agir (...). A iniciativa esmoreceu, o
desejo de agir morreu”.
O poder dos sovietes durou, em realidade, algum tempo, de Outubro de
1917 aos primeiros meses de 1918. Em breve, os conselhos de fábrica,
porém, foram despojados das suas atribuições, sob o pretexto de que a
autogestão não considerava as necessidades “racionais” da economia, mas
que, pelo contrário, estimulava o egoísmo das empresas, criando a
concorrência entre umas e outras e tentando sobreviver, a todo o custo,
ainda que outras fábricas fossem mais importantes “para o Estado” e melhor
equipadas. A Revolução russa encaminhava-se, inicialmente, segundo a
expressão de A. Pankratova, para uma fragmentação da economia em
“federações autônomas de produtores, do tipo sonhado pelos anarquistas”.
Sem dúvida, a nascente autogestão operária não era desmerecedora de
certas críticas. Penosamente, por tentativas, a autogestão estava criando
novas formas de produção, que não tinham precedentes na história.
Certamente, haveria erros, tributo da aprendizagem. Como salienta
Kolontai, a autogestão tinha de nascer de um ”processo de investigações
práticas, talvez com erros, mas a partir das forças criadoras da própria
classe operária”.
Os dirigentes do Partido não compartilhavam, porém, desta opinião. Ao
contrário, sentiam-se muito felizes por retirarem aos comitês de fábrica os
poderes que, no seu foro íntimo, apenas se haviam resignado a delegar. A
partir de 1918, Lênin acentuou as suas preferências pelo “comando único”
na gestão das empresas. Os trabalhadores deviam obedecer
“incondicionalmente” à vontade única dos dirigentes do processo de
trabalho. Todos os chefes bolchevistas, diz-nos Kolontai, estavam
“desconfiados a respeito da capacidade criadora das coletividades
operárias”. A administração tinha sido invadida por numerosos elementos
pequeno-burgueses, remanescentes do antigo regime, adaptados
rapidamente às instituições soviéticas. que haviam obtido postos de
responsabilidade nos diversos comissariados e consideravam que a gestão
econômica deveria ser confiada a eles e não às associações de
trabalhadores.
Assiste-se, então, a uma crescente ingerência da burocracia estatal na
economia. A partir de 5 de dezembro de 1917, a indústria foi presidida por
um Conselho Superior da Economia, encarregado de coordenar
autoritariamente a ação de todos os órgãos de produção. O congresso dos
Conselhos de Economia (26 de maio - 4 de junho de 1918) decidiu a
constituição de direções de empresa, das quais dois terços dos membros
seriam nomeados pelos conselhos regionais ou pelo Conselho Superior de
Economia, e o terço restante eleito pelos operários de cada estabelecimento.
O decreto de 28 de maio de 1918 alargou a coletivização ao conjunto da
indústria, mas, ao mesmo tempo, transformou as socializações espontâneas
dos primeiros meses da Revolução em nacionalizações. Era o Conselho
Superior da Economia que estava encarregado de organizar a administração
das empresas nacionalizadas. Os diretores e operários especializados
permaneciam nas suas funções, a soldo do Estado. No 21o. Congresso do
Conselho Superior de Economia, em 1918, os conselhos foram asperamente
criticados pelo membro relator, que os acusava de dirigirem, praticamente,
as empresas, em substituição do conselho de administração.
As eleições para os conselhos de fábrica continuaram a realizar-se, por
mero formalismo, pois um membro da célula comunista procedia, quase
sempre, à leitura de uma lista de candidatos preparada antecipadamente, e a
votação era imediatamente efetuada, por mão erguida, tudo em presença de
“guardas comunistas” da empresa. Bastava que alguém se declarasse contra
os candidatos propostos para sofrer sanções econômicas (desclassificação
de salário, etc.). Como dizia Archinoff, “já não havia mais que um amo
omnipresente: o Estado”. As relações entre os trabalhadores e este novo
patrão tomaram-se semelhantes às existentes entre o trabalho e o capital. O
assalariado foi restaurado, com a única diferença de constituir agora
pertença do Estado, em vez de escravo tradicional do patrão privado.
Os sovietes foram relegados para um papel nominal, convertidos em
instituições de poder governamental. “Deveis constituir as células estatais
de base” - declara Lênin, em 27 de junho de 1918, no congresso dos
conselhos de fábrica. Segundo Volin, “os sovietes foram reduzidos ao papel
de órgãos puramente administrativos e executivos, encarregados de
pequenas necessidades locais sem importância, inteiramente submetidos às
“diretivas” das autoridades centrais: governo e órgãos dirigentes do
Partido”. No 31o. Congresso dos Sindicatos (abril de 1920), o relator
Lozovsky reconheceu: “Renunciamos aos velhos métodos do controle
operário, do qual só conservamos o princípio estatal”. A partir de então,
este “controle” passou a ser exercido por um organismo de Estado: A
inspeção de Trabalhadores e Camponeses.
As federações de indústria, com estrutura centralista, ser-
viram, nos primeiros tempos, para os bolchevistas enquadrarem e
submeterem os conselhos-de-fábrica, federalistas e libertários por natureza.
A 19 de abril de 1918, a fusão destes dois tipos de organizações era um fato
consumado. Doravante, os sindicatos, vigiados pelo Partido,
desempenhavam uma ação disciplinar. O dos metalúrgicos de Petrogrado
interditou “as iniciativas desorganizadoras” dos conselhos-de-fábrica e
reprovou as pretensões “perigosas” destes fazerem passar para as mãos dos
trabalhadores tal ou qual empresa, sob a alegação de que isto significava
uma imitação, na pior das formas, das cooperativas de produção, que “há
muito se haviam mostrado inoperantes” e que “não deixavam de se
transformar em empresas capita1istas”. “Por isso, toda a empresa
abandonada ou sabotada pelo industrial, cuja produção fosse necessária à
economia nacional, devia ser colocada sob a gestão do Estado”. Era
“inadmissível” que os trabalhadores se apossassem das empresas sem a
aprovação sindical.
Depois desta operação preparatória, os sindicatos foram domesticados,
despojados de autonomia e depurados, os seus congressos diferidos, seus
membros encarcerados e suas organizações dissolvidas ou fundidas em
unidades mais vastas. No fim deste processo, toda a orientação
anarcossindicalista estava aniquilada, e o movimento sindical estreitamente
subordinado ao Estado e ao Partido único.
O mesmo aconteceu no referente às cooperativas de consumo, que, nos
primeiros tempos da Revolução, se multiplicaram e federaram. Cometeram,
porém, o “erro” (ou o “crime”) de escapar ao controle do partido e de deixar
que certo número de sociais-democratas (mencheviques) nelas se
infiltrassem. Como punição, o Estado começou por privar os armazéns
locais dos seus meios de reabastecimento e de transporte, sob o pretexto de
“comércio privado” e de “especulação”, ou mesmo sem o menor pretexto.
Seguidamente, foram fechadas, de uma só vez, todas as cooperativas livres
e, em seu lugar, instaladas, burocraticamente, cooperativas do Estado. O
decreto de 20 de março de 1919 integrou as cooperativas de consumo no
Comissariado para o Reabastecimento, e as cooperativas de produção
industrial no Conselho Superior de Economia. Numerosos cooperandos
foram presos.
A classe proletária não reagiu com energia nem rapidez contra esta
situação. Estava dispersa, isolada, num imenso país atrasado e, em sua
grande maioria, agrícola, esgotada pelas privações decorrentes das lutas
revolucionárias, desmoralizada. Os seus melhores elementos haviam partido
para a frente, na guerra civil, ou tinham sido absorvidos pelo aparelho do
Partido ou do Governo. Todavia, foram bastante numerosos os
trabalhadores que se sentiram frustrados pelas suas conquistas
revolucionárias, privados dos seus direitos civis, e que, humilhados pela
arrogância e arbitrariedade dos novos senhores, tomaram consciência da
verdadeira natureza do pretenso “Estado proletário”. Assim, no decorrer do
verão de 1918, os operários descontentes elegeram, nas fábricas de Moscou
e Petrogrado, delegados autênticos, procurando deste modo opor os seus
“conselhos de delegados” aos sovietes de empresa já captados pelo poder.
Como testemunha Kolontai, o operário sentia, via e compreendia que era
marginalizado. Podia comparar o modo de vida dos funcionários soviéticos
com o seu e o dos seus camaradas operários, pilar sobre o qual descansava,
pelo menos em teoria, a “ditadura do proletariado”.
Quando, porém, os trabalhadores viram completamente claro, era já
demasiado tarde. O poder havia tido tempo de se organizar solidamente e
dispunha de forças de repressão capazes de esmagar toda a tentativa de ação
autônoma das massas. No dizer de Volin, “uma luta áspera e desigual, que
durou quase três anos e continua ainda hoje, quase ignorada fora da Rússia,
opôs uma vanguarda operária a um aparelho estatal que se obstinava em
negar 0 divórcio consumado entre ele e as massas”. De 1919 a 1921,
produziram-se numerosas greves nos centros mais importantes, em
Petrogrado, sobretudo, e mesmo em Moscou, como veremos mais adiante,
severamente reprimidas.
Mesmo no interior do Partido dirigente, surgiu uma “oposição operária”
que reclamava O regresso à democracia soviética e à autogestão. No 101o.
congresso do Partido, em março de 1921, um membro, Alexandra Kolontai,
distribuiu uma brochura em que se reivindicava a liberdade de iniciativa e
de organização para os sindicatos, assim como a eleição de um órgão
central da administração da economia, a partir de um “congresso de
produtores”. O opúsculo foi confiscado e interditado. Lênin conseguiu que
a quase unanimidade dos congressistas adotasse uma resolução
considerando as teses da Oposição operária “desvios pequeno-burgueses e
anarquistas”. “O sindicalismo, o semianarquismo das oposições, era, a seus
olhos, um “perigo direto” para o monopólio do poder exercido pelo Partido
em nome do proletariado”.
A luta prosseguiu no seio da direção da central sindical. Por defenderem
a independência dos sindicatos em relação ao Partido, Tomsky e Riazanov
foram excluídos do Presidium e exilados, enquanto o principal dirigente da
Oposição operária, Chiapnikov, sofria a mesma sorte, seguido pelo
dinamizador de um outro grupo oposicionista, o operário Miasnikov. Este
autêntico proletário, justiceiro, em 1917, do grão-duque Michel, que
contava quinze anos de militância no partido e, antes da Revolução, mais de
sete anos de prisão e setenta e cinco dias de greve de fome, tinha “ousado”,
em novembro de 1921, imprimir uma brochura na qual declarava que os
trabalhadores haviam perdido a confiança nos comunistas, porque o Partido
já não atuava em conformidade com a base e, agora, dirigia contra a classe
proletária os mesmos meios de repressão que, de 1918 a 1920, haviam sido
usados contra os burgueses.
O PAPEL DOS ANARQUISTAS
Neste drama, onde uma revolução de tipo libertário foi transformada no
seu contrário, que papel desempenharam os anarquistas russos? A Rússia
quase não tinha tradições libertárias. Foi no estrangeiro que Bakunin e
Kropotkin se tornaram anarquistas. Nem um nem outro militaram como
anarquistas no interior da Rússia. Quanto às suas obras, apareceram, até à
Revolução de 1917, no exterior e em língua estrangeira. Só alguns extratos
chegaram à Rússia. introduzidos clandestinamente e em quantidades muito
reduzidas. Assim, toda a educação social, socialista e revolucionária dos
russos, não tinha absolutamente nada de anarquista. Muito ao contrário,
assegura Volin, “a juventude russa avançada lia uma literatura que,
invariavelmente, apresentava o socialismo sob uma forma estatal”. A ideia
de governo habitava nos espíritos: A Socialdemocracia alemã havia os
contaminado.
Os anarquistas eram “um punhado de homens sem influência”;
somavam, quando muito, apenas alguns milhares. Ainda segundo Volin, o
movimento anarquista era “demasiado fraco para ter uma influência
imediata e concreta sobre os acontecimentos”. Por outro lado, os
anarquistas eram, na sua maioria, intelectuais de tendências individualistas,
embora mais ou menos ligados ao movimento operário. Nestor Makhno,
que com Volin constituía uma exceção, pois, na Ucrânia, sua região natal,
operou no coração das massas, escreveu, nas suas Memórias, que o
anarquismo russo “Se encontrava na cauda de todos os acontecimentos, e
mesmo, por vezes, completamente fora deles”.
Contudo, parece haver alguma injustiça nesta apreciação. O papel dos
anarquistas, entre a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro, não
foi de modo algum negligente. Afirma-o Trotsky, várias vezes, ao longo da
sua História da Revolução Russa. “Ousados” e “ativos”, apesar do seu
escasso número, os anarquistas foram os adversários do princípio da
assembleia constituinte, num momento em que os bolchevistas não eram
ainda antiparlamentares. Muito antes de Lênin, inscreveram nas suas
bandeiras a palavra de ordem: Todo o poder para os sovietes! Foram
também eles que animaram o movimento de socialização espontânea das
habitações, muitas vezes contra a vontade dos bolchevistas. E em parte sob
o impulso dos militantes anarcossindicalistas, os trabalhadores apoderaram-
se de fábricas, mesmo antes de Outubro de 1917.
Durante as jornadas revolucionárias, que puseram fim à república
burguesa de Kerensky, os anarquistas estiveram nas brechas da luta militar,
nomeadamente integrados no regimento de Dvinsky, que, sob as ordens de
velhos libertários, como Gratchoff e Fedotoff, desalojou os “cadetes”
contrarrevolucionários. Foi o anarquista Anatole Galezniakoff, com a ajuda
do seu destacamento, quem dispersou a assembleia constituinte: os
bolchevistas não fizeram mais que ratificar o fato consumado. Numerosos
destacamentos de camponeses, formados por anarquistas, ou por eles
conduzidos (os de Mokroussof, Tchemiak e outros), lutaram sem trégua
contra os exércitos brancos, de 1918 a 1920.
Quase não havia cidade importante que não contasse com um grupo
anarquista ou anarcossindicalista difundindo um material impresso,
relativamente considerável: jornais, revistas, folhetos, livros. Em
Petrogrado, dois semanários, e em Moscou um quotidiano, tinham uma
tiragem de 25.000 exemplares cada um. A audiência do movimento
anarquista crescera par e passo com a Revolução, até que esta e aquele se
afastaram das massas.
A 6 de abril de 1918, O capitão francês Jacques Sadoul, em missão na
Rússia, escrevia num seu relatório: “O partido anarquista é o mais ativo, o
mais combativo, dos grupos da oposição, e provavelmente o mais popular
(...). Os bolchevistas estão inquietos”. E, em fins do mesmo ano, Volin
afirmava: “Esta influência é tal, que os bolchevistas, avessos a críticas e
ainda mais a contradições, estão seriamente inquietos”. “Para a autoridade
bolchevista, tolerar a propaganda anarquista equivale (...) ao suicídio. Ela
faz o possível para impedir, de início, interditar, depois, e suprimir,
finalmente, pela força bruta, toda a manifestação das ideias libertárias”.
Com efeito, o governo bolchevista “começou por fechar as sedes das
organizações libertarias e impedir aos anarquistas toda a propaganda e
atividade”. Na noite de 12 de abril de 1918, em Moscou, os destacamentos
de guardas vermelhos, armados até aos dentes, aniquilaram, por surpresa,
vinte e cinco casas ocupadas por anarquistas. Estes, que se supunham
atacados pelos guardas brancos, ripostaram ao ataque. Depois, ainda
segundo Volin, “o poder adota medidas mais violentas: A prisão, a
marginalização e a condenação à morte”. “Durante quatro anos, este
conflito não deixa sossegar o poder bolchevique (...), até ao esmagamento
definitivo da corrente libertária manu militari (1921)”.
A derrota dos anarquistas foi facilitada pelo fato de se encontrarem
divididos em duas fações: uma, que recusava ser domesticada, e outra que
sé deixava domesticar. Os últimos invocavam a “necessidade histórica”,
para justificar a sua lealdade para com o regime e aprovar, pelo menos
momentaneamente, os seus atos ditatoriais. Para eles, o principal era
terminar vitoriosamente a guerra civil e esmagar a contrarrevolução.
Tática de curto alcance, opinavam os anarquistas intransigentes, pois a
impotência burocrática do aparelho governamental, a decepção e 0
descontentamento populares é que, precisamente, alimentavam os
movimentos contrarrevolucionários. Além disto, o poder acabava por não
distinguir as atitudes da ala avançada da Revolução libertária, que
contestava os seus meios de dominação, das ações criminosas dos seus
adversários da direita. Aceitar a ditadura e o terror, constituía, para os
anarquistas que se contavam entre as vítimas, uma política suicida. Enfim, a
adesão dos anarquistas ditos “soviéticos” facilitou a eliminação dos outros,
dos irredutíveis, que foram apodados de “falsos” anarquistas, de sonhadores
irresponsáveis sem sentido de realidade, de estúpidos desorientados, de
loucos furiosos e, finalmente, de bandidos e contrarrevolucionários.
O mais brilhante e o mais ouvido dos anarquistas que aderiram ao
regime foi Victor-Serge. Funcionário do governo, publicou, em francês, um
livro em que tentava defender-se da crítica anarquista. O livro que ele
escreveu mais tarde, O 11o. ano da Revolução Russa é, em grande parte, a
justificação da liquidação dos sovietes pelo bolchevismo. O Partido ou,
melhor, a sua elite dirigente, é ali apresentada como o cérebro da classe
operária. A descoberta do que pode e deve fazer o proletariado pertence aos
chefes devidamente selecionados na vanguarda. Sem eles, as massas
organizadas nos Sovietes não seriam “mais que uma turbamulta de
aspirações confusas, embora iluminadas por lampejos de inteligência”.
Victor-Serge era demasiado lúcido para nutrir ilusões sobre a verdadeira
natureza do poder soviético. Mas este poder encontrava-se ainda aureolado
do prestígio da primeira revolução proletária vitoriosa e era amaldiçoado
pela contrarrevolução mundial; esta era uma das razões, a mais respeitável,
pelas quais Serge, como tantos outros revolucionários, acreditaram dever
calar e dissimular os erros dos bolchevistas. Em meados de 1921, numa
conversa privada com o anarquista Gaston Leval, que então se deslocara a
Moscou, integrando a delegação espanhola ao 31o. Congresso da
Internacional, declarou: “O Partido Comunista não exerce uma ditadura do
proletariado, mas sim sobre o proletariado”. De volta a Paris, Leval
publicou no Le Libertaire alguns artigos nos quais, apoiando-se em dados
precisos, estabelece paralelo entre o que Victor-Serge lhe confidenciara e os
conceitos que manifestava publicamente e que classificou de “mentiras
conscientes”. No seu livro Living my life, Emma Goldman, anarquista
norte-americana, que assistiu pessoalmente à atuação de Serge em Moscou,
não se revela menos contundente a seu respeito15.
A “MAKHNOVITCHINA”
Se a liquidação dos anarquistas urbanos, pequenos núcleos sem poder
algum, foi relativamente fácil, o mesmo não aconteceu com a forte
organização rural, que o camponês Nestor Makhno organizara, com base
econômica e militar, no Sul da Ucrânia. Filho de pobres camponeses
ucraínos, contava apenas trinta anos em 1919. Ainda muito jovem,
participara da Revolução de 1905, abraçando as ideias anarquistas.
Condenado à morte pelo czarismo, sua pena fora comutada em oito anos de
prisão, cumpridos, quase sempre, em regime de rigorosa
incomunicabilidade, no cárcere de Butirki. Mesmo assim, este cárcere foi a
sua única escola, onde combateu, com a ajuda de um companheiro, Pedro
Archinof, as lacunas da sua instrução.
A organização autônoma das massas camponesas, constituída por
iniciativa de Makhno, às vésperas da Revolução de Outubro, abrangia uma
área de 280 km. de comprimento por 250 de largura, com 7 milhões de
habitantes. Na sua extremidade sul, incluía o porto de Berdiansk, no mar de
Azof. No centro desta área erguia-se a cidade de Gulai-Pole, de 20 e 30 mil
habitantes e com uma tradição de rebeldia, que já se manifestara ativamente
em 1905.
Tudo começou com o estabelecimento, na Ucrânia, de um regimento
direitista, imposto pelo exército de ocupação alemão e austríaco, com a
missão de devolver aos seus antigos proprietários as terras que os
camponeses haviam ocupado. Os trabalhadores rurais defenderam, de armas
na mão, todas as suas conquistas, quer contra a reação, quer contra a
intempestiva intromissão dos comissários bolchevistas na zona rural, cujas
requisições eram demasiado gravosas. Esta gigantesca resistência foi
animada por um justiceiro, uma espécie de Robín Hood anarquista,
cognominado pelos camponeses de “Pai” Makhno. Seu primeiro gesto
armado foi tomar Gu1yai-Polyé, em meados de Setembro de 1918. A
retirada das tropas germano-austríacas, em consequência do armistício de
11 de novembro, ofereceu a Makhno a possibilidade de constituir reservas
de armas e provisões.
Pela primeira vez na história, os princípios do comunismo libertário
foram implantados na Ucrânia libertada e, na medida em que as
circunstâncias da guerra civil o permitiram, praticada a autogestão. Os
camponeses cultivavam em com disputadas aos antigos proprietários e
agrupavam-se em “comunas” ou “sovietes livres”. Todos os homens,
mulheres e crianças deviam trabalhar, na medida das suas forças. Os
companheiros eleitos para funções de gerência, a titulo temporário,
retomavam o mesmo trabalho dos membros da comuna, terminado o
exercício da sua gestão.
Cada soviete era apenas o executor da vontade dos camponeses que o
constituíram. As unidades de produção estavam federadas em distritos e os
distritos em regiões. Os sovietes integravam-se num sistema econômico de
conjunto, baseado na igualdade social. Deviam ser absolutamente
independentes de qualquer partido político, e nenhum político podia ditar a
sua vontade, a coberto do poder soviético. Seus membros seriam
trabalhadores autênticos, a serviço exclusivo dos interesses das massas
laboriosas.
Logo que os guerrilheiros “makhnovistas” penetravam numa localidade,
afixavam editais, em que se lia: “A liberdade dos camponeses e dos
operários pertence-1hes e não deve sofrer restrição alguma. Cabe aos
operários e camponeses agir, organizarem-se e entenderem-se entre si, em
todos os domínios da sua vida, tal como a concebam e desejem (...). Os
maknovistas podem ajudá-los, dando-lhes conselhos (...). Mas não podem
nem querem, em caso algum, governá-los”.
Quando, mais tarde, em fins de 1920, os homens de Makhno se viram
obrigados a concluir um acordo efêmero com o poder bolchevista,
insistiram na adoção da seguinte cláusula: “Na região onde operar o
exército makhnovista, a população operária e camponesa criará as suas
instituições livres para a autoadministração econômica e política; estas
instituições serão autônomas e ligadas federativamente, por meio de pactos,
com os órgãos governamentais das Repúblicas soviéticas”. Atarantados, os
negociadores bolchevistas separaram esta cláusula do acordo, a fim de ser
referendada em Moscou, onde, evidentemente, ela foi considerada
“absolutamente inadmissível”.
Um dos aspetos mais fracos do movimento makhnovista era a
insuficiência de intelectuais em seu seio. Na medida do possível, foi
ajudado por intelectuais situados fora do movimento, como Karkov e Kurst,
a princípio, e os anarquistas que, em fins dê 1918, se fundiram numa
aliança apelidada Nabat (Alerta), amplamente animada por Volin. Em abril
de 1919, realizaram um congresso no qual se pronunciaram “categórica e
definitivamente, contra qualquer participação nos sovietes, transformados
em organizações puramente políticas e arquitetados sobre uma base
autoritária, centralista e estatal”. Este manifesto foi considerado como uma
declaração de guerra pelo governo bolchevista, que ordenou a cessação de
todas as atividades da Nabat. Em julho do mesmo ano, Volin conseguiu
reunir-se ao quartel-general de Makhno, onde, juntamente com Pedro
Archinof, tomou a seu cargo a seção cultural e educativa do movimento.
Presidiu, depois, a um congresso, o de outubro, em Alexandrovsk, no qual
se adotaram as teses gerais, que precisavam a doutrina dos “sovietes livres”.
Os congressos reuniam os delegados dos camponeses e dos
guerrilheiros, pois a organização civil era o prolongamento de um exército
camponês insurrecional, que praticava a tática de guerrilhas. Este exército,
extremamente móbil, deslocava-se até 100 km por dia, não só graças à
cavalaria, mas também pelo fato da infantaria se transportar em viaturas
hipomóveis. Era organizado em bases especificamente libertarias, de
voluntariado, do principio eletivo, em vigor para todas as graduações, e da
disciplina livremente aceita, cujas regras eram elaboradas por comissões de
combatentes e que, após a sua aprovação em assembleias gerais, eram
rigorosa e unanimemente observadas16.
As forças de Makhno infligiram grandes reveses aos exércitos
“brancos” intervencionistas. As unidades de guardas vermelhos dos
bolcheviques eram menos eficazes. Batiam-se apenas ao longo das estradas-
de-ferro, sem jamais se afastarem dos seus trens blindados; recolhiam-se ao
primeiro revés, nem sempre tendo tempo de esperar o embarque de todos os
seus homens. Por outro lado, inspiravam pouca confiança aos camponeses
que, isolados nas suas aldeias e privados de armamento, tinham de enfrentar
os contrarrevolucionários. “A honra de haverem aniquilado a
contrarrevolução de Denikin, nos últimos meses de 1919, pertence
principalmente aos anarquistas”, escreve Archinof, o cronista da
makhovtchina.
Makhno recusou-se sempre a colocar o seu exército sob o comando
supremo de Trotsky, chefe do Exército Vermelho, depois que as unidades de
guardas vermelhos se fundiram com este último. Este grande
revolucionário, Trotsky, convenceu-se de que era seu dever encarniçar-se
contra o movimento insurrecional. Assim, a 4 de junho de 1919, redigiu
uma ordem pela qual interditou o congresso dos makhnovistas e, acusando-
os de combaterem o poder dos sovietes na Ucrânia, estigmatizou congresso
como um ato de “alta traição”, pelo que ordenou a captura de seus
delegados. Inaugurando um processo que os stalinistas espanhóis
executaram, 18 anos mais tarde, contra as brigadas anarquistas, Trotsky
recusou armas aos guerrilheiros de Makhno, eximindo-se ao seu dever de
lhes dar assistência, para, em seguida, os acusar de “traírem” e de se
deixarem é bater pelas tropas brancas.
Não obstante, os dois exércitos atuaram em concordância por duas
vezes, quando a gravidade do perigo intervencionista exigiu uma ação
conjunta. A primeira foi em março de 1919, contra Denikin; a segunda, no
decurso da segunda metade do ano de 1920, ante a ameaça das tropas
brancas de Wrangel, que, finalmente, foram destruídas por Makhno.
Todavia, logo que o perigo foi afastado, o Exército Vermelho retomou as
operações militares contra os combatentes de Makhno que, aliás,
ripostavam golpe por golpe.
Em fins de novembro de 1920, o governo não hesitou em armar-lhes
uma cilada. Os oficiais do exército Makhno vista da Crimeia, convidados a
participar de um Conselho militar, foram, logo que ali chegaram,
encarcerados pela Polícia política, a “Tcheca”, e sumariamente fuzilados.
Ao mesmo tempo, era desencadeada uma ofensiva contra Gulai-Pole. A
luta, cada vez mais desigual, entre “libertários” e “autoritários”, durou ainda
nove meses. Por fim, Makhno teve de abandonar a partida, posto fora de
combate por forças superiores em número e equipamento bélico, até que,
em agosto de 1921, conseguiu refugiar-se na Romênia, de onde passou para
Paris, onde veio a falecer mais tarde, pobre e doente. Assim terminou a
epopeia da makhovtchina, que constitui, segundo Pedro Archinof, o
protótipo de um movimento independente das massas laboriosas e, por este
fato, fonte de inspiração futura para os trabalhadores do mundo.
KRONSTADT
As aspirações dos camponeses revolucionários makhnovistas eram
muito semelhantes às que, em fevereiro e março de 1921, impulsionaram,
conjuntamente, à revolta, os trabalhadores de Petrogrado e os marinheiros
da fortaleza de Kronstadt.
Os trabalhadores urbanos tinham de suportar condições materiais
intoleráveis: escassez de víveres, combustíveis, meios de transportes e a
ação de um regime cada vez mais ditatorial e totalitário, que esmagava a
menor manifestação de descontentamento. Em fins de fevereiro, eclodiram
greves- em Petrogrado, Moscou e outros importantes centros industriais, Os
trabalhadores, marchando pelas ruas, atraíram outros contingentes de
operários, que fecharam as fábricas. reclamando pão e liberdade. O governo
respondeu com fuzilamentos, e os trabalhadores de Petrogrado, por sua vez,
com um comício de protesto, que reuniu 10.000 operários.
Kronstadt era uma base naval insular a trinta quilômetros de Petrogrado,
no golfo da Finlândia, cujas águas gelam no inverno. A ilha era habitada
por marinheiros e alguns milhares de trabalhadores do arsenal da base
militar. Os marinheiros de Kronstadt tinham desempenhado um papel de
vanguarda nos acontecimentos revolucionários de 1917. Segundo Trotsky,
foram “o orgulho e a glória da Revolução russa”. A população civil de
Kronstadt formava uma comuna livre, relativamente independente do poder
central. Dentro da fortaleza, havia uma imensa praça pública, autêntico
fórum popular, onde cabiam mais de 30.000 pessoas.
Os marinheiros não possuíam. já em 1921, nem os mesmos efetivos,
nem a mesma composição revolucionária de 1917: Muito mais que os seus
predecessores, provinham da massa camponesa; conservavam, porém, o
mesmo espírito militante e, pela sua atuação anterior, o direito de participar
ativamente nas reuniões dos trabalhadores de Petrogrado. Por isso os
marinheiros enviaram emissários aos trabalhadores em greve da antiga
capital, os quais foram obrigados pelas forças governamentais a regressar.
Então, celebraram-se dois comícios na praça da fortaleza, onde se afirmou o
apoio às reivindicações dos operários em greve. Na segunda reunião, a 19
de março, juntaram-se 16.000 pessoas - marinheiros, trabalhadores e
soldados - e, não obstante a presença do chefe do Estado (o presidente do
executivo central, Kalínine), adotaram uma resolução em que pediam a
convocação, à margem dos partidos políticos, nos dez dias seguintes, de
uma conferência de operários, soldados vermelhos e marinheiros de
Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petrogrado. No mesmo comício
exigiram a supressão dos “oficiais políticos”, pois nenhum partido político
deveria usufruir de tal privilégio, assim como a abolição dos destacamentos
comunistas de choque, dentro do exército, e da “guarda comunista”, dentro
das fábricas.
Era o monopólio do partido dirigente que se visava. Um monopólio que
os rebeldes de Kronstadt não hesitaram em qualificar de “usurpação”. Mas
folheemos resumidamente o jornal oficial desta nova Comuna, o Izvestia de
Kronstadt, e deixemos falar os marinheiros encolerizados. O Partido
Comunista, depois de se arrogar o poder, manifestava, segundo eles, um
único cuidado: Conservá-lo por todos e quaisquer meios. Tinha se afastado
das massas. Revelara-se incapaz de tirar o país de um estado de derrocada
geral. Perdera a confiança dos operários. Burocratizara-se. Os sovietes,
despojados do seu poder, haviam sido falsificados, encampados e
manipulados; haviam-se estatizado.
Uma máquina policial omnipotente pendia sobre o povo, ditando sua lei
através de fuzilamentos e da prática de terror. No plano econômico, reinava,
em vez do anunciado socialismo, assente no trabalho livre, um duro
capitalismo de Estado. Os operários eram simples assalariados deste grande
truste nacional, e submetidos à mesma exploração de antes. Os hereges de
Kronstadt chegaram a contestar a infalibilidade dos chefes supremos da
Revolução. Escarneceram de Trotsky e de Lênin. Além das suas
reivindicações imediatas - restauração das liberdades, eleições livres para
todos os órgãos da democracia soviética - visavam alcançar um objetivo
mais vasto e de um conteúdo nitidamente anarquista: uma “terceira
Revolução”.
Os rebeldes entenderam continuar sobre o terreno revolucionário,
vigiando a manutenção das conquistas da revolução social. Afirmavam não
ter nada em comum com os que pretendiam “restabelecer o czarismo”, e se
não escondiam a sua intenção de derrubar o poder dos “comunistas”, não
era para que os “operários e os camponeses voltassem a ser escravos”.
Também não cortavam todos os pontos de contato com o regime, com o
qual esperavam ainda “encontrar uma linguagem comum”. Em suma, se
reclamavam liberdade de expressão, não o faziam por vãos motivos, mas
apenas porque, anarquistas e “socialistas de esquerda” (fórmula que excluía
os socialdemocratas ou mencheviques), eram partidários sinceros da
Revolução.
Mas a “audácia” de Kronstadt ia bem mais longe do que era suportável
para Lênin ou Trotsky. Os chefes bolcheviques tinham decididamente
identificado a Revolução com o Partido Comunista, e tudo que combatia
este mito era, a seus olhos, irremediavelmente “contrarrevolucionário”.
Viam feita em pedaços toda a ortodoxia marxista-leninista. Os
acontecimentos de Kronstadt constituíam um fato de significado tão
aterrador, quanto os chefes comunistas sabiam que, governando em nome
do proletariado, O seu poder era contestado por um movimento
autenticamente proletário. Além disto, Lênin apegou-se à tese um tanto
simplista de que a restauração czarista era a única alternativa à ditadura de
seu Partido. Os homens de Estado do Kremlin de 1921 raciocinavam como,
mais tarde, os de outono de 1956. Kronstadt foi a prefiguração de Budapest.
Trotsky, o homem “de mão-de-ferro”, aceitoupessoa1mente a
responsabilidade de dirigir a repressão. “Se persistirem na vossa atitude,
caçar-vos-emos como perdizes”, comunicava pelo rádio aos amotinados. E
os marinheiros foram tratados como cúmplices dos “guardas brancos”, das
potências ocidentais intervencionistas e da “Bolsa de Paris”. A sua
submissão fora obtida pela força das armas. Não tiveram nenhum êxito as
tentativas dos anarquistas Emma Goldman e Alexander Berkman que
haviam encontrado asilo na “pátria do proletariado”, depois de terem sido
deportados dos Estados Unidos - em evitar o uso da força, pois “esta traria
um mal incalculável à Revolução social”, conforme carta patética que,
nessa altura, escreveram a Zinoviev, a quem também pediam que incitasse
os seus “camaradas bolcheviques” a solucionarem o conflito através de
negociações fraternais. Quanto aos operários de Petrogrado, aterrorizados,
submetidos à lei marcial, não puderam levar apoio aos de Kronstadt.
Um antigo oficial czarista e futuro marechal, chamado Toukhatchevsky,
foi encarregado de comandar um corpo expedicionário, composto de tropas
recrutadas especificamente, dado que grande número de soldados
vermelhos se recusavam a atirar sobre os seus companheiros de alistamento.
A 7 de março, começou o bombardeio da fortaleza de Kronstadt. Os
sitiados lançaram um último apelo, que teve por título “Que o mundo o
saiba!”, no qual disseram: “O sangue dos inocentes cairá sobre a cabeça dos
comunistas sedentos de poder. Viva o poder dos sovietes!”. Deslocando-se
sobre o gelo do golfo da Finlândia, as tropas sitiantes eliminaram a rebelião,
a 18 de março, numa orgia de sangue.
Os anarquistas quase não intervieram neste episódio. O comitê
revolucionário de Kronstadt convidara, efetivamente, dois libertários para
se lhe reunirem: Volin e Yartchoulk, o segundo dos quais fora o animador
do soviete de Kronstadt, em 1917. Estes, porém, encontravam-se
encarcerados pelos bolcheviques. Conforme relata Ida Mett, historiadora de
A Revolta de Kronstadt, a influência anarquista exerceu-se apenas “na
medida em que o anarquismo propagou a ideias da democracia operária”.
Mas, se não intervieram diretamente nos acontecimentos, os anarquistas não
deixaram de proclamar a sua autoria: “Kronstadt - escreveu mais tarde
Volin - foi a primeira tentativa popular, inteiramente independente, para
libertar o proletariado de todo o jugo e realizar a Revolução Social:
tentativa empreendida diretamente (...) pelas massas trabalhadoras, sem
“pastores políticos”, sem “chefes” nem “tutores”. E Alexander Berkman
acrescenta: “Kronstadt fez voar em pedaços o mito do Estado proletário;
demonstrou que havia incompatibilidade entre a ditadura do Partido
Comunista e a Revolução”.
O ANARQUISMO MORTO E RESSUSCITADO
Embora os anarquistas não tivessem desempenhado um papel ativo no
levantamento de Kronstadt, o regime aproveitou o seu esmagamento para
banir uma ideologia que continuava a atemorizá-lo. Algumas semanas
antes, a 8 de fevereiro, o velho Kropotkin morrera na Rússia, e o seu funeral
constituíra imponente manifestação popular, acompanhado por cerca de
cem mil pessoas. Misturadas com as bandeiras vermelhas do comunismo,
flutuavam as bandeiras negras do anarquismo, onde se lia, em letras de
fogo: “Onde há autoridade não há liberdade”. Os biógrafos de Kropotkin
relatam que esta foi a “última manifestação contra a tirania bolchevista”.
Em seguida ao esmagamento de Kronstadt, foram presos centenas de
anarquistas. Meses mais tarde, um libertário, Fanya Baron, e oito de seus
camaradas eram fuzilados nas caves da prisão da Tcheka, em Moscou.
O anarquismo militante recebera seu golpe de misericórdia. Mas fora da
Rússia, os anarquistas, que viveram a Revolução Russa, empreenderam um
vasto trabalho de crítica e revisão doutrinárias, que revigoraram e tornaram
mais concreto o pensamento libertário. Desde princípios de setembro de
1920, o congresso da aliança anarquista da Ucrânia, chamada Nabat, tinha
rejeitado categoricamente a expressão “ditadura do proletariado” por
compreender que ela conduziria inexoravelmente à ditadura de uma fração
do proletariado, entrincheirada no Partido e constituída por funcionários e
um punhado de chefes, sobre a massa proletária. Pouco antes de falecer,
Kropotkin, numa Mensagem aos trabalhadores do Ocidente, denunciou com
angústia o estabelecimento crescente de uma “formidável burocracia”:
“Para mim, esta tentativa de edificar uma república comunista em bases
estatais fortemente centralizadas, sob a lei de ferro da ditadura de um
partido, redundou num fiasco retumbante. A Rússia nos ensina como não
deve estabelecer-se o comunismo”.
No seu número de 7-14 de janeiro de 1921, o jornal francês Le
Libertaire publicava um apelo patético dos anarcossindicalistas russos ao
proletariado mundial: “Camaradas, terminai com a dominação da vossa
burguesia, tal como nós fizemos aqui. Mas não repitais os nossos erros: não
deixeis que o comunismo de Estado se estabeleça nos vossos países!”.
No mesmo tom, o anarquista alemão Rudolf Rocker redigiu em 1920 e
publicou em 1921 A Bancarrota do Comunismo de Estado, que constitui a
primeira análise política a ser feita Sobre a degenerescência da Revolução
russa. A seu ver, não era a vontade de uma classe que encontrava expressão
na famosa “ditadura do proletariado”, mas a ditadura de um partido
pretendendo falar em nome de uma classe e apoiando-se na força das
baionetas. “Sob o nome de ditadura do proletariado desenvolveu-se na
Rússia uma nova classe, a comissariocracia, que exerce uma opressão
semelhante à do antigo regime”. Subordinando sistematicamente todos os
elementos da vida social à onipotência de um governo dotado de todas as
prerrogativas dos reacionários, que foi fatal à Revolução russa”. “Os
bolcheviques não só copiaram o aparelho de Estado da antiga sociedade,
como lhe deram um poder de que nenhum outro governo se pode arrogar”.
Em junho de 1922, o grupo de anarquistas russos asilados na Alemanha
publicou, em nome de A. Gorielik, A. Komof e Volin, um opúsculo
revelador, intitulado La Répression de lanarchisme en Russie soviétique (na
tradução francesa, da autoria de Volin, aparecida em 1923). Este livro
constitui um martirológio do anarquismo russo, alfabeticamente
classificado. Alexander Berkman, em 1921 e 1923, e Emma Goldman, em
1922 e 1923, publicaram uma série de brochuras sobre os dramas a que
haviam assistido na Rússia. Também Pierre Archinof e Nestor Makhno, que
lograram asilar-se no Ocidente, escreveram seus depoimentos.
Muitos anos mais tarde, durante a segunda guerra mundial, foram
produzidas, com a maturidade de espírito e análise que a perspectiva dos
anos confere, duas grandes obras clássicas da literatura libertária Sobre a
Revolução russa: a de G. P. Maximof e a de Volin.
Para Maximof, cujo livro apareceu originalmente em inglês, as lições do
passado asseguram a certeza de um futuro melhor. A nova classe dominante
na URSS não pode e não deve viver eternamente. O socialismo libertário
lhe sucederá. Condições objetivas conduzem a esta evolução: “É concebível
(...) que os trabalhadores queiram a volta dos capitalistas nas empresas?
Jamais! Eles revoltam-se é precisamente contra a exploração do Estado e
dos seus burocratas”. O objetivo dos trabalhadores é substituir esta gestão
autoritária da produção pelos seus próprios conselhos de fábrica e unir os
conselhos numa vasta federação nacional. O que eles ambicionam é a
autogestão operária. Do mesmo modo, os camponeses compreenderam que
já não se pode voltar à economia individual, e que a única solução tem de
ser procurada na agricultura coletiva, na colaboração das coletividades
rurais com os conselhos de fábrica e os sindicatos: Numa palavra, na
expansão do programa da Revolução de Outubro com liberdade.
Qualquer tentativa inspirada no exemplo russo, afirma Volin,
resolutamente, terá de redundar num “capitalismo de Estado baseado numa
odiosa exploração das massas”, o “pior dos capitalismos”, que não tem
absolutamente nenhuma relação com a marcha da humanidade para a
sociedade socialista”. O exemplo russo apenas promoverá “a ditadura de
um partido, que conduz irrefutavelmente à repressão de toda a liberdade de
opinião, de imprensa, de organização e de ação, mesmo para as correntes
revolucionárias, salvo para o partido no poder”, e conduz “a uma inquisição
social”, que afoga “a respiração da própria Revolução”. Volin termina
dizendo que Stálin “não caiu da Lua”. Stálin e o stalinismo são, a seu ver, a
consequência lógica do sistema autoritário fundado e estabelecido de 1918
a 1921. “Tal é a lição mundial da extraordinária e decisiva lição da
experiência bolchevista, lição que fornece um poderoso apoio à tese
libertária e que será em breve, à luz dos acontecimentos, compreendida por
todos aqueles que padecem, sofrem, pensam e lutam”.
CAPÍTULO III
O ANARQUISMO NOS CONSELHOS DE FÁBRICA ITALIANOS
A exemplo do que se passou na Rússia, os anarquistas italianos
caminharam algum tempo em conjunto com os partidários do poder dos
sovietes. A revolução Soviética tinha suscitado um profundo entusiasmo
nos trabalhadores italianos, nomeadamente entre os metalúrgicos do norte
da Itália, vanguarda do movimento operário. A 20 de fevereiro de 1919, a
Federação Italiana dos Operários Metalúrgicos (FIOM) conseguiu um
contrato, pelo qual se instituía a eleição, dentro das empresas, das chamadas
“comissões internas” eletivas. Seguidamente, a Federação tentou
transformar estes organismos de representação operária em conselhos de
fábrica destinados a administrar as empresas, ocupando algumas delas, após
uma série de greves.
A última destas greves teve por origem um lock-out patronal, em 20 de
agosto de 1920. OS metalúrgicos, tendo decidido continuar a produção por
seus próprios meios, tentaram, inutilmente, persuadir os engenheiros e o
pessoal dirigente a colaborar com eles. Forçados a assegurar a direção das
empresas por meio de comissões operárias, técnicas e administrativas,
levaram a autogestão a um estádio bastante adiantado. Num primeiro
período, as fábricas autogeridas contaram com o concurso de bancos.
Quando este cessou, os operários emitiram a sua própria moeda em
pagamento dos salários. Foi também instaurada uma autodisciplina
rigorosa, bem como a interdição do uso de bebidas alcoólicas e uma
autodefesa organizada por meio de patrulhas armadas. Entre as empresas
autogeridas, foi praticada urna estreita solidariedade. Os minerais e os
combustíveis foram repartidos equitativamente.
Mas uma vez alcançado este estádio, era preciso alargar o movimento
de autogestão, ou recuar. A ala reformista dos sindicatos optou por um
compromisso com o patronato. Depois de algumas semanas de vida
autogestionária, os trabalhadores tiveram de evacuar as fábricas, contra a
promessa, não respeitada, dos sindicatos. E foi em vão que a corrente
revolucionária, socialistas de esquerda e anarquistas, proclamou que tal
atitude representava uma traição.
Esta facção de esquerda possuía uma teoria e um órgão porta-voz. O
primeiro número do hebdomadário Lordine Nuovo tinha aparecido em
Turin, no 19 de maio de 1919. O seu diretor era o socialista de esquerda
Antônio Gramsci, assistido por um professor de filosofia da Universidade
de Turin, de ideias anarquistas, que assinava sob o pseudônimo de Carlo
Petri, e por um núcleo de libertários desta cidade. Nas fábricas, o grupo
LOrdine Nuovo apoiava-se, entre outros, nos dois militantes
anarcossindicalistas do setor metalúrgico, Pietro Ferrero e Maurizio Garino.
Socialistas e libertários assinaram em conjunto o manifesto de LOrdine
Nuovo, acordando em que os conselhos de fábrica deveriam ser
considerados como “órgãos adaptados à futura direção comunista das
fábricas e da sociedade”.
LOrdine Nuovo tendia, com efeito, a substituir o sindicalismo
tradicional pela estrutura dos conselhos de fábrica. Não era inteiramente
hostil aos sindicatos, por ela encarados como “as vértebras sólidas do
grande corpo proletário”. Contudo, criticava, à maneira de Malatesta de
1907, a decadência burocrática e reformista do movimento sindical, aliás
integrado na sociedade capitalista, e denunciava também a incapacidade
orgânica dos sindicatos para desempenharem o papel de instrutores da
revolução proletária.
Em contrapartida, LOrdine Nuovo atribuía todas as virtudes aos
conselhos de fábrica. Considerava-os o órgão unificador da classe operária,
o único capaz de elevar os trabalhadores acima dos particularismos de
métier e de ligar os trabalhadores “não organizados” e os “organizados”.
Além disto, inscrevia ainda no ativo dos conselhos a formação de uma
psicologia do produtor e a preparação do trabalhador para a autogestão.
Graças a eles, o mais modesto operário compreendia que a conquista da
fábrica era uma perspectiva concreta, ao alcance da sua mão. Os conselhos
eram encarados como uma prefiguração da sociedade socialista.
Os anarquistas italianos, de espírito mais realista e menos verboso que o
de Antônio Gramsci, ironizavam por vezes os excessos “taumatúrgicos” dos
prognósticos sobre os conselhos de fábrica. Reconheciam, certamente, os
méritos, mas recusavam-se a exagerá-los. Se Gramsci denunciava, com
razão, o reformismo dos sindicatos, os anarcossindicalistas notavam que os
conselhos de fábrica também corriam o risco de, num período que não seria
revolucionário, degenerar em organismos de colaboração de classe. Os que,
entre estes, eram mais afetos ao sindicalismo consideravam, ainda, que a
posição de LOrdine Nuovo era assaz injusta ao condenar indistintamente o
sindicalismo reformista e o sindicalismo revolucionário, este último
praticado pela União Sindical Italiana17
Os anarquistas experimentavam certa inquietude em face da
interpretação contraditória e equívoca proposta por Lordine Nuovo sobre os
conselhos de fábrica do tipo soviético. Por certo, Gramsci usava
frequentemente o epíteto “libertário” nos seus escritos e até havia
polemizado com Angelo Tasca, autoritário inveterado, que defendia uma
concepção antidemocrática da “ditadura do proletariado” e do papel dos
conselhos-de-fábrica, como simples instrumento do partido comunista, e
denunciava como proudhoniano o pensamento gramscista. Mas Gramsci
não conhecia suficientemente a evolução dos acontecimentos na Rússia
para distinguir entre os sovietes livres dos primeiros meses da Revolução e
os sovietes domesticados pelo Estado bolchevique. Também as fórmulas
por êle empregadas eram ambíguas. Via no conselho de fábrica o “modelo
do Estado proletário”, que se incorporaria - anunciava Gramsci - num
sistema mundial: A Internacional Comunista. Acreditava, também, poder
conciliar o bolchevismo com a debilitação do Estado e uma concepção
democrática da “ditadura do proletariado”.
Os anarquistas italianos tinham começado por saudar os sovietes russos
com um entusiasmo que excluía o menor espírito crítico. Um deles, Camillo
Bernéri, publicou a 19 de junho de 1919 um artigo que tinha por título A
Auto democracia, em que se referia ao regime bolchevista como “a
experiência mais vasta e prática da democracia integral” e “a antítese do
socialismo de Estado centralizador”. Um ano depois, no congresso da
União Anarquista italiana, Maurizio Garino usava uma linguagem
completamente diferente: os sovietes, tais como haviam sido criados na
Rússia pelos bolchevistas, eram substancialmente diferentes da autogestão
operária, tal como os anarquistas a concebiam. Os sovietes firmavam “a
base de um novo Estado, inevitavelmente centralizador e autoritário”.
Os anarquistas italianos e os amigos de Gramsci seguiriam caminhos
divergentes. Estes últimos, depois de terem sustentado a tese de que o
partido socialista, assim como os sindicatos, eram organismos integrados no
sistema burguês e que não era, em consequência, nem indispensável nem
recomendável a adesão a tais órgãos, acabaram por fazer uma “exceção”
para os grupos comunistas que viviam no interior do partido socialista,
vindo a constituir, mais tarde, após a cisão de Livorno (21 de janeiro de
1921), o Partido Comunista Italiano, arregimentado na Internacional
Comunista.
Quanto aos libertários italianos, tiveram de abandonar algumas ilusões e
recordar as advertências de Malatesta, que, desde 1919, numa carta escrita
de Londres, alertava contra “um novo governo, que se instalava na Rússia,
acima da Revolução, com o objetivo de a entravar e sujeitar aos escopos de
um partido (...), ou antes dos chefes de um partido”. Isto é uma ditadura,
afirmava profeticamente o velho revolucionário italiano, com seus decretos,
suas sentenças penais, seus agentes executivos e, acima de tudo, sua força
armada, que serve também para defender a Revolução contra os seus
inimigos exteriores, mas que servirá, amanhã, para impor aos trabalhadores
a vontade dos ditadores, para frear a marcha da Revolução, para consolidar
os novos interesses que se constituírem e para defender contra a massa uma
nova classe privilegiada. Lênin, Trotsky e seus companheiros são, sem
dúvida, revolucionários autênticos, sinceros; mas preparam quadros
governamentais, que servirão aos que vierem depois deles para se
beneficiarem da Revolução e matá-la. Eles serão as primeiras vítimas dos
seus próprios métodos”.
Dois anos depois, a União Anarquista Italiana, reunida em congresso,
em Ancona, de 2 a 4 de novembro de 1921, recusou-se a reconhecer o
governo russo como o representante da Revolução e denunciou-a como “o
maior inimigo da Revolução”, “o opressor e explorador do proletariado, em
nome do qual pretende exercer o poder. E o escritor libertário Luigi Fabri,
no mesmo ano, concluía: “O estudo crítico da Revolução russa é de imensa
importância (...), porque os revolucionários ocidentais podem ajustar a sua
ação de modo a evitar, se possível, os erros que a experiência russa
evidenciou”.
CAPÍTULO IV
O ANARQUISMO NA REVOLUÇÃO ESPANHOLA
A IMAGEM SOVIÉTICA
O atraso da consciência subjetiva, em relação à realidade objetiva, é
uma das constantes da história. A lição, que os anarquistas testemunhas do
drama russo tiraram a partir de 1920, só veio a ser conhecida, admitida e
compartilhada, alguns anos mais tarde. Foram tão grandes O prestígio e o
fulgor da primeira revolução proletária vitoriosa numa sexta parte do globo,
que o movimento operário ficou, durante muito tempo, fascinado por tão
retumbante exemplo. Å imagem dos sovietes russos, surgiram “Conselhos”
por todo lado, não somente na Itália, como se viu, mas na Alemanha, na
Áustria, na Hungria. Na Alemanha, o sistema de Conselhos constituía o
aspecto fundamental do programa da Liga Espartaquista, de Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht.
Em Munique (1919), depois do assassinato do presidente da República
bávara, Kurt Eisner, foi proclamada uma república soviética, presidida pelo
escritor libertário Gustav Landauer, também assassinado pela
contrarrevolução. Seu amigo e companheiro de luta, o poeta anarquista
Erich Mühsam, compôs uma Raete-Marseillaise (“Marselhesa dos
Conselhos”), que concitava os trabalhadores às armas, não mais para
formarem batalhões, mas para constituírem Conselhos, à semelhança dos da
Rússia e da Hungria, a fim de pôr termo ao “velho mundo de escravidão
secular”.
Todavia, na primavera de 1920, um grupo opositor alemão, partidário da
Raete-kommunísmus (“Comunismo de Conselhos”), Separou-se do Partido
Comunista e formou O Partido Comunista Operário Alemão (KAPD)18. Na
Holanda, também sob a ideias dos Conselhos, gerou-se um movimento
idêntico, tendo por principais dirigentes Hermann Gorter e Anton
Pannekoek. O primeiro, durante uma acesa polêmica com Lênin, não
hesitou em responder, no mais puro estilo libertário, ao “condutor infalível”
da Revolução russa: “Estamos ainda à procura dos verdadeiros chefes, que
não pretendam dominar e trair as massas, e, enquanto os não tivermos,
queremos que tudo se faça partindo da base, isto é, pela ditadura das
próprias massas. Se tenho um guia na montanha, que me conduz ao abismo,
prefiro não o ter”. O segundo proclamou que nos Conselhos reside a forma
de autogoverno, que substitui as formas governamentais existentes; mas tal
como Gramsci, não soube distinguir entre Conselhos e “ditadura
bolchevista”.
Por todo o lado, mas especialmente na Baviera, na Alemanha e na
Holanda, os anarquistas participaram, de forma positiva, na elaboração
teórica e prática do sistema de Conselhos.
Em Espanha, os anarcossindicalistas não ficaram menos deslumbrados
pela Revolução de Outubro. No congresso da C.N.T., em Madrid (10-20 de
dezembro de 1919), foi votado um texto em que se lia: “A epopeia do povo
russo eletrizou o proletariado universal”. Entre aclamações, “sem reticência
alguma, como donzela que se entrega ao homem de seus amores”, o
congresso votou a adesão provisória à Internacional Comunista, pelo seu
caráter revolucionário, e manifestou o desejo de convocação de um
congresso operário internacional, que determinasse as bases Sobre as quais
edificar a verdadeira Internacional dos Trabalhadores. Apesar de algumas
vozes dissonantes se fazerem ouvir (“a Revolução russa era uma revolução
política e não encarnava o ideal libertário”), o congresso foi mais longe:
Decidiu o envio de uma delegação ao 21o. Congresso da Terceira
Internacional, que se iniciava em Moscou, a 15 de julho de 1920.
Mas nesta altura, já o pacto de amor havia começado a manifestar
algumas desavenças. O delegado espanhol, desejoso de participar na
constituição de uma Internacional sindical revolucionária, deparou com um
texto descoroçoante, falando em “conquista do poder político”, “ditadura do
proletariado” e numa ligação orgânica que a custo dissimulava uma
subordinação de fato dos sindicatos operários aos partidos comunistas: nos
próximos congressos da Internacional Comunista, as organizações sindicais
nacionais seriam representadas por delegados dos partidos comunistas dos
respectivos países; e, quanto à projetada Internacional Sindical Vermelha,
esta seria francamente moldada na Internacional Comunista e suas secções
nacionais. O representante espanhol, Angel Pestaña, depois de haver
exposto a concepção libertária da revolução social, exclamou: “A
Revolução não é, não deve ser, obra de um partido. Um partido pode,
quando muito, fomentar um golpe de Estado, jamais uma revolução”. E,
concluindo, afirmou: “Dizer que a revolução não se pode fazer sem partido
comunista e que nenhuma forma de emancipação é possível sem a
conquista do poder político, e que sem ditadura não se consegue destruir a
burguesia, é proferir afirmações gratuitas”.
Em face das reservas formuladas pelo delegado da C.N.T., os
comunistas fingiram emendar a resolução no referente à “ditadura do
proletariado”. No fim de contas, porém, Losovsky publicou o texto na sua
primeira forma, sem as modificações de Pestaña, embora com a assinatura
deste. Durante o congresso, Trotsky atacou, durante quase uma hora, o
delegado espanhol, e quando este pediu a palavra para responder aos
ataques, o presidente declarou encerrado o debate. Depois de vários meses
passados em Moscou, Pestaña saiu da Rússia, a 6 de setembro de 1920,
profundamente decepcionado com tudo que tinha podido observar. Rudolf
Rocker, a quem Pestaña visitou em Berlim, na volta, conta que ele parecia
um “sobrevivente de um naufrágio”. Não se sentiu Pestaña com coragem de
revelar a verdade a seus camaradas espanhóis. Destruir as imensas
esperanças que neles havia suscitado a Revolução russa parecia-lhe um
“crime”. Aliás, quando reentrou em Espanha, foi imediatamente
encarcerado, livrando-se, assim, de desenganar os seus companheiros.
No verão de 1921, uma nova delegação da C.N.T. participou do 31o.
Congresso da Internacional Comunista, assim como do congresso
constituinte da Internacional Sindical Vermelha. Entre os delegados da
C.N.T., encontravam-se jovens neófitos do bolchevismo, como Joaquin
Maurin e Andrès Nin, mas também o sereno anarquista francês Gaston
Leval. Correndo o risco de ser acusado “de fazer o jogo da burguesia” e de
“ajudar a contrarrevolução”, Leval preferiu, contudo, não se calar. Ocu1tar
às massas que não era a Revolução, mas sim o Estado, que havia falhado na
Rússia; “não lhes mostrar que, por detrás da Revolução moribunda, se
encontrava o Estado que a paralisa e atraiçoa”, era bem pior, a seus olhos,
que o silêncio. Tal foi a linguagem que Gaston Leval usou em França, no Le
libertaire, em novembro de 1921. Regressado a Espanha, recomendou à
C.N.T. que anulasse a sua adesão à Terceira Internacional e à sua pretensa
filial sindical, argumentando que considerava impossível “qualquer
colaboração honesta e lea1” com os bolchevistas.
Assim antecedido, Pestaña decidiu-se a publicar, finalmente, o seu
primeiro relatório, e a completá-lo com um segundo, no qual revelou a
verdade inteira sobre o bolchevismo: “os princípios do Partido Comunista
são precisamente o contrário do que ele afirmou e proclamou nos primeiros
momentos da Revolução. A Revolução russa e o Partido comunista são,
pelos seus princípios, pelos seus meios e pelos seus objetivos finais,
diametralmente opostos (...). O Partido comunista, uma vez dono absoluto
do poder, decretou que aquele que não pensasse como comunista (à
maneira, entenda-se), não tinha o direito de pesar (...). O Partido comunista
negou ao proletariado russo os direitos sagrados que lhe haviam sido
conferidos pela Revolução”. E Pestaña prossegue, pondo em dúvida a
validade da Internacional Comunista, que considera um simples
prolongamento do Partido Comunista russo, sem poder encarnar a
Revolução perante o proletariado mundial.
O congresso nacional de Zaragoza, em junho de 1922, a que se
destinava este relatório, deliberou a retirada da C.N.T. da Terceira
Internacional, ou, mais exatamente, do seu sucedâneo sindical, a
Internacional Sindical Vermelha, e o envio de delegados a uma conferência
internacional anarcossindicalista, que se reuniu em Berlim, em dezembro do
mesmo ano, e da qual saiu a “Associação Internacional dos Trabalhadores”.
Internacional fantasma, pois, com exceção da importante central de
Espanha, nos outros países só reuniu um magríssimo efetivo de aderentes19.
Esta ruptura marcou o início do ódio implacável que Moscou dedicaria
ao anarquismo espanhol. Exautorados pela C.N.T., Joaquim Maurin e
Andrès Nin abandonaram-na para fundar Partido Comunista Espanhol. Em
maio de 1924, Maurin, numa brochura, declarou guerra de morte aos seus
antigos companheiros: “A eliminação definitiva do anarquismo é uma tarefa
difícil num país cujo movimento operário leva consigo meio século de
pregação anarquista. Mas consegui-lo-emos”.
A TRADIÇÅ0 ANARQUISTA EM ESPANHA
Os anarquistas espanhóis aprenderam em boa hora a lição da Revolução
russa, a qual os estimulou na preparação de uma revolução antinômica. A
degenerescência do comunismo “autoritário” aumentou a sua vontade de
fazer triunfar o comunismo libertário. Cruelmente decepcionados pelo
exemplo soviético, viram no anarquismo, como escreveria mais tarde
Santillan, “a última esperança de renovação deste período sombrio”.
A revolução libertária estava mais ou menos preparada na consciência
das massas populares e no pensamento dos teóricos libertários. Conforme
observa José Peirats, O anarcossindicalismo era, “por sua psicologia, seu
temperamento e suas reações, o setor mais espanhol de toda a Espanha”.
Constituía o fruto do desenvolvimento de uma dupla situação combinada:
correspondia simultaneamente ao estado de atraso de um país, cuja vida
rural se mantinha arcaica, e ao aparecimento, em algumas regiões, de um
proletariado moderno criado pela industrialização. A originalidade do
anarquismo espanhol residia numa mistura singular de tendências do
passado e do futuro. Entre as duas tendências, a simbiose estava longe de
ser perfeita.
A C.N.T. reunia, em 1918, mais de um milhão de sindicalizados. Era
forte sob o plano industrial na Catalunha e, em menor escala, em Madrid e
Valência20. No campo, entre os camponeses pobres, onde sobrevivia a
tradição de um comunalismo municipal, tingido de localismo e espírito
cooperativo, as raízes da C.N.T. não eram menos profundas. O escritor
Joaquin Costa inventariara, em 1898, as manifestações deste Coletivismo
agrário. Numerosas eram as vilas que possuíam ainda bens comunais, dos
quais concediam parcelas de terras aos Camponeses não-possidentes;
algumas vilas colocavam em comum, com outras vilas (municípios) os
pastos e outros bens Comunais. Também no Sul, zona de grandes
latifúndios, a preferência dos jornaleiros ia mais para a socialização que
para a distribuição das terras.
Além disto, a propaganda anarquista, realizada durante vários decênios
nos Campos, através de brochuras de vulgarização, como as de José
Sanchez Rosa, havia preparado o caminho para o coletivismo agrário. A
C.N.T. era poderosa, principalmente entre os camponeses do Sul
(Andaluzia), do Leste (região do Levante, à volta de Valência) e do
Nordeste (Aragão, nos arredores de Zaragoza).
Esta dupla base, industrial e rural, do anarcossindicalismo espanhol,
orientou o “comunismo libertário”, pelo qual ela propugnava em dois
sentidos algo divergentes: Um, comunalista; outro, sindicalista. O
comunismo tinha uma tonalidade mais particularista, mais rural, ou,
poderemos dizer, mais meridional, pois um dos seus principais bastiões era
a Andaluzia. O sindicalismo, por sua vez, caracterizava-se pelo seu aspeto
integracionista e mais urbano, mais setentrional, também, pois o seu
principal centro era a Catalunha. OS teóricos libertários encontravam-se um
tanto flutuantes e divididos a este respeito.
Uns, que se haviam entregado a Kropotkin e à sua idealização erudita,
mas simplista, das comunas da Idade Média, identificadas para eles com a
tradição hispânica da comunidade camponesa primitiva, tinham na ponta da
língua o slogan da “comuna livre”. Várias experiências práticas de
comunismo libertário tiveram lugar durante as insurreições camponesas que
se seguiram à implantação da República em 1931. Por livre e mútuo acordo,
grupos de pequenos proprietários camponeses decidiram trabalhar em
comum, repartir os lucros em partes iguais e consumir da colheita comum.
Ademais destituíram as municipalidades e substituíram-nas por comissões
eleitas. Acreditaram ingenuamente que se haviam tornado independentes da
sociedade que os cercava, dos impostos e do serviço militar.
Os outros, que se afirmavam seguidores de Bakunin (fundador, em
Espanha, do movimento operário coletivista, sindicalista e internacionalista)
e de seu discípulo Ricardo Mella, estavam mais preocupados com o
presente do que com o futuro áureo: eram mais realistas. Davam prioridade
aos problemas da integração econômica e consideravam mais avisado
estabelecer, por um período transitório, a remuneração em base de horas de
trabalho cumpridas, e não proceder à distribuição segundo as necessidades
de cada um. Além disto, visionavam, na combinação das uniões locais de
sindicatos e das federações dos ramos da indústria, a estrutura econômica
do porvir.
O monopólio, porém, de que gozaram durante muito tempo, no seio da
C.N.T., os sindicatos únicos (uniões locais, mais próximos dos
trabalhadores, indemnes de qualqueregoísmo corporativista e que
constituíam como que o lar material e espiritual do proletariado21) teve
como consequência certa confusão no espírito dos militantes de base no
referente às noções de sindicato e de comuna.
Um outro problema dividia as opiniões dos anarcossindicalistas
espanhóis, fazendo ressurgir na prática o debate teórico que, no congresso
anarquista mundial de 1907, opusera os sindicalistas aos anarquistas. No
seio da C.N.T., a ação reivindicativa quotidiana secretara uma tendência
reformista, contra a qual a F.A.I. (Federación Anarquista Ibérica), fundada
em 1927, se atribuía a missão de defender a integridade da doutrina
anarquista. Em 1931, a tendência sindicalista lançou um manifesto,
conhecido por “dos Trinta”, insurgindo-se contra a “ditadura” das minorias
dentro do movimento sindical e afirmando e a independência do
sindicalismo e a sua aspiração a bastar-se a si mesmo. Alguns sindicatos
abandonaram a C.N.T. e, muito embora a cisão fosse colmatada às vésperas
da Revolução de julho de 1936, a corrente reformista não deixou de se
impor com menos intensidade no seio da central sindical.
BAGAGEM DOUTRINÁRIA
Os anarquistas espanhóis não deixaram de publicar na sua língua os
principais (e os secundários) trabalhos escritos sobre o anarquismo,
preservando assim do esquecimento, e por vezes da destruição pura e
simples, as tradições de um socialismo revolucionário e livre. Como diz
Augustin Souchy, anarcossindicalista alemão, que se colocou ao serviço do
anarquismo espanhol: “Nas suas assembleias de sindicatos e de grupos, nos
seus jornais e livros, o problema da revolução social foi discutido
sistemática e incessantemente”.
A seguir à proclamação da República em Espanha, em 1931, verificou-
se um florescimento de escritos “antecipacionistas”: Peirats fornecemos
uma lista muito incompleta (avisa), de quase cinquenta livros, e sublinha
que esta “obsessão de construção revolucionária”, traduzida numa
proliferação livresca, contribuiu bastante para abrir ao povo o caminho da
Revolução. Assim, os anarquistas espanhóis conheceram o folheto Idées
Sur lOrganisation Sociale, escrito por James Guillaume em 1876, através de
muitos textos transcritos por Pierre Besnard, na sua obra Les Sindícuts
Ouvriers et la Révolution Sociale, aparecido em Paris, em 1930. Em 1931,
Gaston Leval publicou na Argentina, onde se havia exilado, o seu livro Les
problèmes économiques de la Révolutíon espagnole, que inspirou
diretamente a importante obra de Diego Abad de Santillan, de que se falará
mais adiante.
Em 1932, o dr. Isaac Puente22, médico numa aldeia (que no ano seguinte
deveria animar um comitê insurrecional em Aragão), publicou um esboço,
algo ingênuo e idealista, o Comunismo Libertário, cujas ideias foram
retomadas, no 19 de Maio de 1936, pelo congresso da C.N.T. em Zaragoza.
O programa de Zaragoza define, com relativa precisão, o funcionamento
de uma democracia direta de base municipal ou aldeã: um conselho
comunal, eleito em assembleia geral dos habitantes, é integrado pelos
representantes das diversas comissões técnicas. A assembleia geral reúne-
se, sempre que os interesses da comuna o exigirem, por convocação dos
membros do conselho comunal ou por vontade dos próprios habitantes. As
responsabilidades dos diferentes cargos não comportam nenhum caráter
executivo nem burocrático. Seus titulares (com exceção de alguns técnicos
e encarregados da estatística) realizam a sua tarefa de produtores, como
todos os outros, reunindo-se, ao fim do dia de trabalho, para debater
questões de pormenor, que não tenham necessidade de ratificação pela
assembleia geral.
Os trabalhadores efetivos recebem uma carteira de produção, na qual se
inscrevem as prestações de trabalho, sob a forma de diárias de trabalho
cumpridas, que dão direito ao trabalhador de adquirir (em troca) as
mercadorias ou bens de valor equivalente. Os elementos passivos da
população recebem uma simples carta de consumidor. Não existem normas
absolutas: A autonomia das comunas é respeitada. Assim, se as comunas o
quiserem, poderão alterar o sistema de trocas estabelecido, com a condição
de não lesarem os interesses das outras Comunas. O direito à autonomia
comunal não excluí, com efeito, o dever de solidariedade coletiva no seio
das federações cantonais e regionais das comunas.
A cultura do espírito está na primeira linha de preocupações dos
congressistas de Zaragoza. A cultura deve assegurar a todos os homens,
durante a sua existência, o acesso e o direito à ciência, à arte, às
investigações de qualquer espécie, compatíveis com a produção de recursos
materiais. O exercício desta atividade dúplice garantia o equilíbrio e a saúde
da natureza humana. Não haveria mais divisão dos membros da sociedade
em manuais e intelectuais: todos seriam, ao mesmo tempo, uma e outra
coisa. Uma vez terminada a sua jornada de produtor, o indivíduo é Senhor
absoluto do seu tempo. A C.N.T. pensa que as necessidades espirituais se
manifestam muito mais imperiosamente quando, numa sociedade
emancipada, as necessidades de ordem material já estão satisfeitas.
Havia já muito tempo que o anarquismo espanhol procurava
salvaguardar a autonomia do que chamava “os grupos de afinidades”. Entre
várias coisas, o naturismo e o vegetarianismo contavam numerosos adeptos
nas suas fileiras, nomeadamente no meio camponês do Sul. Estes modos de
vida eram encarados como susceptíveis de transformar o ser humano e de
prepará-los para a sociedade libertária. Em Zaragoza, a C.N.T. também não
se omitiu de tratar da sorte dos grupos de naturistas e nudistas, que, como se
sabe, eram “refratários à industrialização”. Como não pudessem, por este
fato, satisfazer a todas as suas necessidades, o congresso previu que os seus
delegados à confederação das comunas poderiam negociar acordos
econômicos com as outras comunas agrícolas e industriais. Devemos sorrir?
Às vésperas de uma tão enorme transformação social, a C.N.T. não
considerava risível procurar atingir a satisfação das aspirações infinitamente
variadas do homem. No aspecto penal, o congresso de Zaragoza, fiel aos
ensinamentos de Bakunin, afirma que a injustiça social é a causa principal
dos delitos e que, por consequência, uma vez suprimida a causa, cessarão os
efeitos. Afirma que o homem não é naturalmente mau. As faltas do
indivíduo, tanto na ordem moral como nas suas funções de produtor, serão
examinadas por assembleias populares, que em cada caso se esforçarão por
encontrar uma solução justa.
O comunismo libertário não aceita outros meios correcionais. Além dos
preventivos da medicina e da pedagogia. Se um indivíduo, vítima de
fenômenos patológicos, atenta contra a harmonia que deve reinar entre os
seus semelhantes, o seu desequilíbrio será objeto de cuidados, ao mesmo
tempo que lhe será estimulado o sentido de ética e de responsabilidade
social. Como remédio contra as paixões eróticas irreprimíveis, que não
assegurem o respeito da liberdade de outrem, o congresso de Zaragoza
recomenda a “mudança de ares”, tão eficaz nas doenças corporais como nas
do amor. A central sindical duvidava, contudo, que uma tal exasperação se
pudesse produzir num ambiente de liberdade sexual.
Imediatamente a seguir à adoção do programa de Zaragoza, pelo
congresso da C.N.T., em maio de 1936, ninguém pensava que, dois meses
mais tarde, soasse a hora da sua aplicação. Com efeito, a socialização da
terra e da indústria, que sucederia à vitória revolucionária de 19 de julho,
afastou-se um pouco deste idílico programa. Enquanto a palavra “comuna”
nele se encontrava em cada linha, o termo adotado pelas unidades
socialistas de produção era o de coletividades. E não se trata aqui de uma
simples mudança de vocabulário: Os obreiros da autogestão espanhola
passaram a beber de outra fonte.
De inspiração assaz diferente era o esboço de construção econômica,
que, dois meses antes do congresso de Zaragoza, Diego Abad Santillan
apresentava no seu livro El organismo econômica de la Revolución.
Santillan não é, como tantos outros dos seus correligionários, um
epígono mais ou menos esterilizado e congelado dos grandes anarquistas do
século 20. Deplora que a literatura anarquista dos vinte e cinco ou trinta
últimos anos se tinha preocupado tão pouco com os problemas concretos da
moderna economia, e não tenha aberto perspectivas novas para o futuro,
enquanto que, no tocante ao conceito de liberdade, abordado de um modo
exclusivamente abstrato, o anarquismo tem parturejado uma
superabundância de obras. Comparados com esta produção indigesta,
afiguram-se-lhe brilhantes os relatórios apresentados aos congressos
nacionais e internacionais da Primeira internacional: Nela encontramos,
observa Santillan, uma bem mais perfeita compreensão dos problemas
econômicos, que nos períodos subsequentes.
Santillan não é homem de pensar obsoleto. Tem consciência do
“formidável desenvolvimento da indústria moderna e da série de problemas
novos que ela criou, outrora imprevisíveis”. A questão não é voltar à
Charrua romana, nem às formas primitivas e artesanais de produção. O
particularismo econômico, a mentalidade localista, a patria chica (pequena
pátria), tão cara, na Espanha rural, aos nostálgicos da idade do ouro, a
“comuna livre” de Kropotkin, particularista e medieval, devem relegar-se
para o museu das antiguidades. São vestígios de concepções comunalistas
completamente caducas.
Não podem existir “comunas livres”, sob o ponto de vista econômico:
“O nosso ideal reside na comuna associada, federada, integrada na
economia total do país e dos países em revolução”. O coletivismo e a
autogestão não constituem a substituição do proprietário privado por um
proprietário multicéfalo. A terra, as fábricas, as minas e os meios de
transporte são obras de todos e a todos devem servir. A economia de hoje
não é nem mesmo nacional, mas mundial. A característica da vida moderna
é a coesão de todas as forças produtivas e distributivas. “Uma economia
socializada, dirigida e planificada, é um imperativo que corresponde à
evolução do mundo econômico moderno”.
Para assumir a função coordenadora e planificadora, Santillan prevê a
formação de um Conselho Federal de Economia, que não é um poder
político, mas um simples organismo de coordenação, um regulador
econômico e administrativo. Este recebe as suas diretivas de baixo, dos
conselhos de fábrica, federados simultaneamente em conselhos sindicais
por ramos de indústria e em conselhos econômicos locais. O Conselho
Federal será, pois, o ponto de convergência de duas linhas: uma local, outra
profissional. Os órgãos de base fornecer-lhe-ão os dados estatísticos que
permitam conhecer, a todo o momento, a situação econômica efetiva.
Assim, o Conselho pode reparar as principais deficiências e determinar os
setores onde é mais urgente a promoção de novas indústrias, de novas
culturas. “Não haverá mais necessidade de polícia, quando a autoridade
suprema estiver nas cifras da estatística”. A coação estatal, num tal sistema,
não é rentável, por estéril, talvez impossível. O Conselho Federal vela pela
introdução de novos processos e sua propagação, pela interpretação das
regiões, pela constituição da solidariedade nacional. Estimula a
investigação de métodos de trabalho, de processos de fabricação e de
técnicas rurais. Distribui a mão de obra pelas regiões e pelos ramos da
economia.
Incontestavelmente, Santillan aprendeu muito com a Revolução russa.
Por um lado, ela avisou-o da necessidade de Sustar o perigo da ressurreição
do aparelho estatal burocrático; mas, por outro, demonstrou-lhe que uma
revolução vitoriosa não pode deixar de passar por formas econômicas
intermediárias, onde exista, por algum tempo, o que Marx e Lênin
chamaram de “direito burguês”. Entre outras questões, também não se
deveria suprimir, de um só golpe, todo o sistema bancário e monetário. E
preciso, sim, transformar estas instituições e utilizá-las como meio
provisório de troca, a fim de manter em atividade a vida social e preparar o
acesso a novas formas de economia.
Santillan desempenharia funções importantes na Revolução espanhola:
membro do comitê central das Milícias antifascistas (fins de julho de 1936),
membro do Conselho Econômico da Catalunha (11 de agosto) e ministro da
Economia (meados de dezembro).
UMA REVOLUÇÃO “APOLÍTICA”
A Revolução espanhola estava, pois, relativamente amadurecida na
mente dos pensadores libertários, assim como na consciência popular. Não
é, portanto, de estranhar que a direita espanhola considerasse a vitória
eleitoral da Frente Popular, em fevereiro de l936, como o início de uma
revolução. Efetivamente, as massas não tardaram a ultrapassar os estreitos
limites do sucesso político conseguido nas urnas. Zombando das regras do
jogo parlamentar, não esperavam a formação de um novo governo para
libertar os presos políticos. Os arrendatários deixaram de pagar as suas
rendas. Os trabalhadores rurais ocuparam e trabalharam as terras. Os
munícipes desembaraçaram-se do conselho municipal e começaram a
administrar-se a si mesmos. Os ferroviários puseram-se em greve, exigindo
a socialização das estradas de ferro. Os pedreiros de Madrid reivindicaram
o controle operário, primeira etapa para a socialização.
A estes pródromos da revolução, os chefes militares, com o então
coronel Franco à cabeça, responderam com um putsch, que veio acelerar a
marcha de uma revolução já, de fato, iniciada. À exceção de Sevilha, na
maioria das grandes cidades, nomeadamente em Madrid, Barcelona e
Valência, o povo tomou a ofensiva, cercou os quartéis, levantou barricadas
e ocupou os pontos estratégicos. Os trabalhadores acorreram ao apelo dos
seus sindicatos. Com total desprezo pela morte, de peito descoberto e as
mãos desarmadas, lançaram-se ao assalto dos bastiões franquistas.
Lograram arrebatar os canhões ao inimigo e arregimentar os soldados na
defesa da sua causa.
Graças a esta fúria popular, a derrota da insurreição militar consumou-se
em vinte e quatro horas. Começou, então, espontaneamente, a revolução
social. Naturalmente que não se operou do mesmo modo, nas diferentes
regiões e nas cidades. A maior impetuosidade verificou-se na Catalunha,
nomeadamente em Barcelona. Logo que as autoridades constituídas foram
tiradas do seu marasmo, aperceberam-se de que, simplesmente, não
existiam mais. O Estado, a polícia, o exército e a administração pareciam
haver perdido a sua razão de ser. Os “guardas civis” foram expulsos ou
eliminados. O serviço da ordem pública era assegurado pelos operários
vencedores. A tarefa mais premente era a do reabastecimento: Os comitês
distribuíam os víveres pelas barricadas e abriram também restaurantes
comunitários. Os chamados “comités de bairro” organizaram a
administração e os “comitês de guerra” a partida das milícias para a frente
de batalha. A “Casa del Pueblo” tomara-se numa verdadeira Câmara
Municipal ou Prefeitura. Não se tratava já de uma simples defesa
republicana contra o fascismo, mas sim da Revolução. Uma Revolução que,
ao contrário da russa, não teve necessidade de criar todas as peças dos seus
órgãos de poder: a eleição dos sovietes redundava numa inutilidade, em
virtude da onipresença da organização anarco-sindical, de onde emanavam
os diversos comitês de base. Na Catalunha, a C.N.T. e a sua minoria
consciente, a F.A.I., eram muito mais poderosas que as autoridades
reduzidas às suas aparências.
Nada impedia, sobretudo em Barcelona, que os comités operários
tomassem de jure o poder, que exerciam já de fato. Não obstante,
abstiveram-se de o fazer, pois o anarquismo espanhol, há decênios, prevenia
o povo contra os esbulhos da “política”, realçava a primazia do aspecto
econômico e desviava as massas da revolução burguesa democrática, a fim
de as empenhar, pela ação direta, na revolução social. No limiar da
Revolução, os anarquistas raciocinavam, mais ou menos, assim: que os
políticos façam o que quiserem; nós, os “apolíticos”, ocupar-nos-emos da
economia. Num artigo intitulado “A Inutilidade do governo”, publicado em
3 de setembro de 1936, pelo Boletim de Informação da CNT-FAI, previa-se
que a expropriação econômica em curso acarretaria, ipso facto, “a
liquidação do Estado burguês por asfixia”.
OS ANARQUISTAS NO GOVERNO
Esta subestimação do governo deu lugar, muito em breve, a uma atitude
oposta. Os anarquistas espanhóis tomaram-Se subitamente
governamentalistas. Pouco depois da Revolução de 19 de julho, o ativista
anarquista Garcia Oliver entrevistou-se em Barcelona com o presidente da
Generalidad da Catalunha, o burguês liberal Companys. Ainda que este
último estivesse disposto a afastar-se, foi mantido nas suas funções. A
C.N.T. e a F.A.I. renunciaram a exercer uma ditadura anarquista e
declararam-se favoráveis à colaboração com as outras fações de esquerda.
Em meados de setembro, a C.N.T. reclamou do presidente do Conselho do
governo central, Largo Caballero, a constituição de um “Conselho de
Defesa”, com 15 membros, no qual se contentava em ter 5 representantes.
Esta proposta significava um apego à ideias de participação ministerial,
embora sob outro nome.
Finalmente, os anarquistas aceitaram pastas ministeriais nos dois
governos: o da Generalidad23 da Catalunha, primeiro, e o de Madrid, depois.
Numa carta-aberta à ministra Federica Montseny, escrita em 14 de abril de
1937, o anarquista italiano Camillo Berneri, então em Barcelona, acusa-a de
estar no governo para servir de resguardo e bandeira de “políticos
conluiados com o inimigo24” (da classe).
Na realidade, o Estado no qual os anarquistas se deixaram integrar
continuava um Estado burguês, cujos funcionários e políticos não raramente
manifestavam deslealdade às instituições republicanas. Quais os motivos
desta abjuração? A Revolução espanhola havia sido a resposta imediata a
um golpe de Estado da Contrarrevolução. A necessidade de combater, por
meio de milícias antifascistas, as hostes do general Franco, conferiu, desde
o início, um caráter defensivo e militar à Revolução. Os anarquistas
pensaram que o perigo da contrarrevolução coagia à união com as outras
forças sindicais e mesmo com os partidos políticos que se dispusessem a
barrar o avanço da rebelião militar. Å medida que as potências fascistas
aumentaram o seu apoio a Franco, a luta antifascista degenerou numa
guerra do tipo clássico, numa guerra total. Os libertários não podiam
participar na luta sem renunciar aos seus princípios, quer sob o ponto de
vista político, quer militar. Ativeram-se, então, ao falso raciocínio de que
não era possível ganhar a Revolução sem, primeiro, ganhar a guerra, e à
guerra “tudo sacrificaram”, como admitiu mais tarde Santillan. Em vão
Beméri contestou o imediatismo da prioridade da guerra, afirmando que a
vitória sobre Franco não poderia ser assegurada senão mediante uma guerra
revolucionária. Com efeito, frear a Revolução consistia em embotar a
principal arma da República: A ativa participação das massas.
Mais grave ainda, porém, era o fato da Espanha republicana, submetida
ao bloco das democracias ocidentais e seriamente ameaçada pelo avanço
das forças fascistas, ter premente necessidade, para sobreviver, do auxílio
militar russo, o qual era acompanhado de uma dupla condição: 1. A
situação devia beneficiar, o máximo possível, o Partido Comunista
espanhol, e o mínimo possível os anarquistas; 2. Stálin não pretendia a
vitória de uma revolução social em Espanha, não só porque ela seria
anarquista, mas também porque ela expropriaria a Inglaterra, presumível
aliada da URSS no “círculo das democracias” opostas a Hitler. Os
comunistas espanhóis negavam sistematicamente que houvesse uma
revolução: Simplesmente o governo legítimo se limitava a aniquilar uma
insurreição militar. Depois das jornadas sangrentas de maio de 1937, em
Barcelona, onde os operários foram desarmados pelas forças da ordem sob
o comando stalinista, os anarquistas, em nome da unidade de ação
antifascista, impediram os trabalhadores de ripostar. A lúgubre
perseverança com a qual, em seguida, os anarquistas se comprometeram no
erro da Frente Popular, até à derrota final dos republicanos, escapa ao
âmbito deste livro.
OS ÊXITOS DA AUTOGESTÃO
Não obstante, no aspecto que os anarquistas consideravam mais
relevante, o aspecto econômico, verificamos que se mostraram mais
intransigentes, sob a pressão das massas, aceitando compromissos bastante
mais limitados. Em larga escala, a autogestão agrícola e industrial
desenvolveu-se pelos seus próprios meios. Todavia, à medida que o Estado
se reforçava e o caráter totalitário da guerra se agravava, a contradição entre
uma república burguesa beligerante e uma experiência de comunismo ou,
mais genericamente, de coletivismo libertário, tornava-se mais acentuada.
Finalmente, a autogestão teve que bater em retirada, sacrificada no altar do
“antifascismo”.
Convém determo-nos um pouco sobre esta experiência que, segundo
Peirats, ainda não logrou um estudo metódico, e também porque é
pouquíssimo conhecida. Tarefa difícil, pois a autogestão apresenta múltiplas
variantes, segundo o tempo e o lugar. Mesmo no campo republicano, a
autogestão foi relativamente ignorada e, mais do que isso, desacreditada. A
guerra civil submergiu-a, e mesmo, hoje, suplanta-a na memória dos
homens. No filme Mourir à Madrid, por exemplo, não se lhe faz a menor
referência. Contudo, ela foi o que o anarquismo espanhol deixou de mais
positivo.
Ao desencadear-se a Revolução de 19 de Julho de 1936, calorosa
resposta popular ao pronunciamento franquista, os industriais e os grandes
latifundiários abandonaram atabalhoadamente os seus bens e se refugiaram
no estrangeiro. Os operários os camponeses limitaram-se a tomar conta dos
bens sem dono. Os trabalhadores rurais decidiram continuar a cultivar o
solo por seus próprios meios e associaram-se espontaneamente em
coletividades. A 5 de setembro, o congresso regional de camponeses da
Catalunha, convocado pela CNT, deliberou a coletivização da terra sob o
controle e gestão sindical. A grande propriedade e os bens dos fascistas
seriam socializados. Quanto aos pequenos proprietários, teriam liberdade de
optar entre a propriedade individual e a coletiva. Estas medidas só foram
objeto de consagração legal um pouco mais tarde: a 7 de outubro de 1936, o
governo central republicano confiscou sem indemnização os bens “das
pessoas implicadas na rebelião fascista”. Disposição legal incompleta, sem
dúvida, pois não sancionava uma grande parte das tomadas de posse
espontaneamente efetuadas pelo povo: É que os camponeses haviam
procedido às expropriações segundo o tamanho das propriedades e sem
distinguir entre os que tinham ou não participado no golpe militar.
Nos países subdesenvolvidos, onde faltam os meios técnicos necessários
para a cultura em larga escala, o camponês pobre é mais atraído pela
propriedade privada, da qual não teve qualquer experiência, do que pela
agricultura socialista. Mas em Espanha, a formação libertária e a tradição
coletivista compensaram o subdesenvolvimento técnico e contestaram as
tendências individualistas dos camponeses, impelindo-os de chofre para o
socialismo. Assim, os camponeses pobres optaram por esta solução,
enquanto que os mais acomodados, como na Catalunha, se apegaram ao
individualismo. A grande maioria (90%) dos trabalhadores da terra
preferiram, desde o início, entrar em coletividades. Desta feita se conseguiu
espontaneamente a aliança de camponeses e operários das cidades. estes
últimos partidários, por natureza do seu trabalho, da socialização dos meios
de produção. Parecia que a consciência social no campo era mais elevada
do que nas cidades.
As coletividades agrícolas começaram a reger-se segundo uma dupla
gestão: econômica e local. Funções distintas, mas que, na maioria dos
casos, foram assumidas ou controladas pelos sindicatos.
Para a administração econômica, a assembleia local de trabalhadores do
campo elegia, em cada aldeia, uma comissão de administração. Com
exceção do secretário, todos os membros continuavam a trabalhar
manualmente. O trabalho era obrigatório para todos os homens válidos
entre 18 e 60 anos. Os camponeses eram repartidos em grupos de dez ou
mais, com um delegado a dirigidos. A cada grupo se atribuía uma zona de
cultura ou uma função, tendo em conta a idade dos seus membros e a
natureza do trabalho. Todas as noites, os delegados dos grupos vinham do
Conselho (ou comitê) de gestão. Quanto à administração local, a comuna
convocava com frequência os habitantes, em assembleia geral de bairro, e
prestava contas do trabalho realizado.
Tudo era propriedade comum, com exceção das roupas, do mobiliário,
das economias pessoais, dos animais domésticos, das parcelas de jardim e
das aves de capoeira destinadas ao Consumo familiar. Os artesãos, os
barbeiros, os sapateiros etc. estavam, por sua vez, agrupados em
coletividades. Os gados da comunidade eram divididos em rebanhos de
centenas de cabeças, confiados a pastores e distribuídos metodicamente
pelas montanhas.
No que se refere ao modo de repartição dos produtos, foram
experimentados diversos sistemas, uns inspirados no coletivismo, outros no
comunismo mais ou menos integral, e outros ainda numa combinação dos
dois. A remuneração era, o mais frequentemente, estabelecida em função
das necessidades dos membros da família. Cada chefe de família recebia, a
título de salário-diária, um cupão com uma correspondência em pesetas, o
qual só poderia ser trocado por bens de consumo, nos armazéns comunais,
muitas vezes instalados nas igrejas e dependências anexas. A importância
dos cupões não consumidos era creditada numa conta de reserva individual,
e o interessado tinha o direito de receber uma parte para gastos individuais.
Os aluguéis, a eletricidade, os tratamentos médicos, medicamentos,
assistência na velhice etc., eram gratuitos, tal como a escola, obrigatória
para as crianças de menos de 14 anos, às quais o trabalho manual era
interditado.
A adesão à coletividade continuava voluntária, como o exigia o extremo
cuidado dos anarquistas pela liberdade individual. Nenhuma pressão era
exercida sobre os pequenos proprietários que se mantivessem afastados da
comunidade, sem esperar os serviços de ajuda que esta lhes pudesse
fornecer e preferindo bastar-se a si mesmos. Não obstante, era-lhes
inteiramente aberta a possibilidade de participar nos trabalhos comuns, no
grau em que o desejassem, e de enviar os seus produtos aos armazéns
comunais. Somente lhes era interdita a posse de mais terras do que aquelas
que pudessem cultivar e sempre que a sua pessoa ou bens não causassem
qualquer entrave à ordem socialista. As terras socializadas foram agrupadas
em grandes propriedades, fazendo-se, em alguns casos, trocas com
camponeses que desejavam continuar proprietários individuais. Na maioria
das cidades e vilas, os camponeses individualistas eram minoria, e ao
sentirem-se isolados, acabaram, alguns deles, por aderir às coletividades.
Ao que parece, as unidades que aplicaram o princípio coletivista de
remuneração, por dia de trabalho, resistiram melhor do que aquelas (em
menor número) que quiseram instaurar rapidamente o comunismo integral,
desprezando o egoísmo, ainda enraizado na natureza humana,
nomeadamente nas mulheres. Em certas aldeias, onde se havia suprimido a
moeda como instrumento de troca, e onde se consumia a produção própria,
isto é, em que o sistema era o de economia fechada, tais fatos revelaram
vários inconvenientes. Por outro lado, o individualismo não tardou a
assomar, provocando a ruptura da comunidade pela retirada de alguns
pequenos proprietários que não possuíam verdadeira mentalidade
comunista.
As comunas estavam reunidas em federações cantonais, por sua vez
encabeçadas por federações regionais. Todas as terras de uma federação
cantonal formavam, em princípio25, vasto território sem solução de
continuidade. Entre as aldeias a solidariedade era levada ao extremo: caixas
de compensação facultavam assistência às comunidades menos favorecidas;
instrumentos de trabalho, matérias-primas, excedentes de mão-de-obra etc.
eram colocados à disposição das comunidades necessitadas.
A socialização rural varia de importância segundo as regiões. Na
Catalunha, província de pequena e média propriedade, onde os camponeses
têm fortes raízes individualistas, a socialização reduziu-se a algumas
experiências de coletividades-piloto. Em contrapartida, mais de três quartos
das terras de Aragão foram socializadas. A iniciativa criadora dos
trabalhadores rurais da região foi estimulada pela permanência de uma
milícia libertária, a coluna Durruti, que combateu os franquistas na frente
Norte, e pelo subsequente aparecimento de um poder revolucionário
nascido da base, único no seu gênero em toda a Espanha republicana.
Foram constituídas à volta de 450 coletividades, agrupando 500.000
membros. Na região do Levante (que ocupa 5 províncias, tendo como
capital Valência), a mais rica de Espanha, surgiram 900 coletividades
englobando 43% das localidades, 50% da produção de citrinos e 70% da
sua comercialização. Em Castela, constituíram-se mais de 300
coletividades, com cerca de 100.000 aderentes. A socialização estendeu-se
igualmente pela Estremadura e, em parte, pela Andaluzia. Nas Astúrias, a
socialização manifestou algumas veleidades imediatamente reprimidas.
É importante assinalar que o socialismo de base aqui referido não foi,
como muitos imaginam, obra exclusiva de anarquistas. Os autogestionários,
segundo o testemunho de Gaston Leval, eram “libertários sem o saber”. Nas
regiões de Estremadura e Andaluzia foram os camponeses sociais-
democratas, católicos e, até, às vezes, comunistas (como nas Astúrias), que
tomaram a iniciativa da coletivização26.
A autogestão, quando não foi sabotada pelos seus adversários, ou
prejudicada pela guerra, constituiu extraordinário êxito no capítulo da
produção agrícola. Por um lado, o estado de atraso em que se encontrava a
agricultura espanhola, e, por outro, as baixas taxas de produção das grandes
propriedades privadas, facilitaram o êxito da autogestão. Uns centos de
senhores feudais do solo, que possuíam cerca de metade da península,
preferiam manter grande parte das suas terras em descanso a permitir o
aparecimento de uma classe de colonos independentes, ou pagar salários
decentes, ameaçadores da sua posição de senhores medievais. Assim, a
valorização das riquezas naturais do solo espanhol tinha sido retardada.
A terra foi cultivada em maior extensão, segundo um plano geral e as
diretivas dos agrônomos. Graças a estes estudos dos técnicos agrícolas, os
rendimentos foram majorados em 30 a 50 por cento. Aumentaram as áreas
semeadas, os métodos de trabalho foram aperfeiçoados, e a energia humana,
animal e mecânica, mais racionalmente utilizada. AS culturas foram
diversificadas, a irrigação desenvolvida, a reflorestação incentivada, os
viveiros selecionados, os estábulos construídos, as escolas agrícolas criadas,
as fazendas-modelos arranjadas, enfim, as indústrias auxiliares
dinamizadas. A socialização manifestou a sua superioridade, em relação
tanto à grande propriedade, que deixava inculta grande parte do solo, como
à pequena, cultivada segundo processos arcaicos, com sementes medíocres
e sem fertilizantes.
A planificação agrícola chegou a ser esboçada. Teve como base a
estatística da produção e do consumo, emanada das coletividades e reunida,
de começo, pelos comitês cantonais respectivos, e, depois, pelo comitê
regional, que controlava, quantitativa e qualitativamente, a produção da
região. O comércio exterior à região era assegurado pelo comité regional,
que reunia os produtos de venda e procedia à aquisição dos necessários.
Foi no Levante que o anarcossindicalismo rural demonstrou o melhor da
sua capacidade de organização e integração. A exportação de citrinos exigia
técnicas comerciais modernas e metódicas, as quais foram brilhantemente
postas em prática, apesar de alguns conflitos, por vezes intensos, com
alguns produtores ricos.
O desenvolvimento cultural acompanhou o material: Alfabetização de
adultos, programa de conferências, sessões de cinema, teatro etc., todas
estas iniciativas patrocinadas pelas federações regionais.
Os bons resultados não se deveram somente à poderosa organização do
sindicalismo operário, mas também, e em grande parte, à inteligência do
povo. Ainda que analfabetos, em sua maioria, os camponeses deram provas
de ter uma elevada consciência socialista, um sentido prático um espírito de
solidariedade e de sacrifício que despertaram admiração em todos os
observadores estrangeiros. O trabalhista independente Fenner Brockway,
hoje Lord Brockway, depois de uma visita à comunidade de Segorbe,
testemunha: “O estado de espírito dos camponeses, o seu entusiasmo, a
forma pela qual participam nas tarefas comuns, o orgulho que sentem, tudo
isto é admirável”.
A autogestão deu igualmente as suas provas na indústria,
nomeadamente na Catalunha, a região mais industrial da Espanha. Como já
vimos, os operários, cujos patrões fugiram, apossaram-se espontaneamente
da direção das fábricas. Durante mais de quatro meses, as empresas de
Barcelona, sobre as quais flutuava a bandeira vermelha e negra da CNT,
foram geridas por trabalhadores agrupados em comitês revolucionários, sem
qualquer interferência do Estado. A sorte do proletariado, na maioria dos
casos, foi terem os técnicos do seu lado, contra o que se verificou na Rússia
em 1917 e na Itália em 1920, quando os engenheiros se recusaram a dar o
seu concurso à experiência de socialização. Na Espanha, ao contrário, os
técnicos colaboraram com os trabalhadores desde os primeiros dias.
Em outubro de 1936, realizou-se, em Barcelona, um congresso sindical
representando 600.000 trabalhadores e que teve por objeto a socialização da
indústria. Esta iniciativa foi institucionalizada por decreto do governo
catalão, datado de 24 de outubro de 1936, 0 qual, ratificando o fato
consumado, introduziu na autogestão um controle governamental. Criaram-
se, então, dois setores: um, socialista, outro, privado. As usinas de mais de
cem operários foram socializadas (as de 50 a 100 podiam sê-lo, a pedido de
3/ 4 dos operários), assim como as dos proprietários declarados “facciosos”
por um tribunal popular, ou que tinham abandonado a exploração, e as
usinas cuja importância na economia nacional justificava que fossem
subtraídas ao controle particular.
A fábrica autogerida era dirigida por um comitê de gestão, de 5 a 15
membros, representando os diversos serviços e nomeados pelos
trabalhadores em assembleia geral, com um mandato de dois anos e com a
metade dos membros renovável cada ano. O comitê designava um diretor, a
quem delegava a totalidade ou parte dos seus poderes. Nas empresas mais
importantes, a nomeação do diretor deveria ser aprovada pelo organismo de
tutela. Além disto, um controlador governamental funcionava junto do
comitê de gestão, pelo que a autogestão, nas grandes empresas, perdia em
favor da cogestão, em ligação com o Estado.
O comitê ou conselho de gestão podia ser destituído, quer pela
assembleia geral, quer pelo Conselho geral do ramo de indústria (composto
por quatro representantes dos conselhos de gestão, oito dos sindicatos
operários e quatro técnicos nomeados pelo organismo de tutela). Este
Conselho geral planificava o trabalho e fixava a repartição dos benefícios.
As suas decisões tinham força executiva.
No seio das empresas que continuaram privadas, um conselho operário
eleito devia controlar a produção e as condições de trabalho, “numa estreita
colaboração com o empregador”.
Nas fábricas socializadas, subsistia integralmente O regime de
remuneração com base num salário fixo. Os benefícios não eram repartidos
à escala de empresa. OS salários quase não foram aumentados depois da
socialização e, nesta, foram-no menos que no setor que continuou privado.
O decreto de 24 de outubro de 1936 eram um compromisso entre a
aspiração à gestão autônoma e a tendência à tutela estatal, ao mesmo tempo
que uma transição entre capitalismo e socialismo. O decreto foi redigido
por um ministro libertário e ratificado pela CNT, porque os dirigentes
anarquistas participavam no governo. Tendo eles mesmos as alavancas do
comando estatal nas mãos, por que se oporiam à ingerência do Estado na
autogestão?
Apesar dos poderes consideráveis que os Conselhos Gerais usufruíam,
parece que a autogestão operária correu o risco de conduzir cada unidade de
produção a um particularismo egoísta, a uma “espécie de cooperativismo
burguês”, como nota Peirats. Houve coletividades ricas e coletividades
pobres. Umas permitiam-se pagar salários relativamente elevados, enquanto
outras não podiam custear os salários que vigoravam antes da Revolução.
Umas obtinham abundância de matérias-primas, enquanto outras
atravessavam uma extrema penúria, etc. Estes desequilíbrios, porém, foram
remediados assaz rapidamente, depois que se criou a caixa central de
igualização, cuja função era distribuir equitativamente os recursos. Em
dezembro de 1936, as convenções sindicais realizadas em Valência
deliberaram coordenar os diversos setores de produção num plano geral e
orgânico, que permitisse evitar as competições prejudiciais e os esforços
dispersos.
Os sindicatos empreenderam, desde logo, a reorganização sistemática de
todas as profissões, fecharam centenas de pequenas fábricas e concentraram
a produção nas melhor equipadas. Um exemplo: na Catalunha, as fundições
foram reduzidas de mais de 70 a 24, as fábricas de curtumes de 71 a 40, as
de vidros de uma centena a uma trintena. Mas a centralização industrial sob
controle sindical não se desenvolveu tão rápida e completamente quanto os
planificadores anarcossindicalistas o desejaram. Porquê? Porque os
stalinistas e os reformistas se opuseram à confiscação dos bens da classe
média e respeitaram religiosamente o setor privado.
Nos outros centros industriais da Espanha republicana, onde não se
aplicou o decreto de socialização, as coletividades foram menos numerosas
que na Catalunha; contudo as empresas que continuaram privadas foram
normalmente, como é o caso das Astúrias, dotadas de conselhos de controle
operário.
A autogestão industrial foi, como a agrícola, um êxito irrefutável. As
testemunhas não poupam elogios, nomeadamente no que respeita ao bom
funcionamento dos serviços urbanos em autogestão. Grande número de
fábricas, senão todas, foram geridas de maneira notável. A indústria
socializada trouxe uma contribuição decisiva à guerra antifascista. Porque o
escasso número de fábricas de armamento se encontrava localizado fora da
Catalunha, e os seus donos não mereciam, evidentemente, confiança ao
proletariado catalão, foi preciso reconverter, à pressa, as fábricas da região
de Barcelona, à defesa republicana. Operários e técnicos rivalizaram no
espírito e ardor de iniciativa. Em breve chegava à frente de luta material de
guerra fabricado na Catalunha. Um esforço igualmente importante foi
desenvolvido na indústria de produtos químicos, indispensável à guerra. No
plano das necessidades civis, a indústria socializada não foi menos
eficiente: lançou-se na transformação de fibras têxteis, até então
desconhecida em Espanha, tratou o cânhamo, a palha de arroz, a celulose
etc.
A AUTOGESTÃO SABOTADA
Todavia, o crédito e o comércio exterior continuavam, por vontade do
governo burguês republicano, nas mãos do setor privado. O Estado,
naturalmente, controlava os bancos; abstinha-se, porém, de os colocar ao
serviço da autogestão. Carentes de fundos de maneio, muitas coletividades
viveram com as disponibilidades que possuíam no início da Revolução de
julho de 1936. Para o dia a dia, muitas das coletividades tiveram de recorrer
a meios de fortuna, tais como objetos preciosos e ouro das igrejas e dos
conventos, ou de franquistas abastados. Para financiar a autogestão, a
C.N.T. estudou a criação de um “banco confederal”. Mas era utópico querer
fazer concorrência ao capital financeiro. A solução encontrava-se na
concentração de todo o capital financeiro nas mãos do proletariado
organizado. A CNT, manietada pela Frente Popular, não ousou fazê-lo.
O maior obstáculo, porém, da autogestão foi a hostilidade, a princípio
surda, mas depois aberta, que a seu respeito nutriam os diversos estados-
maiores políticos da Espanha republicana. A autogestão foi acusada de
romper a “unidade de ação” entre a classe operária e a pequena burguesia,
portanto, de “fazer o jogo” do inimigo franquista. (Fato que não impediu os
seus detratores de recusarem armas à vanguarda libertária, condenada em
Aragão a enfrentar de mãos vazias as metralhadoras fascistas, para depois
condenarem a sua inércia).
O decreto de 7 de outubro de 1936, que legalizou as coletividades
rurais, fora apresentado pelo ministro da Agricultura, Uribe. Sob a sua falsa
aparência, o decreto estava impregnado de espírito anticoletivista e visava a
desmoralizar as coletividades. Estipulava um prazo limite para a
coletivização: As coletividades que não fossem legalizadas em devido
tempo ficavam automaticamente fora da lei, sendo as terras e bens
devolvidos aos antigos proprietários.
Uribe incitou os camponeses a não entrarem nas coletividades,
indispondo-os contra elas. Num discurso em dezembro de 1936, aquele
ministro, dirigindo-se a pequenos proprietários, declarou à disposição
destes os fuzis do Partido comunista e do governo. Na mesma época,
distribuiu combustíveis aos proprietários individuais, negando-os às
coletividades. Com o seu colega da pasta da Economia, da Generalidad da
Catalunha, Comerera, agrupou num único sindicato reacionário os
pequenos e médios proprietários, aos quais se juntaram comerciantes e
grandes proprietários disfarçados de pequenos. Estes em breve raptariam
aos sindicatos operários a organização do reabastecimento de Barcelona.
Finalmente, a coligação governamental, após o esmagamento da
vanguarda revolucionária de Barcelona, em maio de 1937, não hesitou em
liquidar, manu militarí, a autogestão agrícola. O decreto de 10 de agosto do
mesmo ano pronunciou a dissolução do “conselho regional de defesa” de
Aragão, sob o pretexto de que “estava fora da corrente centralizadora”. O
seu principal impulsionador, Joaquin Ascaso, foi inculpado pela “venda de
joias”, a qual se destinava, na realidade, a angariar fundos para as
coletividades. Logo depois, a 111o. divisão móvel, comandada por Lister
(stalinista), passou à ação armada contra as coletividades e penetrou em
Aragão, como num país inimigo. Os responsáveis pelas empresas
socializadas foram presos, os conselhos de gestão dissolvidos, as empresas
ocupadas e depredadas. Trinta por cento das coletividades de Aragão foram
destruídas. A imprensa comunista denunciou “os crimes de coletivização
forçada”.
Não obstante, apesar da sua violência, o stalinismo não conseguiu, no
seu conjunto, obrigar os camponeses de Aragão a tomarem-se proprietários
privados. Após a passagem das tropas de Lister, a maior parte dos títulos de
propriedade que os camponeses foram coagidos a assinar foram destruídos
e as coletividades reconstruídas. Como escreveu G. Muniz, “este foi um dos
episódios mais singulares da Revolução espanhola. Os camponeses
afirmaram, uma vez mais, as suas convicções socialistas, muito embora
fossem objeto de uma sabotagem econômica”.
A restauração das coletividades de Aragão teve, deve notar-se, também
uma causa menos idealista: O Partido Comunista apercebeu-se de que a
ação de Lister tinha atingido as forças vivas da economia rural, ocasionado
a falta de braços, desmoralizado os combatentes na frente de combate e
reforçado perigosamente a classe média de proprietários da terra. Tentou
assim reparar os seus próprios desgastes e ressuscitar uma parte das
coletividades. As novas coletividades, porém, não encontraram a superfície,
a qualidade de terras e 0 número de militante das primeiras, cujos membros
foram encarcerados, ou se refugiaram nas divisões anarquistas que se
encontravam na frente de batalha.
No Levante, em Castela e nas províncias de Teruel e de Huesca,
semelhantes ataques foram perpetrados, nestas últimas pelos republicanos,
contra a autogestão agrícola. No entanto, ela sobreviveu em algumas
regiões que não caíram na posse dos franquistas, nomeadamente na região
do Levante. Na melhor das hipóteses, a política equívoca do governo de
Valência, em matéria de socialismo rural, contribuiu para a derrota da
República espanhola: os camponeses pobres nem sempre compreendiam
claramente se o seu interesse residia na luta pela República.
A autogestão industrial foi sabotada pela burocracia administrativa e
pelos socialistas “autoritários”. Uma formidável campanha de calúnias e
denegrimento foi desencadeada, na imprensa e na rádio, pondo em causa,
inclusive, a honestidade de gestão pelos conselhos de fábrica. 0 governo
central republicano recusou todos os créditos à autogestão catalã, mesmo
depois que 0 ministro da economia na Catalunha, o libertário Fabregas,
garantiu o financiamento à autogestão com fundos das Caixas Econômicas.
Quando, em junho de 1937, o stalinista Comorera assumiu a pasta da
Economia, proibiu o fornecimento de matérias-primas às empresas
autogeridas e prodigalizou-as ao setor privado. Ao mesmo tempo, omitiu-se
de pagar às empresas socializadas o valor das encomendas efetuadas pela
administração catalã.
O governo central dispunha de um meio radical para estrangular as
coletividades: era a nacionalização dos transportes, que lhe permitia
aprovisionar uns e cortar O fornecimento a outros. O governo chegou a
comprar fardamento para o exército no estrangeiro, quando as coletividades
da Catalunha estavam em condições de fornecê-lo. Com o pretexto das
necessidades de defesa nacional, suspendeu por decreto, em 22 de agosto de
1937, a aplicação da lei de socialização catalã, de outubro de 1936,
referente à metalurgia. O argumento invocado foi de ser aquela “contrária
ao espírito da Constituição”.
O golpe de misericórdia na autogestão foi dado pelo decreto de 11 de
agosto de 1936, que militarizou as indústrias de guerra em benefício do
ministério do Armamento. Uma tremenda burocracia envolveu as fábricas,
dirigidas por uma multidão de diretores que só deviam a sua nomeação às
garantias políticas, alguns à sua recente adesão ao Partido Comunista. Os
operários perderam o incentivo, vendo-se esbulhados do controle da
empresa que haviam criado, durante os primeiros meses de guerra.
A autogestão industrial catalã sobreviveu, mesmo assim, em todos os
ramos industriais, até ao esmagamento da República espanhola. Teve,
porém, uma vida estagnada pelo corte de fornecimento de matérias-primas e
de créditos para a sua aquisição.
Em resumo, as coletividades espanholas, apenas nascidas, foram
fustigadas pelo quadro rigoroso de uma guerra conduzida pelos moldes
clássicos em nome dos quais a República cortou as asas à sua vanguarda e
transigiu com a reação.
A lição que as coletividades espanholas deixaram é, todavia,
estimulante. Inspiraram, em 1938, a Emma Goldman, a seguinte
homenagem: “A coletivização das indústrias e das terras figura como a mais
importante realização de qualquer período revolucionário. Ainda que
Franco extermine todos os anarquistas, a ideias que lançaram continuará a
viver”.
Federica Montseny, num discurso em Barcelona, a 21 de julho de 1937,
ressalta os dois termos da seguinte alternativa: “De um lado, os partidários
da autoridade e do Estado totalitário, da economia dirigida pelo Estado, de
uma organização social que militariza todos os homens e converte o Estado
num grande patrão, num grande intermediário; do outro, a exploração das
fábricas, das minas, dos campos, pela classe trabalhadora, organizada em
federações sindicais”. Dilema que não existiu somente durante a Revolução
espanhola, e que, em escala mundial, poderá, amanhã, ser o de todo o
socialismo.
À GUIZA DE CONCLUSÃO
A derrota da Revolução espanhola privou o anarquismo do seu único
bastião no mundo. Desta experiência o movimento anarquista saiu
esmagado, disperso e, em certo sentido, desacreditado. A condenação
pronunciada pela História contra o anarquismo teve aspectos severos e
injustos. Não foi ele o verdadeiro, ou, em qualquer caso, o principal
responsável pela vitória franquista. A experiência das coletividades rurais e
industriais, conduzida nas circunstâncias mais tragicamente desfavoráveis,
deixou atrás delas um saldo largamente positivo. Contudo, a autogestão foi
desconhecida, subestimada, caluniada. Durante alguns anos, o socialismo
autoritário, desembaraçado da indesejável concorrência libertária,
continuou senhor do terreno socialista, no mundo inteiro. A vitória militar
da Rússia sobre o hitlerismo, as incontestáveis e grandiosas realizações no
plano técnico pareceram, em certo momento, conferir razão ao socialismo
de Estado.
Todavia, a exageração de certos princípios por parte deste regime não
tardou a pôr em relevo a sua própria negação. Fez nascer a ideias de que a
paralisante centralização estatal deveria ser superada, ou seja, de que as
unidades de produção deveriam dispor de uma autonomia vasta, e de que os
operários teriam um incentivo para produzir mais e melhor, se tivessem voz
ativa na gestão das empresas. Num dos países vassalos de Stálin, criou-se o
que em medicina se chama “anticorpos”. A Iugoslávia de Tito superou um
jugo demasiado pesado, que fazia deste país uma espécie de colônia, e
procedeu a uma reavaliação de dogmas, cujo caráter antieconômico já
saltava aos olhos. Descobriu e leu com a necessária discrição a obra de
Proudhon e de outros mestres do passado. Explorou igualmente as zonas
libertárias do pensamento de Marx e Lênin, pouco conhecidas. Analisou,
entre outras, a noção do perecimento progressivo do Estado, que
evidentemente não fora ainda completamente erradicado do vocabulário
político, mas que não passa de uma fórmula ritual, vazia de qualquer
conteúdo.
Remontando ao curto período em que o bolchevismo se identificou com
a base da democracia proletária (mediante os sovietes), notamos que um
conceito foi rapidamente invocado e mais depressa esquecido pelos
condutores da Revolução de outubro: O da autogestão. A experiência
iugoslava concentrou igual interesse nos conselhos de fábrica, que, por
contágio revolucionário e identidade de condições, haviam surgido, ao
mesmo tempo que na Rússia, na Alemanha e na Itália e, mais recentemente,
na Hungria. Então, como expressou o italiano Roberto Guiducci na sua obra
Argumentos, os iugoslavos passaram a indagar se “a ideias dos conselhos,
que o estalinismo reprimiu, não poderia aplicar-se, adaptada, aos tempos
modernos”.
Depois que a Argélia ascendeu à independência e que seus dirigentes se
preocuparam em institucionalizar as ocupações dos bens abandonados pelos
europeus (ocupações efetuadas espontaneamente pelos camponeses e
operários), esses dirigentes inspiraram-se no dispositivo legal da Iugoslávia
sobre a matéria.
A autogestão é, incontestavelmente, uma instituição de tendências
democráticas, mesmo libertárias, se, naturalmente, o seu desenvolvimento
não for prejudicado. A exemplo das coletividades espanholas de 1936-37, a
autogestão visa a confiar a administração da economia aos próprios
produtores. Para tal efeito, instala em cada empresa, por via eletiva, uma
representação operária, em três escalões: a assembleia geral soberana, da
qual surgem o conselho operário, como órgão deliberativo, e o comitê de
gestão, como seu instrumento executivo. A legislação espanhola previu
certas garantias contra a ameaça de burocratização: os eleitos não podiam
reconduzir indefinidamente os seus mandatos, deviam estar diretamente
implicados na produção, etc. Aparte as assembleias, na Iugoslávia, os
trabalhadores também são consultados por referendum. Nas grandes
empresas, as assembleias gerais realizam-se por secções. Neste país, como
na Argélia, é conferida uma função importante à comuna, na qual prevalece
a representação dos trabalhadores autogestionários. Em teoria, ou como
perspectiva para o futuro, a gestão dos serviços públicos deve tender para a
descentralização e adquirir um plano de ação local.
Todavia, a prática afasta-se um pouco destas intenções. Nestes países, a
autogestão deu seus primeiros passos no quadro de um Estado ditatorial,
militar, policial, cuja ossatura é constituída por um partido único, o governo
exercido por um poder autoritário e paternalista, que escapa a todo o
controle e a toda a crítica. Há, portanto, incompatibilidade entre os
princípios autoritários de administração política e os princípios libertários
de gestão econômica. Aliás, a despeito das precauções tomadas pelo
legislador, tende a manifestar-se, dentro das empresas, uma certa
burocratização. A maioria dos trabalhadores não estão suficientemente
amadurecidos para uma participação efetiva na autogestão. Falta-lhes
instrução, conhecimentos técnicos, e não se encontra ainda despojada da
velha mentalidade salarial, pelo que abdica facilmente dos seus poderes nas
mãos dos seus delegados. O resultado é que uma minoria restrita assume a
administração das empresas e, arrogando-se toda a sorte de privilégios,
perpetua-se na função dirigente, governa sem controle, perde o contato com
a realidade, distancia-se da base operária, que trata, por vezes, com orgulho
e desdém - fato que, naturalmente, desmoraliza os trabalhadores e os
indispõe contra a autogestão.
Finalmente, o controle exercido pelo Estado é de tal modo indiscreto e
opressivo, que a verdadeira administração escapa aos “autogestionários”. O
Estado coloca delegados ao lado dos órgãos de autogestão, sem se importar
com o agrément que, nos termos da lei, deveria ser solicitado previamente.
A ingerência destes funcionários, que por vezes se comportam com a
mentalidade arbitrária dos antigos empregadores, é frequentemente abusiva.
Nas grandes empresas iugoslavas, a nomeação dos diretores é
exclusivamente da competência do governo central: normalmente atribuída
pelo marechal Tito aos companheiros da sua velha guarda.
Por outro lado, a autogestão depende estreitamente do Estado, sob o
plano financeiro. Vive dos créditos que este lhe concede, e só tem a
liberdade de dispor de uma parte restrita dos seus benefícios, revertendo o
restante para o tesouro público, como comparticipação compulsória. E o
Estado não utiliza apenas os rendimentos da autogestão no desenvolvimento
dos sectores atrasados da economia, o que seria inteiramente justo, mas
afeta-os às despesas do aparelho governamental, da complexa burocracia,
do exército, das forças de Polícia e às despesas de prestígio, quase sempre
exageradas. Em contrapartida, a sub remuneração dos autogestionários
compromete o seu entusiasmo e contraria os seus princípios.
A empresa é também submetida aos planos econômicos do poder
central, estabelecidos arbitrariamente e sem consulta da base, provocando
uma limitação considerável da sua liberdade de ação. Para cúmulo dos
males, a autogestão na Argélia deve deixar nas mãos do Estado a
comercialização de grande parte da sua produção. Além disto, está
subordinada a “órgãos tutelares” que, aparentando proporcionar-lhe uma
ajuda técnica e contábil desinteressada, tendem a apoderar-se da direção dos
estabelecimentos autogeridos.
De maneira geral, a burocracia do Estado totalitário vê com maus olhos
a pretensão de autonomia da autogestão. Como antevia já Proudhon, a
burocracia não admite um poder estranho ao seu. Tem a fobia da
socialização e a nostalgia da nacionalização, ou seja, a gestão direta por
funcionários do Estado. Aspira a esmagar a autogestão, a reduzir as suas
atribuições, a absorvê-la.
O partido único não encara a autogestão com menos desconfiança. Não
podendo tolerar rivais, tem em todas as empresas uma seção. A estas é
difícil resistir à tentação de imiscuir-se na gestão, de tornar supérfluos os
órgãos eleitos pelos trabalhadores da empresa, de reduzi-los a dóceis
instrumentos, de falsear as eleições preparando de antemão listas de
candidatos, de fazer ratificar pelos conselhos operários as decisões que
toma, de manejar e desvirtuar os congressos dos trabalhadores nacionais.
Contra estas tendências autoritárias e centralizadoras, algumas empresas
autogeridas reagem pela manifestação de tendências autárquicas.
Comportam-se como se fossem constituídas por pequenos proprietários
associados, e consideram que atuam em benefício exclusivo dos
trabalhadores da empresa, pelo que se inclinam a reduzir o número de
operários, a fim de partir os benefícios em menos partes. Estas empresas
desejariam produzir um pouco de tudo, em vez de se especializarem.
Procuram distorcer os planos ou regulamentos que têm em vista os
interesses de toda a coletividade. Na Iugoslávia, onde a livre concorrência
foi mantida a título de estímulo e de proteção do consumidor, a tendência
para a autonomia conduz a desigualdades flagrantes nos resultados da
exploração das empresas, assim como a irracionalidades econômicas.
Concretizando, a autogestão é animada de um movimento pendular, que
a faz oscilar continuamente entre dois comportamentos extremos: excesso
de autonomia, excesso de centralização, autoridade ou anarquia,
trabalhismo ou militarismo. No caso da Iugoslávia, este país tentou, ao
longo dos anos, corrigir a centralização pela autonomia, e depois a
autonomia pela centralização, remodelando sem cessar as suas instituições,
sem conseguir encontrar ainda a justa proporção.
Segundo parece, seria possível evitar ou corrigir grande parte das
deficiências da autogestão, se existisse um autêntico movimento sindical,
independente do poder e do partido único, emanando dos autogestionários,
organizando-os, e animado do mesmo espírito que o anarcossindicalismo
espanhol. Ora, na Iugoslávia, como na Argélia, o sindicalismo operário ou
desempenha um papel secundário, fazendo o papel duma peça inútil, ou é
subordinado ao Estado. Assim, não desempenha, senão muito
imperfeitamente, a sua importante função de conciliar a autonomia e a
centralização, função que deveria ser a sua e que desempenharia muito
melhor que os organismos políticos totalitários. Com efeito, na medida em
que o sindicalismo emanasse estritamente dos trabalhadores, que se
reconheceriam no seu movimento, nenhum outro órgão estaria mais apto a
harmonizar as forças centrífugas e centrípetas, a “equilibrar”, como dizia
Proudhon, as contradições da autogestão.
Todavia, o panorama não se apresenta muito tenebroso. A autogestão,
evidentemente, possui poderosos e tenazes adversários, que não
renunciaram à esperança de a fazer fracassar. Mas o fato é que, nos países
em que foi experimentada, a autogestão revelou a sua dinâmica própria:
abriu novas perspectivas aos operários, restituiu-lhes a alegria no trabalho,
iniciou uma verdadeira revolução nas suas mentalidades; enfim, introduziu
os rudimentos de um socialismo autêntico, caracterizado pelo
desaparecimento progressivo do assalariado, pela desalienação do produtor
e pela sua ascendência à livre determinação. Assim, contribuiu para
aumentar a produtividade e, apesar dos reveses inevitáveis num período de
noviciado, apresenta, no seu ativo, consideráveis resultados.
Os pequenos círculos anarquistas, que de longe acompanham a
autogestão iugoslava e argelina, contemplam-na com um misto de simpatia
e incredulidade. Sentem que, através dela, algumas migalhas do seu ideal se
convertem em realidade. Esta autogestão, porém, quase não se desenvolve
segundo o esquema do comunismo libertário. Ao contrário, ela vive no
quadro “autoritário”, que repugna ao anarquismo. E este quadro que lhe
confere, sem dúvida alguma, o caráter de fragilidade. Mas, se examinarmos
a evolução que a autogestão tem experimentado nestes países,
descobriremos sinais muito alentadores.
Na Iugoslávia, a autogestão é um dos principais fatores de
democratização do regime. Graças a ela, o Partido efetua o recrutamento
dos seus filiados em bases mais puras. 0 Partido, mais do que dirigente,
toma-se animador, incentivador. E seus quadros apresentam-se bem
representativos das massas, mais sensíveis aos seus problemas e aspirações.
Como observou recentemente Albert Meister, sociólogo que estudou o
problema ín loco, a autogestão possui um vírus democrático que, com o
tempo, contagia o partido único. Constitui para este uma “tônica” e
estabelece um vínculo entre os seus quadros de base e a massa operária. A
evolução é tão nítida, que a linguagem dos teóricos iugoslavos não é
desaprovada pelos libertários. Assim, um deles, Stane Kavcic, anuncia: “Na
Iugoslávia, a força de choque do socialismo não será constituída, no futuro,
por um partido político e um Estado, atuando de cima para a base, mas pelo
próprio povo, tendo um estatuto que lhe permitirá agir da base para cima”.
E termina afirmando que a autogestão libera “a rígida subordinação e férrea
disciplina próprias de todo o partido político”.
Na Argélia, a autogestão não evidencia tendências tão definidas. A
experiência é mais recente e corre o risco de ser posta em causa. A título
meramente ilustrativo, convém mencionar que o responsável da comissão
de orientação da F.L.N., Hocine Zahouane (posteriormente afastado das
suas funções pelo governo de Boumedienne, e animador de um movimento
de oposição clandestina socialista) denunciou publicamente, em fins de
1964, a tendência dos órgãos de tutela para se imporem aos autogestionários
e os militarizarem: “Não há mais socialismo, mas uma simples mudança na
forma de exploração do trabalhador” - escreve Hocine.

Em suma, sejam quais forem as dificuldades e contradições, que a


autogestão enfrenta, ela apresenta, desde já, o mérito de permitir às massas
a aprendizagem do exercício de uma democracia direta, orientada de baixo
para cima; de desenvolver, encorajar, estimular as suas livres iniciativas, de
lhes inculcar o sentido de suas responsabilidades, em lugar de manter, como
acontece sob o bastão do comunismo de Estado, os costumes de
passividade, submissão e completa inferioridade, que lhes tem valido um
passado de opressão. E, ainda que esta aprendizagem seja penosa, ainda que
progrida num ritmo lento e acarrete alguns sacrifícios para a sociedade,
ainda que seja efetuada à custa de alguns erros e de alguma “desordem”,
todos estes inconvenientes, enfim, surgem ao observador como menos
nocivos que a falsa ordem, o falso brilho, a falsa “eficiência” do
comunismo de Estado, que aniquila o homem, estrangula a iniciativa
popular, paralisa a produção e, apesar de certas proezas de natureza
material, conseguidas a que preço, desacredita a própria ideias socialista.
A U.R.S.S., enquanto a tendência liberalizante não for neutralizada por
novo avanço do autoritarismo, parece reavaliar os seus métodos de gestão
econômica. Kruschev, antes da sua queda, em 15 de outubro de 1964,
parecia haver compreendido, embora tardia e timidamente, a necessidade de
uma descentralização industrial. Em princípios de dezembro de 1964, sob o
título “O Estado de todo o Povo”, o Pravda publicou um longo artigo em
que se definiam as mudanças de estrutura que determinam que a forma do
Estado chamado “de todo o povo” difere da que corresponde à “ditadura do
proletariado”. Estas mudanças compreendem: uma crescente
democratização, participação das massas na direção da sociedade através da
autogestão, revalorização dos sovietes e dos sindicatos, etc.
Com o título “Um problema capital: a liberalização da economia”,
Michel Tatu publicou, no Le Monde de 16 de fevereiro de 1965, um ensaio
onde revelava os maiores males “que afetam toda a máquina burocrática
soviética e fundamentalmente a economia”. O nível técnico alcançado por
esta toma cada vez mais insuportável o jugo da burocracia sobre a gestão.
Os diretores de empresas não podem, no estado atual, tomar uma decisão
sobre um assunto qualquer, sem a aprovação de, pelo menos, um burô e, o
mais comum, de uma meia dúzia deles.
“Ninguém deseja apagar os notáveis progressos econômicos, técnicos e
científicos realizados ao longo de trinta anos de planificação estalinista.
Como consequência deste processo, a economia encontra-se hoje radicada
na categoria das economias desenvolvidas. As velhas estruturas, porém, que
permitiram este desenvolvimento, revelam-se cada vez mais desadaptadas”.
“Para eliminar a enorme inércia que reina de alto a baixo no dispositivo
econômico, impõem-se, para além de reformas de pormenor, modificações
espetaculares de espírito e de método, uma espécie de nova
desesta1inização”.
Como acentuou Emest Mandel num recente artigo publicado em Temps
Modernes, há uma condição sine que non: Que a descentralização não se
detenha na etapa em que os diretores de empresa hajam logrado a sua
autonomia, mas que prossiga até à verdadeira autogestão operária.
Num recente livro de Michel Garder prognostica-se também uma
“inevitável” revolução na U.R.S.S. Mas, a despeito das suas tendências
antissocialistas, este autor duvida, provavelmente com grande pesar, que a
“agonia” do atual regime possa conduzir a um retorno do capitalismo
privado. Ao contrário, pensa que a revolução futura retomará a fórmula de
1917: Todo o poder aos sovietes! E apoiar-se-á sobre um sindicalismo
revigorado e autêntico. Finalmente, à estrita centralização atual, sucederá
uma federação mais descentralizada. “Por um destes paradoxos que
abundam na história, é em nome dos sovietes que está em crise um regime
falsamente apelidado de soviético”.
Esta conclusão coincide com a de um observador de esquerda, Georges
Gurvitch, para quem o possível êxito, na Rússia, das tendências para a
descentralização, e mesmo para a autogestão operária, ainda que incipiente,
mostraria “que Proudhon acertou muito mais do que poderia pensar-se”.
Em Cuba, onde “Che” Guevara teve de abandonar a direção da
indústria, abriram-se talvez novas perspectivas. Num livro de autoria do
especialista de economia castrista, René Dumont, deploram-se a
“hipercentralização” e a burocratização.
O autor sublinhou, nomeadamente, os erros “autoritários” de um
departamento ministerial, que procura dirigir as fábricas - o que redunda no
resultado exatamente oposto: “Ao querer impor-se uma organização
fortemente centralizada, acaba-se (...) por tudo deixar fazer, e deixar de
controlar o essencial”. Crítica idêntica faz o mesmo autor ao monopólio
estatal da distribuição: a paralisia proveniente deste fato teria sido “evitada,
se cada unidade de produção gozasse da faculdade de se aprovisionar
diretamente”. “Cuba recomeça inutilmente a percorrer o ciclo de erros
econômicos dos países socialistas” - confidenciou um companheiro
polonês, bem colocado para o saber, a René Dumont. Este autor termina
exortando o regime cubano a contemplar o princípio de autonomia das
unidades de produção e, na agricultura, das federações de pequenas
cooperativas de produção agrícola. E não hesita em resumir numa palavra a
panaceia para o mal: a autogestão, que poderia conciliar-se perfeitamente
com a planificação.

Graças a estas experiências, as ideias libertarias lograram ressurgir


recentemente do cone de sombra a que os seus detratores as haviam
relegado. O homem contemporâneo, que serviu de cobaia ao comunismo
estatal em grande parte do globo, começa, meio aturdido ainda, a inclinar-
se, com viva curiosidade e frequentemente em seu benefício, para as novas
formas de sociedade regida por autogestão, propostas, no século passado,
pelos pioneiros da anarquia. É certo que ele não as aceita em bloco; todavia,
extrai delas ensinamentos e nelas se inspira para tentar conduzir a bom
termo a tarefa que se impõe nesta segunda metade do século: romper, no
plano econômico, como no político, os grilhões que, de modo indefinido, se
designam por “sta1inismo”, sem contudo renunciar aos princípios
fundamentais do socialismo - antes, ao contrário, descobrindo ou
reencontrando as fórmulas de um socialismo autêntico, isto é, com
liberdade.
Já em plena Revolução de 1849, Proudhon sabia que era demasiado
pedir aos seus artesãos que instaurassem, de imediato, a “anarquia”, e, por
não ser exequível este programa ideal, esboçou um programa libertário
mínimo: desarmamento progressivo do poder do Estado e desenvolvimento
paralelo, desde a base, dos poderes populares, apelidados por Proudhon de
Clubes e que o homem do século 20 apelidaria de Conselhos (ou comitês).
Segundo parece, o propósito mais ou menos consciente dos socialistas
contemporâneos situam-se à volta de um programa deste gênero.

O anarquismo tem assim uma oportunidade de se renovar. Não logrará,


porém, a reabilitação plena, se não souber desmentir, pela sua doutrina e
pela sua ação, as interpretações deturpadas de que tem sido, por longo
tempo, objeto. Impaciente por eliminá-lo na Espanha, Joaquin Maurin
sugeriu em 1924 que a ideias libertária só se manteria em alguns “países
atrasados”, no seio das massas populares que a ela se “aferram” por
“desprovimento total de educação socialista”, “entregues aos seus impulsos
naturais” e, concluindo: “Um anarquista que alcança uma visão esclarecida
deixa automaticamente de ser anarquista”.
Confundindo “anarquia” com desorganização, o historiador francês do
anarquismo Jean Maitron acreditou, há anos, que o anarquismo havia
perecido com o século 19, porquanto a nossa época “é de planos,
organização e disciplina”. Mais recentemente, o inglês Georges Woodcock
julgou poder acusar os anarquistas de idealismo contra a corrente histórica
predominante, nutrindo-se da visão de um futuro idílico, fascinados, pelos
clarões mais atraentes de um passado crepuscular. Outro especialista inglês
do anarquismo, James Joll, empenha-se em afirmar que os anarquistas são
desatualizados, pois as suas concepções estariam em oposição ao
desenvolvimento da grande indústria, da produção e do consumo em massa,
e que as suas ideias se baseiam numa visão romântica e retrógrada de uma
sociedade ideal, pertencente ao passado e constituída por artesãos e
camponeses, enfim, sobre a rejeição total das realidades do século 20 e da
organização econômica.
Nas páginas que precedem, tentamos mostrar que esta imagem do
anarquismo não é a verdadeira. O anarquismo construtivo, aquele que
encontrou a sua expressão mais completa sob a pena de Bakunin, assenta na
organização, na autodisciplina, na integração, numa centralização não
coerciva, mas federalista. Apoia-se na grande indústria moderna, na técnica
moderna, no proletariado moderno, num internacionalismo de dimensões
mundiais, por outras palavras, pertence ao século 20, é do nosso tempo.
Não é o anarquismo, mas antes o comunismo de Estado, que não
corresponde mais às necessidades do mundo contemporâneo.
Joaquin Maurin admitiu, em 1924, que na história do anarquismo os
“sintomas de debilidade” são seguidos de um “impetuoso renascimento”.
Talvez este marxista espanhol tenha sido bom profeta. O futuro o dirá.
BIBLIOGRAFIA
Dada a sua extensão, resulta impossível incluir aqui todas as obras das
quais extraímos textos citados ou resumidos neste livro. Por conseguinte,
limitamo-nos a dar algumas sugestões bibliográficas, que possam guiar o
leitor, quer sobre os assuntos abordados, quer Sobre os teóricos mais
citados do anarquismo27.
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Notas:
1
“Libertários” e “socialismo libertário” ou “libertarismo”: Sinônimos de
“anarquistas” e “anarquismo”, criados por Joseph Déjacques, anarquista
francês, autor da famosa obra “Humanisfério” (utopia anarquista),
publicada inicialmente era folhetins, no jornal “Le Libertaire”, editado,
redigido, administrado e expedido por ele sozinho de 1858 a 1861, em
Nova York, onde se havia exilado após a revolução de 1848 de Paris. Mais
tarde outro teórico francês do anarquismo, Sebastien Faure, autor, entre
outras obras, da “Dor Universal” e das “Doze Provas da Inexistência de
Deus” (esta, editada pela GERMINAL), retoma estas expressões, como
sinônimos e em substituição de “anarquistas” e “anarquismo”, sobre os
quais as atividades terroristas dos chamados “bandidos trágicos”, que se
proclamavam “anarquistas” (Ravachol, os da quadrilha Bonot e outros),
haviam concitado o ódio de grandes Sectores da opinião pública mundial e
contribuído para que estas palavras se convertessem em sinônimos de
“desordem” e “desordeiros”. Ainda hoje, os anarquistas alemães preterem
designar-se por “socialistas libertários”. (R.N.)
2
Sede da Polícia de Paris. (R.N.)
3
“A Revolução desconhecida”, já publicada em alemão, francês,
espanhol e inglês. (R.N.)
4
“La Science et la tâche révolutionarie urgente”, ed. Kolokol, Genebra,
1870
5
Sem citar Stirner, o que significa não ser certo que Proudhon o haja
lido.
6
Mais comumente, os anarquistas designam os marxistas por “primos”
(R.N.)
7
Compreendo estas percentagens com a estabelecida pelos decretos da
República argelina, que em Março de 1963 institucionalizou a autogestão,
nota-se que os diversos fundos são, mais ou menos, os mesmos. A
propósito, deve dizer-se que a última das percentagens, destinada a
remunerar o trabalho, originou grande controvérsia.
8
Conf. A mesma discussão na “Crítica do programa de Gotha”
(redigido por Karl Marx em 1875 e publicado somente em 1891).
9
Ramo da Internacional na Suíça, que adotara as ideias de Bakunin.
10
Quando em Janeiro de 1937, numa conferencia pública de Pi e
Margall, Gaston Leval censurou-o por ser pouco fiel a Bakunin.
11
Sendo fundamentalmente contra o Estado, contra todos os Estados,
não podem os anarquistas defender os “Estados Unidos da Europa” ou “os
do mundo inteiro”. Não conhecemos o texto citado por Daniel Guérin.
Estamos certos, porém, de que Bakunin quis referir-se a uma federação de
povos, não de Estados, unidades políticas baseadas na autoridade, no
governo, ou seja na violência, de que o anarquismo é a negação (R.N.).
12
Os anarquistas não são “internacionalistas”. O “internacionalismo”
pressupõe a existência de “nações”, expressão territorial, física e
administrativa, do Estado, que os anarquistas não reconhecem. Qualquer
burguês reacionário, qualquer socialista autoritário e qualquer comunista à
maneira russa, todos eles defensores do Estado, é “nacionalista” e, portanto,
“internacionalista”, pois ninguém, por mais “naciona1ista” que se diga,
pode pretender que as nações vivam isoladas umas das outras, e o
“internaciona1ismo” não é outra coisa senão a doutrina que advoga as
relações entre as nações. Os anarquistas, ao contrário, são anti-
nacionalistas, anacionalistas, cosmopolitas, “cidadãos do mundo”, pois
insurgem-se contra a divisão do mundo, por meio das fronteiras artificiais
erguidas pela ambição dos senhores feudais, que tolhem os homens de
confraternizar e que constituem acendalha constante de guerras. Em vez do
“internacionalismo”, que é sempre burguês, reacionário, patrioteiro, os
anarquistas propugnam o federalismo libertário, visando a federação das
associações comunais e regionais dos diversos ramos de atividade, numa
planificação mundial baseada na cooperação de todos os produtores,
independentemente de raça e de nacionalidade. A confusão de Bakunin,
apesar da sua extraordinária clarividência, como a da maioria, senão
totalidade, dos anarquistas do seu tempo e também de muitos da nossa
época, é compreensível: Sendo as nações, aglomerados de seres humanos
ligados por uma língua universal, viam-se forçados a aceitar a estrutura que
o mundo burguês, estatal e capitalista, apresentava, ou seja um mundo
dividido em compartimentos-estanques (as nações), por meio das fronteiras
geradas pela sorte de armas dos mais fortes aventureiros. O panorama do
mundo modificou-se, porém, com o aparecimento da língua mundial, o
esperanto, esse terrível ácido sulfúrico das fronteiras, um dos fatores mais
revolucionários de todos os séculos, que já hoje conta centenas de jornais e
revistas, numerosas editoras que fazem aparecer diariamente livros no
idioma da pátria humana, e milhões de pessoas de pessoas que por todo o
mundo o falam e escrevem. Coerentes com as suas ideias de liberdade, de
fraternidade e de antidiscricionarismo linguístico, os anarquistas, refugando
o patriotismo convencional e criminoso (porquanto gerador da guerra) dos
senhores do mundo, adotaram o esperanto como idioma oficial, no
congresso mundial, que recentemente celebraram em Carrara, Itália.
Assinale-se também a existência de uma vasta organização mundial,
cultural e revolucionária, de esperantistas, tendo por lema “O esperanto ao
serviço do proletariado”: A “Sennacieca Asocio Tutmonda” (Associação
Anacionalista Mundial), com dois órgãos na imprensa, um jornal e uma
revista, no idioma da pátria planetária. A S.A.T. que anualmente celebra
congressos mundiais em esperanto sobre os problema da emancipação do
proletariado e que, por este motivo, tem sido da sanha de todos os ditadores,
deste Hitler à Stálin até Salazar, possui a sua sede em Paris (20), rua
Gambetta, 67. Só quem maneja este admirável instrumento revolucionário e
aglutinador dos povos, que é o esperanto, pode ser totalmente anarquista,
isto é, emancipado dos preconceitos patrióticos e nacionalistas, e, como
Diógenes, proclamar-se “cidadão do mundo”. Sem esperanto, o grito da 11o.
Associação Mundial de Trabalhadores, “Trabalhadores do Mundo, uni-
vos!”, permanecerá sem eco. Pois como poderão unir-se OS trabalhadores
de todo o mundo se, carentes de um idioma comum, continuam condenados
à terrível maldição lançada por Jeová sobre os pobres construtores da Torre
de Babel? (R.N.)
13
Hoje, preterimos usar a expressão “federação mundial”, mais de
acordo com o ideário anacionalista dos anarquistas. (R.N.)
14
Robert Louzon observou ao autor deste livro que, de um ponto de
vista dialético, os dois testemunhos, o de Pelloutier e o seu, não se excluem:
O terrorismo teve sobre o movimento proletário efeitos contrários
15
Ao regressar, desiludida, à América do Norte de onde emigrara para a
Rússia, como voluntária, para colaborar na Revolução de Outubro, Emma
Goldman publicou, nos jornais anarquistas norte-americanos, uma série de
artigos de análise à obra contrarrevolucionária de Lênin, sob o título de “O
Grande Jesuíta” (Lênin). (R.N.)
16
É sabido que a tática de guerrilhas usada na Sierra Maestra, que deu a
vitória a Fidel Castro e Ernesto Guevara que hoje corre mundo da imprensa
sob o nome de “Che”, foi decalcada sobre a tática de guerrilhas dos
anarquistas da Ucrânia (exposta pormenorizadamente na obra de Volin, “A
Revolução desconhecida”), também adotada pelos anarquistas espanhóis na
Revolução da Espanha. (R.N.)
17
A discussão entre anarcossindicalistas sobre os méritos dos conselhos
de fábrica e dos sindicatos operários não constituía, aliás, uma novidade: Na
Rússia, acabava de cindir os anarquistas, nomeadamente a equipe do jornal
libertário Golos Truda, em que uns permaneceram fiéis ao sindicalismo
clássico, e outros, como G. P. Maximoff, optaram pelos conselhos.
18
A K.A.P.D. viria a constituir, em abril de 1922, com grupos de
oposição holandeses e belgas, uma “Internacional Comunista Operária .
19
Em França, os sindicalistas da tendência (libertária) de Pierre
Besnard, excluídos da confederação Geral do Trabalho Unitário (C.G.T.U.),
fundaram, em 1924, a Confederação Geral do Trabalho Sindicalista
Revolucionária (C.G.T.R.), aderente à A.I.T. (anarcossindicalista).
20
Em Castela, nas Astúrias, etc., predominava uma Central Sindical
socialdemocrata, a União Geral dos Trabalhadores (U.G.T.).
21
A C.N.T. só em 1931 aprovou a criação de federações de indústria,
ideia que havia sido rechaçada em 1919. Os “puros” do anarquismo temiam
que a propensão destas federações para o centralismo e para burocracia,
mas tornara-se imperativo responder à concentração capitalista com a
concentração dos sindicatos de uma mesma indústria.
22
Fuzilado pelos franquistas nos primeiros dias da revolução de julho de
1936 (R.N.)
23
Nome que se dava aos governos regionais autônomos.
24
A associação Internacional dos Trabalhadores, à qual estava filiada à
C.N.T., realizou em Paris, de 11 a 13 de Junho de 1932, um congresso
extraordinário, que censurou a central anarcossindicalista pela sua
participação no governo e as concessões que, em consequência, foi
obrigada a aceitar. Com este precedente, Sebastien Faure decidiu-se
publicar em Le Libertaire (8, 15 e 33 de junho), sob o título La pente fatale,
uma série de artigos que criticava os anarquistas espanhóis pela sua
colaboração com o governo. Desgostosa com estas críticas, a C.N.T.
provocou a demissão do secretário da A.I.T., Pierre Besnard.
25
Dizemos “em princípio”, pois a este respeito verificaram-se litígios
entre algumas aldeias.
26
Todavia, nas localidades do Sul, não controladas pelos
anarcossindicalistas, as expropriações das grandes propriedades, operadas
autoritariamente pelas municipalidades, não constituíram verdadeira
mudança revolucionária para os trabalhadores rurais: A sua condição
salarial não foi alterada; não houve ali autogestão.
27
Grande parte dos textos anarquistas, esgotados ou inéditos, são
reproduzidos na história e antologia do anarquismo, organizada por Daniel
Guérin e lançada, em 1967, pelas Edições de Delphes, 29, rua Trévise,
Paris, tendo por título NI DIEU NI MAITRE.
28
Esta obra está editada, em português, pela Editorial Verbo, Lisboa,
1967. (N. Ed.).
Sobre o autor

Daniel Guérin (Paris, 1904-Suresnes, 1988) foi um historiador e teórico


anarquista francês, considerado um dos mais lúcidos pensadores libertários
do século XX. Em sua trajetória intelectual, notabilizou-se por buscar uma
síntese revolucionária entre o anarquismo e o marxismo, esforçando-se para
conciliar estes dois sistemaa de pensamento. Destacou-se também por seu
posicionamento anti-fascista e anti-colonialista, por seus trabalhos em
defesa do amor livre e dos direitos dos homossexuais e por ter apoiado a
Confederação Nacional do Trabalho durante a Guerra Civil Espanhola
(1936-1939). Como historiador fez importantes contribuições para a
historiografía da Revolução Francesa de 1789. Suas obras mais conhecidas
são Anarquismo: Da Doutrina à Ação, Por Um Marxismo Libertário e Nem
Deuses, Nem Patrões: Uma Antologia do Anarquismo, na qual compilou
ideias e movimentos inspirados pelos primeiros escritos de Max Stirner
desde meados do século XIX até a segunda metade do século XX.
Table of Contents
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
DANIEL GUÉRIN: O HOMEM, O MILITANTE, O ESCRITOR
PREFÁCIO
PRIMEIRA PARTE AS IDEIAS-FORÇA DO ANARQUISMO

QUESTÃO DE VOCABULÁRIO

UMA REVOLTA VISCERAL

O HORROR AO ESTADO

NA DEMOCRACIA BURGUESA

CRÍTICA DO SOCIALISMO “AUTORITÁRIO”

AS FONTES DE ENERGIA: O INDIVÍDUO

AS FONTES DE ENERGIA: AS MASSAS

SEGUNDA PARTE EM BUSCA DA SOCIEDADE FUTURA

O ANARQUISMO NÃO É UTÓPICO

NECESSIDADE DE ORGANIZAÇÃO

A AUTOGESTÃO

AS BASES DA TROCA

A CONCORRÊNCIA

UNIDADE E PLANIFICAÇÃO

SOCIALIZAÇÃO INTEGRAL?

SINDICALISMO OPERÁRIO

AS COMUNAS
UMA PALAVRA LITIGIOSA: O “ESTADO”

COMO GERIR OS SERVIÇOS PÚBLICOS

FEDERALISMO

INTERNACIONALISMO

DESCOLONIZAÇÃO

TERCEIRA PARTE O ANARQUISMO NA PRÁTICA


REVOLUCIONÁRIA

CAPÍTULO I DE 1880 A 1914

O ANARQUISMO ISOLA-SE DO MOVIMENTO


PROLETÁRIO

OS SOCIALDEMOCRATAS VITUPERAM OS
ANARQUISTAS

OS ANARQUISTAS NOS SINDICATOS

CAPÍTULO II O ANARQUISMO NA REVOLUÇÃO RUSSA

UMA REVOLUÇÄO LIBERTÁRIA

UMA REVOLUÇÃO “AUTORITÁRIA”

O PAPEL DOS ANARQUISTAS

A “MAKHNOVITCHINA”

KRONSTADT

O ANARQUISMO MORTO E RESSUSCITADO

CAPÍTULO III O ANARQUISMO NOS CONSELHOS DE


FÁBRICA ITALIANOS
CAPÍTULO IV O ANARQUISMO NA REVOLUÇÃO ESPANHOLA

A IMAGEM SOVIÉTICA

A TRADIÇÅ0 ANARQUISTA EM ESPANHA

BAGAGEM DOUTRINÁRIA

UMA REVOLUÇÃO “APOLÍTICA”

OS ANARQUISTAS NO GOVERNO

OS ÊXITOS DA AUTOGESTÃO

A AUTOGESTÃO SABOTADA

À GUIZA DE CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
Notas:
Sobre o autor

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