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Curso Online de Filosofia

OLAVO DE CARVALHO

Aula 04
18 de abril de 2009
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

[COF20090418-01]

Boa tarde a todos!

Retomando o tema da aula passada, eu vou ler de novo aquele parágrafo do Louis Lavelle, e
prosseguir um pouco mais no texto, para introduzir o que vai ser o tema da aula de hoje. Diz
ele:

Há na vida momentos privilegiados em que parece que o Universo se ilumina, que a nossa vida
nos revela sua significação, que queremos o destino mesmo que nos coube como se nós mesmos
o tivéssemos escolhido; depois o Universo volta a fechar-se, tornamo-nos novamente solitários
e miseráveis, já não caminhamos senão tateando num caminho obscuro onde tudo se torna
obstáculo aos nossos passos. A sabedoria consiste em salvaguardar a lembrança desses
momentos fugidios, em saber fazê-los reviver e fazer deles a trama da nossa existência
cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.

E continua:

Não há homem que não tenha conhecido tais momentos, mas ele os esquece depressa como um
sonho frágil, pois ele se deixa captar quase imediatamente por preocupações materiais ou
egoístas que ele não consegue atravessar ou ultrapassar, porque ele pensa reencontrar nelas o
solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo que é próprio de uma grande filosofia é reter e
reunir esses momentos privilegiados, mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz
cujo horizonte é infinito, do qual todas as partes são solidárias e que está sempre oferecido ao
nosso pensamento e que, sem jamais dissipar as sombras da caverna, nos ensina a reconhecer
em cada uma delas o corpo luminoso do qual ela é a sombra.

Nós temos aqui um jogo permanente, uma dialética permanente. Nós recolhemos todos os
dados da nossa vida na unidade da nossa autoconsciência e acreditamos percebê-los todos como
um sistema coerente, fundamentado, ordenado e cheio de sentido — tão cheio de sentido que
nós o aceitamos, diz ele: “como se nós mesmos tivéssemos escolhido” este destino. Nesses
momentos não há hiato, não há separação entre o que é a realidade e a idealidade, entre o que é
o fato bruto e empírico e o que seria a escolha racional e livre feita por nós mesmos. Depois
esses dois elementos se separam novamente: a nossa consciência, a nossa unidade interior vai
para um lado, e o mundo dos fatos vai para o outro, formando então uma oposição.
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Essa oposição se agrava porque, no momento em que as preocupações externas, alheias, ou


antagônicas à consciência se impõem a ela como se fossem a realidade mesma, a situação
momentânea se impõe a você e o oprime, e você presta atenção e respeita essa situação
momentânea acreditando que ela é a realidade, no entanto, seu mundo interior é apenas sonho,
pensamento etc. Mas é claro que isso é uma gravíssima ilusão de ótica, porque não há situação
externa, por mais opressiva ou atraente que seja, que não passe. Todas elas são transitórias,
estão continuamente vindo e voltando, entrando e saindo, e continuamente se desfazendo. Se o
“solo duro da realidade” consistisse efetivamente dessas situações, então não haveria solidez
nem consistência nenhuma, seria um permanente fluxo de aparências — como de fato é. A
outra experiência, por outro lado — a experiência da unidade da consciência —, nos remete já a
uma outra esfera da realidade, que é mais estável e permanente, de modo que todas as situações
que foram vividas, e que lhe pareceram ter uma certa importância no momento em que elas se
apresentavam, são todas apenas impressões.

Estas impressões são mais fugidias até do que estes momentos a que se refere o Lavelle, e se
nós lhes damos tanta importância, é em grande parte porque elas são a negação de tudo aquilo
que nós queremos ser — nós prestamos atenção a essas coisas, respeitamos essas situações,
damos importância a elas, por efeito do medo. O seu eu mais interior teme a situação exterior,
teme as pressões antagônicas, e então “cai de joelhos”, por assim dizer, diante do inimigo. Nós
somos levados a isso por uma covardia, mas em seguida nós tentamos justificar, legitimar
retroativamente a nossa covardia, dizendo que “abandonamos o mundo dos sonhos”. Tudo
aquilo que nos é mais próprio, íntimo e verdadeiro — tudo aquilo que é mais nós mesmos — é
então condenado como se fosse uma ilusão, e as situações passageiras e ilusórias são
entronizadas como se fossem a verdadeira realidade.

Esse é o momento em que você traiu a si mesmo, traiu aquilo que existe de mais elevado e mais
sério em você mesmo e, automaticamente, você entra então em uma nova posição existencial,
na qual a compreensão da sua existência e da própria realidade exterior se tornam impossíveis.
Quanto mais você respeita, quanto mais você cultua essas situações exteriores, sejam elas de
ordem opressiva ou de ordem mais atraente e sedutora, mais burro você está ficando, mais você
está se afastando do centro de sua consciência.

Na definição de filosofia que eu dei já há anos atrás — “a busca da unidade do conhecimento na


unidade da consciência e vice-versa” — já está subentendido que o exercício da filosofia
depende menos da aquisição de uma cultura filosófica do que da aquisição de uma espécie de
força. Uma espécie de poder que o indivíduo tem de perseverar em si mesmo. De perseverar
nesses momentos a que se refere o Louis Lavelle, e de encarar tudo com a máxima seriedade em
face daquilo que é mais permanente e, em última instância, decisivo. De algum modo, é como
você olhar tudo sob a categoria da única certeza que existe: a certeza da morte. Você sabe que
vai morrer um dia. Sabe que no instante em que você morrer a sua vida não poderá sofrer mais
transformações. E sabe que você terá alcançado a sua forma completa e definitiva —
simbolizada, como eu já lhes disse, num caixão sextavado de defunto, que imita e simboliza os
seis dias da criação e, portanto, o fim do ciclo de transformações. Trata-se de olhar a vida sob o
aspecto dessa forma final que você terá adquirido no instante da morte, e então, evidentemente,
olhar tudo o que é transitório à luz do que é definitivo. Sem isto, toda a pretensão de
conhecimento, de moralidade, de conduta certa etc. é ilusão, imitação, frescura. É tudo uma
futilidade imensa.

A capacidade de perseverar nessa atitude descrita aqui pelo Louis Lavelle é a atitude central no
aprendizado da filosofia. E na verdade ela é um exercício psicológico, um exercício
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espiritual, e não um aprendizado por leitura. Não se trata de um estudo, mas de uma prática
espiritual, e é precisamente isso que, quando falta, torna as filosofias exercícios de futilidade
[00:10] — que podem até servir para outras finalidades de ordem mais externa (sociológica,
política etc.), mas que escapam formidavelmente de tudo aquilo que define e dá valor à
filosofia.

Eu desejaria aqui que os alunos deste curso entendessem isso desde o início. É claro que a
preparação para o exercício filosófico exige uma quantidade de estudos enorme, mas o principal
não é da ordem dos estudos. O principal é da ordem da atitude psicológica, espiritual e moral
que você vai ter perante tudo isso, e esta atitude só pode ser definida como a da mais alta
seriedade. A mais alta seriedade que é acessível ao ser humano é encarar os fatos e situações à
luz daquilo que é definitivo e irrevogável. Daquilo que não tem mais conserto e não tem mais
volta: a morte. Não tanto o fenômeno da morte em si mesmo, encarado apenas como um
processo biológico, mas a morte encarada como o final das transformações, o final do jogo, em
que não há mais um lance a ser dado, não é possível corrigir mais nada ou voltar atrás no que
quer que seja.

Nós podemos viver na expectativa de que nos momentos finais da vida nós podemos mudar o
sentido da coisa inteira. No caso da religião, por exemplo, se relata o caso do arrependimento
no leito de morte. Mas se arrepender no leito de morte é apenas garantir para você um
lugarzinho na vida post-mortem, e não vai mudar retroativamente a sua vida nesta terra. O seu
destino post-mortem não depende de você em absolutamente nada, mas a forma da sua vida
terrestre depende, e depende justamente na medida em que você a encare à luz do fato da morte,
e à luz do fato da vida após a morte. Não precisa nem acreditar em vida após a morte; basta
saber que você vai morrer, e que nesse instante você adquirirá a sua forma definitiva e não será
mais possível voltar atrás, corrigir erros, recuperar elementos perdidos etc. Aquilo que foi, foi;
aquilo que não foi, não será jamais.

Uma verdadeira seriedade e sinceridade só é possível nesse nível, porque o resto é tudo
futilidade. Quando você está agindo não à luz e sob a inspiração desse conhecimento e dessa
recordação, mas em função de expectativas do momento, essas expectativas são o quê? São a
opinião dos outros, os seus próprios desejos e ilusões, a pressão dos colegas — peer pressure,
como eles chamam aqui no EUA — a pressão da família, do emprego, do patrão, enfim: é
qualquer porcaria externa perfeitamente transitória. Por exemplo, quem quer que tenha uma
família e tenha uma certa idade percebe que ao longo da vida fez uma série de sacrifícios inúteis
pela família. Se o sujeito tivesse sacrificado apenas a sua vaidade e ambição para favorecer
mulher e filhos estaria tudo bem, mas às vezes ele sacrifica coisas espiritualmente preciosas em
função da família, e quando ele alcança uma certa idade ele vê que não valeu a pena, e vê que
aquela concessão só serviu para corrompê-lo e para corromper também a própria família.

Tudo o que nós estudarmos em filosofia será apenas futilidade, leviandade, frescura, se não for
feito com esse espírito. Qualquer coisa que você leia ou medite sobre filosofia tem de ser feita
com a imagem da morte na sua frente. Ortega y Gasset falava das “idéias dos náufragos”; ele
dizia que só valem aquelas idéias que ainda tem alguma importância para os náufragos. Na hora
em que o sujeito está se afogando e se agarra a uma tábua para não ser engolido pelas águas,
quantas das idéias e crenças dele sobrevivem nesse momento? Algumas sobrevivem, decerto,
mas a maioria não, e só uma fração muito pequena do que teve importância em outros
momentos se conservará viva e atuante nesse hora.
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Se eu pudesse recomendar a vocês uma experiência que é particularmente educativa, nesse


sentido, seria a experiência do risco de morte. Eu mesmo passei por isso muitas vezes na minha
vida, e sei que isso é uma excelente peneira das suas idéias e interesses. Quase tudo aquilo que
parecia importante dois minutos antes cessa de ter importância na mesma hora — mas nem tudo
se perde, tem alguma coisa que sobra. Georges Bernanos, por exemplo, dizia que “o risco que
nós corremos não é o de morrer, mas o de morrer como imbecis” — e em todas as situações de
perigo de morte que eu passei a idéia dessa frase me voltava. Eu pensava: “eu não posso morrer
como um imbecil, não posso morrer como um covarde, não posso morrer como um bichinho; há
coisas que o ser humano tem de fazer, e que dignificam a sua vida no instante da morte.”
Depois, se você não morre, a situação passa, mas aquilo que passou de certo modo foi ganho, se
incorporou na sua personalidade, de modo que o conjunto das suas experiências de risco de
morte constitui um patrimônio para a vida subseqüente. E espero eu que este conjunto sirva
como patrimônio no instante da morte verdadeira, porque até agora todas essas situações de
risco de morte passaram, mas acredito que algum dia vai ter uma que não vai passar, e a minha
vai acabar ali mesmo. Espero que nesse momento tudo aquilo que eu aprendi nas situações
anteriores possa se condensar e ser de alguma utilidade de algum modo.

Dos elementos antagônicos que nos corroem, nos afastam da consciência, nos dispersam —
notem bem: dispersam não a nossa concentração intelectual, mas a nossa concentração moral, e
nos fazem esquecer o propósito da nossa vida —, nós podemos fazer uma espécie de “galeria de
periculosidade”. Tal como as delegacias têm retratos dos bandidos mais procurados e perigosos,
também nós podemos aqui botar uma galeria na nossa parede e dizer: os inimigos são esses,
esses e esses. Se você ler os clássicos da educação e literatura moral cristã — Santo Agostinho e
os Padres da Igreja, por exemplo —, você verá que em geral eles apontam como principal
inimigo os seus desejos, especialmente os desejos de riquezas e de prazeres. Porém, muito
tempo transcorreu desde a época de Santo Agostinho, muitas coisas mudaram. Há situações
hoje, que se impõem ao cidadão de classe média num meio urbano, que são muito diferentes
daquelas que se ofereciam a um filho de nobre ou a um estudante, seja na Antigüidade, seja na
Idade Média.

Em primeiro lugar, a pressão do meio social aumentou terrivelmente. Nós hoje não somos mais
capazes de conceber a atmosfera de liberdade que as pessoas desfrutavam na Antigüidade ou na
Idade Média. A nossa cultura acredita naquele mito croceano, segundo o qual a História é a
história da liberdade crescente, [00:20] e imagina que, como hoje nós temos liberdades civis e
direitos civis que as pessoas não tinham naquele tempo, eles viviam oprimidos. Mas essa
liberdade crescente reflete a história jurídica, não a história social. Juridicamente falando, nós
conquistamos um monte de direitos, mas o jurídico é apenas aquilo que vale nos tribunais, não é
aquilo que decide a nossa conduta no dia-a-dia. O que decide a nossa conduta no dia-a-dia é a
organização econômica da sociedade, a estrutura física das cidades onde nós vivemos, e assim
por diante.

Não se pode esquecer, por exemplo, que até certa época a maior parte das pessoas trabalhava
em casa ou muito perto de casa, e não sabiam o que era esse problema chamado “trânsito”. Eu
me lembro que quando eu era jovem e pensei em me tornar aluno da USP, foi só eu tomar um
ônibus para ir à USP que eu já desisti imediatamente: “eu vou passar três horas nessa porcaria
todos os dias, e depois mais cinco horas ouvindo os caras falarem besteira?” Mas seja no
Império Romano, seja na Idade Média, a situação de um sujeito sair a cavalo, encontrar um
congestionamento, e não conseguir chegar no seu emprego era simplesmente inconcebível.
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O conjunto de pressões externas que caem sobre a nossa vida é hoje imensamente maior do que
foi em qualquer época anterior. Isso pode ser datado a partir da organização moderna da
sociedade que começa com a sociedade industrial — hoje estamos na chamada “sociedade de
serviços”. Isso começa a se complicar a partir do fim do século XVIII e começo do século XIX,
na chamada Revolução Industrial que, na mesma medida em que cria uma quantidade enorme
de riquezas e uma disponibilidade de serviços impensável em outras épocas, também vai
criando um conjunto cada vez maior de pressões e exigências. Qualquer camponês ou burguês
da Idade Média morreria de terror em pensar que teria de viver sob essa pressão o tempo todo.

Em primeiro lugar, a pressão dos horários. Nós esquecemos que durante muito tempo só houve
um horário rigoroso para os monges; só eles tinham hora certa para fazer as coisas, enquanto o
horário de todos os outros era altamente flexível. A que horas, por exemplo, o camponês tinha
de levantar para trabalhar no solo? Não havia um horário preciso, isso variava conforme a época
do ano e conforme as suas conveniências, e se ele não quisesse levantar para trabalhar um dia,
isso não ia fazer a menor diferença. A pressão dos horários não existia senão para os monges,
mas nesse caso era uma pressão de ordem disciplinar, moral, que lhes fazia bem e que eles
desejavam. O monge tinha de dormir pouco, deitava às dez da noite e acordava às três da manhã
para rezar, rezava, dormia mais um pouquinho, acordava e rezava mais uma hora para depois
tomar o café da manhã. O dia era dividido em cinco etapas, e essas etapas eram rigorosas.
Quem desenvolveu a arte de medir o tempo foram os monges, e eles o fizeram por necessidades
internas dos monastérios, não de ordem prático-econômica, mas ligadas à disciplina religiosa e
moral. Para todos os demais seres humanos não havia essa pressão dos horários. Hoje você sabe
que uma desobediência ao relógio pode destruir a sua vida. Se você chegar atrasado no trabalho
cinco ou seis vezes, você perde o emprego, e pode não ter o que comer no mês que vem. Essa é
uma pressão monstruosa e destrutiva, que pesa sobre todos nós. Nós vivemos com medo do
relógio e esquecemos que esta é uma experiência nova na espécie humana. Nós imaginamos
ingenuamente que este é o destino humano, mas não é: é uma coisa inventada, que apareceu
num certo momento e se desfará em outro.

Outro exemplo: esta separação rígida entre momentos de trabalho e momentos de lazer que nós
temos hoje não existiu na maior parte das civilizações. O elemento de trabalho e o elemento
lúdico estavam tão indistintamente misturados que as pessoas não precisavam de um dia
específico, de uma data específica para os seus lazeres. Por exemplo, os camponeses
plantadores, que trabalhavam cantando. Você consegue imaginar uma fábrica moderna aonde as
pessoas trabalhem cantando? Não é possível. Se você cantar na hora do expediente, você perde
o emprego e, no entanto, gerações e gerações de camponeses trabalharam cantando. Se alguém
dissesse aos camponeses: “Vamos parar e nos divertir”, eles responderiam: “Parar e nos divertir
por quê? Nós já estamos nos divertindo aqui!”.

Há, portanto, uma série de elementos que vêm da simples organização física da sociedade, e que
pesam sobre nós com exigências que podem se tornar bastante angustiantes. Mas elas são
angustiantes não somente pela sua presença, pela pressão que exercem, como também pela sua
ausência. Porque quando você perde a conexão com essa organização da sociedade — como
quando você perde o emprego, ou perde os horários — você fica completamente perdido, se
sente isolado, desamparado e perseguido, e pode ficar até paranóico por causa de uma coisa
dessas. Eu me lembro que quando eu era jovem, se eu perdia um emprego eu ficava
desesperado para arrumar outro, não só por causa do fator econômico, mas também porque o
emprego me dava toda a rede de conexões sociais e meios de contato. O sujeito sem
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emprego fica privado de contatos sociais. Ele não pode mais falar com seus colegas porque eles
estão trabalhando, não pode entrar no emprego deles e ficar batendo papo. É uma coisa terrível,
porque na hora em que você perde o emprego, você perde a sua rede de amigos também, e é
obrigado a construir outra rede fora, e assim por diante.

Até o século XIX, mais ou menos, pouquíssimas pessoas conheciam essa situação. Elas tinham
a sua rede de conexões e contatos no lugar onde nasceram, e não tinham como perdê la, a não
ser que cometessem algum crime e for mandado embora da cidade. Não existia essa questão do
ostracismo, do isolamento, da solidão moderna. É claro que existiam outros problemas:
doenças, pestes, assaltos nas estradas, insegurança generalizada. Na Europa, uma certa
segurança policial existiu somente a partir dos séculos XVIII e XIX, e antes disso era
praticamente impossível fazer uma viagem sem ser assaltado. Havia outros problemas, nessa
época, completamente diferentes, mas esses problemas pesavam sobre o conjunto da sociedade,
sobre a comunidade, e não opunham o indivíduo à comunidade como estes problemas
modernos.

A maior parte das pressões que pesam sobre o indivíduo moderno são pressões que o isolam da
sociedade. É muito mais fácil você ser marginalizado e ostracizado hoje do que em qualquer
outra época da história. O número de pessoas que se sentem marginalizadas, separadas,
solitárias, numa cidade grande como São Paulo ou Rio de Janeiro é imenso. Esse é um fator
novo, que nunca existiu em nenhuma outra época da história humana e, como é um fator novo,
ele não faz parte da natureza humana. A natureza humana não está automaticamente habilitada
a lidar com essas situações. Todos esses elementos são forças de alienação, e por isso mesmo —
justamente porque eles se interpõem entre você e os seus sonhos, objetivos, e valores interiores
— eles constituem um desafio que só pode ser enfrentado mediante um esforço individual extra,
[00:30] de você juntar os caquinhos da sua existência e tentar restaurar a unidade da sua
consciência.

Esta preocupação de que está falando o Louis Lavelle só aparece para um grande número de
pessoas na Modernidade, não antes, porque antes os fatores de antagonismo e de demolição da
unidade interior não eram tão prementes e ameaçadores quanto são na sociedade moderna. Nós
podemos dizer que na Modernidade, justamente na medida em que aparecem esses fatores
antagônicos em grande número, se desenvolve, por exemplo, o gênero romance, que é um
gênero característico do século XIX. Claro que houve precursores, mas o romance é o gênero
do século XIX, onde vai aparecer Henry Fielding, Walter Scott, Balzac, etc., que vão definir o
gênero. O romance é essencialmente a história de uma alma contra a sociedade. O herói do
romance é sempre alguém que tem algum problema com a sociedade, alguém que não se
encaixa na sociedade, ou porque ela é complexa demais e ele não a entende. Ou porque, ao
contrário, crê que ela o rebaixa e ele não aceita este rebaixamento, ele quer se sobrepor, quer
vencer a sociedade, como é o caso de Raskólnikof no Crime e Castigo; ou Rastignac nas
Ilusões Perdidas de Balzac. Vocês vêem que o surgimento de todo um gênero literário, que é o
gênero mais importante dos últimos dois séculos é definido pela inexistência de harmonia entre
o homem interior e a sociedade. Isto também é uma coisa que é desconhecida nos séculos
anteriores.

A sociedade moderna, na medida em que promete uma igualdade de direitos, uma abertura para
todos, ela também suscita na alma de milhões de pessoas ambições que estão muito acima não
só da situação delas, mas também muito acima da capacidade delas. Por exemplo, o caso de
Raskólnikof: ele não é um gênio efetivamente, ele é um estudante medíocre que se acredita um
gênio. Ele acredita que pode ser um Napoleão Bonaparte, capaz de dominar a
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sociedade que ele teme. Ele quer alcançar poder sobre a sociedade porque ele tem medo dela,
então ele imagina que pode se tornar mais poderoso que ela e dominá-la. Ele, de fato, não pode
fazer isso, ele não tem capacidade para fazer isso. Se você perguntar: “naquela época, quantos
tiveram capacidade para ser Napoleão Bonaparte?” Exatamente um. Que foi Napoleão
Bonaparte. E mesmo Napoleão Bonaparte terminou muito mal.

O indivíduo que se sobrepõe à sociedade e que impõe a ela a marca da sua vontade: esse não é
um emprego que esteja à disposição de todo mundo, mas é uma ambição que é oferecida a todo
mundo. Você veja hoje em dia o número de pessoas que acreditam que podem transformar o
mundo: cada uma delas é o Raskólnikof. Nenhum delas pode transformar o mundo de maneira
alguma, nenhuma delas pode ter um milésimo do poder que imagina ter. Mas elas tentam
realizar isso. Mas não sozinhas. Elas dizem: já que a sociedade é poderosíssima demais, nós
podemos nos juntar, para nos sobrepormos a ela. Só que na hora em que se juntam, cria-se uma
outra sociedade que vai pesar sobre eles tanto quanto a anterior, ou mais ainda. Ou seja, vai ser
tão mais oprimente e tão mais alienante quanto a sociedade anterior. Isso quer dizer que, de fato,
a sociedade moderna criou pressões inauditas e criou uma série de alívios factícios, artificiais e
que nunca funcionam.

A única possibilidade que se oferece ao ser humano é esta que está aqui indicada pelo Louis
Lavelle: você não pode vencer a sociedade materialmente, mas você pode impedir que ela o
destrua. Vencê-la materialmente não tem sentido, porque você é um só e a sociedade são
milhões de pessoas, seria uma luta desigual. Porém, nada pode impedir que você conserve a sua
integridade interior, se você está firmemente disposto a isso. Na hora em que você está disposto
a isso, então você já entrou no caminho da Filosofia, que é a unidade do conhecimento na
unidade da consciência e vice-versa. De certo modo, você já é um filósofo a partir do instante
em que você decidiu que o domínio sobre a sua existência, sobre a sua biografia é seu. Isto é,
que você será o autor e responsável pelas escolhas interiores e você não se deixará hipnotizar e
dissolver pelo o que os outros querem que você seja. Só que, ao mesmo tempo, esta conquista
desse domínio sobre si não é possível se não houver este acordo interior a que se refere Louis
Lavelle. A compreensão do destino individual implica a sua aceitação total, como se você
mesmo tivesse escolhido a sua vida. Isso quer dizer que você adquire um domínio sobre a sua
existência no instante em que, intimamente, concorda com ela, aceita-a, e não se opõe ao seu
destino. Opõe-se, apenas, aos elementos alienantes.

Até certa época na história, quando a sociedade era bem menos pesada e bem menos organizada
e abrangente do que é hoje – digamos, no século IV, no tempo de Santo Agostinho – podia-se
dizer que os elementos alienantes, os elementos dispersantes eram, sobretudo, aqueles que estão
relacionados nos sete pecados capitais (cobiça, luxúria, etc.). Porém, hoje em dia, eu vejo, por
exemplo, que pessoas movidas pela cobiça, pela luxúria, etc., são em número muito menor do
que aquelas que são movidas, simplesmente, pelo medo e pelo desejo de aprovação. As pessoas
que são dirigidas pela cobiça, por exemplo, Zé Dirceu: quantos"Zés Dirceus" existem no Brasil?
É um número pequeno, eles estão todos com os bolsos cheios de dinheiro, o que não acontece
com a maioria. Para o Zé Dirceu fazer o que ele fez, ele precisou ter uma ousadia, uma
coragem, uma cara de pau. Ele já é, de certo modo, uma pessoa notável, uma pessoa
diferenciada, isto é, uma pessoa que não é dirigida pela pressão externa, mas pelos seus próprios
objetivos, que são objetivos malignos, mas são os dele, afinal de contas.

Nós não podemos esquecer que quando surge o Cristianismo, ele surge num ambiente greco
romano, onde os costumes eram de uma baixeza que hoje [00:40:00] nós não conseguimos
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imaginar. Por exemplo: hoje, diante da pedofilia, nós ficamos escandalizados e nós a
combatemos como um crime, ao passo que naqueles meios a pedofilia era aceita como um
hábito, não muito conveniente, porém legítimo. Era normal, em Roma e na Grécia, que todo
homem adulto, homem de posses, tivesse além das suas amantes, alguns garotos de 14, 15 anos,
que o serviam sexualmente. Era normal matar as crianças indesejadas. Se o pai de família
romano não quisesse um filho, ele tinha o direito de matá-lo. Mesmo entre pessoas que tinham
recebido a mensagem divina, a revelação – que foram os judeus – havia costumes que hoje nos
parecem absolutamente chocantes. Por exemplo, quando um sujeito não queria mais a mulher,
ele simplesmente a mandava embora. Hoje falam: “Ah, nós somos contra o divórcio.” Mas
mesmo o divórcio hoje é uma coisa mais decente, você comparece perante um juiz, você discute
as coisas, você vê os direitos, tem que pagar uma pensão, etc. Naquele tempo, era assim,
literalmente, um “pé na bunda”. Muitos desse costumes antigos prevalecem em certas áreas da
humanidade. No mundo islâmico, por exemplo, quando o sujeito manda a mulher embora, ele
tem autoridade total sobre os filhos, se ele quiser a mulher nunca mais vê os filhos.

Essa foi a atmosfera na qual apareceu o Cristianismo. Isso quer dizer que você tinha a pressão
do Estado e da sociedade em favor de hábitos e costumes que o Cristianismo condena. Passados
dois mil anos, muito coisa da moral cristã se incorporou nas leis e no próprio Estado, de modo
que a infração dessas leis morais traz a você um castigo terrível, independentemente da sua
religião pessoal. Por exemplo: se você pratica a pedofilia está desgraçado. Você não precisa ser
cristão para isso, a polícia vai lhe perseguir de qualquer maneira, os seus vizinhos vão lhe
rejeitar, a sua mulher não vai querer olhar para a sua cara. Você está desgraçado! Do mesmo
modo, o adultério, que é uma coisa, sem dúvida, muito menos grave do que a pedofilia. O
adultério pode desgraçar uma vida, hoje em dia. Agora, você imagina um senador romano ser
desgraçado, perder o seu lugar no senado, perder o seu dinheiro por causa de um adultério? Isso
é absolutamente inconcebível. Pode cometer dois adultérios, três adultérios, manda a mulher
calar a boca e pronto. Um filho ilegítimo pode desgraçar uma vida. Às vezes não chega sequer a
ser um adultério. Não tem o negócio do Bill Clinton com a Monica Lewinski? Ele disse que não
fez sexo, porque ele não sabia que sexo oral era sexo, mas o sujeito sofreu uma pressão
medonha por causa disso. Durante as eleições americanas, a Sarah Palin levou tomate e pedrada
de tudo quanto é lado, não porque ela teve um filho ilegítimo, mas porque a filha dela estava
grávida de um sujeito, sem ser casada. Estas infrações, que são infrações que não existiam na
legislação antiga, e foram introduzidas pelo Cristianismo se incorporaram na estrutura do
Estado, nas leis e no sistema de pressões que a sociedade impõe a você. Equivale a dizer que,
comparado com o cidadão greco romano, nós hoje somos pessoas excepcionalmente bem
comportadas e tímidas. As pessoas que "têm direito" de levar uma vida desregrada são apenas
camaradas muito ricos, ou intelectuais, ou filhinhos de papai, os outros não, os outros têm que
se comportar direitinho. Mesmo entre os muito ricos, só os ricos anônimos têm o direito de
fazer isso, pois se você tem um cargo público, por exemplo, acabou o seu direito. Não teve o
caso do governador de Nova Iorque? Foi pego num motel com uma prostituta, pronto, acabou a
carreira do homem. Você imagina isso acontecer a Júlio Cesar? Ele confessava abertamente que
ele obteve o seu primeiro cargo público dando para um sujeito. Ele contava isso para todo
mundo, se orgulhava: “Ah, eu queria o cargo, fui lá, dei pra ele e ele me deu o cargo.” Vocês
leiam o Suetônio, A História dos Doze Cézares (A Vida dos Doze Cézares), para vocês terem
uma idéia do que eram os costumes sexuais na Antiguidade. A lei cristã veio para acabar com
isso. Passados dois mil anos, como muito dessa lei se incorporou no sistema jurídico do Estado,
você não precisa mais ser cristão para você estar submetido a esta pressão, você já nasce no
meio delas. O medo de você ser marginalizado, ser destruído socialmente por causa da mais
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mínima infração é hoje infinitamente mais presente do que o desejo de cometer certos pecados
da carne. Não é mais só a cobiça, ou só a luxúria que vai afastar você de si mesmo, mas também
o medo que você tem da cobiça e da luxúria. Você não é sincero o suficiente com você mesmo
sequer para você ter cobiça e luxúria, você está muito alienado.

A instituição da família tal como é hoje concebida foi uma grande vitória que a Igreja obteve
para a população de escravos romanos. O escravo romano não tinha o direito de ter família.
Para eles procriarem juntavam, uma vez por ano, um monte de homens com um monte de
mulheres, era uma macro-suruba e daí nasciam as crianças e ninguém sabia quem era filho de
quem. Não tendo família, os filhos não tinham o direito à herança. Isso durou séculos. A Igreja
insistiu que as pessoas de muito baixa extração social, ou os soldados inimigos feitos
prisioneiros, ou qualquer pessoa que vivesse na condição de escravo pudessem ter família e isso
foi, evidentemente, uma grande conquista para estas pessoas. Quando se criou, já na Idade
Média, a figura do servo da gleba, a situação deste em relação ao escravo romano já era
infinitamente melhor, era paradisíaco. Porque a única diferença entre o servo da gleba era que
ele não podia sair daquela terra, ele tinha que cultivá-la e uma parcela do que ele colhesse da
terra pertencia ao dono, o qual não podia, por sua vez, mandá-lo embora. Por isso se chamava
servo da gleba – “a sua vida depende desse pedaço de terra, tu não pode sair daqui. Mas você
pode ter família, você leva os seus filhos os direitos sobre essa terra” e assim por diante. Já é
uma situação muito mais humana que a do escravo romano. A valorização cristã da vida de
família em grande parte foi por causa disso. Não podemos dizer que para o cristianismo a vida
de família seja um valor absoluto, porque ela coloca muito acima, por exemplo, a vida do
monge. Se o sujeito decide ser monge, ele tem um mérito maior do que se ele decidir criar uma
família, mas a família é um valor que o cristianismo reconhece.

O casamento civil é uma coisa moderna, do século XIX. Não que não existisse totalmente antes,
mas foi o século XIX que transformou o casamento civil numa obrigação universal. Antes o
sujeito casava na Igreja, um pouco antes disso nem casava na Igreja, porque, para a Igreja,
existem sete sacramentos, dos quais seis são oficiados pelo sacerdote [00:50:00] e o último –
que é o sacramento do matrimônio – é oficiado pelos próprios noivos. Considerava
se que se eles estavam vivendo juntos e tiveram filhos, então já estavam casados e a Igreja
simplesmente reconhecia isto. Mesmo a idéia de casar na Igreja já é um pouco mais recente,
mas casamento civil é mais recente ainda.

Na medida em que o casamento civil se dissemina por toda a humanidade ocidental, o Estado
passa a mediar todas as relações amorosas entre seres humanos. Você veja o tremendo potencial
de alienação que se introduz aí. As relações não podem mais ser pessoais. Por exemplo, cada
vez que você vai para a cama com a sua mulher, você está levando o juiz, o promotor, o
advogado, o oficial de justiça. Está todo mundo lá observando, esperando você dar uma fora,
cometer alguma infração, para acabar com a sua vida. Agora, pergunto eu: nessas situações,
como poderia ser a família o abrigo da verdadeira intimidade e da verdadeira autenticidade das
relações humanas? Não é possível isto. Então a família se torna, hoje em dia, um dos principais
fatores de alienação. Não que ela seja sempre isso, você pode convertê-la no contrário, mas
você vai ter que brigar muito.

Mais ainda, vários elementos da moral cristã, que se incorporaram na legislação civil, tiveram o
seu sentido invertido a tal ponto que hoje são defendidos por motivos contrários àqueles que os
geraram na inspiração cristã originária. Por exemplo: os famosos direitos da mulher. Aqui nos
Estados Unidos, por exemplo, a mulher pode pedir o divórcio do sujeito sem alegar nada, ela
não precisa alegar coisa nenhuma, simplesmente “não quero mais”. Então, o sujeito
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tem uma família até dia tal, no dia seguinte, ele não tem mais. E ela faz isso por que ela é cristã?
Não, ao contrário. Aquilo que apareceu como um valor cristão, de defesa da família, porque a
família simboliza as relações entre a Igreja e Nosso Senhor Jesus Cristo, adquire um valor
autônomo e passa funcionar movido pelos valores contrários: a vaidade, o orgulho e o desejo
feminino de poder sustentam a família hoje. Note bem, qualquer pai de família hoje se sente
obrigado a manter certo padrão de vida para a sua família, porque se não, ele pode perdê-la.
Vocês já mediram o quanto isto é desumano? O sujeito simplesmente é azarado, ele não
consegue um emprego bom, etc. Chega uma hora que a mulher dele diz: “tô com o saco cheio,
eu não quero mais este pobretão!” Vai ao juiz e avisa: “ó, tô indo embora”. Você já imaginou o
poder de pressão alienante que esta mulher tem sobre o marido? É uma coisa terrível!

Do mesmo modo, mais forte ainda do que a pressão da família é a pressão dos pares, a pressão
dos colegas, sobretudo quando você é jovem, na escola – aí eu não preciso dizer muito, porque
eu consegui resumir tudo em uma lauda e meia no artigo “O Imbecil Juvenil”
(http://www.olavodecarvalho.org/textos/juvenil.htm). O jovem de quatorze, quinze anos teme
infinitamente mais a opinião dos seus colegas, porque ele sabe que deles depende o seu futuro –
é entre as pessoas desta geração que ele vai desenvolver as suas atividades – do que os seus
pais, do que a autoridade de seus pais. Mais ainda, os pais nunca estão contra ele, os pais só
querem defendê-lo no fim das contas. Ele cede toda a sua dignidade, todos os seus valores
interiores em troca da aprovação do meio social juvenil que é, freqüentemente, cruel e
implacável. Por exemplo, esta instituição do trote nas universidades: é uma coisa brutal na qual
você tem que provar a sua subserviência ao meio juvenil, que lhe aprova ou desaprova. Você já
viu algum pai fazer isso? “Ó, meu filho, pra eu aprovar você pra eu te dar a tua mesada, você
precisa consentir que eu raspe o teu cabelo, te pinte de verde, passe alcatrão em você, encha de
pena de galinha, te faça de ridículo”. Nenhum pai exige isso, mas os colegas exigem e você,
pelo amor desses colegas, faz tudo o que eles quiserem. E veja que isto é uma instituição
considerada legítima na nossa sociedade.

Isso é para vocês medirem a quantidade de pressões alienantes que tem sobre vocês hoje, é uma
coisa monstruosa. Agora, se você se voltarem contra tudo isso, o que acontece? Nada. Se vocês
não aceitarem nada disso, o que acontece é que você se torna uma pessoa mais individualizada,
forte, senhora de si e, no fim das contas, mais respeitada. O castigo é esse, mas as pessoas não
sabem, elas pensam que vão ser realmente destruídas.

No Brasil, especialmente, existe um tipo de pressão contra o conhecimento. Se você começa a


estudar, ler, a saber alguma coisa, o meio de pessoas ignorantes em volta se sente, naturalmente,
com inveja. E expressa essa inveja através do despeito, gozando da sua cara, rindo, oprimindo,
etc., e você, para conquistar o amor dessas pessoas, que não valem nada, desiste dos seus mais
elevados sonhos e objetivos na vida. Eu já vi muito aluno meu ceder, parar, desistir de estudar,
só por causa disso, por causa de uma namorada, de um pai, de uma mãe, de uma coisa assim. Se
os seus amigos exercerem essa pressão sobre você eu aconselho que você largue esses amigos
imediatamente, eles não valem nada. São gente perigosa, são gente maligna, não querem o teu
bem, não são amigos. Você conquistará amigos melhores depois. Você pode ficar um tempo
sem ninguém, mas agüente, fique firme, que você conseguirá amigos melhores. Hoje vocês já
têm uma situação muito melhor do que eu tinha no meu tempo, porque vocês já têm uma
comunidade, centenas de pessoas com as quais vocês estão em comunicação através da internet,
alguns pessoalmente, que lhes dão apoio.
11

Você não pode esquecer que todos esses elementos antagônicos, eles não existem só fora, eles
já foram internalizados, eles estão dentro de você. Há, por assim dizer, uma voz dentro de você
que advoga a favor deles e contra você, e este é o problema. Você não precisa vencer a
sociedade materialmente, você precisa apenas vencer o advogado dela que está falando dentro
de você, a favor dela e contra você. Você nunca pode esquecer o que Cristo disse que o homem
não foi feito para o sábado, mas o sábado foi feito para o homem. A sociedade foi feita para
servir os indivíduos concretos e reais e não eles para servir a sociedade. Você não tem dever
nenhum para com a sociedade que esteja acima dos seus deveres para com a sua própria
consciência e para com Deus, se você acredita Nele.

Agora, prepare-se, porque você vai ter que defender a sua posição, não tanto contra as pessoas,
mas contra o seu próprio instinto alienante. [01:00:00]

O número de pessoas que se interessa por assuntos filosóficos ou por literatura, política, etc.,
que lêem livros, é muito grande, porém, destes, o número de pessoas verdadeiramente
capacitadas para estudar filosofia é muito pequeno. O que vai ser o divisor de águas não é a sua
capacidade de estudo, mas a capacidade de ordem moral, esta é que é a fundamental. Você tem
que graduar os seus estudos. A pessoa pergunta: “Quanto eu devo estudar?” – você é que vai
graduar. A sua capacidade de estudo e a sua quantidade de conhecimento têm que ser graduadas
conforme a força moral que você adquiriu, e não mais. Toda a erudição vai virar um
instrumento de alienação para um sujeito que precisa da aprovação do seu meio social, da sua
família, dos amigos. Quanto mais estudar, mais burro vai ficar, e isso acontece com uma
constância absurda.

Eu tenho um aluno que uma vez me escreveu o seguinte: “Olha, eu estou estudando filosofia em
determinado lugar, e o chefe do departamento é uma besta quadrada, é isso mais aquilo, ele vive
me impondo besteiras, mas eu não falo nada, porque eu preciso da assinatura dele para
conseguir uma bolsa não sei aonde.” Eu respondi pra ele: “Então não fale mais comigo. Porque
se a tua carreira universitária é mais importante do que a sua integridade moral, você nunca vai
ser um filósofo. Você vai ser mais um farsante, mais um José Arthur Giannotti, uma Marilena
Chauí, um Emir Sader, mais um desses aí”. Note bem, não estou falando de pessoas da
esquerda, não, porque esse tipo de sacanagem não é monopólio da esquerda.

Aqui temos algumas perguntas:

Aluno: Considerando o que o senhor disse sobre o nosso dever de ter a idéia da morte sempre
diante de nós: se substituíssemos a morte por Deus, isto é, Deus sempre diante de nós, o senhor
acha que isso seria melhor ou pior para a vida filosófica?

Olavo: Ora, depende. Depende de como você concebe esse Deus. A não ser que você seja um
afortunado ao qual Deus fala diretamente – como Santa Teresa de Ávila, Santa Rita de Cássia,
São Francisco de Assis, para o qual Jesus aparece e fala diretamente. Não se esqueça que todo o
seu diálogo com Deus está viciado pelas suas idéias a respeito de Deus e pelas suas idéias a
respeito da religião. Agora, a sua idéia da morte não pode estar viciada por nada, porque você
sabe o que é morte. Você não sabe exatamente o que é Deus, mas você sabe que vai morrer e
quando morrer não tem mais chance. Porque das duas, uma: ou não existe nenhuma vida após a
morte e daí acabou tudo e não há chance de fazer mais nada, ou, pior ainda, existe uma vida
após a morte e você corre o sério risco de ir para o inferno. A vida após a morte não é alívio
nenhum. Eu acho muito engraçado quando esse pessoal ateu diz “eles criam uma vida após a
morte para criar uma falsa esperança”. Mas o que está prometido
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para a maioria é o inferno. Como é que isso pode ser um alívio? Isso não é um alívio, é uma
coisa horrorosa!

Eu não sugiro que você equacione essas coisas em termos religiosos porque, em geral, as nossas
idéias religiosas estão viciadas por todos os preconceitos do nosso meio – sobretudo as suas
escolhas morais, a sua orientação moral na vida. Quando você diz: “Eu estou aqui seguindo os
mandamentos da Igreja”, eu digo: “Você tá é coisa nenhuma, meu filho! Você tá é seguindo os
seus preconceitos, os preconceitos do seu meio. Você tá querendo parecer bom menino e tá
achando que vai enganar Jesus Cristo com essa coisa!”.

Com relação à religião, eu só dou uma sugestão, que é a do Padre Pio. Cá entre nós, eu vou
fazer uma confissão, eu nunca penso em moral religiosa, nunca em minha vida. Porque eu sei
que o que eu vou pensar vai estar viciado, vai estar torto. Tem ali 1% de mandamento de Jesus
Cristo e 99% de besteira minha, de besteira do meu meio, etc. Então, faz o que dizia o Padre
Pio: "reze e não se preocupe".

Um dia você vai conseguir fazer um exame sério de consciência, fazer uma confissão séria. Mas
não é assim tão fácil quanto você está imaginando. Primeiro você precisa encontrar a sua
própria voz para com ela você falar a Jesus Cristo, porque Jesus Cristo não aceita outra. Então,
lembre o que eu disse a respeito de encontrar a sua própria voz.

Tem um sujeito aqui nos Estados Unidos chamado Arthur Joseph – depois eu dou as indicações
mais certas para vocês – que é um sujeito que faz uma espécie de psicoterapia através do
treinamento da voz, ensinando as pessoas a encontrar a sua própria voz. E, naturalmente, isso dá
a elas um poder a mais que elas não tinham antes. Um poder a mais sobre si mesmas e também
sobre a sociedade. Eu não fiz o curso inteiro dele, apenas peguei umas aulas por fita VHS e
achei aquilo uma verdadeira maravilha. Não pelo aspecto técnico da coisa, mas porque
coincidia com preocupações. Eu tinha feito no congresso do IBH (Instituto Brasileiro de
Humanidades), em Vassouras/RJ, uma conferência sobre isso, “encontrar a própria voz”, e
quando descobri as fitas do Arthur Joseph fiquei maravilhado, falei: “Pô, mas o cara tá fazendo
exatamente isto: ensinando as pessoas a encontrar a própria voz!”, coisa que eu não sei fazer do
ponto de vista físico, eu estou usando o “encontrar a própria voz” no sentido mais geral e até
metafórico. Encontrar a sua própria voz é encontrar também o seu estilo literário, o seu estilo de
escrever, tudo isso requer certa prática. Isso que eu estou dizendo é inspirado no verso do
Antonio Machado (1875-1939): “Quién habla solo, espera hablar con Dios un día.” Quer
dizer, primeiro você começa falando sozinho, depois você vai falar com Deus.

Você pode imaginar Deus como alguém que você vai encontrar depois da morte, mas o central
é você lembrar que vai morrer. A idéia da morte é difícil de você corromper, porque você morre
de medo dela e sabe que não tem chance depois dela. Se você for ateu, vai para o nada; se você
for cristão, vai para o Juízo Final. Nenhuma das duas coisas é propriamente uma delícia. Por
isso, eu não aconselho que isso seja feito com a imagem de Deus. Muitas vezes eu imaginava
Jesus Cristo fazendo de mim cobranças que o meio social imediato poderia fazer. Até eu
perceber que aquilo não era Jesus Cristo, que era minha própria estupidez falando, foi um
tempo, na verdade foi depois dos 40 anos que eu percebi isso aí, depois de ter pensado nisso a
vida inteira. Quer dizer, não é fácil.
Outra pergunta aqui:
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Aluno: Professor, não entendi, na terceira aula, a relação que o senhor faz entre essa imagem do
“eu ideal” para orientação moral do indivíduo e a questão da conversão entre os princípios e
normas gerais para questões específicas. É claro que esse “eu ideal” leva em conta a condição
do sujeito e o meio em que vive. Mas não deixa de ser uma imagem geral também, que vai ser
adaptada a várias questões específicas que vão surgindo no dia-a-dia.

[01:10:00] Note bem, o que vai ser confrontado com as questões específicas não é seu “eu
ideal”, é você mesmo. Este ideal do “eu” que nós tratamos de desenhar para nós mesmos no
exercício do necrológio é apenas um dos dados do problema, mas quem vai ter que se
posicionar é o seu “eu real” que é concreto, individual e intransferível – como você diz, essa
imagem do “eu ideal” também é genérica. Você tem razão, porque ela é genérica ainda, porque
ela é apenas um modelo de vida que você gostaria que fosse transmitida aos seus pósteros
depois da sua morte. Ela é apenas isso. Mas ao longo do tempo você a irá convertendo na matriz
dos seus verdadeiros esforços. Esse seu “eu ideal” vai ficar cada vez menos genérico, cada vez
mais individual. Na hora em que você começar a ser realmente quem você quer ser, essa
imagem se individualiza.

São Tomás de Aquino colocou o problema de como você converte uma norma moral geral num
conselho específico para você seguir em tal ou qual situação particular e determinada. Ele vê
que as normas, os mandamentos, são sempre genéricos, mas as situações são infinitamente
variadas e uma coisa não aparece na outra com tanta clareza assim, ao ponto de acontecer isso
que eu estava descrevendo na primeira parte da aula: aquilo que lhe parece expressar a moral
cristã às vezes é, na verdade, um puro convite à alienação vindo da família, do meio social, de
qualquer outra coisa assim.

Eu vou fazer aqui um parêntese: você vê que na medida em que o Estado começa a mediar
todas as relações humanas é evidente que você está num estado já de alienação geral. E a
possibilidade de uma vida cristã nessa situação é remotíssima, porque você vai copiar
estereótipos de cristianismo já adaptados a esse meio (moderno, burguês, etc.), o qual pode se
tornar o maior obstáculo à vida cristã. Por exemplo, eu sugiro que leiam os livros do François
Mauriac (1885-1970), um grande romancista francês, um romancista maravilhoso. O tema dele
é exatamente este: como é que um meio social criado nominalmente sobre valores cristãos –
mas que na verdade é uma mistura de valores cristãos com valores da ideologia burguesa,
positivista, etc. – sufoca a alma cristã e como, às vezes, num estado de desespero, é só a
transgressão da norma social o que faz essa alma encontrar-se consigo mesma. Existe um livro
dele que se chama O Nó das Víboras (Le Nœud de Vipères). É um dos livros mais
impressionantes que eu já li na minha vida. É a história de um sujeito muito rico, que sabe que
vai morrer. E sabe que a família inteira quer que ele morra para eles pegarem o dinheiro dele. E
ele decide fazer uma vingança póstuma. Ele pega todos os títulos, as ações, etc., e transfere-as
para outras pessoas, some com tudo aquilo, e no lugar onde eles (sobretudo a mulher dele, que
ele odeia) esperam encontrar os títulos, o dinheiro, vão encontrar uma narrativa de todas as
misérias que eles viveram em comum. Mas, na medida em que ele vai contando aquilo, vai
fazendo aquela coisa horrível, aquela vingança póstuma, ele vai se encontrando e, nas páginas
finais, ele está realmente mais conectado com Deus. Para ele se encontrar ele precisou romper
com toda aquela família respeitável que ele mesmo havia criado. Nós não podemos nos
esquecer que essa respeitabilidade burguesa é uma coisa terrível. Uma das frases que eu mais
gosto na auto-biografia do Chesterton (1874-1936) é: “Os meus pais eram pessoas respeitáveis,
porém honestas.” Quer dizer que as pessoas respeitáveis são mais desonestas, mais podres.
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Nós não podemos esquecer também que toda essa coisa que aconteceu no séc. XX – sexlib,
movimento gay, etc. – tudo isto não aconteceria se não houvesse esta incorporação dos valores
cristãos na estrutura jurídica e do Estado e a conversão, portanto, desses valores em
instrumentos de pressão e alienação e de separação entre os indivíduos e eles mesmos. Porque o
indivíduo que está separado dele mesmo não pode ter um contato real com o outro. Só existe
encontro verdadeiro dos corações quando cada coração está sintonizado com ele mesmo. Se
você não é capaz de ser sincero com você mesmo, como é que você vai ser sincero com outra
pessoa? Daí surge todo aquele problema que, durante muito tempo, foi tratado pelos
existencialistas como “incomunicabilidade”. Não há uma incomunicabilidade essencial do ser
humano, entre ser humano e ser humano, mas há uma incomunicabilidade histórica, acidental,
ocorrida durante certo período em função desta onipresença do Estado em todas as relações
humanas. Às vezes, a busca de um desregramento sexual total é a maneira que o sujeito
encontra de quebrar essa carapaça e, às vezes, isso até funciona. Não funciona para todo mundo
– e aí é que está o negócio –, porque quando o sujeito rompe com a sociedade, ele acha que é
melhor que a sociedade. E ele não é. Porque a sociedade está dentro dele. É uma revolta contra
a alienação e a inumanidade por parte de um sujeito que também é alienado e inumano. Ele não
é melhor que a sociedade – e esse é que é o ponto. Esses camaradas que dizem: “vou partir pro
sex-lib, ou pras drogas, etc., pra me livrar da falsidade da sociedade”, levam a falsidade junto
com eles, eles viram pessoas até mais falsas, mais postiças e mais artificiais do que a sociedade
da qual eles partiram. Quando você vê um sujeito como esses apóstolos da anarquia sexual,
como o Zé Celso (José Celso Martinez Corrêa) e outros, falando, você vê que eles são muito
mais artificiais do que uma pessoa comum. E, no entanto, o que eles estavam procurando no
começo era se libertar do artificialismo. Eles não tiveram a humildade de saber que o
artificialismo não estava fora, estava dentro, eles tinham que vencer a eles mesmos e não a
sociedade. Você tem que vencer a sociedade, mas a sociedade que está dentro de você.

Eu me lembro que nos anos 60 todo mundo falava “nós temos que fazer a revolução na cama,
nós temos que trepar com todo mundo.” E você vai achar que é melhor que a sociedade só por
que você está fazendo isso. Bom, eu não nego que neste desejo haja um impulso originário de
autenticidade, mas ele só funciona se você for uma pessoa muito talhada para aquilo. Por
exemplo, eu sempre li e apreciei muito os livros de Henry Miller (1891-1980). A experiência
dele é a seguinte: “eu vou comer todas as mulheres que estiverem à disposição, incluindo as
mulheres dos meus amigos, não quero nem saber”. Obviamente, um sem vergonha, um sujeito
priápico. Só que ele era também um sujeito sincero. Ele escrevia as memórias dele sem se
enfeitar no mais mínimo que fosse. Ele só pensava “é um bando de filha da puta e eu sou outro”
e, ao mesmo tempo, não tinha satisfação na sua maldade. Então, ele foi desenvolvendo uma
espécie de humildade. Humildade literária, em primeiro lugar, que vai se incorporando como
humildade real. Tem até momentos em que o Henry Miller chega quase à sabedoria. Ele fez isso
porque ele era sincero realmente, ele sabia que o problema estava nele, e não fora. [01:20:00]
Mas é uma coisa que os "Zé Celsos" da vida não sabem. Eles procuram desenvolver poses que
vão supostamente os tornar melhores que a sociedade, mas o que eles estão procurando é a
aprovação dessa sociedade. Aprovação, aplauso, dinheiro (sobretudo dinheiro público). Você
quer posar de inimigo da sociedade e quer que a sociedade o recompense e o paparique ao
mesmo tempo. Você já não é mais nem um alienado, você é uma caricatura de alienado. A
quase totalidade dos nossos artistas são caricaturas de alienado.

Se você quer realmente encontrar sua própria voz, encontrar seu interior, você não vai ter
nenhum prêmio social por isto. Você vai ter que aceitar uma solidão real durante algum tempo.
Se você só aceita relações autênticas, reais, com pessoas, você vai ter que se afastar de
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um monte de gente: é perder amigo, perder namorada, perder mulher. Se você quer fazer tudo
isto, mas quer manter a sua "familhinha burguesa" em ordem, não vai dar, você vai ter
problemas.

Se você entrar por esse caminho mesmo, vai chegar um estágio onde você não terá mais um
ponto de apoio na sociedade. E quando você não tem mais esse ponto de apoio, você começa a
falar com Deus. Quando você não tem mais para quem recorrer, você não tem mais um ídolo ao
qual você se encostar – esse ídolo pode ser até a moral cristã, até a Igreja, até o arcebispo.
Quando você não tem mais esses ídolos, você está absolutamente sozinho. Aí sim, aí você pode
falar com Deus. Ele vai falar com você. Mas só aí. A não ser que Ele decida de outra maneira,
mas você não pode forçá-Lo.

Aluno: A cada dia sinto que estamos no caminho. Obrigado pelo curso. (...)

Olavo: Obrigado eu.

Aluno: (continua) Se o desenvolvimento da consciência filosófica depende necessariamente da


certeza de que no momento da nossa morte deveríamos ter construído a nossa vida da melhor
forma possível, pois após esse evento nada mais é possível fazer por nós, poderíamos afirmar
que as pessoas que comungam das doutrinas encarnacionistas teriam dificuldades na parte
filosófica?

Olavo: Meu filho, se você chuta qualquer problema da vida atual para a próxima, você já está
na alienação completa. A Igreja Católica sempre ensinou que não há duas chances. É uma só:
it’s now or never. Se você não for quem a sua consciência manda ser desde já, você não vai ser
nunca. Não adianta dizer: “Ah, vou ter outra reencarnação. Ah, vou ter outra chance.” Vai ter
outra chance uma pinóia!

Vamos supor que você é um encarnacionista. Ah é? Vamos ver se a crença no


reencarnacionismo melhoraria isso aí: quem disse que na próxima encarnação você vai ter mais
chance? Pode ser que você tenha menos, meu filho, então, nem a crença na reencarnação
resolve o seu problema. It’s now or never. Você corre o perigo de se reencarnar como lagartixa,
como barata, ou como um sujeito ainda mais idiota do que você é agora. Então mesmo como
reencarnacionista convém não arriscar.

Aluno: Professor, gostaria que o senhor falasse um pouco mais sobre a definição de natureza
humana. Esse assunto ainda não ficou claro para mim ainda.

Olavo: Eu tenho usado o termo “natureza humana”, mas ainda não o investiguei filosoficamente
neste curso. Em filosofia tudo é assim, você é obrigado a usar provisoriamente conceitos que só
vai se aprofundar depois. E você sempre corre o perigo de estar usando, em primeiro lugar,
como mera metáfora ou figura de linguagem, um termo que, mais tarde, verá que usou de
maneira totalmente inadequada. Eu não gostaria de investigar esse problema da natureza
humana agora, porque ele depende do exame de uma outra coisa que chama estrutura da
realidade, que já é uma questão materialmente filosófica. E estou tentando adiar essas questões
para depois que as condições preliminares, de ordem moral e psicológica, forem atendidas. Este
começo do curso não é de natureza teorética. É de natureza prática. Estamos aqui colocando
uma série de normas e sugestões que você precisará seguir se você quiser ser um filósofo. E não
apenas brincar de filósofo, ou parecer um. Ou ocupar
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um posto de filósofo, ou estar filósofo. Então eu vou me permitir deixar essa sua pergunta para
depois. Nós vamos investigar isso daqui, fique tranqüilo que nós vamos chegar lá. Não sei
quando, mas vamos chegar.

Aluno: Olavo, você poderia discutir um pouco sobre como se deve criar um programa de
estudos de literatura? Como ninguém consegue ler tudo aquilo que julga interessante, surge uma
tendência de priorizar algumas coisas em detrimento de outras. Talvez seja uma boa idéia ler
sobre um tema que interessa, por exemplo, o amor visto por vários ângulos e autores. Talvez
seja interessante priorizar uns autores mais famosos...

Olavo: Muito bem, aqui nós não temos um programa de estudos de literatura, mas temos
algumas sugestões de leitura que serão consideradas indispensáveis, não como estudo de
literatura – nós não vamos estudar literatura. O que nós vamos fazer é nos beneficiarmos da
literatura como instrumento que realiza precisamente a finalidade para a qual ela existe, que é
tornar a experiência dizível. O que os escritores fazem não é nada mais, nada menos do que
pegar a experiência direta, conservá-la na memória da melhor maneira possível – na memória e
na imaginação, na fantasia – e verbalizá-la. Quer dizer, tornar moeda corrente, através das
palavras, certas experiências que, caso contrário, estariam fechadas numa espécie de cofre
individual incomunicável. E através da aquisição dos instrumentos de verbalização destas
experiências que os escritores foram registrando, nós vamos adquirindo um repertório de
instrumentos para nós expressarmos a nossa experiência. Não que tenhamos que nos expressar
literariamente para os outros. Só tem que fazer isso quem tiver a vocação literária pessoal, o que
não é o caso da maioria. Mas, pelo menos, que você possa verbalizar para si mesmo, de uma
maneira mais adequada. Nós vamos nos utilizar da literatura como instrumento de
fortalecimento da consciência. A consciência precisa ter os meios verbais de expressão para ela
poder se apropriar da experiência real e poder, em seguida, raciocinar sobre ela. Se você não
consegue nem contar a experiência, como é que vai raciocinar sobre ela?

Por exemplo, quando você lê aquelas páginas absolutamente memoráveis do Proust, Em Busca
do Tempo Perdido, onde ele descreve o que acontece quando ele vai pegando no sono, aquele
estado crepuscular em que você fica na passagem da vigília para o sono. Naquele momento
acontecem coisas extraordinárias, você inclusive tem, às vezes, percepções muito importantes
naquele momento, mas fica difícil você recuperar aquilo porque você não tem como descrever.
Se você já leu Proust, você sabe mais ou menos como é que aquilo acontece, então fica mais
fácil você acompanhar o que está acontecendo.

O que se deve esperar dos escritores é simplesmente isso, que eles verbalizem aquilo que o Saul
Bellow (1915-2005) chamava “as impressões autênticas”. O mundo está cheio de pessoas que
têm opiniões, idéias, que eles chamam “os intelectuais”. Os intelectuais vivem dando idéias
que, em geral, não servem para nada. Mas tem algumas pessoas que, em vez de fazer isso,
registram e expressam as impressões autênticas: esses são os verdadeiros escritores. É para isso
que temos que lê-los. O estudo específico, o estudo especializado da literatura já é outra coisa.
Ele pode, inclusive, alienar você da verdadeira utilidade da literatura. Você veja, [01:30:00] um
mecânico de automóveis pode jamais ter um carro. Enquanto mecânico, ele só conserta o carro
dos outros. Ele pode jamais desfrutar do automóvel. O sujeito que compra o automóvel, sem
entender nada de mecânica, e sai dirigindo, ele está desfrutando dos benefícios do automóvel.
Você pode entender tudo de mecânica sem jamais fazer isso. Nós estamos aqui como o sujeito
que comprou um carro e não como o mecânico. É claro que nós precisamos do mecânico,
evidentemente. Os estudos
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especializados de literatura também têm sua utilidade – e terão para nós. Por exemplo, muitas
vezes, ao ler um autor antigo, as formas e o vocabulário que ele usa são difíceis de nós termos
acesso. Então temos que recorrer a um estudioso especializado que nos ajude a entender aquilo.
Mas a finalidade com que nós vamos ler grandes obras de literatura não é a finalidade
especializada do estudioso de literatura, mas apenas do consumidor qualificado que vai dar uma
segunda utilidade para isso. Aquela experiência que for absorvida através da literatura e a nossa
própria experiência, que for esclarecida através do hábito da leitura dos bons escritores, tudo
isso, em seguida, será trabalhado criticamente num nível já de análise filosófica. Uma coisa que
o leitor geral não precisa fazer. Ou seja, nós não queremos apenas aprender a expressar a nossa
experiência ou assimilar a experiência alheia. Nós queremos aprofundá-la criticamente de modo
a extrair dela algum conhecimento efetivo e universalmente válido. Essa é a nossa idéia.
Então, não temos um programa de estudos de literatura, mas temos algumas leituras que nós
vamos fazer. Essas leituras não serão dadas inicialmente como um programa. Não vou dar uma
lista para vocês, porque nós vamos graduar essas leituras conforme o momento do nosso curso.
Aquilo que for necessário – como o acesso a certas experiências interiores – e que seja útil para
aprofundarmos o tema que nós estamos falando aqui agora, pode ser recomendado aqui. Mas
não como experiência literária propriamente, no sentido profissional da coisa, e sim apenas
como documentação da experiência humana.

Aliás, se vocês quiserem, na literatura brasileira existem vários documentos importantes sobre
esses fatores alienantes que separam o indivíduo de si mesmo. Por exemplo, o famoso livro do
Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha. É um menino ingênuo do interior que
vai para a cidade, quer ser um escritor e procura um caminho no jornalismo, e ali ele encontra
somente alienação, corrupção, mentira, e acaba sendo esmagado pelo meio. Eu sugiro que vocês
leiam isso. Um outro livro da literatura brasileira interessante é O Feijão e o Sonho, de Orígenes
Lessa, que também é a mesma coisa. Um homem de classe média-baixa, que sente um apelo da
vocação literária, mas tem a pressão da mulher, a mulher está grávida e ele precisa trabalhar
nisso. É um problema banal, na verdade. O apelo da interioridade é visto através de um
símbolo. Esse símbolo é o quê? A profissão literária a que o sujeito aspira. Na realidade, a
oposição que existe entre a necessidade de guiar a vida e a ambição literária são dois símbolos.
Um simboliza a aspiração interior do homem e o outro, os fatores alienantes. Note bem que
esses próprios símbolos podem se transformar em elementos alienantes – a vocação literária, a
profissão literária é um elemento alienante também, por si. Mas na leitura que vocês vão fazer
não precisa levar isso em conta. Levem em conta apenas que a ambição literária do sujeito é
uma expressão de quem ele quer ser efetivamente e que existe, no caso, um obstáculo de ordem
econômico-social que pesa sobre ele.

Em parte, você vê que o simples fato de colocar a profissão literária como algo que é
antagonizado pela situação econômica já é uma maneira alienada de ver. Mas, por enquanto, a
nossa literatura não foi além disso. Então, por favor, leiam o livro do Orígenes Lessa que pode
lhes dar alguma inspiração nesse ponto. Eu me lembro que, ainda muito jovem, logo depois de
ler esse livro, li as memórias de Goethe. Goethe era um sujeito que achava que nós temos que
cumprir todas as nossas obrigações para com a sociedade. Porque nós temos que ser superiores
a ela e não inferiores. Se nós consentimos que ela nos marginalize e nos derrube, aí nós somos
escravos dela.

Eu me lembro que, nessa época, eu tinha uma amiga. Era uma moça muito bonita e que era
muito dada, ela ia pra cama com todo mundo – não estou criticando, não, eu adorava ela,
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achava excelente, uma menina de bom coração. E lá pelas tantas ela ficou grávida de um
sujeito. E o sujeito decidiu que não ia assumir o filho, não ia dar ajuda nenhuma para ela,
porque ele queria seguir uma carreira artística. Ele achava: “se eu for assumir essa
responsabilidade, acabou com minha carreira artística.” Bom, eu sei o seguinte: passaram-se
vinte ou trinta anos e o cara não teve carreira artística alguma e o garoto já está adulto. Naquela
altura eu creio que eu já tinha quatro ou cinco filhos, e eu pensava assim: eu vou ter que fazer
exatamente o contrário desse sujeito. Vou ter que cumprir todas as minhas obrigações, custe o
que custar. Claro que eu sempre estava abaixo delas, sempre estava devendo dinheiro, sempre
estava atrapalhado. Mas eu não posso fugir delas, porque se eu fugir delas, eu vou ser um
fracote. E se eu for um fracote, o que interessa minha bela produção literária? Vai ser apenas
uma fuga.

Nesse tempo eu tinha muita amizade com o doutor Juan Alfredo César Müller. Eleera um
sujeito goethiano. A ética que ele seguia era a do Goethe, baseada em três coisas: o homem
deve ser digno, prestativo e bom. O dr. Müller era a encarnação dessas três coisas, era digno,
prestativo e bom. Então, lendo ali Goethe, eu falei: “Isso aqui é importantíssimo!”. Você não
pode fugir das suas obrigações sociais. Claro que, às vezes, você as cumpre imperfeitamente.
Mas não pode fugir delas, porque se você fugir, você se enfraquece. E se você se enfraquece, se
torna vítima inerme da pressão. Você tem que se esforçar, tentar fazer o máximo para que seja
mais forte do que a pressão da sociedade, não mais fraco, jamais uma vítima, jamais dizer: “Ah,
gostaria de estudar, mas eu não tenho tempo, eu tenho que trabalhar.” Eu falo: “Ah, é
vagabundo? Tu vai trabalhar, vai estudar, pagar todas as tuas dívidas, sustentar tua família e não
me enche o saco! Você vai estudar de noite e se vier com reclamação vai levar porrada!” – Eu
não tenho dó porque eu sempre fui um sujeito pobre, eu nunca tive quem me ajudasse. Eu tinha
que fazer tudo isso sozinho e fiz. Se eu, que sou um merda, fiz, porque que você que é um
gostosão não pode fazer? Não vem querer que eu fique com dó de você, não vem dizer que não
tem tempo de estudar, porque se você estudar meia hora por dia, todos os dias, você vai virar
um erudito. Eu nunca recomendei que ninguém estudasse mais de três horas por dia. Mesmo
que você tenha o tempo todo livre, estudo é três horas: o que passar disso você não vai
assimilar. A sua capacidade de assimilação aumentará com o tempo. Quando você tiver
cinqüenta, sessenta anos, aí, talvez, você consiga ir pra cinco, seis, sete horas. Talvez. Antes,
não. Não se trata de você estudar muito. Se você tivesse dez horas livres por dia, quanto você
iria aproveitar? Eu sempre me espantei com esse negócio de jornada de oito horas de trabalho,
porque eu sei que dessas oito horas você trabalha meia hora ou uma hora só, [01:40:00] o resto
você perde tempo realmente. Oito horas de estudo também é a mesma coisa. Se você tivesse
oito horas livres para estudar todo dia, você ia estudar meia hora, uma hora. O resto você ia
ficar lá apontando lápis, telefonando pros seus amigos, vendo programa de sacanagem na
internet. Então, você tem meia hora por dia? Ótimo! Você é um homem afortunado!

Aluno: O senhor fala da função do romance como sendo expressar a situação de um


personagem que se coloca contra a sociedade. A sociedade moderna com suas pressões e a
difusão quase imperceptível de ideologias tenta impedir o surgimento de personagens como os
heróis do romance?

Olavo: Certamente. A capacidade de individualização diminui dia a dia. Se você olha os


grandes personagens do romance do séc. XIX, você vê que eles são individualizados a um
ponto que hoje em dia já se tornou quase impossível. O personagem do romance do séc. XX vai
perdendo a individualidade, vai perdendo até unidade, perdendo integridade. Há um fenômeno
que é a dissolução do “eu” na literatura. Você pega os personagens de Kafka, eles
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já não têm um “eu”, eles já não têm personalidade. Eles são pedaços, fragmentos. Eles estão
abaixo da condição da individualidade humana. Pega os personagens de Proust, nenhum deles é
uma personalidade, todos eles são pedaços, eles são os estados mentais que passam por eles.
David Hume dizia que nós não temos “eu” nenhum, não temos consciência nenhuma, só temos
estados. Eu digo: se você está falando isso, você se refere a um psicótico, evidentemente.
Porém, o que normalmente seria próprio de um psicótico de repente se transforma no padrão da
sociedade. Por exemplo, eu vejo a extrema dificuldade que as pessoas têm para juntar causa e
efeito do que lhes acontece. Às vezes, com poucos dias de intervalo. Você fez tal coisa e
aconteceu tal outra. Você se transformou a si mesmo de tal ou qual maneira fazendo tal ou qual
escolha. As pessoas freqüentemente não percebem mais isso, emtão não são capazes de contar
sua história para si mesmas. Essa integridade do “eu”, que pelo menos consegue contar a sua
história, é a primeira coisa que você tem que recuperar para ser um filósofo. É você poder
chegar a falar de você mesmo com a integridade com que falava Agostinho, por exemplo.
“Quién habla solo, espera hablar con Dios un día”. Então, primeiro aprender a conquistar a
minha própria voz, falar para mim mesmo – e daí eu posso fazer perguntas para Deus. Se eu
chego lá disfarçado de qualquer outra coisa, Deus não vai falar comigo, não vai prestar atenção
no que estou falando, porque é besteira. Claro que Ele pode furar a sua carapaça e chegar até
você, se Ele quiser, mas não é obrigação contratual da parte Dele.

Aluno: A falta desse tipo que se coloca contra a sociedade na nossa literatura, marcada muito
mais por personagens frutos do meio social, pode nos dizer alguma coisa sobre a condição
brasileira?

Olavo: Sem sombra de dúvida, Horácio. Você tocou aqui num ponto fundamental. Em geral, os
personagens da literatura brasileira estão abaixo da situação, eles são pessoas que não
conseguem lidar com a situação, eles são vítimas da situação, eles não se levantam contra ela.
Quando você vê o Raskolnikov, ou o Julien Sorel, em O Vermelho e o Negro, é claro que eles
erram e são derrotados no final. Mas eles se levantam contra a situação, eles são ativos, eles não
são vítimas inermes. Isso é raríssimo na literatura brasileira. Eu vejo algumas exceções nos
livros do José Geraldo Vieira, aparece às vezes algum personagem mais notável, ou na história
do Guimarães Rosa, A Hora e Vez de Augusto Matraga, que é um sujeito que realmente não
aceita a situação, ele se levanta contra ela. Em geral, quando você vê aparecer o elemento de
não aceitação ou de inconformidade, é uma inconformidade padronizada, identificada com
movimento político ou com qualquer coisa assim, onde você escapa duma comunidade para
entrar em outra e se tornar dentro dela ainda mais servil do que você era.

Por exemplo, as humilhações e as autonegações, as negações da própria consciência que o


Partido Comunista exige das pessoas são muito mais drásticas do que qualquer patrão burguês
exigiria de quem quer que fosse. Não tem patrão que exija, que coloque para você uma coisa
como aquela do Groucho Marx: “afinal você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?”
– o Partido Comunista exige isso. “Você quer lutar contra a sociedade burguesa, nós te
ajudamos, só que você tem que abdicar da sua consciência, você tem que viver do jeito que nós
vivemos. Se você ver um treco que nós não gostamos, nós vamos ter que fazer você jurar que
você não viu.” O PT faz isso a todo momento. O PT faz as pessoas negarem aquilo que elas
sabem que é verdade. Quando aquele vagabundo daquele Giancarlo Summa discutiu comigo no
O Globo, dizendo “Ah, o Foro de São Paulo não tem poder decisório, é um clube de debates.” –
você já viu um clube de debates emitir resolução subscrita por todos os membros? Quer dizer, o
cara sabe que ele tá mentindo, mas o partido o mandou dizer aquilo, então ele tem que negar o
que ele está vendo. Esse tipo de revolta
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contra a sociedade não é uma revolta, é uma alienação elevada ao cubo.

Aluno: Se há vida após a morte, essa vida não seria nada mais do que outra forma de
manifestação, talvez tão insignificante quanto a nossa?

Olavo: Eu não vou entrar nessa questão agora, calma lá, espera aí. As questões filosóficas
substantivas serão todas deixadas para depois, nós estamos lidando com preliminares de ordem
psicológica e pedagógica. É claro que nessas preliminares eu terei que recorrer a muitas noções
filosóficas que eu mesmo não fundamentei e cuja fundamentação só será apresentada mais
tarde, mas isso aí é inevitável.

Aluno: Caro professor, numa das últimas aulas comentando sobre vocação o senhor disse que
existem pessoas que não têm vocação. São pessoas que ficam à disposição para ajudar no que
for preciso, porque a vocação delas é justamente essa, ficar à disposição. Gostaria que, se fosse
possível, o senhor comentasse mais um pouco a respeito, pois acho que me identifico em alguns
aspectos.

Olavo: Às vezes a vocação religiosa aparece exatamente assim. Existe a famosa expressão
“Vacare Deo”, quer dizer, você está vagando à disposição de Deus. Você não tem nada
especificamente para fazer, você está esperando que Deus lhe mande fazer alguma coisa. Essa,
no fundo, é a essência da via ascética e monástica, você não vai fazer uma coisa determinada.
Às vezes, a pessoa assim não tem um objetivo determinado, porque ela tem uma abertura para
aquilo que ou a situação, ou Deus diretamente, lhe indiquem que é necessário. O doutor Müller
dizia: “Quando você não sabe o que fazer, faça o que é do seu dever.” Bom, você não tem
nenhuma vocação, então você não tem um dever interior. Mas existem deveres exteriores que
são reais, que não são alienantes. Por exemplo, se você tem uma família, você tem obrigação de
trabalhar por ela. Você não tem obrigação de atender todos os caprichos dela. Como eu estava
comentando no início, hoje em dia, se você não dá para a mulher o padrão de vida que ela quer,
ela pode desgraçar com a sua vida. Você não tem obrigação disso, mas aquela coisa mínima,
você tem obrigação de fazer, você não pode fugir disto. Você tem obrigação de ser atencioso e
bom com os seus filhos. Hoje se diz que você tem obrigação de brincar com seus filhos. Isso é a
coisa mais estúpida. Eu jamais brinquei com meus filhos. Tive oito filhos e nunca brinquei com
eles. Seria um palhaço: “Ah, tenho que jogar futebol com meu filho, tenho que virar criança...”
Mas o quê que é isso? Eu não sou colega deles, eu sou pai deles. Eu não estou aqui pra brincar
com eles, eu estou aqui para protegê-los, para que eles brinquem com os outros. Eles ficam lá
brincando e eu fico olhando, para ver se um se machuca, eu estou aí pra isso. Quer dizer, a
minha função é de sustento e proteção, e não de ficar brincando com eles. Brincar com eles é
obrigação dos caras da idade deles. Pode-se mencionar a questão do "pai ausente”. Eu digo: o
melhor pai do mundo é o "pai ausente". O pai que não ocupa espaço. Ele não enche o saco, não
fica interferindo. Ele pode estar ausente fisicamente, mas de longe ele tem que estar prestando
atenção, porque ele é o responsável, o protetor, o guardião, ele não pode estar ausente do seu
dever. Ele pode estar ausente fisicamente, estar ausente da brincadeira, estar ausente da festa,
mas ele está olhando para ver se precisa de alguma coisa. As crianças sentem essa presença sutil
e elas sentem essa presença como uma coisa reconfortante. [01:50:00] Agora, se você está lá o
tempo todo dando palpites, dizendo “Faça isso, faça aquilo!”, você está interferindo demais.

Existem vários deveres externos que, se você os atender de todo coração – sem permitir que
eles te alienem, mas de todo coração –, eles acabam preenchendo sua vida de sentido. Eu não
digo que seja esse o seu caso, mas pode ser.
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Aluno: O senhor pode indicar uma bibliografia sobre a cultura, costumes e civilização da
Antiguidade? Foustel de Coulanges, "A Cidade Antiga", continua sendo referencial?

Olavo: Sem sombra de dúvida. Essas grandes obras de história, quando são superadas pela
pesquisa posterior, elas não perdem o seu valor. Elas têm que ser complementadas. Por
exemplo, os grandes livros de história da Antiguidade, como esse de Foustel de Coulanges – A
Cidade Antiga – ou Eduard Meyer – História da Antiguidade – são obras que conservam o seu
valor mesmo quando certos detalhes foram impugnados pela pesquisa posterior.

Aluno: Costumes introduzidos pelo Cristianismo, quando extraídos de todo o seu fundamento
moral e religioso, não podem se desvirtuar e acabar perdendo ou até mesmo retroagindo à
cultura bárbara?

Olavo: Mas sem sombra de dúvida! Eu acho que uma coisa é você ser fiel à família porque
aquilo representa um valor cristão e outra coisa é você ser isso para atender a uma vaidade
feminina ou para atender à pressão dos seus vizinhos. Não é a mesma coisa, certamente não é a
mesma coisa. Isso pode se tornar uma coisa totalmente alienante. Você vê que os autores, na
literatura, que mais profundamente sondaram essa perversão da moral familiar são autores
cristãos, como François Mauriac e Georges Bernanos. Ninguém está mais consciente disso do
que eles mesmos.

Aluno: Poderia indicar bibliografia sobre a questão mencionada na aula anterior a respeito da
história das traduções de Aristóteles na Idade Média?

Olavo: Procure o livro de Sylvain Gouguenheim, o livro chama-se Aristote au mont Saint
Michel (Aristóteles no monte Saint-Michel). É um livro absolutamente espetacular, que mostra
como toda esta idéia de que, após a chamada Idade das Trevas, a civilização européia recuperou
o conhecimento que ela tinha da Antiguidade filosófica graças às traduções árabes, isso é
totalmente falso. Em primeiro lugar, a maior parte do que chegou já estava traduzida pelos
monges do monte Saint-Michel (sabe o monte Saint-Michel? É uma ilha que, quando a maré
baixa, dá pra você ir a pé até lá e, quando sobe, só dá pra ir de barco. Em cima tem uma catedral
maravilhosa, na França). Os monges de Saint-Michel já haviam traduzido tudo quando
chegaram as traduções árabes. Segundo, a maior parte dessas traduções árabes não foram feitas
por autores muçulmanos, mas por autores cristãos, porque metade do mundo árabe era cristão
naquela época.

Então, o que a cristandade deve ao Islã em matéria de filosofia? Nada. Zero, zero, zero. Tudo
isso aí foi propaganda. Aquela noção de que a História é a história dos vencedores é outra
conversa mole, porque, em geral, quem usa da História são os perdedores: você conta a história
à sua maneira para você conquistar a vitória futura, isso é sempre assim. Em geral, não é a
história dos vencedores. Quem conta a história é o perdedor, porque ele perdeu no campo de
batalha, mas ele pode ganhar na batalha das idéias. Aliás, isso acontece 3x4, você ficou em
desvantagem militar e econômica, mas você pode corromper o seu inimigo intelectualmente e
enfraquecê-lo. Hoje em dia, ao longo de todo o séc. XX, a quase totalidade das batalhas
culturais foi empreendida contra o Ocidente. Nunca houve uma batalha em sentido contrário.
Os países ocidentais fizeram uma guerra cultural dentro dos países comunistas ou islâmicos
para desmoralizá-los, enfraquecê-los? Não, nunca. Simplesmente nunca fizeram. No máximo,
faziam de vez em quando uma emissãozinha da rádio Europa Livre, uma coisa assim, mas era
um negócio muito tímido. No entanto, a batalha anti ocidental foi uma coisa gigantesca e é
ainda. O número de mitos e mentiras que isso aí meteu
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na nossa cabeça e que está ainda dentro da nossa cabeça, prejudicando-nos e enfraquecendo
nos, é uma coisa incrível!

Por exemplo, essa famosa idéia de que os africanos sempre foram os coitadinhos, escravizados,
etc. Uma pinóia! Os africanos, junto das tropas islâmicas, chegaram à Europa já no séc. VIII-
IX, escravizando milhões de pessoas. E foram ser escravizados, por sua vez, 700 anos depois.
Quer dizer, a escravidão européia que veio para a América foi apenas o troco que eles levaram.
Então não tem por que ter dó. Essa história de que os negros são sempre os discriminados,
coitadinhos. Não! Antes éramos nós os coitadinhos. Depois, veio a sua vez de apanhar. A vida é
assim: um dia você bate, outro dia você apanha. Você não tem o monopólio da "coitadice".
Coitados são esses milhões de europeus que foram levados para ser escravos lá em Meca, em
Medina, na Índia, etc., e que os historiadores se esqueceram deles, ninguém mais quis mexer
nesse assunto, porque o outro lado atacou com veemência tal que você fica inibido de ofender a
suscetibilidade. Mas olha, eu aqui ofendo suscetibilidade, quando é baseado na mentira, eu
ofendo com a maior cara-de-pau. Escravo? Escravo uma pinóia! Vocês são os maiores
escravagistas da história, vocês eram escravagistas oito séculos antes que os europeus se
tornassem tais. Eles se tornaram imitando vocês, vocês ensinaram isso. A escravidão não existia
mais na Europa, a escravidão tinha sido abolida na Europa. A situação mais baixa que tinha era
a de servo da gleba, abaixo disso você não descia. Ninguém podia escravizar ninguém. Vocês
foram e reintroduziram a escravidão lá, seus desgraçados! E depois, quando levaram o troco,
começaram a ser escravizados, começa com choradeira: “Ah, nós somos coitadinhos...”. Ah,
quê que isso? Vai lamber sabão! Se não fossem as invasões muçulmanas na Europa, jamais a
Europa teria entrado no tráfico de escravos!

Então procura o livro do Silvain Gouguenheim.

Aluno: Gostaria de saber como o aluno pode desenvolver a prática da sinceridade para chamar
sobre si a responsabilidade moral de seus atos.

Olavo: Não preciso responder essa pergunta, porque toda essa aula foi sobre isso. Você vai
precisar descobrir os elementos antagônicos e alienantes que existem em você mesmo e tentar
recuperar a sua própria voz. Vou dar aqui um exercício: quando você está sozinho e você está
pensando, frequentemente, a gente, às vezes, pensa em imagens, pensa em esquemas, mas às
vezes a gente pensa em palavras e sai um discurso. Para quem você está falando nessa hora?
Com quem você está falando? [02:00:00] Em geral, você está imaginando uma platéia anônima
que ou o acusa ou o defende. Você está num discurso permanente de acusação e defesa. Esse
discurso permanente de acusação e defesa, isso aí é a raiz da falsidade, porque quem te acusa é
o diabo e quem te defende é a sua vaidade. Então, quando começar isso, se você é cristão, você
simplesmente apela para Jesus Cristo. Você diz: “Jesus, eu entrego essa questão na sua mão. Eu
não quero, eu não sou juiz, eu não sei isso aí. Quem tem que saber é você, então você me
ensina.” A maior parte das vezes em que você está discutindo para provar que você é culpado
ou inocente, está falando besteira. Inclusive, o discurso interior de acusação e defesa, é a maior
origem de vaidade que existe no mundo. Sobretudo porque você se acusa de certas coisas e,
depois, quando um sujeito te olha feio, você acha que ele está te acusando exatamente daquilo,
mas na maior parte dos casos ele nem sabe do que você está falando.

Então a sua vida se transforma numa palhaçada, num teatrinho imaginário que impede você de
se relacionar verdadeiramente com as pessoas. Você não pode tratar as pessoas como se fossem
personagens do seu tribunal imaginário. No seu tribunal imaginário você é acusado de
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todos os seus pecados reais e imaginários, ao mesmo tempo. Quando alguém no mundo exterior
te acusa de alguma coisa, ele está te acusando só daquilo, ele não tem a menor idéia dos outros
pecados dos quais você se acusou. Se você ouve aquela pessoa como se ela fosse um porta-voz
das suas acusações interiores, você está vestindo nela uma camiseta que não lhe cabe, você está
atribuindo a ela um papel que ela não tem. Além disso, o discurso permanente de acusação e
defesa está colocando você na condição de juiz, e você não é o juiz. O juiz é Deus. Pode ser que
haja coisas que você acha muito sérias, e Ele não. Porque você, na hora em que pensa naquilo,
você está pensando só num aspecto, aquele aspecto que te chamou a atenção – o mais
dramático, o mais impactante para você naquele momento – mas Deus vê tudo ao mesmo
tempo! Nós, para reconstituirmos mentalmente o contexto de uma ação, temos um trabalho
desgraçado. Deus vê tudo isso ao mesmo tempo, Ele não tem trabalho com isso. Todos os
atuantes ou agravantes que você pode alegar, Deus já viu tudo isso ao mesmo tempo, então por
que você não deixa o trabalho para Ele? Quando começar a pensar besteira, pára e reza! "Ah,
mas rezar com automatismo não vale...". Vale um montão, você não queira saber, aquela prece
automática que você faz é muito melhor do que ficar pensando besteira. Isso vale não só para a
acusação e defesa, mas para as queixas e recriminações. Quando começar o discurso interior de
queixas e recriminações, seja contra você, seja contra os outros, pare e reze. Ocupe a sua
cabeça. Há momentos em que você está fraco, em que você não consegue vencer o seu
automatismo. Então você tira aquele automatismo ruim que tem em você e põe o automatismo
divino, que é o da oração. Em vez de você ficar repetindo aquelas bobagens, você repete: "Ave
Maria, cheia de graça…", você vai ver como funciona.

Vou contar uma coisa, uma vez o meu filho Pedro, quando era pequenininho, conseguiu prender
a perna dele entre duas tábuas no chão, e não conseguia tirar. O único jeito que tinha era
arrancar um pedaço de carne dele, isso ia doer pra caramba e ele tava lá chorando. Eu falei:
"Filho, pára de chorar e começa a rezar", daí ele ficou quietinho. Puxei a perna dele, arrancou o
pedaço de carne e ele ficou lá, impávido colosso. Foi muito melhor. Eu também, quando estava
com o problema de vesícula, que é a pior dor que existe no mundo, eu não dizia um ai, ficava só
rezando: já estou aqui fodido mesmo, se eu falar “ai”, vai só piorar! Então a gente fica rezando.
Vai ficar enchendo o saco dos outros? Não encha o saco dos outros, nunca reclame de nada,
pare de reclamação e comece a rezar. Toda vez que for reclamar, pare com isso, isso é um
automatismo que vem dentro de você. Então, coloque um outro automatismo de Deus em você,
para preencher o lugar deste.

O que é característico desse diálogo interior é que nenhum dos dois lados fala a verdade, você
nunca é sincero: a sua acusação é falsa e a sua defesa é pior ainda. São duas mentiras, e você,
para encontrar a verdade nessa hora, tem que calar o discurso interior. Como é que você cala
ele? Rezando.

Aluno: E quanto aos elementos opositivos que, paradoxalmente, parecem estar diretamente
ligados à realização da vocação? Falo, sobretudo, dos canais habituais que servem de suporte
social e material à vida intelectual.

Olavo: Maravilha de pergunta! Se você quer ser um cientista, por exemplo, você tem lá a
Universidade, o regulamento, as verbas, os colegas – os próprios meios materiais e os canais
sociais pelos quais você realiza sua vocação são instrumentos de alienação também. O que você
tem que fazer é o seguinte: você tem que pegar a sua vocação e compreendê-la na sua pureza
essencial. Se você quer ser um homem de ciência, você vai ter que pensar durante muitos anos o
que é ser um homem de ciência – o que é ciência como valor e meta da vida.
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Estava lendo ontem um livro do Angus Menuge, que é um filósofo novo que apareceu aí, muito
interessante, e ele conta um episódio que aconteceu num congresso religioso. Estavam
discutindo dois pontos ali – eram todos evolucionistas, eram religiosos, mas evolucionistas – e
não chegavam a um acordo, e a atmosfera acabou ficando muito agressiva, muito violenta.
Quando terminou o debate, chamaram um bispo pra fazer a bênção final, e eles esperavam que
o bispo pacificasse os caras, daí ele disse exatamente o contrário, ele disse: "Lutem até a morte,
porque vocês querem a verdade. Claro que é bom a boa educação e a paz, mas a verdade está
acima disso, então aqui nós só vamos chegar a uma conclusão desse negócio se cada um
defender a sua até o fim, até que se encontre a verdade. Então lutem até a morte!".

O Angus Menuge disse: "Esse cara virou o meu herói, porque eu queria ser um cientista e ele
expressou o que é o ideal do amor à verdade. Nada mais interessa a não ser descobrir a verdade
sobre aquele ponto.” Esse é um dos componentes da idéia de ciência como norma de vida. Tem
uma aula que eu dei antigamente sobre o que é o ideal de ciência considerado não como ideal
humano, mas como padrão lógico do que é ciência, e esse padrão lógico por sua vez cria uma
norma ou meta de vida. Vamos ver isso numa aula posterior. É esta idéia pura de ciência que
você tem que perseguir, e não a realização profissional concreta daquele meio. Os seus colegas,
as pessoas em volta podem nem perceber a diferença, mas você tem que ser fiel a esta idéia e
não a eles. Outra coisa: jamais tenha medo de pressão de colegas. Este pessoal, sobretudo
universitário, que olha você feio e diz: "Ah, se você não fizer do jeito que eu quero, eu não te
aprovo”, o que você tem que responder pra eles? — "Você pára de charlatanismo, senão eu te
denuncio, te desmascaro aqui, te ponho no chão, desgraçado!" Você tem que seguir o conselho
do Maquiavel: mais vale ser temido do que ser amado. Não tente agradar ninguém. Se você vir
que o sujeito está com treta, com desonestidade, seja mais forte que ele e o intimide, faça-o
temer você intelectualmente, mostre pra ele que você sabe mil vezes mais que ele e se ele te
encher o saco, você vai desmoralizá-lo. [02:10:00] Você vai ver que ele vai te dar dez até o fim
do curso. Vários alunos a quem eu dei este conselho e que o seguiram, deu certinho. Se você
pensar: "Ah, eu não posso fazer isso, senão o professor vai me reprovar", você está lascado.
Muitas vezes me dizem "eu citei o seu nome e o professor me deu uma bronca", eu fico mais
bravo com esse cara do que com o professor, digo: "E você não o enfrentou? Não o humilhou?”
É o que você tem que fazer! Porque se o professor tem medo de ver o meu nome citado lá é
porque ele realmente é um fracote, é um coitado. E você vai ter medo de coitado, de fracote?
Você está liquidado, meu filho! Para eu ficar com medo, no mínimo, o sujeito precisa me
encostar um revólver na cabeça. Mesmo aí, vou pensar duas vezes se fico com medo ou se faço
algum malefício pro cara. Da última vez que um sujeito fez isso, eu só ficava pensando: "Você
vai ver o que eu vou fazer com você depois". E o cara tava rolando um processo contra eles, no
fim o cara foi parar na cadeia. Veio me intimidar, fui lá, fiz o meu testemunho e o cara foi parar
na cadeia, um cara importante. Se encostarem um revólver na sua cabeça, você tem o direito de
ficar com medo. Abaixo disso não! E se ele ameaçar te bater, você nunca apanhou na vida? Eu,
quando era moleque, brigava, às vezes batia, às vezes apanhava, isso é normal da vida! Meus
filhos toda hora chegavam com nariz sangrando, porque brigaram na rua. Às vezes batiam, às
vezes apanhavam, isso é normal, ninguém pode ficar assustado com essas coisas. Agora, hoje
em dia as pessoas têm medo: "Ah, vão falar mal de mim". Ora essa! Aristóteles dizia o seguinte:
a palavra "cão" não morde. Falar mal de você não dói. Os caras falam mal de você, fale mais
mal deles, é uma chance que ele está te dando de expelir o seu veneno! Eu gosto quando os
caras falam mal de mim: "você fala mal de mim agora, você vai ver o que é bom pra tosse!" Eu
tenho um pretexto pra fazer o mal, o sujeito me deu um pretexto pra fazer um malefício sobre
ele, pô, que maravilha, tem que ficar grato! Não tenham medo destas coisas, não tenham medo
de
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mau-olhado, não tenham medo de cara feia, vocês não são mais crianças! Enfrentem, sejam
homens, não tenham medo de nada!

Mas você tem toda razão, Fernando, esses elementos opositivos, que vêm da própria estrutura
social para a realização da vocação, estes são talvez os mais difíceis de você enfrentar.

Aluno: Professor, como o estudo das religiões comparadas auxiliou o senhor no estudo da
filosofia?

Olavo: Eu na verdade comecei a estudar este negócio das religiões comparadas antes de estudar
a filosofia propriamente dita. Eu fui levado à filosofia por problemas na esfera da religião
comparada que eu não conseguia resolver sem ter um instrumental filosófico melhor para
analisar aquilo. A rigor, no começo da minha vida eu estava muito mais ligado nos estudos
literários, na história, história cultural, do que na filosofia. O que, aliás, é uma coisa muito boa,
você ter outro assunto, um assunto material que é aquele pelo qual você se interessa, no qual
você acumula conhecimento. Todo mundo tem que ter isto. Por exemplo, Benedetto Croce
(1866-1952) escreveu quatorze livros de filosofia e "oitenta-e-tantos" de outro assunto: história,
literatura, política, etc.. Então isso dava material para ele raciocinar filosoficamente. Se você
não tem material, não tem assunto, a sua meditação filosófica se perde no vazio. Setenta por
cento do que Aristóteles escreveu era sobre ciências naturais, e daí ele tirava o material para ele
especular filosoficamente. Hoje se sabe, por exemplo, que todo o sistema das categorias que ele
criou, foi baseado na sua experiência de biólogo, não foi uma coisa que ele deduziu da
linguagem, a análise da linguagem e a gramática não existiam, só inventaram cem anos depois
de Aristóteles. Então de onde ele tirou aquela estrutura, aquelas distinções entre os seres? – da
experiência de biólogo.

Para você progredir no estudo da filosofia você tem que ter alguma outra matéria, que pode ser
biologia, física, religião comparada, história, estudos literários. Sempre tem que haver isso, é a
sua fonte de conhecimentos materiais. Pode ser a política que é interessantíssima.

O estudo das religiões comparadas ajudou-me demais neste sentido, mas se não fosse a religião
comparada, se fosse outra coisa, ia funcionar do mesmo modo.

Aluno: A alienação de que você fala pode trazer certa inquietação, até depressão?

Olavo: Mas certamente! Isto é a fonte de toda depressão. Quando você se afasta do seu próprio
coração, só entra porcaria. A sinceridade é a cura dos nossos males, porque se você está falando
sozinho com a sua própria voz, você está pronto para falar com Deus. Mesmo que Ele não
responda nada, você sabe que você está falando com Ele. Quando você se desliga do seu
próprio coração, você desligou da fonte de energia, tirou da tomada. Quantas vezes a gente,
para agradar o meio social, para agradar sua mulher, para agradar a namorada, você não adota
condutas que são completamente fora do que você quer? Você deixa de ser você mesmo,
realmente, e daí você fracassa. Ora, não tem coisa mais bonita no ser humano do que a
personalidade, quando ela vem do coração. Você ser você mesmo não é uma obrigação, se eu
pudesse ser uma coisa melhor do que eu mesmo, eu seria. Ser você mesmo é um prazer, é um
tesão. Você não queira saber a liberdade que isso dá. Aí você está ciente de que você está
agindo diante de Deus, que você está fazendo uma coisa com inteireza, com integridade. Claro
que isso não tem nada que ver com "sincerismo", com você dizer: "vou contar todos os meus
podres". Quando você começa a contar todos os seus podres, você já está fingindo,
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porque os podres são as partes que você justamente não quer que as pessoas vejam, e se você
não quer que as pessoas vejam, você tem que esconder, e tem que saber que está escondendo.
Então o que você faz? Você mostra para Deus: "Olha, Deus, Você sabe, eu contei tudo pra
Você, agora esconde, não os deixe ver". Muitas vezes você vê nos Salmos, quantas vezes o
salmista não pede: "Deus, não deixe que os meus inimigos me humilhem"? Mas para isso você
tem que ser sincero com Ele, você tem que mostrar os seus podres para Ele. E nem para Ele
você deve mostrar mais arrependimento do que você tem, porque se você se arrepende demais,
vira remorso, e o remorso é demoníaco. O arrependimento verdadeiro tem uma ponta de alegria
e esperança sempre, então nunca é um negócio desesperador. A Igreja Católica diz para você
confessar os seus pecados de maneira genérica e sumária, não é para você dar muito detalhe que
é para você não se deprimir e não dar mau exemplo ao padre. Você começa a descrever os seus
pecados e o padre pode dizer: "Opa! Parece interessante, vou fazer também". Você não detalha
coisas degradantes, nem para o padre você faz isso, porque Deus está vendo tudo, você está lá
falando pro padre mas você não está informando a Deus naquele momento. Deus já está
sabendo, então pra quê você fala para o padre? Para conferir um valor ritual àquela coisa,
porque como o padre pertence à sucessão apostólica, ele tem uma autoridade que une – desde a
Terra estará unindo ao Céu, e o que está desligado na Terra está desligado no Céu –, então ele te
reintegra de novo na comunidade católica. É só para isso, não é para informar a Deus. Deus já
está sabendo da coisa inteira. Então, você fala o nome do negócio, bastou você dar o
reconhecimento: "eu fiz tal coisa, comi a mulher do próximo", não precisa dizer: "comi a
mulher do fulaninho que mora na rua tal, número tal", não é assim, não é preciso dizer quem é o
próximo. Quando você confessa, Deus já sabe daquilo e Ele já prometeu o perdão, no caso da
confissão. O arrependimento sincero nunca é um desespero profundo, não dá para ser. O
desespero profundo pressupõe que você está condenado. Você não pode chegar para Deus e
dizer "condene-me", [02:20:00] não é isso o que você está fazendo. O arrependimento é sempre
uma coisa equilibrada, racional, mas moderada, nunca é um desespero.

Aluno: Na biologia diz-se que a Ontogênese repete a Filogênese. Podemos fazer uma relação
desta natureza no que diz respeito à frase de Lavelle? O que ele está falando para o plano
pessoal vale para o plano social? E no plano social vivemos num momento de escuridão
tateante?

Olavo: Olha, toda analogia entre o indivíduo e a sociedade é um problema. Um problema


terrível. Inclusive, quem disse que a Ontogênese repete a Filogênese foi Haeckel. E Haeckel era
um dos maiores charlatães da história da biologia. Não é certo que a Ontogênese repete a
Filogênese, é uma imagem que ele fazia. Ele dizia: "a história do indivíduo repete a história da
espécie", e isso é uma imagem, uma metáfora, não é uma imagem literal. Toda analogia entre o
indivíduo e a espécie, ou entre o indivíduo e a humanidade, é uma coisa terrível. Nas aulas que
eu dei sobre o movimento revolucionário, eu dizia que o movimento revolucionário toma um
futuro hipotético como certeza e, em nome dele, concentra poder para mudar a vida presente.
Na nossa vida pessoal é exatamente o que nós fazemos: se eu tenho um plano, eu quero chegar
lá. Eu concentro meu poder para realizar o que eu quero. Por que isso seria errado no plano da
sociedade?

É muito simples: porque tudo o que você planeja na vida individual você planeja em função de
uma expectativa de vida que você sabe que tem uma duração máxima predeterminada. Você
tem um prazo de vida e nesse prazo você tem que resolver as coisas. Mas a História não tem
prazo, então a analogia é falha. A grande falácia revolucionária é a de que nós vamos chegar a
esta mutação, e esta mutação será um estado perfeito, definitivo. Isso não pode
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existir, porque no dia seguinte da sua bela mutação vai ter outra, e outra, e outra, e isso não vai
terminar. Nós não sabemos o prazo de vida – da História – e, portanto, nós não podemos fazer
planos para o futuro da humanidade como fazemos planos para o nosso próprio futuro. Aquilo
que na escala do indivíduo é inteiramente normal, na escala da sociedade se torna anormal,
porque você está colocando uma escala de tempo que é a da vida individual, e que não vale para
ela.

No entanto, o critério que eu falei da sinceridade também vale para a sociedade, até certo ponto.
Porque há uma quantidade mínima de sinceridade circulante que uma sociedade precisa ter para
que as suas lideranças encarem os problemas com certo realismo, e possam tomar decisões que
sejam mais ou menos razoáveis. Se não há isso, se todo mundo começa a mentir ao mesmo
tempo, todas as decisões são loucas, todas são alienadas. E isso existe, sim. Mas não é a
sociedade em si que está mentindo, é um certo grupo de pessoas. Por exemplo, principalmente a
intelectualidade, a classe falante. Se a classe falante toda começa a mentir, vai enlouquecer os
outros, coitados. Como, por exemplo, o senhor Lula. Ele jamais teve uma idéia na vida. Tudo
que entrou na cabeça dele entrou através de praticamente duas pessoas: o Frei Betto e o Emir
Sader. Ele não aprendeu nada com mais ninguém. O Lula é: os pensamentos do Emir Sader e do
Frei Betto transformados em poder político. Isto inevitavelmente traz, em si, todo aquele
coeficiente de falsidade e de histrionismo que é próprio desses dois. São pessoas que vivem da
ocultação, e por isso mesmo o governo brasileiro vive da ocultação. Como o fato da ocultação
do Foro de São Paulo: acima do governo brasileiro existe um outro órgão decisório que manda
nele, decide o que ele vai fazer e decide o que os outros governos da América Latina vão fazer.
Eles criaram um poder que não é secreto, mas eles agem como se fosse, eles fingem que é
secreto, [02:25:00] e daí todo mundo acaba agindo como se aquilo fosse secreto mesmo, quando
na verdade não é. Entramos no reino da palhaçada, não sabemos mais quem manda em nós e é
proibido falar. Todo mundo sabe, mas é proibido falar. Virou o famoso segredo de polichinelo,
aquele segredo que todo mundo sabe. É claro que isso aí é uma palhaçada, é um estado extremo
de alienação. E isso acontece, sim.

Aluno: Na última aula houve uma queda justamente quando o tema do voto de abstinência em
matéria de opiniões ia ser comentado. O curso está brilhante, parabéns!

Olavo. Obrigado. O voto de abstinência em matéria de opiniões será o tema da próxima aula, é
o tema que a gente chama do “repertório da ignorância”, acho que hoje não vai dar muito tempo
de abordar isso aí, mas é o seguinte:

Tudo aquilo que nós conhecemos, ou que imaginamos conhecer, tem dentro de si um
coeficiente de desconhecimento ou de ignorância que faz parte da própria natureza da coisa. Por
exemplo, você pode olhar uma pessoa desde fora – o corpo humano – e você pode também
colocá-la numa mesa de cirurgia, abrir a barriga dela e ver como os órgãos estão funcionando
por dentro, mas você não pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Você conhecer uma
dessas coisas implica você desconhecer a outra num mesmo momento. Esse coeficiente de
desconhecimento faz parte da estrutura da realidade. Não há nenhum objeto no mundo que
possa se mostrar a nós sob todos os seus aspectos ao mesmo tempo, ele tem que mostrar alguns
aspectos escondendo outros, isso é assim não por causa da nossa ignorância, mas por causa da
estrutura da realidade. Por exemplo, um objeto tridimensional: você só pode olhá-lo sob certos
ângulos ao mesmo tempo. Você não pode olhar por todos os ângulos ao mesmo tempo. Por
exemplo, para eu ver a superfície desta mesa é preciso que eu não esteja vendo o fundo dela ao
mesmo tempo – isso é o aspecto de ignorância que faz parte da
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estrutura da realidade, não é um defeito do nosso conhecimento. Isso quer dizer que para nós
chegarmos a uma certeza, a um conhecimento sólido a respeito de algumas coisas, nós
precisamos distinguir muito bem o que é, no objeto, o coeficiente de desconhecimento
intrínseco dele e o que é fruto apenas da nossa ignorância; o que nós ignoramos dele, mas que
nós deveríamos saber; e o que nós ignoramos porque ignorá-lo faz parte da estrutura do objeto
mesmo. Para fazer isso você precisa fazer um dia um negócio que é o “repertório da sua
ignorância”. Fazer a lista daquilo que você precisaria saber para compreender as coisas que
você quer compreender e esta lista acaba virando um programa de estudos mais tarde.

Por exemplo, se vocês lerem as Reflexões Autobiográficas do Eric Voegelin (1901-1985) vocês
vão ver que desde muito cedo ele colocou para si o problema dos movimentos ideológicos de
massa. E ele logo percebeu que para ele poder investigar esse problema ele precisaria saber isto,
e mais isto, e mais aquilo. Ele foi atrás dessas coisas, inclusive fazendo duas viagens de estudos,
uma para a França e uma para os Estados Unidos, para complementar as coisas que lhe
faltavam. Para, no fim, poder atacar o problema dele. É claro que à medida que ele foi
investigando, foram entrando novos itens na lista. E também, algumas coisas que pareciam
importantes no começo, acabaram revelando-se sem importância depois. Mas é assim que se
faz.

Ao propor o exercício do repertório de ignorância, que vai ser na próxima aula ou na outra. Nós
vamos ver que uma coisa fundamental para você controlar a qualidade e a quantidade do que
você conhece, é necessário reduzir o número de opiniões que você tem. Porque as opiniões
passam por você – elas vêm às vezes da mídia, de um vizinho, ou de não se sabe onde – passam
pela sua boca e, a partir da hora em que você as emitiu em voz alta elas começam a compor a
sua auto-imagem e só vão te atrapalhar. Então você tem que reduzir aquilo para ter um controle
melhor do que você conhece e desconhece. Quais são as suas áreas de ignorância, no sentido
humano e quais são as áreas de ignorância que são inerentes à estrutura do objeto. Quer dizer,
você simplesmente saber o que você tem que ignorar para conhecer certa coisa já é saber muito.

Esse voto de abstinência não é só um aspecto moral, é um aspecto técnico do aprendizado, quer
dizer, eu vou ter opiniões sobre menos coisas porque eu quero controlar melhor aquilo que sei e
o que não sei. Eu quero controlar o grau de certeza. O problema do “grau de certeza”, que nós
nem tocamos ainda, é o que está mais ou menos ali na apostila “Inteligência, Verdade e
Certeza” [http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/intver.htm], mas eu vou dar uma
explicação atualizada daquilo. Quem quiser ler a apostila não fará mal nenhum, mas nós vamos
voltar a esse assunto com muitos acréscimos, mais tarde.

O que eu estou pensando é: algo que eu tenho certeza absoluta; é algo que eu tenho uma certeza
razoável ou probabilística; é algo que eu tenho apenas uma crença verossímil; ou é algo que é
apenas uma possibilidade sobre a qual, no fim das contas, eu não sei nada? Ser capaz de rever
as suas opiniões e saber graduá-las segundo os graus de certeza já é limpar a área, é saber quais
das suas opiniões você pode defender, quais valem a pena defender até a morte e quais as que
não valem. Aquelas que valem a pena negociar.

Aluno: O senhor mesmo já confessou que cometeu erros de apreensão em casos, digamos,
recentes, por exemplo, ao elogiar o Mangabeira Unger ou dar crédito ao livro de John Cornwell
(1940) contra o Papa Pio XII. Por que esse erros se dão e como evitá-los?
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Olavo: É impossível evitá-los. Você pode diminuir o número deles mas, por exemplo, a mim
me acontece essa desgraça de ser um opinador profissional de mídia. Que é uma coisa que eu
faço, em parte, porque não tem outras pessoas falando o que deviam falar e, em parte, como
atividade profissional para eu pagar minhas contas. Se ao invés de ter que escrever artigos
regularmente eu pudesse escrever só quando eu quero mesmo, seria muito melhor. Como a
gente está a toda hora emitindo opiniões, você vai errar necessariamente. O que eu acho bonito
é quando, às vezes, a pessoa descobre um erro de detalhe – uma notícia que, ou eu li errado ou
peguei numa fonte errada, por exemplo. Tem uns camaradas que procuram isso nos meus
escritos com uma avidez e quando eles encontram eles ficam tão satisfeitos, mas tão satisfeitos!

Eu tinha escrito o negócio das camisinhas, que o Papa tinha razão no negócio das camisinhas,
porque um biólogo americano que pesquisou o assunto disse que ele tinha, daí teve um que
disse: “Não, você é um charlatão, porque no dia seguinte o cara atenuou o que disse” e tal – mas
como é que eu, lendo uma entrevista do cara de tal data, posso comentar o que ele disse na
entrevista seguinte? Não é possível. “Você falou que as camisinhas não protegem em nada e o
cara falou que elas podem ajudar em alguma coisa!” – eu disse que elas não protegem nada, eu
não disse que elas não podem ajudar em nada. Eu disse que às vezes, claro, às vezes, elas
podem funcionar, não nego, o que eu disse é que elas não protegem. Proteger é uma coisa,
ajudar é outra. E o que o biólogo falou? Ele falou: “Elas podem servir como backup
prevention”. O que é um backup? Backup é em última instância. Primeiro você faz isso,
segundo você faz isso, terceiro você faz isso e, também, por via das dúvidas, use camisinha.
Mas o camarada ficou tão bravo comigo, tão bravo, disse: “Você é um canalha, você não é
filósofo coisa nenhuma!”. Quer dizer, eu escrevi na minha vida umas quarenta mil páginas, dei
horas e horas, centenas, milhares de horas de aula. E o sujeito pega uma coisa que eu escrevi
sobre camisinha e diz “você não é filósofo coisa nenhuma, você é um canalha!”. É um negócio
tão desproporcional. Eu podia estar errado realmente naquilo, mas, mesmo que estivesse errado,
não é um problema muito grave. Se você está errado, você corrige no artigo seguinte ou corrige
mais dia, menos dia, não é um problema muito grave. Grave é se você sabe que você errou e
você continua disfarçando para não passar vergonha. Passar vergonha você vai passar de
qualquer jeito… [cai a transmissão]

SEGUNDO ARQUIVO

Aluno: Poderia explicar melhor em que sentido o senhor usa a palavra alienação? É o mesmo do
Voegelin?

Não. Eu estou usando num sentido muito mais genérico e que não implica ainda um
esclarecimento crítico do conceito. De modo geral e vago, eu entendo alienação como uma
recusa da estrutura da realidade, quer dizer, o indivíduo começa a viver num mundo de sua
própria invenção. Esse mundo pode ser uma invenção coletiva do seu grupo, formado apenas
das convicções ou hábitos que ali vigoram sobre isso ou sobre aquilo. A coisa mais
universalmente característica da estrutura da realidade, pouco importando o que é o restante da
sua descrição, é que a realidade não é conhecida no seu todo e que esse coeficiente de
desconhecimento faz parte da própria estrutura da realidade. Se há coisas que nós
desconhecemos não é por causa de um estado provisório da nossa ignorância, a possibilidade de
nós termos um conhecimento total simplesmente não existe. Por quê? Porque a nossa vida tem
um limite. Somente um ser eterno pode ter conhecimento total. Somente um ser eterno,
universal e absoluto pode ter conhecimento total. A limitação do nosso conhecimento é inerente
não só à nossa condição, mas à própria estrutura da realidade, porque a nossa
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condição faz parte da estrutura da realidade. Ademais, se eu não posso conhecer tudo dos
objetos isso não é só uma limitação minha, mas é uma limitação deles próprios.

Não sou só eu que não posso olhar uma pessoa se movendo pela rua e ao mesmo tempo abrir a
barriga dela para examinar os seus órgãos internos – ela também não pode. Ela não pode estar
andando pela rua e, ao mesmo tempo, abrir a sua barriga para me mostrar seus órgãos internos.
Isto não é uma limitação do meu conhecimento, é uma limitação simultânea e correlativa do
conhecimento e do ser. Portanto, esta limitação, este coeficiente de desconhecimento,
coeficiente de mistério, ele faz parte da estrutura da realidade. Quando você não aceita isso,
quando o rejeita conscientemente, ou quando, sem rejeitá-lo conscientemente e verbalmente,
você age, procede, como se ele não existisse, você está alienado, está fora da realidade. Está
vivendo num mundinho inventado por você onde tudo é conhecido e onde tudo aquilo que é
desconhecido é apenas um estado provisório, um defeito provisório a ser corrigido amanhã ou
depois. Este mundo não existe.

A maior parte da ideologia científica que hoje circula por aí sempre parte disso. De que tudo
que nós desconhecemos resulta apenas de uma situação provisória que a ciência corrigirá
amanhã ou depois. Isto é absolutamente falso. O simples fato de que a ciência possa conhecer
amanhã o que não conhece hoje já mostra que o coeficiente de desconhecimento é permanente.
Quando a ciência conhecer outras coisas amanhã, haverá outras que ela vai continuar
desconhecendo. Ou pior, haverá coisas que ela percebeu que não compreende, mas pensava que
compreendia numa etapa anterior.

Nunca se pode dizer que o estado de desconhecimento ou de ignorância é provisório. Ele não é
provisório. Ele faz parte da estrutura da realidade. Isso significa que a posição real do ser
humano perante a realidade é a de uma criatura que tem certa área de conhecimentos e outra
área de ignorância, de trevas, de desconhecimento, com a qual ela tem que lidar. Há certa
sabedoria ou capacidade que nós temos de lidar com esse desconhecimento. Por exemplo,
quando você está dirigindo um carro no meio de uma estrada, vêm vindo vários carros, você
não sabe o que eles vão fazer. Você nunca sabe. Você não controla o fluxo dos carros e, no
entanto, você sabe se articular com esse elemento desconhecido. Nas nossas relações humanas,
nós nunca sabemos como as pessoas vão reagir ao que nós fazemos ou falamos. Nunca
sabemos. E, no entanto, nós sabemos agir, nós sabemos nos posicionar perante esse elemento
desconhecido. Na vida diária, na vida prática, nós temos essa situação, onde lidar com o
desconhecido faz parte do seu encaixe efetivo na realidade. Nós temos que ter a mesma coisa no
que diz respeito à concepção geral da realidade.

Ora, o que nós chamamos de ideologia científica hoje é uma coisa que não reconhece a
existência do desconhecido e do desconhecimento como parte integrante da realidade. Mas
apenas como etapa provisória a ser idealmente vencida amanhã ou depois, o que é
absolutamente falso, o que significa que a ideologia científica, na sua totalidade, está fora da
realidade, embora possa estar encaixada com a realidade neste ou naquele ponto em particular.
Quando as pessoas falam sobre “concepção científica do cosmos”, eu digo “isto é uma
estupidez”. Não pode haver uma “concepção científica do cosmos” porque a ciência só pode
falar daquilo que ela conhece. Se você somar tudo o que todas as ciências conhecem, você não
compõe o mundo, não tem um mundo completo ali. Toda a dimensão infinita da acidentalidade,
por exemplo, está fora do campo das ciências. E sem a acidentalidade não há realidade, portanto
a antiga concepção religiosa era muito mais realista e muito mais encaixada na realidade do que
a concepção científica. A concepção científica é essencialmente alienante. Alienação é colocar-
se fora do sentido de realidade. Esta alienação
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pode chegar ao cúmulo do sujeito se alienar da sua própria realidade. Ou seja, ele se afasta, ele
não leva em conta os elementos de desconhecimento que existem nele mesmo. Ele procede
como se ele soubesse tudo a seu respeito ou como se tudo aquilo que ele desconhece fosse
irrelevante. Se você faz essa abstração, você separa de toda a densidade do mundo real. Só os
elementos conhecidos que estão sob seu controle agora. Você não está falando de um mundo
real, você está falando de um mundo hipotético que só existe na sua cabeça, você está tomando-
o como real e condenando o resto como irreal. Isso é loucura. Nós vamos aprofundar esse tema
bem mais tarde. Isso aí faz parte de uma série de gravações que eu estou fazendo aqui com o
Moreno Garcia para colocar no Seminário de Filosofia – não no Curso, mas na página do
Seminário. Ficará lá, à disposição, embora sejam temas que neste curso serão mais tarde
examinados. É bom já ter esse material aí gravado, à disposição de vocês, para vocês terem uma
espécie de um trailer daquilo que nós vamos examinar. Claro que no curso examinaremos com
muito mais detalhe do que nessas gravações, mas elas já vão ficar lá.
Aluno: Com certeza a regra moral do cristianismo é mil vezes menos opressiva do que a moral
social dos nossos dias.

Olavo: Não tenha a menor dúvida. Você imagina se na Idade Média um sujeito seria
escorraçado do meio social só por que cometeu um adultério. Se ele cometeu o adultério, vai na
Igreja, confessa, comunga e no dia seguinte tá tudo limpo. Agora, hoje em dia não. Se o sujeito
cometeu um adultério ele está desgraçado. Você vê, a história de Abelardo e Heloisa, todo
mundo sabia que o Abelardo estava comendo a Heloísa e não aconteceu nada. Ele só se deu mal
quando ele fugiu com ela para casar escondido. Aí não, daí a família ficou brava. Quer dizer,
havia uma certa tolerância, não infinita, porque o que o cara está fazendo está errado, mas nós
não vamos acabar com ele por causa disso – mais dia, menos dia, ele corrige.

Aluno: (…) uma esperta incorporação da moral cristã pelo Estado moderno.

Olavo: Sim. O Estado moderno leigo pega da moral cristã tudo aquilo que lhe interessa para
aumentar o seu poder sobre os cidadãos.

Aluno: (…) de que vale um guiamento moral obedecido só por medo?

Olavo: Ela tem toda a razão. Não vale absolutamente nada. É medo do juízo final, é medo de
Deus? Não. É medo da polícia, do juiz, do falatório. Você obedece a todos esses deuses e ídolos
muito mais do que a Deus.

Aluno: (…) aqui em São Paulo agora vigora a lei de não fumar em locais fechados.

Olavo: Você vê que coisa feia fumar em locais fechados! Você pode matar as pessoas! Eu,
quantas vezes, no Rio, puxava um cigarro [00:10:00] e antes de acender já tinha meia dúzia que
começava a tossir. “Pera aí, pera aí, eu não acendi ainda, espera pelo menos eu acender para eu
poder matar você.” É claro que isso é uma paranóia. E isso é feito pra quê? O Estado explora,
sobretudo, as pessoas que são mais medrosas, mais fofoqueiras, mais malignas, mais propensas
a se fazer de vítima. O Estado é louco para encontrar pessoa que se faz de vítima para ele
oferecer para ela uma proteção contra as outras e manter todo mundo em estado de mútua
suspeição. Dividir para reinar. Você cria aí um problema entre a parcela fumante e a parcela
não-fumante. A parcela não-fumante se considera agora vítima “Ah, você fuma aqui e
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nós vamos morrer!”. A história do fumo passivo… preste atenção: fumo passivo não existe.
Não existe. Não existe. Todas as estatísticas publicadas sobre isso são empulhação. As
estatísticas verdadeiras, a própria Organização Mundial de Saúde publica em publicações
técnicas, escondendo do público geral. Por exemplo, depois que o número de fumantes na
Califórnia diminuiu para um terço do que era, o número de casos de asma multiplicou por
quatro. Então como é que você vai dizer que o fumo causa asma, meu Deus do céu? E assim por
diante. Tudo isto é empulhação. Empulhação. Nem o fumo direto, quanto mais o fumo passivo.
No site www.forces.org, eles publicam tudo o que os outros escondem, eles vão lá, pegam os
documentos e publicam.

Aluno: (…) não me surpreenderia ver alguém cheirando cocaína, acendendo um baseado, uma
pedra de crack ou injetando uma droga endovenosa após um almoço, jantar, lanche ou
cafezinho. Estamos a um passo disso.

Olavo: Mas é evidente, quando você vai ver as forças que apóiam o movimento antitabagismo
são as mesmas que apóiam a liberação de drogas pesadas. Exatamente as mesmas. Por que você
acha? Eles querem fazer a humanidade trocar de vício. E tem um vício que não induz a um
comportamento anti-social, mas induz o sujeito a raciocinar. O fumo é o vício típico da época
em que começam os debates democráticos. Quanto mais fuma, mais fala. Agora eles querem
outro tipo de pessoa. Querem aquele bando de inúteis, coitados que estão lá morrendo, sempre
às portas da morte e que estão sempre necessitados de socorro do Estado. É isso que eles
querem. Por isso querem liberar a droga e proibir o tabaco.

Aluno: (…) dias passados fui almoçar, após o expediente, com um grupo de colegas do
trabalho. Fazia calor. Fui a única a pedir um chope, os outros pediram timidamente um
refrigerante e me olharam com admiração.

Olavo: Olha, é o "bom mocismo" obrigatório. Você não pode fumar, não pode beber, você não
pode falar com voz de homem porque ficam ofendidos. Hoje em dia todo mundo tem que falar
tão suavezinho, porque se você falar com voz de homem a pessoa pode se assustar e você não
quer assustar ninguém. É horrível isso. Eu, que já estou com 61, já vivi três gerações e vejo
como essas coisas foram mudando, eu vejo como as pessoas se tornaram monstruosamente
covardes, fracas a um ponto que, na minha época, um cara covarde como os de hoje não
sobreviveria, não sobreviveria. Você estaria liquidado. Hoje é ao contrário. Você não pode ser
valente, não pode ser um cara decidido, não pode nem falar em certos tons, porque as pessoas se
ofendem. Fica todo mundo se comportando como se estivesse com medo de ser acusado de
alguma coisa. Que mundo é esse? Como é que vocês agüentam viver nessa porcaria?

Aluno: Professor, qual a sua opinião a respeito dos autores: J. D. Salinger (1919 - )?

Adoro Salinger. O Apanhador no Campo de Centeio é um livro maravilhoso. Vocês aí têm sorte
de estar no Brasil porque a tradução brasileira do Salinger é tão boa quanto o Salinger.
Tradução feita pelo Jório Dauster. Não era uma tradução profissional, ele trabalhava na
Petrobrás, mas era um homem de muita cultura. A tradução é maravilhosa.

Aluno: Thomas Pynchon (1937 - )?


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Olha , estou com quatro livros do Thomas Pynchon para ler e não li nenhum ainda. Quando ler,
digo.

Aluno: Philip Roth? (1933 - )

Eu me lembro que quando eu li O Complexo de Portnoy eu dei muita risada, mas nada mais.

Aluno: Kurt Vonnegut? (1922-2007)

Eu li, mas eu não lembro, portanto não deve ser tão importante assim, pro meu gosto.

Aluno: — Acredito que, pelo o que você disse, o grande desafio da vida cristã seria o retorno à
sociedade após o isolamento natural por que passamos ao revoltarmo-nos contra a alienação
oprimente. Esse retorno é realmente tão vagaroso quanto acho?

Olavo: Goethe dizia que o talento se aprimora na solidão e o caráter na agitação do porndo.
Você vai ter que compensar essas duas coisas. O seu talento, ele se fortalece na medida em que
você escapa da alienação e permanece em portato com o seu coração, com a sinceridade.
Talento e sinceridade, no fim das portas, são a porma coisa.

Aluno: — Acredito que, pelo que você disse, o grande desafio da vida cristã seja o retorno à
sociedade após o porlamento natural pelo qual passamos ao nos poroltarmos pela alienação
porimente. Esse retorno é realmente tão vagaroso quanto acho?
Olavo: Goethe (1749-1832) dizia que o talento se aprimora na solidão, e o caráter na agitação
do mundo. Você vai ter que compensar essas duas coisas. O seu talento se fortalece na medida
em que você escapa da alienação e permanece em contato com o seu coração, com a
sinceridade. Talento e sinceridade, no fim das contas, é a mesma coisa. A criatividade só vem
do centro do ser humano; fora disso não vem. Se você começa a imitar, a virar um homem de
papelão, acabou a sua criatividade. Você tem que se manter no centro.

Porém, você tem obrigações com a sociedade que você mesmo contraiu. Você deu a sua
palavra. Por exemplo, casar com uma mulher. Você deu a palavra para ela. Você vai ter que
manter aquilo de algum jeito! Aos trancos e barrancos, mas vai. Não precisa ser perfeito, não
adianta querer ser perfeito, mas você tem que ser melhor. Melhor do que o quê? Melhor do que
você é agora. Só um pouquinho melhor. Se você conseguir ser um pouquinho melhor, já
melhorou. Se você vier com aquelas normas perfeitas, você não vai conseguir. A vida não é
assim. Para cumprir todas as normas da moral, você falha com a primeira, que é amar a Deus
sobre todas as coisas. Amar a Deus sobre todas as coisas subentende que você confia em Deus,
e que você fala com Ele com sinceridade. Você sabe que Deus não é o diabo, você sabe que
Deus não está a fim de te sacanear, você sabe que Deus te compreende. Por isso que se diz que
Deus é um pai. Ele é melhor que um pai, pois às vezes um pai não entende a gente, mas Deus
entende.

Por isso que nesse curso nós não lidamos muito com moral. A única moral que nos interessa é o
primeiro mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas. Deus sob o aspecto específico da
verdade – a verdade que você não conhece, mas que vai aos poucos conhecendo – e, sobretudo,
a verdade de que você jamais conhecerá tudo. Não por causa [00:20:00] de uma limitação sua, o
que está na natureza de um ser não pode ser uma limitação. Preste bem
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atenção: limitação ou privação é quando você está privado de uma qualidade que seria natural
você ter. Por exemplo, um tigre sem dentes - essa é uma grave limitação. Agora, é o seguinte: o
tigre tem dentes de tigre, não tem dentes de tubarão. Isso não é uma limitação dele, isso é ele
mesmo. Quando houve a pergunta sobre a natureza humana, eu não respondi a pergunta, não
analisei criticamente aqui nesse curso a questão da natureza humana, – vamos fazer isso mais
tarde – mas existem certos exercícios pelos quais você vai apreendendo essa noção da natureza
humana. Distinguir entre limitação e aquilo que é simplesmente a sua própria estrutura é estar
na pista de descobrir o que é a natureza humana. Em vez de darmos um conceito filosófico da
natureza humana, você pode fazer uma experiência da natureza humana, que você talvez não
consiga verbalizar, muito menos analisar filosoficamente, mas você vai ter a experiência. E
dessa experiência faz parte esse trato com o desconhecido. Veja o número de coisas
desconhecidas com as quais você lida perfeitamente bem através de uma espécie de antecipação
mínima que você faz. Existe uma tecnologia para isso. Toda a tecnologia da vida mística é isto.
O místico não sabe o que Deus vai fazer, não sabe o que Deus vai falar e, no entanto, ele sabe
lidar mais ou menos com essa situação. Isto faz parte da estrutura da realidade. Se você ignora
isto, então você está vivendo em um mundo alienado. Não importa que esse mundo seja “ah,
mas aqui tudo é exato, contado, pesado e medido”. Eu digo, bom, contado, pesado e medido
quer dizer que é, como dizia Leonardo da Vinci (1452- 1519), uma fantasia exata. Mas é uma
fantasia, não é a realidade.

Aluno: Na outra aula o senhor falou de literatura. Como a poesia se encaixa no nosso curso?

A poesia é a expressão primária da literatura, a literatura começa como poesia. As outras formas
literárias, narrativas – por exemplo, o romance –, surgem muito mais tarde.

A poesia seria a expressão mais direta da experiência, na medida em que ela é formulável com
um padrão verbal repetível. Ou seja, que você possa decorar e falar de novo. E que, falando
aquilo, você evoca-nos outros a mesma experiência. Essa capacidade de evocar experiência
similar é inerente à poesia.

Agora, para evocar a experiência similar, a poesia se serve de uma série de recursos sonoros que
ajudam. Acontece que a poesia moderna, a poesia do século XX, foi se tornando muito
hermética. Está se reportando a experiências que são muito elaboradas intelectualmente, ou até
espiritualmente, e aí se torna um pouco difícil. Por exemplo, se você ler T. S. Eliot (1888-
1965), você tem que praticamente decifrar, pois as alusões mitológicas e históricas são tantas
que até você saber do que ele está falando vai um tempo. Mas de qualquer modo, tão logo você
conhece essas alusões, você vê que todos os recursos sonoros da poesia estão lá para evocar
exatamente isso, e que o fazem maravilhosamente.

Aluno: (…) A poesia brasileira não está um pouco acima da prosa?

Está muito acima da prosa. O Brasil tem alguns dos maiores poetas da humanidade, a começar
por Manuel Bandeira (1886-1968) e o próprio Bruno Tolentino (1940-2007). Porque a poesia,
de certo modo, é a expressão mais primária. Sem poesia não existe civilização. Poesia e religião
estão em todo lugar – você não vai encontrar uma civilização que não tenha isto. Você encontra
civilização que não tem alta tecnologia, filosofia, ciência histórica, mas que não tem religião e
poesia não existe. Isso é o mínimo de referência que você precisa ter para ter uma vida
comunitária. Então não é de espantar que a poesia seja melhor do que a prosa, pois ela chega
antes. O talento poético desperta primeiro.
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Aluno: O sentido da vida seria saber lidar com os fatores desfavoráveis e saber adaptá-los ou
reinterpretá-los de maneira que, ao invés de deter os nossos objetivos, ajude-nos a realizá los?

Sem dúvida. É o negócio do Ortega y Gasset (1883-1955): “La reabsorción de la circunstancia


es el destino concreto del hombre”. A circunstância é aquilo que está fora. Circunstare, é o que
está fora, o que está em volta de você. Este que está em volta é o elemento opositivo, mas ele
pode ser engolido e transformado em fator positivo. Ou seja, ele tem de ser engolido, e não você
ser engolido por ele. É a pergunta feita antes sobre os próprios canais de realização da vocação,
que se transformam em elementos opositivos – no caso, você está sendo engolido por eles.
Você sempre tem que forçar para estar acima, muito acima do que a sociedade te exige. Para
isto, você tem que separar nela as exigências que têm substancialidade das que não tem. As que
são meramente simbólicas, feitas para lhe humilhar. De certo modo, nós temos que fazer um
seleção daquilo que a sociedade exige, do que é objetivamente importante e do que é apenas um
truque feito para nos debilitar e humilhar. Não se pode dizer que isso é o sentido da vida, mas a
tecnologia para realizar o sentido da vida é esta. O sentido da vida propriamente é outra coisa,
mas o caminho para realizá-lo é certamente este, ou seja, você lidar com os fatores
desfavoráveis de maneira que você os faça trabalhar por você, os faça trabalhar pelos seus
objetivos.

Hugo de São Vitor (1096-1141) conta que ele, quando era pequeno, tinha mania de anotar tudo.
Tudo que ele via, tudo que falavam para ele, um monte de besteira. Porém, mais tarde, quando
ele foi estudar filosofia, teologia, ele percebeu que tudo aquilo tinha uma utilidade. Eu percebo
a mesma coisa, porque quando comecei a trabalhar no jornalismo, fui obrigado a me informar
sobre um montão de besteiras. Eram crimes, a vida das putas na Praça Júlio Mesquita, um
monte de besteiras, mas hoje eu vejo que tudo isso ajuda - às vezes lhe fornece um exemplo, às
vezes ajuda a entender alguma coisa. Tudo aquilo que a vida lhe traz, você pode acumular como
informação que pode ser útil mais tarde. Se você é obrigado a fazer um serviço muito
monótono, e você não tem escapatória desse serviço que parece que vai matar você, isto é uma
disciplina. Fique rezando interiormente enquanto o faz. Experimente. Você vai ver que
consegue vencer aquilo, e aquilo acaba lhe dando uma força extra que você não tinha. Quer
dizer, a chatice pode ser um elemento de autodisciplina maravilhoso, desde que você saiba
valorizá-lo espiritualmente não cedendo a ele, não o colocando acima de você, mas
transcendendo-o.

Aluno: A crença reencarnacionista não teria um forte teor esquizofrênico?

Olavo: Eu não sei, nunca pensei nisso. Pode ser, mas não examinei a questão.

Aluno: Poderia dizer uma palavra sobre a obra de Lúcio Cardoso (1912-1968)?

Olavo: Eu me lembro que quando li A Crônica da Casa Assassinada, eu achei um livro muito
impressionante. É até uma coincidência você perguntar isso, porque esta semana eu estava
tentando me lembrar daquilo e não me lembrava direito, então mandei vir do Brasil outro
exemplar. Vou ler de novo e comentar quando puder, mas achei um livro muito impressionante,
embora tendendo a um tipo de morbidez muito brasileira, aquele negócio da família decadente,
etc.
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Veja, ao mesmo tempo em que umas coisas estão decaindo, outras estão subindo. Não existe
decadência sozinha. Nada pode decair sendo substituído pelo nada.

Aluno: Já que o professor tocou no assunto da reencarnação, seria possível falar sobre o
kardecismo?

Olavo: Não é possível, porque eu conheço muito pouco da matéria. Do que eu sei, sei que
alguns fenômenos observados em sessões espíritas são perfeitamente reais. Mas as doutrinas e
explicações, bom, eu precisaria pensar muito sobre isso, e não deu tempo de examinar. Mas os
fenômenos são reais. [00:30:00]

Aluno: Percebo que muitas questões que chegam ao senhor nesse curso estão ainda distantes da
minha compreensão (...)

Olavo: Às vezes estão da minha, também.

Aluno: Sinto-me ainda cru diante de tais problemas (...)

Olavo: Eu também.

Aluno: Penso ainda nas leituras de base para ampliar a capacidade de imaginação.

Olavo: Basicamente é a leitura da poesia, das obras de teatro, o próprio cinema; tudo isso ajuda.
Novamente é o exemplo dado por Leibniz, no qual o sujeito que tivesse visto mais figurinhas,
ainda que fossem todas sobre coisas irreais, seria uma pessoa mais culta que a outra. Porque a
imaginação tem mais portas, tem mais pontos de comparação.

Aluno: Na aula anterior o senhor lembrou Borges ao dizer que para ler um livro é preciso ter
lido muitos livros. É algo que me angustia, pois não sei se leio com qualidade. O senhor
recomenda muito a leitura de ficção. De que modo posso perceber que estou lendo com
qualidade?

Olavo: É muito simples. Para as finalidades desse curso, nós não temos que interpretar as obras
literárias, mas nós temos que interpretar as situações da vida à luz dos símbolos que as obras
literárias nos fornecem. Se você é capaz de fazer isso, você está lendo com qualidade, você está
aproveitando a leitura. Se ela lhe serve como ponto de comparação para situações reais da vida,
então está funcionando. Quanto mais você ler, mais pontos de comparações você vai ter, as suas
comparações vão se tornar mais precisas. No começo elas vão ser muito genéricas, e você vai
comparar muita coisa que não tem nada que ver. Mas, à medida que a galeria de personagens e
situações na sua mente vai aumentando. Você tem mais pontos de comparação, e você compõe
a sua compreensão das situações com elementos que você tirou de vários livros de ficção. Isso
significa que a sua comparação vai se aproximando mais da coisa específica, vai sendo menos
genérica e mais específica. No começo da vida tudo o que nós falamos é genérico, quer dizer,
uma criança usa uma mesma palavra para dizer quarenta coisas diferentes. Eu me lembro que
quando a Leilah era pequena ela chamava todos os vegetais de batata. Depois aprendeu os
nomes: alface, tomate, etc. Conosco é a mesma coisa, na vida adulta nosso vocabulário vai
sendo cada vez menos genérico e mais específico. É a famosa busca do termo próprio; o termo
próprio, não o termo genérico. Quando você vai à feira, você não fala “eu quero um vegetal”,
você fala “eu quero tomate, beterraba, alface,
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abobrinha, etc.”. Então, na expressão das nossas experiências, nós temos que buscar cada vez
mais o termo próprio, em vez do termo genérico. Na imaginação é a mesma coisa: a nossa
imaginação deve ir se ajustando para ficar cada vez mais apropriada à situação de experiência
real e menos genérica. Para isto você precisa ampliar o seu vocabulário, o vocabulário
imaginário das situações e personagens humanos. Isto é absolutamente fundamental. Toda a
ficção que você ler, tudo vai ser útil.

Agora, é melhor você pegar as grandes obras, porque as obras menores são cópia da cópia da
cópia, elas não têm aquela vitalidade de uma descrição que sai direto da experiência; às vezes,
pela primeira vez que aquela experiência é descrita. Elas [obras menores] já são uma
experiência secundária, elas resultam de uma experiência não humana, mas literária. Então você
lê um livro e diz “isso aqui não é o que ele [autor] viu da vida, é o que ele leu no Machado de
Assis”, por exemplo. Isso aí já não tem tanta utilidade para nós, porque vai se afastando da
coisa concreta da imagem para os conceitos abstratos; vai virando cada vez mais conceito
abstrato.

Você sabe que está fazendo uma leitura de qualidade quando as imagens lidas nos romances,
vistas no teatro, no cinema, servem de pontos de apoio para você entender as situações da vida.
Mas para isso é preciso ter muitas imagens. Por isso o Borges disse que para entender um único
livro é preciso ter lido muitos livros. Para entender uma única situação é preciso ter entendido
muitas situações. Quantas mais situações, personagens diversos e problemas humanos você
conhecer, mais cada um deles vai se tornando claro.

Aluno: Há relações entre o termo fundamentalismo, de Voegelin, que você comentou na última
aula, e a paralaxe cognitiva?

Olavo: Sem sombra de dúvida. O Voegelin usa fundamentalismo quando o sujeito acredita em
uma frase que ele não sabe o que quer dizer, ou seja, cujo sentido ele não desmembrou nos seus
elementos constitutivos, para saber quais são os vários níveis de significado que essa frase tem,
e quais correspondem a quais experiências. O sujeito pega uma fórmula, "coisifica" e acredita
na fórmula. Sem dúvida, a paralaxe cognitiva é uma coisa desse tipo. Só que ela não é só um
fundamentalismo, ela é quase um sistema inteiro de fundamentalismos.

A paralaxe cognitiva começa na hora em que os filósofos na entrada da modernidade separam


os dados da realidade em primários e secundários. Primário para eles é só aquilo que pode ser
medido – o peso, a forma, extensão, etc. E secundário é aquilo que depende não de uma medida,
mas da presença de um observador humano – por exemplo, o gosto, a cor, etc.

Ora, isto é uma besteira extraordinária, porque aquilo que é percebido por um observador
humano também pode ser medido, quer dizer, a intensidade de uma sensação ótica, a altura de
um som, etc., isto não está excluído do mundo das medidas. Você não conhece as estruturas
matemáticas dos objetos em si mesmos, você conhece somente as medidas que você fez. Uma
coisa é você considerar a estrutura matemática dos entes no sentido pitagórico, e a estrutura
interna deles – é o que o Mário Ferreira dos Santos chamava de lei de proporcionalidade
intrínseca (isso aí, só Deus conhece), e outra coisa é a medida que você fez. O aspecto
matemático dos seres reais é a lei de proporcionalidade intrínseca, e não a medida feita por um
geógrafo, um físico, etc., porque eles não fazem as medições para construir o objeto, mas
apenas para encará-lo desde o ponto de vista das perguntas que a sua ciência faz. Então não são
medidas intrínsecas, mas extrínsecas. Ora, se são extrínsecas, não
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podem ser características próprias dos objetos, elas também são relativas a um observador
humano, só que um observador científico.

A partir daí, a noção de fato concreto, de objeto concreto, ou seja, o objeto colocado na
realidade, com todo o seu tecido de relações e acidentes é trocado por uma fórmula matemática,
e essa fórmula matemática passa a ser a realidade primária, embora ela tenha sido inventada,
construída por cientistas. A partir desse momento, o mundo inventado está colocado no lugar do
mundo da experiência. Aí começa a paralaxe cognitiva. Esse é um erro que, para o sujeito
chegar a isso, precisa acreditar em tanta besteira, tem uma filosofia inteira, um sistema de
cretinices por trás disso.

Aluno: O senhor falou sobre a autenticidade como, por exemplo, a expressão autêntica de um
autor nas obras de literatura. Mas como reconhecer realmente a experiência autêntica? Quais os
critérios de autenticidade?

Olavo: Não existem critérios, existe percepção. Um critério de autenticidade que sirva para
todos não serve. Se uma menina chega para você e fala: “eu te amo”, você sabe se ela está
sendo sincera ou não – às vezes você sabe e às vezes você não sabe – mas, quando sabe, você
sabe porque sabe, e quando não sabe, você sabe porquê não sabe. Você sabe porquê não sabe
porque o indício está nublado, ou porque a sua própria posição na situação é ambígua.

Isso é uma coisa que não tem solução teórica, mas tem solução prática, você vai aprender isso aí
[00:40:00] ao longo do tempo, mas fórmula não existe. Quer dizer, pode existir uma fórmula
daqui um tempo, mas eu não apreendi essa fórmula ainda. Um elemento que eu sei dela é que
toda apreensão de sinceridade é mútua. Se você não está sendo sincero consigo mesmo, você
não vai saber se o outro está sendo sincero ou não. Não adianta você tentar captar a sinceridade
da obra literária diretamente, você tem que captar a sua sinceridade primeiro. A sua prática da
sinceridade lhe ensinará a reconhecer as pessoas e as obras sinceras.

Para um escritor tarimbado, não é difícil saber se a coisa soa falsa ou não. O Bruno Tolentino
tinha uma capacidade extraordinária para isso. Muitas vezes, lendo poesias onde o poeta queria
ser comovente, o Bruno dava risada, e onde o cara queria parecer engraçadinho, o Bruno ficava
desesperado, ou seja, o sujeito não estava acertando o tom, ou por uma falta de sinceridade, ou
por uma falta de instrumentos – também acontece isso. Falta de instrumentos é quando você não
sabe dizer aquela experiência específica, real, que você está vivendo, então você diz outra
parecida que você leu na literatura. Aí falha tudo.

Aluno: Professor, em relação aos livros de ficção indicados para a aquisição da experiência,
indago se basta para nós aquela lista que consta de um artigo seu, creio que cem livros, e
também um texto complementar que foi exibido e disponibilizado no site do Seminário para
download em agosto do ano passado?

Olavo: Não.
Aluno: Caso contrário, quais seriam suas sugestões para os alunos desse curso?

Olavo: Eu vou dar sugestões uma a uma, em cada aula e para os fins daquela aula. Hoje eu
sugeri duas. Você vai ler os livros até a próxima aula? Leia esses dois [Recordações do
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Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto e O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa]. Leia com
atenção para estes detalhes que eu falei: ali a profissão, a carreira literária, a arte da literatura,
surge como símbolo da realização sincera de um homem, – mas ela pode não ser isso – e as
limitações externas surgem como símbolos dos obstáculos que se opõem, que tentam destruir a
autenticidade do ser humano, –mas elas podem não ser isso também – elas podem ser
justamente o canal pelo qual você se realiza, transcendendo-os e absorvendo-os, como diria
Ortega y Gasset.

Essas obras que eu citei não são muito complexas nem muito profundas, elas são apenas um
primeiro esboço do assunto, então elas podem servir como exemplo do que estamos falando.
Você não vai perder nada as lendo. Nenhuma delas é uma obra-prima e nenhuma delas é uma
obra ruim.

Aluno: Degas (1834-1917) reclamava com Mallarmé (1842-1898) sobre a abundância de idéias
que tinha para escrever, mas que apesar disso tinha muita dificuldade na composição poética.
Mallarmé teria respondido com doce profundidade: “Mas, Degas, não é com idéias que se
fazem versos, é com palavras”.

Olavo: Isso é perfeito. Primeiro você tem que ter um monte de superfícies de comparação no
seu imaginário – personagens, situações, etc. – ao mesmo tempo em que você vai adquirindo
isso, você vai adquirindo vocabulário, e você vai ter as palavras. Porém, mais importante do que
ter as palavras é ter a superfície de comparação na experiência e na ficção ao mesmo tempo.

Você pode fazer um experimento – esse é um experimento maravilhoso que eu já fiz milhares
de vezes: você pega a vida das pessoas que você conhece, e trata como se elas fossem
personagens de ficção, como se a vida delas fosse um romance que você está escrevendo.
Muitos escritores usam personagens que eles conhecem. Por exemplo, estou lembrando do
Thomas Wolfe (1900-1938), que escreveu a vida de parentes dele, mais ou menos copiado da
realidade, mais ou menos inventado. Mas para fazer isso ele teve que captar uma coerência,
uma unidade da vida desses caras. Unidade que às vezes os próprios personagens perdem de
vista no seu dia-a-dia, quer dizer, eles não sabem qual é o fio de causa e efeito que está
decidindo a sua vida, mas um romancista pode pegar esse fio. Quando você faz isso, você acaba
às vezes entendendo o esquema de vida daquelas pessoas. Se você não fez isto, na verdade você
nada sabe sobre elas. Para você conhecer uma pessoa – acho que era o Honório Delgado,
psiquiatra e filósofo peruano, que dizia isso – você precisa conhecê-la, no mínimo, em três
níveis: primeiro a experiência imediata, ou seja, você tem que ter o conhecimento intuitivo da
presença dessa pessoa, o que você nota nela, o que você percebe; segundo, você precisa
considerar a pessoa no seu meio, no seu ambiente, na sua situação, quer dizer, nos problemas
reais que estão ali, nas tensões que efetivamente pesam sobre ela; e terceiro, você precisa
conhecer na sua biografia, no fio de desenvolvimento da sua vida. Aí que entra a arte do
romancista: você não sabe da maior parte dos episódios, mas você pode inventar episódios que
complementem e que sejam parecidos com aqueles que formaram aquela pessoa. Se você lê
muitos romances esse exercício é quase natural em você.

Outro exercício: quando você ler um livro, faça um roteiro de filme na sua cabeça. E quando
você assistir a um filme, faça uma narrativa verbal.

Essas conversões são muito importantes, porque mais tarde você começa a fazer isso com a
própria experiência. É maravilhoso quando você vê que já consegue verbalizar a sua
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experiência, de uma maneira pessoal, única, verdadeira. Mas é evidente que você não vai fazer
isso com recursos que você inventou, mas com recursos que você captou da tradição literária.

Eu acho que por hoje acabou, estou quase que respondendo todas. Tem muitas perguntas que
ficarão para a próxima aula, mas por hoje chega, foram três horas de aula.

Até a próxima vez. Muito obrigado!

[fim da aula]

Transcrição: Milton Nogueira


Brando Neto, José Correa de Melo, Ronald Pinheiro, Luíza
Monteiro de Castro, Ronaldo Lucas, Rodrigo Fernandez Peret Diniz.

Revisão: Marcelo Hamnickel


Revisão final: Eduardo Dipp e Mauro Ventura Alves

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