Você está na página 1de 230

EA

OUESTAO REUGIOSA
>

Ui.KUHzS PORTELLI nasceu em 1947. Ê Doutor


■/" ( ii’<ni:i.ia Políticas e professor adjunto na Univorsi
>/. /( ■(h Paris-Nanterre. Já publicou um estudo sobro
KÍtarnsci e o bloco histórico” , traduzido para o italia
n o . castelhano e português, como também numero
;u >s artigos sobre o marxismo italiano.
A reflexão sobre o fenômeno religioso e principal
mente sobre o catolicismo é uma preocupação cons
tante do homem poUtico e do teórico marxista Antô
nio Gramsci. Imposto pelo pape! primordial da Igreja
na Itália, sobretudo entre as massas camponesas, o es
tudo marxista da religião como tipo de ideologia e da
Igreja como aparelho ideológico, leva Gramsci, nos Ca
demos da prisão, a lançar as bases de uma sociologia
religiosa marxista. Mas esta análise das funções da Igre
ja é também a oportunidade de estudar as condições
de uma superação da religião, pela concepção do mar­
xismo como Reforma moderna, e de denunciar a per­
manência do fenômeno religioso np seio das ideolo­
gias modernas e principalmente do marxismo. Socio­
logia marxista da religião, a contribuição gramsciana
pode, pois, ser também considerada como uma abor­
dagem sociológica dos aspectos religiosos que subsis­
tem nos Partidos políticos que recorrem ao marxismo.
CIP-Brasil. Catalogaçãc-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP

Portelli, Hugues, 1947-


P877g Gramsci e a questão religiosa / Hugues Portelli; [tra­
dução Luiz João G aio; revisão Luís Roberto Benedetti],
— São Paulo; Ed. Paulinas, 1984.
(Coleção sociologia e religião)
Bibliografia.
ISBN 85-05-00190-7
1. Gramsci, A ntonio, 1891-1937 2. Religião e socio­
logia 1. Título.
84-1175 CDD-301.58

índices para catálogo sistemático:


1. Marxismo e religião: Sociologia 301.58
2. Religião e sociedade: Sociologia 301.58
3. Sociologia religiosa 301.58

Coleção S O C IO L O G IA E R EL IG IÃ O

1. Gramsci e a questão religiosa, Hugues Portelli


2. O dossel sagrado — Elem entos para uma teoria sociológica da religião.
Peter L. Berger* '
* Em preparação
H ugues P ortelli

GRAMSCI
E A QUESTÃO
RELIGIOSA

Edições P au lin as
Título original
Gramsci et Ia question religieuse
© Editions Anthropos, Paris, 1974

Organização
Luiz Roberto Benedetti

Tradução
Luiz João Gaio

Revisão
Luiz Roberto Benedetti

ep EDIÇÕES PAULINAS
Rua Dr. Pinto Ferraz, 183
04117 — São Paulo — SP (Brasil)
End. telegr.: PAULINOS

© EDIÇÕES PAULINAS SÃO PAULO - 1984


ISBN 85-05'00190'7
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

“Este desconcerto, este pânico social, característico


do atual período, empurra até mesmo os indivíduos
mais atrasados historicamente a sair de seu isola­
mento, a buscar consolo, esperança, confiança na
comunidade, a sentir-se próximos, a apegar-se física
e espiritualmente a outros corpos e almas aterrori­
zados. Como poderia, por que caminhos poderia a
concepção socialista do mundo dar uma forma a este
tumulto, a este formigueiro de forças elementares?
O catolicismo democrático faz o que o socialismo não
poderia: une, ordena, vivifica e se suicida” (Gramsci).

Pode causar espanto, ou no mínimo estranheza, a publicação deste


livro de Portelli, analisando a visão gramsciana da religião, por uma
editora católica. Evidentemente, não vamos aqui justificar esta publi­
cação, inserida na nova coleção Sociologia e Religião. Trata-se, sim,
de insistir sobre a oportunidade, ou melhor, necessidade de uma leitura
atenta de Gramsci para compreender a religião, sobretudo a católica,
no interior da sociedade. A incorporação das ciências humanas pela
reflexão teológica enfatiza a necessidade de se pensar o aspecto polí­
tico da atuação religiosa; e neste campo Gramsci é mestre. Além da
grande vantagem de conhecer “por dentro” a Igreja Católica, uma vez
que a literatura católica sobretudo a revista jesuíta Civiltà Cattolica —
era das poucas que o regime de Mussolini fazia chegar às suas mãos
quando prisioneiro.
Nesta incorporação da ciência social à prática eclesial, há sempre
subjacentes à reflexão teológica pelo menos duas atitudes frente ao
papel da religião enquanto força social. Mais especificamente, discute-
se o papel político da chamada religião popular. Muitos a glorificam
como força revolucionária, preservadora de identidade cultural; outros

5
a reduzem a simples expressão do fatalismo e alienação das massas
oprimidas. Alguns poucos, em menor ou maior grau, perceberam o
seu caráter politicamente contraditório, ambíguo, na medida em que
viram nela a expressão ideológica contraditória, de interesses em
conflito, portadora das contradições que perpassam a sociedade de
classes. Ou seja, conseguiram captar inclusive que a questão não é
apenas a oposição religião clerical versus religião do povo, mas que
tanto uma quanto outra carregam em si ambigüidades e contradições.
E se a libertação deve ser feita num continente “crente e opri­
mido”, bastaria para uns eliminar a crença (e possivelmente substituí-la
por outra, a dos ortodoxos, cuja gama vai desde os clericais até os
das tendências mais variadas dos “marxismos” científicos!) e teria sido
dado o passo decisivo para a revolução. Para outros, o povo e sua
expressão são a voz e a verdade definitivas: ouvi-lo é a única alternati­
va política válida e qualquer intromissão do intelectual compromete um
processo político, liberador por si mesmo. Entre o dirigismo anti-reli­
gioso de caráter “científico” (ortodoxo) e o basismo espontaneísta de
muitos crentes, oscilam várias posições.
Para todos, a leitura de Gramsci é indispensável. Sua crítica da
religião é penetrante. É sobretudo perspicaz na análise da transfor­
mação do marxismo numa religião, numa ortodoxia; os malefícios
políticos deste fato estão à vista de todos: substitui-se a análise da
situação concreta por teorias e fórmulas revolucionárias já feitas. Este
tema, aliás, ocupa as páginas de uma publicação especializada, o n.° 9
da revista Religião e Sociedade — “Deuses, rituais e instituições do
marxismo”.
Acredito mesmo que Gramsci permite entender, no fundo, o
empobrecimento que representa a redução do cristianismo a uma
religião (ou pior ainda, a uma ortodoxia, que salvaguarda e ao mesmo
tempo é salvaguardada por uma monarquia absoluta de direito divino,
que preserva o “depósito da fé”). Tema que subjaz às infindáveis
discussões sobre a distinção entre fé e religião.
Nestas primeiras notas já se delineia uma perspectiva do que seja
a religião para Gramsci. Perspectiva, que, fiéis a ela, só podemos captar
no interior do processo histórico. Gramsci chega a afirmar o valor da
religião em momentos históricos determinados (a epígrafe acima sobre
o Partido Popular (católico) ilustra o fato): ela pode se apresentar
como força aglutinadora das massas oprimidas, como força criadora
de uma “vontade coletiva”, como uma concepção ativa do mundo.
Mas nem por isso Gramsci deixa de preconizar a necessidade de sua
superação (historicamente necessária) pela filosofia da práxis.

6
Há outro dado: muitos viram, de forma quase messiânica, ingê­
nua, a grande força política da Igreja na transformação da sociedade
brasileira, ou pelo menos na construção de uma sociedade democrática.
Outros, ao contrário, concluíram que para sua sobrevivência institu­
cional a Igreja tinha apenas mudado de tática e que contar com sua
“opção pelos pobres” na tarefa política era, no mínimo, um equívoco.
A leitura de Gramsci corrige conclusões apressadas e solicita uma
reflexão mais aprofundada.
Mas há um ponto que me interessa de forma particular e que
constitui uma grande interrogação. Sem cair na xenofobia, pode-se
perguntar: é possível uma revitalização do cristianismo a partir do
“Centro” (entenda-se Europa capitalista)? Penso que o que faz a
história é a irrupção do novo. Ora, a história do capitalismo é a
repetição do mesmo, do idêntico com nomes diferentes — progresso,
civilização, desenvolvimento. O novo só pode irromper a partir da
vítima, do espoliado (do elo fraco da corrente, como fala Marcuse),
daquele que “estruturalmente” não tem interesse na reprodução do
mesmo.
Como dizia, tenho interesse especial no problema. A leitura deste
livro me abriu perspectivas novas. Comentando uma possível leitura
da “evolução” da Igreja a partir de Gramsci, Portelli cita Lélio
Basso: para ele, o capitalismo combina paradoxalmente duas atitudes:
um aspecto social beneficente e uma racionalização disciplinadora
capaz de atingir o mais íntimo das consciências. E nisso ele encontra
pontos significativos de contato com a “forma de ser” da Igreja Cató­
lica. Isso é discutível, mas exige que se coloque uma questão: este
capitalismo “caritativo”, beneficente, “servidor”, “provedor de confor­
to e benefício para toda a sociedade”, sem nada de espoliador, vigente
na Europa tem seus custos sociais deslocados, com uma violência
incomum, para os países do terceiro mundo. Só há um capitalismo
não selvagem na Europa e América civilizadas (e pregadoras dos
“Direitos Humanos” para as ditaduras que eles mesmos instalam)
porque alguém paga o preço. E um capitalismo civilizado e um cris­
tianismo burguês andam de bem e se reproduzem pacificamente, nos
mostra Metz.* Dentro deste quadro, que esperar do “Centro” em
termos de “revitalização” da Igreja?
Não sei se alguns ainda pensam que é possível “renovar” (con­
fesso que não gosto desta palavra cujo tom ideológico-moralista é

* cf. J. B. Metz, Fé em História e Sociedade, Edições Paulinas, São Paulo, 1982


ou ainda, mesmo autor: Para além de uma religião burguesa, Edições Paulinas, São
Paulo, 1984.

7
(Mivio c faz logo pensar nas renovações interiores tão a gosto dos
movimentos carismáticos e dos manipuladores comerciais dos “exotis-
mos" religiosos orientais) — digamos logo revolucionar a Igreja sem
revolucionar a sociedade; e inversamente, pensam que qualquer mu-
ilimça na Igreja não tem significação política (é sempre (parece me-
liifisicn) uma forma de assegurar sua sobrevivência institucional asso­
ciada à reprodução da classe dominante). Nos dois casos, os que assim
agem, de antemão se proibem de pensar dialeticamente. Para estes, e
para aqueles que não pensam assim, Gramsci abre os olhos em
pontos fundamentais (cuidando de não nos tornarmos “gramscianos”
desmerecendo assim o grande contributo que a vida e a obra dele
reprc.scntam):
— Sua análise atenta da capacidade de sobrevivência da Igreja
instituição centralizadora, vertical, autoritária — mesmo enfren-
limdo todo tipo de contradições internas;
— Sua visão da importância do elemento ideológico-motivacional
mi atuação política revolucionária;
— O papel do “intelectual” na reforma intelectual e moral, com­
ponente central da “nova” sociedade;
— A atenção às contradições (crises “orgânicas” e “conjuntu­
rais”) na avaliação da atuação política.
Gramsci possibilita captar as possibilidades e limites da atuação
dos cristãos ligados às lutas sociais em favor dos oprimidos, luta que
boje parece arrefecer, pelo menos por parte do organismo central da
Igreja Católica. Entretanto, lendo Gramsci, percebe-se que nem mes­
mo o Vaticano é um bloco, mas que lá também há “jogo de forças”,
nidiora no fim acabe sempre prevalecendo, segundo ele, o espírito
corporativo.
Por fim duas observações práticas:
— Traduzimos ralliement por aliança. Os tradutores brasileiros
iiptaram por conservar a grafia original. Tomando aliança em sentido
o mais abrangente possível e situando historicamente o termo, achamos
ipic o termo cabia neste livro.
— Os termos “integrais” e “integristas” são utilizados indistinta-
mente para nomear a corrente do catolicismo francês analisada por
(iramsci (via Portelli). Mais uma vez somos devedores às traduções
hrii.silciras dos Quaderni, que utilizam ora um termo, ora outro. Em-
lM)ra, u nosso ver, a tradução mais correta fosse “integristas”.

Luiz Roberto Benedetti

K
Lista das abreviações

1) Edições Einaudi — Turim


S.G. Scritti giovanili: 1914-1918
S.M. Sotto la mole: 1916-1920
0 . N. L’Ordine nuovo: 1919-1920
S.F. Socialismo e fascismo: TOrdine nuovo: 1921-1922
C.P.C. A construção do Partido comunista: 1923-1924
C.C. Cartas do Cárcere
C.D.H. Concepção Dialética da História
Maq. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno
1. Os Intelectuais e a Organização da Cultura
R. II Risorgimento
L.V.N. Literatura e Vida Nacional
P. Passato e presente

2) Editions Sociales
S.L.R. Écrits de Marx et Engels sur la religion
Advertência ao leitor

As obras de Gramsci, traduzidas em português, são poucas e, no


Brasil, foram editadas pela Ed. Civilização Brasileira. A relação se
encontra no final do volume. Quando Portelli cita Gramsci, estas ci­
tações, no presente volume, são feitas a partir da edição brasileira.
Neste caso, a abreviação da obra já é feita acima de acordo com o
título que a obra recebeu na edição brasileira.
PREFÁCIO

Existem modas felizes. Assim, aquela que por fim faz justiça a
Gramsci. De alguns anos a esta parte, cada estação vê surgir um novo
estudo consagrado ao seu pensamento. E quantas homenagens indire­
tas, são pilhagens que, com frequência, empobrecem o contributo de
Gramsci e raramente se referem a ele.
A publicação das obras completas, depois de vinte anos de ostra­
cismo, permite finalmente julgar com dados nas mãos e abrir os Cader­
nos ao leitor francês. Todos estão de acordo em reconhecer nestes
cadernos uma contribuição fundamental ao pensamento marxista con­
temporâneo.
Depois de termos sido os últimos a conhecer Max Weber, somos
também os últimos a conhecer Gramsci.
O infortúnio editorial não é o único ponto de encontro entre
Gramsci e Weber. O interesse pela sociologia da religião une os dois
autores. Gramsci como Weber perceberam a importância do conheci­
mento dos fenômenos religiosos para a compreensão da sociedade
política. A existência de um corpo de profissionais encarregados da
produção ideológica autoriza analogias teóricas frutuosas com a condi­
ção de ultrapassar as comparações apressadas, fáceis e falsas que o
bom senso sussurra. Mais ainda, o fato religioso é um problema
político de primeira plana que não se pode reduzir em nome de um
economismo sumário.
Frente ao desafio religioso, a tradição marxista curiosamente
permanece incompleta. Hesitando entre a especulação filosófica —
onde ela não faz mais do que retomar a corrente tradicional do livre
pensamento — e o combate político — ele mesmo oscilando entre o
anticlericalismo e o compromisso —, o marxismo não se dotou de
uma sociologia da religião. Os autores marxistas raramente se interro­
garam sobre as condições de formação e de distribuição das opiniões
religiosas. Na falta desta reflexão, sua análise das funções da religião e

11
de suas relações com a estrutura econômica só podia levar a conclusões
simplistas.
Gramsci é uma exceção. As circunstâncias da época levam-no a
estudar a questão religiosa. No curso de alguns anos durante os quais
Gramsci tem responsabilidades no seio do partido comunista italiano,
a Igreja começa a tentar a aproximação do mundo operário. E o par­
tido popular de Don Sturzo. Depois, num segundo tempo, ela se une
ao fascismo com a conclusão dos acordos de Latrão de 1929. Durante
este período, Gramsci tem a oportunidade de medir o papel conside­
rável da Igreja na sociedade civil e particularmente entre o homem do
campo.
O militante Gramsci, depois secretário geral do PCI, jamais
subestima a importância do problema. Recusando o anticlericalismo
sumário, Gramsci trava um combate ideológico contra a Igreja, ao
mesmo tempo que estende as mãos às classes sociais sujeitas a seu
império. Preconiza a aproximação com a ala esquerda do partido po­
pular cuja evolução segue atentamente. A marcha sobre Roma não
interrompe a tentativa.
A prisão de Gramsci e depois os dez anos passados nos cárceres
de Mussolini, levaram-no a retomar o problema da religião numa
perspectiva mais ampla.
Interrogando-se sobre o papel dos clérigos na sociedade, esclarece
a noção de intelectual, isto é, o produtor de ideologia. O estatuto do
intelectual, sua relação com a sociedade num dado momento, seu
papel no quadro da hegemonia exercida pela classe dirigente, esclare­
cem a situação concreta da Igreja e de seus clérigos. Gramsci, expli­
citando a natureza dialética da relação entre o intelectual e a formação
econômica e social num dado momento, desenvolve uma idéia que a
partir daí faz fortuna a de autonomia relativa. Neste ponto ele se
encontra com Weber, que, num quadro teórico muito diferente, pro­
curou captar esta relação ambígua e fundamental.
Hugues Portelli apossou-se desse belo tema. Tentou reencontrar
nos Cadernos de prisão, através dos desenvolvimentos esparsos, o
esboço de conjunto. Assim é que ele nos descreve sucessivamente a
Igreja como intelectual orgânica da sociedade feudal e moderna, exer­
cendo a hegemonia necessária para manter a influência da classe do­
minante, depois como intelectual tradicional, superada pela modifica­
ção das relações de produção. No último capítulo, Portelli nos relata
este ato de violência teórico que nos deixa espantados, a reforma inte-

12
lectual e moral que deve firmar o partido comunista italiano em
lugar de uma Igreja enfraquecida.
Não há dúvida que existe certo artifício ao resumir numa cons­
trução rigorosa textos dispersos e frequentemente obscuros. A riqueza
das análises de Gramsci não se presta bem ao resumo. Mas, visto que
Portelli superou o resumo para explicitar as constantes, as linhas de
força da obra, seu estudo esclarece o pensamento de Gramsci com
nova luz.
Trata-se de um estudo de envergadura que, vindo depois do
opúsculo sobre "Gramsci e o bloco histórico”, situa Portelli entre os
maiores especialistas do pensamento marxista contemporâneo.

Jean-Pierre Cot

13
I
à.

JÍu
INTRODUÇÃO

O fenômeno religioso aparece como um dos temas essenciais da


reflexão gramsciana, principalmente nos Cadernos de prisão. Este
interesse constante explica-se por duas razões determinantes que apa­
receram sucessivamente.
Ao longo de toda a sua vida política, Gramsci interrogou-se sobre
o conteúdo político da aliança entre a classe operária e a classe cam­
ponesa. Bem antes que o “bloco operário e camponês” se torne a
palavra de ordem da III Internacional, Gramsci compreende que esta
aliança é uma necessidade evidente se considerado o peso conside­
rável das massas rurais italianas, principalmente no Mezzogiorno. Ora,
a classe camponesa permanece sob a influência da Igreja. Por isso, a
solução do problema camponês deve levar em conta o problema
religioso.
De 1919 a 1926, Gramsci vai defender uma política com relação
à religião cujo fracasso ele constatará, na medida em que todas as suas
tentativas de abertura em direção ao mundo católico serão sem efeito
duradouro.
Este fracasso pode ser explicado por razões políticas: Gramsci
não desempenha papel nacional e só consegue impor suas concepções
em 1925, uma vez caido o veredicto. Mas de maneira especial o pro­
blema religioso, durante todo este período, é abordado de um ponto
de vista exclusivamente político.
Sem dúvida, a abertura em direção aos católicos, que Gramsci
propõe em 1919 e que rompe com o velho anticlericalismo do partido
socialista, mostra-se uma orientação perfeitamente justa — Gramsci
não voltará a ela nos seus Quaderni. Mas ela fracassa na medida em
que não se baseia numa reflexão teórica aprofundada.
Os elementos de uma análise marxista do fenômeno religioso
aparecem nos escritos anteriores a 1925, mas permanecem ligados a
estratégia política. Ê sintomático, por exemplo, que as análises do
partido católico entre as duas guerras, o Partido Popular Italiano,

15
sejam bastante contraditórias de um ano para outro na medida em
que seguem a evolução política de Gramsci.
Logo depois da instauração definitiva do fascismo, a política
religiosa do PCI irá basear-se mais na análise do mundo católico real;
com efeito, Gramsci se dá conta de que o catolicismo, uma vez desapa­
recido o partido popular, não se limita à sua expressão política conjun­
tural: o Vaticano, o aparato eclesiástico, a Ação católica formam sem­
pre a verdadeira estrutura da Igreja.
Nas teses de Lion — do III Congresso do PCI em 1926 — e
sobretudo nos Quaderni, o estudo do fenômeno religioso se torna,
pois, aquele do mundo católico italiano, do “bloco ideológico” que une
clero e fiéis. A análise política é acompanhada de uma análise socio­
lógica, a da integração religiosa das massas camponesas.
É ali que aparece o segundo aspecto da reflexão gramsciana
sobre o fenômeno religioso.
A partir de 1925, mas sobretudo nos Quaderni, a Igreja — como
organização intelectual — e a religião — como ideologia são anali­
sadas como modelos negativos: a Igreja, casta intelectual que enquadra
ideológica e politicamente o mundo rural torna-se a antítese do partido
revolucionário. Frente ao partido comunista, “intelectual coletivo”
da classe operária, que exprime as necessidades e aspirações das classes
subalternas, a Igreja aparece como uma estrutura hierarquizada, exte­
rior às massas.
O mesmo acontece com a religião: enquanto o marxismo é a
expressão ideológica das massas, que as eleva progressivamente supe­
rando suas crenças tradicionais, a religião aparece como uma utopia
que mantém as classes populares na ignorância e lhes retira toda
possibilidade de adquirir consciência política e ideológica.
O exemplo da Igreja e da religião apresenta-se assim como o
contraponto de todas as análises consagradas às relações intelectuais-
massa e à ideologia.
Dessa forma, devemos rejeitar as interpretações de certos comen­
tadores de Gramsci que vêem nos Quaderni uma espécie de “Anti-
Croce”. Uma leitura aprofundada dos Cadernos da prisão mostra,
efetivamente, que a Igreja aparece ali, com o mesmo papel que o
grande filósofo liberal, isto é, como a antagonista principal do partido
revolucionário.
Numa passagem significativa dos Quaderni, Gramsci, interrogan­
do-se sobre a importância respectiva de Croce e do Papa na Itália,
conclui que tanto um como o outro participam da liderança ideológica.

16
Se Croce é o grande intelectual do mundo leigo, o Papa é o chefe e o
guia inconteste do campesinato.
Croce é o adversário que Gramsci combate na medida em que
representa o nível mais elaborado da ideologia burguesa: sendo o
marxismo uma superação e uma crítica desta filosofia, convém estudar
e combater o mestre do pensamento dos intelectuais burgueses.
Mas a religião, a Igreja são os principais adversários em nível
inferior da ideologia. Dado que na Itália a ideologia das massas não
é o liberalismo leigo mas a religião católica, é a religião e a Igreja
que devem ser combatidas.
Quando Gramsci afirma que a classe operária deve aliar-se à
classe camponesa, conclui que é preciso estudar e combater a Igreja
e a religião. Quando afirma que a classe operária deverá desligar os
intelectuais subalternos da classe dirigente, conclui que é preciso estu­
dar e destruir a influência de seu mestre de pensamento, Benedetto
Croce.
Portanto, a luta contra Croce, a nível dos intelectuais, e contra
a Igreja, a nível da classe camponesa, não são mais do que dois aspec­
tos da estratégia própria à edificação do sistema hegemônico da classe
operária.
Todavia, parece que a análise da Igreja e da religião é mais
freqüente no pensamento gramsciano na medida em que a revolução
deve antes de tudo elevar o nível político e ideológico das massas: a
luta contra o senso comum e a religião, luta para a construção de uma
organização intelectual das classes subalternas, é mais importante —
a longo prazo — do que a luta contra os grandes filósofos da classe
dirigente.
Por isso, a pesquisa teórica deve centralizar-se no estudo da reli­
gião e das crenças populares.
Q método utilizado por Gramsci para este estudo é essencialmen­
te histórico: os Quaderni tentam estudar como a religião cristã e a
Igreja evoluíram, como, de ideologia e organização intelectual, saídas
diretamente das classes subalternas, tornaram-se progressivamente exte­
riores a elas, acabando por se impor a estas classes.
A história do cristianismo torna-se assim a história do apareci­
mento, da ascensão e do declínio de uma ideologia e de seus intelec­
tuais, através da análise das funções históricas que ela desempenha
em cada período.
Mas o estudo do cristianismo também permite a Gramsci elaborar
certo número de conceitos que aprofundam sua análise das superes-

17
truturas políticas e ideológicas: a definição da Igreja como casta de
intelectuais tradicionais, do mundo católico medieval como exemplo
perfeito de hegemonia, das reformas protestantes como tipo de “refor­
ma intelectual e moral” constitui um contributo notável à teoria mar­
xista das superestruturas.
O presente estudo tenta, pois, reconstituir a investigação de
Gramsci.
Uma primeira parte será consagrada ao estudo dos conceitos de
religião e de aparelho religioso tais como são utilizados nos Quaderni,
situando-os com relação às análises gramscianas sobre a ideologia e
o Estado.
Na segunda parte, estudaremos os desenvolvimentos dos Quaderni
consagrados às origens do cristianismo, às suas relações com o Estado
do Baixo-Império (I) e depois o feudalismo (II). A Igreja será vista
assim em suas relações com a classe dirigente enquanto intelectual
orgânico desta. O terceiro capítulo analisará a crise de hegemonia da
Igreja — das Reformas à Revolução francesa.
Uma terceira parte considerará a situação da Igreja depois da
derrocada do feudalismo: uma casta de intelectuais tradicionais. Um
primeiro capítulo será assim consagrado ao fracasso das tentativas de
Restauração e um segundo à adaptação à sociedade moderna — da
aliança às concordatas —. Num terceiro capítulo, estudaremos a
organização do catolicismo neste novo período. Um quarto capítulo
comentará a análise gramsciana dos conflitos de tendências no seio
da Igreja à luz da crise modernista.
Finalmente, uma quarta e última parte explicará os desenvolvi­
mentos dos Quaderni consagrados ao futuro do catolicismo frente
às ideologias leigas e principalmente à Reforma moderna, o marxismo.

18
PRIMEIRA PARTE

ESPECIFICIDADE DO FENÔMENO RELIGIOSO


J

1
-1 t • t
C A PÍTU L O I

RELIGIÃO E IDEOLOGIA

Nos Quaderni, a análise da religião apresenta dois aspectos essen­


ciais: de um lado, um ensaio de definição da religião como ideologia
específica, o que levanta o problema das relações entre a religião e os
diversos tipos de ideologias; de outro, a crítica filosófica da concepção
religiosa do mundo — sob sua forma mais elaborada, o catolicismo
—. De fato, para além da crítica filosófica da religião — que não
nos interessa diretamente — o verdadeiro problema levantado por
Gramsci é o de pesquisar por que a Weltanschauung religiosa não
conseguiu forjar uma norma de vida religiosa, e não se prolongou
por uma práxis.

1. Definição de religião nos Quaderni

Os Quaderni analisam três definições da religião, a “confessional”,


a “leiga” e por fim uma definição que podemos qualificar de grams-
ciana, que é a síntese das duas primeiras.

— concepção "confessional” da religião:

A definição clássica da religião não é analisada nos Quaderni:


Gramsci se limita a uma apresentação esquemática. A religião se carac­
teriza por três elementos constitutivos:
“ 1) a crença de que existem uma ou mais divindades pessoais que
transcendem as condições terrestres temporais; 2) o sentimento
dos homens de que dependem destes seres superiores que gover­
nam totalmente a vida do cosmo; 3) a existência de um sistema
de relações (culto) entre os homens e os deuses”.’
1 Maq. p. 350.

21
Estes três elementos são necessários para definir a religião:
Gramsci rejeita as concepções extensivas que consideram como religião
toda ideologia constrangedora, todo conjunto de tabus sociais; tal
definição
“é bastante ampla e pode compreender não só as religiões, mas
também qualquer ideologia social que tende a tornar possível a
coiiviyência e por isso obstaculiza (com escrúpulos) o livre (ou
arbitrário) exercício de nossas faculdades”.^
Gramsci rejeita igualmente toda definição que não contenha a
relação cultuai entre o indivíduo e a divindade:
“Também deveriamos examinar se se pode chamar de “religião”
uma fé que não tenha por objeto um deus pessoal, mas só forças
impessoais e indeterminadas. No mundo moderno abusa-se das
palavras “religião” e “religioso”, atribuindo-lhes sentimentos que
nada têm que ver com as religiões positivas. Não se pode também
considerar o “teísmo” uma religião, pois falta a ele o culto, uma
relação determinada entre o homem e a divindade”.^
A definição que Gramsci propõe é, pois, muito restritiva; mas
isso se explica perfeitamente: o exemplo perfeito da religião, seu
resultado mais positivo, é o cristianismo. Ora, o estudo da religião nos
Quaderni apresenta-se sobretudo sob a forma da análise crítica da
função prática da ideologia religiosa e dos meios de combatê-la —
ou de neutralizá-la. Também esta primeira definição da religião tem
dois prolongamentos precisos nos Quaderni:
— a crítica da religião como crença numa divindade transcen­
dente e como alienação do homem.
— o estudo da relação cultuai e por isso das práticas religiosas,
principalmente na Igreja católica.

— concepção “leiga" da religião

À definição confessional da religião, Gramsci opõe a “leiga” de


Benedetto Croce. Aliás, esta concepção é a que Gramsci defendia em
seus escritos da juventude. Nos Quaderni, ele a rejeita parcialmente,
contestando-lhe não tanto a justeza teórica quanto suas conseqüências
práticas. Esta definição é muito ampla porque

2 Ibid.
3 Ibid.

22
“para Croce, a religião é uma concepção da realidade, com uma
moral adequada a esta concepção, apresentada em forma mitoló­
gica. Portanto, é religião toda filosofia — ou seja, toda concepção
do mundo — enquanto se tornou “fé”, isto é, enquanto é consi­
derada não como atividade teórica (de criação de um novo
pensamento), mas sim como estímulo à ação (atividade ético-
política concreta, de criação de nova história)”.''
Por isso, Croce qualifica como religião toda “jilosofia” que se
traduz em norma de conduta prática. Ora, toda ideologia, toda concep­
ção do mundo corresponde a esta definição. Por isso Croce deve
distinguir entre as diversas religiões “uma categoria inferior, a das
religiões confessionais” :
“As religiões em sentido confessional também são “religiões”,
mas “mitológicas”, por isso em certo sentido “inferiores”, primi­
tivas, correspondendo quase a uma infância histórica do gênero
humano”.®
Gramsci censura esta definição porque confunde duas noções
diferentes: a de ideologia — que corresponde à concepção croceana
da religião — e a de religião — isto é, de religião confessional”.
A crítica gramsciana é, pois, puramente formal,® pois Gramsci
recupera o essencial da análise de Croce.

— concepção gramsciana da religião

Se a antiga concepção — croceana — da religião se torna nos


Quaderni a da ideologia em geral, ,a noção gramsciana da religião
permanece contudo muito ligada a de ideologia.
A ideologia não é um conjunto cultural coerente: como concepção
do mundo chamada a se difundir no conjunto do corpo social, com­
preende muitos graus culturais de acordo com os grupos sociais onde
ela se expande.

4 CDH p. 212.
5 A tradução brasileira diz: “recorrer à teoria hegeliarta da religião mitológica
como filosofia das sociedades primitivas (da infância da humanidade) para justificar o
ensinamento confessional. . . (CDH p. 213). (Nota do revisor)
6 De fato, Gramsci censura a Croce a utilização política de sua distinção entre
religião leiga e religião mitológica: antes de mais nada, a religião não é unicamente
mitológica; mas, sobretudo, porque a rejeição das religiões mitológicas é acompanhada
de uma atitude aristocrática com relação a grupos sociais influenciados por estas
religiões: da religião como concepção do mundo das sociedades primitivas, Croce passa
à atitude política da religião “boa para o povo”. Sobre a crítica de Croce ver infra,
pp. 23S seg.

23
A verdadeira Weltanschauung de uma classe fundamental é a
“filosofia”, concepção livre de toda influência na medida em que só
toca as camadas superiores desta classe e seus intelectuais: a filosofia
é o fecho de abóbada de todo bloco ideológico, uma verdadeira
“ordem intelectual”^ própria de toda classe fundamental.
Pelo contrário, os outros graus culturais caracterizam-se por sua
falta de unidade: o senso comum, a religião, o folclore:
“A religião e o senso comum não podem constituir uma ordem
intelectual porque não podem reduzir-se à unidade e à coerência
na consciência individual, para não falarmos na consciência
coletiva”.®
Por que esta ausência de homogeneidade? Porque estas con­
cepções do mundo não são as das classes fundamentais, mas as dos
grupos subalternos. O folclore é característico da atomização destes
grupos; sendo o grau mais baixo da ideologia, ele constitui uma con­
cepção do mundo primitiva e totalmente heterogênea,
“não somente não elaborada e assistemática, pois o povo (isto é,
o conjunto das classes subalternas e instrumentais de toda forma
de sociedade até agora existente) não pode — por definição —
ter concepções elaboradas, sistemáticas e politicamente organi­
zadas e centralizadas em seu (ainda que contraditório) desenvol­
vimento, como também múltipla; não apenas no sentido de
diverso, de justaposto, mas no sentido de estratificado, indo do
mais grosseiro ao menos grosseiro, se é que não se deve mesmo
falar de um aglomerado indigesto de fragmentos de todas as
concepções do mundo e da vida que se sucederam na história,
sendo que tão-somente no folclore podem ser encontrados os
documentos que sobreviveram da maior parte destas concepções”.’
O folclore, concepção do mundo das classes subalternas, e a
filosofia, “ordem intelectual” das classes fundamentais, são os dois
extremos da ideologia. As concepções do mundo mais difundidas no
corpo social são, efetivamente, o senso comum e a religião; o senso
comum é definido por Gramsci com um conjunto cultural que haure
ao mesmo tempo do folclore e da filosofia:

7 CDH p. 14.
8 ibid.
9 LVN p. 184.

24
“O “senso comum” é o folclore da filosofia, e ocupa sempre um
lugar intermediário entre o folclore propriamente dito (isto é,
tal como é entendido comumente) e a filosofia”.'®
A filosofia fornece-lhe um núcleo de “bom senso”, mas no con­
junto o senso comum apresenta a mesma incoerência ideológica do
folclore:
“seu traço fundamental e mais característico é o de ser uma
concepção (inclusive nos cérebros individuais) desagregada, incon-
seqüentemente, adequada à posição social e cultural das multidões,
das quais ele é a filosofia”."
Esta incoerência do senso comum, como do folclore, é a conse­
quência ideológica da situação econômica e política dos grupos subal­
ternos cuja característica essencial é a ausência, em todos os níveis,
de hegemonia face ao sistema hegemônico da classe fundamental.
Qual é a situação da religião com relação a estes conjuntos
culturais?
De fato, Gramsci considera que a religião, por sua heterogenei-
dade ideológica e social, se assemelha ao senso comum e ao folclore;
de um lado, a religião não é um conjunto ideológico homogêneo, mas
subdividido concretamente em sub-religiões; de outro lado, a religião
fornece ao senso comum e ao folclore uma grande parte de sua sedi­
mentação ideológica.
No que se refere ao primeiro ponto, Gramsci sublinha que, se
considerarmos uma mesma religião — por exemplo, o catolicismo —
ficará evidente que, sob a aparência de homogeneidade ideológica,
de fato existe uma subdivisão paralela aos grupos sociais mencionados:
“Toda religião, inclusive a católica (ou antes, notadamente a
católica, precisamente pelos seus esforços de permanecer “super­
ficialmente” unitária, a fim de não fragmentar-se em igrejas nacio­
nais e em estratificações sociais), é na realidade uma multidão
de religiões distintas, freqüentemente contraditórias: há um cato­
licismo dos camponeses, um catolicismo dos pequeno-burgueses
e dos operários urbanos, um catolicismo das mulheres e um
catolicismo dos intelectuais, também este variado e desconexo”.

10 I, p. 178.
11 CDH p. 143.
12 CDH p. 144.

25
Esta heterogeneidade social e ideológica explica que no interior
de uma mesma religião se possa distinguir uma “filosofia”, um “folclo­
re” e um “senso comum”. Se considerarmos o catolicismo, a teologia
aparecerá como a filosofia da religião, como a concepção da hierarquia
eclesiástica — dos intelectuais religiosos — . Inversamente, Gramsci
sublinha a existência de uma
“ ‘religião do povo’, particularmente nos países católicos e orto­
doxos, muito diversa da religião dos intelectuais (que são reli­
giosos), e muito diversa, especialmente, daquela organicamente
sistematizada pela hierarquia eclesiástica”.
As religiões — principalmente as religiões universalistas de tipo
cristão, na medida em que visam abraçar todo o corpo social — ,
articulam-se em diferentes sub-conjuntos culturais ligados aos dife­
rentes grupos sociais. Mas, na medida em que permanecem essencial­
mente as concepções do mundo das classes subalternas, as religiões,
e principalmente as religiões populares, formam o essencial dos frag­
mentos que compõem o senso comum e o folclore: o mesmo acontece
com o catolicismo;
“Sobre o senso comum, entretanto, influem não só as formas
mais toscas e menos elaboradas destes vários catolicismos, atual­
mente existentes, como influíram também — sendo componentes
do atual senso comum — as religiões precedentes e as formas
precedentes do atual catolicismo, os movimentos heréticos
populares, as superstições científicas ligadas às religiões pas­
sadas”.'''
Portanto, a religião aparece nos Quaderni como um conjunto
cultural particularmente complexo que levanta três tipos de problemas:
— aquele que toda ideologia levanta, ou seja, sua transformação
de concepção do mundo em norma de conduta prática;
— aquele que a religião levanta como conjunto cultural que
controla muitos grupos sociais: unidade intelectuais-massas, homoge­
neidade ideológica etc. . .
— Enfim aqueles próprios da religião, essencialmente teóricos.
É a este último tipo de problemas que Gramsci se apega em sua
crítica dos fundamentos éticos das religiões.

13 LVN p. 185
14 CDH p. 144.

26
2 . Crítica da religião
A oposição entre o materialismo da religião popular e a especula­
ção idealista dos teólogos é a ilustração concreta da dualidade funda­
mental da ideologia religiosa; a análise crítica da religião avança em
Gramsci numa direção muito coerente: a religião se caracteriza por
sua contradição entre materialismo prático e idealismo teórico, o que
a assemelha às doutrinas utopistas e a transforma, em período de
declínio, em “ópio do povo’’.

— o dualismo religioso

O desenvolvimento teórico de Gramsci, desde os escritos da


juventude até os Quaderni, apoia-se em duas críticas constantes; a do
materialismo positivista e a do idealismo especulativo. Esta dupla
crítica culmina na análise da religião: esta é, efetivamente, a síntese
destes dois erros teóricos.
A posição religiosa é perfeitamente ilustrada por sua concepção
das relações do homem e da natureza: estas relações são puramente
negativas na medida em que tanto uma como outra dependem de dois
mundos diferentes: a natureza, “o mundo exterior”, é apreensível como
uma realidade objetiva, material, enquanto o homem é considerado
como um puro “espírito”, independente do mundo material.
Gramsci vê a origem desta dualidade na concepção, difundida
pelo senso comum, da Criação, tal como a elaborou o cristianismo:
“O público “crê” que o mundo exterior seja objetivamente real,
mas precisamente neste ponto surge o problema: qual é a origem
desta “crença” e que valor crítico ela tem “objetivamente”? De
fato, esta crença é de origem religiosa, mesmo se quem participa
dela é religiosamente indiferente. Dado que todas as religiões
ensinaram e ensinam que o mundo, a natureza, o universo, foi
criado por Deus antes da criação do homem e, portanto, que o
homem já encontrou o mundo pronto, catalogado e definido de
uma vez por todas, esta crença tornou-se um dado férreo do “sen­
so comum”, vivendo com a mesma solidez, ainda quando o
sentimento religioso está apagado e adormecido”.'®
Esta concepção metafísica do mundo real se parece com o mate­
rialismo vulgar tal como ele reaparece nas concepções positivistas;

15 CDH pp. 165-166.

27
aliás, Gramsci sublinha que a Igreja o reconhece implicitamente
na medida em que sua própria crítica do idealismo — principalmente
croceano — se baseia amplamente no positivismo; o materialismo
positivista — e o pragmatismo que é sua tradução prática — encon­
tram-se com a religião em sua apreensão estática do mundo real.
Esta análise metafísica reaparece na concepção religiosa, desta
vez puramente idealista, do homem, entendido como uma unidade
espiritual;
“É possível dizer-se que todas as filosofias que existiram até hoje
reproduziram esta posição do catolicismo, isto é, conceberam o
homem como indivíduo limitado à sua individualidade e o espí­
rito como sendo esta individualidade”.'*^
Tal concepção repete, em nível idealista, o erro metafísico da
apreensão do “mundo exterior”; assim sendo, as relações entre os
indivíduos de um lado, entre indivíduos e natureza de outro, são
consideradas como relações mecânicas e não como relações orgânicas
e dialéticas. Religião, materialismo e idealismo são igualmente metafí­
sicos, rejeitam a dialética e sua expressão concreta, a práxis. Ora, a
história humana é a das relações ativas, orgânicas entre os homens
e entre o homem e a natureza.
Aliás, este erro fundamental é ilustrado pelo fracasso prático da
religião: esta, sob sua forma mais elaborada não conseguiu formar
um tipo de homens autenticamente “católicos”:
“Todos têm a vaga intuição de que fazer do catolicismo uma
norma de vida é um equívoco, tanto assim que ninguém se atém
ao catolicismo como norma de vida, mesmo declarando-se cató­
lico. Um católico integral — isto é, que aplicasse em cada ato de
sua vida as normas católicas — pareceria um monstro, o que é,
indubitavelmente, a crítica mais rigorosa e mais peremptória do
próprio catolicismo.”'^
Gramsci não conclui que o cristianismo não pôde forjar autênticos
cristãos por falta de uma humanidade inteira; mas, com exceção do
Cl

16 CDH p. 39
17 CDH p. 39.
Gramsci continua: "Os católicos dirão que nenhuma outra concepção é seguida
rigorosamente, no que têm razão. Mas isto demonstra apenas que não existe de fato,
historicamente, uma maneira de conceber e de agir igual para todos os homens"
(Ibid.).

28
período heróico do cristianismo primitivo, os indivíduos e as massas
que tentaram conformar sua conduta prática à sua religião foram
condenados e/ou recuperados pela Igreja. Esta não cessou de impedir
a realização de uma verdadeira “práxis” católica. Os cristãos autênticos
não foram mais do que homens autênticos, e portanto “monstros”
com relação à tradição católica.'®
Em nível individual, a práxis cristã foi uma tentativa de realizar
a Weltanschauung religiosa. O problema é levantado diferentemente
em nível das massas: os grandes movimentos religiosos populares
apoiaram-se na afirmação religiosa da unidade da natureza humana,
na igualdade sobrenatural, portanto sobre a conseqüência política do
dualismo religioso, sobre seu caráter de utopia política:
“A religião é a mais gigantesca utopia, isto é, a mais gigantesca
“metafísica” que já apareceu na história, já que ela é a mais
grandiosa tentativa de conciliar, em uma forma mitológica, as
contradições reais da vida histórica: ela afirma, na verdade, que
o homem tem a mesma “natureza”, que existe o homem em
geral, criado por Deus, filho de Deus, sendo por isso
irmão dos outros homens, igual aos outros homens, livre entre os
outros e da mesma maneira que os outros; e ele pode se conceber
desta forma espelhando-se em Deus, “autoconsciência” da huma­
nidade; mas afirma também que nada disto pertence a este mundo
e ocorrerá neste mundo, mas em um outro (— utópico —). Desta
maneira, as idéias de igualdade, liberdade e fraternidade fermen­
tam entre os homens, entre os homens que não se vêem nem
iguais, nem irmãos de outros homens, nem livres em face deles.
Ocorreu assim que, em toda sublevação radical das multidões, de

18 Este tema volta freqüentemente nos escritos da juventude. Por ocasião de


uma polêmica com a imprensa conservadora católica a propósito da beatificação de
J. B. Cottolengo, Gramsci afirmava;
"Cottolengo não foi uma pessoa qualquer, e o que é mais importante é que não foi
um clérigo, e até foi cruelmente combalido por clérigos e padres durante sua vida.
Cottolengo era um homem, simplesmente, com todos os defeitos e todas as virtudes
que caracterizam os homens completos; por acaso era católico, mas mesmo se tivesse
sido budista ou muçulmano sua obra não teria sido diferente daquilo que foi."
(SG p. 108). "Cottolengo não foi uma flor mais bela e mais perfumada num jardim
de tipo católico, mas foi um monstro, um homem que estava fora da tradição, que
estava contra a tradição católica” (ibid. p. 110).
Esta apreciação positiva do cristianismo, autêntico, aquele dos indivíduos (cfr. a
apologia de Francisco de Assis ou de Charles Péguy) ou das massas (movimentos
populares medievais) não significa, pois, como alguns acreditaram, uma hipotética
religiosidade de Gramsci, mas a afirmação de um humanismo marxista.

29
um modo ou de outro, sob formas e ideologias determinadas,
foram colocadas estas reivindicações/'”
Tanto em nível individual como coletivo, a práxis cristã fracassou,
sob a pressão dos intelectuais religiosos, para tornar-se apenas o
“ópio do povo”.

— a religião, “ópio do povo’’:

O tema da religião “ópio do povo” é bastante freqüente nos


Quaderni.^’^ com efeito, esta ligado ao estudo da função prática que
19 CDH pp. 115-116.
20 Origem da expressão:
„ nos Quaderni um ensaio de reconstituição literária da expressão
“religião, ópio do povo”, tal como ela aparece na Introdução à crítica da filosofia do
direito, de Hegel (editada em 1844).
Retomando as pesquisas de Croce, julga que a origem literária provavelmente é
balzaciana: em 1841, aparece La Rabouilleuse, onde Balzac afirma que a loteria
constitui “o ópio da miséria”. Ora, o escrito de Marx data de 1844, o que, levando em
consideração o interesse que dedica à literatura balzaciana, torna provável uma
recuperação da análise da loteria aplicada à religião.
Esta adaptação poderia se explicar também, afirma Gramsci, pela análise crítica
da “aposta pascaliana”, se se leva em consideração que era 1844 foi publicado o
manuscrito original dos Pensamentos:
"É provável que a passagem da expressão “ópio da miséria", usada por Balzac
para definir o loto, para a expressão “ópio do povo” para definir a religião, tenha
sido auxiliada pela reflexão sobre a aposta de Pascal, que compara a religião com o
jogo de azar, com as apostas." (Maq. p. 347).
Gramsci considera que a argumentação pascaliana não é mais do que o enobre-
cimento de um raciocínio popular, aliás mais próximo do voltairianismo que do
jansenismo:
“Pascal foi muito astuto ao dar forma literária, justificação lógica e prestígio
moral ao argumento da aposta, que, na realidade, é um modo de pensar bastante
difundido sobre a religião, mas um modo de pensar que se “envergonha de si
próprio”, pois ao mesmo tempo que satisfaz, parece indigno e baixo. Pascal enfrentou
a “vergonha" (se se pode dizer assim, pois é possível que o argumento a aposta, hoje
popular, sob formas populares, derivasse do livro de Pascal e não fosse conhecido
antes) e procurou dar dignidade e justificação ao modo de pensar popular" (Maq.
p. 348). ’
Gramsci concorda com a análise de Marx e julga que a religião e a loteria têm
muitos pontos em comum, principalmente se consideramos a religião católica popular
e sua concepção da graça, de caráter essencialmente supersticioso:
“Há uma estreita ligação entre o loto e a religião: quando alguém acerta, sente
que foi • eleito”, que recebeu uma particular graça de um Santo ou de Nossa Senhora
Poder-se-ia fazer um confronto entre a concepção ativa da graça dos protestantes,
que deu a forma moral ao espírito de empreendimento capitalista e a concepção
passiva e mesquinha da graça, própria do povo humilde católico. Observar a função
exercida pela Irlanda no restabelecimento das loterias nos países anglo-saxões e os
protestos dos jornais que representam o espírito da Reforma, como Manchester
Guardian (Maq. pp. 348-349).

30
II religião desempenha e aparece principalmente na análise do catoli­
cismo “jesuitizado”. Os dois termos “jesuitizado’’ e “opiáceo” são
aliás intercambiáveis.
Gramsci não se interessa essencialmente pela religião-concepção
do mundo, mas sobretudo pela norma de conduta prática que corres­
ponde a cada religião. Deste ponto de vista, a religião pode conduzir
a atitudes totalmente opostas: a ativa e progressista do cristianismo
primitivo ou do protestantismo, ou a passiva e conservadora do
cristianismo jesuitizado.
É esta segunda forma que Gramsci qualifica de opiácea, porque
ela corresponde a uma fase de declínio, na qual a religião esgotou sua
função histórica e só se mantém pelos artifícios e/ou pela repressão.
É o que acontece com o catolicismo: ele só se torna “ópio do
povo” depois da Contra-Reforma e sobretudo a partir da Revolução
francesa, onde, como suporte ideológico de uma classe vencida a
aristocracia feudal —, tornou-se “inútil” e não exprime mais as neces­
sidades reais das massas que eontrola. A partir daí, a ideologia religio­
sa torna-se um freio à inieiativa das massas, à sua emancipação ideo­
lógica e política, mantendo-as na passividade: a concepção do mundo
_ superada — não leva a nenhuma atitude prática: a religião, mas
também o pensamento social — e portanto os sindicatos —, e a polí­
tica __e portanto o partido — católicos são outras tantas ideologias
opiáceas.2'
Por isso a religião não é automaticamente o “ópio do povo : ela
se torna tal quando, superada por uma concepção superior do mundo,
impede toda evolução. O que leva a reconhecer que a religião pode
ser uma "necessidade"’.

3 . Caráter necessário da religião

A crítica gramsciana da religião não é mais do que uma crítica


da religião sob sua forma contemporânea, a de ideologia “inútil”.
A ideologia religiosa como concepção do mundo das classes
subalternas, pode desempenhar — e no passado desempenhou um
papel progressivo fornecendo a estes grupos sociais uma base ideoló­
gica para uma ação prática positiva. A religião cristã “pura desem­
penhou assim um papel histórico positivo:

21 Ver infra pp. 179s.

31
“A religião cristã, que — em um certo período histórico e em
condições históricas determinadas — foi e continua a ser uma
“necessidade”, uma forma necessária da vontade das massas po­
pulares, uma forma determinada de racionalidade do mundo e
da vida. Mas, também neste caso, trata-se do cristianismo ingê­
nuo; não do cristianismo jesuitizado, transformado em simples
ópio para as massas populares.”^^
Esta apreciação explica, por exemplo, a análise gramsciana do
modernismo ou do popularismo: os movimentos camponeses italianos
do começo do século exprimiram-se nas organizações católicas porque
o catolicismo permanecia ainda a ideologia orgânica da classe campo­
nesa: por isso mesmo, o partido popular foi historicamente necessário,
como forma organizacional transitória.
Efetivamente, Gramsci sublinha que o reconhecimento desta ne­
cessidade não deve levar ao erro inverso; considerar toda ideologia
religiosa como necessária; ora, a religião é, no fim de contas, apreciada
em função de seu conteúdo e não tanto da atitude prática que ela
encerra: o determinismo católico é necessário quando corresponde a
um movimento popular, mas deve ser combatido quando leva as classes
subalternas à passividade.^^
Aliás, tal erro geralmente não é mais do que uma justificação
teórica do ponto de vista aristocrático segundo o qual a religião seria
sempre necessária:
“A opinião corrente é a seguinte: não se deve destruir a religião
se não houver alguma coisa a colocar no lugar dela na alma dos
homens. Mas como fazer compreender isso quando se produziu
uma substituição e a realidade antiga pode ser destruída? Outra
maneira de pensar ligada à primeira: a religião é necessária ao
povo, ou antes necessária ao “comum”, como se diz nestes casos.
Naturalmente, cada qual julga que não pertence mais ao “co­
mum”, mas que todos os outros o são; por esta razão, as pessoas
julgam que é necessário fingir que são religiosas, para não per-

22 CDH pp. 24-25.


23 Contudo Gramsci sublinha em muitas ocasiões (principalmente CDH p. 21 s.)
que se o determinismo religioso foi positivo por seus efeitos, não é menos condenável
ideologicamente: assim como o mostra a evolução “religiosa” do marxismo, o deter­
minismo desempenha o papel de um “excitante” que empurra as massas à ação, mas
as deixa “irresponsáveis”, sem consciência crítica do mundo real.
Quer seja “excitante” nos períodos progressistas, quer “opiante” nos períodos de
declínio, o determinismo religioso permanece de fato um “narcótico” ideológico.

32
turbar o espírito dos outros e lançá-los na dúvida. Desta forma,
acontece que muitos não crêem mais, contudo, cada um está
persuadido de ser superior aos outros porque não tem necessi­
dade de superstições para ser honesto; e, ao mesmo tempo, todos
estão persuadidos de que é preciso dar a impressão de que se
“crê”, por respeito aos outros.”^^
Portanto, a crítica gramsciana da religião está subordinada à
apreciação da função histórica de cada ideologia religiosa. A religião
será, pois, estudada como forma particular de ideologia.

24 P. p. 121.

33
2
J
C A PITU LO II

IGREJA E APARELHOS IDEOLÓGICOS

A definição de religião como tipo particular de ideologia só


permite captar uma parte do fenômeno religioso. Para Gramsci, não
é menos necessário o estudo da Igreja como aparelho ideológico. Este
estudo baseia-se na análise histórica do papel desempenhado por esta
categoria de intelectuais mas ele exige inicialmente uma definição do
aparelho religioso com relação, de um lado, com o aparelho do Estado
clássico, e, de outro, com o conjunto dos aparelhos ideológicos.

1. A Igreja e o Estado

A análise gramsciana da Igreja e da religião baseia-se numa


redefinição do Estado. Se a Igreja se apresenta ao mesmo tempo como
uma casta intelectual autônoma e como o equivalente, ao nível ideo­
lógico, do aparelho do Estado em nível repressivo, é porque ela cons­
titui, afirma Gramsci, uma das engrenagens essenciais do verdadeiro
Estado.
Toda classe fundamental mantém-se ao apoiar-se na coerção,
graças ao controle do Estado oficial — exército, polícia, burocracia
— ou privado — violência privada — , mas também no consentimento
de grupos sociais auxiliares ou aliados; a "sociedade política’’ ou apa­
relho de Estado não é mais do que um dos aspectos do Estado; o
segundo, ou “sociedade civil” agrupa os diversos aparelhos ideológicos
— religioso, político, escolar etc. — graças aos quais a classe funda­
mental estabelece sua hegemonia sobre todos ou parte dos outros
grupos sociais.
Portanto, o Estado tal como o entende Gramsci é constituído
pelo conjunto “sociedade civil -f- sociedade política”, a função de

35
dominação — e os aparelhos repressivos correspondentes — e a fun­
ção hegemônica — e os aparelhos ideológicos correspondentes.'
A unidade destas diversas organizações repousa no seu concurso
comum à manutenção da dominação e/ou da hegemonia da classe
fundamental.
Assim sendo, o estatuto jurídico destas organizações importa
menos do que sua função: no domínio ideológico, o aparelho religioso,
0 aparelho político, o aparelho escolar, os “mídia” são amplamente
geridos por “organizações privadas”; isso, do ponto de vista de sua
função, não os diferencia em nada de organismos do Estado — em
sentido tradicional — . Este caráter “privado” é, efetivamente, a tra­
dução oficial de sua dupla autonomia:
— Autonomia, em primeiro lugar, em relação ao aparelho do
Estado: em período hegemônico, quando a esfera ideológica — socie­
dade civil — leva a melhor sobre a político-repressiva — sociedade
política —, os aparelhos ideológicos desempenham o papel principal.
Esta primazia traduz-se por uma grande autonomia com relação ao
aparelho de Estado; é o caso, por exemplo, da Igreja medieval.
Em período de crise, quando a coerção — e por isso o aparelho
de Estado — passa ao primeiro plano, o controle deste sobre os apa­
relhos ideológicos se torna mais estreito, a função ideológica tende
mesmo a se tomar puramente disciplinar e esta dependência se traduz
por uma redução da autonomia — inclusive estatutária — da socie­
dade civil.'^

1 Para um estudo mais exaustivo; cfr. Gramsci et le bloc historique, pp. 13-46.
Tradução brasileira publicada pela Ed. Paz e Terra.
2 Gramsci sublinha, por outro lado, que a função das organizações que consti­
tuem os diferentes ramos dos aparelhos ideológicos não é unicamente ideológica: esta
função é essencialmente ideológica; a Igreja, por exemplo, segundo as épocas e os
países, pôde desempenhar igualmente uma função repressiva e uma função econômica.
Quanto à função repressiva, jamais desaparece mesmo nas organizações que
dependem da sociedade civil. Gramsci cita o exemplo dos partidos políticos e das
Igrejas: o partido político, sublinha, desempenha sempre um papel de polícia; esta
função se exerce num duplo nível: aquele interno de sua própria organização onde
Gramsci distingue uma função de polícia progressiva — ou centralismo democrático —
e uma função regressiva — ou centralismo burocrático —: "no segundo caso, o
partido é puro executor, não deliberante; então é tecnicamente um órgão de polícia,
e o seu nome de 'partido político’ é uma pura metáfora de caráter mitológico” (Maq.
p. 29). Esta função de polícia se exerce também a nível de conjunto da sociedade
pela participação na adoção da lei.
A mesma coisa se passa com a Igreja; esta detém um poder de polícia no próprio
interior da organização eclesiástica, poder que pode ser estendido quando a Igreja
detém um verdadeiro monopólio ideológico (Igreja medieval).
Gramsci distingue, pois, a função repressiva inerente a toda organização, mesmo
se esta tem uma função essencialmente ideológica, da utilização destas organizações
para fins unicamente repressivos pelo aparelho de Estado em caso de crise orgânica.

36
Mas a autonomia dos aparelhos ideológicos é também a conse-
qüência de sua função hegemônica: a esfera da sociedade civil apre­
senta maior autonomia com relação à estrutura social do que a
sociedade política; em nível ideológico mais do que em nível político-
repressivo, manifesta-se a influência do passado, a manutenção de
castas intelectuais e de ideologias herdadas de sistemas desaparecidos;
sua manutenção e sua influência reforçam a autonomia inerente a
toda superestrutura:^ a Igreja católica é exemplo perfeito disso. Esta
tradição “de independência”, impregnando até as camadas modernas
de intelectuais, reforça a autonomia relativa dos aparelhos ideológicos,
autonomia que encontra sua tradução no estatuto jurídico “privado”.
Esta autonomia é particularmente importante no domínio religioso,
porque este se presta à manutenção de castas intelectuais. Apesar
disso ela permanece relativa na medida em que se situa no quadro de
uma função hegemônica que visa estabelecer e reforçar a dominação
da classe fundamental sobre os outros grupos sociais.

2 . Religião e política

A definição gramsciana do Estado permite definir a Igreja como


um aparelho ideológico de Estado e por isso precisar suas relações
com a “sociedade política”.
O segundo problema que a análise do fenômeno religioso levanta
situa-se no nível das relações entre os diversos tipos de aparelhos
ideológicos e principalmente as existentes entre partidos políticos e
Igrejas. Estes dois tipos de aparelhos e de ideologias estão estreita­
mente relacionados.
“A história dos partidos e das correntes políticas não pode ser
separada daquela dos grupos e das tendências religiosas.”^
O estudo privilegiado das ideologias políticas e religiosas e de
sua difusão é necessário na medida em que elas constituem as duas
principais formas de concepção do mundo. Por isso, o estudo da
religião exige uma análise prévia das relações entre sistema político
e sistema religioso em cada forma social.
Assim, Gramsci propõe nos Quaderni um primeiro esboço de
análise.
3 Sobre as relações estrutura-superestrutura: cfr. Portelli; op. cit. pp. 47-67.
4 P. p. 207.

37
Ele sublinha principalmente, a partir dos exemplos francês e
americano, a correspondência entre multipartidarismo e unidade reli­
giosa, sectarismo religioso e unidade política:
“Um tema a estudar é o seguinte: se existe uma relação, e qual
é ela, entre a unidade religiosa de um país e a multiplicidade dos
partidos e, vice-versa, entre a unidade relativa dos partidos e a
multiplicidade das Igrejas e seitas religiosas. Observa-se que nos
Estados Unidos, onde os partidos políticos eficientes são dois ou
três, existem centenas de Igrejas e seitas religiosas; na França,
onde a unidade religiosa é notável, existem dezenas e dezenas
de partidos. O que faz refletir é o caso da Rússia czarista, onde
os partidos políticos não existiam normal e legalmente ou estavam
proibidos, e onde existia a tendência à multiplicidade das seitas
religiosas bastante impregnadas de fanatismo.
Gramsci apresenta três hipóteses para explicar este fenômeno; a
primeira é de ordem sociológica: de fato, assim como ficou evidente
na análise da religião,* não existe unidade ideológica real, seja ela
religiosa ou política. Um partido político tal como o de tipo americano
— mas em certa medida isto vale também para os outros — é consti­
tuído por muitos subpartidos que correspondem às orientações políticas
das classes e frações de classe que ele agrupa. Da mesma forma, uma
religião oficial agrupa, na realidade, diversas subreligiões que corres­
pondem às ideologias dos diversos grupos que formam a massa dos
fiéis. Por isso, o sectarismo religioso reflete de forma fiel a divisão
ideológica e social de um país:
“A unidade religiosa é aparente, como é aparente a unidade
política. A unidade religiosa oculta uma multiplicidade real de
concepções do mundo que encontram sua expressão nos partidos
porque existe “indiferença” religiosa, como a unidade política
oculta uma multiplicidade de tendências que encontram sua
expressão nas seitas religiosas etc. . .
O fato de que a unidade ideológica formal resida num ou noutro
domínio depende, pois, da tradição histórica:
“Visto que as diferenças culturais são numerosas e profundas, a
sociedade reúne uma variedade extraordinária de correntes que
5 P. pp. 161-162.
6 Ver supra pp. 24-26.
7 P. p. 162.

38
apresentam uma cor religiosa ou política segundo a tradição
histórica”®
Neste nível, Gramsci distingue dois fatores determinantes: de um
lado, o peso dos intelectuais tradicionais, de outro e sobretudo, as
possibilidades de expressão ideológica que o aparelho do Estado
permite.
Nos países de civilização mais antiga, nos quais muitos sistemas
políticos e ideológicos se sucederam, aos poucos foi se formando uma
verdadeira sedimentação de intelectuais. Às clivagens atuais ajuntam-
se antigos grupos e principalmente seus intelectuais que se tornaram
tradicionais. Resulta disso uma multiplicidade de castas intelectuais
que perpetuam os antigos conflitos, mantêm as antigas correntes —
principalmente políticas — mais ou menos artificiais. Assim se explica
na França a existência de um multipartidarismo amplamente herdado
do passado e de uma unidade religiosa que é ela mesma o fruto dos
conflitos religiosos.
Nos países modernos, tais como os Estados Unidos, onde o
transplante de uma “certa fase da evolução histórica européia”,’ carac­
terizada em nível ideológico pelo acantonamento da religião no domí­
nio “privado”, acarreta a ausência de intelectuais tradicionais, a situa­
ção é inversa:
“A ausência de uma vasta sedimentação de intelectuais tradicio­
nais, como ocorreu nos países de civilização antiga, explica
parcialmente tanto a existência de somente dois grandes partidos
políticos, que poderiam na realidade ser reduzidos a um só (. . .),
quanto ao inverso, a multiplicação ilimitada de seitas religiosas.”’®
Aliás, esta hipótese é demonstrada pela evolução que a América
Latina conheceu: a fase da evolução histórica da Europa que ali foi
implantada foi a da civilização ibérica dos séculos XVI e XVII, ou
seja, da Contra-Reforma. Assim sendo, o exército e o clero desempe­
nham um papel preponderante:
“As cristalizações, ainda hoje resistentes nesses países, são o clero
e uma casta militar, duas categorias de intelectuais tradicionais
fossilizadas segundo o modelo da mãe-pátria européia”.”

8 ibid.
9 I. p. 19.
10 I. p. 20.
11 I. p. 21.

39
Esta situação engendra a oposição ideológica entre a aristocracia
fundiária — por intermédio da Igreja — e a burguesia moderna —
por intermédio da franco-maçonaria.
A estrutura dos sitemas políticos e religiosos e suas relações
recíprocas são, pois, amplamente influenciadas pela existência e a
força de castas intelectuais tradicionais.
O segundo fator histórico essencial não é estrutural, mas está
ligado à relação entre aparelhos ideológicos (Igrejas, partidos) e o
aparelho do Estado (forças de coerção em geral).
A multiplicidade das seitas religiosas é, efetivamente, a conse-
qüência, segundo Gramsci, das limitações às liberdades políticas. Na
medida em que o aparelho do Estado proíbe a livre formação de
organizações políticas, a única possibilidade de expressão popular que
subsiste é a da religião, e por isso da formação de seitas religiosas.
Frente ao controle do aparelho político, é o aparelho religioso que se
torna o modo essencial de expressão dos grupos sociais subalternos;
Gramsci sublinha que esta coerção nem sempre é obra do aparelho
de Estado oficial (exército, polícia, justiça) mas também pode provir
de organizações “privadas”, como o mostra o exemplo americano:
“Para compreender a interdependência entre os grupos religiosos
e os políticos, ou seja, como cada obstáculo legal ou de violência
privada ao desenvolvimento espontâneo das tendências políticas
e à sua organização em partido determina uma multiplicação de
seitas religiosas, os Estados Unidos e o Japão oferecem um
terreno excepcional de estudo. Deste ponto de vista, a história
político-religiosa dos Estados Unidos pode ser comparada à da
Rússia czarista (com a diferença, importante, que na Rússia
czarista faltava a liberdade política legal, faltava também a liber­
dade religiosa e assim o sectarismo religioso assumia formas
mórbidas e excepcionais). Nos Estados Unidos, legalmente e
de fato, a liberdade religiosa não falta (dentro de certos limites,
como o recorda o processo contra o darwinismo); e se, legalmente
(dentro de certos limites) a liberdade religiosa não falta, ela
falta pelo fato da pressão econômica e também da violência
privada aberta. Deste ponto de vista, é importante o exame
crítico das organizações judiciárias e policiais, que deixam im­
punes e sustentam as violências privadas que têm como objetivo
impedir a formação de outros partidos a não ser o republicano
e o democrata,”'^

12 P. p. 207.

40
Aliás, a criação de seitas religiosas não é fruto de iniciativas
populares mas, ao contrário, de uma decisão dos representantes da
classe dirigente, que as utilizam para canalizar os movimentos que
não podem se organizar dentro do quadro político: portanto, as seitas
religiosas não passam de ramificações do aparelho ideológico-religioso
de Estado:
“Mesmo o nascimento de novas seitas religiosas é quase sempre
solicitado e financiado por grupos econômicos, para canalizar
os efeitos da compressão cultural-econômica. As enormes somas
consagradas nos Estados Unidos à atividade religiosa têm fins
político-culturais bem precisos.
Portanto, sistema político e sistema religioso são estreitamente
dependentes. Para além de sua interação, o problema que se apresenta
é o de saber qual é o aparelho ideológico dominante.
Gramsci responde a esta pergunta de maneira matizada; a pri­
mazia de tal ou tal aparelho ideológico depende de muitos fatores:
— um aparelho ideológico pode permanecer dominante por um
período completo; assim, o aparelho religioso é o aparelho ideológico
dominante do sistema feudal europeu;
— mas esta dominação pode também evoluir; assim, sublinha
Gramsci, o modo de produção capitalista não se caracteriza pela
dominação de um aparelho ideológico específico, mas é em cada
formação social, em função dos conflitos internos e da tradição histó­
rica, que esta dominação se determina; assim, na Itália no começo
do século, o aparelho religioso e o aparelho escolar são os aparelhos
ideológicos dominantes. Depois da concordata de 1929, o aparelho
religioso encontra-se numa situação de quase-monopólio. Nos Estados
Unidos, pelo contrário, o aparelho religioso desempenha um papel
subalterno e não autônomo.
Se agora considerarmos somente os aparelhos políticos e religio­
sos, a evolução histórica que Gramsci constata mostrará a passagem
de uma primazia do aparelho religioso a uma primazia do aparelho
político.
Durante o período medieval, a Igreja católica é, ao mesmo tempo,
aparelho religioso e aparelho político na medida em que ela detém o
monopólio ideológico. Mas esta função permanece parcialmente depois
da Contra-Reforma: a análise gramsciana da Ação católica, dos parti-

13 P. pp. 207-208.

41
dos católicos mostra que a Igreja ainda continua um ramo do aparelho
político.
Todavia, a tendência geral permanece caracterizada por um
recuo político e um acantonamento no domínio religioso. Pelo contrá­
rio, o partido político moderno — e Gramsci evidentemente suben­
tende o partido de tipo comunista —, na medida em que se afirma
como a expressão de uma Weltanschauung, tende a absorver o con­
junto das funções do futuro Estado que ele propõe, e portanto o
conjunto de sua estrutura ideológica. Dessa forma, ele engloba, supe­
rando-o qualitativamente, o aparelho religioso. O partido moderno —
e isso é verdade numa certa medida para todos os partidos — sucede
à Igreja na medida em que se apresenta como portador de uma
concepção leiga do mundo.
Esta primazia do partido não deixa de ter seu efeito sobre a
própria estrutura do aparelho religioso: quando Gramsci afirma que
a Igreja católica é organizada como “partido”,'"* sublinha principal­
mente a influência deste tipo novo de aparelho ideológico sobre os
aparelhos tradicionais.
O partido político tende assim a tornar-se o novo tipo de
aparelho ideológico dominante.
O estudo da Igreja como aparelho ideológico permite, pois, com­
preender o segundo aspecto essencial do fenômeno religioso: o dos
intelectuais religiosos e de suas relações com o aparelho de Estado.
Definindo a religião como uma forma de ideologia e a Igreja
como um aparelho ideológico de Estado, Gramsci dispõe dos dois
instrumentos conceptuais necessários para o estudo da função histó­
rica do catolicismo.

14 Ver infra pp. 175s.

42
SEGUNDA PARTE

A IGREJA, INTELECTUAL ORGÂNICO


f/

* Jr
\
i
A análise gramsciana do catolicismo é a das funções sociais,
ideológicas e políticas que ele desempenhou desde o seu aparecimento.
Esta história divide-se em dois capítulos essenciais: o primeiro,
que se estende até as Reformas, durante o qual a Igreja estende seu
domínio ideológico até o monopólio e a rivalidade com o aparelho de
Estado: é a fase orgânica; neste período a Igreja é a casta intelectual
da classe dirigente. O segundo capítulo, que continua até hoje é o do
declínio; aqui a Igreja, progressivamente despojada de suas diferentes
funções, deve defender seus privilégios contra as novas camadas inte­
lectuais, contra os novos aparelhos ideológicos: esta segunda fase é a
da Igreja que se torna casta de intelectuais tradicionais.
Só aos poucos a Igreja foi se tornando o intelectual orgânico da
classe dirigente: Gramsci distingue assim quatro períodos nesta primei­
ra fase: o aparecimento do catolicismo como movimento revolucioná­
rio, sua ligação com o Baixo-Império, sua mutação como intelectual
orgânico da classe feudal e a crise de hegemonia que estoura com as
heresias.
CA PITU LO I

O CRISTIANISMO PRIMITIVO

— 0 cristianismo como movimento revolucionário


— a Igreja depois do edito de Milão

A análise do cristianismo primitivo não é nova na literatura


marxista. Ela apresenta uma dupla característica: de um lado, uma
tradição antiga que estabelece o paralelo entre “revolução cristã” e
revolução socialista e que já se encontra em Engels.' Gramsci entusias­
mou-se com esta tradição na época do Ordine nuovo, considerando o
cristianismo como uma revolução que teve êxito? Passado este entu-

1 A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de contacto com


o movimento operário moderno. Como este, o cristianismo era, na origem, o movi­
mento dos oprimidos: apareceu inicialmente como a religião dos escravos e dos
libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou
dispersos por Roma. Ambos, tanto o cristianismo como o socialismo operário pregam
uma libertação próxima da servidão e da miséria; o cristianismo transpõe esta liber­
tação para o além, o socialismo a coloca neste mundo, numa transformação da
sociedade. Ambos são perseguidos é acossados, seus seguidores são proscritos e
submetidos a leis de exceção, uns como inimigos do gênero humano, outros como
inimigos do governo, da religião, da família, da ordem social. E apesar de todas as
perseguições, e mesmo diretamente servidos por elas, um e outro abrem seu próprio
caminho, vitoriosa e irresistivelmente. Três séculos depois de seu nascimento, o cristia­
nismo é reconhecido como religião de Estado do Império romano; em menos de
sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição tal que seu triunfo definitivo
está absolutamente assegurado." (SLR p. 310).
2 Num artigo em 1’Ordine nuovo, de 4 de setembro de 1920, “II Partido comu­
nista”, Gramsci comparava revolução comunista e cristianismo primitivo. Para além
desta comparação, é interessante notar que Gramsci considerava o cristianismo como
modelo de uma revolução que foi até o fim de seu desenvolvimento: “Para Sorel
como para a doutrina marxista, o cristianismo representa uma revolução na plenitude
de seu desenvolvimento, isto é, uma revolução que foi até suas conseqüências extre­
mas, até a criação de um sistema novo e original de relações morais, jurídicas, filosó­
ficas, artísticas" (ON p. 154). Gramsci julga que se esta revolução se desenvolveu
totalmente, é porque consistia essencialraente num movimento popular: "Toda revo­
lução que, como a cristã e como a comunista se realiza e não pode deixar de reali-
Izarse a não ser por uma ampla sublevação das massas populares, não pode deixar

47
siasmo, nos Quaderni procura explicar por que o movimento cristão
primitivo não é uma verdadeira revolução. Aproxima-se assim das
análises de Engels sobre o desenvolvimento do cristianismo durante o
Baixo-Império.
Engels dedicou-se essencialmente ao estudo da formação progres­
siva da religião; para isso ele tenta, apoiando-se principalmente nos
trabalhos de Bruno Bauer, reconstituir o filão ideológico do cristianis­
mo (Fílon, pneca) e depois sua elaboração propriamente dita _ do
Apocalipse às Cartas de são Paulo.^ Gramsci não se pronuncia sobre
esta questão porque, para ele, o verdadeiro problema está em saber
concretamente que função ideológica e política desempenha o cris­
tianismo.
Esta questão já havia sido entrevista por Engels, mas Gramsci a
desenvolve de maneira original: Engels, depois de Bauer, analisa as
três questões seguintes: quais eram os grupos sociais e nacionais cris-
tianizados, por que sua revolta assumiu a forma de uma religião, e por
que o cristianismo triunfou das outras religiões da época. ’
Gramsci retoma parcialmente esta problemática, mas o faz a
partir de dois temas constantes nos Quaderni: a passagem da concep­
ção cristã do mundo à atitude prática cristã e à análise do cristianismo
como tipo de movimento revolucionário.
Gramsci e Engels completam-se assim de maneira notável: se a
religião cristã pôde triunfar facilmente sobre seus rivais, foi porque
ela os superava ideologicamente — Engels — , mas sobretudo porque
levava a uma norma de conduta prática revolucionária — Gramsci
. A isto Gramsci acrescenta que o cristianismo primitivo teve a
vantagem de ter intelectuais notáveis capazes precisamente de traduzir
a religião em atitude prática.
Deste ponto de vista, São Paulo desempenhou um papel determi­
nante que Gramsci compara ao de Lênin com relação a Marx:
“Da mesma forma, historicamente, seria absurdo um paralelo
entre Cristo e São Paulo: Cristo-Weltansehauung — São Paulo-
organizador, ação, expansão da Weltanschauung; ambos são ne-

de romper e destruir todo o sistema existente de organização social." (ibid) O cristia­


nismo primitivo seria, pois, um exemplo de revolução total, que varre as instituições e
os costumes dominantes para forjar outros novos, que são a expressão da classe
revolucionária. «.laaac
Se exceptuarmos a comparação entre cristãos primitivos e comunistas, a análise
do Ordine nuovo parecerá particularmente sumária: reflexo do voluntarismo da
época, nao se baseia em nenhuma apreciação histórica concreta, mas numa exaltação
do ato revolucionário. ‘«vou
3 SLR pp. 191-209 e 310-338.

48
cessários na mesma medida e, consequentemente, têm uma mesma
estatura histórica. O cristianismo poderia ser chamado, historica­
mente, cristianismo-paulismo, e esta seria a expressão mais exata
(apenas a crença na divindade de Cristo impediu que isto ocor­
resse, mas esta crença é também apenas um elemento histórico
e não teórico).”^
A qualidade essencial de São Paulo é, aos olhos de Gramsci, ter
sabido elaborar a atitude prática — tanto em nível moral como político
__que a situação política concreta da época permitia, e apoiando-se
na Weltanschauung cristã; em resumo, o fato de ter sido um estrate­
gista revolucionário.®
A análise do cristianismo primitivo nos Quaderni está, efetiva­
mente, ligada a das estratégias revolucionárias. Analisando as conse-
qüências do fracasso da revolução na Itália, Gramsci distingue as
“guerras de movimento” e as “guerras de posições”. A revolução russa
de 1917 é um exemplo de guerra de movimento: o Estado czarista era
essencialmente um “aparelho de Estado”, burocrático e rnilitar, que
não se apoiava no poder da sociedade civil, isto é, num importante
complexo ideológico e cultural. Ao contrário do Ocidente, onde a força
da classe dirigente reside sobretudo em sua hegemonia cultural, pela
intermediação de poderosos aparatos ideologicos, o Estado
"era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se
uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas^ (a sociedade civil). ’
Em tal situação, a estratégia revolucionária só pode assuinir a
forma de uma ‘guerra de posições”, de uma intensa luta ideológica e
política.^

4 CDH p. 94.
5 O estudo da gênese teórica do cristianismo primitivo não é abordado nos
Quaderni por razões práticas: a ausência de documentação. Propondo nos Quaderni
as grandes linhas daquilo que deveria ser um “jornalismo integral", Gramsci sublinha
a necessidade de revistas críticas bibliográficas; entre estas, "seria importantíssima
uma resenha deste tipo sobre os resultados da crítica histórica aplicada as origens
do cristianismo, à personalidade de Jesus, aos evangelhos, às suas diferenças, aos
sinópticos e ao de João, aos evangelhos chamados apócrifos, à importância de Sao
Paulo e dos apóstolos, às discussões a respeito de Jesus ser a expressão de um mito,
etc." (I p. 184). ,
Encontra-se, pois, a problemática de Engels — cujos trabalhos Gramsci parece
não conhecer. , . . .
A análise do cristianismo primitivo em termos de estratégia revolucionaria
corresponde mais à experiência pessoal de Gramsci e à influência de Sorel.
6 Maq. p. 75.
7 Para um estudo mais detalhado da questão: H. Portelli, op. cit., pp. 117-121.

49
Tais são os dois tipos reais de estratégia revolucionária. Mas
Gramsci acrescenta um terceiro, que é minuciosamente analisado nos
Quaderni, o da “revolução passiva.”®
Esta se caracteriza pela ausência de toda luta determinada contra
a antiga classe dirigente, o que na realidade leva a uma solução de
compromisso, a uma “revolução-restauração”.
A atitude passiva é a conseqüência de uma dupla fraqueza: em
nível ideológico, um determinismo fatalista, e a ausência de direção
político-militar das forças revolucionárias.’

8 Gramsci tira o termo “revolução passiva” de Vincenzo Cuoco, escritor e


homem político napolitano (1770-1823), que em sua obra 'Saggio storico sulla Rivo-
luzione napoletana’ julga que a Revolução napolitana de 1799 foi a conseqüência da
Revolução francesa e não de um verdadeiro movimento popular. Gramsci utiliza este
termo “num sentido um pouco diferente daquele dado por Cuoco" (R. p. 71).
9 A propósito do determinismo, Gramsci lembra os “dois princípios fundamen­
tais da ciência política” (Maq. p. 75) formulados por Marx no prefácio à Contribuição
à crítica da economia política:
“1) o de que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não
existam as condições necessárias e suficientes, ou que pelo menos não estejam em
vias de aparecer e se desenvolver;
2) o de que nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes de desen­
volver e completar todas as forma de vida implícitas nas suas relações” (Maq. p. 45).
Ora, julga Gramsci que estes princípios devem ser desenvolvidos de maneira
crítica em todo o seu alcance e despojados de todo resíduo de mecanicismo e de
fatalismo.
Para combater a interpretação determinista destes princípios, Gramsci propõe
completá-los por aqueles que regem as relações de forças no seio de uma formação
social. Gramsci distingue assim três momentos;
— o momento econômico em que a relação de força entre os grupos sociais é
analisada no nível da estrutura sócio-econômica, permitindo assim "verificar se na
sociedade existem as condições necessárias e suficientes para a sua transformação;
permite controlar o grau de realismo e de viabilidade das diversas ideologias que
ela gerou durante o seu curso" (Maq. p. 49).
— o segundo momento é o da relação das forças políticas ‘‘isto é, a avaliação
do grau de homogeneidade, de autoconsciência e organização alcançado pelos vários
grupos sociais" (Maq. p. 49). Este grau varia, desde o simples corporativismo até a
hegemonia política e ideológica sobre os outros grupos sociais.
— o terceiro momento é o da relação das formas militares em que a classe que
se tornou hegemônica se apodera do aparelho do Estado.
Sobre isso Gramsci sublinha que o problema da relação das forças militares não
se coloca unicamente, no nível de uma formação social, entre classe dominante e
classe subalterna; ele pode igualmente apresentar-se em nível internacional;
‘‘üm exemplo típico que pode servir como demonstração-limite é o da relação
de opressão militar de um Estado sobre uma nação que procura alcançar sua indepen­
dência estatal. A relação não é puramente militar mas político-militar; efetivamente,
tal tipo de opressão seria inexplicável se não existisse o estado de desagregação social
do povo oprimido e a passividade da sua maioria” (Maq. p. 51).

50
Gramsci cita o exemplo do tolstoísmo para ilustrar esta situação
no interior de um país determinado e o do gandhismo que é a conse-
qüência de relações de dependência internacional.
O cristianismo primitivo tem por origem a combinação destas
duas situações: opressão de um Estado sobre uma série de países
dependentes e opressão de uma camada social minoritária sobre a
massa das classes subalternas. Além do mais, corresponde perfeita-
mente à definição da revolução passiva: uma passividade total em nível
político e militar e um poderoso determinismo fatalista em nível
ideológico.
Determinismo fatalista da religião cristã — graças principalmente
à função da providência e ao tema da ressurreição igualitária —, mas
que, em condições de luta totalmente negativas,
“transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de
coesão, de perseverança paciente e obstinada. ‘Eu descreio mo­
mentaneamente, mas a força das coisas trabalha por mim a longo
prazo etc.’ A vontade real se disfarça em um ato de fé.’’’°
Este determinismo é a conseqüência de uma relação de forças
desfavorável. Engels já o sublinhava quando analisava as causas do
sucesso do catolicismo:
“Para toda defesa, o governo dispunha materialmente do exército,
que já se assemelhava mais a um exército de ‘lansquenets’ do
que ao antigo exército romano composto de camponeses, e mo­
ralmente da opinião geralmente difundida que não havia nenhuma
possibilidade de sair desta situação, que o Império fundado sobre
a dominação militar era uma necessidade imutável ( . . . ) . A esta
privação geral de direitos e à ausência de esperança de algum
dia instaurar um estado de coisas melhor correspondiam uma
falta de energia e uma desmoralização geral.”"
Além disso, Gramsci considera que a forma ideológica e política
específica do cristianismo primitivo — a resistência não-violenta —
se explica melhor ainda pelo fato de que os povos oprimidos militar­
mente exerciam uma verdadeira hegemonia cultural:
“Países de velha civilização, desarmados e tecnicamente (militar­
mente) inferiores, dominados por países tecnicamente desenvolvi­
dos (os romanos haviam desenvolvido a técnica governamental e

10 CDH p. 23.
11 SLR pp. 196-197.

51
militar), embora com um número de habitantes negligenciável.
O fato de que uma multidão de homens que se julgavam civili­
zados fossem dominados por poucos homens considerados como
menos civilizados mas materialmente invencíveis, determina a
relação cristianismo primitivo-gandhismo. A consciência da im­
portância material de uma grande massa contra um punhado de
opressores leva à exaltação dos valores puramente espirituais, etc.,
à passividade, à não-resistência, à não-cooperação que contudo
é uma resistência diluída e sofrida, o colchão contra a bala.”'^
Por isso, o cristianismo primitivo, para Gramsci, é tanto a expres­
são da resistência dos povos submetidos a Roma — e especialmente
os da civilização helênica — como das classes subalternas propria­
mente ditas.
Mas sobretudo, definindo este movimento religioso por sua estra­
tégia de não-resistência, Gramsci tende indiretamente a explicar o
caráter apolítico do cristianismo primitivo; este apoliticismo não é,
na realidade, mais do que a resistência passiva à dominação romana.
O cristianismo aparece, pois, inicialmente como um movimento
ideológico e político dos povos oprimidos e das classes subalternas.
Tornando-se ideologia oficial da classe dirigente, vai modificar consi­
deravelmente esta função inicial.

2 . A evolução do cristianismo primitivo

Depois do Edito de Milão, o cristianismo sofre uma transforma­


ção profunda, conseqüência da modificação de suas relações com o
aparelho de Estado imperial: de ideologia das classes subalternas, o
cristianismo se torna a concepção do mundo oficial do Império; de
organização de massa não-violenta, a Igreja se torna a aliada do Im­
pério, seu sustentáculo ideológico. O movimentto de resistência não-
violenta dá lugar a um aparelho ideológico que doravante utilizará a
ajuda do braço secular para vencer seus adversários:

“Uma reflexão que com freqüência lemos é a de que o cristia­


nismo se difundiu pelo mundo sem necessidade da ajuda de
armas. Isso não me parece justo; sem dúvida, podemos dizer que
o cristianismo não foi religião de Estado (isto é, até Constantino);
mas a partir do momento em que se tornou a maneira exterior
12 R. pp. 46-47.

52
de pensar de um grupo dominante, sua sorte e sua difusão não
podem ser separadas da história geral e portanto das guerras;
cada guerra foi igualmente guerra de religião, sempre.”'^
Todavia, a Igreja não abdica de seu caráter democrático e perma­
nece um movimento de massa representativo das classes subalternas:
trata-se inicialmente de uma aliança objetiva da Igreja e do Estado
imperial. Aliás, uma aliança previsível se consideramos a estratégia
adotada pela Igreja primitiva, a “revolução passiva”: esta, na medida
em que não se traduz numa luta decidida contra o antigo sistema e na
sua superação, não pode deixar de chegar a uma recuperação das
forças de contestação e a uma restauração:
“Teria se verificado no cristianismo o que ocorre nos períodos
de restauração em relação aos períodos revolucionários: a aceita­
ção atenuada e camuflada dos princípios contra os quais se
lutara.”’'*
A conseqüência do Edito de Milão foi neutralizar as classes
subalternas pela união da hierarquia eclesiástica com o Império, através
de algumas vantagens corporativas e sobretudo do reconhecimento
do cristianismo como ideologia oficial e da Igreja como aparelho
ideológico de Estado.
A conseqüência organizacional é a de calcar a estrutura da
Igreja sobre a do aparelho do Estado imperial. Gramsci sublinha
particularmente dois aspectos que sobreviverão ao desaparecimento
do Império romano: o cosmopolitismo e o papel do Papa.
O cosmopolitismo era um fenômeno necessário na medida em
que o cristianismo se afirmava como religião universalista. Todavia,
esta tendência foi consideravelmente reforçada pela aproximação com
o aparelho do Estado, ele mesmo cosmopolita e centralizado. No
nível ideológico, o culto imperial era o fundamento deste cosmopoli­
tismo intelectual. Como conseqüência da aliança Império-Igreja, esta
herda atribuições religiosas do imperador. Depois da queda do Império,
o Papa herdará a tradição do culto imperial:
“É preciso ver se se tentou localizar um nexo entre o culto do
imperador e a posição do Papa como vigário de Deus na terra;
sabemos que se tributam honrarias divinas ao Papa e que ele
é chamado o “pai comum”, como Deus. O Papado teria feito

13 P. pp. 120-121.
14 Maq. p. 352.

53
uma combinação entre os atributos do Sumo Pontífice e os do
imperador divinizado (atributos que, para as populações do pri­
meiro período, não deviam ser vistos de modo diferente em rela­
ção aos próprios imperadores).”’^
Esta restauração não se limita à estrutura e ao papel da Igreja:
ela atinge também a religião. Gramsci sublinha que ao difundir-se
entre os grupos subalternos, o cristianismo sofre a influência dos anti­
gos cultos pagãos, influência esta de que vimos o exemplo com relação
ao Papa; forma-se assim uma religião popular muito diferente do
cristianismo oficial e cujas características sobreviveram: superstições,
feitiçarias etc. . .
Por isso, a aliança com o Império romano modifica radicalmente
o cristianismo primitivo sob seu tríplice aspecto de movimento das
classes subalternas, de organização eclesiástica e de religião. É com
esta nova face que a Igreja vai tornar-se a estrutura ideológica do mun­
do feudal.

15 ibid.
16 A passagem das religiões nacionais tais como as conhece a Antiguidade para
uma religião supranacional como o catolicismo é particularmente difícil; Gramsci
sublinha que o cristianismo suplantou totalmente as religiões nacionais, mas que desde
o seu aparecimento, teve que lutar constantemente contra as tendências centrífugas que
apareciam em seu seio. Nem todas as religiões universalistas combateram com a
mesma intransigência as religiões nacionais que as precederam. Gramsci cita princi­
palmente o exemplo do budismo que se justapôs às crenças preexistentes. O caso mais
notável é o do Japão onde a velha religião nacional se manteve, coexistindo com
o budismo importado da China:
“É interessante o fato de que o Shintoísmo representa um tipo de religião que desa­
pareceu inteiramente no mundo moderno ocidental, mas que era frequente entre os
povos civilizados da antiguidade. É interessante que um povo civilizado moderno
como o japonês, creia numa tal divindade e adore" (I. p. 112).
A consequência deste dualismo religioso foi a sucessão de períodos de coexistência
mais ou menos estreitos — indo até o sincretismo religioso — e de lutas abertas. Este
choque levou a uma transformação da religião nacional: esta se laicizou, tornando-se
uma ideologia puramente patriótica do culto ao imperador:
“Vários provimentos burocráticos se sucederam, culminando na elevação do shin­
toísmo a instituição patriótica e nacional, com a renúncia oficial a seu caráter reli­
gioso (torna-se uma instituição, ao que me parece, do tipo da romana do culto ao
Imperador, mas sem caráter religioso em sentido estrito, de modo que mesmo um
cristão pode exercê-la). Os japoneses podem pertencer a qualquer religião, mas devem
se inclinar diante da imagem do Imperador. Assim, o Shinto de Estado separou-se do
Shinto das seitas religiosas." (I p. 113).
Tal evolução, ligada ao Meiji, é totalmente oposta a do cristianismo pois supera
o antagonismo Igreja-Estado.

54
C A PITU LO II

A IGREJA, INTELECTUAL ORGÂNICO


DO FEUDALISMO

— o clero, classe feudal — os movimentos religiosos populares.

A situação da Igreja medieval é a de uma categoria de intelectuais


orgânicos que controlam a sociedade civil feudal:' esta organicidade
repousa em duas características permanentes do clero medieval: sua
osmose econômico-política com a aristocracia e seu monopólio
ideológico.

1 . O clero, classe feudal

Se consideramos as relações entre Igreja e feudalismo, parece


necessário colocar a Igreja na categoria dos intelectuais tradicionais: o
clero é uma casta que preexiste ao sistema feudal: depois de aparecer
como movimento das classes subalternas do Baixo-Império, a Igreja
se torna o aparelho ideológico do Estado imperial. Mas a diferença

1 o estudo da Igreja medieval é o estudo da Igreja do Ocidente: Gramsci não


estuda o problema do cisma ortodoxo com a mesma atenção com que estuda as
Reformas, embora também o considere importante para a história da Igreja; a dife­
rença essencial com relação às outras crises é que ele não afeta verdadeiramente a
hegemonia da Igreja, mas se contenta em ratificar uma separação cultural, a de duas
civilizações:
"O cisma entre o Oriente e o Ocidente é de caráter territorial, entre duas civili­
zações históricas contrastantes, com escassos elementos ideológicos e culturais, que se
inicia com o advento do Império de Carlos Magno, isto è, com uma nova tentativa
de hegemonia política do Ocidente sobre o Oriente; o cisma surge num período em
que as forças eclesiásticas estão mal organizadas e aprofunda-se cada vez mais, auto­
maticamente, em virtude da própria força das coisas, impossíveis de controlar, como
se verifica em relação a duas pessoas que durante anos não têm contatos e que se
afastam uma da outra até terminarem falando duas línguas diferentes." (Maq. p. 323).
Sobre as relações católicos-ortodoxos, ver supra pp. 177-178.

55
entre a situação da Igreja depois do edito de Milão e a da Igreja
medieval é assencial: no primeiro caso, trata-se de uma aliança entre
dois aparelhos independentes, conservando a Igreja sua própria estru­
tura e suas próprias regras. No segundo caso, a Igreja se une organi­
camente à estrutura e ao aparelho de Estado feudal. Esta feudalização
é dupla: o clero aparece ao mesmo tempo como intelectual orgânico
do feudalismo e como fração da aristocracia feudal.
Apoiando-se nos trabalhos históricos italianos da Igreja medieval,^
Gramsci considera que a Igreja está, em larga escala, na origem da
sociedade feudal.
Depois das invasões e diante da decadência da civilização urbana,
os mosteiros tornaram-se os únicos centros intelectuais. É em torno
dos mosteiros que se estabelecem as novas estruturas sociais feudais,
ou antes, que se desenvolve o embrião da sociedade feudal que apa­
receu desde o Baixo-Império com a “villa” romana. Mas a origina­
lidade do mosteiro feudal é de desenvolver este novo tipo de relações
a partir de uma divisão social do trabalho entre intelectuais religiosos
e servos-artesãos; a regra beneditina consagrará esta feudalização:
“Desenvolvimento prático da regra beneditina e do princípio Ora
et labora. O labora já era submetido ao ora, ou seja, a finalidade
principal era evidentemente o serviço divino. Assim, os monges-
camponeses são substituídos pelos colonos, a fim de que os mon­
ges pudessem, a qualquer momento, encontrar-se no convento
para praticar os ritos. Os monges no convento mudam de “tra­
balho”: trabalho industrial (artesanal) e trabalho intelectual (que
contém uma parte manual, a função de copista). A relação entre
colonos e convento é a relação feudal, com concessões nivelado-
ras, e é ligada não só à elaboração interna que ocorre no trabalho
dos monges, como ao crescimento da propriedade fundiária do
mosteiro. Outro desenvolvimento é dado pelo sacerdócio: os
monges servem como sacerdotes em território circunvizinho e sua
especialização aumenta: sacerdotes, intelectuais de conceito, copis-
tas, operários, industriais, artesãos. O convento é a “corte” de
um território feudal, defendido, mais do que pelas armas, pelo
respeito religioso.”^

2 Principalmente Luigi Salvalorelli: San Benedetto e 1’Italia dei suo tempo. Bari,
Laterza.
Francesco Lanzoni: Le diocesi d'Italia dalle origini al principio dei secolo VII.
3 I, p. 39.
O mosteiro medieval constitui para Gramsci a ilustração da República de Platão:
"Quando se diz que Platão desejava uma "república de filósofos", é preciso entender

56
Esta especialização do clero regular leva ao aparecimento de uma
verdadeira aristocracia em seu seio:
“Para o regime interno do mosteiro, foi desenvolvido e interpre­
tado um princípio da regra, onde se diz que, na eleição do
abade, deve prevalecer o voto dos que se julgam mais sábios e
prudentes, dizendo-se ainda que o abade se deve munir do con­
selho deles quando tiver que decidir sobre assuntos graves, mas
não tão graves que possam justificar uma consulta a toda a
congregação. Deste modo, os monges sacerdotes, que se dedica­
vam aos ofícios correspondentes às finalidades da instituição,
foram-se distinguindo dos outros sacerdotes que continuavam a
realizar os serviços da casa.”"^
Mas a influência da Igreja sobre a estrutura da sociedade medie­
val não se situa só no meio rural: as sedes episcopais tornam-se centros
religiosos e também econômicos desempenhando papel importante
na origem das comunas medievais; a ligação intelectuais-leigos no meio
urbano faz-se em função de critérios econômicos diferentes:
“Uma importante sede episcopal não podia prescindir de certos
serviços, etc. (abastecimento, defesa militar etc.) que determina­
vam um agrupamento de elementos laicos em torno dos religiosos
( . . . ) A própria escolha da sede episcopal é uma indicação de
valor histórico pois subentende uma função organizadora e cen­
tralizadora do local escolhido.”^
Nos dois casos — meio rural e urbano — a Igreja aparece, pois,
como uma das origens da sociedade feudal. Gramsci conclui que esta
origem explica sua preeminência e a preeminência da instância inte-

‘^historicamente'’ o termo *'filôsofos*\ que hoje deveria ser traduzido por *‘iritelectuais’\
Naturalmente, Platão referia-se aos "grandes intelectuais", que eram, ademais, o tipo
intelectual de seu tempo, além de conceder importância ao conteúdo específico da
intelectualidade, que poderia concretamente chamar-se de "religiosidade”: os intelec­
tuais de governo eram aqueles intelectuais determinados mais próximos da religião,
isto é, cuja atividade tinha um caráter de religiosidade, entendida no sentido geral da
época e no sentido especial de Platão — e, por isso, atividade de certo modo "social",
de elevação e educação (e direção intelectual — e, portanto, com função de hegemonia)
da polis. Poder-se-ia talvez, por isso, afirmar que a “utopia" de Platão antecipa o
feudalismo medieval, com a função que neste é própria da Igreja e dos eclesiásticos,
categoria intelectual daquela fase do desenvolvimento histórico-social. A aversão de
Platão aos “artistas” deve ser entendida, portanto, como aversão às atividades espiri­
tuais “individualistas", que tendem ao particular e que são, consequentemente, a-reli-
giosas, a-sociais (I pp. 37-38).
4 I. p. 39.
5 I. p. 38.

57
lectual e sobretudo ideológica — na Europa medieval: o vínculo
orgânico entre a Igreja, casta intelectual, e a estrutura feudal é um
vínculo invertido: a casta intelectual está na origem da classe funda­
mental da qual se tornará o intelectual orgânico.
Em razão de sua função econômica, a Igreja aparece, pois, como
uma categoria social ambígua, ao mesmo tempo classe feudal e casta
intelectual: simples fração da aristocracia feudal no que se refere ao
Alto clero, ou intelectuais orgânicos em sua maioria; neste último caso
a feudalização se limita a uma partilha dos privilégios da classe diri­
gente: assimilação jurídica e “uso dos privilégios estatais ligados à
propriedade.”*
A multifuncionalidade do clero explica, de outro lado, que sua
preeminência não se apoie unicamente em sua função ideológica; fora
de seu papel econômico como fração da aristocracia feudal, a Igreja
controla certo número de “serviços”:
“Os eclesiásticos monopolizaram durante muito tempo (numa
inteira fase histórica que é parcialmente caracterizada, aliás, por
este monopólio) alguns serviços importantes: a ideologia religiosa,
isto é, a filosofia e a ciência da época, através da escola, da
instrução, da moral, da justiça, da beneficência, da assistência
etc.”7 ’

Estes diferentes serviços correspondem a três funções específicas:


^^ uma função ideológica dominante ligada ao monopólio ideo­
lógico da Igreja e que inclui o controle de todos os aparelhos cultu­
rais, principalmente do ensino;
6 I. p. 5.
^ Gramscí cita, em seu ensaio sobre a questão meridional, um exemplo de sobrevi­
vência desta feudalização e de sua ambigüidade: o clero do Mezzogiorno em 1926-
embora devendo ser considerado a priori como função de intelectuais, o clero aparece
de lato em suas relações com a classe camponesa como um apêndice da aristocracia
lundiana:
"No Mezzogiorgno, onde as paróquias e os conventos conservaram ou reconstituíram
importantes propriedades imobiliárias e mobiliárias, o padre se apresenta aos campo­
neses como o administrador de terras com o qual o camponês entra em conflito por
questão de rendas e como um usurário que pede taxas de juros muito elevadas e faz
emrar em ,ogo o elemento religioso para exigir a renda ou praticar a usura."
(CKL p. 152). As conseqüéncias destas relações econômicas clero-campesinato é
enfraquecer consideravelmente a função de enquadramento ideológico própria dos
intelectuais religiosos:
‘‘A partir daí, a confissão não desempenha mais do que uma fraca função diretora
e o camponês meridional, mesmo que seja supersticioso no sentido pagão, não é
elerical ( . . . ) A atitude do camponês para com o padre resume-se no dito popular:
O padre e padre no altar, fora dele é um homem como os outros’ “.
7 I. p. 5.

58
__ uma função repressiva: a justiça, sobretudo durante a Alta
Idade Média;
__ uma função social, dirigida principalmente para as classes
subalternas.
A função social não é mais do que uma função secundária, a
assistência é a conseqüência do controle da Igreja sobre as classes
subalternas, mas ela está ligada, segundo Gramsci, à atividade da
Igreja — aparelho econômico e não da Igreja — organização religiosa:
“Quando se exalta a função da Igreja na Idade Média em favor
das classes inferiores, esquece-se simplesmente uma coisa: que
tal função não estava ligada à Igreja como expoente de um
princípio religioso-moral, mas à Igreja como organização de
interesses econômicos bastante concretos, que devia lutar contra
outras ordens que pretendiam diminuir sua importância. Logo,
esta função foi subordinada e incidental: mas os camponeses não
eram menos espoliados pela Igreja do que pelos senhores
feudais”.®
Quanto à função repressiva, está ligada às complexas relações
entre a Igreja, casta intelectual e o aparelho de Estado feudal, mas é
conseqüência sobretudo da hegemonia ideológica da Igreja.
Esta função repressiva se apresenta sob três formas: uma interna
à casta eclesiástica — direito canônico —, outra que rege as relações
entre a Igreja e os fiéis, mas que ocupa um lugar secundário durante
a Idade Média,’ e sobretudo a que é conseqüência da hegemonia do
direito canônico sobre o direito medieval. É este o aspecto que
interessa a Gramsci.
Gramsci lembra que o direito canônico é a conseqüência da
exclusão do cristianismo da vida social e política do Império romano.
Seu reconhecimento como religião de Estado não suprime esta duali­
dade. Depois das invasões bárbaras, o direito romano não desempenha
mais do que um papel secundário, reduzindo-se na Itália a um direito
pessoal e consuetudinário. O direito canônico se torna, continuando
sempre o direito interno da Igreja, o único direito elaborado oficial.
Portanto, sua hegemonia é a conseqüência do vazio jurídico; mas dois
outros fatores são igualmente determinantes: de um lado, o monopólio
escolar da Igreja: enquanto o direito romano não é ensinado, com exce-

8 Maq. p. 353.
9 Ver supra p. 73.

59
ção de algumas escolas romanistas da Itália, o direito canônico é o
único direito ensinado por numerosas Universidades católicas do
Ocidente e por isso constitui a referência jurídica do Estado feudal. O
segundo fator é político: a importância do direito canônico está ligada
sobretudo às relações políticas entre a Igreja e o Estado feudal; quan­
do a Igreja cai sob o domínio do Estado e sua influência se limita ao
nível ideológico, o direito canônico reduz-se a um direito eclesiástico;
quando predominam as tendências teocráticas o direito canônico tende
a se tornar o direito hegemônico.'®
Mas a função essencial da Igreja continua sendo a função ideoló­
gica: a religião católica é a concepção oficial do mundo da sociedade
feudal e a Igreja, enquanto aparelho ideológico único, encontra-se em
situação privilegiada, na medida em que todas as atividades superes-
truturais devem conformar-se ao quadro ideológico do qual ela tem
o controle e cuja reprodução ela assegura — Igreja, Universidade,
artes etc.
A função da Igreja é facilitada por seu vínculo orgânico com
todas as classes da sociedade: como intelectual orgânica da classe
dirigente, a Igreja controla estreitamente a aristocracia feudal. Mas o
clero também conserva seu caráter inicial de intelectual das classes
subalternas; surge daí uma contradição que se tornará sempre mais
aguda, sublinha Gramsci, entre a base social real do clero — classe
feudal — e os princípios religiosos e morais que ele inculca e que
são os das classes populares.
Este monopólio ideológico e suas conseqüências — domínio
ideológico-político sobre o Estado feudal — devem ser constantemente
defendidos contra as tentativas de grupos intelectuais rivais sustentados
pelo Estado feudal: esta emancipação ideológica-política situa-se, efeti­
vamente, num duplo nível: o do aparelho de Estado feudal que tende
a se libertar da tutela eclesiástica e o dos intelectuais leigos que tendem
a quebrar o monopólio ideológico da Igreja; estes dois movimentos,
aliás complementares, levam a um duplo recuo do aparelho eclesiás­
tico: ao nível das relações Igreja-Estado, a hegemonia política do
Papado desaparece mesmo que as concepções teocráticas permaneçam
oficialmente firmes; doravante ela se reduz aos privilégios políticos
da Igreja em cada país.
Ao nível dos intelectuais, aparecem novas categorias leigas, aber­
tamente favorecidas pelo Estado feudal:

10 Sobre a hegemonia jurídica da Igreja: I. pp. 33-34.

60
“E nasceram, conseqüêntemente, em várias formas (que devem
ser pesquisadas e estudadas concretamente), outras categorias,
favorecidas e ampliadas à medida em que se reforçava o poder
central do monarca, até chegar ao absolutismo. Assim, foi-se
formando a aristocracia togada, com seus próprios privilégios,
bem como uma camada de administradores, etc.; e também cien­
tistas, teóricos, filósofos não eclesiásticos, etc.”"
Na realidade, a Igreja vai recuando nos domínios que não são
diretamente culturais (direito, ciência), limitando-se à sua função de
aparelho ideológico. Este recuo vai combinar-se com uma grave crise
das relações entre aparelho esclesiástico e a massa dos fiéis.

2 . Os movimentos religiosos medievais

A hegemonia da sociedade civil eclesiástica conhece seu apogeu


durante a Alta Idade Média. A partir do século XIII, entra num
período de crise que ela chegará a reabsorver enquanto a classe feudal-
eclesiástica não tiver esgotado sua função histórica; depois, deverá
sofrer o assalto das revoluções burguesas.
Tal é o esquema marxista clássico que serve de referência a
Gramsci. A análise gramsciana das crises internas da Igreja durante a
Baixa Idade Média apresenta, contudo, uma originalidade considerável.
Com efeito, se considerarmos a abordagem da teoria marxista
clássica a esse respeito — principalmente nos escritos de Engels —
e a de Gramsci, ficará evidente que o objetivo da demonstração é
diferente, mesmo que as conclusões sejam com freqüência idênticas.
Para Engels trata-se essencialmente de pesquisar a base social
e econômica de tais movimentos, e de demonstrar como eles anunciam
a explosão da Reforma. Para isso convém, inicialmente, desmascarar
a forma religiosa sob a qual se desenvolvem os conflitos; por causa
do monopólio ideológico da Igreja, as lutas de classe não chegam, na
origem, a assumir outras formas que não as religiosas:
“Todos os ataques dirigidos em geral contra o feudalismo deviam
ser antes de tudo ataques contra a Igreja; todas as doutrinas revo­
lucionárias, sociais e políticas deviam ser, ao mesmo tempo e
principalmente, heresias teológicas. Para poder modificar as con-

n I. p. 6.

61
dições sociais existentes era necessário tirar-lhe o caráter
sagrado.”'^
Uma vez tirada a máscara religiosa, os conflitos entre o feudalis­
mo e a Igreja de uma parte, entre as outras classes de outra, apareciam
claramente.
Gramsci considera, ao contrário, a questão das heresias medievais
em função de dois problemas básicos que ele estuda ao longo dos
Quaderni: a formação do Estado italiano e as relações entre intelec­
tuais e massas.
No que se refere ao problema italiano, Gramsci sublinha que a
Igreja possuía um monopólio intelectual na Itália que não se limitava
à ideologia, mas se estendia igualmente à política: sua obsessão era a
formação de um Estado nacional italiano que teria exaurido o recru­
tamento — essencialmente italiano — do pessoal eclesiástico, e que
poderia fazer concorrência à Igreja. A luta pela formação de um Estado
italiano devia necessariamente levar a um conflito com a Igreja.
Quanto ao problema das relações entre intelectuais religiosos e
massas, considerado sob o ponto de vista da Igreja, Gramsci analisa
os limites de seu controle sobre o povo. O estudo dos movimentos
populares visa assim mais a seus objetivos e métodos de luta do que
à sua composição social.
A problemática gramsciana completa, pois, de maneira original a
análise clássica.

— os diferentes tipos de movimentos religiosos populares:

Distinguem-se dois tipos essenciais, tanto para Engels como para


Gramsci: os movimentos “burgueses” e os movimentos autenticamente
populares.
Os movimentos heréticos burgueses — e portanto urbanos —
constituem uma contestação radical da hegemonia eclesiástica-feudal.
É significativo que Engels e Gramsci sublinhem dois aspectos diferen­
tes desta revolta: para o primeiro, trata-se essencialmente de uma
crítica do papel econômico e político do clero; contentando-se em
pregar um “retorno às fontes” da Igreja, a burguesia reclama uma
“Igreja barata”'^ que suprima todas as ordens e aparatos julgados

12 SLR p. 100.
13 SLR p. 101.

62
inúteis. Se este movimento comunal se apega essencialmente ao feuda­
lismo leigo é porque, desde o século XIII, a burguesia possui sua
autonomia política frente ao feudalismo leigo. Trata-se agora de
estender esta autonomia com relação ao feudalismo eclesiástico.
Analisando essencialmente o movimento comunal no quadro ita­
liano, Gramsci não insiste nos aspectos econômicos do movimento.
Se o século XII vê aparecer a burguesia como nova classe fundamen­
tal, este aparecimento não causa uma subversão profunda — com
exceção dos Países-Baixos — na estrutura política da Europa. O caso
é particularmente evidente na Itália onde a onipotência da Igreja,
unida à impotência de toda burguesia para superar o estágio corpora­
tivo da luta política, leva a um período de reação política. Gramsci
reconhece de boa vontade que tal abalo econômico-político se traduziu
em nível de sociedade civil pelas heresias urbanas. Mas estas heresias
são analisadas antes de tudo em nível cultural: a hegemonia da Igreja
era essencialmente ideológica; ali se encontrava seu ponto mais
vulnerável.
Retomando aqui a análise de historiadores italianos do Renasci­
mento, Gramsci sublinha que o aspecto mais interessante do movi­
mento comunal foi tentar escapar ao domínio ideológico da sociedade
eclesiástica forjando seus próprios instrumentos culturais. É este prin­
cipalmente o caso dos domínios jurídicos e literários.
A volta do direito romano, por exemplo, é uma das conseqüências
do despertar da vida econômica e comercial depois do ano mil, e da
ascensão da burguesia; retorno puramente formal segundo Gramsci, e
que teve como finalidade essencial regulamentar as novas relações
sociais:
“O direito romano degenera rapidamente na casuística mais minu­
ciosa, justamente porque o direito romano “puro” não pode
regulamentar a complexidade das novas relações (políticas e
sociais): na realidade, através da casuística dos glosadores e dos
pós-glosadores, formam-se jurisprudências locais, onde o mais
forte (nobre ou burguês) tem razão, e que constituem o “único
direito” existente.”'^
A consequência desta evolução é a de reduzir o domínio do
direito canônico, que por sua vez sofre profundas modificações.

14 R. pp. 19-20.

63
Em nível nacional, esta ofensiva contra a hegemonia da Igreja
traduz-se por uma luta entre legistas e canonistas.
Atacada em sua primazia jurídica, a Igreja vê-se ameaçada por
outro fenômeno cujo alcance é particularmente sublinhado por Grams-
ci; o desenvolvimento das línguas vulgares em detrimento do latim.
A utilização reservada a camada intelectual — do latim permitia
a Igreja italiana assegurar sua autonomia evitando toda participação
popular. Ora, com o aparecimento de uma língua e de uma literatura
vulgares, às quais adere grande parte dos intelectuais e que se difun­
dem diretamente entre o povo, a Igreja se encontra perigosamente
ameaçada: a civilização comunal entra em concorrência com a socie­
dade civil eclesiástica, tornando-se assim um “fermento de heresia”:
Num certo sentido, pode se chamar de herética a civilização
comunal do século XIII, que se manifesta numa irrupção de
sentimentos e pensamentos refinadíssimos em formas plebéias.
A prova deste perigo será dada pela atitude da própria Igreja
que não cessará de esterilizar esta corrente cultural separando os inte­
lectuais leigos do povo, principalmente no domínio literário, pela
volta ao latim.
Tanto do ponto de vista político como cultural, o movimento
comunal deve pois ser considerado como uma heresia. Aliás, Gramsci
julga que a própria situação da Itália, sede do papado, obrigava o
movimento comunal à luta contra a Igreja:

“A comuna era uma heresia em si mesma pois devia entrar ten-


dencialmente em luta com o papado e tornar-se independente
dele.”'*

Com efeito, o carater herético do movimento comunal italiano


reside mais em seus aspectos propriamente políticos — luta contra o
Papa e culturais língua vulgar contra latim — do que nos seus
aspectos puramente ideológicos, pois a sociedade eclesiástica não era
fundamentalmente questionada.
Mais complexo parecia o caso dos movimentos puramente po­
pulares.
Heresias urbanas e heresias populares não se distinguiam de
forma radical durante a Baixa Idade Media. Todavia, a atitude da
15 I, pp. 44-45.
16 I. p. 46.

64
burguesia urbana e a das classes subalternas apresentava importantes
peculiaridades na Itália. Se o movimento comunal era, antes de tudo,
a reivindicação de uma autonomia política e cultural, o movimento
popular aparecia como a conseqüência de uma crise no próprio seio
da comunidade cristã.
Analisando os movimentos heréticos populares do século XII,
Engels distinguia dois tipos de heresias:
— de um lado, as heresias “reacionárias”, a dos Valdenses por
exemplo, que se opunham à extensão do feudalismo;
__ de outro, as heresias insurrecionais, que retomavam os temas
dos movimentos urbanos, mas acrescentando-lhes reivindicações igua-
litaristas em nome da volta ao cristianismo primitivo. Foi por estes
movimentos, de caráter ao mesmo tempo místico e insurrecional que
que se interessou Engels, pois via neles a prefiguração da revolta
camponesa do século XVI — e principalmente da Guerra dos cam­
poneses.
Não se encontra nos Quaderni a mesma distinção: Gramsci, com
efeito, não se limita apenas aos movimentos heréticos, mas refere-se
a todos os movimentos místicos populares. Mais ainda, opõe os
“inovadores”, que não evitam o choque direto com a Igreja, aos
pacifistas, não-violentos. Gramsci se interessa essencialmente pelo
segundo tipo de movimentos populares, que é o da Itália. Tais movi­
mentos apresentam, julga ele, um caráter ao mesmo tempo progressista
e regressivo:
“Estes movimentos são sintomas positivos ou negativos do novo
mundo que se desenvolve? Certamente se apresentam como
reação à nova sociedade econômica, embora a pretensão de refor­
mar a Igreja seja progressista.”'^
Mas o aspecto realmente positivo reside nas novas relações entre
o povo e uma fração dos intelectuais religiosos que são, lembra
Gramsci, “os intelectuais mais em destaque na época”.
O exemplo mais célebre é o de Francisco de Assis, cuja impor­
tância Gramsci já sublinha em 1915:
“Pensai no que representava na Idade Média o movimento fran-
ciscano frente ao teologismo doutrinário da escolástica. A teologia
era o “pão” dos anjos, não dos pobres mortais; todavia, tinha
invadido todas as manifestações religiosas, mesmo a pregação ao

17 R. p. 17.

65
3
povo. Deus desaparecia por trás dos silogismos, brilhava de longe
ou pesava sobre as consciências como algo de enorme, de esma­
gador: a inteligência tinha matado o sentimento, a reflexão tinha
estrangulado o impulso da fé. Veio São Francisco, alma humilde,
modesta. Espírito simples, soprou nestes muros de papel, de
pergaminho, que haviam afastado os homens de Deus e fez renas­
cer em cada alma a embriaguez divina.”'®
Esta ruptura entre Deus e os homens, entre a hierarquia eclesiás­
tica e a massa dos fiéis é uma das razões essenciais dos movimentos
religiosos populares. É a conseqiiência, segundo Gramsci, da
“politização da Igreja e da filosofia escolástica que foi sua
expressão.””
Esta politização da Igreja é, de fato, o estreitamento dos vínculos
com o feudalismo contra a ascensão da burguesia e o perigo que isso
trazia para o bloco ideológico religioso.
Para além do tema da volta às origens — em si regressivo — , o
movimento popular aparecia como uma revolta contra a hierarquia
eclesiástica. Mas a fraqueza das forças populares frente ao feudalismo
e à Igreja limitam as possibilidades desta revolta, que assume assim
— principalmente na Itália —, o aspecto de um movimento de resis­
tência não-violento bastante próximo do cristianismo primitivo:
“Também os movimentos religiosos populares da Idade Média
entram na mesma relação de impotência política das grandes
massas frente a opressores pouco numerosos, mas aguerridos e
centralizados: os “humilhados e ofendidos” se entrincheiram no
pacifismo evangélico, na “exposição” nua de sua “natureza huma­
na” desconhecida e espezinhada — apesar das afirmações de
fraternidade em Deus Pai e de igualdade, etc. ”2°
Este pacifismo místico explica o sucesso que tiveram os pregado­
res como Francisco de Assis: nada de “especulação teológica”, mas
uma tentativa de retorno concreto ao cristianismo primitivo, nada de
revolta contra a hierarquia, mas uma submissão passiva a ela.
Estes movimentos místicos não-violentos são, para Gramsci, mais
representativos do estado de espírito real das massas populares do que

18 SG p. 10.
19 CDH nota p. 19.
20 R. p. 47.

66

i
as insurreições verdadeiramente heréticas. Nisto ele parece mais realista
que Engels que tende a superestimar a importância dos movimentos
heréticos da Baixa Idade Média. Deve-se acrescentar também que
Engels acentua mais o aspecto estrutural dos movimentos: o caráter
“progressista” ou “reacionário” é função do papel econômico do grupo
social considerado. Gramsci é mais flexível em sua análise: o essencial
desta vez é a natureza das relações entre a Igreja e as massas, entre
os intelectuais encarregados de difundir a ideologia religiosa-feudal e
as classes subalternas, que são controladas por estes intelectuais. Se
houver ruptura entre estes dois grupos, de modo que uma fração dos
intelectuais se junte às massas, o movimento será progressista, mesmo
que não corresponda diretamente a uma evolução no campo da econo­
mia. No caso do século XII, o movimento comunal levou a conflitos
que se traduziram numa ruptura entre intelectuais religiosos e massas.
A nível da burguesia, protagonista essencial em nível econômico e
ideológico, tratou-se de um choque político e cultural. A nível das
classes subalternas, o choque assumiu a forma clássica dos movimentos
não violentos. Mas será que isso significa que estes movimentos devem
ser considerados regressivos? Gramsci julga que não, afirmando que as
classes subalternas agiram da única maneira que a relação das forças
políticas e ideológicas lhes permitiam.

3 . A reação da Igreja

Frente à sua crise de hegemonia, a Igreja vai reagir remanejando


a sociedade civil. Analisando os efeitos de tais crises nos Quaderni,
Gramsci nota que uma classe dirigente pode reagir de várias maneiras
para reassumir o controle das classes subalternas: pode limitar-se a
um remanejamento da sociedade civil ou fazer um apelo às forças da
sociedade política. A escolha efetiva depende da profundidade da
crise e, por isso, do grau de ruptura entre intelectuais e massas.^'
Assim acontece com a reação do aparelho eclesiástico frente aos
acontecimentos religiosos populares. Quando a ruptura foi total e assu­
miu a forma de luta política ou ideológica (heresia), a Igreja com fre-
qüência utilizou o braço secular do Estado ou a Inquisição, tapando
pela força as brechas de sua hegemonia.^^

21 Sobre a crise orgânica: H. Portelli op. cit., pp. 104-121.


22 Durante a Idade Média, o recurso à simples coação é praticamente inexis­
tente porque a hegemonia da Igreja ainda é suficientemente sólida, de modo que o
recurso à “política” não passa de um complemento da retomada ideológica.

67
r
Em outros casos, e principalmente quando a ruptura entre as
massas e a hierarquia não afetava a base ideológica da hegemonia, a
Igreja se contentou em remanejar a sociedade civil. O método utili­
zado foi o que Gramsci considera como a tatica favorita da Igreja e
que depois ela aplicará constantemente — por exemplo, frente ao
modernismo — : recuperar o movimento canalizando-o para estruturas
oficiais, integrando ou eliminando os líderes.
Durante a Baixa Idade Média, a Igreja vai cicatrizar as rupturas
suscitando movimentos de massa enquadrados em ordens novas, as
ordens mendicantes: ’
“No passado, as rupturas na comunidade dos fiéis eram aplaina­
das por poderosos movimentos de massa, que eram reabsorvidos
na formação de novas ordens religiosas em torno de fortes per-
sonalidades.”23

Um exemplo particularmente feliz de “recuperação” é o do fran-


ciscanismo: quando Francisco de Assis prega a volta às origens do
cristianismo, é considerado como
o iniciador de uma nova religião, provocando enorme entusias­
mo, como nos primeiros séculos do cristianismo.”24
Para prevenir todo desvio do franciscanismo, a hierarquia vai
utilizar Francisco de Assis para enquadrar o movimento de maneira
oficial;
“a Igreja não o perseguiu oficialmente, porque isto teria anteci­
pado de dois séculos a reforma, mas o imunizou, dispersou seus
discípulos e reduziu a nova religião a uma simples ordem monás­
tica a seu serviço.”25
Com tais métodos, a Igreja recupera assim seu controle sobre as
massas, decapitando a direção ideológica destas — direção que então
só podia ser obra de intelectuais religiosos; o franciscanismo, neutrali­
zado, desaparecerá como força social real:
“Francisco foi um cometa no firmamento católico. ( . . . ) Seu
movimento foi popular enquanto viveu a recordação do fun-
dador”.25

23 cfr. CDH, nota I, p. 214.


24 CC p. 153.
25 CC pp. 153-154.
26 CC p. 154.

68
Nem todos estes restabelecimentos da ordem ideológica tiveram
a mesma eficácia a longo prazo; Gramsci vê a razão disso no contato
permanente dos intelectuais religiosos subalternos com o povo. No
meio destes intelectuais encarregados de difundir a ideologia oficial
entre as classes populares, existe sempre a tendência a se solidarizar
mais com as massas do que com a hierarquia eclesiástica. Tal ten­
dência concretiza-se em caso de crise de hegemonia e de ruína da
classe dirigente.
Assim aconteceu com certas ordens monásticas que conservaram
em si mesmas os fermentos da reforma ideológica que deviam com­
bater nas massas: assim os Dominicanos dentre os quais saiu Sayona-
rola, ou os Agostinianos de onde surgiram a Reforma e o jansenismo.
Mas durante a Baixa Idade Média, a Igreja ainda é bastante pode­
rosa para conservar solidamente o controle ideológico da sociedade.
A partir do Renascimento, o conflito vai tornar-se radical e não
se tratará mais de uma simples ruptura entre hierarquia e fiéis, mas
antes de uma crise orgânica do bloco feudal-eclesiástico.

69
CAPITULO III

A CRISE DO BLOCO CATÓLICO-FEUDAL

Caracteres gerais das heresias — Reforma e Renascimento — A


Reforma protestante — a Contra-Reforma — A Revolução
francesa.

1 . Caracteres gerais das heresias

Nos Quaderni não se encontra uma reflexão de conjunto sobre


as revoluções burguesas, análoga à de Engels, por exemplo. Apesar
disso, as poucas notas esparsas que lhe são consagradas merecem
uma análise aprofundada. O ponto de vista gramsciano sobre as
heresias burguesas situa-se, efetivamente, no prolongamento direto dos
estudos de Engels, mas mesmo assim apresenta uma originalidade
real, devida à vontade de sublinhar o problema das relações intelec-
tuais-massas.

— as revoluções burguesas:

Gramsci, como Engels, sublinha a unidade social da Reforma


luterana, da revolução inglesa — e do calvinismo — e da Revolução
francesa: trata-se das “três grandes revoluções da burguesia”.’ Nas
três revoluções, a ideologia não é idêntica mas apresenta um caráter
comum: a crítica revolucionária do catolicismo feudal do ponto de
vista burguês; na Reforma.
“Lutero pôs a máscara do apóstolo Paulo”.^
Durante a revolução inglesa,

1 SLR p. 293.
2 Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Ed. sociales, 1968, p. 15.

71
“Cromwell e o povo inglês haviam tirado do Antigo Testamento
a linguagem, as paixões e as ilusões necessárias para a sua revo­
lução burguesa”.^
Ao passo que com a Revolução francesa,
“em lugar de protestantes, foram livres pensadores que tomaram
assento nas assembléias nacionais.
Em cada etapa, a burguesia se beneficia da herança ideológica
da revolução precedente e estas três etapas marcam uma evolução
decisiva para a independência religiosa — e portanto ideológica —
com relação ao mundo católico feudal.
Encontra-se a mesma unidade nas análises dos Quaderni, mas
sob um ângulo diferente: nos escritos de Marx e de Engels, a unidade
das três revoluções é devida à sua base social comum — a burguesia
— e à sua estratégia comum frente às classes subalternas. Para
Gramsci, a origem burguesa é freqüentemente subentendida. A preo­
cupação essencial de analisar as relações entre intelectuais e massas
nesta época levou-o a estudar estas crises situando-se do ponto de
vista da Igreja. Enquanto Engels vê nestas revoluções uma marcha
para a independência ideológica da burguesia, Gramsci sublinha que
se trata igualmente da ruptura do vínculo ideológico entre intelectuais
religiosos e povo em proveito de um novo “bloco nacional-popular”
dirigido por uma nova camada de intelectuais. Isso o leva, como
veremos a propósito da Revolução francesa, a considerar a questão
da mesma maneira que os católicos — evidentemente, analisando e
tirando conclusões totalmente opostas —, ou seja, a considerar o
conjunto destas revoluções como outras tantas heresias religiosas.

— Natureza das heresias:

Analisando os movimentos religiosos da Idade Média, Gramsci


só tinha utilizado residualmente o termo heresia. Convém analisá-lo
agora.
Para Engels, a heresia é a expressão ideológica da ruptura de
uma classe subalterna com a classe dirigente, quando a ideologia
apresenta o aspecto particular de uma religião. São os mesmos carac-

J ibid., p. 17.
4 SLR p. 260.

72
teres que Gramsci sublinha. Todavia, este procura aprofundar esta
análise; com efeito, distingue dois grandes graus nas heresias; estas,
além de sua diversidade aparente, podem reduzir-se a duas causas
principais:
“A grande heresia sobre a qual se fundaram as heresias propria­
mente ditas é o “sentimento nacional” contra o cosmopolitismo
teocrático. Revela-se, posteriormente, o motivo do retorno às
“origens”, tal como no cristianismo, à pureza dos primeiros textos
religiosos contraposta à corrupção da hierarquia oficial.”^

Esta definição merece que nos detenhamos nela. Aparece nos


Quaderni a propósito de notas consagradas ao Islamismo contempo­
râneo e permite a Gramsci sublinhar os aspectos comuns às crises
que afetam as religiões universalistas.* Mas marca sobretudo a disposi­
ção de Gramsci em analisar as heresias como a manifestação da
ruptura entre uma elite intelectual e as massas.
Estes dois tipos de heresia cobrem realmente duas etapas da crise
do bloco ideológico dominante: a “volta às origens” representa o grau
inferior da ruptura, as massas se revoltam contra os intelectuais em
nome da ideologia. Gramsci sublinha que tal tipo de heresia manifes­
tou-se principalmente no fim do feudalismo nos países cristãos e
muçulmanos. Esta ruptura é efetivamente a façanha dos grupos subal­
ternos. Todavia, ela não se torna heresia duradoura a não ser que se
combine com a afirmação de um “sentimento nacional”. Foi esta
ausência de caráter nacional a causa do fracasso do movimento comu­
nal. Mas a partir do aparecimento do “sentimento nacional”, o tema
da volta às origens vai fundir-se com ele (Reforma luterana. Revolu­
ção inglesa); a seguir vai cedendo a ponto de desaparecer a partir da
Revolução, tornando-se o nacionalismo a última forma de heresia
religiosa.
A diferença entre o “retorno às origens” e o “sentimento nacio­
nal” é radical. No primeiro caso, a luta situa-se no quadro ideológico
e intelectual tradicional: as classes subalternas se limitam a pedir um
melhor funcionamento do sistema hegemônico em vigor. No segundo
caso, aparece uma nova ideologia e, sobretudo uma elite intelectual,
que realiza a unidade intelectuais-massas graças à edificação da

5 I. p. 99.
6 I. p. 965.

73
r
“nação”/ Cria-se um “bloco nacional-popular” fundado numa “refor­
ma intelectual e moral”.
Portanto, a heresia apresenta, desde a Reforma, um tríplice
aspecto: 1) ela é obra de intelectuais nacionais em oposição aos
intelectuais “cosmopolitas”; 2) realiza um “bloco nacional-popular”;
3) difunde uma “reforma intelectual e moral”.
Um dos traços essenciais da civilização feudal-católica residia em
seu cosmopolitismo Gramsci sublinha como a burguesia italiana
tropeçou neste obstáculo tentando criar seus próprios intelectuais. As
burguesias européias puderam afirmar-se politicamente e também
ideologicamente nacionalizando a Igreja — galicanismo, uso da língua
vulgar — depois criando seus próprios intelectuais orgânicos.
O “bloco nacional-popular”’ é a antítese do cosmopolitismo
intelectual; marca a unidade orgânica entre intelectuais e massas. No
vocabulário gramsciano, o bloco nacional-popular significa, efetiva­
mente, que a nova classe dirigente, por intermédio de seus intelectuais
estende sua hegemonia às classes subalternas: superando o nível
econômico-corporativo para realizar a hegemonia, a burguesia consegue
tornar-se ‘‘classe nacional”; seus intelectuais, inserindo o povo na vida
política e cultural, realizam a nação. Portanto, esta aparece como o
bloco dos diferentes grupos sociais sob a direção de uma classe nacio­
nal cujos intelectuais, pela elaboração de uma cultura popular, realizam
a hegemonia.

7 o tema do “retorno às origens” pode ser invocado como justificação de uma


heresia “nacional”, I p. 99.
8 O termo “cosmopolitismo” é usado em sentidos muito diferentes nos Quaderni:
— pode significar a ausência de caráter nacional; este é o caso da Igreja;
— é igualmente utilizado para traduzir a hegemonia internacional dos intelectuais
nacionais: assim a hegemonia cultural da França do século XVI ao século XIX- cfr.
P. p. 215.
9 O termo “nacional-popular” aparece frequentemente nos Quaderni. Gramsci
explicou a razão desta união:
“Na Itália, o termo “nacional" tem um significado muito restrito ideologicamente e,
de qualquer modo não coincide com "popular” já que os intelectuais estão afastados
do povo, isto é, da “nação" estando ligados, ao contrário, a uma tradição de casta
que famais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional vindo
de baixo.” (LVN pp. 105-106).
Como nota G. Nardone, os termos “nação”, “bloco nacional-popular”, “hege­
monia” dependem de uma mesma problemática: caracterizam a fase popular, hege­
mônica, da tomada do poder pela nova classe dirigente (sobre o conceito de “nacio­
nal-popular” remetemos à notável análise de G. Nardone: ll pensiero di Gramsci,
Bari, De Donato, 1971, pp. 95-112). ’

74
o aspecto essencial da nação reside, pois, na unidade cultural
dos diferentes grupos sociais. É assim que Gramsci analisa o aspecto
nacional da Reforma;
r
“A reforma luterana e o calvinismo suscitaram um vasto movi­
mento popular nacional no qual se difundiram, mas tão somente
em épocas posteriores criaram uma cultura superior.”'®
O caráter essencialmente ideológico da Reforma explica que
Gramsci a defina como uma “reforma intelectual e moral”, repetindo
uma velha expressão herdada de Renan e Sorel. Sem analisar aqui o
papel deste conceito na análise gramsciana," convém observar desde
agora que Gramsci considera nos Quaderni, prolongando suas refle­
xões da juventude, as Reformas e o marxismo como concepções do
mundo que têm por finalidade reinserir o povo na vida política e
cultural, desmontando as antigas ideologias e elevando o nível cultural.
Isso explica que Gramsci considere três tip>os de Reformas: as
luteranas, a calvinista e a “liberal-democrática”, ou seja, a Revolução
francesa.

2 . Reforma e Renascimento

A Reforma, sob seus diferentes aspectos nacionais, atingiu quase


todos os países da Europa. Ora, a Itália permanece fora deste
movimento, embora tivesse conhecido o movimento comunal mais
florescente. Gramsci vê a razão essencial desta esterilidade no fenôme­
no histórico ambíguo que é o Renascimento.
O Renascimento é um fenômeno especificamente italiano. Com
efeito, ele começa, acredita Gramsci, com o movimento comunal que
é seu aspecto “espontâneo”. Com o desenvolvimento do Humanismo,
ele se reduz ao nível cultural, sob o controle da sociedade civil
eclesiástica.
Socialmente, o aspecto essencial do Renascimento consiste no
aparecimento de uma nova camada de intelectuais italianos, correspon­
dendo à ascensão da burguesia expressa pelo movimento comunal, e
que apresenta um caráter europeu. Este caráter europeu vai acentuar-se
em consequência da atitude eclesiástica que gera uma divisão no
interior desta categoria intelectual:

10 CDH p. 105.
11 Ver supra quarta parte.

75
Um ramo deles exerce na Itália uma função cosmopolita, ligada
ao Papa e sem caráter reacionário; o outro se forma no estran­
geiro, com os emigrados políticos e religiosos e exerce uma função
cosmopolita progressiva nos diversos países em que se estabelece
ou participa da organização dos Estados modernos como elemento’
técnico na milícia, na política, na ciência etc. . , ” ’2
Como explicar o controle sobre os intelectuais por parte do
papado? Gramsci apresenta duas razões essenciais; a primeira, decisiva,
é devida à regressão econômica e social da Itália no século XV, regres­
são marcada por um enfraquecimento da burguesia: '
“Passagem aos principados e às senhorias, perda da iniciativa
burguesa e transformação dos burgueses em proprietários territo­
riais. O Humanismo foi um evento reacionário na cultura porque
toda a sociedade italiana estava se tornando reacionária.”'*
Visto que a estrutura econômica e social não evolui, a superestru-
tura política e ideológica que lhe corresponde não pode progredir.
Aliás, tal evolução tem repercussões no nível ideológico: a cultura
humanista é profundamente antieconômica e defende as concepções da
Igreja, e portanto da aristocracia fundiária.''*
A segunda razão do fracasso da burguesia reside no poder da
lêf^j^ Italia, que utiliza sistematicamente os intelectuais italianos
para o recrutamento do pessoal eclesiástico: no momento em que a
burguesia européia cria seus próprios intelectuais nacionais, a Igreja
seca as fontes de tal evolução monopolizando os intelectuais italianos
12 R. p. 15.
13 I. p. 46.
14 "Se é verdade que nenhum Estado não pode deixar de atravessar uma fase
de primitivismo econômico-corporativo, disso se deduz que o conteúdo da hegemonia
política do novo grupo social que fundou o novo tipo de Estado deve ser predomi
nantemente de ordem econômica: trata-se de reorganizar a estrutura e as relações
reais entre os homens e o mundo econômico ou da produção. Os elementos de
superestrutura só podem ser escassos e o seu caráter será de previsão e de luta mas
com elementos "de plano" ainda escassos: o plano cultural será principalmente nega­
tivo, de crítica do passado, tenderá a fazer esquecer e a destruir. As linhas da
construção serão ainda "grandes linhas”, esboços, que poderiam (e deveriam) ser
modificados a cada momento, para que sejam coerentes com a nova estrutura em
formação. Isto não se verifica no período das comunas; a cultura, que permanece
em função da Igreja, é exatamente de caráter anti-econômico (da economia capitalista
nascente), não está orientada para dar a hegemonia à nova classe, mas, ao contrário
para impedir que esta classe a conquiste: por isso, o Humanismo e o Renascimento
são reacionários, pois assinalam a derrota da nova classe, a negação do mundo econô­
mico que lhe é próprio, etc." (Maq. p. 150).

76
por sua própria conta, dando à sua organização este caráter “cosmo-
pohta-italiano” que Gramsci denuncia e que, do Renascimento ao
Kisorgimenío, impedirá a formação de uma sólida inteligência nacional
e leiga.
Esta italianização da Igreja era inevitável dado que o recruta­
mento internacional do clero estava esgotado e que os Estados nacio­
nais subordinavam a si o clero — fenômeno galicano:
Por que, num certo ponto, a maioria dos cardeais foi composta
por italianos e os papas foram sempre escolhidos entre italianos?
( . . . ) Isso se deveu, por certo, a necessidades internas de defesa
e de desenvolvimento da Igreja e da sua independência diante das
grandes monarquias européias.”’®
A origem progressista e o resultado conservador do Renascimento
explicam seu caráter ambíguo: em nível político, a camada social
dominante não é mais a burguesia urbana, agora
h-ejeitada em suas lojas e em suas manufaturas em decadência”.’®
mas uma classe social parasitária:
Politicamente domina uma aristocracia em grande parte de
arnvistas, reunida nas cortes das senhorias e protegida por compa­
nhias de aventureiros: ela produz a cultura do século XVI e
ajuda os partidos, mas é politicamente limitada e acaba sob
domínio estrangeiro.”'^
Este caráter socialmente ambíguo do Renascimento explica a
produção cultural e as idéias políticas da época. Ali também se
chocam duas correntes, uma progressista, outra regressiva, e chegam
a este esplêndido parasitismo” que é o Renascimento, ou seja,
“um fenômeno não mais nacional e político, mas essencialmente
senão exclusivamente, cultural; o fenômeno de uma aristocracia’
separada do povo-nação.”'®
A aquisição cultural e política do movimento comunal está restrita
a uma elite; assim, a nível cultural a produção artística se torna
artificial, porque privada de sua origem social real. O mesmo acontece
15 I. p. 48.
16 R. p. 25.
17 R. p. 25.
18 R. p. 24.

77
a nível político, principalmente na apreciação do papel da Igreja:
entre a luta política das Comunas e o retorno ao primado do Papa,
um compromisso é sugerido:
“Na concepção política do renascimento, a religião era o consenso
e a Igreja era a sociedade civil, o aparelho de hegemonia do
grupo dirigente, que não tinha um aparelho próprio, isto é, não
tinha uma organização cultural e intelectual própria, mas sentia
como tal a organização eclesiástica universal; não se está fora da
Idade Média, a não ser pelo fato de se conceber abertamente a
religião como “instrumentum regni”.'’
O caráter essencial do Renascimento consiste, pois, na ruptura
entre os intelectuais e o povo, sob a ação conjugada da regressão
econômica e da Igreja. O Humanismo é a difusão cultural, mas
somente cultural, do movimento comunal,^® em benefício apenas de
uma aristocracia parasitária controlada pela Igreja. Mas na medida
em que o Humanismo prolonga ideologicamente o movimento comu­
nal, ele não é inteiramente negativo, e se assemelha, segundo Gramsci,
a uma restauração:
“O Humanismo teve o caráter de uma restauração, mas como
toda restauração, assimilou e desenvolveu melhor do que a classe
revolucionária, que ele havia sufocado politicamente, os princípios
ideológicos da classe vencida, que não soube sair dos limites
corporativos e criar todas as superestruturas de uma sociedade
integral. O certo é que esta elaboração “construída sobre o vento”
permaneceu como patrimônio de uma casta intelectual sem contato
com o povo, ” 21
A conseqüência de tal fenômeno é chegar a uma contradição
entre a sociedade política e a sociedade civil: à profissão de fé hu­
manista corresponde uma atitude política conforme aos interesses
da Igreja. Tal equilíbrio vai rapidamente ceder o lugar a um retor­
no ao statu quo, prolongando-se o Humanismo sem abalo na Contra-
Reforma:
“Quando na Itália o movimento reacionário, do qual o Humanis­
mo havia sido uma premissa necessária, se desenvolveu na

19 Maq. p. 138.
20 Sobre a passagem da cultura medieval ao Humanismo: R. p. 24.
21 R. p. 27.

78
Contra-Reforma, a nova ideologia foi sufocada e os humanistas
(salvo poucas exceções) abjuraram diante das fogueiras.”^^
Portanto, o Renascimento, como sublinha Gramsci, é um fenôme­
no reacionário na medida em que os intelectuais, separados do povo,
tiveram que ceder progressivamente diante da Igreja. A Itália passará
do movimento comunal ao Humanismo e do Humanismo à Contra-
Reforma segundo uma evolução lógica, sem verdadeiramente conhecer
poderosos movimentos revolucionários como o resto da Europa.
A nova cultura européia, nascida na Itália, se expandirá pela
Europa e não será reintroduzida na Itália a não ser no século XIX:
“O conteúdo ideológico do Renascimento desenvolveu-se fora da
Itália, na Alemanha e na França, sob formas políticas e filosófi­
cas: mas o Estado moderno e a filosofia moderna foram importa­
dos da Itália porque nossos intelectuais eram não-nacionais e
cosmopolitas como na Idade Média, de maneira diferente, mas
segundo as mesmas relações gerais.

A Reforma e a Itália:

Se as características do Renascimento explicam de modo amplo


a ausência de Reforma na Itália, Gramsci, contudo, sublinha certas
tentativas parciais de reação a esta restauração, sob a forma
“do savonarolismo com suas “sedições das vaidades”, do banditis­
mo popular' como o dos reis Marcone na Calábria e outros
movimentos que seria interessante sublinhar e analisar ao menos
como sintomas indiretos: mesmo o pensamento de Maquiavel é
uma reação ao Renascimento, uma chamada para a necessidade
política e nacional de se aproximar do povo, tal como o fizeram
as monarquias absolutas da França e da Espanha; do mesmo
modo a popularidade de Valentino na Romanha é um sintoma
disto, quando reprime os pequenos senhores e os condottieri.”^*
Estas reações se agrupam finalmente em dois tipos de atitudes:
as que levantam o problema da supressão do domínio feudal-eclesiás-
tico e as que não chegam a se libertar dele.

22 R. p. 27.
23 R. pp. 27-28.
24 R. p. 24.

79
Assim a propósito dos intelectuais: Gramsci considera menos sua
produção ideológica do que sua função política real.
Giordano Bruno parece ideologicamente mais moderno do que
Savonarola, mas é este último que Gramsci considera mais próximo
da Reforma: o critério decisivo é o vínculo entre intelectual e massa;
ora, deste ponto de vista, G. Bruno é um intelectual cosmopolita,
não nacional e

“os dramas individuais de G. Bruno, etc. . . são os do pensa­


mento europeu e não italiano.”^®
Pelo contrário, se a luta de Savonarola parece situar-se no quadro
ideológico existente, a Gramsci na verdade parece mais importante
“sua luta contra o poder eclesiástico, luta que no fundo tendia a
tornar Florença independente do sistema feudal-eclesiástico. Para
Savonarola faz-se a habitual confusão entre a ideologia que se
funda nos mitos do passado e a função real que deve abstrair
estes mitos.”2*
O único intelectual que realmente compreendeu a necessidade de
uma luta contra o poder eclesiástico a fim de criar um estado nacional
italiano foi Maquiavel: foi o único, sublinha Gramsci, a levantar o
problema político e a propor a solução: na Itália, a criação de um
Estado nacional passa pela derrubada da autoridade do papa e a
subordinação da religião:

“Maquiavel sentia que Estado não era a Comuna, a República


ou a Possessão Comunal, porque lhes faltava, além de um vasto
território, uma população capaz de ser a base de uma força militar
que permitisse uma política internacional autônoma: ele sentia
que na Itália, com o Papado, perdurava uma situação de não-Es-
tado e que ela perduraria enquanto a religião não se tomasse
“política” do Estado e deixasse de ser política do Papa para
impedir a formação de Estados fortes na Itália, intervindo na
vida interna dos povos por ele não dominados temporalmente,
em defesa de interesses que não eram os dos Estados e que por
isso eram perturbadores e desagregadores.”^^

25 R. p. 34.
26 R. p. 35.
27 Maq. pp. 98-99.

80
Mas a importância de Maquiavel não se limita à compreensão
da luta política; seu mérito essencial está em ter chamado à construção
de um verdadeiro Estado nacional, isto é, a uma reinserção do povo
na vida pública. Deste ponto de vista, Gramsci considera o Príncipe
como um verdadeiro apelo à construção de um Estado nacional-popu-
lar onde Maquiavel se faz porta-voz das aspirações populares;
“Em todo o livro, Maquiavel mostra como deve ser o Príncipe
para levar um povo à fundação do novo Estado: ( . . . ) Na conclu­
são, o próprio Maquiavel faz-se povo, confunde-se com o povo,
mas não com um povo “genericamente” entendido, mas com o
povo que Maquiavel convenceu com o seu desenvolvimento ante­
rior, do qual ele se torna e se sente consciência e expressão, com
o qual ele sente-se identificado: parece que todo o trabalho
“lógico” não passa de uma reflexão do povo, um raciocínio
interior que se manifesta na consciência popular e acaba num
grito apaixonado, imediato.”^®
Nisto Maquiavel é o exemplo do novo intelectual da Reforma:
ele parece mais realista do que um Savanarola, e por isso política e
ideologicamente mais consciente da situação italiana. Apesar disso
Maquiavel não é, a exemplo de Savonarola, um verdadeiro intelectual
orgânico; não tem influência prática:
“O limite e a estreiteza de Maquiavel consistem apenas no fato
de ter sido ele uma “pessoa privada”, um escritor, e não o chefe
de um Estado ou de um exército, que também é apenas uma
pessoa, mas tendo à sua disposição as forças de um Estado ou
de um exército, e não somente exércitos de palavras. Nem por
isso se pode dizer que Maquiavel tenha sido um “profeta desar­
mado”: seria um gracejo muito barato. Maquiavel jamais diz que
pensa ou se propõe ele mesmo a mudar a realidade; o que faz é
mostrar concretamente como deveriam atuar as forças históricas
para se tornarem eficientes.”^’
É por isso que Gramsci conclui que ao analisar bem a política da
Itália, Maquiavel não é mais do que

28 Maq. p. 4.
29 Maq. p. 43.

81
“o teórico daquilo que acontece fora da Itália, e não dos aconte­
cimentos italianos.”^®

3 . Reforma e Contra-reforma

Enquanto na Itália a burguesia não soube forjar os instrumentos


políticos e ideológicos que teriam permitido sua hegemonia, o protes­
tantismo vai ser na Europa um de seus instrumentos.
Nos Quaderni, Gramsci não analisa longamente este processo.
Ele retém dois aspectos: o primeiro está ligado à dialética intelectuais-
massas a partir da Reforma luterana.
O Renascimento apareceu como um movimento cultural superior,
mas aristocrático, sem o menor prolongamento popular; a Reforma
consiste, pelo contrário, para além do êxito político diferente em cada
país, num movimento cultural de massa, um movimento “popular-na-
cional”. O Renascimento era obra de intelectuais cosmopolitas, não-
nacionais; a Reforma é realização do povo:
“O portador da Reforma, por isto foi precisamente o povo alemão
em seu conjunto, como povo indistinto, não os intelectuais.”^'
A Reforma deve ser considerada como um fenômeno burguês
ou como um fenômeno popular? É conhecida a análise de Engels que
distinguia neste movimento dois aspectos — burguês e popular __
com freqüencia antagônicos.^^ Também neste caso, Gramsci não
levanta a questão da natureza real do movimento, mas distingue duas
fases em seu desenvolvimento: num primeiro tempo, a Reforma é
um verdadeiro movimento popular, mesmo em nível cultural, pois
não havia intelectuais tradicionais. Gramsci com freqüência cita a
atitude de Erasmo e seu juízo sobre Lutero — “onde Lutero aparece,
morre a cultura”. A recusa dos intelectuais em optar pela Reforma
não é mais do que a recusa aristocrática — análoga à dos intelectuais
italianos — de toda participação no movimento popular:
“O homem do Renascimento não compreendia que um grande
movimento de renovação moral e intelectual, na medida em que
se encarnava nas grandes massas populares, eomo ocorreu com
30 R. p.l3.
31 CDH p. 108.
32 cfr. A guerra dos camponeses, SLR pp. 104-120.

82
o Luteranismo, assumisse imediatamente formas grosseiras ou
mesmo supersticiosas, e que isto era inevitável pelo fato de que
o próprio povo alemão, e não uma pequena aristocracia de
grandes intelectuais, era o porta-estandarte da Reforma.
A partir daí, este fraco movimento cultural é ao mesmo tempo
a causa e a conseqüência da atitude dos intelectuais tradicionais:
“Esta deserção dos intelectuais em face do inimigo explica, preci­
samente, a “esterilidade” da Reforma na esfera imediata da alta
cultura, até o momento em que não se seleciona lentamente, no
interior da massa que permaneceu fiel, um novo grupo de intelec­
tuais que culmina na filosofia clássica.”^'*
Se 0 aparecimento de uma nova cultura da qual o protestantismo
não é mais do que o estágio primitivo é a conseqüência, a longo prazo,
da Reforma, a conseqüência imediata é de ter introduzido o povo na
vida política e cultural, de ter transformado as revoluções burguesas
em revoluções nacionais;
“A fase de desenvolvimento popular permitiu aos países protes­
tantes a resistência tenaz e vitoriosa contra a cruzada dos exércitos
católicos, nascendo assim a nação germânica como uma das mais
vigorosas da Europa moderna.”^®
Se o luteranismo permitiu a Gramsci analisar as relações intelec-
tuais-massas na Reforma, o calvinismo vai permitir-lhe sublinhar a
função motora das ideologias. O que interessa a Gramsci não é a
elaboração da doutrina calvinista a partir do estado de desenvolvi-

33 CC p. 178.
34 CDH p. 108.
Pode-se observar que Marx e Engels não consideram a Reforma e principalmente
a obra de Lutero como uma cultura inferior. Engels fala do “gigante do pensamento,
da paixão e do caráter, gigante de universalidade e de erudição" (SLR p. 153). Quanto
ao caráter popular da Reforma, Engels sublinha que é obra de Münzer e não de
■Lutero e a tese central da Guerra dos camponeses é que Lutero e a burguesia prefe­
riam aliar-se à nobreza contra a classe camponesa. Por isso parece que as visões de
Gramsci e a de Engels são bastante contraditórias na análise do papel do “povo” :
para Gramsci, a Reforma é um movimento popular sem intelectuais que se enriquece
progressivamente; para Engels, é a conjunção de uma revolução burguesa com seus
intelectuais (Lutero, Calvino) e de uma revolta camponesa que possui seus próprios
intelectuais (Münzer), sendo esta afastada pela força ao preço de uma volta parcial
à ordem antiga.
35 CDH p. 105.

83
f
mento da estrutura sócio-econômica capitalista, mas “a passagem desta
concepção do mundo à norma prática de conduta que lhe é confor-
me.”3^ Gramsci apoia-se principalmente nos trabalhos de Max Weber^^
para considerar que o calvinismo é um modelo perfeito desta passagem:
“A forma clássica destas passagens da concepção do mundo à
norma prática de conduta, parece-me, é aquela pela qual, da
predestinação calvinista, surge um dos maiores impulsos à iniciati­
va prática que já ocorreram na história mundial.”^®
Retomando a análise de Max Weber, Gramsci nota que a concep­
ção calvinista da predestinação e da graça permitiu esta atitude pois
ela repousa num determinismo mecânico. Como era o caso do cristia­
nismo primitivo — papel da providência — , o determinismo protes­
tante foi “uma forma determinada de racionalidade do mundo e da
vida, e fornecendo os quadros gerais para a atividade prática real.”®’
Todavia, o empréstimo de Max Weber é limitado: enquanto este
considera que o capitalismo é o produto, ao mesmo tempo, da evolução
estrutural e da superestrutura (ética protestante), Gramsci julga que o
processo é mais complexo: saído da estrutura sócio-econômica como,
aliás, toda superestrutura ideológica, o calvinismo, tornando-se norma
da conduta prática, reage por sua vez sobre a estrutura sendo a fonte
de novas iniciativas. Voltando ao vocabulário gramsciano, a passagem
do calvinismo ao espírito capitalista é a passagem da “necessidade à
liberdade . Para Gramsci, o mérito de Max Weber não é de sair do
determinismo econômico, mas de mostrar, a partir do exemplo protes­
tante, o mecanismo de passagem de uma concepção do mundo à ação
prática. Gramsci recupera Max Weber reintroduzindo nele a dialética.
Como sublinha justamente N. Badaloni:

“enquanto que para Max Weber a idéia-força do calvinismo está


na linha da racionalização econômica, e a completa, fazendo da
vontade o elemento de apoio da estrutura capitalista ou ao menos

36 CDH p. 55.

37 Remetendo expressamente a Ética protestante e espírito do Capitalismo assim


como ao estudo de Groethuyen: Origens do espírito burguês na França, (CDH p. 25
nota 1).
38 CDH p. 55.
39 CDH p. 24.

84

I
da racionalidade econômica, para Gramsci, o domínio das idéias-
vontades também pode atacar a estrutura existente.”''®

— A Contra-Reforma:

Face ao movimento protestante, a Igreja reage pela Contra-Refor-


ma.^' Gramsci sublinha que a Contra-Reforma é um fenômeno transi­
tório: nos países da Europa meridional onde ela não foi definitivamente
suplantada, a Igreja tenta manter sua supremacia ideológica e mesmo
política. Mas a situação é radicalmente diferente da Idade Média.
Enquanto na Idade Média a Igreja mantinha a unidade do bloco
ideológico católico-feudal utilizando os órgãos da sociedade civil
(ordens religiosas, movimentos de massa), agora se vê obrigada a
recorrer à ajuda da sociedade política, à coação. Já as heresias da
Baixa Idade Média tiveram que ser combatidas pelo uso conjunto do
aparelho ideológico e da força armada, mas o papel das ordens religio­
sas permanecia essencialmente ideológico.
Com a Reforma, consumou-se a ruptura entre intelectuais religio­
sos e massas, e a manutenção da ordem religiosa existente só pôde ser
obtida pelo apelo ao aparelho repressivo do Estado. Também o
aparelho ideológico da Igreja tomou-se essencialmente repressivo, e,
do próprio seio da sociedade civil eclesiástica surgem novas formas de
coerção. É principalmente o caso da mutação das ordens religiosas,
cujo exemplo típico é a Companhia de Jesus;
“A Contra-Reforma esterilizou este pulular de forças populares:
a Companhia de Jesus é a última grande ordem religiosa, de
origem reacionária e autoritária, com caráter repressivo e “diplo­
mático”, que assinalou — com o seu nascimento — o endureci­
mento do organismo católico. As novas ordens, surgidas poste-

40 Gramsci e a cultura contemporânea, T. 2, p. 76.


Sobre as relações estrutura-superestrutura em Gramsci, Gramsci e o bloco histó­
rico, pp. 45-59.
41 Sobre a natureza real da Contra-Reforma:
"Os católicos sustentam que a Igreja Romana foi muitas vezes reformada a partir
do interior, ao passo que no conceito protestante de "Reforma” está implícita a idéia
de “Renascimento" e de restauração do cristianismo primitivo, sufocado pelo roma-
nismo. Na cultura leiga, fala-se por isso de Reforma e de Contra-Reforma, ao passo
que os católicos (e especialmente os jesuítas que são mais precisos e mais conse­
quentes mesmo na terminologia) não querem admitir que o concilio de Trento tenha
apenas reagido ao luteranismo e ao conjunto das tendências protestantes, mas susten­
tam que se tratou de uma "Reforma” católica, autônoma, positiva, que teria se verifi­
cado em cada caso.”( R. p. 37).

85
riormente, têm um pequeníssimo significado “religioso” e um
grande significado disciplinar” sobre a massa dos fiéis; são
ramificações e tentáculos da Companhia de Jesus (ou se tornaram
isso), instrumentos de "resistência” para conservar as posições
políticas adquiridas, e de modo nenhum forças renovadoras de
desenvolvimento.

Gramsci vê a prova de tal evolução no jansenismo, único movi­


mento religioso surgido na época da Contra-Reforma: o jansenismo
não é um movimento de massa — o que prova a ruptura do vínculo
ideológico entre intelectuais religiosos e massas — e não suscitou
nenhuma ordem religiosa correspondente.
A consequência essencial da Contra-Reforma é de modificar
radicalmente a situação política da Igreja, nos Estados católicos. Face
à crise do bloco feudal, a sociedade civil fendeu-se e a velha classe
dominante se apoia essencialmente na sociedade política. A própria
Igreja se toma uma organização esseneialmente disciplinar mudando
a função de suas organizações de massa, mas, sobretudo, perde toda
autonomia frente ao Estado; o aparelho repressivo do Estado supre a
Igreja na manutenção da ordem existente, e esta deve pedir ajuda ao
Estado para restabelecer sua direção ideológica. À autonomia relativa
da Igreja medieval sucede um vínculo estreito e direto entre o Estado
absoluto e a Igreja, que se torna um verdadeiro “aparelho ideológico
de Estado”; este domínio do Estado sobre a Igreja é perfeitamente
ilustrado pelo fenômeno galicano onde a Contra-Reforma é antes de
tudo uma repressão política contra o protestantismo quando a repres­
são cultural (Index) ainda não está desenvolvida.
42 CDH p. 20.
A melhor solução é ainda a de manter os fiéis na ignorância da crise ideológica:
“A Contra-Reforma elabora um tipo de pregador que é descrito em De predicatore'
Verbi Dei, 1585. Alguns cânones: 1) a pregação deve adaptar-se ao auditório: diferente
para um público de camponeses e para um de citadinos, para nobres e plebeus etc.;
2) o pregador não deve ceder à eloquência exterior nem a um refinamento excessivo
da forma; 3) não deverá aventurar-se em questões muito sutis e não procurará osten­
tar doutrina; 4) não apresentará os argumentos dos heréticos diante da multidão
despreparada, etc. O tipo de pregador elaborado pela Contra-Reforma pode ser
encontrado sob sua forma moderna no jornalista católico, pois na verdade os jorna­
listas são uma variedade cultural do pregador e do orador. O ponto 4 é particular­
mente interessante e serve para compreender por que a maior parte das polêmicas
com os jornalistas católicos ficam sem resultado: eles não somente não apresentam
os argumentos dos heréticos', mas também, quando os combatem indiretamente,
deformam-nos porque não querem que os leitores inexperientes consigam reconstruí-
los pela própria polêmica. Com freqüencia a 'heresia' é deixada sem objeção, porque
se considera que é um mal menor deixá-la circular num determinado ambiente do
que, combatendo-a, dá-la a conhecer aos meios ainda não contaminados." (P dd
194-195). •

86
A conseqüência da Contra-Reforma é, além do esmagamento
religioso — do protestantismo primitivo, a subordinação da Igreja ao
Estado absoluto.
O fenômeno é mais complexo na Itália: dada a hegemonia política
do papado na península, a luta situa-se unicamente no seio da socie­
dade civil. Visto que os intelectuais leigos não souberam — nem
quiseram — representar o povo, o papel da Igreja se acha facilitado:
o Renascimento, movimento cultural puramente aristocrático, chega
insensivelmente à reação eclesiástica; privados de todo apoio popular,
os intelectuais caem sob a direção da Igreja; a Contra-Reforma não
tem efeito sobre as massas mas atinge os intelectuais leigos pela instau­
ração de um conformismo cultural (Index) e científico (Galileo).''^
A Contra-Reforma apresenta-se, portanto, como um esforço
desesperado da Igreja para manter sua hegemonia; mas, optando pela
coação, a Igreja perde definitivamente seu caráter democrático:
“O verdadeiro ponto de ruptura entre democracia e Igreja deve
ser localizado na Contra-Reforma, quando a Igreja necessitou do
braço secular (em grande estilo) contra os luteranos, e abdicou de
sua função democrática.”^

4 . A Revolução francesa

A Revolução francesa, “terceiro ato” da revolução burguesa, é


o resultado de uma luta política e ideológica travada a partir da
Reforma. Também neste ponto, a análise gramsciana é profundamente
original e se distingue radicalmente da dos clássicos do marxismo.
Em nível ideológico, a característica essencial da Revolução é,
segundo Engels,
“ser a primeira a rejeitar a vestimenta religiosa e a travar todas
as suas batalhas no terreno abertamente político.”''®
Segundo esta análise, a Revolução é um acontecimento político
que se apoia numa ideologia materialista. Para Gramsci, não é neste
nível que se situa a inovação essencial da Revolução. Influenciado
pelos trabalhos de Mathiez — sobre Robespierre e o culto do Ser

43 Cfr. I., 47, R. p. 36.


44 Maq. p. 353.
45 SLR p. 298.

87
Supremo —, e pela análise católica da Civiltà cattolica, julga
efetivamente que os fundamentos ideológicos da Revolução não são
fundamentalmente opostos à religião católica. Como já o lembrava a
propósito de Savonarola, Gramsci sublinha a necessidade de distinguir
“a ideologia que se funda nos mitos do passado e a função real
que deve abstrair destes mitos.”'**
Os princípios ideológicos de 1789 não constituem uma ruptura
total com o cristianismo porque a França, ao contrário das afirmações
de Engels e como puderam provar os estudos sobre a Revolução de
que Gramsci tinha conhecimento, permanecia profundamente católica
às vésperas da crise:
“Tão-somente deste modo pode ser explicada a história religiosa
da Revolução Francesa, pois de outra maneira seria inexplicável
a adesão em massa às novas idéias e à política revolucionária dos
jacobinos contra o clero, por parte de uma população que ainda
era, decerto, profundamente religiosa e católica.”^^
Assim sendo, como explicar esta adesão popular? Considerando,
como faz a Igreja católica, que se tratou de uma heresia, ou seja,
de uma ruptura do bloco ideológico: a cisão entre intelectuais-religio-
sos e massas realiza-se mais uma vez em nome da concepção cris­
tã do mundo, mas laicizada; por isso a Revolução deve ser definida
como uma "Reforma liberal-democrática.”^
“Talvez possa-se dizer que a “Igreja”, como comunidade dos fiéis,
conservou e desenvolveu determinados princípios políticos-morais
em oposição à Igreja como organização clerical, até a Revolução
Francesa, cujos princípios são próprios da comunidade dos fiéis
contra o clero como ordem feudal aliada ao rei e aos nobres.
Por isso muitos católicos consideram a Revolução Francesa como
um cisma e uma heresia, isto é, uma ruptura entre pastor e
rebanho, do mesmo tipo da Reforma, mas historicamente mais
madura por ter-se verificado no terreno do laicismo; não padres
contra padres, mas fiéis-infiéis contra padres.”'*’

46 R. p. 35.
47 LVN, p. 187.
48 Maq. p. 323.
49 Maq. p. 353.

88
Portanto, esta ruptura entre clero e massa é essencialmente
política, mas tem, em razão do monopólio ideológico da Igreja,
consequências sobretudo religiosas. Sob este prisma a Revolução já
estava acabada em 1789; esta Reforma leiga encontrou sua inspiração
na literatura filosófica do século XVII; mas enquanto Engels sublinha­
va a importância da filosofia materialista neste movimento cultural,
Gramsci põe em destaque seu aspecto anticlerical e sobretudo “nacio-
nal-popular”:
“A França foi dilacerada pelas guerras religiosas, cuja vitória
coube aparentemente ao catolicismo, mas obteve uma grande
reforma popular no século XVIII, com o iluminismo, o voltairea-
nismo, a Enciclopédia, que precedeu e acompanhou a revolução
de 1789; tratou-se, na realidade, de uma grande reforma intelec­
tual e moral do povo francês, mais completa do que a luterana
alemã, já que envolveu também as grandes massas camponesas
rurais, pois teve um fundo laico acentuado e tentou substituir a
religião por uma ideologia completamente laica, representada pela
vinculação nacional e patriótica.”®®
Esta ideologia leiga e nacional substituiu o catolicismo durante
a Revolução e depois chegou mesmo a suplantá-lo. Gramsci coloca
duas razões para isso: a primeira é a evolução das heresias religiosas:
o tema da volta às origens, dominante no luteranismo e calvinismo, é
substituído pelo tema do sentimento nacional. O tema da volta às
origens não desapareceu totalmente, mas laicizou-se: é a afirmação
dos princípios de 1789. Quanto ao sentimento nacional, de elemento
secundário — ao menos oficialmente — do protestantismo, torna-se
a ideologia dominante da Revolução.
A segunda razão é devida à alteração do vínculo religioso. Toda
religião se sustenta na medida em que “mantém permanente e organi-
zadamente a própria fé”, de modo especial “repetindo infatigavelmente
a sua apologética.”®' A ruptura deste vínculo só pode levar a uma
regressão do sentimento religioso:
“Todas as vezes em que a continuidade das relações entre igreja
e fiéis foi interrompida violentamente, por razões políticas, como
ocorreu durante a Revolução Francesa, as perdas sofridas pela
Igreja foram incalculáveis; e, se as condições que dificultavam o

50 CDH p. 105.
51 CDH p. 27.

89
exercício das práticas habituais tivessem excedido certos limites
de tempo, é de se supor que tais perdas teriam sido definitivas e
uma nova religião teria surgido, o que, aliás, ocorreu na França,
em combinação com o velho catolicismo.”^
Esta nova religião teria podido ser o culto do “Ser Supremo”,
que Gramsci considera uma tentativa prematura de redefinir as rela­
ções entre o Estado (sociedade política) e os aparelhos ideológicos
(sociedade civil);
“Deve-se estudar, a partir deste ponto de vista, a iniciativa
jacobina da instituição do culto do “Ente Supremo”, que surge
como uma tentativa de criar identidade entre Estado e sociedade
civil, de unificar ditatorialmente os elementos componentes do
Estado em sentido orgânico e mais amplo (Estado propriamente
dito e sociedade civil), num desesperado esforço de manietar toda
a vida popular e nacional; mas que surge também como a
primeira raiz do Estado moderno leigo, independente da Igreja,
que procura e encontra em si mesmo, na sua vida complexa,
todos os elementos da sua personalidade histórica.”®^
Ora, esta
“reforma religiosa, que tinha contudo no processo histórico real
um significado concreto imediato,”^
foi um fracasso que contribuiu para a própria queda do jacobinismo.
Este fracasso, acredita Gramsci, é explicável na medida em que a
reforma religiosa não interessava às massas rurais e fornecia à própria
Igreja um terreno ideal para dividi-las.
Foi sob esta forma leiga que o nacionalismo pôde afirmar-se
em combinação-oposição com o velho catolicismo. Nos tempos que
se seguiram à Revolução, mistura-se ao velho fundo ideológico católico
um poderoso sentimento nacional que constitui o elemento essencial
da nova “religião leiga” das classes subalternas.
Assim, em nível ideológico, a Revolução francesa se caracteriza
como uma heresia que cresceu sobre o terreno do laicismo. Todavia,
não é neste nível que se deve procurar a contribuição principal da
Revolução. O que é novo em 1789, e sobretudo em 1793, é a política

52 Ibid.
53 Maq. p. 138.
54 R. p. 104.

90

í
de aliança da burguesia com as classes subalternas — e principalmente
a classe camponesa — contra as classes feudais, e portanto contra a
Igreja. A afirmação da burguesia como “classe nacional” que realiza
em torno de si a unidade da nação e consegue os meios econômicos
— reforma agrária — e políticos — jacobinismo^s — desta unidade
tem como conseqüência ideológica a afirmação de uma cultura nacio­
nal e leiga, e não mais cosmopolita e clerical. O movimento cultural
burguês tinha permitido, no século XVIII, separar a Igreja das massas,
recuperando por conta dos intelectuais burgueses os temas cristãos
tradicionais. O patriotismo e o nacionalismo são a conseqüência
ideológica da hegemonia econômica e política da burguesia sobre as
classes subalternas.
Segue-se daí que a Revolução francesa pertence a mundo cristão,
mas é na luta política que ela forja sua verdadeira autonomia:
“Conceitualmente, não são os princípios da Revolução Francesa
que superam a religião, pois pertencem à sua mesma esfera mental,
mas sim os princípios que são superiores historicamente (enquanto
expressam exigências novas e superiores) aos da Revolução
Francesa, isto é, os que se fundam sobre a realidade efetiva da
força e da luta.”®^
Com a Revolução, completa-se, pois, a crise ideológica que coloca
definitivamente a Igreja numa posição subalterna, do mesmo modo que
o faz com a aristocracia feudal, da qual ela era o intelectúal coletivo.

55 Sobre a Revolução francesa, ver principalmente R. pp. 84-86.


56 LVN p. 187.
57 Se considerarmos o conjunto dos estudos clássicos sobre a Revolução fran­
cesa, teremos a impressão de que o autor mais próximo de Gramsci é Tocqueville;
este, em VAncien Régime et la Révolution, observa que a Revolução “é uma revo­
lução política que assumiu de certa forma o aspecto de uma revolução religiosa”
(Idées, NRF, p. 69), principalmente por seu proselitismo e sua definição abstrata das
relações do homem com a sociedade; Tocqueville conclui disso que “ela se tornou
uma espécie de religião nova’’ (ibid. p. 71). É a mesma análise gramsciana, com a
diferença de que o que para Tocqueville é uma ‘analogia’, para Gramsci é uma
identidade.
Gramsci é também mais preciso do que Tocqueville na análise das relações clero-
fiéis: o que Tocqueville qualifica como irreligião, ao pintar a oposição (essencial­
mente política) à Igreja, é considerada por Gramsci como uma ruptura entre o povo
e a Igreja, entre os princípios cristãos e o clero-classe feudal.
Também é verdade que a análise gramsciana é mais próxima da de Tocqueville
do que das afirmações de Engels.

91
TERCEIRA PARTE

A IGREJA, INTELECTUAL TRADICIONAL

1
I

(V

TTTJiAi

jÀinnhixm , A i a « o i a

¥
C A PITU LO I

O FRACASSO DA RESTAURAÇÃO

A Igreja, intelectual tradicional — as tentativas de restauração.

1. A Igreja intelectual tradicional

Com a Revolução acaba definitivamente a hegemonia ideológica


do catolicismo. A Contra-Reforma era uma tentativa de reassumir o
controle pelo recurso à força. A derrocada do sistema feudal na
Europa ocidental marca o declínio do catolicismo que, de uma posição
de hegemonia passa a uma posição subalterna:
“A religião católica, ( . . . ) de concepção totalitária (no duplo
sentido: de que era uma concepção total do mundo de uma
sociedade no seu total), torna-se parcial (igualmente no duplo
sentido) e deve ter seu próprio partido.”'
A consequência desta nova situação é essencial: em nível ideoló­
gico, a religião católica não é mais a concepção do mundo da classe
dirigente: acha-se reduzida à condição de ideologia de grupos subalter­
nos e mesmo dos mais atrasados; da mesma forma, e ao nível do
controle da sociedade civil: grande parte dos domínios, até então sob
o controle da Igreja, agora lhe escapam. É o conjunto da sociedade
civil tradicional que se desagrega:
“Poder-se-ia fazer uma lista de atividades específicas em que a
Igreja influi muito pouco, ou se refugiou em posições secundárias;
sob alguns aspectos, notadamente do ponto de vista da crença
religiosa, também é verdade que o catolicismo reduziu-se em

1 Maq. p. 280.

95
grande parte a uma superstição de camponeses, doentes, velhos e
mulheres.
Qual a influência da Igreja na filosofia, hoje? Em que Estado o
tomismo é a filosofia predominante entre os intelectuais? E,
socialmente, onde a Igreja dirige e controla com a sua autoridade
as atividades sociais?^
Portanto, a Igreja está em posição de recuo. De intelectual
orgânico do sistema feudal, reduz-se a uma casta de intelectuais
tradicionais.^
Em nível internacional, a posição política do Papa se enfraquece
consideravelmente. Aliás, a razão essencial é a própria política do
papado que, com a Contra-Reforma, perde a sua base popular:
“Um elemento importante e às vezes decisivo dos sistemas euro­
peus havia sido sempre o Papa. No curso do século XVIII, o

2 Maq. pp. 288-289.


3 A categoria dos intelectuais tradicionais foi longamente analisada e até mesmo
contestada pelos comentadores de Gramsci (cfr. J. M. Piotte, op. cit., pp. 45-70 e H.
Portelli, op. cit., pp. 89-96). É inegável que a Igreja católica forneceu a Gramsci o
exemplo típico de uma tal categoria a ponto de alguns julgarem que a definição
gramsciana do intelectual tradicional só se aplica à Igreja. Esta definição é essencial­
mente negativa: são intelectuais tradicionais os quadros intelectuais de antiga for­
mação social; “tradicionais” porque se opõem aos intelectuais orgânicos da nova
classe dirigente: “Cada grupo social “essencial", contudo surgindo na história a partir
da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura,
encontrou — pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias — cate­
gorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de
uma continuidade histórica que não fôra interrompida nem mesmo pelas mais com­
plicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas.” (I. p. 5).
Mas a ruína do antigo bloco histórico não leva ao isolamento total de seus
intelectuais: Gramsci sublinha que eles conservam uma certa base social: assim a
Igreja tem o controle de uma parte das classes subalternas. Todavia, o problema que
se levanta é o de saber em que momento o intelectual orgânico da antiga classe diri­
gente se torna intelectual tradicional na nova formação social: assim a Igreja perma­
nece ainda estreitamente ligada à aristocracia feudal até a Restauração — e mesmo
até mais tarde em certos países. — É ela ainda o intelectual orgânico do feudalismo
ou o intelectual tradicional do mundo capitalista? Se considerarmos a análise dos
Quaderni, a resposta será a seguinte:
— para toda classe que aspira à hegemonia, são intelectuais tradicionais os quadros
intelectuais do sistema dominante. Assim, no sistema capitalista, os intelectuais orgâ­
nicos da burocracia devem ser considerados como tradicionais, do ponto de vista do
proletariado,
— mas são sobretudo intelectuais tradicionais os grupos intelectuais que se mantive­
ram depois da derrocada da antiga sociedade e formam uma casta autônoma: assim
a Igreja, depois do desaparecimento da aristocracia feudal e portanto de seu caráter
orgânico mantém-se como categoria cristalizada.
Se considerarmos estas duas categorias de intelectuais tradicionais, parece pois que
a Igreja passa sucessivamente por ambos os estágios: intelectual tradicional ligado à
aristocracia rural, depois intelectual tradicional “cristalizado”.

96
enfraquecimento da posição do Papa como poder europeu tornou-
se catastrófico. Com a Contra-Reforma, o Papa havia modificado
sensivelmente a estrutura de seu poder: ele se havia alienado das
massas populares, tornara-se fautor das guerras de extermínio,
estava ligado de maneira irremediável com as classes dominantes.
Assim, havia perdido a capacidade de influir tanto direta como
indiretamente sobre os governos através das massas populares
fanáticas e fanatizadas. Convém notar que é no momento em
que Bellarmino elabora sua teoria do domínio indireto da Igreja,
que a Igreja, por sua atividade concreta, destruía as condições
de todo seu domínio, mesmo indireto, separando-se das massas
populares.”'*
Este declínio fundamental do poder papal teria podido ser com­
pensado por uma hegemonia mais concreta sobre a Itália. Mas este
não foi o caso, e isto graças a duas razões decisivas: os Estados euro­
peus se opunham à criação de um Estado italiano controlado pelo
papado o qual arriscaria subverter o equilíbrio de forças tanto na
Europa como nos diferentes Estados:
“As grandes potências também não podiam permitir um Estado
unificado italiano sob a supremacia do Papa, ou seja, permitir
que a função cultural da Igreja e de sua diplomacia, já bastante
incômodas e limitadoras do poder estatal nos países católicos, se
reforçassem apoiando-se num grande Estado e num exército
correspondente.”^
Por outro lado, esta atitude é a única possível para os Estados
europeus: depois da derrocada total ou parcial do feudalismo, são
obrigados a conceder ao liberalismo — isto é, ao movimento político-
ideológico burguês — grande parte do antigo monopólio ideológico da
Igreja, ainda que fosse para frear o desaparecimento total de suas
prerrogativas.
Mas a segunda razão, mais grave a longo prazo, da ausência da
hegemonia política do Papa sobre a Itália está relacionada com a
modificação da situação na Itália principalmente da atitude dos inte­
lectuais italianos com relação ao papado:

4 Mach. p. 230, (edição italiana). A citação na edição brasileira não foi locali­
zada. (Nota do Revisor).
5 R. p. 49.

97
4
“A atmosfera cultural italiana havia permanecido até então indis­
tinta e genérica; inclinava-se essencialmente em favor do Papa,
constituía o terreno ideológico do poder papal no mundo, o ele­
mento discriminativo para a escolha e a formação do pessoal
eclesiástico e leigo-eclesiástico de que o Papa tinha necessidade
para sua organização político-administrativa, para centralizar o
organismo eclesiástico e sua influência, para todo o conjunto da
atividade política, filosófica, jurídica, publicitária, cultural que
constituía a máquina para o exercício do poder indireto depois
que, no período que precedeu a Reforma, ela havia servido ao
exercício do poder direto ou destas funções do poder direto que
podiam concretamente se efetuar no sistema de relações de força
interna a cada país católico.”*
Esta “atmosfera cultural” vai cindir-se progressivamente em duas
correntes, inicialmente indiferenciadas e depois antagônicas, que che­
garão, uma à Ação Católica, e a outra aos intelectuais leigos liberais.
A primeira corrente é o início de um verdadeiro movimento cató­
lico italiano que, numa primeira etapa defende estritamente as prerro­
gativas tradicionais do Papa
“como expressão de uma função intelectual (ético-política de hege­
monia intelectual e civil).”^
Esta atitude é representada por uma série de movimentos dos
quais Gramsci sublinha o caráter “equívoco”®, principalmente o la-
mennaisismo e o sanfedismo.
A influência do Lamennais legitimista e ultramontano não foi
desprezível durante o período da Restauração na Itália e Gramsci,
apoiando-se na análise da Civiltà Cattolica,'’ vê nele um dos primeiros
teóricos da Ação católica.
G. De Rosa, em seu estudo do movimento católico na Itália,
sublinha o papel que desempenhou Lamennais nos círculos legitimistas
e ultramontanos da Itália, e principalmente do Piemonte. Uma asso­
ciação como a “Amizade Católica”, muito influente nos meios cató­
licos legitimistas, “nova forma de apostolado leigo” e antepassado da
Ação católica

6 R. p. 49.
7 ibid.
8 ibid.
9 “II movimento lamennesiano in Italia” Civiltà cattolica, de 20 de agosto de
1932, citado por Gramsci em Maq. p. 284.

98
“sofre a influência das teorias do primeiro Lamennais, defensor
da supremacia do Papa, antigalicano e sustentador do dever dos
reis de aplicar a lei de Deus sob a conduta da Igreja”'®;
O lamennaisismo foi um movimento equívoco, na medida em que,
“se Lamennais está na origem da Ação católica, esta origem não
contém o germe do catolicismo liberal posterior, o germe que,
desenvolvendo-se em seguida, não dará u moutro Lamennais?”"
É este duplo caráter legitimista e rousseauista do pensamento de
Lamennais que gerará a divisão desta corrente por ocasião do Risorgi-
mento. Quanto ao sanfedismo'^, trata-se de um movimento bastante
diferente saído das guerras napoleônicas e que reagrupa a ala mais
conservadora do movimento católico.
O lamennaisismo e o sanfedismo são as duas alas ainda indistintas
do catolicismo italiano que se oporão violentamente durante o Ri-
sorgimento.
Face a esta tendência tradicional, aparece progressivamente a
segunda corrente
“leiga, portanto em oposição ao Papa, que procura reivindicar
uma função de primazia italiana e de missão italiana no mundo
independentemente do Papa. Esta segunda ala, que nunca pode
referir-se a um organismo ainda não poderoso como a Igreja
romana, e por isso carente de um ponto único de centralização,
não tem a mesma capacidade, homogeneidade e disciplina que a
outra, tem diversas linhas de desenvolvimento rompidas, e pode-
se dizer que conflui no mazzinismo.”'®
Gramsci sublinha que esta nova tendência tem importantes con-
seqiiências práticas: não só enfraquece a posição do Papa na Itália —
e por conseguinte na Europa —, mas sobretudo fornece a base ideo­
lógica dos grupos políticos que lutam contra o papado e a aristocracia
feudal.

10 G. de Rosa: II movimento cattolico in Italia, Bari, Laterza, p. 17. Sobre a


questão ver também: G. Verruci, Félicité Lamennais. Dal cattolicismo autoritário al
radicalismo autoritário, Nápoles, 1963.
11 Maq. p. 284.
12 O termo sanfedista foi tirado do exército da Santa Fé (Santa Fede) do cardeal
Ruffo que, depois da partida das tropas francesas pôs fim à República partenopéia
(junho de 1799) e restabeleceu o reino de Nápoles. Depois proclamaram-se sanfedistas
os partidários de um catolicismo intransigente.
13 R. pp. 49-50.

99
Diante deste declínio irremediável, a Igreja vai reagir reagrupando
suas forças nas bases definidas pela Contra-Reforma. Esta tinha como
objetivo reassumir, através dos métodos organizacionais e disciplina­
res, o controle das forças católicas para resistir ao assalto das Reformas
protestantes e leigas. A derrocada do mundo feudal obriga a Igreja a
utilizar o aparelho da Contra-Reforma para impedir um recuo mais
importante e preparar uma reconquista do terreno perdido; é nesta
reestruturação defensiva que Gramsci vê a origem da ação católica:
“A Ação Católica representa a reação contra a apostasia de
amplas massas, imponente, isto é, contra a superação da con­
cepção religiosa do mundo. Não é mais a Igreja que determina
o terreno e os meios da luta; ao contrário, ela deve aceitar
o terreno que lhe impõem os adversários ou a indiferença e ser­
vir-se de armas tomadas de empréstimo ao arsenal dos seus
adversários.”'"*
Por isso a Ação católica representa uma nova etapa decisiva na
história da Igreja: é a reação de defesa de uma organização secundá­
ria; como a aristocracia feudal, a Igreja precisa formar seu próprio
partido:
Com o período da Restauração, “o rei na França e o papa em
Roma tornaram-se chefes de partidos respectivos, não mais re­
presentantes indiscutíveis da França ou da cristandade.”'^
Ao contrário da Contra-Reforma, a formação da Ação católica
não é um fenômeno imediato mas progressivo. Isso por várias razões:
a Contra-Reforma já tinha fornecido à Igreja um importante arsenal
defensivo que ainda abastece o essencial de suas forças. Mas, sobre­
tudo, a Igreja não padece de maneira imediata a amplidão do recuo
e seu caráter inelutável: por muito tempo, o objetivo ainda permanece
a reconquista de todas as suas prerrogativas.
A partir de então, o desenvolvimento da Ação católica vai assu­
mir no começo a forma de iniciativas independentes da hierarquia,
“organismos permanentes de católicos militantes”,'^ que chegarão a
uma verdadeira organização de massa.
Os efeitos aparentes desta reestruturação mascaram, de outro
lado, sua verdadeira natureza defensiva:

14 Maq. pp. 280-281.


15 CDH p. 109.

100
“É incontestável que, sob determinados aspectos, a Igreja reforçou
algumas das suas organizações, concentrou-se mais, estreitou as
suas fileiras, fixou melhor determinados princípios e diretivas,
mas isto significa exatamente uma diminuição da sua influência
na sociedade e, portanto, a necessidade da luta e de uma militân­
cia mais vigorosa. ( . . . ) Exatamente o impulso cada vez maior
dado à Ação Católica demonstra que a Igreja perde terreno,
embora seja verdade que, retirando-se, ela se concentre, oponha
mais resistência e “pareça” mais forte (relativamente).”’*
A nova etapa da história da Igreja caracteriza-se pois — a exem­
plo da Ação católica — por dois aspectos essenciais; o primeiro estra­
tégico: a defesa dos privilégios ideológicos e práticos da Igreja, e o
outro organizacional: a criação de uma poderosa organização de
massa semileiga, verdadeiro partido da Igreja, tendo como função
enquadrar as massas católicas e fazer delas uma arma ofensiva e,
depois, defensiva segundo as necessidades da luta.

2 . As tentativas de restauração

O período de Restauração não é para a Igreja uma volta ao


statu quo anterior. O Estado legitimista deve fazer muitas concessões
políticas e ideológicas ao liberalismo. A queda da Restauração e o
movimento nacional na Itália vão obrigar a Igreja a uma escolha
decisiva: a luta contra o Estado liberal ou a aliança.
O período que se estende até 1900 caracteriza-se por uma luta
aberta. Gramsci analisa esta tentativa através dos exemplos francês e
italiano. Muito breve sobre a França, ele consagra ao contrário, longos
esclarecimentos sobre o Risorgimento, reassumindo as conclusões das
Teses de Lion:

— o exemplo francês:

A situação da Igreja é mais clara na França do que na Itália,


pois ali não existe o problema nacional. Gramsci sublinha que a
hierarquia permanece ligada ao partido legitimista e que esta aliança
continua sendo o perigo mais ameaçador para a fração da burguesia
que controla o Estado:

16 Maq. pp. 288-289.

101
“A debilidade interna mais perigosa para o aparelho do Estado
(militar e civil) consistia na aliança do clericalismo com os mo-
narquistas.”’^
Mas a força do partido católico-legitimista, além de sua influência
no aparelho do Estado, reside em sua estratégia política. Gramsci
sublinha que, ao contrário do seu eqüivalente italiano, o clericalismo
francês luta abertamente jogando a cartada do cesarismo e do sufrágio
universal:
“A experiência política francesa demonstrava que o sufrágio
universal e o plebiscito com base muito ampla, em determinadas
circunstâncias, podia ser um mecanismo bastante favorável às
tendências reacionárias e clericais (ver a este propósito as obser­
vações ingênuas de J. Bainville em sua História da França, quan­
do censura ao legitimismo o fato de não ter confiança no sufrágio
universal, como o tivera Napoleão III.”'®
Esta estratégia política vai ser aplicada durante a Terceira Repú­
blica até o caso Dreyfus, que marca seu fracasso definitivo:
“No “caso Dreyfus” culminou a luta para paralisar a influência
clerical-monarquista no aparelho do Estado e para dar ao ele­
mento leigo uma proeminência nítida.”'’
Por que esste fracasso? Porque em sua luta contra a fração
burguesa-liberal, o partido católico-monarquista não pôde apoiar-se
no povo; este, como o provou a Revolução, “embora católico”, não
era clerical.”2°
Privada de base popular, definitivamente vencida no terreno polí­
tico, a Igreja será obrigada a inclinar-se e a negociar sua aliança. Já
na Itália, a situação é mais complexa.

o exemplo italiano:

Gramsci analisou de maneira muito minuciosa o período do


Risorgimento porque vê ali as razões das fraquezas da sociedade italia­
na contemporânea. No que se refere à situação da Igreja, Gramsci

17 Maq. p. 118.
18 R. pp. 176-177.
19 Maq. p. 118.
20 ibid.

102
considera a questão sob seu duplo aspecto político e ideológico, e
distingue quatro etapas na evolução que leva a Igreja de sustentáculo
involuntário da Revolução italiana ao impasse da encíclica Rerum
novarum.
O primeiro período cobre os inícios do Risorgimento: no campo
católico, Gramsci distingue duas tendências principais:
“— uma nitidamente pró-Áustria, que via a salvação do Papado
e da religião no gendarme imperial guardião do status quo político
italiano;
— uma absolutista em sentido estrito, que sustentava a supre­
macia político-religiosa do Papa antes de tudo na Itália, e que
por isso era adversária dissimulada da hegemonia austríaca na
Itália e favorável a certo movimento de independência nacional
(se se pode falar de nacional neste caso)”.^'
Esta última corrente vai tornar-se — durante um curto
período (1843-1848) — a corrente dominante do Risorgimento,
sob a forma de neoguelfismo;^^ teorizado por Gioberti,^^ vê no Papa
o federador da Itália e propõe no fim de contas
“um retorno totalitário à posição política da Igreja na Idade
Média, à supremacia papal, etc.”^''
Como explicar esta conjunção do liberalismo nacionalista e o
catolicismo tradicional? Gramsci coloca várias razões. A primeira
refere-se à importância dos católicos piemonteses: o Piemonte desem­
penhou na unidade italiana um papel federativo; seu grupo dirigente
comporta três tendências:
“A Direita: Solaro delia Margarita,^^ isto é, os “nacionalistas
piemonteses exclusivistas” ou municipalistas (a expressão munici-

21 Maq. p. 285.
22 O termo “neoguelfo” provém do termo “guelfo”, que na Idade Média desig­
nava os partidários do primado do Papa, em oposição aos Gibelinos, partidários do
primado do Imperador. No começo do Risorgimento, os neoguelfos são os católicos
liberais, partidários de uma confederação italiana presidida pelo Papa.
23 Vincenzo Gioberti: filósofo e homem de Estado piemontês (1801-1852) cuja
obra "Del primalo morale e civile degli ilaliani" teve uma influência considerável na
opinião pública; depois de 1848, ele acentuará suas tendências liberais e se oporá
ao papado.
24 Maq. p. 285.
25 O conde Solaro delia Margarita (1792-1869), Ministro dos Negócios estran­
geiros de Carlos Alberto, católico legitimista próximo dos jesuítas.

103
r palismo provém da concepção de uma unidade italiana latente e
real, segundo a retórica patriótica); o Centro: Gioberti e os neo-
guelfos. Mas os liberais de Cavour não são jacobinos nacionais;
na realidade, eles superam a direita de Solaro, mas não qualita­
tivamente, pois concebem a unidade como ampliação do Estado
piemontês e do patrimônio da dinastia, não como um movimento
nacional da base, mas como uma conquista régia.”2*
Até 1848, é o Centro neoguelfo que desempenha um papel motor
e por isso dirige o movimento nacional italiano. O caráter ao mesmo
tempo católico — portanto fiel à supremacia do Papa — e piemontês
— portanto favorável às iniciativas políticas de Carlos Alberto —
desta corrente explica a ambigüidade de seu programa: fazer com que
o Papa desempenhe um papel federativo apoiando-se sobre sua hege­
monia ideológica, com o Piemonte fornecendo a base política e
militar.
Mas a razão essencial deste sucesso momentâneo reside na própria
atitude do Papa: este adota inicialmente uma atitude “liberal”, ou
considerada então como tal.^^ Por que tal atitude? Gramsci a explica
pela hegemonia política dos intelectuais liberais do Piemonte. É devido
a esta hegemonia que se forma um poderoso movimento católico-
liberal,
“que impressionou tanto o Papa e em parte conseguiu paralisar
seus movimentos, desmoralizando-o e, num primeiro tempo, im­
pelindo-o demasiadamente para a esquerda.
Esta hegemonia burguesa-liberaP’ que assume a forma de uma
“atração espontânea”^®, esta ausência de autonomia estratégica do
papado são a prova de que este perdeu a iniciativa, que não detém
mais a hegemonia na Itália. Por esta razão, Gramsci considera o
fracasso do catolicismo liberal de 1848 como um acontecimento de
capital importância na história da Itália:

Os municipalistas representavam antes de 1848 a corrente favorável a um Estado


italiano regional.
26 R. pp. 45-46.
27 Eleito em 1846, o Papa Pio IX foi muito popular depois de algumas reformas
liberais (principalmente anistiando os prisioneiros políticos).
28 R. p. 72.
29 Sobre o estreito vínculo entre os liberais piemonteses e a burguesia italiana,
cfr. R. p. 71.
30 R. p. 72.

104
“O fato de que o movimento liberal tenha conseguido suscitar a
força católico-liberal e conseguir que Pio IX se colocasse, mesmo
que por pouco tempo, no terreno do liberalismo (o suficiente
para desagregar o aparelho político-ideológico do catolicismo e
fazer-lhe perder a confiança em si mesmo), foi o maior trabalho
político do Risorgimento e um dos pontos mais importantes para
resolver os velhos problemas que até então tinham impedido de
pensar concretamente a possibilidade de um Estado unitário ita­
liano.”^'
O fracasso do catolicismo liberal marca a derrota política e ideo­
lógica da Igreja. Este movimento que, antes de 1848, tinha levado o
papado demasiadamente para a esquerda, vai
“num segundo tempo, levá-lo a uma posição mais à direita do
que aquela que teria podido ocupar, e em última análise a deter­
minar o seu isolamento na península e na Europa.”®^
A Igreja aparece definitivamente como uma força conservadora
e não-nacional. O movimento católico-liberal vai dividir-se: uma parte
se junta ao Papa, a outra se une ao liberalismo leigo. É principalmente
o caso de Gioberti. Gramsci sublinha que somente depois de 1848
Gioberti aparece como um verdadeiro jacobino. Diante do fracasso da
solução papal, compreende que somente o Estado piemontês poderá
realizar uma hegemonia de tipo jacobino:
“Os elementos do jacobinismo (de Gioberti) podem assim resu­
mir-se em grandes traços: 1) na afirmação da hegemonia política
e militar do Piemonte, que, como região, deveria ser o que Paris
foi para a França: este ponto é muito interessante e deve ser
estudado mesmo no Gioberti anterior a 1848. Gioberti sentiu a
ausência na Itália de um centro popular de movimento nacional
revolucionário como Paris o foi para a França, e esta compreen­
são mostra o realismo político de Gioberti. Antes de 1848, Pie-
monte-Roma deviam ser os centros-motores, o primeiro para o
aspecto político-militar, a segunda para a ideologia-religião. De­
pois de 1848, Roma não tem a mesma importância, pelo contrá­
rio: Gioberti diz que o movimento deve ser dirigido contra o
Papa. 2) Gioberti possui, ao menos vagamente, o conceito do

31 R. p. 50.
32 R. p. 72.

105
“popular-nacional”, conceito jacobino da hegemonia política, isto
é, da aliança entre burgueses-intelectuais (inteligência) e povo.”“
As consequências da atitude da Igreja são, pois, obrigar o neo-
guelfismo a pregar o inverso de seu programa inicial: a luta contra o
papado pode realizar a unidade italiana. São os próprios neoguelfos
que travarão a luta contra os jesuítas, principalmente ao nível da
escola, e contribuirão assim para o enfraquecimento de um dos prin­
cipais ramos da sociedade civil católica.
De 1870 — que consagra a derrota política da Igreja — a 1900,
esta atravessa um período difícil, ilustrado pelo “non-expedit” que
afasta os católicos da vida política italiana.
O fundamento do “non-expedit” é a análise católica da situação
italiana. Conforme esta análise, explicitada principalmente pela
Civiltà Cattolica, a Igreja — sociedade civil — representa a
“Itália real” frente ao aparelho do Estado — “Itália legal” — . Tal
fórmula é rejeitada por Gramsci na medida em que considera a Igreja
como representando a sociedade civil e italiana:
“A fórmula é feliz do ponto de vista “demagógico”, porque real­
mente existia e era fortemente sentida uma nítida separação entre
o Estado (legalidade formal) e a sociedade civil (realidade de
fato), mas será que a sociedade civil era total e unicamente o
clericalismo? A sociedade civil era algo informe e caótico, e assim
permaneceu durante vários decênios; mas o Estado teve condições
de dominá-la, superando à medida que iam se apresentando os
conflitos que se manifestavam de maneira esporádica, local, sem
vínculo nem simultaneidade nacional. O clericalismo também não
era a expressão da sociedade civil pois não conseguia dar-lhe
uma organização nacional e eficiente, ainda que fosse uma orga­
nização forte e formalmente compacta.”^''
Diante da passividade das massas camponesas e na incerteza de
controlá-las realmente, a Igreja escolheu a solução do “non-expedit”
cujo efeito real é o de congelar a situação política:
“A fórmula do “non-expedit” foi justamente a expressão de tal
modo e de tal incerteza; o boicote parlamentar, que parecia uma

33 R. p. 147. '
34 R. p. 176.

106
atitude asperamente intransigente, era na realidade a expressão
do oportunismo mais chão.”^^
A solução do boicote é, pois, uma solução de facilidade. Gramsci
compara a escolha italiana à estratégia ofensiva do partido católico-
legitimista na França. A rejeição de tal política é ilustração da fra­
queza das forças católicas:
“O clericalismo italiano sabia que não era a expressão real da
sociedade civil e que um êxito possível teria sido efêmero e teria
determinado o ataque frontal por parte das forças nacionais novas,
e que fora evitado com êxito em 1870.”^*
Se esta política pode ser qualificada de oportunista, coloca contu­
do em situação muito precária o Estado italiano, que dispõe de uma
base social muito reduzida — uma fração da burguesia e da pequena
burguesia:
“A atitude clerical de manter “estática” a separação entre Estado
e sociedade civil era objetivamente subversiva; e toda organi­
zação nova expressa pelas forças que então amadureciam na
sociedade podia servir-se delas como terreno de manobra para
abater o regime constitucional monárquico.
Este perigo potencial explica a política violentamente anticlerical
do Estado. As estratégias respectivas da burguesia liberal e das forças
católicas — já analisadas nas Teses de Lion^^ — vão enfrentar-se
diretamente.
Gramsci distingue duas etapas neste confronto. De 1870 a 1890,
a Igreja controla um poderoso bloco constituído pela aristocracia
rural — o grupo agrário — e a massa camponesa, com a dupla fina­
lidade de lutar contra o Estado liberal e impedir toda ameaça socia­
lista. Nos anos 1980-1900, o bloco católico é abalado pela .adesão do
grupo agrário ao Estado liberal. Mais ainda, o socialismo faz-se mais
ameaçador e o Vaticano o condena expressamente na encíclica
Rerum novarum. Face ao duplo perigo socialista e clerical, as forças
burguesas-liberais reagem violentamente, organizando-se na franco-
maçonaria para combater a Igreja e esmagar as revoltas operárias:

35 R. p. 176.
36 R. p. 117.
37 ibid.
38 CPC pp. 493-494.

107
“A reação de 1898 abate-se, ao mesmo tempo, sobre o socialismo
e sobre o clericalismo, julgando-os com razão igualmente subver­
sivos e objetivamente aliados.

O fracasso da tática do boicote e a ascensão do socialismo vão


levar a Igreja a rever sua análise. Como o caso Dreyfus o prova na
França da mesma época, a Igreja não pode opor-se sem maiores
riscos a dois inimigos que desmantelam suas forças simultaneamente
grupo agrário e burgueses — e tem que confessar oficialmente a
impossibilidade de uma restauração.

39 R. p. 177.

108
C A PITU LO II

A ALIANÇA

O abandono da luta contra o Estado liberal em favor da aliança


com ele são devidos, conforme Gramsci, a duas razões essenciais; a
primeira é de ordem política; a necessidade de a Igreja se aliar ao
Estado para salvaguardar seus privilégios combinou-se ao temor
comum de serem varridos pela revolução. Na análise do movimento
socialista, a Igreja mostrou ser a mais lúcida. O perigo é anunciado
desde 1870, nota Gramsci. E esta lucidez se explica se levarmos
em consideração a base social do catolicismo: as classes subalternas e
principalmente o campesinato. A condenação oficial do socialismo —
encíclica Rerum Novarum —, a luta autônoma contra seus progressos
no meio rural — Ação católica — não foram mais suficientes e a
aliança com a burguesia liberal tomou-se indispensável.
Mas a segunda razão que Gramsci considera como igualmente
decisiva refere-se à grave crise econômica que acarreta para a Igreja
a perda de amplos setores da sociedade civil, limitando as vocações
religiosas e pondo em perigo o futuro da própria Igreja:

“A religião proporcionara escassas possibilidades de carreira


além da carreira eclesiástica. O próprio clero estava deteriorado
qualitativamente pelas “escassas vocações” ou pelas vocações
apenas de elementos intelectualmente subalternos. Esta crise já
era muito visível antes da guerra; era um aspecto da crise geral
das carreiras de renda fixa com quadros lentos e pesados, isto
é, da inquietação social da camada intelectual subalterna (mestres,
educadores, padres, etc.), na qual atuava a concorrência das
profissões ligadas ao desenvolvimento da indústria e da orga­
nização privada capitalista em geral (jornalismo, por exemplo,
que absorve muitos educadores, etc.). Já começara a invasão
das escolas normais e das Universidades pelas mulheres, e com

109
as mulheres, os padres, aos quais a Cúria (depois da lei Credaro)'
não podia proibir o anseio de obter um título público que pu­
desse permitir-lhes candidatar-se a um emprego público e aumen­
tar, assim, as “finanças” individuais. Muitos destes padres, depois
de obterem o título público, abandonaram a Igreja. Durante a
guerra, em virtude da mobilização e do contato com ambientes
de vida menos sufocantes e estreitos do que os eclesiásticos,
este fenômeno adquiriu certa amplitude. Portanto, a organização
eclesiástica sofria uma crise de organização que poderia ser fatal
para o seu poder, se o Estado tivesse mantido integralmente a
sua posição laica, mesmo prescindindo de uma luta ativa. Na
luta entre as formas de vida, a Igreja estava para desaparecer
automaticamente, por exaustão própria.” 2
Por isso mesmo, a aliança era a única solução para a crise.

— o fracasso da aliança na França:

A situação da Igreja na França é particularmente delicada: em


virtude do vínculo orgânico entre o aparelho eclesiástico e a aristocra­
cia rural, a aliança não pode ser mais do que um abandono do monar-
quismo para aceitar o Estado liberal-republicano. Ora, a Igreja é
obrigada a isso pela própria evolução das massas católicas. Gramsci
sublinha que esta evolução foi reforçada pelo sufrágio universal.
Enquanto na Itália o “non-expedit” teve a dupla vantagem de isolar
as massas católicas e depois negociar sua voz, o sufrágio universal
isola a Igreja — o caso Dreyfus mostrou a impossibilidade do cesa-
rismo — e não as massas católicas: estas já estão “alinhadas”:
“O sufrágio universal, introduzido na França há muito tempo, já
determinou a adesão política das massas, formalmente católicas
aos partidos republicanos do centro, embora estes sejam anti-
clericais ou leigos.”^
Enquanto os intelectuais católicos — religiosos ou leigos —
continuam legitimistas, as massas são republicanas. A conseqüência
desta cisão política é de reforçar na ideologia popular a importância
do sentimento nacional em detrimento da religião:

1 As leis Credaro (do nome do ministro da Educação entre 1911 e 1914)


confiavam ao Estado a instrução elementar na maior parte das comunas italianas.
2 Maq. pp. 306-307.
3 Maq. p. 123.

110
“O sentimento nacional, organizado em torno do conceito de
pátria, é bastante forte, e em determinados casos é, indubitavel­
mente, mais forte que o sentimento religioso, que, de resto, tem
características próprias. A fórmula de que “a religião é questão
privada” radicou-se como forma popular do conceito de separa­
ção da Igreja do Estado.”^
Na realidade, o verdadeiro conflito opõe os intelectuais católicos
franceses — ligados à aristocracia — ao Vaticano, partidário da
aliança. Apesar desta situação perigosa, a cisão entre intelectuais e
massa se manterá e até mesmo se agravará com o apoio dos intelectuais
católicos da Ação francesa, até sua condenação pelo Vaticano.®
Na Itália, a mesma época vê o apogeu do partido popular, e
depois a concordata.

— o exemplo italiano:

A crise social e política de 1898 é o ponto de partida de uma


evolução que levará à concordata de 1929. Gramsci distingue várias
etapas nesta evolução, mas sublinha que cada uma delas marca um
progresso no alinhamento da Igreja com o Estado, mas sobretudo na
utilização deste para objetivos próprios do catolicismo.
O primeiro período é o que precede a guerra: a Igreja negocia seu
alinhamento progressivo, mas se limita a um apoio exterior; de fato,
observa Gramsci, desde antes de 1900, os católicos eram autorizados
a participar de certas eleições locais, pois a Igreja não considerava a
comuna como parte do aparelho do Estado, mas da sociedade civil.
Sua atitude com relação às eleições legislativas vai evoluir com o
agravamento da crise social; as greves gerais de 1904 facilmente
persuadiram o integrista Pio X de que
“era necessário unir todas as forças liberais e conservadoras no
esforço para barrar o caminho aos partidos extremistas.”®
Mas o acordo nacional decisivo é o “Pacto Gentiloni”,^ verdadeiro
compromisso entre os liberais e a Igreja: a introdução do sufrágio

4 íbid.
5 Ver infra pp. 142-143.
6 Maq. p. 286.
7 Em 1913, a aliança de Giolitti com os católicos caracteriza-se por uma grande
operação eleitoral que foi chamada “pacto Gentiloni” (do nome do conde Vincenzo

111
universal nas eleições de 1913® só é possível pela abolição do “non-
expedit” e o apoio da Igreja aos candidatos liberais. Gramsci sublinha
que este compromisso é fruto das necessidades: do lado governamental,
a política do bloco setentrional — aliança dos industriais e operários
do Norte — é abandonada em razão da radicalização do partido
socialista (expulsão dos giolittianos em 1912). A Igreja, por sua parte,
deve fazer frente a uma vaga de revoltas camponesas. O pacto Genti-
loni é, pois, a aliança defensiva das classes dirigentes contra os movi­
mentos populares:
“Giolitti muda de parceiro: substitui o bloco urbano (ou melhor,
opõe, para impedir a deslocação completa) pelo “Pacto Gentilo-
ni”, isto é, em última análise, um bloco entre a indústria do Norte
e os rurais do campo “orgânico e normal” (as forças eleitorais
católicas coincidiam com as socialistas geograficamente, isto é,
no Norte e no Centro) com extensão dos efeitos igualmente pelo
Sul, ao menos na medida necessária para “ratificar” utilmente
as consequências do alargamento da massa eleitoral.”’
O pacto Gentiloni marca, contudo, os limites do compromisso
católico: trata-se antes de um apoio tático, uma vez que os católicos
não se apresentam nas eleições, mas apoiam as candidaturas conser­
vadoras, evitando assim todo risco político. Tal participação, pensa
Gramsci

“falsificava o significado real da frente e da influência das forças


políticas tradicionais.”'®

Este compromisso irá mostrar-se insuficiente depois da guerra.


Enquanto o Pacto Gentiloni era a isca, segundo Gramsci, de uma

Gentiloni, presidente da união eleitoral católica); segundo seus termos os católicos


apoiariam os candidatos em acordo público (ou secreto) com seu programa (os
sete pontos de acordo mínimo).
Sobre esta questão: G. Candeloro, // movimento cattolico in Italia, Ed. Reuniti,
Roma pp. 360s. G. De Rosa, II movimento cattolico in Italia, Laterza, Bari pp. 337-358.
8 Em 1912, foi votada a lei eleitoral que instaura o sufrágio universal. Os
eleitores inscritos passam de 2.930.473 a 8.443.205.
A maioria dos novos eleitores era constituída por camponeses analfabetos do
Mezzogiomo.
9 R. p. 99.
10 R. p. 114.

112
subordinação indireta do Estado à Igreja,” a guerra vai inverter esta
relação de forças: em nível internacional, a vitória da Aliança consagra
o desaparecimento das forças feudais-clericais representadas pela
Áustria-Hungria e a condenação do legitimismo pontifício: o Estado
italiano sai reforçado do conflito na medida em que o Vaticano perdeu
seus principais apoios diplomáticos.
“O catolicismo, como doutrina e como hierarquia, foi vencido
pela vitória da Aliança, especialmente na Itália onde tem sua sede.
Triunfam as tendências liberais do calvinismo: a idéia do Estado
leigo firmou-se como consciência política operante. O Estado
italiano não tem mais necessidade da energia católica para frear
as forças sociais que ainda não estão maduras para a História.
Portanto, às vésperas de serem novamente excluídas da vida polí­
tica italiana, as forças católicas deverão se organizar para resistir à
ofensiva liberal.
Mas a ameaça mais séria situa-se ao nível das classes subalternas
e principalmente do campesinato.
A guerra acarreta uma modificação radical da mentalidade cam­
ponesa: 0 contato brutal com o mundo moderno, a vida de trincheira
quebram o quadro de vida tradicional e criam certa consciência de
classe’3. Depois da guerra, um movimento espontâneo de ocupação
das terras parece anunciar uma vasta insurreição camponesa. Este
movimento é reforçado pelo anúncio da revolução russa: a ameaça
russa faz com que a hegemonia da Igreja passe por um perigo mortal.
Por fim, um último fenômeno será determinante: o aparecimento
de novas formas de organização no seio do mundo católico: em razão
de sua exclusão voluntária da Itália “legal”, o catolicismo italiano, sob

11 Ê interessante notar que os Quaderni consideram o “pacto Gentiloni” como


um acordo defensivo entre duas forças iguais. Num artigo de 1918 consagrado aos
“Católicos italianos", Gramsci julgava que se tratava de uma tentativa de poder
indireto da Igreja:
“Desfigurado e corrompido, sem unidade e hierarquia nacional, o liberalismo acaba
por se subordinar ao catolicismo, cujas energias sociais são, ao contrário, fortemente
organizadas e centralizadas e possuem, na hierarquia eclesiástica, uma ossatura milenar,
soldada e preparada para cada forma de luta política e de conquista das consciên­
cias e das forças sociais: o Estado italiano se torna o executor do programa clerical,
e, com o pacto Gentiloni, culmina uma ação enganosa e tenaz para reduzir o Estado
a uma verdadeira e própria teocracia, para submeter a administração pública ao con­
trole indireto da hierarquia eclesiástica." (SG p. 347).
12 ibid. p. 349.
13 O.N. p. 24.

113
a influência de seus membros leigos mais ativos, se havia estruturado
em organizações paralelas ao aparelho eclesiástico:
“O Partido Popular não nasceu do nada, por um ato taumatúrgico
do deus dos exércitos. Ao lado das instituições religiosas do cato­
licismo, haviam aparecido, há algumas dezenas de anos, nume­
rosas instituições de caráter puramente terrestre, propondo-se
fins puramente materiais. Na Itália, existe um leque muito denso
de escolas muito florescentes, cooperativas, pequenos bancos de
crédito agrícola, corporações de ofícios administradas por católi­
cos, controladas direta ou indiretamente pela hierarquia eclesiás­
tica. O catolicismo, violentamente expulso dos negócios públicos,
privado de toda influência direta sobre a gestão do Estado, refu­
gia-se nos campos, encarna-se nos interesses locais e na pequena
atividade social desta parte da massa popular italiana que conti­
nuava a viver material e espiritualmente em pleno regime feudal.
Verifica-se com o catolicismo um fenômeno semelhante, sob di­
versos aspectos, ao constatado com os judeus: privados de todo
direito de propriedade imobiliária, os judeus tornaram-se os
maiores detentores de valores mobiliários da cristandade e conse­
guiram extorquir, com seu imenso poder financeiro, os Estados
confessionais pelos quais eram oprimidos política e espiritualmen­
te; privados do seu poder público pelos liberais, os católicos de
hoje, depois de se terem encarnado numa multidão de interesses
econômicos locais, organizam-se num sistema de formas sociais
e impõem-se ao Estado aconfessional que os tinha oprimido
espiritualmente e os havia expulsado da história da civilização.”'*'
Depois da guerra, esta organização paralela encontra-se brutal­
mente em cena e dá a si mesma uma estrutura política, o Partido
Popular Italiano.
O P.P.I. brota assim da confluência de uma iniciativa e de muitas
necessidades: a iniciativa de católicos leigos ou religiosos saídos desta
estrutura “paralela”, a necessidade de enquadrar as massas camponesas
e de resistir à ofensiva do liberalismo leigo. Estas fontes diversas
explicam a natureza complexa do P.P.I. mas também as contradições
da análise gramsciana dos anos 1918-1920: o partido popular é algu­
mas vezes a expressão de um catolicismo “que se fez carne”'^ à imagem

14 O.N. p. 284-285.
15 O.N. p. 285.

114
destas instituições paralelas, outras vezes a estrutura política das massas
camponesas, e ainda outras vezes a organização política da fração
clerical da classe dirigente. Somente em 1920 Gramsci sublinhará esta
dupla função do partido popular.

— o partido popular:

A criação do partido popular em 1919, que Gramsci considera


logo como
“o acontecimento mais importante da história italiana depois do
Risorgimento,”'*
marca o fim de um equívoco: a Itália legal une-se à Itália “real”.
Considerando nos Quaderni que as eleições de 1913 — primeiras
eleições legislativas com sufrágio universal — permitiram uma primeira
“unificação” do povo italiano, Gramsci sublinha que as de 1919 tive­
ram um verdadeiro caráter “constituinte”’^ na medida em que todas
as forças políticas e ideológicas se apresentam com sua bandeira
própria:
“Entre as diferenças de 1913 para 1919, é preciso lembrar a par­
ticipação ativa dos católicos, com seus próprios homens, seu
próprio partido, seu próprio programa.”’»
Com efeito, o partido popular agrupa o conjunto das camadas
sociais controladas pela Igreja e principalmente na Itália do Norte:
ele se apresenta assim essencialmente como um partido rural e não
como um puro partido camponês: se a classe camponesa lhe fornece o
conjunto de seu eleitorado, seus quadros políticos representam grupos
sociais muito variados e até mesmo antagônicos.
Gramsci distingue assim uma “direita”, um “centro ’ e uma
“esquerda”, representando cada qual forças bem precisas. Assim à
direita,
“o grupo de “extrema direita” é o grupo dos velhos católicos rea­
cionários: aristocracia negra, proprietários rurais, ligados não
tanto pelo respeito à Constituição do Estado italiano quanto pela
conservação da ordem existente. Que se tratasse de grupos cons­
titucionais no sentido estrito do termo prova-o o fato de terem

16 S.G. p. 349.
17 R. p. 113.
18 R. p. 114.

115
sido a alma da oposição clerical ao Estado italiano nos primeiros
decênios de sua vida e que só se uniram ao Estado italiano
quando foi necessário sustentá-lo para evitar a insurreição dos
operários e dos camponeses contra ele.””
Na outra extremidade do partido, a ala esquerda é representada
essencialmente pelo sindicalismo camponês, mas jamais elaborou uma
estratégia autônoma. Apesar disso, Gramsci considera que esta cor­
rente não foi desprezível na medida em que.
“levando para toda organização política popular um espírito em
contraste com suas finalidades e suas resoluções,”^®
constituiu um elemento de crise permanente no seio deste partido.
O problema diante do qual se encontra o “centro” que dirige o
partido é, pois, o de impedir que a luta de classes entre massas cam­
ponesas e senhores rurais leve do choque das tendências à explosão do
partido. Este grupo dirigente chegou a isto graças à sua origem social
e sobretudo à sua estratégia.
Com efeito, Gramsci sublinha que o “centro” é apenas uma fração
da direita real do partido; mas enquanto a direita oficial representava
organicamente a aristocracia rural, o “centro” não representa grupo
social algum.
Composto essencialmente de “profissionais”^', também chamados
intelectuais, saídos da pequena e média burguesia, leigos nas cidades
e religiosos no campo, o “centro” constitui o aparelho encarregado do
enquadramento político das massas católicas por conta das classes
dirigentes diretamente representadas no seio do partido até 1924 pela
“direita” oficial.
Esta função de enquadramento é facilitada pela estrutura e pelo
programa do partido: o partido popular, sublinha Gramsci, é um
partido de massa — com exceção do Mezzogiorno — animado pela
luta das tendências. Por sua base pode teoricamente exprimir-se ali.
Na realidade, sua ausência de vontade política clara e a habilidade do
“centro” o impedem de fazer isso.
O programa popular, de outro lado, é, ao menos nos primeiros
anos, um programa que reflete amplamente as aspirações da classe

19 CPC p. 10.
20 SF p. 20.
21 CPC p. 11.

116

1
camponesa. Programa reformista, certamente, mas que era aceito pelas
massas camponesas, segundo Gramsci.22
Fundamentalmente, a função política do partido popular não foi
mais do que a continuação, sob outras formas, da estratégia elaborada
por Giolitti e oficializada pelo pacto Gentiloni:
“manter as adesões de massa que o aparelho democrático da
Igreja oferecia, explorar este aparelho em período eleitoral para
a luta contra os partidos de classe e transformar as forças assim
reunidas em apoio permanente do Estado.”23
De outro lado, é o P.P.I. que constituirá a principal força do
governo Giolitti face às greves insurrecionais de 1920.
A partir de 1922 e da marcha sobre Roma, o partido popular
vai se enfraquecendo paulatinamente para desaparecer em 1926. Como
explicar este desaparecimento? Em seus numerosos artigos consagrados
aos populares, Gramsci dá uma explicação bastante clara: fundamen­
talmente, o P.P.I. desaparece por ter esgotado sua função histórica:
“O grupo burguês que recrutou e dirigiu politicamente as massas
populares no após-guerra esgotou sua função. A verdadeira crise
do partido popular está ali.”^'*
Politicamente, seu desaparecimento é a conseqüência de três
fracassos:
— em nível interno, o partido popular foi incapaz de resolver as
contradições que o paralisavam: em primeiro lugar contradição entre
seu caráter de partido de massa e seus vínculos com a classe dirigente
e a hierarquia. Esta oposição traduziu-se concretamente pelas lutas de
facções, pelo contraste crescente entre
“a mentalidade do programa do partido, e a mentalidade e o
programa das massas que o seguem.”^^
Sob a pressão conjugada dos fascistas e do P.C.I., esta oposição
vai acarretar a saída da extrema-direita pró-fascista — “Centro cató­
lico” — em 1924 e a expulsão da extrema-esquerda — Maglioli —
em 1925.

22 ibid.
23 CPC pp. 10-11.
24 ibid.
25 ibid.

117
Contradição também no seio dos órgãos dirigentes do P.P.I.:
enquanto o aparelho do partido passou às mãos da pequena burguesia
leiga e religiosa, o grupo parlamentar era controlado pela aristocracia
rural e pela hierarquia:

“Vimos 0 partido popular conquistar 100 cadeiras no Parlamento


com listas bloqueadas, nas quais os representantes do barão lati­
fundiário, do grande proprietário de florestas, do grande e médio
proprietário rural têm a maioria absoluta, enquanto a população
camponesa não tem mais do que uma minoria exígua.”^*
Da mesma forma, quando as organizações locais ou o aparelho
do partido tentarem aproximar-se dos socialistas, estas tentativas entra­
rão em choque com a oposição absoluta de um grupo parlamentar
amplamente favorável a um entendimento com o fascismo.
Por fim, Gramsci sublinha que uma das grandes fraquezas do
partido popular foi o fato de ter sido uma força parlamentar quando,
a partir de 1921, a luta decisiva não se travava mais no parlamento;
comparando assim a força respectiva dos populares e dos senhores
rurais, Gramsci sublinha que

“com relação aos populares, os senhores rurais não representam


mais do que uma fraca minoria. Mas a força efetiva dos seus
deputados nas esferas governamentais ultrapassa a força dos
populares. O que conta hoje em dia não é o número dos depu­
tados, mas as forças organizadas que se possui no país. Deste
ponto de vista, os senhores rurais são muito mais fortes do que
os populares.”^^

Esta paralisia interna e a fraqueza extraparlamentar dos popu­


lares explica por que Gramsci considera que o P.P.I. foi “cúmplice”^^
do fascismo: incapaz de defender as massas que ele representa e sua
própria organização frente às exações fascistas, este partido facilita a
vitória fascista ao neutralizar uma parte das massas populares.
De fato, frente ao fascismo, o partido popular revelou-se despro­
vido de estratégia política.
Mas esta impotência popular é sobretudo conseqüência do aban­
dono deste partido por parte do Vaticano e da hierarquia. Quando em

26 ON p. 159.
27 SF pp. 311-312.
28 SF p. 246.

118
1923, os populares se retiraram do governo Mussolini, começa sua
condenação pelo Vaticano: a aproximação com os socialistas, depois
da questão Matteotti,^’ é vivamente condenada pelo Vaticano, favo­
rável a uma coalizão entre fascistas e populares; desde então,
“os populares, privados do apoio do Vaticano, saem um pouco
do cenário.”3°
Gramsci explica este abandono pela inquietação do Vaticano
diante da evolução do P.P.I., mas também pela orientação ampla­
mente pró-fascista da hierarquia eclesiástica: esta, tradicionalmente
ligada à aristocracia rural e proveniente em grande parte da classe
dirigente, vai negociar seu apoio ao fascismo. No artigo de 1924 consa­
grado ao Vaticano, Gramsci considera que a reviravolta estratégica
da Igreja remonta a 1922: o apoio ao fascismo não é mais do que a
conseqüência de reorientação pró-clerical de Mussolini:
“O fascismo, antes de tentar seu golpe de Estado, teve que se
pôr de acordo com o Vaticano.”^'
A partir de então, o Vaticano deixará que o fascismo abata
progressivamente o partido popular e os sindicatos católicos, chegando
mesmo a facilitar sua tarefa desautorizando Don Sturzo, secretário
geral do P.P.I. e condenando toda aproximação com os partidos demo­
cráticos. Pelo contrário, como Gramsci notará no Congresso de Lion
e sobretudo nos Quaderni, a Ação Católica vê seu papel consideravel­
mente reforçado.
Em contrapartida, o Estado fascista, com a salvação financeira do
Vaticano, a reforma escolar de 1923 e os Acordos de Latrão, deverá
“pagar convenientemente”^^ este apoio da Igreja.
O partido popular não viveu mais do que seis anos. Apesar disso
Gramsci se recusa a considerá-lo como um simples episódio na história
do catolicismo italiano; mas, se discerne claramente os efeitos deste

29 Em junho de 1924, depois de um violento discurso contra o governo Musso­


lini, o deputado socialista Matteotti é sequestrado e assassinado por fascistas sob a
responsabilidade direta dos dirigentes. Os partidos democráticos se retiram do Parla­
mento para formar um “antiparlamento”. Os comunistas se retiram, censurando a
passividade dos outros grupos. De fato, passada a crise, os fascistas reassumirão o
controle da situação e esmagarão definitivamente a oposição.
30 CPC p. 355.
31 CPC p. 523.
32 CPC p. 523.

119
fracasso político, a um prazo mais ou menos longo, Gramsci fica
muito mais indeciso sobre o alcance da experiência política popular.
Os efeitos desta experiência são evidentes; a curto prazo, o parti­
do popular desempenhou perfeitamente sua função; canalizar’ o movi­
mento das massas camponesas e assim impedir o êxito da revolução,
mas também proteger- o aparelho eclesiástico apresentando-se diante
da cena. Mas, a longo prazo, o partido popular provocou o apareci­
mento de um certo número de práticas perigosas para a hierarquia;
fortalecimento do peso político dos leigos e do baixo-clero, criação de
uma nova categoria de dirigentes católicos designados pelo povo, intro­
dução de uma prática e de um vocabulário tirados das forças leigas e
totalmente estranhas à tradição católica; o desaparecimento do partido
popular, pensa Gramsci, terá como efeito frear esta evolução.
Será que um partido popular poderá renascer na Itália? Neste
ponto a resposta de Gramsci não é evidente. Em 1919, a assimilação
abusiva à revolução russa o havia levado a considerar o partido popu­
lar como o equivalente do menchevismo destinado como ele a uma
explosão rápida. Daqui para frente, Gramsci não cessa de perscrutar a
evolução do PPI na esperança de vislumbrar os sinais de sua explosão.
Ora, o partido popular não desapareceu em conseqüência de uma
crise interna proveniente da revolução, mas por causa do seu abandono
por parte do Vaticano interessado numa aliança frutuosa com o
fascismo.
Por isso, o problema é saber se um partido popular é uma forma
de arregimentação política por parte da Igreja.
Nos Quaderni, Gramsci sublinha que o abandono do PPI na
Itália não implica numa opção da Igreja pelo fascismo em todos os
países. De fato, a aliança com Mussolini foi a solução normal para a
Igreja, na medida em que o partido popular tinha alcançado seu prin­
cipal objetivo e se tornava um risco de cisão das forças católicas. Ao
contrário, a política do Vaticano na França, vai mostrar que a criação
de um partido católico permanece, na época dos Acordos de Latrão,
uma escolha política possível. Mas também é certo que, paradoxal­
mente, o desaparecimento do PPI vai permitir à Igreja dar um novo
passo em direção à volta dos antigos privilégios.

— As concordatas.

Um dos aspectos mais interessantes dos Quaderni a propósito da


questão religiosa oferece-se ao problema da concordata de 1929 e das
consequências que ela acarreta em nível de relações Igreja-Estado.

120
Comentário vivo da atualidade, ela fornece a Gramsci a ocasião de
sublinhar a consumação da aliança da Igreja com o Estado burguês.
Mas permite-lhe também construir hipóteses sobre a evolução destas
relações.
As análises do período 1923-26 haviam sublinhado a aproximação
política do Vaticano e do fascismo, chegando à liquidação do partido
popular e ao apoio direto da Igreja. Os Quaderni não voltam a este
aspecto da questão, mas analisam de um lado a natureza do fascismo
__notas sobre o “cesarismo” —, e de outro a aproximação ideológica
entre Igreja e Estado fascista: esta aproximação, sancionada pelos
Acordos de Latrão, fixa por um período inteiro a reestruturação da
sociedade civil e as funções da Igreja no seio desta sociedade civil;
nisto a concordata apresenta um duplo caráter: regulamenta as rela­
ções políticas imediatas entre Igreja e Estado fascista, mas sobretudo
as relações ideológicas entre a Igreja, aparelho ideológico tradicional,
e o Estado burguês em geral. Nos Quaderni, esta distinção leva ao
estudo das características gerais das concordatas como resolução do
conflito entre intelectuais leigos e intelectuais religiosos — e os Acor­
dos de Latrão não são os únicos deste período —, assim como à aná­
lise do problema propriamente italiano.
A concordata é o ato jurídico que consagra a partilha da com­
petência entre intelectuais leigos e intelectuais religiosos no controle
da sociedade civil. A conclusão de 28 concordatas — ou modus
vivendi” — entre o Vaticano e os Estados ocidentais — entre as
quais estão as de 1929 com o Estado italiano e de 1933 com o Ter­
ceiro Reich — confirma a convicção de Gramsci de que se trata da
última fase da aliança da Igreja. Para alem das circunstancias políticas
diversas nas quais estas concordatas foram feitas, sua característica
fundamental é a mesma: no nível jurídico como no nível político, a
concordata consagra a “capitulação” do Estado diante da Igreja. Capi­
tulação jurídica na medida em que o Estado aceita sem contrapartida
uma partilha de soberania com a Igreja sobre seu próprio território;
Gramsci vê nesta co-soberania uma sobrevivência longínqua da sobe­
rania medieval da Igreja sobre os Estados europeus.^

34 “A capitulação do Estado moderno através das concordatas é mascarada,


identificando-se verbalmente concordatas com tratados internacionais. Mas uma con­
cordata não é um tratado internacional comum: com a concordata verifica-se, de fato,
uma interferência de soberania num único território estatal, pois todos os artigos de
uma concordata referem-se aos cidadãos de apenas um dos Estados contratantes, sobre
os quais o poder soberano de um Estada estranho justifica e reivindica determinados
direitos e poderes de jurisdição (mesmo sendo uma determinada e especial jurisdição).

121
Mas sobretudo capitulação política — uma vez que a capitulação
jurídica não é mais do que sua tradução jurídica —: a concordata é
a confissão por parte do Estado — em sentido amplo — e portanto
de seus intelectuais leigos, de sua incapacidade ideológica e política
de estabelecer a hegemonia sobre os grupos subalternos; diante das
deficiências de seus intelectuais orgânicos, a burguesia resolve utilizar
os serviços de uma casta de intelectuais tradicionais que seus próprios
intelectuais combateram, mas cujos métodos se mostraram positivos:
a Igreja, que ainda conserva o controle de amplas camadas de classes
subalternas, se compromete a favorecer sua adesão ao Estado burguês:
“O Estado obtém uma contrapartida? Certamente, mas obtém-na
no seu próprio território e no que se refere aos seus próprios
cidadãos. O Estado consegue (e neste caso dir-se-ia melhor o
governo) que a Igreja não dificulte o exercício do poder, mas

Que poderes adquiriu o Reich sobre a Cidade do Vaticano em virtude da recente


concordata? A fundação da Cidade do Vaticano dá uma aparência de legitimidade-
ã ficção jurídica de que a concordata é um tratado internacional bilateral comum.
Mas, inclusive, antes de a Cidade do Vaticano existir, verificavam-se concordatas, o
que significa que o território não é essencial para a autoridade pontifícia (pelo
menos deste ponto de vista). Apenas uma aparência, pois enquanto a concordata
limita a autoridade estatal de uma das partes contratantes, no seu próprio território,
e influi e determina a sua legislação e a sua administração, nenhuma limitação é
assinalada para o território da outra parte. Se existe alguma limitação para esta outra
parte, ela se refere à atividade desenvolvida no território do primeiro Estado, seja
pelos cidadãos da Cidade do Vaticano, seja pelos cidadãos do outro Estado que são
representados pela Cidade do Vaticano. Portanto, a concordata é o reconhecimento
explícito de uma dúplice soberania num mesmo território estatal. É claro que não se
trata mais da mesma forma de soberania supranacional (suzerainité), como era for­
malmente reconhecida pelo Papa na Idade Média, até às monarquias absolutas e, sob
outra forma, mesmo depois, até 1848; mas é uma derivação dela, necessária e de
compromisso.
Além do mais, mesmo nos períodos mais esplendorosos do Papado e do seu
poder supranacional, as coisas não andaram sempre bem: a supremacia papal, embora
reconhecida juridicamente, era contrastada de fato, de modo muitas vezes áspero, e,
na hipótese mais otimista, reduzia-se aos privilégios políticos, econômicos e fiscais
do episcopado em cada país.” (Maq. pp. 303-304). A propósito dos Acordos de
Latrão Gramsci sublinha que “aceitando-se dois instrumentos distintos no estabeleci­
mento das relações entre Estado e Igreja, o tratado e a Concordata, aceitou-se obriga­
toriamente este terreno. O tratado determina estas relações entre dois Estados, a
Concordata determina as relações entre duas soberanias no “mesmo Estado", isto é,
admite-se que no mesmo Estado existem duas soberanias iguais, pois elas discutem
em paridade de condições (cada uma na sua ordem). Naturalmente, também a Igreja
sustenta que não existe confusão de soberanias, isto porque sustenta que ao Estado
não compete a soberania sobre o “espiritual", e se o Estado se arroga esse direito
comete uma usurpação. Além do mais, a Igreja também sustenta que não pode haver
dupla soberania sobre a mesma ordem de objetivo, isto exatamente porque sustenta
a distinção dos fins e declara-se a única soberana no terreno do espiritual " (Maq
P. 314). ■

122
favoreça-o e sustente-o assim como uma muleta sustenta o invá­
lido. A Igreja, assim, compromete-se com uma determinada forma
de governo (que é determinada do exterior, como documenta a
própria concordata) a promover aquele consentimento de uma
parte dos governados que o Estado, explicitamente, reconhece
não poder obter com os seus meios.”^®
Portanto, tal capitulação do Estado aparece como uma volta
parcial à situação da Igreja antes da Reforma; a de uma casta de
intelectuais gozando de importantes privilégios ideológicos e políticos,
que o Estado burguês salva de um declínio irremediável para se salvar
ele mesmo:
“No desenvolvimento da História moderna, fora atacado e
destruído um monopólio de função social que explicava e justifi­
cava a existência daquela casta, o monopólio da cultura e da
educação. A concordata reconhece de novo este monopólio, mes­
mo atenuado e controlado, pois assegura à casta posição e condi­
ções preliminares que com as suas forças apenas, com a adesão
intrínseca da sua concepção do mundo à realidade fatual, não
poderia ter e manter.”3*
Deste ponto de vista, a concordata de 1929 constitui o exemplo
perfeito desta recuperação da sociedade civil pela Igreja.

— o concordata de 1929

O período de 1870-1914 tinha visto a hegemonia ideológica dos


intelectuais leigos liberais — principalmente Benedetto Croce —, que
se traduzia na prática pela exclusão da Igreja de uma série de ramos
da sociedade civil com a sanção do anticlericalismo. O período de
pós-guerra marca o congelamento do conflito e o retorno decidido do
catolicismo. Gramsci considera a concordata como uma fusão e uma
capitulação. Fusão na medida em que a entrada em massa dos católicos
no aparelho de Estado e sobretudo na sociedade civil — principal­
mente no aparelho escolar — levanta o problema da unidade ideoló­
gica dos dois grupos de intelectuais. Depois da concordata, a relação
de força entre as diversas tendências do bloco intelectual encontra-se
efetivamente abalada: no nível dos grandes intelectuais

35 Maq. p. 304
36 Maq. p. 304.

123
“Coloca-se o problema de quem mais adequadamente represente
a sociedade italiana contemporânea, do ponto de vista teórico e
moral: o papa, Croce, Gentile; isto é: 1) quem tenha mais impor­
tância do ponto de vista da hegemonia, como ordenador da
ideologia que empresta o cimento mais íntimo à sociedade civil e,
portanto, ao Estado; 2) quem representa melhor, no exterior, o
influxo italiano no quadro da cultura mundial.
Efetivamente, segundo Gramsci, os dois verdadeiros líderes inte­
lectuais permanecem Croce e o Papa. O filósofo fascista Gentile,^»
apesar das circunstâncias políticas que lhe são favoráveis, continua
sendo um teórico menor na medida em que sua influência é limitada
mesmo em seu próprio meio político.^’
A posição de Croce permanece, pois, hegemônica entre os intelec­
tuais leigos, mas ela se enfraquece por duas razões: não sendo mais
ele mesmo uma alternativa no sistema depois da unificação das cama­
das intelectuais, não atrai mais os intelectuais dos grupos subalternos:
“A entrada em massa dos católicos na vida estatal após a concor­
data tornou muito difícil a obra de “transformismo”‘'° das novas
forças de origem democrática.”^’
Enfraquecimento também na medida em que as novas classes
intelectuais que controlam o Estado e a sociedade civil não estão sob
sua influência: de um lado, os novos quadros saídos do fascismo, de
outro, os católicos que entraram no Estado depois da concordata;
para restabelecer esta hegemonia

37 CDH pp. 283-284.


38 Giovanní Gentile (1875-1944): um dos mais importantes filósofos idealistas
italianos. Sua redução da realidade e de toda atividade espiritual ao “ato” de pensar
(de onde o nome de “atualismo” que deu à sua filosofia) aproximava-o das correntes
ultra-românticas do fim do século XIX. Tendo se tornado teórico do fascismo, foi
ministro da Educação no governo Mussolini de 1922 e elaborou a reforma do ensino
(chamada reforma Gentile) que instaurou o controle da Igreja.
39 "Ao que me parece, a filosofia de Gentile, o atualismo, é mais nacional
apenas no sentido que é estreitamente ligado a uma fase primitiva do Estado, ao
estágio econômico-corporativo, no qual todos os galos são pardos. Por esta mesma
razão, pode-se acreditar na maior importância e influência desta filosofia, da mesma
forma como muitos acreditam que, no Parlamento, um industrial é mais do que um
advogado representante dos interesses industriais (ou um professor, ou mesmo um
líder dos sindicatos operários) sem pensar que, se toda a maioria parlamentar fosse de
industriais, o Parlamento perdería imediatamente a sua função de mediação política e
qualquer prestígio." (CDH pp. 284-285).
40 Sobre o transformismo; Portelli op. cit., pp 69-74.
41 CDH p. 285.

124
“É necessária uma dupla obra de educação por parte dos respon­
sáveis: educação do novo pessoal dirigente, que deve ser “trans­
formado” e assimilado; e educação da parte católica, que pelo
menos deverá ser subordinada (em certas condições, também
subordinar é e d u c a r ) . ”^2

Por outro lado, tal formação ideológica não poderá efetuar-se


facilmente na medida em que a educação está sob o controle da
Igreja e por isso deverá efetuar-se por intermédio de órgãos “privados”
da sociedade civil, não submetidos ao controle da Igreja:
“A Concordata — quando introduziu na vida estatal uma grande
massa de católicos como tais, e. como tais privilegiados — que
colocou o problema da educação da classe dirigente, não nos
termos de “Estado ético”, mas nos termos de “sociedade civil”
educadora, isto é, de uma educação por iniciativa “privada” que
entra em concorrência com a católica, que ocupa agora, na socie­
dade civil, um lugar importante e em condições especiais.
Assim sendo, poder-se-ia crer que o Papa voltou a ser, com a
concordata, a base do bloco intelectual. Gramsci não acredita nisso
porque considera que a religião não pode mais reencontrar sua influên­
cia entre os intelectuais, mas sobretudo porque o compromisso passado
entre a Igreja e o Estado fascista diminui ainda mais a autonomia do
aparelho eclesiástico:
“O papa, como chefe e guia da maioria dos camponeses italianos
e das mulheres (e porque a sua autoridade e influência operam
através de toda uma organização centralizada e bem articulada),
é uma grande força política, a maior do país depois do governo;
mas sua autoridade tornou-se passiva e é aceita por inércia; já
antes da Concordata ela era, de fato, um reflexo da autoridade
estatal.”'^
Mas a relação de forças entre intelectuais leigos e religiosos (ou
“intelectuais de casta”) coloca-se sobretudo em nível da sociedade
civil. Gramsci julga que a luta chegou a uma verdadeira “capitulação”
dos intelectuais leigos; a concordata instaura uma verdadeira hegemo-

42 ibid.
43 CDH p. 286.

44 CDH p. 284.

125
nia da Igreja sobre o aparelho escolar, diretamente em nível da escola
elementar — em outros termos, da escola das classes subalternas —,
indiretamente em nível da Universidade, relegando assim os intelectuais
leigos a um papel secundário:

“É útil estudar a divisão do trabalho que se procura estabelecer


entre a casta e os intelectuais leigos: à primeira entrega-se a
formação intelectual e moral dos mais jovens (escolas elementa­
res e médias), aos outros o desenvolvimento posterior do jovem
na Universidade. Mas a escola universitária não é submetida ao
mesmo regime de monopólio ao qual, ao contrário, submete-se a
escola elementar e média. Existe a Universidade do Sagrado
Coração e poderão ser organizadas outras Universidades católicas
equiparadas em tudo às Universidades estatais. As conseqüências
são óbvias: a escola elementar e média é a escola popular da
pequena burguesia, camadas sociais que são monopolizadas edu­
cativamente pela casta, pois a maioria dos seus elementos não
chegam à Universidade, isto é, não conhecerão a educação moder­
na na sua fase superior crítico-histórica, mas só conhecerão a
educação dogmática.
A Universidade é a escola da classe (e do pessoal) dirigente, é o
mecanismo através do qual faz-se a seleção dos indivíduos das
outras classes que devem ser incorporados no quadro governante,
administrativo, dirigente. Mas, com a existência em igualdade de
condições de Universidades católicas, também a formação desses
quadros não será mais homogênea e unitária. Não apenas isto,
mas a casta, nas suas Universidades, realizará uma concentração
de cultura laico-religiosa como há decênios não se via e se situará
efetivamente em condições muito melhores que a concentração
laico-estatal.”'^^

Nesta notável análise do aparelho escolar do Estado fascista,


Gramsci mostra que o resultado da reforma escolar é realizar uma
volta ao monopólio escolar da Igreja medieval, tornando-se o catoli­
cismo novamente a ideologia oficial do aparelho escolar. Mas sobre­
tudo, ao formar os quadros do Estado e da sociedade civil, a Igreja
formará os instrumentos de seu domínio sobre o Estado. Quanto ao
monopólio da escola elementar, demonstra que para a classe dirigente
a religião permanece a melhor forma de enquadramento ideológico

45 Maq. p. 305.

126
das classes subalternas. Isso prova também que os intelectuais leigos
foram incapazes de lhe opor outro sistema pedagógico."** A reforma

46 Gramsci sublinha nos Quaderni que com a reforma Gentile e a concordata,


a Igreja reencontra o monopólio escolar que exercia na Idade Média. Mas as condi­
ções desta vez são mais favoráveis: Na Idade Média, este monopólio apoiava-se, de
um lado, no controle das Universidades e, de outro, no ensino paroquial pelo baixo
clero. Com a reforma escolar fascista, a Igreja tem um quase-monopólio, mas bene­
ficiando-se de um verdadeiro aparelho escolar moderno.
Como se chegou a este resultado? Gramsci explica isso pela evolução da atitude
dos intelectuais leigos frente ao problema escolar. Na época do Risorgimento, o anta­
gonismo “pedagógico” entre liberais e a Igreja alcança seu ponto culminante: para
separar a Igreja da massa dos intelectuais, e portanto dos professores, os moderados
desenvolveram um verdadeiro “movimento pedagógico” dirigido contra as escolas jesuí­
tas e propondo uma política escolar autônoma, leiga, que se uniu aos professores
leigos moderados, mas também aos religiosos hostis aos jesuítas.
Esta atitude ofensiva sofre um golpe no início do século: o idealismo — princi­
palmente croceano — não consegue prolongar-se por um movimento pedagógico:
"partindo das filosofias imanentistas nem mesmo se tentou construir uma concepção
que pudesse substituir a religião na educação infantil". (CDH p. 17). Sobre a crítica a
Croce ver infra, pp. 173ss.
De fato, a única iniciativa interessante foi a das “Universidades populares”:
“Também o idealismo se manifestou contrário aos movimentos culturais de “ida até
o povo", expressos nas chamadas Universidades populares e instituições similares, e
não apenas pelos seus aspectos equivocados, já que nesse caso deveriam tão somente
procurar fazer melhor. Todavia, estes movimentos eram dignos de interesse e
mereciam ser estudados: eles tiveram êxito, no sentido em que revelaram, da parte
dos “simplórios”, um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma
forma superior de cultura e de concepção do mundo. Faltava-lhes, porém, qualquer
organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativa e de centra­
lização cultural; tinha-se a impressão de que eles se assemelhavam aos primeiros
contatos entre os mercadores ingleses e os negros africanos: trocavam-se berloques
por pepitas de ouro.” (CDH pp. 17-18).
Excetuando estas tentativas utopistas, o idealismo foi estéril no domínio pedagógi­
co pela recusa de ser popular: afirmando a religião “boa para o povo”, os idealistas
davam assim uma justificação teórica aos que propunham confiar à Igreja o mono­
pólio das escolas elementares; a reforma Gentile é a conseqüéncia desta esterilidade
puramente aristocrática — que Gramsci compara ao Renascimento —; parece signifi­
cativo para Gramsci o aval dado pelos dois grandes filósofos idealistas italianos a
esta política: Croce é assim acusado por Gramsci de ter proposto como ministro da
educação do governo Giolitti (1920-21) uma política escolar nada desfavorável
à Igreja (cfr. CDH p. 258), abrindo assim o caminho a Gentile e à “capitulação”
completa diante da Igreja.
A reforma escolar fascista introduz em nível pedagógico a mesma ruptura exis­
tente no nível religioso entre intelectuais e massas.
Mais fundamentalmente, como sublinha L. Borghi, Gramsci considera que os
idealistas e católicos afirmam partilhar uma mesma concepção pedagógica, que repou­
sa sobre uma supervalorização do domínio espiritual e sua separação da estrutura
econômica e social. “Católicos e idealistas formavam uma frente comum com o fascis­
mo e ofereciam ao fascismo a arma central de sua pedagogia, que é a identificação
conceituai da superioridade das atividades intelectuais e espirituais sobre as econômicas
e produtivas e a concordância das estruturas existentes da sociedade com esta hierar­
quia de valores e fins. O isolamento do momento intelectual e espiritual do econômico
como momento hegemônico consagrava e racionalizava a estratificação social existente

127
escolar fascista fornece assim a prova de que a Igreja continuou sendo
a principal força ideológica. Mas a concordata tem sobretudo impor­
tantes efeitos sobre a organização eclesiástica propriamente dita.
Gramsci lembra que a conseqüência essencial do recuo da Igreja
depois de 1870 foi a crise econômica que atingiu o clero e diminuiu as
vocações. Com os Acordos de Latrão “o Estado salvou a Igreja.”'*^
Os efeitos desta ajuda manifestam-se num duplo nível: o da car­
reira eclesiástica que se vê revalorizada graças à ajuda financeira do
Estado ao clero e que faz aumentar assim as vocações:
“As condições econômicas do clero melhoraram muitas vezes,
enquanto o nível de vida geral, mais especialmente o das camadas
médias, piorou. A melhoria foi de tal ordem que as “vocações”
multiplicaram-se miraculosamente, impressionando o próprio Pon­
tífice, que as explicava exatamente a partir da nova situação
econômica. A base da escolha dos capazes à missão sacerdotal foi
assim ampliada, permitindo mais rigor e maiores exigências cul­
turais.”'*®
O fortalecimento da Igreja manifesta-se também em nível do
Estado e da sociedade civil — e principalmente do aparelho escolar
— graças ao estreito controle que a concordata concede à Igreja. Este
reforço é ao mesmo tempo obra dos quadros leigos da Ação católica.
Portanto, é o conjunto do bloco intelectual católico que se encontra
reforçado depois da concordata.
“Todavia, Gramsci levanta um problema delicado: o saneamento
econômico da Igreja é devido a dois fatores. De um lado, a con­
cordata que reforça o papel do clero e da Igreja na sociedade
civil; mas sobretudo o acordo financeiro feito entre a Igreja e o
Estado fascista no quadro dos acordos de Latrão. O problema
levantado a partir de 1929 era o de saber se o tratado que
comportava a convenção financeira — convenção da qual Gram­
sci sublinha que “deve ser considerada como a parte essencial do
próprio tratado”,^’ está separada da concordata e por isso se

e fixava em seu estatuto de sujeição, como a um destino, as classes operárias."


(Lamberto Borghi, Educazione e scuola in Gramsci, in Gramsci e la cultura contem­
porânea, Riuniti, T. I, p. 224).
Sobre as tentativas de aproximação entre correntes católicas e idealistas, CDH
p. 212.
47 Maq. p. 307.
48 ibid.
49 Maq. p. 309.

128
pode ser denunciada separadamente. Tal denúncia, sublinha ele,
“desencadearia tamanha crise na organização prática da Igreja
que a sua solvência, mesmo a longo prazo, seria reduzida a
nada.”“ A afirmação pela Igreja de que o tratado e a concordata
estão indissoluvelmente ligados (encíclica Quinquagesimo armo)
tem por finalidade evitar o possível questionamento desta matéria
por regimes posteriores: “Esta afirmação reiterada do Papa tem
grande valor: talvez tenha sido feita e repetida não somente tendo
em vista o governo italiano, com o qual os dois atos foram
concluídos, mas especialmente como salvaguarda em caso de
mudança do governo.”^'
Com a concordata completa-se, pois, a adaptação e a aliança da
Igreja católica à nova sociedade civil. Mas para obter tal resultado,
a Igreja hipotecou gravemente a sua independência: seu futuro ficou
ligado a esta aliança; a Igreja deverá sustentar o Estado burguês —
liberal e fascista — para salvaguardar seus privilégios.
Todavia, as concordatas tiveram uma vantagem considerável para
a Igreja, pois permitiram encerrar uma longa série de crises e reforçar,
por fim, seu controle do bloco ideológico católico.

50 ibid.
51 Maq. pp. 309-310.

129
* « m c. m f I m i m ^ ■' f i r «m «i-
• • > « i A ^ i » - « b '^ > *í*Nrnél • .• m i
n^%U*«<r'n‘ ÜWfc«*4b» • —
^ -'•irtt/Ttín^ ^<41
(tp- - ^jtfJw ^«arfai^M »*p4>V M w aA t» « —
‘Cà^nfrt «>íiyinjljmi^tr)jl<Pi<7 IUllÍR(.i> a f l l ^ i ^
y^r«inA <Pi ^ n < i ^ , o n i i ln l i i y <«— é i i p y — fci«c>^»
l ÉB C iU à t .M ( á ll ^ M i
fi''lh i« |i« k « ia M « B k ^ W > »ü[)v
I ‘‘ •A

à '> 4 i^ '« v tj^ j—llO c ip te « i< ln ll> sa « t« * > ^


» . y f t * . iiw. itiy
f i .t^ n iÉ n u «Mtn â wèUiiív ■
>4hu«I^ I » 4 ^ 0 i4'1WÍ

I. hi>{ jpPfAUiU)«K iii«^gUKP« I 1^1* ,!»/>('

^ |lrrU lM M l» « I

iW X«t >' - .» « I a ‘*|ftfc


Vtík. ^ i . « ~f

4 ..
••I»
T J— -=

>«•

r •
CAPITULO III

O BLOCO IDEOLÓGICO CATÓLICO

— a relação Igreja-fiéis — a estrutura do bloco católico

* Se a Igreja pôde resistir às crises ideológicas de todos os tipos,


deve-o, antes de mais nada, à sua notável organização, que Gramsci
cita constantemente como exemplo. Esta organização da Igreja, tal
como é analisada nos Quaderni, proveio do Concilio de Trento, mas
sobretudo da reestruturação que se seguiu ao fracasso da Restauração.
Gramsci volta quase sempre a estas suas conclusões anteriores a 1924
e à sua apreciação do papel do Partido popular na Itália do após-
guerra: o fato de que o Vaticano tenha forçado o partido popular a
naufragar para assinar a concordata com Mussolini leva-o a reconsi­
derar a função das diferentes organizações no seio do aparelho ecle­
siástico e principalmente a da Ação Católica.
Mas a sustentação das posições ideológicas da Igreja reside igual­
mente na coesão mais ou menos formal que ela soube manter no seio
do mundo católico. É sobre os caracteres essenciais da relação entre
a Igreja e os fiéis que Gramsci se debruça nos Quaderni, analisando
assim o modelo mais clássico de relação entre intelectuais e massas.

1. A relação Igreja-fiéis

O desejo de manter a unidade ideológica do mundo católico obri­


ga a Igreja a uma adaptação delicada que torna esta manutenção
aleatória. Às antigas dificuldades, que não desapareceram com a Con-*

* Por “bloco ideológico” ou “bloco intelectual” Gramsci entende o conjunto


dos intelectuais encarregados de administrar a sociedade civil (aparelhos ideológicos).
O bloco ideológico católico agrupa, portanto, o conjunto dos intelectuais religiosos
(clero) e leigos (Ação católica, partido e sindicato católico) que enquadram a massa
dos fiéis. Sobre este conceito, ver H. Portelli, op. cit., pp. 65-69 e 98-102.

131
tra-Reforma, acrescentam-se as que se seguiram às medidas adotadas
a partir do concilio de Trento. A complexidade das relações Igreja-
fiéis provém essencialmente da contradição entre a necessidade de
unidade ideológica e a vontade da Igreja de permanecer exterior à
massa dos fiéis.

— a unidade ideológica necessária:

A manutenção da coesão ideológica do bloco católico é o objetivo


permanente da Igreja. Ela chega a isso por dois meios: o primeiro é
puramente técnico e baseia-se na “manutenção” permanente da fé:
“A religião — ou uma igreja determinada — mantém a sua comu­
nidade de fiéis (dentro de certos limites fixados pelas necessidades
do desenvolvimentos histórico global) na medida em que mantém
permanente e organizadamente a própria fé, repetindo infatigavel­
mente a sua apologética, lutando sempre e em cada momento
contra argumentos similares, e mantendo uma hierarquia de inte­
lectuais que emprestem à fé pelo menos a aparência da dignidade
do pensamento.”'
A manutenção das “práticas habituais” é a condição necessária
para a sobrevivência da religião, pois elas constituem a forma essencial
das relações cultuais entre os fiéis e Deus.
A Igreja se esforça constantemente por melhorar o vínculo cultuai,
sobretudo tornando-o efetivo desde a infância. Uma das maiores ma­
nifestações desta orientação consiste na diminuição da idade da pri­
meira comunhão:
“Uma das medidas mais importantes cogitadas pela Igreja para re­
forçar as suas fileiras nos tempos modernos é a obrigação impos­
ta às famílias para promover a primeira comunhão aos sete anos.
Compreende-se o efeito psicológico que deve ter sobre crianças de
sete anos o aparato cerimonial da primeira comunhão, seja como
acontecimento familiar individual, seja como acontecimento cole­
tivo: e a fonte de terror que ele representa, e, portanto, de obe­
diência à Igreja. Trata-se de “comprometer” o espírito infantil
assim que ele começa a refletir. Compreende-se então a resistência
que a medida suscitou entre as famílias, preocupadas com os
efeitos deletérios sobre o espírito infantil desse misticismo pre­
coce, e a luta da Igreja para vencer essa oposição.”^
1 CDH p. 27.
2 Maq. pp. 293-294.

132
Gramsci sublinha que o reforço das práticas cultuais é tanto
mais indispensável pelo fato de a Igreja viver na obsessão de uma
ruptura análoga àquela da Revolução francesa.^ Ora, fenômenos como
o hitlerismo mostram que o perigo permanece ameaçador, explicando
amplamente a estratégia política do Vaticano.
A esta unidade ideológica “vertical” do bloco católico acrescen­
ta-se uma unidade “horizontal”, aquela entre os diferentes grupos que
constituem a massa dos fiéis. A Igreja precisa lutar contra dois tipos
de movimento centrífugo: o fracionamento em Igrejas nacionais e a
formação de religiões próprias de cada grupo social. O primeiro
fenômeno é o mais perigoso: em nível do aparelho eclesiástico, a
Igreja o limita graças à sua centralização, à italianização de seus
órgãos dirigentes e canalizando em seu proveito estas tendências nacio­
nalistas. Mas o verdadeiro problema é político e se refere às relações
entre o Vaticano e os diferentes Estados: um dos objetivos essenciais
das concordatas é justamente delimitar, para além da repartição das
funções no seio da sociedade civil, o grau de autonomia das Igrejas
nacionais.
A este perigo “galicano” acrescenta-se um segundo fenômeno,
menos aparente, mas inerente à estrutura social da população católica:
a oposição entre a religião dos intelectuais e a das classes subalternas.
De fato, esta divagem é mais complexa na medida em que cada
grupo social tende a elaborar seu próprio catolicismo.'* Mas a oposição
ideológica tende a estabelecer o conflito entre a religião elaborada dos
intelectuais e a popular das massas:
“A força das religiões, notadamente da Igreja Católica, consistiu
e consiste no seguinte fato: que elas sentem intensamente a neces­
sidade de união doutrinai de toda a massa “religiosa” e lutam
para que os estratos intelectualmente superiores não se destaquem
dos inferiores. A Igreja romana foi sempre a mais tenaz na luta
para impedir que se formassem “oficialmente” duas religiões, a
dos “intelectuais” e a das “almas simples”.”5
Gramsci opõe-lhe o exemplo do protestantismo; este, fundando o
vínculo entre Deus e os fiéis nos livros sagrados, transformou-se
progressivamente numa organização religiosa “racionalista e intelectu-

3 Ver supra II Parte, cap. 3.


4 Ver supra I Parte, cap. I.
5 CDH p. 16

133
lista”,* reservada às camadas mais cultas da sociedade, rejeitando assim
as massas na religião católica.
Gramsci sublinha que o vínculo entre Deus e os fiéis se realiza
de maneira bem diferente no povo:

“O povo primitivo tende a um misticismo próprio, representado


pela união com a divindade através da mediação dos santos (o
protestantismo não tem e não pode ter santos e milagres)”.^
Optando por uma religião “intelectual”, o protestantismo sepa­
rou-se das massas.
No seio da comunidade católica, tal divisão tende constantemente
a tornar-se orgânica. O problema que se coloca à Igreja é evitar que
esta divagem ideológica chegue a uma verdadeira ruptura. Ora, esta
luta pela unidade doutrinai da população católica entra em choque
com a vontade da Igreja de permanecer isolada da massa dos fiéis.

— o fetichismo religioso;

A única verdadeira solução para o problema da unidade religiosa


reside numa osmose entre Igreja e fiéis, e sobretudo na elevação do
nível cultural das massas ao dos intelectuais. Tal orientação mostra-se
impossível: a política constante do aparelho eclesiástico foi de afastar
os fiéis — tanto o povo como os intelectuais — da atividade religiosa
confinando-os na prática do culto e do conformismo ideológico:
“Pelo menos na Itália, a atividade secular do Centro vaticano
para esmagar os mínimos traços de democracia interna e de
intervenção dos fiéis na atividade religiosa foi plenamente vitorio­
sa, tornando-se uma segunda natureza do fiel, embora tenha de­
terminado aquela forma especial de catolicismo que é própria do
povo italiano.”®
Este “fetichismo”’ é, por outro lado, o único meio que a Igreja
tem para salvaguardar a disciplina interna e a hierarquia de sua orga-

6 I. p. 96.
7 ibid.
8 Maq. p. 177.
9 "Como é possível descrever o fetichismo? Um organismo coletivo é constituído
de indivíduos singulares, os quais formam o organismo na medida em que se entregam
e aceitam ativamente uma hierarquia e uma direção determinadas. Se cada um dos
membros individuais pensa o organismo coletivo como uma entidade estranha a si

134
nização. O recurso à iniciativa dos fiéis levaria à explosão ideológica
e organizacional da Igreja:
“Qualquer forma de intervenção da base desagregaria efetivamen­
te a Igreja (é o que se vê nas igrejas protestantes).”'®
Da mesma forma, a divagem entre religião popular e religião dos
intelectuais é intransponível: a partir da Contra-Reforma, o catolicis­
mo tornou-se fundamentalmente uma religião de classes subalternas
e não mais de todo o corpo social. Portanto, a Igreja deve “gerir”
este controle das classes subalternas. O problema dos intelectuais é
socialmente marginal, mas ideologicamente determinante: marginal,
pois os intelectuais católicos não constituem mais do que uma fração
ínfima da população católica. Mas sua influência não é desprezível
na Igreja na medida em que ela pode utilizá-la para seu próprio
esplendor.
Elevar o nível cultural das massas ao dos intelectuais é impossível:
“A Igreja nem sequer se propõe esta tarefa, ideal e economica­
mente desproporcionada em relação às suas forças atuais.”"
Além do mais, o risco de movimentos de massa mais ou menos
heréticos, de deslocamento no interior da Igreja seria muito evidente.
Contrariamente, esta pode controlar mais facilmente a atividade
dos intelectuais mantendo-a nos limites compatíveis com a unidade
ideolgógica oficial — portanto formal — do bloco católico.

— o controle dos intelectuais:

Levando em consideração a inevitabilidade das clivagens no seio


da comunidade católica, a Igreja optou pela solução que, tecnicamente,
lhe permite salvar as aparências: manter uma unidade puramente
artificial.
Este caráter artificial é, de fato, a sanção do enfraquecimento da
Igreja e de seu recuo no seio da sociedade civil. Na origem, a unidade
intelectuais-massas era garantida pelo recurso aos movimentos reli-

mesmo, é evidente que este organismo não existe mais de fato, transforma-se num
fantasma do intelecto, num fetiche. É preciso ver se este modo de pensar muito difun­
dido não é um resíduo da transcendência católica e dos velhos regimes paternalistas."
(ibid).
10 Maq. p. 178.
11 CDH p. 19.

135
giosos populares e ao fanatismo.'^ Não podendo recorrer a estes méto­
dos, a Igreja se apoia em dois instrumentos: a adaptação molecular à
cultura moderna, concessão aos intelectuais sem efeitos profundos sobre
as massas, mas sobretudo o apelo à coerção: a relação entre religião
popular a religião dos intelectuais está assegurada pela “política” —
em outras palavras, pela coerção —, visto que a Igreja exerce
“uma disciplina de ferro sobre os intelectuais, impedindo que
eles ultrapassem certos limites nesta separação tornando-a catas­
trófica e irreparável.”’^
De fato, esta disciplina só se refere ao intelectual católico “mili­
tante”. Aos outros não se pede mais do que um conformismo exterior
de acordo com sua influência sobre as massas:
“Ser “católico” tornou-se, ao mesmo tempo, algo facílimo e difi­
cílimo. Ê facílimo para o povo, ao qual não se exige mais do que
“crer”, de modo genérico, e obedecer às práticas do culto: nenhu­
ma luta efetiva e eficaz contra a superstição, contra os desvios
intelectuais e morais, contanto que não sejam “teorizados”. Na
realidade, um camponês católico pode ser intelectualmente, de
modo inconsciente, protestante, ortodoxo, idólatra: basta que
afirme ser “católico”. Também aos intelectuais não se exige muito,
se se limitam às práticas exteriores do culto; nem sequer se exige
que creiam, mas apenas que não dêem mau exemplo, negligencian­
do os “sacramentos”, particularmente os mais visíveis e sobre os
quais se exerce o controle popular: batismo, matrimônio, funerais
(viático, etc.)”.’'’
O essencial do controle da Igreja refere-se aos intelectuais cuja
obra se proclama abertamente católica. Sua situação tornou-se muito
difícil: a concepção católica não se manifesta mais espontaneamente,
“ingenuamente” nas artes — e principalmente na literatura —, mas
assume a forma de uma “apologética minuciosa e pedante”, i n s p i ­
rada e controlada pela hierarquia, que freia todo espírito criativo:
“O fato já é antigo: tem suas origens no Concilio de Trento e na
Contra-Reforma. “Escrever”, de então para cá, tornou-se perigoso,
particularmente quando se trata de coisas e sentimentos religio-

12 Sobre a evolução do fanatismo, ver infra, pp. 162s.


13 CDH p. 19.
14 LVN p. 160-161.
15 LVN p. 160.

136
sos. Desde então, a Igreja adotou uma dupla medida para deter­
minar a ortodoxia.”’*
Gramsci sublinha que este fenômeno assumiu sua verdadeira di­
mensão na Itália, terra de eleição da Contra-Reforma. Ao contrário
da França onde
“a religião está separada da vida militante em todas as suas mani­
festações”’''
e onde a atividade artística católica permaneceu florescente, o catoli­
cismo se tornou estéril, os intelectuais se confinaram no dogmatismo:
“Dificílimo, pelo contrário, é ser ativo intelectual “católico” e
artista “católico” (particularmente romancista, mas também poe­
ta), pois se exige uma tal massa de noções sobre encíclicas, con-
tra-encíclícas, estatutos, cartas apostólicas etc., e os desvios da
orientação ortodoxa eclesiástica foram tantos na história, e tão
sutis, que é facílimo cair na heresia ou na meia heresia ou em
um quarto de heresia. O sentimento religioso simples foi disseca­
do: é preciso ser doutrinário para poder escrever “ortodoxa­
mente”. Por isso, na arte, a religião não é mais um sentimento
nativo: é um motivo, um ponto de partida. E a literatura cató­
lica pode ter Padres Bresciani ou Ugos Mioni, mas não pode
mais ter um São Francisco, um Passavante, um Tomás de Kempis;
pode ser “milícia”, propaganda, agitação, não mais pode ser
efusão ingênua de fé não discutida; é agora uma fé polemizada,
mesmo no interior dos que são sinceramente católicos.”’®
Este método repressivo evidentemente não suprime a divisão da
comunidade católica. Também a Igreja reforçou progressivamente o
enquadramento dos fiéis, pela ação de organizações de massa que
completam a função propriamente religiosa do aparelho eclesiástico.

2 . A estrutura do bloco católico


Gramsci já havia analisado de maneira polêmica a estrutura do
aparelho eclesiástico no artigo de 1924 sobre o Vaticano.” Nos

16 ibid.
17 LVN p. 162.
18 LVN p. 161
19 CPC pp. 523-S25.

137
Quaderni, ele se apega menos ao detalhe desta estrutura do que às
funções que as diferentes organizações que a compõem desempenham.
A análise gramsciana situa-se num tríplice nível: a seleção dos intelec­
tuais religiosos, a repartição funcional entre as diversas organizações
e os meios de difusão da religião.

— a seleção dos intelectuais religiosos:

A grave crise econômica que a Igreja atravessou antes das con­


cordatas — e que ainda atravessa nos Estados onde tais concordatas
não puderam ser realizadas — teve uma incidência não desprezível
na seleção do clero na medida em que a escassez de vocações abaixou
consideravelmente o nível cultural desta seleção. A concordata, supe­
rando esta crise, reconstituiu uma ampla base de recrutamento.
Este se realiza em bases definidas pelo Concilio de Trento.
Gramsci sublinha que foi no momento em que a Igreja renunciou à
sua função democrática optando por um enquadramento disciplinar
das massas católicas que ela adotou um modo de seleção democrático
para o recrutamento de seus próprios quadros; mas esta seleção só
é democrática no nível do acesso à seleção:
“A Igreja, deste ponto de vista, é um organismo perfeitamente
democrático (em sentido paternalista): o filho de um camponês
ou de um artesão, se é inteligente e capaz, se é dócil bastante
para deixar-se assimilar pela estrutura eclesiástica e para sentir
o seu espírito de corpo particular e de conservação, e a validade
dos interesses presentes e futuros, pode, teoricamente, tornar-se
cardeal e papa.”2°
Realmente, a finalidade desta “democracia” é selecionar no meio
das classes subalternas os intelectuais orgânicos potenciais para inte­
grá-los ao pessoal eclesiástico. De outro lado, Gramsci constata que a
barreira cultural impede uma verdadeira democracia e constitui a
verdadeira seleção do pessoal dirigente da Igreja:
“se na alta hierarquia eclesiástica, a origem democrática é menos
freqüente do que poderia ser, isto sucede por motivos complexos,
sobre os quais só parcialmente incide a pressão das grandes
famílias aristocráticas católicas ou a razão de Estado (interna­
cional); uma razão muito forte é a seguinte: muitos seminários
são precariamente aparelhados e não podem educar inteiramente

20 Maq. p. 306.

138
o popular inteligente, enquanto o jovem aristocrata recebe sem
esforço educacional, do seu próprio ambiente familiar, uma série
de atitudes e qualidades que são de primeira ordem para a car­
reira eclesiástica: a tranqüila segurança da própria dignidade e
autoridade, e a arte de tratar e governar os outros.”^’
A este pessoal dirigente confia-se não só a tarefa de controlar a
ortodoxia religiosa e sua difusão, mas também, com o aparecimento
da Ação católica, a orientação ideológica-política e a supervisão das
organizações católicas de massa.

— as organizações católicas de massa:

Se consideramos a superestrutura do bloco católico, veremos que


três tipos de organização se sobrepõem: o aparelho eclesiástico, a Ação
católica, os partidos e os sindicatos católicos. Estes três tipos de orga­
nização correspondem cada qual a uma função precisa; todavia pode
acontecer que devido a circunstâncias políticas dos vários países, tais
funções não coincidam perfeitamente com as organizações que lhe
correspondem. Por fim, mesmo que esta correspondência seja perfeita,
a separação não é hermética em conseqüência da estreita osmose entre
estas organizações no seio do bloco ideológico católico.
Gramsci não estuda detalhadamente a estrutura destas organiza­
ções nos Quaderni, mas trata mais de sua função; a distinção entre
aparelho eclesiástico, Ação católica, partido e sindicato é essencialmen­
te técnica e estratégica.
Antes de mais nada, necessidade técnica: ao aparelho eclesiástico
está confiado antes de tudo o apostolado religioso e a direção do
bloco católico; as organizações de massa são mais ou menos contro­
ladas pela hierarquia e pelo clero; o essencial de seu enquadramento
é confiado a militantes leigos. Esta distinção não deve ser exagerada
— Gramsci cita por exemplo a importância maior dos leigos no seio
de certas ordens religiosas, tais como os jesuítas leigos ou os Terciá­
rios franciscanos^2 — mas continua sendo fundamental.
Esta distinção é sobretudo amplamente estratégica. Corresponde,
antes de tudo, à transformação sofrida pela Igreja depois da Contra-
Reforma: enquanto durante a Idade Média a Igreja se contentava
em canalizar os movimentos religiosos de massa por meio de ordens

21 Ibid.
22 Cfr. Maq. 280.

139
religiosas especializadas, a Contra-Reforma combate a heresia pela
utilização de ordens religiosas disciplinares. Mas este aparato disci­
plinar não é suficiente para conservar de maneira duradoura o con­
trole das massas católicas: a Igreja deve optar por um enquadramento
permanente confiado a uma verdadeira organização de massa que
ela controla estreitamente: a Ação católica. É isso que Gramsci traduz
em termos políticos ao afirmar que a Ação católica é o verdadeiro
partido da Igreja.
A esta organização de massa permanente a Igreja sobrepõe orga­
nizações mais engajadas na luta política e ideológica imediata: os
partidos e sindicatos católicos.
O problema essencial que se levanta é, pois, — e Gramsci Vai
analisá-lo minuciosamente — o das relações entre estes dois tipos
de organização de massa católica e de suas funções recíprocas.
Analisando a natureza e a importância real do pensamento social
católico, Gramsci definiu a linha de demarcação que lhe parece a
única válida em última análise: a distinção entre a Ação católica de
um lado, os partidos e sindicatos católicos de outro, é aquela entre
o permanente e o conjuntural, o obrigatório e o facultativo:
“Na realidade, a Igreja não quer comprometer-se na vida prática
econômica e não se empenha a fundo, nem para aplicar os prin­
cípios sociais que defende e que não são aplicados, nem para de­
fender, manter ou restaurar aquelas situações em que uma parte
dos seus princípios já fora aplicada e que foram destruídas. Para
compreender bem a posição da Igreja na sociedade moderna, é
preciso compreender que ela está disposta a lutar só para defen­
der as suas liberdades corporativas particulares (de Igreja como
Igreja, organização eclesiástica), os privilégios que proclama como
ligados à própria essência divina; para a defesa destes privilégios
a Igreja não exclui nenhum meio, nem a insurreição armada,
nem o atentado individual, nem o apelo à invasão estrangeira.
Todo o resto é relativamente transcurável, a menos que não
esteja ligado às suas condições existenciais. A Igreja entende por
“despotismo” a intervenção da autoridade estatal leiga que limita
ou suprime os seus privilégios — não muito mais; ela reconhece
qualquer podestá de fato, e desde que ele não toque nos seus
privilégios, legitima-o; se depois os seus privilégios crescem, exal­
ta-o e proclama-o providencial.”^^

23 Maq. p. 289.

140
A Ação católica, sublinha Gramsci, é a organização de massa
oficial da Igreja, colocada sob seu controle direto, o instrumento de
sua política para toda uma época. Esta importância explica o encar-
niçamento com que a Igreja defendeu a Ação católica contra as
usurpações do Estado fascista, enquanto ela deixava este mesmo Estado
aniquilar partido e sindicatos católicos. Por outro lado, Gramsci
julga que a Ação católica se tornou a principal engrenagem da Igreja
e que por isso convém estudá-la minuciosamente para melhor combatê-
l a . As s i m sendo, qual é o papel que cabe ao partido e ao sindicato?
Antes de mais nada, estas organizações não são totalmente distintas
da Ação católica: é principalmente o caso dos sindicatos que, na
origem, são parte integrante dela. Mas qualquer que seja seu estatuto,
devem necessariamente permanecer autônomos; com efeito, sua função
é específica: constituir o instrumento da Igreja para uma fase con­
juntural, permitir-lhe intervir, mas indireta e oficiosamente.
Se considerarmos o exemplo italiano, ficará evidente que a cria­
ção do partido popular foi necessária para conter o movimento popular
de após-guerra, movimento que a Ação católica não podia — e nem
devia — controlar diretamente:
“Além de outras razões, a criação do Partido Popular foi deter­
minada pela convicção de que no após-guerra seria inevitável
um avanço democrático, que deveria ser ordenado e controlado a
fim de não colocar em risco a estrutura autoritária da Ação Ca­
tólica, que oficialmente é dirigida pessoalmente pelo Papa e
pelos bispos. Sem o Partido Popular e as inovações de sentido
democrático introduzidas na Confederação Sindical, o impulso
popular teria subvertido toda a estrutura da Ação Católica, pondo
em xeque a autoridade absoluta das hierarquias eclesiásticas.”^^
O papel do Partido popular foi análogo ao das Ordens men-
dicantes na Idade Média: canalizar e em seguida recuperar o movi­
mento das massas: Gramsci lembra que a expressão de tais movimen­
tos é hoje política e não mais religiosa. Dessa forma, a Igreja aplica
métodos de recuperação medievais, mas a um movimento político
responde com uma estrutura política.
Tal utilização do partido e do sindicato católicos explica sua
dupla característica: canalizando as massas católicas, eles traduzem
suas contradições, suas lutas; daí o choque de tendências que não é

24 Gramsci propõe assim um plano de pesquisa que permita estudar sua estru­
tura e sua orientação: Maq. pp. 277-280.
25 Maq. p. 277-278.

141
destituído de perigo para a coesão do mundo católico.^* Mas na
medida em que são organizações conjunturais, elas não comprometem
a Igreja. Esta ambivalência traduz-se sobretudo no nível da ideologia
oficial destas organizações; seu programa é puramente polêmico e
propagandista: elaborado para atrair as massas católicas, não é ne­
cessariamente o programa da Igreja. Tomando o caso do pensamento
social católico, Gramsci sublinha que
“não se trata de um programa político obrigatório para todos
os católicos, para cuja realização estejam voltadas as forças
organizadas que os católicos possuem, mas trata-se pura e simples­
mente de um “conjunto de argumentações polêmicas”, positivas
e negativas, sem realidade política ( . . . ) O “pensamento social”
católico tem um puro valor acadêmico. É preciso estudá-lo e
analisá-lo como elemento ideológico opiáceo, destinado a man­
ter determinados estados de espírito de expectativa passiva de
tipo religioso; mas não como elemento de vida política e histórica
diretamente ativa. Ele é, claro, um elemento político e histórico,
mas de caráter absolutamente particular: é um elemento de re­
serva, não de primeira linha, e por isso pode ser praticamente

26. As difíceis relações entre o Partido Popular e a Ação católica na Itália


oferecem um bom exemplo disso: a diferença essencial, como sublinhava Gramsci no
artigo de 1924 sobre o Vaticano, situa-se ao nível da estrutura destas organizações. O
Partido Popular é um partido democrático de massa em que os dirigentes são eleitos
e que conhece severas lutas de tendências. Por isso mesmo, a pressão da base é real
e Gramsci sublinha que as oscilações da linha política do PPI e sua recusa em dar
apoio ao fascismo são devidas a esta pressão.
Pelo contrário, a Ação Católica — a União popular dos católicos italianos —
é um grupo de pressão diretamente controlado pela hierarquia, sem a menor demo­
cracia interna (Gramsci sublinha a ausência de eleições, de congresso) e sua estrutura
de massa tem por finalidade utilizar a base como um instrumento.
A oposição entre estes dois tipos de organizações católicas levou a um conflito
entre os dois grupos dirigentes, aquele do Partido, sensível à vontade das massas
rurais, e aquele da Ação católica, nas mãos da hierarquia:
“O Partido Popular italiano esteve a ponto de entrar em grave conflito com a
Ação Católica. Efetivamente, ele se tornou sempre mais a organização do baixo elero
e dos camponeses pobres, ao passo que a Ação Católica se encontra nas mãos da
aristocrcia, dos grandes proprietários e das autoridades eclesiásticas superiores, reacio­
nárias e simpáticas ao fascismo." (CPC p. 524).
O fenômeno é idêntico com relação ao sindicalismo católico.
Com efeito, a relação Ação Católica — partido católico — restabelece o proble­
ma que a Igreja havia conhecido durante a Idade Média com as ordens mendicantes:
como canalizar os movimentos das massas evitando que os intelectuais encarregados
desta função não sustentem as massas em detrimento da hierarquia. Mas a situação
tornou-se bem mais delicada em conseqüência do recuo da Igreja no seio da sociedade
civil: o partido católico é uma organização autônoma, e sobretudo situa-se no quadro
ideol<ígico do Estado leigo e não da Igreja. Isto explica, segundo Gramsci, a escolha
política da Igreja, sacrificando o Partido Popular ao fascismo.

142
“ignorado” e “silenciado” em todos os momentos. Mas não se
pode renunciar a ele completamente, pois poderia surgir a oca­
sião em que deve ser representado.”2^
Foi apoiando-se neste tipo de análise que Gramsci explicou as
contradições aparentes entre a atitude do Partido popular e a do Va­
ticano em suas relações com o fascismo. Em 1925, o partido popular
esgotou sua função: quebrar o movimento popular. Por isso foi sacri­
ficado em benefício da reforma escolar e da concordata.
A relação entre a Ação católica e o partido católico só se apre­
senta sob esta forma exemplar na Itália, e a estratégia do Vaticanp
entre as duas guerras foi a de aproximar-se ao máximo do “modelo”
italiano. Mas muitos obstáculos o impediram.
O obstáculo mais freqüente é de ordem política. Com exceção da
Itália, raros são os países em que a Ação católica apresenta uma
estrutura sólida. A situação mais favorável encontra-se na França.
Gramsci sublinha que ela se apoia num pessoal melhor qualificado
do que nos outros países e sobretudo se beneficia da influência dos
intelectuais católicos:
“Os católicos exercem uma influência intelectual na França que
não têm em outro país, e esta influência é melhor centralizada
e organizada (isto no que se refere ao setor católico, é claro, que
sob alguns aspectos na França é mais restrito devido à existência
de uma forte centralização da cultura laica)”.^»
De fato, esta estrutura por muito tempo foi inútil para o Vati­
cano na medida em que ela permanecia sob o controle dos integristas
monarquistas, o que tornava igualmente impossível a criação de um
partido católico. Quando o Vaticano chegou a controlar sua direção,
já era muito tarde: a Ação católica será a única organização de
massa católica entre as duas guerras.
Mas o fenômeno inverso é igualmente possível: a subordinação
da Ação católica ao partido católico. A ilustração de tal situação é
fornecida pelo Centro católico na Alemanha. Neste país, sendo nega­
tiva a relação de forças com o protestantismo, a Igreja teve que criar
imediatamente uma organização que lhe permitisse defender suas posi­
ções. O Centro Católico constituiu-se bem antes da Ação católica,
e foi em torno dele que se constituiu o catolicismo alemão:

27 Maq. pp. 289-290.


28 Maq. p. 295.

143
“O Centro já evoluira de tal modo como força política parla­
mentar, empenhada nas lutas internas alemães, que qualquer for­
mação ampla da Ação Católica controlada estritamente pelo Epis-
copado comprometería a sua potência atual e as suas possibili­
dades de desenvolvimento.
A afirmação de uma poderosa organização católica em depen­
dência mais estreita do Vaticano está, além disso, excluída, pela rela­
ção das forças religiosas:
“Na Alemanha, o catolicismo é dominado pelo protestantismo e
não ousa atacá-lo com uma propaganda intensa.”3o 3'
O modelo de organização do bloco católico é, pois, obrigado a
adaptar-se às condições nacionais, e isso complica a tarefa do Vaticano.
Mas, de modo geral, é o próprio Vaticano o responsável pela
fraqueza das Ações católicas locais. Estas são vítimas da contradição
entre seu desenvolvimento em partido católico orgânico-nacional e sua
utilização para os fins da política internacional do Vaticano:
“A fraqueza de toda organização nacional de Ação católica con­
siste no fato de que sua ação está limitada e continuamente per­
turbada pelas necessidades da política internacional e interna da
Santa Sé em cada Estado. À medida em que cada Ação católica
nacional se estende e se torna organismo de massa, ela tende a
tornar-se um verdadeiro e próprio partido, cujas direções são
impostas pelas necessidades internas de organização: mas este
processo jamais pode tornar-se orgânico justamente pela inter­
venção da Santa Sé.”^^
Em última análise, as fraquezas e as contradições internas da
organização católica são o reflexo das clivagens sociais no seio do
mundo católico, da relação de forças com outras ideologias e apare­
lhos ideológicos em cada Estado, e da contradição entre as estratégias
nacionais e internacionais da Igreja. Mas não é menos verdade que a

29 Maq. p. 297.
30 Maq. p. 298.
31 Todavia, Gramsci nota uma tendência depois de 1919 a um desenvolvimento
do papel da Ação Católica alemã, sob a pressão do Papa e do episcopado ÍMaa
p. 298).
Sobre a Ação Católica na Áustria e nos Estados Unidos, cfr. Maq. p 289 e
289-300.
32 Maq. p. 297.

144
distinção entre o movimento orgânico de Ação católica e o conjuntural
dos partidos e sindicatos católicos constitui para Gramsci a chave
da estratégia da Igreja no início do século XX. Esta restauração do
bloco ideológico não se limita às organizações, mas estende-se tam­
bém ao que Gramsci chama o “material ideológico”, outro nome dos
meios de difusão da ideologia.

— os meios de difusão da ideologia:

O interesse de Gramsci pela imprensa e pela literatura católica


não é novo: desde 1916, num de seus primeiros artigos, sublinhava
a sua importância:
“Gosto de deter-me longamente diante das vitrinas das livrarias
e passar os olhos pelos volumes alinhados, procurando fixar em
meu cérebro a imagem dos que eu mais gostaria de ter. Dete-
nho-me também diante das livrarias chamadas religiosas e cada
vez que isso me acontece experimento sempre novo estupor. Sem
dúvida, vejo volumes sobre volumes, de todos os tipos, sobre to­
dos os assuntos e sobre muitas capas a indicação: 2.^, 3.^ e
mesmo 5.“ edição, e pergunto-me como é possível que livros que
conseguem tiragens tão elevadas sejam ignorados, ou quase, do
mundo da cultura, que ninguém fale deles, e que escapem tão
completamente ao controle da crítica científica e literária. Não
posso crer que as edições e tiragens anunciadas sejam uma viga­
rice editorial, e é por isso que sinto admiração e ciúme dos
padres que conseguem resultados tão palpáveis em sua propa­
ganda cultural.
Os “mass-media” católicos constituem, efetivamente, um dos pila­
res do aparato ideológico eclesiástico, o domínio no qual o esforço
de adaptação à evolução da sociedade civil foi mais constante:
“Não se poderia explicar a posição conservada pela Igreja na
sociedade moderna se não se conhecessem os esforços diários e
pacientes que ela realiza para o desenvolvimento contínuo de
sua própria seção da estrutura material da ideologia.”3^
Estes meios de difusão são essencialmente a edição e a imprensa,
que realizam sua função de criar homogeneidade ideológica em duplo

33 SM p. 39.
34 P. p. 172.

145
nível: o do aparelho eclesiástico para manter a unidade doutrinaP® e
o da população católica — mas também não católica — . Neste se­
gundo nível, a Igreja intervém como força ideológica, mas também
como grupo de pressão: Gramsci cita o exemplo da imprensa católica
e considera que além da defesa de seus interesses propriamente cor­
porativos, a Igreja de fato defende os interesses políticos de seus
aliados^ — até mesmo seus próprios interesses políticos, como foi o
caso do partido popular.
Mas um dos aspectos mais notáveis destes meios de difusão con­
siste em sua adaptação ao público visado: Gramsci sublinha que en­
quanto a literatura leiga se mostrou incapaz de elaborar uma literatura
popular análoga à literatura popular francesa, os católicos italianos
foram os únicos a tentar tal experiência. O resultado concreto foi a
difusão entre o povo de uma literatura não-nacional, não-popular,
controlada pelos jesuítas, indo da literatura de “sacristia” ou “boa
imprensa” a um jesuitismo leigo.
Depois da concordata, Gramsci prevê, além disso, um reforço
desta hegemonia católica no domínio cultural.
Assim sendo, a imprensa e a literatura católica se apresentam
como o principal obstáculo no domínio cultural:
“Na realidade não nos preocupamos muito com este trabalho de
aliciamento cultural devido aos clérigos. Trata-se de algo impal-
pável, que resvala como a enguia, algo brando que parece sem
consistência e que, pelo contrário, é como o colchão que resiste
melhor aos tiros de canhão do que os muros de Liège. É incrível
a quantidade de opúsculos, revistas, jornais, folhetos paroquiais,
que circulam por toda parte, que procuram se infiltrar até mesmo
entre as famílias mais refratárias, e que se ocupam de tantas
outras coisas fora da religião.”^®

35 Propondo a elaboração de uma enciclopédia crítica de estudos marxistas,


Gramsci cita o exemplo do "material do mesmo tipo publicado por católicos de
vários países a propósito da Bíblia, dos Evangelhos, da Patrologia, da Liturgia, da
Apologética, grandes enciclopédias especializadas de valor desigual, mas que se publi­
cam continuamente e que mantêm a unidade ideológica de centenas de milhares de
padres e de outros dirigentes que formam a estrutura e a força da Igreja Católica"
(CDH p. 124).
36 Cfr. supra a propósito do conflito dos produtores do açúcar, p. 203.
37 Sobre a literatura católica, LVN pp. 139-165.
38 SM pp. 39-40.
Gramsci sublinha, de outro lado, as características específicas das diretivas que a
Igreja dirige ao clero e aos fiéis. A propósito das encíclicas, nota ironicamente:
"Um exame crítico-literário das encíclicas papais. Em 90%, elas não passam de um

146
Paralelamente ao desenvolvimento dos meios de difusão, a Igreja
busca recuperar os privilégios que lhe escaparam a partir da Reforma;
assim é que o esforço essencial é empregado no domínio escolar,
que Gramsci diz constituir com a Igreja — em 1930 — o principal
aparelho ideológico. A reforma escolar e a concordata permitem-lhe
controlar a maior parte da sociedade civil na Itália, e a política de
aliança tem como objetivo reconstituir a antiga hegemonia cultural
nos outros Estados.
O reforço das posições adquiridas e as tentativas de extensão do
aparelho ideológico são, pois, duas etapas de uma política que visa,
de fato, uma volta à situação medieval.

— as missões:

A gestão e o controle do bloco católico tradicional não consti­


tuem a única atividade da Igreja. Com a expansão colonial, levanta-se
de novo o problema da atividade missionária. A aliança e as con­
cordatas, estabilizando a situação da Igreja — até mesmo reforçando
sua posição — permitem-lhe aumentar seu esforço de penetração nos
países colonizados.
O aspecto mais interessante destas tentativas reside, segundo
Gramsci, no método de conversão cujo realismo ele admira.
O catolicismo enfrenta essencialmente um obstáculo, o dos países
onde existe uma cultura nacional baseando-se numa sólida ossatura
de intelectuais — Índia, China, Japão — . Neste caso, o problema
da conversão não é considerado pelo Vaticano como a adesão de
massas inteiras. A única solução é converter os intelectuais, para
ganhar as massas que eles controlam ou formar intelectuais nativos
católicos:
“O Papa conhece o mecanismo de reforma cultural das massas
populares-camponesas mais do que muitos elementos do laicato
de esquerda: ele sabe que uma grande massa não pode se con-

amontoado de citações gerais e vagas, cuja principal finalidade parece ser afirmar
em cada ocasião a continuidde da doutrina eclesiástica dos Evangelhos até nossos dias.
No Vaticano eles devem ter um formidável fichârio de citações para cada assunto:
quando se deve compilar uma encíclica, começa-se por estabelecer no preâmbulo as
fórmulas que contêm uma dose necessária de citações: tanto do Evangelho, tanto dos
Padres da Igreja, tanto das enciclicas precedentes. Isso deixa uma impressão de grande
frieza. Fala-se da caridade, não porque se tenha tal sentimento para com os contem­
porâneos, mas porque assim falaram Mateus, santo Agostinho e "nosso predecessor
de venerável memória" etc. Somente quando o Papa escreve ou fala de política é
que se sente certo calor." (P. p. 123-124).

147
verter molecularmente; deve-se, para apressar o processo, con­
quistar os dirigentes naturais das grandes massas, isto é, os inte­
lectuais, ou formar grupos de intelectuais de novo tipo, o que
explica a criação de bispos indígenas.”^’
A partir daí, o esforço essencial da Igreja é o de “conhecer
exatamente o modo de pensar e a ideologia destes intelectuais,
para melhor entender sua organização de hegemonia cultural e
moral, a fim de destruí-la ou assimilá-la.
Ora, a Igreja deve reconhecer que os resultados são bastante
limitados, pois os intelectuais nativos revelam-se “refratários à pro­
paganda”'” . De outro lado, tal resistência é previsível na medida em
que se trata de intelectuais de tipo rural, portanto intelectuais tradi­
cionais. Ora, se estas categorias de intelectuais podem ser absorvidas
ou realinhadas politicamente, são ao contrário difíceis de assimilar
ideologicamente: a Igreja demonstrou isso no Ocidente. Paradoxal­
mente, ela se encontra na Ásia na mesma situação dos intelectuais
burgueses europeus face à resistência das massas rurais controladas
pelo catolicismo.
Se excetuarmos o caso da atividade missionária — que além do
mais tem que enfrentar a rivalidade das Igrejas protestantes —, a
Igreja tem como objetivo principal gerir o bloco católico mantendo
uma coesão ideológica relativa e reunindo a comunidade católica num
leque de organizações. Esta política é freada por uma áspera luta de
tendências que enfraquece o aparelho eclesiástico.

39 I. p. 101
40 ibd.
41 ibid.

148
C A PITU LO IV

AS CORRENTES INTERNAS DA IGREJA

— movimentos orgânicos e movimentos organizacionais — m-


tegristas, jesuístas e modernistas — a luta contra as tendências
— caráter permanente das clivagens.

Paralelamente à crise de adaptação que a Igreja sofre no fim


do século XIX, e como efeito parcial desta crise, graves dissenções
sacodem o aparelho eclesiástico. O aparecimento do modernismo e a
reação dos católicos “integristas”’ são analisados minuciosamente nos
Quaderni porque Gramsci vê nisso os fundamentos teóricos dos even­
tos que ele viveu antes de 1927 e principalmente da crise dos popu­
lares. De outro lado, o conflito entre o Vaticano e a Action française
fornecem-lhe um bom exemplo destas lutas.
As lutas de tendências no seio da Igreja são sobretudo, para
Gramsci, a ilustração dos diferentes tipos de crise interna que toda
superestrutura atravessa — Igreja, sindicato ou partido político —. Ao
contrário da concepção mecanicista que vê em toda crise política o
reflexo dos conflitos estruturais, Gramsci sublinha a necessidade de
distinguir os atos políticos — ou as ideologias — orgânicos daqueles
puramente organizacionais. Somente uma parte dos atos políticos pos­
sui um caráter verdadeiramente orgânico, correspondente às
“tendências de desenvolvimento da estrutura, tendências que não
se afirma que devem necessariamente se realizar”^.
Tais atos caracterizam-se por sua permanência, seu alcance his­
tórico a médio ou longo prazo, o que explica que não sejam imedia-

1 Nos Quaderni Gramsci utiliza o termo “integrais”, utilizado também pela


Civiltà cattolica e por Nicolas Fontaine em seu estudo Saint Siège, Action française
et catholiques integraux, Paris, 1928, ao qual se faz frequente referência nos Quaderni.
2 CDH p. 118.

149
tamente discerníveis dos atos orgânicos conjunturais de caráter não
permanente,
“que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase aciden­
tais.

De outro lado, Gramsci lembra que numerosos atos políticos são


erros do pessoal dirigente ou conseqüências de lutas de facções em
seu seio, o que é difícil de distinguir imediatamente.
Por fim, toda uma série de atos do pessoal dirigente não são mais
do que atos organizccionais, sem vínculo direto com a estrutura:

“Não se leva necessariamente em conta que muitos atos políticos


são motivados por necessidades internas de caráter organizativo,
isto é, ligados à necessidade de dar coerência a um partido, a
um grupo, a uma sociedade.”"*
Se considerarmos a história da Igreja católica, veremos que a
maior parte das lutas internas que nela se travaram, e principalmente
as disputas teológicas, dependem deste último tipo de atos super-
estruturais:
“Se se pretendesse encontrar, para todas as lutas ideológicas no
interior da igreja, a explicação imediata primária, na estrutura,
se estaria perdido: muitos romances político-econômicos foram
escritos por esta razão. É evidente, ao contrário, que a maior
parte destas discussões são ligadas a necessidades sectárias, de
organização.”^

Gramsci cita assim o exemplo das querelas teológicas entre a


Igreja romana e a Igreja ortodoxa:

“Na discussão entre Roma e Bizâncio sobre a processão do Espí­


rito Santo, seria ridículo buscar na estrutura da Europa Oriental
a afirmação de que o Espírito Santo decorre apenas do Pai, e na
do Ocidente a afirmação de que ele decorre do Pai e do Filho. As
duas igrejas, cuja existência e cujo conflito estão na dependência
da estrutura e de toda a história, colocaram questões que são

3 Maq. p. 45.
4 CDH p. 118.
5 CDH pp. 118-119.

150
princípio de distinção e de coesão interna para cada uma, mas
poderia ter ocorrido que cada uma das igrejas tivesse afirmado
precisamente o que a outra afirmou: o princípio de distinção e
de conflito teria se mantido idêntico; e este problema da dis­
tinção e do conflito é que constitui o problema histórico, não a
casual bandeira de cada uma das partes.”*
Mas Gramsci sublinha também, como o havia feito a propósito
da Reforma, a necessidade de tirar a máscara ideológica que com
freqüência reveste os conflitos verdadeiramente orgânicos. É o caso
das lutas internas do fim do século.
Depois dos cismas ortodoxos e protestantes, a existência de con­
flitos no seio da Igreja apresenta-se a Gramsci como um fenômeno
lógico na medida em que, como todo bloco ideológico, a Igreja é
atravessada por correntes secundárias:
“O catolicismo, por exemplo, é um grande centro e um grande
movimento, mas em seu interior existem movimentos e centros
parciais que tendem a transformar o conjunto, ou tendem a ou­
tros fins mais concretos e limitados, os quais devem ser levados
em conta.”^
Mas o fato de que as lutas permaneçam tão vivas depois da
Contra-Reforma explica-se por razões mais profundas: antes de mais
nada, a Igreja sempre foi incapaz de resolver normalmente os con­
flitos que surgiam em seu seio. Estes com freqüência assumiram um
caráter antagônico porque a Igreja ignora, por definição, a autocrítica:
“É notável que a Igreja jamais tenha desenvolvido muito o sen­
tido da autocrítica como função central; não obstante a sua alar­
deada ligação às grandes massas de fiéis. Por isso, as inovações
sempre foram impostas e não propostas, e acolhidas com a corda
ao pescoço. O desenvolvimento histórico da Igreja verificou-se
por fracionamento.”^
Assim sendo, não é de estranhar que toda evolução acabe che­
gando a uma crise, levando os reformadores à heresia:

6 CDH p. 119.
7 I. p. 164.
8 Maq. pp. 284-285.

151
“Deve-se notar que todas as inovações no seio da Igreja, quando
não são devidas à iniciativa do centro, têm em si algo de herético
e terminam assumindo explicitamente este caráter, até que o
centro reage energicamente, desbaratando as forças inovadoras,
reabsorvendo os vacilantes e excluindo os refratários.”’
O enfraquecimento considerável da Igreja no século XIX não
lhe permite optar por soluções tão radicais, sem risco de desapareci­
mento puro e simples. Segue-se disso uma luta encarniçada de ten­
dências, que é exacerbada pelo desaparecimento dos apoios populares
tradicionais: o grupo dirigente não pode mais abafar seus adversários
apoiando-se nas massas — que desapareceram ou estão indiferentes
—. Os conflitos no seio do bloco intelectual são, por isso, mais graves,
porque tendem a se cristalizar e a paralisar assim a ação da Igreja:
“Tudo isto demonstra que a força de coesão da Igreja é muito
menor do que se pensa, não só pelo fato de que a crescente indi­
ferença da massa dos fiéis pelas questões puramente religiosas e
eclesiásticas dá um valor muito relativo à superficial e aparente
homogeneidade ideológica; mas em virtude do fato bem mais
grave de que o centro eclesiástico é impotente para aniquilar as
forças organizadas que lutam conscientemente no seio da Igreja.”'°
As tendências que aparecem no fim do século XIX estão, na rea­
lidade, ligadas ao problema da aliança com o Estado liberal, e isso
tanto ao nível político — relação com a aristocracia fundiária legiti-
mista — como ideológica — relação com o idealismo e o marxismo —.
Isso porque estas três tendências — jesuítas, integristas, modernistas
— que lutam pelo controle da Igreja representam camadas sociais
do bloco católico e, por isso, devem ser consideradas como verdadeiros
partidos no seio do bloco:

“É importante notar que tanto o modernismo, como o jesuitismo e


o integralismo têm significados mais amplos do que aqueles estri­
tamente religiosos: são partidos” no “império absolutista interna­
cional” representado pela Igreja romana, que não podem evitar
colocar sob forma religiosa problemas que muitas vezes são pu­
ramente mundanos, de “domínio”."

9 ibid.
10 Maq. p. 319.
11 Maq. p. 335.

152
1. As diferentes tendências

— os integristas:

Entre os diferentes grupos que se enfrentam no seio da Igreja,


os integristas constituem a tendência mais coerente e a mais orgânica:
partidários da intransigência ideológica e política, eles representam
a aristocracia fundiária e os latifundiários. Politicamente, sustentam
as organizações de extrema direita monarquistas, como a Action fran-
çaise na França e o Centro católico na Itália.
Se esta tendência existe em todos os países, Gramsci sublinha que
ela só se manifestou ativamente naqueles em que o perigo socialista é
mais ameaçador:
“Naturalmente eram mais fortes em determinados países, como
a Itália, a França, a Bélgica, onde, sob formas diversas, as ten­
dências de esquerda em política e no campo intelectual manifes­
tavam-se com mais força na organização católica.”'^
De fato, para além da luta contra o liberalismo e o socialismo
— em geral — , é contra sua influência sobre as massas rurais cató­
licas, tradicionalmente controladas pela aristocracia fundiária, que se
exerce concretamente a atividade dos integristas: seus ataques mais
violentos visam as correntes democrático-cristãs — como o Sillon —
e são seus ataques que levam o Vaticano a condenar estas correntes.
No seio da Igreja, sua intransigência os leva a atacar os próprios
jesuítas, rejeitando
“toda forma de devassidão, de oportunismo, de centrismo.”'^
Em sua luta, eles se beneficiam, nota Gramsci, do apoio cor-
porativista de ordens religiosas rivais dos jesuítas — Dominicanos,
Franciscanos.
A força dos integristas está em ter apoiado a política intransi­
gente do Vaticano até a aliança. Por esta razão, eles dividiram com
os jesuítas o controle do aparelho eclesiástico até esta data. Alcança­
ram seu apogeu no pontificado de Pio X e a partir de então apoiam
a manutenção de sua política:
“A Action Française e os “integrais” agarram-se desesperada­
mente a Pio X e pretendem manter-se fiéis aos seus ensinamen-

12 Maq. p. 317.
13 Maq. p. 318.

153
tos, o que no desenvolvimento da Igreja constituiría um belo
precedente, pois cada Papa morto poderia oferecer terreno para
a organização de uma seita ligada a uma sua atitude particular.”''*
As profundas mudanças políticas realizadas por Pio XI e pelos
jesuítas explicam a resistência dos integristas. Mas foi o aparecimento
do modernismo que lhes deu mais vigor.

— o modernismo:

O modernismo é uma corrente complexa que teve uma grande


importância na Itália ainda que sua existência tenha sido relativa­
mente breve — ao menos sob sua forma original — . Gramsci vê a
origem deste movimento na atração que as forças políticas e ideológi­
cas leigas exercem sobre o catolicismo a partir de 1848. Assim é
que ele considera o movimento católico-liberal de Gioberti como a
primeira forma de modernismo. Em seguida, podem ser qualificados
de “modernistas” os movimentos católicos liberais
“devedores em grande parte ao poder de atração expontâneo
exercido pelo historicismo moderno dos intelectuais leigos das
classes superiores de um lado'®, e, de outro, pelo movimento
prático da filosofia da práxis.”'®
O modernismo aparece, pois, como uma série de correntes bas­
tante heterogêneas que Gramsci divide em duas tendências principais:
de um lado,
“a político-social que tendia a aproximar a Igreja das classes
populares, portanto favorável ao socialismo reformista e à demo­
cracia (. ••), ou geralmente às correntes liberais.”'^
Esta tendência é a que teve mais influência na Itália e que
Gramsci considera como o verdadeiro movimento modernista. Ele vê
sua origem não na cultura européia — como a outra corrente moder­
nista —, mas nas condições sociais da Itália do Norte. Ali o moder­
nismo é a expressão ideológica das transformações estruturais e polí­
ticas do mundo rural:

14 Maq. p. 324.
15 Gramsci visa aqui B. Croce.
16 R. p. 72.
17 Maq. p. 334.

154
“Os modernistas, dado o caráter de massa que lhes era fornecido
pelo nascimento contemporâneo de uma democracia rural cató­
lica (ligada à revolução técnica que ocorria na região de Pádua
graças ao desaparecimento da figura do obbligato ou schiavan-
daro* e à expansão de formas menos caducas de parceria), eram
reformadores religiosos, surgidos não segundo esquemas intelec­
tuais preestabelecidos, caros ao hegelianismo, mas segundo as
condições reais e históricas da vida religiosa italiana. Era uma
segunda onda de catolicismo liberal, muito mais extensa e de
caráter mais popular do que a do neo-guelfismo antes de 1848
e a do mais estrito liberalismo católico posterior a 1848.”’®
Gramsci repete aqui a análise que é a sua desde o Ordine Nuovo:
a ideologia própria das massas camponesas italianas era a religião
católica, e por isso era irrealista querer a passagem direta para uma
concepção do mundo muito elaborada. Em seu ponto de partida, a
evolução só podia assumir a forma de uma tendência de esquerda
no próprio seio do catolocismo, ou seja, de uma reforma religiosa
em nível ideológico.
A transformação da sociedade civil e sobretudo da natureza das
ordens religiosas explica que o modernismo não tenha podido assumir
de maneira duradoura a forma de uma reforma religiosa a nível das
massas — ainda que possa assumir esta forma a nível dos intelectuais
religiosos — . Só pode manter-se sob uma forma política:
“O modernismo não criou “ordens religiosas”, mas sim um par­
tido político, a democracia cristã.””
A efêmera democracia italiana de Rômulo Murri desaparecerá
sob os ataques da hierarquia, mas se perpetuará depois da guerra
com 0 partido popular.
Sob este primeiro aspecto, o modernismo é pois movimento es­
pecificamente popular e italiano.
Gramsci opõe-lhe a segunda corrente
“a “científico-religiosa”, que sustenta uma nova atitude em rela­
ção ao “dogma” e à “crítica histórica”, em oposição à tradição
eclesiástica; portanto, tendência a uma reforma intelectual da
Igreja.”2o

18 CDH p. 283. Obbligato e schiavandaro são formas de relação semifeudal de


trabalho, existentes na Itália (N. do T. da edição brasileira dos Quaderni).
19 CDH p. 20.
20 Maq. p. 334.

155
Esta corrente é mais complexa, na medida em que traduz a atra­
ção que exercem as diferentes doutrinas leigas sobre o clero. Isso
explica que ela não tenha nenhuma base social, que não represente
nenhum movimento orgânico e se caracterize mais como uma série
de atitudes individuais. De outro lado, Gramsci julga que tal atração
é facilitada pela indiferença ideológica por parte do clero, que está
“inteiramente desligado do campo religioso no plano da consciên­
cia, mesmo continuando a ser “padre” por motivos subordina-
dos.”2i
Esta corrente, puramente intelectual, tem importância prática
secundária, o que explica que os jesuítas e os integristas tenham con­
centrado o essencial de seus ataques no modernismo “político”.

— os jesuítas:

Frente às correntes de esquerda — modernistas — e de direita


— integristas —, o centro que controla o aparelho eclesiástico e prin­
cipalmente o Vaticano é representado pelos jesuítas.^^
O influxo dos jesuítas sobre o aparelho eclesiástico é um aconte­
cimento essencial da história da Igreja. Gramsci julga, além disso, que
ele marca a passagem do “cristianismo ingênuo” a um “cristianismo
jesuitizado” que não passa de uma “grande hipocrisia social”. O jesui-
tismo é a forma organizacional, ideológica e política da Igreja desde
o concilio de Trento. Este lhe confia a reestruturação e a depuração
da Igreja, o que lhe permite controlar outras ordens religiosas. Em
seguida, sua hegemonia é confirmada na medida em que eles fixaram
as escolhas decisivas da Igreja. Gramsci sublinha o papel dos jesuítas
na escolha do “non-expedit”, da aliança, e do “poder indireto” da
Igreja.
Em nível ideológico, frente aos integristas que pregam um conser­
vadorismo doutrinai e aos modernistas que pedem uma adaptação à
ciência e à filosofia modernas, os jesuítas souberam impor uma adap­
tação “molecular”;

21 Maq. p. 335; sobre o exemplo do Pe. Turmel, Maq. pp. 331-333.


22 Embora figurem jesuítas nas outras tendências: “deve-se recordar que nem
mesmo os jesuítas são perfeitamente homogêneos. O Cardeal Billot, integral intransi­
gente até abandonar a púrpura, era jesuíta, e jesuítas foram alguns modernistas mais
famosos, como Tyrrel.” (Maq. p. 321).

156
“Os jesuítas foram, indubitavelmente, os maiores artífices deste
equilíbrio e, para conservá-lo, eles imprimiram à Igreja um mo­
vimento progressivo que tende a satisfazer parcialmente as exi­
gências da ciência e da filosofia, mas com um ritmo tão lento e
metódico que as modificações não são percebidas pela massa dos
simplórios, se bem que elas apareçam como “revolucionárias” e
demagógicas aos olhos dos “integristas.”^^
Esta adaptação molecular às novas superestruturas apoia-se numa
modificação do aparelho eclesiástico: Gramsci considera que a princi­
pal força dos jesuítas reside no controle da sociedade civil católica e,
antes de tudo, das organizações de massa católicas — promovidas
aliás pelos jesuítas — e principalmente da Ação católica e das missões:
“As missões e a Ação católica são as meninas dos olhos da
Companhia de Jesus.”^'^
Este controle estende-se também aos meios de difusão: Gramsci
sublinha a importância do órgão teórico dos jesuítas, a Civiltà
catíolica, que se tomou de fato o órgão teórico do Vat i cano. Mas
este controle se estende também a toda uma série de publicações
populares que permitem aos jesuítas influir nas massas católicas.^i^
Por fim, sua importância no aparelho escolar católico — e o papel
hegemônico que este desempenha na Itália depois da concordata —
permite-lhes formar os quadros leigos das organizações católicas c de
agir como um grupo de pressão muito eficaz sobre o aparelho do
Estado e da sociedade civil.

23 CDH 17.
24 Maq. p. 337.
25 A importância da Civiltà catíolica, que fornece a maior parte de suas fontes
sobre a questão religiosa, leva Gramsci a propor a análise detalhada dos assuntos
tratados por esta revista; encontra-se um esboço nos Quaderni, Maq. p. 340-341.
26 Gramsci cita com freqüência o seguinte exemplo: **Pode-se lembrar, por
exemplo, que em 1911-2912, diante da tentativa de formar politicamente os camponeses
da Itália meridional através de uma campanha para o livre intercâmbio (especialmente
contra produtores de açúcar, visto que o açúcar é uma mercadoria popular ligada à
alimentação das crianças, dos doentes, dos velhos) respondeu-se com uma campanha
missionária tendente a suscitar um fanatismo popular supersticioso, às vezes até mesmo
sob uma forma violenta (como aconteceu na Sardenha). Que ela estivesse ligada à
campanha do livre comércio aparece pelo fato de que na mesma época, nos deno­
minados *'Mistérios*' (hebdomadários muito populares, com tiragens que chegavam a
milhões) se convidava a orar pelo ‘pobres açucareiros* atacados pelos *Cains* da
*maçonaria* etc...** (P. p, 208).

157
o Centro jesuíta constitui, pois, o eixo ideológico, político e
organizacional da Igreja. Além disso, Gramsci julga que com Pio XI
a influência dos jesuítas alcança o seu ápice.
“Pio XI é, verdadeiramente, o Papa dos jesuítas.”2^

2 . A luta contra os integrístas e os modernistas

Um dos aspectos mais característicos da luta entre estas tendên­


cias é o fato de se ter revestido de um caráter amplamente clandestino:
os ataques mais diretos não partem de protagonistas religiosos mas
de órgãos exteriores ao aparelho eclesiástico e controlados por estas
tendências:
“Convém a estas forças internas da Igreja, antagonistas e clan­
destinas, ou quase (para o modernismo a clandestinidade é indis­
pensável), manter “centros” externos públicos, ou que atuem dire­
tamente sobre o público, através de periódicos ou edições de
opúsculos e livros. Existem entre os centros clandestinos e os
públicos ligações clandestinas que se tornam o canal das iras, das
vinganças, das denúncias, das insinuações pérfidas, das mesqui­
nharias.
Portanto, cada tendência apoia-se numa organização paralela.
Mesmo os jesuítas, apesar de se beneficiarem do apoio ofieial, utiliza­
ram o ramo leigo da Companhia:
“Os jesuítas também possuem uma organização não oficial e
muitas vezes clandestina, à qual devem contribuir os chamados
“jesuítas laicos”; curiosa instituição, talvez copiada da organiza­
ção dos terciários franciscanos, que representa numericamente
cerca de 1/4 de todas as forças jesuítas.”^’
Quanto aos modernistas, tiveram que recorrer rapidamente à
clandestinidade depois da encíclica Pascendi: daí o recurso aos pseu­
dônimos. O juramento antimodernista só aumentará esta necessidade.
Mas foram os integristas que usaram ao máximo a clandestini­
dade: apoiando-se, para fundamentar sua tese, em documentos desco-

27 Maq. p. 322.
28 Maq. p. 319.
29 ibid.

158
bertos na Bélgica por ocupantes alemães, Gramsci nota que os inte-
gritas tinham constituído uma poderosa estrutura secreta. Em seus
ataques lançavam mão dos serviços de informação do Vaticano,
“não só para as questões religiosas, mas especialmente para as
informações políticas francesas e internacionais de caráter reser­
vado. Não se deve esquecer que o Vaticano dispõe de um serviço
de informações às vezes e para certas questões mais preciso, mais
amplo e mais abundante do que qualquer outro governo. Servir-se
dessa fonte, era para a Action Française uma razão não das mais
secundárias de determinados êxitos jornalísticos e de muitas cam­
panhas pessoais e sensacionalistas. ”3°
Mas a clandestinidade não é a única explicação da complexidade
do conflito. Cada uma destas tendências não deixa de aliar-se tempora­
riamente a outra para lutar contra uma terceira.
Assim os jesuítas se apoiarão nos integristas para combater o
modernismo — Pio X — e em seguida se voltarão contra seus aliados
— condenação da Ação francesa — . Da mesma forma, integristas e
modernistas “científicos” passarão a colaborar contra os jesuítas:
“Os jesuítas, naturalmente, acusam os “integrais” de fazer o jogo
dos modernistas (teologizantes): 1) em virtude de sua luta contra
os jesuítas; 2) porque ampliavam de tal modo a noção de moder­
nismo e, por conseguinte, ampliavam de tal modo os alvos, que
ofereciam aos modernistas um campo de manobra bastante cô­
modo. De fato, sucedeu que na sua luta comum contra os jesuítas,
“integrais” e modernistas encontraram-se objetivamente no mes­
mo campo e colaboraram mutuamente.”^'
Os métodos utilizados explicam o fato de Gramsci comparar a
luta entre estas três tendências a uma luta de partidos. Para além das
polêmicas superficiais, o verdadeiro conflito vai opor sucessivamente
o Vaticano aos modernistas e depois aos integristas.

— a luta contra os modernistas:

O modernismo aparece como uma reforma religiosa, mesmo se,


para além da reforma ideológica, se descobre uma realidade social e

30 Maq. p. 328.
Sobre a estrutura secreta dos integristas, Maq. pp. 318-319 e pp. 324-328.
31 Maq. p. 318.

159
política bem concreta. Portanto, é em nome da religião que a luta é
travada pelo Vaticano, com o apoio ativo dos integristas. Mas, apesar
da afirmação do caráter puramente religioso da luta, esta apresenta
um caráter essencialmente político: Gramsci sublinha que nas nume­
rosas encíclicas contra o pensamento moderno — e principalmente na
encíclica Pascendi —, a Igreja
“não combate (. . .) o pensamento moderno como tal, mas porque
conseguiu penetrar na organização eclesiástica e na atividade cien­
tífica propriamente católica.”^^
Por isso, a finalidade proclamada é a manutenção da independên­
cia ideológica do aparelho eclesiástico. O juramento antimodernista
aparece como o complemento disciplinar — de ordem interna desta
reação defensiva.
Mas o caráter secundário da condenação do pensamento moderno
é demonstrado ulteriormente pela atitude da Igreja frente aos moder­
nistas “políticos”. Os modernistas “teólogos” não são intelectuais
orgânicos e por isso sua atitude não é muito perigosa para a Igreja.
O caso é diferente com os modernistas “políticos” que correm o
risco de “contaminar” as massas rurais. A aristocracia fundiária inte-
grista compreendeu bem isso reservando-lhe o essencial de seus ata­
ques. Isto explica que a condenação oficial do modernismo se desdobre
numa tentativa de separar os intelectuais modernistas de sua base so­
cial, e de recuperá-la. A Igreja não quer que se renovem as conse-
qüências do movimento católico-liberal do Risorgimento e, para deca­
pitá-lo em seu proveito, retoma os métodos medievais:
“O Papa demonstrou que compreendeu a lição e soube manobrar
brilhantemente. ( . . . ) O Papa fulminou o modernismo como ten­
dência reformadora da Igreja e da religião católica, mas desen­
volveu o popularismo, ou seja, a base econômico-social do mo­
dernismo, e fez dele hoje com Pio XI o ponto de apoio de sua
estrutura mundial.”^^
Mas se a Igreja pôde vencer com tanta facilidade e recuperar o
modernismo, é porque foi beneficiada pela passividade dos intelectuais
leigos. Tomando o exemplo da Itália, onde estes intelectuais, e princi­
palmente Croce, estão na origem filosófica e política deste movimento,
Gramsci sublinha que eles contribuíram objetivamente para a vitória

32 Maq. p. 336.
33 R. pp. 72-73.

160
do Papa. A afirmação de que o modernismo é antes de tudo católico
e por isso não se pode beneficiar do apoio dos intelectuais leigos
parece-lhe um “pretexto”. Gramsci censura a Croce o fato de estar
repetindo a atitude dos intelectuais do Renascimento, evitando enga­
jar-se na luta a pretexto de que o movimento cultural popular não
corresponde à alta cultura leiga.
A verdadeira razão da abstenção dos intelectuais liberais é de
ordem política. À pergunta:
“Por que Croce não deu, do modernismo, a mesma explicação
que na História da Europa havia dado do catolicismo liberal,
fazendo deste uma vitória da “religião da liberdade”, que conse­
guia penetrar também na cidadela do seu mais acérrimo antago­
nista e inimigo?”^'*
Gramsci esboça a resposta:
“porque o modernismo significava politicamente democracia cris-
tã”.35

Croce e os intelectuais liberais rejeitaram no modernismo a


irrupção do povo na vida cultural e política. Sua atitude aristocrática e,
portanto, conservadora, contribuiu amplamente para a vitória do Papa
sobre o modernismo, e, indiretamente, sobre os intelectuais liberais:
“A atitude de Croce e Gentile isolou os modernistas no mundo
da cultura, tornando mais fácil o seu esmagamento por parte dos
jesuítas; aliás, tal fato surgiu como uma vitória do papado contra
toda a filosofia moderna: a encíclica antimodernista é, na reali­
dade, contra a imanência da ciência moderna e é neste sentido
que foi comentada nos seminários e nos círculos religiosos.

— a luta contra os integristas:

A luta contra os integristas vem depois da condenação do moder­


nismo e marca o retorno a uma política “centrista”:
“A luta contra o modernismo levara muito para a direita o cato­
licismo; assim, deve-se “centralizá-lo” de novo nos jesuítas, isto

34 CDH p. 283.
35 CDH p. 284.
36 CDH p. 322.

161
é, dar-lhe uma forma política dútil, sem endurecimentos doutri­
nários, com uma grande liberdade de manobra.”^^
Enquanto o combate contra o modernismo era oficialmente um
combate puramente religioso, a luta contra os integristas assume um
caráter abertamente político, e isso por duas razões: de um lado, os
jesuítas dificilmente podem atacar os integristas no terreno doutrinai —
visto que a acusação de jansenismo era essencialmente polêmica. Mas
sobretudo a aliança dos integristas com as organizações monarquistas
facilita a tarefa do Vaticano como o mostra o exemplo francês.
O verdadeiro conflito entre o Vaticano e os integristas refere-se,
pois, às relações com o Estado liberal, isto é, opõe os que recusam a
aliança, e os partidários da aproximação da Igreja com o Estado.
A luta contra os integristas franceses — e seu apoio à Ação
francesa — tem por finalidade permitir na França um realinha-
mento análogo àquele realizado na Itália com o pacto Gentiloni e
o Partido Popular: “a ação pontifícia contra a Action Française
é o aspecto mais claro e resolutivo de uma ação mais ampla para
liquidar uma série de conseqüências da política de Pio X (na
França, mas indiretamente também em outros países). Pio XI
pretende limitar a importância dos católicos “integrais”, aberta­
mente reacionários, que tornam quase impossível a organização
na França de uma poderosa Ação Católica e de um partido
democrático-popular que possa concorrer com os radicais, sem,
porém, atacá-los frontalmente.”^®
O efeito real da Ação francesa é impedir em nível dos intelectuais
o realinhamento já realizado em nível das massas católicas. Se o
realinhamento oficial da Igreja — depois do fracasso de Leão
XIII — só se produziu na França depois da guerra, Gramsci o
explica pela relação de força no seio do movimento católico
francês: as tentativas fracassaram porque os integristas monar­
quistas — agrupados principalmente na Ação francesa — conser­
vavam uma influência predominante sobre os intelectuais cató­
licos e sobretudo controlavam as organizações de massa e, em
primeiro lugar, a Ação católica: “o complexo de associações que
constituem a Ação Católica é controlado pela aristocracia latifun­
diária (é o seu chefe, ou era, o General Castelnau), sem que o

37 Maq. p. 322.
38 Maq. pp. 322-323.

162
baixo clero exerça aquela função de guia espiritual-social que
exercia na Itália (na parte setentrional).
Apesar do fracasso da solução cesarista com a questão Dreyfus,
os integristas estavam persuadidos da possibilidade de um golpe
de força apoiado pelas massas católicas. O Vaticano, certo da
utopia desta política e convencido, pelo contrário, de que a subi­
da ao poder do bloco das esquerdas perigava favorecer uma nova
política anticlerical, prefere uma aliança que lhe permitirá intervir
eficazmente na vida política francesa: “O Vaticano não pretende
mais abster-se nas questões internas francesas e considera que
a ameaça de uma possível restauração da monarquia tornou-se
inoperante. O Vaticano é mais realista que Maurras, e concebe
melhor a fórmula politique d’abord. Enquanto o camponês tiver
que escolher entre Herriot e um hobereau, escolherá Herriot: por
isso é necessário criar o tipo do “radical católico”, isto é, do
“popular”, é necessário aceitar sem reservas a república e a de­
mocracia e neste terreno organizar as massas camponesas, supe­
rando o dissídio entre religião e política, fazendo do padre não só
o guia espiritual (no campo individual-privado), mas também o
guia social no campo econômico-político).”"'®
A luta contra a Ação francesa tem, portanto, uma dupla finali­
dade: liquidar as seqüelas do monarquismo separando os católicos
dos legitimistas, e fazer a aliança levando em consideração a
experiência do Partido Popular.
O Vaticano vai agir em duplo nível: no terreno puramente político
apoderando-se rapidamente da Ação francesa e oferecendo aos
radicais o eleitorado católico às custas do abandono dos projetos
anticlericais: “É notável como em 1926, durante a crise parla­
mentar francesa, enquanto a Action Française preanunciava o
golpe de força e publicava os nomes dos futuros ministros que
teria convocado o pretendente João IV de Orleans, o líder dos
católicos aceitava vir a participar de um governo de coalizão repu­
blicana. A lívida raiva de Daudet e Maurras contra o Cardeal
Gaspari e o anúncio pontifício em Paris deveu-se justamente à
tomada de consciência de que já tinham sido diminuídos politica­
mente de 90% no mínimo.”'*’

39 Maq. p. 123.
40 Maq. p. 124.
41 CC p. 156.

163
Mas o esforço essencial do Vaticano faz-se em direção aos intelec­
tuais católicos. A tática escolhida é particularmente hábil visto
que se contenta em atacar Maurras e os outros dirigentes da
Ação francesa, mostrando a contradição entre as afirmações
ortodoxas dos integristas e seu apoio a personalidades aberta­
mente atéias: “Os “integrais” são combatidos não como tais, mas
na qualidade de partidários de Maurras, isto é: a luta é travada
contra pessoas que não obedecem ao Papa, que dificultam a
defesa da fé e da moral contra um ateu e um pagão confesso,
enquanto a tendência no seu conjunto é oficialmente ignorada.”''^
Finalmente, a luta contra os integristas não é mais que uma luta
política. Isso aparece pela análise da condenação da Ação francesa.
Por outro lado, Gramsci sublinha que a luta contra os integristas se
limitou à França:
“O Papa se cuidou muito bem de identificar e “punir” com as
mesmas sanções, nos outros países, os elementos individuais ou
os grupos que defendem abertamente as mesmas posições de
Maurras.”^3

3 . Caráter permanente das clívagens

As condenações do modernismo e da Ação francesa marcam o


fim das lutas abertas no seio da Igreja. Todavia, Gramsci julga que a
vitória dos jesuítas foi apenas aparente: as outras tendências não foram
aniquiladas; o modernismo continua a atrair o jovem clero apesar
do juramento anti-modernista:
“A luta contra o modernismo desmoralizou especialmente o jovem
clero, que não hesita em pronunciar o juramento antimodernista,
mesmo continuando a conservar as suas opiniões.

42 Maq. p. 322.
Sobre a Ação Francesa e Maurras, Maq. pp. 120-125.
Sobre a adesão de J. Maritain, CC p. 98-99.
Gramsci situa também na corrente integrista H. Massis e o grupo “Defesa do
Ocidente”, cfr. Maq. p. 331.
43 Maq. pp. 328-329.
44 Maq. p. 319.

164
Quanto aos “integrais”, conservaram toda a sua influência; a
condenação da Ação francesa é um ataque exterior que rejeita a
atitude política dos “integrais” mas não visa sua aniquilação.
Visto que a estrutura do aparelho eclesiástico dificilmente permite
avaliar a influência real destas correntes, Gramsci considera que
“de qualquer modo, eles constituem sempre “fermentos” que
continuam a atuar, na medida em que representam a luta contra
os jesuítas e o seu predomínio, luta levada a cabo ainda hoje por
elementos de direita e de esquerda, em meio à aparente indife­
rença da massa do clero e com resultados não desprezíveis entre
a massa de fiéis, que ignora estas lutas e o seu significado, e que
exatamente por isto não pode alcançar uma mentalidade unitária
e homogênea de base.”^^
Mas, para além das formas “conjunturais” do modernismo e do
integrismo, estas clivagens internas estão destinadas a se perpetuarem
na medida em que a Igreja se tornou uma força ideológica secundária;
não é mais ela que cria e difunde a ideologia dominante, mas, pelo
contrário, é ela que sofre a influência das ideologias exteriores. Por
isso, manifestações desta influência tais como o modernismo serão
inevitáveis na medida em que uma parte do clero — e principalmente
do jovem clero — for atraída “espontaneamente” por estas ideologias;
o modernismo como influência das concepções leigas é, pois, um fenô­
meno orgânico, do qual somente o conteúdo varia segundo a evolução
destas ideologias.
Frente a esta atração, as atitudes que consistem em se adaptar
“molecularmente” — jesuítas — ou a tudo rejeitar em nome da pureza
doutrinai — “integrais” — também não podem deixar de se perpetuar.
Para Gramsci é evidente que estas clivagens não são unicamente
ideológicas ou políticas, mas reflexos das concentrações do bloco social
católico. Os conflitos internos da Igreja são, pois, a tradução no mundo
católico e principalmente nos seus intelectuais, da evolução estrutural
e ideológica do mundo leigo, e da subordinação da Igreja a este.

45 Maq. p. 318-319.

165
QUARTA PARTE
JTJlAít «ISUJO

■A
o estudo do fenômeno religioso, nos Quaderni, não se limita
à análise da função histórica desempenhada pela Igreja até os acordos
de Latrão.
Gramsd tenta também, a partir desta análise, revelar a função
que a Igreja católica, e mais geralmente as religiões, ainda podem
desempenhar no futuro. A problemática gramsciana apresenta assim
um tríplice aspecto;
— qual é a evolução provável da Igreja católica?
— qual é a concepção do mundo capaz de ultrapassar o catoli­
cismo na Itália?
— em que medida o fenômeno religioso é um fenômeno per­
manente?
C A PITU LO I

PERSPECTIVAS DE EVOLUÇÃO DA IGREJA

— O papel da Igreja no seio da sociedade civil — o futuro do


movimento católico — a crise das religiões

Se considerarmos as perspectivas de futuro que Gramsci atribui


ao catolicismo nos Quaderni, teremos a impressão de que se trata de
análises contraditórias. Uma delas, muito pessimista, funda-se na
evolução da Igreja e do cristianismo desde suas origens; a outra, mais
favorável, tira as conseqüências da aliança e das concordatas. Na
realidade, a contradição é apenas aparente. O reforço que Gramsci
constata depois de 1929 não é mais do que um reforço episódico,
que cria novas contradições no seio do mundo católico. Por isso,
suas previsões a longo prazo não se modificaram fundamentalmente.
Gramsci analisa a evolução da Igreja sob um tríplice ponto de
vista: enquanto Igreja-aparelho ideológico; enquanto movimento no
seio do conjunto das Igrejas cristãs; e como religião-ideologia.

1. O papel da Igreja no seio da sociedade civil

A aliança e sobretudo as concordatas permitiram à Igreja estabi­


lizar seus privilégios no seio da sociedade civil. Mas esta estabilização,
para além das conseqüências benéficas imediatas, hipoteca gravemente
a independência da Igreja.
Com efeito, a priori, a concordata permite à Igreja conservar e
mesmo reforçar suas funções no interior da sociedade civil: se consi­
derarmos a lei Gentile e a concordata de 1929, a Igreja recupera o
monopólio do aparelho escolar: tal monopólio pode permitir-lhe refor­
çar no futuro sua influência sobre o aparelho do Estado; Gramsci

171
sublinha principalmente o controle da Universidade que fornecerá à
Igreja o instrumento para formar o pessoal dirigente do Estado:
“Na realidade, não se pode nem de longe comparar a eficiência
da Igreja, que aparece como um bloco a defender a sua Universi­
dade, com a eficiência organizativa da cultura leiga. Se o Estado
(inclusive no sentido mais amplo de sociedade civil) não se
exprime numa organização cultural segundo um plano centrali­
zado, e não pode nem mesmo fazê-lo, pois a sua legislação em
matéria religiosa é a que é, e sua equivocidade não pode deixar
de ser favorável à Igreja, devido à estrutura maciça da Igreja e
ao peso relativo absoluto que deriva de uma tal estrutura
homogênea, e se os títulos dos dois tipos de Universidade são
equiparados, é evidente que surgirá a tendência a que as Univer­
sidades católicas transformem-se no mecanismo seletivo dos
elementos mais inteligentes e capazes das classes inferiores, que
deverão ser incluídos entre o pessoal dirigente. Favorecerão esta
tendência: o fato de que não há descontinuidade educativa entre
as escolas médias e a Universidade católica, enquanto esta descon­
tinuidade existe em relação às Universidades laico-estatais.”’
No nível ideológico, este aumento de influência traduz-se no
retorno às teorias do “poder indireto”. Gramsci nota que a canoniza­
ção de Bellarmino^ — teórico do “poder indireto” — é contempo­
rânea aos acordos de Latrão:
“A santificação de Roberto Bellarmino é um sinal dos tempos
e do acreditado impulso de nova potência da Igreja católica.”^
Mas mesmo nos Estados onde a Igreja não pôde voltar a ser a
principal força da sociedade civil, Gramsci mostra que sua estratégia
é a mesma que na Itália: assim a aliança de 1926 na França tem por
finalidade a criação de um partido católico — análogo ao Partido
Popular — que lhe dará a possibilidade de intervir na vida política
francesa e de começar uma reinserção da Igreja na sociedade civil
análoga àquela conseguida com a concordata.
Mas este reforço aparente encerra graves ameaças para a própria
estrutura da Igreja. Em nível de sociedade civil, a Igreja se liga mais

1 Maq. pp. 305-306.


2 R. Bellarmino (1542-1621): cardeal jesuíta; um dos principais teólogos da
Contra-Reforma; conduziu o processo contra Galileu e fez condenar Giordano Bruno.
3 Maq. p. 337.

172
intimamente ao Estado burguês; ora, esta osmose é perigosa na
medida em que as possibilidades de adaptação se reduziram conside­
ravelmente; Gramsci lembra que foram necessários nove séculos para
que a Igreja pudesse adaptar-se à superestrutura burguesa; uma crise
orgânica desta pode estender seus efeitos também à Igreja.
É no seio do próprio aparelho eclesiástico que as ameaças são
mais sérias. Gramsci vê dois tipos destas ameaças: o primeiro,
fundamental, refere-se às relações hierárquicas no seio da Igreja: a
autoridade da hierarquia é contestada por dois fenômenos muito
diferentes: de um lado, as lutas de tendências que freiam a ação do
Vaticano. De outro lado e sobretudo, o enfraquecimento da disciplina
nas novas organizações de massa criadas depois da guerra: principal­
mente os partidos e sindicatos católicos.
Como Gramsci já notava em 1918,
“os historiadores se perguntarão como o catolicismo deixou minar
seu edifício ideológico sem reagir, como deixou a Reforma
protestante, combatida quando investia do exterior, triunfar na
intimidade, deteriorando lentamente e esterilizando a disciplina
e a hierarquia.”^
Esta evolução é a conseqüência da impossibilidade de toda disci­
plina dogmática nestas organizações:
“Ao lado da Igreja, associação de indivíduos disciplinados pelo
dogma, surgem os sindicatos, as cooperativas, que devem aceitar
a liberdade, o livre exame, a discussão: estas armas demoníacas
são dirigidas somente contra o Estado, contra as reformas parti­
culares da vida, mas acabarão fatalmente por se voltar contra a
religião, contra a moral que dependa do dogma.
Afora as conseqüências de tal decomposição, Gramsci deduzia
daí a evolução irreversível para o protestantismo:
“Pela lógica incoercível das idéias e dos acontecimentos, os católi­
cos ativos tornaram-se implicitamente luteranos.”*
Esta evolução não se limita apenas aos militantes católicos leigos.
Gramsci sublinha que os próprios efeitos do despertar de religiosidade

4 SM p. 390.
5 ibid.
6 ibid.

173
depois da concordata caminham neste sentido, atraindo para o catoli­
cismo leigos que não foram formados pela hierarquia:
“Existe um maior interesse pelas coisas religiosas por parte dos
laicos, que levam para a análise um espírito não educado pelo
rigor hermenêutico dos jesuítas e, portanto, tendente com fre-
qüência à heresia, ao modernismo, ao ceticismo elegante. Troppa
grazia! para os jesuítas, que preferiam que os laicos, ao contrário,
não se interessassem por religião senão para acompanhar o
culto.”7

Portanto, o reforço da organização católica aumentou os perigos


que a ameaçam: isso se verifica em detrimento da autonomia da Igreja
frente à classe dirigente e leva a um aumento da função dos intelectuais
leigos que a hierarquia dificilmente controla.
A esta situação precária a nível do aparelho eclesiástico acrescen­
ta-se um novo problema: a Igreja se encontra frente às tentativas de
reunificação do protestantismo.

2 . A Igreja e o inundo cristão

“O problema da unidade das igrejas cristãs é um formidável


fenômeno do após-guerra, digno da máxima atenção e de um
estudo acurado.”®

Este interesse de Gramsci pelo problema da unidade do mundo


cristão não é novo: já nas colunas do Ordine nuovo havia aparecido
em 1922 um artigo comentando o estado das discussões entre católicos
e ortodoxos em vista de uma aproximação doutrinai e organizacional.
Nos Quaderni, Gramsci sublinha em seguida à encíclica Mortalium
ânimos de 1928, a aproximação entre as Igrejas protestantes e a
reação da Igreja.
A análise gramsciana deste problema comporta três considerações:
Antes de mais nada, Gramsci constata depois da guerra a existên­
cia de uma forte corrente ecumênica que se apoia numa aspiração
da base — Gramsci cita o exemplo do clero jovem de Turim’ e a

7 I. p. 56.
8 Maq. p. 293.
9. Maq. p. 319.

174
influência desta tendência unitária sobre o modernismo — e se traduz
por uma aproximação mais ou menos formal a nível das Igrejas.
Mas esta aproximação não está isenta de rivalidade; citando o
caso das missões católicas e protestantes na América Latina, Gramsci
sublinha que sua luta nada tem de ecumênico:
“Os católicos apresentam as missões protestantes como vanguarda
da penetração econômica e política dos Estados Unidos e lutam
contra ela, levantando o sentimento nacional. A mesma crítica
fazem os protestantes aos católicos, apresentando a Igreja e o
Papa como potências terrestres que se vestem de religião. . .
Por fim e sobretudo, a afirmação ecumênica serve geralmente
para mascarar uma luta entre organizações religiosas pela hegemonia
no seio do mundo cristão.
Considerando as diferentes formas deste movimento ecumênico,
Gramsci distingue duas etapas: num primeiro período, a iniciativa
pertence à Igreja católica; seu aperfeiçoamento organizacional e a
estabilização das relações com o Estado permitem-lhe promover uma
nova expansão missionária. Esta se efetua em três direções: nas
colônias, onde tem que enfrentar as missões protestantes; nos países
protestantes, onde se beneficia da pulverização crescente das diferentes
seitas e, por fim, nos países de religião ortodoxa.
Se a rivalidade com as Igrejas protestantes se traduz essencial­
mente no nível missionário, as relações com o mundo ortodoxo
situam-se, ao contrário, ao nível dos aparelhos eclesiásticos e por isso
assumem uma importância totalmente diferente.

— a aproximação entre católicos e ortodoxos:

A unidade com as Igrejas ortodoxas é um objetivo constante do


Vaticano. Gramsci sublinha que se os contactos remontam ao
pontificado de Leão XIII, eles assumiram certa importância sob
o impulso de Bento XV.
De outro lado, esta vontade de aproximação não deixa de ter
seu reflexo político e explica principalmente a atitude moderada
do Vaticano quando irrompe a revolução russa: “Toda a política
de Bento XV frente à Rússia dos Soviéticos está ligada ao velho
sonho da unidade religiosa católico-cismática.”" Esta preocupa-

10 I. p. 95.
11 SF p. 450.

175
çâo de não hipotecar o futuro traduz-se numa política de tipo
“humanitário” por ocasião da guerra civil entre comunistas e
exércitos brancos; por outro lado, tal política é vivamente comba­
tida na época de Gramsci, que a acusa de duplicidade’ mas
demonstra em todo caso a importância que o Vaticano atribui à
aproximação com as Igrejas ortodoxas.
Examinando as condições de uma verdadeira unidade religiosa,
Gramsci sublinha que ela não vai de encontro a obstáculos insu­
peráveis: as dificuldades propriamente religiosas são bastante
secundárias, as diferenças situam-se essencialmente no nível do
rito e se explicam por razões tradicionais: “Enquanto no Ocidente
a Patrologia antiga grega só é focalizada depois da latina, no
Oriente, pelo contrário, não é possível abstrair do fato de que a
história antiga da religião é sobretudo grega, como gregos são
na origem todos os Evangelhos, gregos são em sua grande maioria
os Padres. O caráter greco-oriental é essencialmente pedante e
sofisticado em filosofia e em religião. Enquanto as tradições da
Igreja ocidental são sobretudo práticas, as da Igreja oriental são,
desde os tempos mais antigos, teológicas, questionadoras, subti-
lizantes.”’^
Esta originalidade pode facilmente ser superada na medida em
que a Igreja católica já possui um rito greco-católico que pode
fornecer uma base para a fusão. Esta não apresenta verdadeiras
dificuldades de ordem religiosa’'’, mas na realidade tropeça num
problema de ordem político-organizacional: o primado do Papa.
Enquanto a história do aparelho eclesiástico católico é a do
reforço constante das prerrogativas do Papa, consagrado pelo
Concilio Vaticano, o mundo ortodoxo se desagregou em Igrejas
nacionais, principalmente nos países mediterrâneos. Por isso o
Papa deveria reduzir consideravelmente o seu poder. Ora, mesmo
este enfraquecimento não seria suficiente: Gramsci sublinha que
para certas Igrejas orientais o papado deveria ser atribuído ao
patriarca de Constantinopla, ao passo que outros chegam mesmo
a negar a necessidade de uma preeminência papal sobre as
Igrejas nacionais.

12 SF pp. 273-275.
13 SF p. 451.
14 O único verdadeiro obstáculo ideológico reside na processão do Espírito
Santo, mas Gramsci julga que se trata de uma “sutileza teológica" que pode ser
facilmente resolvida.

176
Esta resistência “nacionalista”, e por isso política, das Igrejas
mediterrâneas explica que os esforços do Vaticano se orientem
principalmente para as Igrejas ortodoxas do mundo eslavo; “Pro­
vavelmente, se alguma possibilidade, mesmo muito longínqua,
tivesse que se apresentar, seria na Rússia ou nos países eslavos
que o Papa procuraria abrir brecha.”'®
O êxito da revolução russa impediu tal aproximação. Quanto aos
contactos com as Igrejas do mundo mediterrâneo, vão ser seria­
mente freados pelo desenvolvimento do movimento ecumênico
não-católico.

— o movimento pancristão:

Gramsci considera que o movimento ecumênico não-católico que


se constitui progressivamente depois da guerra, é, de fato, uma
tentativa por parte das Igrejas protestantes de resistir ao fortalecimento
da Igreja católica, fortalecimento que se realiza amplamente em seu
detrimento. A única possibilidade de resistência é, por isso, formar
uma frente única das diferentes seitas e beneficiar-se do apoio tático
das Igrejas ortodoxas;
“Esta é uma ofensiva protestante contra o catolicismo, ofensiva
que apresenta dois momentos essenciais; 1) as igrejas protestantes
tendem a frear o movimento desagregador nas suas fileiras que
dá lugar continuamente a novas seitas); 2) aliam-se entre si e,
obtendo certo consentimento dos ortodoxos, assediam o catolicis­
mo para levá-lo a renunciar ao seu primado e para apresentar na
luta uma frente única protestante de grandes proporções, em vez
de uma multidão de igrejas, seitas, tendências de importâncias
diversas que, isoladas, mais dificilmente poderiam resistir à tenaz
e unificada iniciativa missionária católica.”'®
Mas esta resistência torna-se ofensiva na medida em que permite
às organizações protestantes não somente limitar a influência católica,
mas reencontrar certa expansão ideológica;
“As igrejas protestantes tendem não só a unir-se entre si, mas a
adquirir, através da união, uma força de proselitismo; das igrejas
Protestantes, só as americanas, e em menor grau as inglesas, ti-

15 SF p. 452.
16 Maq. p. 293.

177
nham uma força de expansão para o proselitismo: esta força é
transferida para o movimento pancristão, mesmo sendo ele diri­
gido por elementos europeus continentais, especialmente norue­
gueses e alemães.”'^
Por fim, na medida em que as Igrejas protestantes conseguem a
aliança — mesmo tática — das Igrejas ortodoxas, freiam com isso a
aproximação iniciada entre o Vaticano e os ortodoxos.
Frente a esta ofensiva, a Igreja católica encontra-se em posição
delicada. O fraccionamento das seitas facilitava a sua penetração no
meio protestante. Sua aproximação inverte a relação das forças religio­
sas e por isso a estratégia da Igreja:
“A Igreja católica está bastante perturbada com este movimento.
A sua organização maciça e a sua centralização e unicidade de
comando, davam-lhe vantagem na obra lenta mas segura de
absorção de hereges e cismáticos. A união pancristã abala o
monopólio e coloca Roma diante de uma frente única.”’®
Ora, a adesão a tal movimento é impossível na medida em que
ele estipula a igualdade de direito entre as diversas igrejas. A rejeição
de tal ecumenismo pela encíclica Mortalium ânimos pode levar a Igreja
ao isolamento no seio do mundo cristão.
Mas as ameaças que pesam sobre o aparelho eclesiástico e as
rivalidades que o opõem às outras Igrejas aparecem como perigos
menores se se considera a crise fundamental que pode abalar a própria
religião.

3 . A crise religiosa

A crise fundamental que afeta a religião católica atinge todos


os grupos sociais que formam a massa dos fiéis. No nível das classes
cultas, o maior perigo é constituído pelas ideologias maçônicas.

— a franco-maçonaria:

As ideologias maçônicas constituem a principal ameaça para a


Igreja entre as classes dirigentes. Esta ameaça aumentou consideravel-

17 Maq. p. 343.
18 Ibid.

178
mente a partir do início do século: paradoxalmente, é atenuando seu
caráter anticlerical que as organizações maçônicas ameaçam mais a
Igreja.
Gramsci sublinha, com efeito, que a franco-maçonaria tradicional,
tal como está difundida nos países latinos, se caracteriza pela influên­
cia dominante da mentalidade pequeno-burguesa;
“A maçonaria tem como característica fundamental a democracia
pequeno-burguesa, o laicismo, o anticlericalismo etc. . .
Esta ideologia corresponde à política de aliança da burguesia
com a pequena-burguesia na luta contra o feudalismo e seus resíduos;
ela consolida esta aliança fazendo da Igreja, intelectual da aristocracia
fundiária, o principal inimigo ideológico. O período de desenvolvi­
mento deste primeiro tipo de franco-maçonaria estendende-se até
a organização ideológica autônoma das classes subalternas, como o
mostra o exemplo italiano:
“Durante certo período, todas as forças da democracia se aliaram
e a Maçonaria se tornou o pivô desta aliança: é um. período bem
determinado da história da Maçonaria, tornada uma das forças
mais eficientes do Estado na sociedade civil, para conter as
pretensões e os perigos do clericalismo, e este período acaba
com o desenvolvimento das forças operárias.”®
Separando-se das classes subalternas, a franco-maçonaria constitui
apenas um perigo secundário para a Igreja; esta, pelo contrário, a
privilegia exagerando sua importância real.
A franco-maçonaria tradicional não desempenha mais do que
um papel secundário depois da guerra: ainda predominante nos países
latinos, ela bate em retirada nos países' anglo-saxões. No seio da
maçonaria propriamente dita, a guerra leva a uma cisão que beneficia
as correntes anglo-saxônicas que defendem uma ideologia agnóstica
em matéria política e religiosa.
Mas o fenômeno mais importante do após-guerra é o desenvolvi­
mento rápido de novas organizações, cujo modelo é o Rotary Club.
Este difere radicalmente da maçonaria tradicional:
“O Rotary Club não pode ser confundido com a maçonaria
tradicional, principalmente com a dos países latinos. Representa

19. Maq. p. 417.


20 MS p. 123. Não existe esta passagem na edição brasileira. (N. do Tradutor)

179
uma superação orgânica da maçonaria e interesses mais concretos
e definidos.”^'

Enquanto a franco-maçonaria representava a pequena e grande


burguesia, o Rotary Club — e seus êmulos — é a organização
exclusiva das classes dirigentes, correspondendo a uma nova fase do
desenvolvimento capitalista. Gramsci nota, com efeito, numa série
de desenvolvimentos consagrados ao “americanismo”, que depois da
guerra a sociedade americana sofreu uma profunda transformação
em sua organização econômica e ideológica, caracterizada pelo recurso
ao dirigismo:
“No geral, pode-se dizer que o americanismo e o fordismo deri­
vam da necessidade imanente de organizar uma economia progra-
mática e que os diversos problemas examinados deveríam ser os
elos da cadeia que assinalam exatamente a passagem do velho
individualismo para a economia programática.”^^
Esta nova organização propicia o aparecimento de uma nova
racionalidade capitalista — diferente da ética protestante — da qual
o Rotary Club e seus êmulos constituem a expressão ideológica.
Gramsci sublinha que a americanização — no sentido da organização
econômica — da indústria européia é acompanhada da implantação
paralela dos clubes rotarianos.
Em nível de ética rotariana, o aspecto essencial é o de promover
uma “filosofia do serviço”, próxima do saint-simonismo, agnóstico
em matéria religiosa:
“O Rotary não pretende ser nem confessional, nem maçon; todos
podem ingressar nas suas fileiras; maçons, protestantes e católicos
(em alguns lugares arcebispos aderiram ao Rotary). Parece que
o seu programa essencial baseia-se na difusão de um novo espírito
capitalista, na idéia de que a indústria e o comércio, antes de
serem um negócio, são um serviço social; ainda mais, não podem
ser um negócio na medida em que representam um “serviço”.
Assim, o Rotary desejaria que o “capitalismo de rapina” fosse
superado e se instaurasse um novo costume, mais propício ao
desenvolvimento das forças econômicas.
21 Maq. p. 417.
22 Maq. pp. 375-376.
23 Maq. pp. 415-416.

180
Tais organizações representam um duplo perigo:
— perigo ideológico na medida em que o agnosticismo rotariano
relega o catolicismo ao mesmo nível das outras ideologias;
— perigo organizacional porque a expansão destas organizações
pode colocar a Igreja católica sob sua dependência tal como acontece
com as Igrejas protestantes.
Portanto, a atitude da Igreja é ambivalente: não pode atacar
tais organizações na medida em que elas representam organicamente
a classe dirigente:
“É claro que a Igreja católica não poderá ver “oficialmente” o
Rotary com bons olhos, mas parece difícil que adote em relação
a ele uma atitude semelhante à adotada contra a maçonaria: se
fosse assim, então deveria voltar-se contra o capitalismo.”^'*
A Igreja opta também por uma ofensiva ideológica que não
inclua decisões práticas, acompanhada de contactos táticos; de fato,
para além dos problemas ideológicos, a Igreja quer evitar, de um lado,
uma condenação que a afastaria mais da classe dirigente e de seus
intelectuais e, de outro, encontrar-se em posição subalterna face a
estas organizações.
Por isso a Igreja se encontra numa posição defensiva com relação
às classes dirigentes. Sua situação é ainda mais ameaçadora no seio
das classes subalternas.
Analisando a função ideológica do catolicismo depois da Reforma,
Gramsci sublinha que ele se apresenta essencialmente como uma
religião de classes subalternas: a “religião popular” desempenha o
papel primordial. Ora, é esta religião popular que se encontra mais
ameaçada por duas correntes muito diferentes, o nacionalismo e o
comunismo. Gramsci analisa: a religião popular é uma ideologia vulgar
que se aproxima do folclore. “Espessamente materialista” em nível
da atitude prática, ela se caracterizava até agora por seu “fanatismo” ;
com efeito, Gramsci julga que o único meio que a Igreja tem de
manter a unidade formal entre a religião materialista e supersticiosa
das massas e aquela dos intelectuais era o recurso ao fanatismo; que
“não pode ser senão momentâneo, limitado, mas que acumula
massas psíquicas de emoções e de impulsos que se prolongam
mesmo em épocas normais.

24 Maq. p. 417.
25 I. p. 96.

181
Ora, o recurso ao fanatismo já passou, e por isso Gramsci
considera que
“O catolicismo agoniza pela seguinte razão: porque não pode
criar periodicamente, como o fez no passado, ondas de fanatismo;
nos últimos anos, após a guerra, encontrou substitutos, isto é,
as cerimônias eucarísticas coletivas que se desenvolvem com
fabuloso esplendor e provocam relativamente um certo fanatismo:
mesmo antes da guerra, provocavam algo similar, mas em peque­
na escala, em escala demasiadamente local, as chamadas missões,
cuja atividade culminava na ereção de uma imensa cruz, com
violentas cenas de penitência.”^*
Não podendo mais alimentar o misticismo popular, o cristianismo
vê-se contestado pelas ideologias que se situam em seu próprio terreno.

— o perigo nacionalista:

A ameaça mais imediata que pesa sobre a religião cristã em


1930 é, para Gramsci, o nacionalismo. As Reformas protestantes e a
Revolução francesa mostraram que o nacionalismo é a heresia mais
perigosa para as religiões. É com esta finalidade que a burguesia
liberal e anticlerical vão utilizá-lo:
“A “religião” popular que substituiu o catolicismo (ou melhor,
que se combinou com ele) foi a do “patriotismo” e do naciona­
lismo. Eu li que, durante o processo Dreyfus, um cientista francês
maçom — e explicitamente ministro — afirmou que o seu partido
queria extinguir a influência da Igreja na França, e, já que a
multidão tinha necessidade de um fanatismo (os franceses usam
em política o termo “mystique”), seria organizada a exaltação
do sentimento patriótico.”^^
A este nacionalismo liberal vai opor-se progressivamente um
nacionalismo conservador que chega ao hitlerismo. Gramsci nota, de
outro lado, que esta evolução se traduz até mesmo no vocabulário
político:
“Deve-se recordar, ademais, o significado que a palavra “patrio­
ta” assumiu durante a Revolução Francesa (ela significou certa-

26 ibid.
27 CDH p. 232.

182
mente “liberal”, mas com um significado concreto nacional) e
como ela, durante as lutas do século XIX, foi substituída por
“republicano”, graças ao novo significado assumido pelo termo
“patriota”, que se tornou monopólio dos nacionalistas e direitistas
em geral.”28
Por que esta evolução de um nacionalismo liberal para um nacio­
nalismo fascista? Porque, de fato, a verdadeira evolução é a que
marca a passagem do liberalismo burguês ao fascismo. Em ambos os
casos, o nacionalismo é o meio de atrair para a ideologia dominante
as massas populares, um janatismo leigo. O patriotismo de 1873 é a
forma popular do liberalismo, o nacional-socialismo de 1933 a forma
popular do fascismo. Em ambos os casos, o nacionalismo é o meio
ideológico — que depende antes da psicologia das massas — e não o
fim. É a este título que se torna um dos componentes essenciais da
ideologia fascista.
Que o Estado fascista utilize em grau maior ou menor esta
ideologia depende da relação de forças no seio da sociedade civil.
Enquanto na Itália o Estado fascista concede, quanto ao essencial,
o monopólio ideológico ao catolicismo, na Alemanha, ao contrário, a
ideologia nazista é dominante e prejudica gravemente o bloco cristão.
Este recuo de catolicismo diante do nazismo explica-se segundo
Gramsci por certos caracteres comuns às duas ideologias; antes de
mais nada, um baixo nível cultural que se alimenta no folclore;
“Todo o movimento hitlerista é intelectualmente baixo e vulgar
tornando previsível tudo o que sucedeu depois em relação ao
catolicismo e ao cristianismo.
Mas sobretudo o apelo ao fanatismo para obter a adesão das
massas: o nacionalismo é utilizado ao máximo neste sentido. O Estado
nazista substitui a mística religiosa por um fanatismo nacionalista que
corresponde às mesmas características.
Frente a este nacionalismo, a Igreja acha-se desarmada. A adapta­
ção se mostra impossível e a própria sobrevivência é muito difícil:
“O Papa não pode “excomungar” a Alemanha hitlerista; às
vezes deve, inclusive apoiar-se nela, o que torna impossível
qualquer política religiosa retilínea, positiva, vigorosa. Diante de

28 ibid.
29 Maq. p. 330.

183
fenômenos como o hitlerismo, nem mesmo amplas concessões
ao “modernismo” teriam significação, só serviríam para aumentar
a confusão.
Gramsci julga que tal “nacionalismo” corre o risco de se estender
à França. Esta previsão, que se funda na crise de 1926 e no episódio
da Ação francesa, parece-lhe realista dada a força da ideologia nacio­
nal nas massas:

“Também não se pode dizer que na França as coisas sejam mais


alegres, pois exatamente na França foi criada a teoria de
contrapor a “religião da pátria” à religião “romana”, o que leva
a supor um incremento do nacionalismo patriótico, e não do
cosmopolitismo romano.
A ideologia atéia e profundamente nacionalista de Maurras
parece-lhe característica deste perigo e é isso que explica o encarniça-
mento com que a Igreja a combateu de modo especial e a condenou:
“Os jesuítas ( . . . ) compreenderam que se o grupo Maurras
tomasse o poder, a situação de fato do catolicismo na França
seria mais difícil do que a t u a l m e n t e .

Diante deste perigo nacionalista que aumenta a crise do parla­


mentarismo e dos partidos políticos, e temendo enfrentar uma situação
análoga a da Alemanha, a Igreja prefere sustentar a República parla­
mentar, mas fazendo seu próprio jogo.
A atitude da Igreja face ao nacionalismo pode parecer contradi­
tória se considerarmos os exemplos franceses, italianos e alemães.
De fato, porém, ela é muito lógica: a Igreja condena o nacionalismo
como ideologia rival — condenação da Ação francesa — mas não as
forças sociais e políticas que a utilizam — aliança com o Estado
fascista italiano. O caso da Alemanha é específico na medida em
que a Igreja tinha subestimado o perigo hitleriano:

30 Maq. pp. 323-324.


31 Maq. p. 324.
A análise da crise de 1926 é particularmente notável na medida em que anuncia
os acontecimentos de 1934: crise do parlamentarismo, esclerose dos partidos, cuja
“crise pode tomar-se ainda mais catastrófica do que a dos partidos alemães” (Maq.
p. 56), ascensão do fascismo e do nacionalismo. Sobre a análise da crise do parla­
mentarismo francês: Maq. pp. 117-126.
32 Maq. p. 330.

184
“Causa espanto a atitude do Vaticano em relação ao hitlerismo,
não obstante o fato de Rosenberg ter escrito o seu Mito antes
da conquista do poder: é verdade que Rosenberg, intelectual­
mente, não tem a estatura de Maurras.”^^
A concordata com a Alemanha explica-se pela vontade de não
sofrer uma derrota irreversível.
Mas a atitude da Igreja não é unicamente negativa: para frear
a ascensão nacionalista, ela tenta opor-lhe um “nacionalismo católico”,
insistindo em cada país nas figuras nacionais mais representativas do
catolicismo; Gramsci nota assim a utilização de São Tomás de Aquino
na Itália:
“Como poderia servir aos franceses e aos alemães o estímulo
aos filósofos italianos para que abraçassem o tomismo, porque
São Tomás nasceu na Itália e não porque no seu pensamento
pode existir um caminho melhor para se encontrar a verdade?
Ao contrário, não poderá isto se transformar, como conseqüência
lógica, num incitamento às nações para escolher na sua tradição
um “mestre” de filosofia nacional capaz de levar à desagregação
do catolicismo em muitas igrejas nacionais? ( . . . ) O fato de
que os católicos e até os jesuítas da Civiltà Cattolica tenham
sido e sejam obrigados a recorrer a tal propaganda é um sinal
dos tempos.
Hostil ao nacionalismo hitleriano, resignada ao nacionalismo
“republicano”, a Igreja se adapta pelo contrário rapidamente ao nacio­
nalismo dos povos colonizados ou semicolonizados. Apoiando-se na
análise da Civiltà cattolica, Gramsci sublinha que a Igreja dá prova de
grande flexibilidade doutrinai para que os intelectuais nativos não
fiquem alienados e procura até constituir uma tendência “nacio­
nalista católica”, “mediante uma interpretação particular das próprias
doutrinas.”®®
Tal tentativa permanece aleatória por causa da posição ambígua
que a Igreja adota para com as políticas coloniais.
Portanto, o nacionalismo é um perigo constante para a Igreja na
medida em que fornece à classe dirigente o “fanatismo” permitindo-lhe
atrair para a sua ideologia as classes subalternas. Quer esta ideologia

33 Maq. p. 330.
34 Maq. pp. 341-342.
35 I. p. 110.

185
seja essencialmente burguesa — liberalismo — ou pequeno burguesa
— fascismo —, o nacionalismo dá-lhe seu caráter popular. Nisto, o
nacionalismo não é uma ideologia das classes subalternas, mas o meio
pelo qual a classe dirigente transforma sua ideologia em religião
popular.
Tal religião popular — instrumento de hegemonia da classe
dirigente opõe-se pois radicalmente a uma verdadeira Weltan-
schauung das classes subalternas, tal como o marxismo. Com o
marxismo, a Igreja encontra-se às voltas com uma nova Reforma.

186
C A PITU LO II

A REFORMA INTELECTUAL E MORAL

— as três fontes do marxismo — a reforma intelectual e moral


— o fracasso do liberalismo — a Reforma marxista.

“Uma parte importante do Príncipe moderno” — isto é, do estudo


da função do partido revolucionário, afirma Gramsci nos Quaderni —
“deverá ser dedicada à questão de uma reforma intelectual e
moral, isto é, à questão religiosa ou de uma concepção do
mundo.”'
Esta reforma intelectual e moral, é a filosofia da práxis, o mar­
xismo. E se esta questão está ligada a da religião, é porque Gramsci
considera o marxismo como o herdeiro das Reformas religiosas e sua
superação no plano político e ideológico.
Nos capítulos anteriores, ficou evidente que Gramsci, a exemplo
dos clássicos do marxismo, considera a Reforma como um fenômeno
histórico que se estende de Lutero a Robespierre. Mas nos Quaderni,
prolonga esta análise julgando que o marxismo é a herança e a supe­
ração deste movimento: daí a concepção do marxismo como reforma
intelectual e moral, concepção cuja inspiração é tanto soreliana como
marxista.
Esta análise corresponde a necessidades históricas e políticas con­
cretas: as da instauração do socialismo na Itália. Analisando o Renasci­
mento e o Risorgimento, Gramsci sublinha que nos dois casos as
classes subalternas ficaram afastadas da vida cultural e política. Somen­
te o marxismo permitirá a elevação do nível cultural das massas, reali­
zando e superando a função das Reformas burguesas, a exemplo da
revolução de 1917 em nível político.

1 Maq. p. 8.

187
1. o marxismo herdeiro das Reformas

A concepção do marxismo como reforma intelectual e moral é a


ilustração impressionante do historicismo gramsciano.^ Como sublinha
Gaetano Arfe, o partido revolucionário é, na concepção gramsciana,
uma organização que
“recolhe e acolhe no curso de sua luta tudo o que há de mais
avançado na sua tradição nacional, num processo de superação
teórico e prático, cujo ritmo é escandido pela revolução nos fatos
e na consciência coletiva de seus protagonistas.”^
No nível teórico, o marxismo recolhe e supera todo o passado, e
isso tanto no nível político como ideológico, nacional como interna­
cional, historicizando-o e herdando seus aspectos positivos.
Assim sendo, o marxismo deve ser considerado como o herdeiro
e a superação de todo o movimento cultural que se estende da Refor­
ma à Revolução francesa:
“A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o
Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução
francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que
está na base de toda a concepção moderna da vida. A filosofia da
práxis é o coroamento de todo este movimento de reforma inte­
lectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e
alta cultura.* Ela, corresponde ao nexo Reforma protestante mais
Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma
política e uma política que é também uma filosofia.”^
Portanto, o marxismo aparece como o resultado de três correntes
que encontram sua origem nas Reformas protestantes e leigas e que
se caracterizam como sendo tentativas de reinserir as classes subal­
ternas na vida política e cultural: a Reforma luterana que chegou a
Hegel, a Reforma calvinista que chegou a Ricardo e à economia
classica, e a Reforma francesa que criou o jacobinismo. A estas três

2 Sobre o historicismo gramsciano, N. Badaloni, Gramsci storícista di fronte al


marxismo contemporâneo, Crítica marxista, suplemento do n.® 1, 1967, pp. 96-118.
3 G. Arfe, Storia dei socialismo italiano, (1892-1926), Einaudi, 1965, p. 329.
4 O grifo é nosso.
5 CDH pp. 106-107.

188
fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, princi­
palmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como
desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se
assim um ponto de conferência destas três correntes sob a forma de sua
crítica radical.*
Assim o luteranismo: retomando a análise de Croce, Gramsci
sublinha que:
“da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma decor­
reu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de
onde nasceu o mundo moderno.”^
O processo histórico pelo qual Lutero chegou “necessariamente”
a Hegel não é verdadeiramente analisado nos Quaderni, mas Gramsci
apoia-se em três considerações para fundamentar sua demonstração:
a Reforma como movimento cultural popular é o ponto de partida de
um processo de seleção de novos intelectuais; a filosofia clássica alemã
é o resultado teórico deste movimento; somente nas classes subalternas
mantém-se depois de 1848 esta filosofia; a afirmação de Engels se­
gundo a qual
“o movimento operário alemão é o herdeiro da filosofia clássica
alemã”,®
significa que a filosofia clássica não se perpetua a não ser tornando-se
prática do povo alemão, tornando-se política.
Gramsci vincula assim a evolução da Reforma luterana à Revo­
lução francesa; os princípios de estratégia política da Revolução são
a tradução prática da filosofia alemã.
Quando Gramsci afirma que o marxismo corresponde à união
Reforma protestante mais Revolução francesa, que realiza a fusão da

6 Ch. Riechers (Antonio Gramsci. Marxismus in llalien, Europaische Verlag-


anstalt, 1970) sublinha que na trilogia das fontes do marxismo desaparece o socialismo
utópico francês em proveito do jacobinismo (p. 118). De fato, o socialismo utópico
francês reaparece sob suas duas formas nos Quaderni: jacobina (e a apreciação positi­
va de Blanqui por Marx e Engels mostra que eles não rejeitavam um certo jacobinis­
mo) e antijacobina (através de uma recuperação de certos temas proudhonianos prin­
cipalmente o da reforma intelectual e moral! Sobre este ponto, cfr. infra nota 11).
7 CDH p. 256.
8 Engels, Ludwig Feuerbach et Ia fin de Ia philosophie classique aUemande,
Editions sociales, 1966, p. 85.

189
política e da filosofia, está usando na realidade a linguagem do jovem
Marx, o da Crítica da filosofia de Hegel e da Sagrada Família.^
Esta correspondência não se limita à filosofia alemã e à prática
política francesa: Gramsci junta também a economia clássica inglesa:
afirmando a origem calvinista deste movimento cultural, Gramsci pa­
rece supor um anel histórico análogo ao que conduz de Lutero a Hegel:
o calvinismo acarreta o desenvolvimento de um comportamento capi­
talista codificado no “homo oeconomicus” da economia clássica.'®
O marxismo torna-se assim a síntese crítica de três correntes:
filosófica, política e econômica, todas elas saídas das Reformas. Mas
o marxismo é também o herdeiro destes movimentos culturais em
seu aspecto mais popular: o de uma reforma intelectual e moral. Com
efeito, Gramsci sublinha que o marxismo não é apenas o herdeiro das
Reformas: ele mesmo é a Reforma mais radical depois do cristianismo
primitivo. Como sublinha com acerto C. Luporini, o termo “reforma””

9 Toda a demonstração gramsciana fundamenta-se na exegese de quatro textos


de Marx e de Engels aos quais ele retorna constantemente:
— a Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, onde Marx afirma que
“mesmo historicamente, a emancipação teórica tem para a Alemanha uma significação
especificamente prática. O passado revolucionário da Alemanha é, efetivamente,
teórico, é a Reforma. Como antigamente no cérebro do monge, agora é naquele do
filósofo que começa a revolução.” (SLR p. 50) Disto Marx conclui que a revolução
nascerá do encontro da filosofia alemã e da prática política francesa (ibid. pp. 55-58).
— A Sagrada Família onde Marx sublinha a correspondência entre a linguagem
filosófica alemã e a linguagem política francesa (cfr. La Sainte Famille, Editions
Sociales, 1969, p. 50).
— A XI tese sobre Feuerbach: “Os filósofos não fizeram mais do que interpretar
o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo” (Engels,
Ludwig Feuerbach, p. 91).
— a afirmação de Engels anteriormente citada que faz da classe operária alemã
a herdeira da filosofia clássica alemã, e que Gramsci considera como a aplicação da
XI tese.
10 Gramsci tenta estabelecer uma analogia conceituai entre filosofia alemã e
economia inglesa, análoga à que Marx sublinhava entre filosofia alemã e revolução
francesa;
“Num certo sentido, parece-me que se pode dizer que a filosofia da práxis é
igual a Hegel mais David Ricardo. O problema deve ser apresentado inicialmente
assim: os novos cânones metodológicos, introduzidos por Ricardo na ciência econô­
mica, devem ser considerados como valores puramente instrumentais (em outras
palavras, como um novo capítulo da lógica formal) ou têm eles uma significação de
inovação filosófica? A descoberta do princípio lógico formal da “lei de tendência”,
que leva a definir cientificamente os conceitos fundamentais em economia de homo
oeconomicus e de “mercado determinado” não terá sido também uma descoberta
de valor gnoseológico?” (ibid.)
11 A noção de reforma intelectual e moral não é uma noção marxista. Ê
utilizada por Gramsci depois de um itinerário bastante complexo: forjada por
Proudhon, retomada por Renan e depois por Sorel, torna-se o leitmotiv de uma

190
tem uma validade bem precisa no pensamento gramsciano: qualifica
uma vardadeira revolução cultural; se Gramsci utiliza o termo “Refor­
ma”, para além do empréstimo de Renan, é porque esta revolução
cultural corresponde a critérios específicos:
“Trata-se de um momento diferente daquele da revolução política
e nas relações de produção (os clássicos do marxismo nem
sempre estão preocupados, em geral, em focalizar a diferença de
ritmo entre o movimento estrutural e os movimentos das superes-
truturas e, nestes últimos, entre o que se produz em nível dos
acontecimentos políticos e as transformações mais lentas das cons­
ciências, dos costumes etc. . .) mas indica melhor o aspecto edu­
cativo, ou antes, a eficácia de uma ação constante, expansiva,
racionalmente dirigida, sobre as consciências, em conexão com a
luta política e a revolução e transformação das relações sociais.”’2
Portanto, para Gramsci o marxismo não é unicamente uma revo­
lução social e política, mas também — e sobretudo — uma revolução
cultural que terá êxito onde o cristianismo fracassou: no forjar uma
nova humanidade.
Para além de seu caráter universal, o tema do marxismo como
reforma intelectual e moral tem também uma validade nacional, italia-

corrente intelectual liberal que retoma a análise de Renan no sentido literal: a Itália
deve conhecer antes de tudo uma Reforma protestante.
A noção de reforma intelectual e moral é, pois, analisada nos Quaderni sob dois
aspectos: demonstrar que não é contraditória com a análise marxista e refutar as
interpretações liberais desta tese. Para justificar sua interpretação, Gramsci sublinha
que Proudhon, considerando o exemplo da Reforma alemã, propõe não retomar
inteiramente o modelo protestante, mas adaptá-lo às tradições históricas francesas.
Segundo esta tese, que Gramsci qualifica de “estranha”, caberia ao clero o cuidado
de difundir esta reforma leiga entre o povo:
“No fundo, não obstante suas bizarrias, Proudhon é mais concreto do que parece: ele
aparenta, certamente, estar convencido de que é necessária uma reforma intelectual
em sentido laico (“filosófico” como diz ele), mas não sabe encontrar outro meio
didático além da mediação do clero.” (I. p. 55).
Gramsci pensa que tal demonstração é totalmente errônea, porque o antijacobi-
nismo de Proudhon lhe faz passar em silêncio.'., a Revolução: a França conheceu
uma Reforma intelectual e moral bem mais considerável do que a Reforma luterana:
a difusão dos princípios da Revolução, a irrupção do povo na vida política e
cultural.
Mas o fato de que tal tese seja errônea para a França não implica de forma
alguma que não seja utilizável na Itália, se combinada com a interpretação do mar­
xismo como herdeiro das Reformas religiosas e leigas.
12 C. Luporini, “La metodologia dei marxismo nel pensiero di Gramsci, in
Siudi gramscianV’, Riuniti, 1958, p. 454.

191
na: o marxismo não desempenhou e não desempenhará uma função
tão completa em todos os países; enquanto na França e na Alemanha
as classes subalternas já conheceram uma grande revolução cultural
que se trata de superar, as classes subalternas italianas estão ainda no
nível cultural medieval. Por isso, para o marxismo trata-se de apresen­
tar-se ao mesmo tempo como revolução cultural completa mas também
como movimento nacional: a reflexão gramsciana sobre o marxismo
como Reforma está, pois, diretamente ligada à do partido comunista
como Príncipe moderno da Itália: o partido revolucionário torna-se
assim o instrumento da revolução política e cultural que a Itália
espera. A revolução italiana deverá preencher no nível cultural a mes­
ma deficiência que a Revolução russa em nível político.

2 . O problema italiano

A interpretação do marxismo como reforma intelectual e moral


corresponde à situação das classes subalternas na Itália. A análise do
Renascimento, da Contra-Reforma e do Risorgimento mostrou que a
Itália não conheceu a reforma protestante ou liberal que introduz as
massas, essencialmente camponesas, na vida cultural e política. Estas
ficaram sob o controle da Igreja e portanto sua cultura permanece
medieval.
Face a esta situação, o problema levantado no início do século
XX foi o da escolha do caminho mais apto para realizar esta reforma.
Um debate apaixonante envolveu as diversas tendências da inteligência
leiga — dos liberais aos comunistas —, mas não deu em nada, visto
que a concordata marca o fracasso conjunto de todas, frente à volta
vitoriosa da Igreja. Nos Quaderni, Gramsci volta ao debate, do qual
tinha participado então, e tenta demonstrar que o marxismo é a única
Weltanschauung que realizará uma verdadeira Reforma intelectual e
moral das classes subalternas.
A demonstração gramsciana é, antes de tudo, uma rejeição das
soluções liberais: as que propõem simplesmente uma reforma religiosa
de tipo protestante e a de Croce em nome do liberalismo leigo.

— os neo-protestantes:

Pelo ano de 1910, começa a formar-se progressivamente uma


corrente intelectual liberal cujos principais representantes são os escri-

192
tores liberais Oriani, Missiroli, Dorso e Gobetti'^ que, a partir de uma
interpretação do Risorgimento como movimento não-popular, vão pre­
gar a necessidade de uma reforma religiosa.
“Esta tese é desenvolvida principalmente numa obra de Missiroli
de 1915, “O Papa e a guerra” que vai dar ocasião a Gramsci de
fazer uma primeira crítica num artigo do Grido dei popolo de
janeiro de 1916. Em “O Syllabus e Hegel” Missiroli afirma que
os países latinos, em virtude da ausência da reforma protestante,
conhecem uma grave crise, ilustrada pela oposição entre Igreja
e Estado leigo. A reforma protestante, reconciliando o crente e o
cidadão em nível individual, e chegando a Hegel e ao Estado
moderno no nível da sociedade, permitiu a criação de nações mo­
dernas. Na Itália, onde o Risorgimento não tem a expressão de
um movimento popular, mas um fenômeno “artificial” por causa
da ausência prévia da reforma religiosa, a nação não existe.
Portanto, Missiroli retoma a afirmação da necessidade da reforma
intelectual e moral mas interpretando-a em sentido estrito, como
a necessidade de uma reforma protestante.
A crítica de Gramsci será formulada defintivamente em seu
ensaio sobre a Questão meridional, de 1926; esta tese é rejeitada
em nome da falta de realismo; a reforma não pode assumir um
aspecto religioso, mas leigo.
Nos Quaderni, a crítica dos neo-protestantes apresenta um duplo
caráter; pesquisar a origem desta teoria e sobretudo mostrar sua
utopia.
A origem desta tese é dupla; de um lado, repousa numa inter­
pretação restritiva de Renan e Sorel considerando que o modelo
da Reforma protestante deve ser tomado sem modificação.
Mas a origem fundamental da teoria neo-protestante deve ser
pesquisada nos trabalhos de Thomas Mazaryk sobre a história

13 Mário Missiroli, escritor e jornalista liberal e depois fascista; de 1918 a 1921


dirigiu o Reslo dei carlino.
Alfredo Oriani (1852-1909), escritor e historiador, célebre antes da primeira
guerra mundial.
Piero Gobetti (1900-1926), escritor e crítico teatral de Ordine Nuovo. Funda em
1923 a revista Rivoluzione Uberale onde ataca o fascismo. Morre no exílio em Paris.
Guido Dorso (1892-1947), escritor e homem político próximo de Gobetti com o
qual colaborou na Rivoluzione Uberale. Um dos dirigentes do Partido de Ação durante
o fascismo.

193
russa e prindpalmente “A Rússia e a Europa”.'"* De fato, a obra
de Mazaryk foi objeto de duas críticas marxistas fundamentais:
a de Labriola, contra o método histórico positivista de Mazaryk
tal como é formulado em “As bases filosóficas e sociológicas do
marxismo”'^, e a de Trotsky no artigo “A Rússia como teocracia”,
que reformula as conclusões de “A Rússia e a Europa.” Como
sublinha L. Paggi'*, este artigo de Trotsky foi publicado em
Grido dei popolo e influenciou consideravelmente Gramsci que,
nos Quaderni, retoma a análise de Trotsky como base de sua
própria reflexão sobre os neo-protestantes italianos:
“Missiroli aplica à Itália o critério hermenêutico aplicado por
Mazaryk à história russa (embora Missiroli tenha dito aceitar a
crítica de Antônio Labriola contra o Mazaryk historiador.)”'^
Qual é a crítica formulada por Trotsky? Segundo ele, ao contrário
da afirmação de Mazaryk, a Rússia czarista não é uma teocracia,
na medida em que a Igreja russa está sob a influência do apare­
lho de Estado. Trotsky opõe-lhe o exemplo do Ocidente medieval
onde o poder do clero fez deste último o verdadeiro dirigente
de uma Europa “teocrática”. Quanto à ausência de Reforma pro­
testante na Rússia, Trotsky também a explica pela fraqueza dos
intelectuais religiosos: “O caráter primitivo e a ausência de formas
definidas nas doutrinas da Igreja oficial, se tornaram toda Refor­
ma impossível, prepararam contudo a base para a ruptura radical
entre a Igreja e as novas classes sociais. A religiosidade da velha
Rússia, e não somente dos camponeses mas também das classes
dominantes, tinha um caráter puramente histórico. Era conse-
qüência da uniformidade da vida, que transmitia de uma geração
à outra as mesmas formas reforçando-as com o cimento do Mito
(a religião). Quando a individualidade acorda e, sob a influência
da civilização mecânica e espiritual do Qcidente, define sua ati­
tude para com o mundo que a cerca, não encontra na ideologia
oficial bolorenta nada que lhe possa servir como material para
sua nova visão do mundo.”'®

14 Thomas Mazaryk. Homem de Estado e sociólogo checo. A Rússia e a Europa


foi publicado em 1913.
15 A crítica de Labriola é formulada em “Discorrendo di socialismo e di
filosofia”, em "La concezione materialistica delia storia", Bari, ed. Laterza, pp. 155-172.
16 L. Paggi, op. cit., pp. 86-95.
17 R. p. 64.
18 Citado em L. Paggi, o.c., p. 91.

194
Da indiferença religiosa, a inteligência passa diretamente ao libe­
ralismo, e as classes subalternas ao socialismo.
A ausência da Reforma na Rússia é, pois, a conseqüência da fra­
queza dos intelectuais religiosos. Gramsci constata que na Itália,
polo contrário, ela é a conseqüência da fraqueza dos intelectuais
leigos.
A tese “protestante” sofre de um vício fundamental, o de não
compreender que a reforma intelectual e moral que sucedeu ao protes­
tantismo foi 0 liberalismo leigo. O Risorgimento não podia apoiar-se
num movimento popular protestante que não correspondia mais às
condições históricas: entre a Reforma e o Risorgimento situa-se a Re­
volução francesa. Ora, esta demonstra que toda reforma doravante
não pode ser mais do que uma reforma leiga:
“Como Mazaryk, Missiroli (apesar de suas relações com G. Sorel)
não compreende que uma reforma intelectual e moral (isto é, “re­
ligiosa”) de alcance popular se tenha desenvolvido em dois tem­
pos, com a difusão dos princípios da Revolução francesa.”’’
A Revolução francesa, “reforma liberal-democrática”, era o exem­
plo que devia inspirar os dirigentes políticos do Risorgimento.
Entretanto, a única iniciativa de Mazzini e do Partido de Ação
foi propor uma reforma religiosa que não encontrou nenhum eco
popular:
“O Partido de Ação estava paralisado em sua ação junto aos
camponeses pelas veleidades mazzinianas de uma reforma reli­
giosa que não interessava às massas rurais, antes as tornava eapa-
zes de se levantar contra os novos heréticos.”2°
A partir do Risorgimento a reforma intelectual e moral deve,
pois, ser liberal e leiga.
A afirmação “neo-protestante” não é, no fim de eonta, mais do
que uma justificativa cômoda para rejeitar o marxismo; com efeito, os
neo-protestantes não sustentaram a única reforma religiosa que se
produziu na Itália, o modernismo, rejeitando na prática até mesmo a
tese que haviam defendido.
Visto que a Itália não conheceu a reforma protestante, o proble­
ma que se levanta é explicar por que não conheceu também a reforma

19 R. p. 64.
20 R. p. 104.

195
liberal: o Risorgimento não é uma reforma liberal e o único filósofo
que teria podido promovê-la seria Benedetto Croce.

— o fracasso do liberalismo:

“Os que foram chamados neo-protestantes ou calvinistas”, subli­


nha Gramsci em seu ensaio sobre a questão meridional, “não com­
preenderam que na Itália não podia haver Reforma religiosa de
massa por causa das condições modernas da civilização, e que a
única Reforma historicamente possível mostrou ser a filosofia de
B. Croce: a orientação e o método de pensamento foram muda­
dos, foi edificada uma nova concepção do mundo que superou o
catolicismo e todas as outras religiões mitológicas.” 22
Gramsci considera Croce como o mestre do liberalismo italiano
e portanto como um “reformador” potencial. Mas teve influência
limitada na medida em que não ultrapassou os círculos intelectuais;
Croce não usa seu brilho para alcançar, além dos intelectuais, as classes
subalternas; dessa forma ele impede toda verdadeira reforma:
“Croce não “foi ao povo”, não quis tornar-se um elemento
“nacional” (como também não o foram os homens do Renasci­
mento, ao contrário dos luteranos e calvinistas), não quis criar
um exército de discípulos que substituindo-o (já que ele pessoal­
mente pretendia conservar a sua energia para a criação de uma
alta cultura) pudesse popularizar a sua filosofia, buscando trans­
formá-la em um elemento educativo desde as escolas elementares
e (consequentemente, educativo para o simples operário e cam­
ponês, isto é, para o simples homem do povo). Talvez isto fosse
impossível, mas valia a pena ter sido tentado; não tê-lo tentado
tem, inclusive, um significado.”23
A atitude de Croce é a do homem do Renascimento: a crítica da
religião não é acompanhada de iniciativas concretas para combatê-la e
substitaí-la.
O liberalismo permanece um fenômeno restrito a uma aristocracia
intelectual que deixa à Igreja o controle ideológico do povo; da mesma
forma que os neo-protestantes, Croce não interveio na querela moder­
nista, embora em larga escala a tivesse provocado, graças à sua capaci­
dade de irradiação intelectual. A função essencial de Croce não é, pois,

22 CPC p. 156.
23 CDH p. 257.

196
a de um verdadeiro reformador popular, mas sim a de um reformador
intelectual: unindo os intelectuais ao liberalismo e, portanto, ao Estado
burguês separando-os do povo, ele contribui para o enfraquecimento
da Igreja impedindo-a de recuperar os intelectuais leigos; esta atração
liberal explica o vigor das críticas católicas à filosofia croceana:
“A oposição dos católicos a Croce vai hoje se intensificando, por
razões principalmente práticas ( . . . ) ; os católicos compreendem
muito bem que o significado e a função intelectual de Croce não
são comparáveis com os dos filósofos tradicionais, mas são os de
um verdadeiro reformador religioso, que, pelo menos, consegue
manter a separação entre intelectuais e catolicismo e, desta forma,
a tornar difícil, em uma certa medida, mesmo uma forte renovação
clerical nas massas populares.”^''
Se Croce constituiu uma “barreira” intelectual para as outras
correntes ideológicas — e principalmente para a Igreja — , não
é menos verdade que sua influência sobre as massas foi, por sua pró­
pria vontade, inexistente; Gramsci conclui daí que houve fracasso; pa­
radoxalmente, o único movimento liberal de caráter popular terá sido
controlado pela Igreja, sob a forma do partido popular:
“O único partido liberal eficiente era o partido popular, isto é,
uma nova forma de catolicismo liberal.”^^
Portanto, a atitude de Croce é totalmente diferente da dos neo-
protestantes; Gramsci considera, por outro lado, que a crítica croceana
da religião^* é uma condenação de sua concepção puramente me-
canista:
“Toda a análise que Croce faz, em sua História da Europa, do
conceito de religião é uma crítica implícita às ideologias pequeno-
burguesas (Oriani, Missiroli, Gobetti, Dorso, etc.), que explicam a
debilidade do organismo nacional e estatal italiano pela ausência

24 CDH p. 213.
25 CDH p. 257.
Este caráter reformador do Partido Popular é, pois, reconhecido nos Quaderni,
embora com mais moderação do que em Ordine Nuovo quando Gramsci afirmava
que “a constituição do Partido Popular equivale em importância à Reforma alemã;
ela é a explosão inconsciente e irresistível da Reforma italiana” (O. N. p. 284).
Todavia, o comum reconhecimento do caráter “liberal-democrático” do PPI não
deve mascarar as diferenças fundamentais de análise: nos Quaderni, este liberalismo
é intencional e a serviço do Vaticano e das classes dirigentes; em Ordine Nuovo,
é a consequência e a expressão do despertar das massas camponesas.
26 Ver supra, p. 23.

197
de uma Reforma religiosa, entendida em um sentido estritamente
confessional. Alargando e precisando o conceito de religião, Croce
demonstra o mecanicismo e o esquematismo abstrato destas ideo­
logias, que não passavam de construções de literatos. ”^7
A posição de Croce frente ao marxismo situa-se no mesmo terre­
no: recusando considerar o marxismo como uma nova Reforma, Croce
retoma a análise e a atitude suas frente à religião católica: rejeição do
marxismo como nova crença vulgar análoga ao catolicismo popular e
recusa de participar de qualquer movimento que não fosse puramente
intelectual. A atitude croceana permanece a mesma do homem do
Renascimento; frente ao marxismo, Croce aparece como um novo
Erasmo.
A crítica gramsciana desta atitude é muito amarga, a de um ve­
lho discípulo decepcionado. Gramsci acusa Croce principalmente de
não tirar as conseqüências lógicas de sua crítica da religião e dos neo-
protestantes, de não compreender que o marxismo é a Reforma mo­
derna:
“Mais grave revela-se o fato de não ter ele compreendido que a
filosofia da praxis, com o seu vasto movimento de massa, repre­
sentou e representa um processo histórico similar à Reforma, em
contraste com o liberalismo, que reproduz um Renascimento
estritamente limitado a poucos grupos intelectuais e que, em um
certo momento, capitulou em face do catolicismo.’'28
O argumento croceano segundo o qual o marxismo não passa de
uma ideologia vulgar constitui para Gramsci outro erro fundamental,
o de confundir uma filosofia com a forma vulgarizada sob a qual ela
se difunde entre as massas:
“Croce se comporta tal como os anticlericais maçônicos e racio-
nalistas vulgares, os quais combatem o catolicismo através destas
confrontações e destas traduções do catolicismo vulgar em lingua­
gem “fetichista”. Croce cai na mesma posição intelectualista que
Sorel reprovava em Clemenceau, a saber, a de julgar um movi­
mento histórico pela sua literatura de propaganda e de não com­
preender que, mesmo opúsculos banais, podem ser a expressão
de movimentos extremamente importantes e vitais.”^’

27 CDH p. 256.
28 CDH pp. 256-257.
29 CDH p. 255.

198
A atitude de Croce contribui para reforçar esta corrente vulgar no
marxismo. Da mesma maneira que o catolicismo, ele constitui uma
poderosa “barreira” intelectual que impede a adesão dos intelectuais
italianos ao marxismo. Sob este aspecto, ele constitui, para Gramsci, o
principal obstáculo para a realização de uma verdadeira reforma inte­
lectual e moral na Itália.
A situação em que se encontra o marxismo na Itália é assim
consequência da onipotência do catolicismo e da tradição aristocrática
dos intelectuais leigos: o liberalismo cindiu-se em três correntes: uma
que Gramsci qualificou de “pequeno-burguesa”, que reclama uma refor­
ma protestante e rejeita o marxismo sob o pretexto de que a Itália não
conheceu Reforma: sua influência é desprezível; a segunda que se situa
na tradição aristocrática e cosmopolita do Renascimento, e que rejeita
toda idéia de cultura popular, liberal ou marxista, e se acomoda ao
catolicismo; a terceira, de inspiração católica, que é a única corrente
liberal-popular e que tende a canalizar nas organizações de massa
católicas as aspirações das massas camponesas. Os dois obstáculos que
a Reforma marxista encontra em seu desenvolvimento, e que atingem
seu próprio conteúdo, são, de um lado, de ordem intelectual — hege­
monia cultural de Croce sobre os intelectuais subalternos —, e sobre­
tudo de ordem popular — concorrência do popularismo católico no
meio rural.

— a Reforma marxista:

O marxismo se apresenta, pois, como a Reforma moderna. Nisto


ele se opõe diretamente à religião católica. Enquanto a política cons­
tante da Igreja foi a de manter as massas em seu nível cultural mais
baixo, o marxismo retoma o projeto inicial do protestantismo: elevar
progressivamente o nível das massas ao dos intelectuais:
“A posição da filosofia da praxis é antitética a esta posição ca­
tólica: a filosofia da praxis não busca manter os “simplórios” na
sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário,
conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a
exigência do contato entre os intelectuais e os simplórios não é
para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no
nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco
intelectual-moral, que torne politicamente possível um pro-

199
gresso intelectual da massa e não apenas de pequenos grupos
intelectuais. ”3°
Da mesma forma, a primeira tarefa do marxismo é a de combater
o senso comum como filosofia das classes subalternas:
“Uma filosofia da praxis só pode apresentar-se, inicialmente, em
uma atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de
pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo
cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crítica do
“senso comum” (e isto após basear-se sobre o senso comum para
demonstrar que “todos” são filósofos e que não se trata de intro­
duzir ex novo uma ciência na vida individual de “todos”, mas de
inovar e tomar “crítica” uma atividade já existente.”^'
É somente a partir da crítica do senso comum que o marxismo
se opõe aos filósofos dos intelectuais: de um lado, em sua crítica das
crenças populares, ele se situa como filosofia nova e a este título opõe-
se às concepções tradicionais. Mas também, combatendo o senso co­
mum, o marxismo se apresenta como crítica indireta da filosofia dos
intelectuais; no fim de contas, esta não é mais do que o senso comum
das classes cultivadas, a “ c u l m i n â n c i a ” ^^ J q senso comum. A crítica da
concepção do mundo dos intelectuais está, pois, subordinada à crítica
das crenças populares. Crer que o desenvolvimento do marxismo deva
efetuar-se antes de tudo contra a teologia e as filosofias elaboradas,
é um erro:
“Na realidade, estes sistemas são ignorados pelas massas e não
têm efeito direto sobre sua maneira de pensar e agir. Isso certa­
mente não significa que não tenham a menor eficácia histórica;
mas esta eficácia é de outra natureza. Estes sistemas influem sobre
as massas populares como força política externa, como elemento
de coesão das classes dirigentes, e por isso como elemento de
subordinação a uma hegemonia exterior, que limita negativamente
o pensamento original das massas populares, sem influenciá-las
positivamente.

30 CDH p. 20.
31 CDH p. 18.
32 CDH p. 19.
33 CDH p. 144.
Tal afirmação podería parecer contraditória com a necessidade muitas vezes
afirmada nos Quaderni de uma luta prioritária contra os “grandes intelectuais” e sua
filosofia. Na realidade, estas duas necessidades são complementares. Uma luta contra

200
o esforço essencial do marxismo é tornar o povo ideologicamente
homogêneo. Para isso, ao caráter primitivo, desarmônico e contraditó­
rio do senso comum, deve opor uma concepção do mundo coerente
e superior, que realize um verdadeiro bloco ideológico das classes
subalternas. Nesta tarefa, o marxismo encontra dificuldades. A primeira
e a mais perigosa consiste na vulgarização do marxismo, sua transfor­
mação em uma espécie de religião popular. Que tal evolução tenha
sido inevitável na fase inicial de difusão, Gramsci o reconhece e chega
mesmo a propor uma explicação:
A religião popular tradicional, sublinha ele, é fundamentalmente
materialista:
“Politicamente”, a concepção materialista é vizinha ao povo, ao
senso comum; ela está estreitamente ligada a muitas crenças e
preconceitos, a quase todas as superstições populares (bruxarias,
espíritos, etc.). Isto pode ser observado no catolicismo popular e
notadamente, na ortodoxia bizantina.”^'*
Estes aspectos materialistas das crenças populares constituíram,
pois, um fator favorável à penetração do marxismo entre as classes
subalternas. Todavia, Gramsci nota que esta penetração se realizou em
detrimento de sua segunda função; com efeito, o marxismo tinha na
origem dois “deveres”:
“combater as ideologias modernas em sua forma mais refinada, a
fim de poder constituir seu próprio grupo de intelectuais, e educar
as massas populares, cuja cultura é medieval.
De fato, o marxismo empenhou-se inteiramente nesta segunda
tarefa a ponto de se deteriorar qualitativamente combinando-se com o
senso comum:
“A nova filosofia^* se combinou com uma forma de cultura que
era um pouco superior à média popular (que era muito baixa),
mas absolutamente inadequada para combater as ideologias das

o senso comum tem por finalidade a difusão de uma cultura superior entre as classes
subalternas. A luta contra a filosofia dos grandes intelectuais tem como finalidade
cindir os intelectuais subalternos — próximos do povo — de seus mestres de pensa­
mento tradicionais para uni-los às massas.
34 CDH pp. 107-108.
35 CDH p. 104.
36 O marxismo.

201
classes cultas, ao passo que a nova filosofia nascera precisamente
para superar a mais alta manifestação cultural da época, a filosofia
clássica alemã, e para criar um grupo de intelectuais próprios do
novo grupo social ao qual pertencia a concepção do mundo.”^^
O resultado desta combinação é o aparecimento no seio do mar­
xismo de um “marxismo vulgar”, que assume nas massas um caráter
determinista e supersticioso e mantém com o marxismo “puro” as
mesmas relações que o catolicismo popular mantém com a teologia:
“Na realidade, formou-se uma corrente deteriorada da filosofia
da praxis, que pode ser considerada em relação aos fundadores da
doutrina tal como o catolicismo popular em relação ao teológico
ou dos intelectuais: assim como o catolicismo popular pode ser
traduzido em termos de paganismo, ( . . . ) igualmente a filosofia
da praxis deteriorada pode ser traduzida em termos “teológicos”
ou transcendentais.”38

Tal evolução era previsível e apresenta mesmo um caráter positivo


num primeiro tempo: fazer concorrência à religião católica no seio
das classes subalternas; aliás, a Igreja compreendeu bem isso baseando
desde a origem sua estratégia no combate à penetração socialista nas
massas católicas.3’ Mas esta fase agora deve encerrar-se e o marxismo
popular deve aproximar-se daquele de Marx. É por isso que Gramsci
ataca violentamente nos Quaderni o “Manual popular de sociologia
marxista” de Boukharine'^°. Tal livro, julga ele, tende a perpetuar o
marxismo vulgar deixando de lado a crítica do senso comum. Mas
sobretudo, repetindo os erros mecanicistas da social-democracia, ele
demonstra a permanência de tal concepção no seio dos partidos co­
munistas:
“Mas como se viu, na análise do Ensaio, também seguidores da
filosofia da praxis que se chamam “ordotoxos” caem na armadi­
lha, concebendo eles mesmos a sua filosofia como sendo subordi-

37 CDH p. 104.
38 CDH pp. 254-255.
39 Segundo Gramsci, tal perigo está destinado a crescer com o desenvolvimento
da aliança entre o proletariado e as massas camponesas católicas. Toda a estratégia
revolucionária pregada por Gramsci funda-se nesta hipótese.
40 N. Boukharine: a teoria do materialismo histórico. Manual popular de socio­
logia. A tradução brasileira troca Manual por Ensaio.

202
nada a uma teoria geral materialista (vulgar), enquanto outros a
subordinam ao idealismo.”'*'
Tal concepção determinista e materialista, corresponde a uma
atitude popular tradicional, mas tende de fato a uma passividade de
tipo religioso:
“É por isso que se torna necessário demonstrar sempre a futili­
dade do determinismo mecânico, o qual, justificável enquanto
filosofia ingênua da massa e tão somente enquanto elemento
intrínseco de força, quando é elevado a filosofia reflexiva e coe­
rente por parte dos intelectuais, torna-se causa de passividade,
de imbecil auto-suficiência; e isto sem esperar que o subalterno
torne-se dirigente e responsável.”''^
Mas outra tendência desenvolveu-se paralelamente: de um mar­
xismo “intelectual”, análogo à teologia católica. Com efeito, Gramsci
sublinha que os “grandes intelectuais” marxistas elaboraram uma filo­
sofia sem prolongamento popular, não menos revisionista, mas desta
vez ligada às correntes filosóficas tradicionais:
“Os grandes intelectuais formados em seu terreno, além de serem
pouco numerosos, não eram ligados ao povo, não derivavam do
povo, mas eram a expressão de classes médias tradicionais, que
recuaram nas grandes “reviravoltas” históricas; outros permane­
ceram, mas para submeter a nova concepção a uma revisão sis­
temática, não para buscar o seu desenvolvimento autônomo.”^''
A conseqüência desta evolução foi transformar o marxismo numa
nova religião — menos primitiva do que a católica — , vítima ela

41 CDH. p. 187.
A crítica de Boukharine permite a Gramsci explicitar sua posição frente ao senso
comum; Gramsci censura Boukharine pelo fato de aceitar o senso comum como um
todo. Ora, o senso comum é uma sedimentação ideológica complexa da qual certos
elementos podem ser recuperados:
“Nossas afirmações anteriores não significam a inexistência de verdades no senso
comum. Significam que o senso comum é um conceito equívoco, contraditório, multi-
forme, e que referir-se ao senso comum como prova de verdade é um contra-senso”
(CDH p. 147).
No senso comum aparecem assim certos elementos que Gramsci julga de maneira
positiva: um materialismo vulgar, um certo empirismo.
Criar um novo “senso comum” significa para Gramsci criar uma “nova cultura
e uma nova filosofia que se radiquem na consciência popular com a mesma solidez
e imperatividade das crenças tradicionais” (CDH p. 148), que o senso comum.
42 CDH p. 24.
43 CDH pp. 108-109.

203
também da divisão entre intelectuais e massa: também neste caso, por
causa da origem social e da tradição cultural destes intelectuais, a
osmose não aconteceu e o partido foi instrumento de uma unidade
puramente artificial. Gramsci sublinha constantemente que o único
meio de evitar esta divagem, elevando o nível das massas, é fazer
com que as classes subalternas formem progressivamente seus próprios
intelectuais. Ora, como demonstrou a Reforma,
“este processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio
de contradições, de avanços e de recuos, de cisões e de agrupa­
mentos; e neste processo, a “fidelidade” da massa (e a fidelidade
e a disciplina são, inicialmente a forma que assume a adesão da
massa e sua colaboração no desenvolvimento do conjunto do
fenômeno cultural como um todo) é submetida a duras provas.”'*^
Gramsci julga que as massas não poderão formar seus próprios
intelectuais orgânicos a não ser depois da tomada do poder. Até então,
os intelectuais originários ‘das classes subalternas não passarão de
uma minoria. A massa será constituída de intelectuais ligados ao pro­
letariado; mais precisamente, se a massa proletária é capaz, em certa
medida, de forjar seus próprios intelectuais, ela não poderá enquadrar
a classe camponesa a não ser apelando para os intelectuais rurais que
aderiram a seu combate.
Esta análise explica que Gramsci faça referência à Igreja a pro­
pósito dos métodos de conversão: os membros das classes subalternas
— e principalmente a classe camponesa — não poderão ser “conver­
tidos” individualmente. Só poderão sê-lo em massa. A solução que
Gramsci propõe — e que ele havia começado a experimentar em
1926 — é inspirar-se nos métodos de conversão utilizados pela Igreja
no Terceiro Mundo: converter os chefes tradicionais das massas rurais
ou, na falta destes, criar novos intelectuais rurais.
O problema que a difusão do marxismo entre as massas levanta
é, portanto duplo:
— como evitar a transformação do marxismo em religião
popular;
— como forjar verdadeiros intelectuais orgânicos.
A esta dupla interrogação, Gramsci responde lembrando que a
educação das massas deve ser realista, mas sobretudo que deve repou­
sar na influência recíproca do “educador” e do “educado”.

44 CDH pp. 21-22.

204
Realismo no nível do método: ao problema geral da difusão de
uma ideologia entre as classes subalternas, Gramsci responde que a
exposição racional desta ideologia não desempenha um papel deter­
minante; a nova concepção do mundo entra em choque com a sedimen­
tação ideológica que é o senso comum, o que tem como conseqüên-
cia, quando esta ideologia é aceita, que ela não o é sob sua forma
“pura”, mas como novo elemento desta sedimentação ideológica: por
isso corre o risco de se fundir no senso comum.
Gramsci deduz daí que se uma ideologia não pode difundir-se a
não ser através de razões sociais e políticas, ela não se tornará durável
a não ser que “formalmente” se adapte à mentalidade das classes
populares; estas, ao contrário dos intelectuais, não serão seduzidas
por explicações racionais; a nova ideologia deverá ser recebida como
uma fé:
“Mas, de fé em quem e em quê? Notadamente no grupo social ao
qual pertence, na medida em que este pensa as coisas também di­
fusamente, como ele; ( . . . ) Ele próprio, é verdade, não é capaz
de sustentar e desenvolver as suas razões como o adversário faz
com as dele, mas que — em seu grupo — existe quem poderia
fazer isto, certamente melhor do que o referido adversário; e, de
fato, ele se recorda ainda de ter ouvido alguém expor, longa
e coerentemente, de maneira que ele se convenceu de sua justeza,
as razões de sua fé. Ele não se recorda das razões em concreto
e não saberia repeti-las, mas sabe que elas existem, já que ele
as ouviu expor e ficou convencido delas.”'•5
Gramsci concluiu disto que as novas ideologias têm muita difi­
culdade para serem assimiladas pelas classes subalternas, e tanto mais
se estas ideologias, como é o caso do marxismo,
“estão em contradição com as convicções (igualmente novas)
ortodoxas, socialmente conformistas, de acordo com os inte­
resses gerais das classes dominantes.”'**
Por isso o marxismo deve seguir o exemplo dos aparelhos ideo­
lógicos que deram provas de sua eficácia. O único meio de inculcar de
maneira duradoura o marxismo nas massas será, pois, retomar os
métodos de propaganda e de enquadramento da Igreja católica:

45 CDH p. 26-27.
46 CDH p. 27.

205
“ 1) não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (va­
riando literariamente a sua forma); a repetição é o método didá­
tico mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular;”
mas este método terá como finalidade
“2) trabalhar incessantemente para elevar intelectualmente cama­
das populares cada vez mais vastas, isto é, para dar uma perso­
nalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar
na criação de elites intelectuais de novo tipo que surjam dire­
tamente da massa e que permaneçam em contato com ela para
tornarem-se o seu sustentáculo.”'*^
Tal esquema poderia parecer muito elitista e dogmático;"*® de
fato, Gramsci afirma que ele não o é de forma alguma pois esta
pedagogia é recíproca: o papel das massas não é apenas passivo e a
relação intelectuais-massa não deve efetuar-se em sentido único; inte­
lectuais e massas só podem enriquecer-se mutuamente, visto que cada
um destes elementos possui suas características próprias:
“O elemento popular “sente”, mas nem sempre compreende ou
sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende
e, muito menos “sente”/ ’
Por isso, massas e intelectuais devem progressivamente adquirir
as qualidades que lhes faltam; para isso, o “saber” do intelectual,
aquilo que ele inculcará nas massas será a superação das concepções
elementares do sentido comum. O intelectual deverá
“sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e,
assim explicando-as e justificando-as em determinada situação
histórica, bem como relacionando-as dialeticamente às leis da
história, a uma concepção do mundo superior científica e coeren­
temente elaborada, que é o “saber”.®°
A partir de um conhecimento aprofundado da religião popular,
do senso comum, em outras palavras, das concepções populares, o
intelectual poderá forjar os instrumentos pedagógicos de sua supe­
ração.

47 CDH p. 27.
48 Sobre a influência das teorias elitistas, cfr. (Maq. pp. 23-27).
49 CDH pp. 138-139.
50 CDH p. 139.

206
As classes subalternas, ao contrário, deverão receber a nova ideo­
logia como uma fé, procurando compreendê-la racionalmente.
No fim de contas, esta relação dialética que deve chegar a um
vínculo verdadeiramente orgânico entre intelectuais e povo, condição
única para a realização de um novo bloco h is tó r ic o ,baseia-se
num “vínculo sentimental” entre estes dois elementos, uma adesão
“passional” ao mesmo objetivo.
Na falta de tal relação orgânica, os intelectuais não constituem
mais do que uma casta separada do povo como a casta religiosa.
À medida em que o nível cultural das massas se eleva, sua adesão
torna-se racional. Gramsci lembra, não obstante, que este nível difi­
cilmente é alcançado. Antes da tomada do poder, a relação intelec-
tuais-massas é essencialmente disciplinar: inicialmente, acentua-se mais
0 papel de direção e de educação do intelectual — concretamente do
partido — e Gramsci aceita totalmente o ponto de vista de Lênin
segundo o qual prevalece a consciência, a direção ideológica. Adap­
tando-o à problemática cultural dos Quaderni, Gramsci retoma a con­
cepção leninista do partido revolucionário. Este não é mais apenas a
direção política mas sobretudo a direção cultural das classes subal­
ternas. O centralismo democrático — e Gramsci insiste no adjetivo —
torna-se a forma da relação pedagógica entre partido e massas, entre
professor e aluno.“

51 CDH p. 139.
52 Sobre a relação entre educação e hegemonia, A. Broccoli, Anlonio Gramsci
e Veducavone como egemonia, La Nuova Itália, Florença, 1972, principalmente
pp. 91-222.

207
k
^ü'

' 1
iu/)éc •w ■^-
f:

4jfc r * ' ^ . i ' J«(/ Í éIíU I 1 « 5 V lr 7 l •■i—

< í * i ^ k # s W < S l U '‘N « | M ,> i » < ^ l a » l ^ ^ ^ '? ‘ «


* | i r ^ w liT i • - t

Á i« « m «Uvi > ole m i ..itÉ » y j» > ^ t ntunt^ t iT rn rrt' «lOax


i f v t t f N » 9«àmrv*^tm a*r íUi
, » « U ^ llH O ^ h ^ -fa lIA T q W fliB — dl» rt) i r r O « bM
') k j í ^ â u ^ ' i^iiAsiiboq -.^àtinr «ò m t^ » v-ccrtot
■♦ i. ^ y - ■•»»>v'*^'i
y«| ' . —

1 = ;

^ • í
CONCLUSÃO

Os Quaderni chegam, pois, a uma conclusão bastante realista: o


fenômeno religioso é um fenômeno permanente, que está ligado à
cultura popular; supera o quadro restrito das religiões confessionais
para impregnar o senso comum e mais geralmente todas as ideologias
que se difundem nas classes subalternas.
Gramsci conclui daí que a religião — e por isso a luta contra
a ideologia religiosa — deverá ser travada em duas direções: contra
as religiões e Igrejas tradicionais — e principalmente a Igreja católica
— e contra as deformações “religiosas” das ideologias modernas — e
em primeiro lugar do marxismo.
É em função destas duas orientações que convém apreciar a
atualidade “religiosa” dos Quaderni.
O estudo gramsciano do fenômeno religioso poderá permitir a
análise marxista do catolicismo contemporâneo? Tal é a questão
essencial que levantam os Quaderni na medida em que o próprio
Gramsci afirma escrever “für ewig” (para sempre).
Além do estudo histórico do cristianismo, o contributo de Gramsci
é duplo; de um lado, uma “teia de leitura” metodológica que se apoia
em alguns conceitos-chaves — sociedade civil, ideologia, intelectuais
tradicionais etc. . .; de outro, uma série de hipóteses sobre a evolução
do catolicismo.
É este segundo aspecto que devemos examinar. Neste ponto,
parece que a resposta deva ser matizada: Gramsci parece ter subesti­
mado as possibilidades de evolução da Igreja, mas isto não põe em
perigo as orientações fundamentais entrevistas.
Tirando conclusões de numerosas crises que a Igreja atravessou,
Gramsci concluiu que
“O sistema, no seu conjunto, só se mantém graças ao seu enrije-
cimento de paralítico. Toda a sociedade em que a Igreja se

209
movimenta e pode evoluir tende a enrijecer-se, deixando-a com
escassas possibilidades de adaptação, em virtude da natureza atual
da própria Igreja.”'
A partir daí, a adaptação não pode ser mais do que molecular:
as concordatas permitem certa estabilização e oferecem à Igreja os
meios técnicos para uma certa expansão.
Ora, não só as concordatas não amarraram a Igreja aos Estados
— principalmente fascistas — que as concluíram, mas também pôde
mudar de rota com o Vaticano II. Por isso parece que a apreciação
gramsciana subestimou seu papel de intelectual tradicional. A esta
objeção, a resposta poderia ser a seguinte: depois da guerra, a Igreja
sofreu uma dupla adaptação:
— nos países ocidentais, a Igreja teve que se adaptar a um
sistema econômico e social cujas características fundamentais não
mudaram mas cuja organização geral foi perturbada: esta transforma­
ção tinha sido pressentida por Gramsci em seus escritos sobre o
americanismo. Como sublinha Lélio Basso, o capitalismo moderno —-
na medida em que supera o individualismo calvinista — corresponde
melhor à orientação ideológica fundamental do catolicismo:
“O novo capitalismo apresenta dois aspectos que lhe permitem
encontrar mais facilmente um terreno de entendimento com o
mundo católico. Antes de mais nada, seu aspecto mais social e
portanto mais favorável às obras de assistência, diferente das
fórmulas simplistas e brutais da “luta pela vida”, mais preocupado
em criar, mesmo no seio das classes oprimidas, uma adesão ao
sistema, e por isso mais próximo do espírito comunitário e
caritativo do catolicismo. Em segundo lugar, seu aspecto mais
organizado, mais hierarquizado, não somente mais exigente no
plano da disciplina, mas também mais capaz de violar o fundo
das consciências para assegurar o consentimento e a obediência;
por isso, mais próximo do espírito autoritário e dogmático da
Igreja onde — como aliás no capitalismo moderno — estes dois
aspectos foram sempre indissociáveis.
No nível ideológico, a concepção do capitalismo “programático”
tal como aparece na filosofia rotariana é essencialmente pragmática e

1 Maq. p. 323.
2 L. Basso, “Democratie et nouveau capitalisme”, Les Temps modernes, n.°
196-197, setembro-outubro de 1962, pp. 511-512.

210
combina com todas as crenças — religiosas ou não. — A Igreja se
mantém, pois, como força ideológica secundária nos países ocidentais.
Paradoxalmente, o agnosticismo da ideologia dominante permite-lhe
mesmo reforçar, em certa medida, sua autonomia.
Daí a considerar o Vaticano II como a sanção da adesão à
ideologia tecnocrática há apenas um passo, dado, por exemplo, por
F. Bon e M. A. Burnier, em sua análise gramsciana dos “novos
intelectuais”: a encíclica Mater et Magistra é, segundo eles, o texto
essencial onde se misturam, como em todos os escritos sobre a “socie­
dade industrial”, o apelo ao “direito natural” de propriedade e a
apologia dos benefícios da “socialização”.^ Mais delicada foi a adapta­
ção nos países do Leste.
A luta contra a Igreja variou ali segundo a relação das forças
políticas e ideológicas.
“O Estado liberal, afirma Gramsci, teve que encontrar um sistema
de equilíbrio com o poder espiritual da Igreja: o Estado operário
também deverá encontrar um sistema de equilíbrio.”
De fato, depois de um longo período de conflito e de repressão,
parece que a tendência é para “modus vivendi” tais como os que a
Igreja acertou nestes mesmos países no período entre as duas guerras.
A situação da Igreja não é menos diferente fundamentalmente daquela
do Ocidente: ela se parece mais com a que era a sua na Europa
liberal do século XIX, onde o clero — representante da aristocracia
fundiária — se opunha à nova ordem liberal e leiga. A noção de
intelectual tradicional define perfeitamente esta situação.
Em caso de crise, a Igreja aparece como o verdadeiro partido
de oposição do qual se deve conseguir a derrota ou a aliança. Isso
explica as diferentes políticas de que a Igreja — e as outras forças
religiosas — tiveram que lançar mão:
— de um lado, uma situação de “Kulturkampf” mais ou menos
larvado na medida em que se defrontam duas Weltanschauung globais:
tal conflito pode ir da luta radical — ateísmo militante, “Revolução
cultural” — às escaramuças permanentes — sobre a seleção do clero,
o ensino da religião, a permanência das práticas cultuais.
— uma tentativa de absorção pelo Estado como aparelho ideoló­
gico mais ou menos autônomo: também aqui são possíveis muitos

3 F. Bon e M.A. Burnier, Les nouveaux intellectuels, Le Seuil-Politique, 1971,


pp. 224-227.

211
níveis, desde o controle puro e simples — catolicismo chinês — à
aliança tática — Igreja polonesa.
Logicamente, foi nos países do Leste, onde a Igreja se encontra
na defensiva, que as forças católicas conservaram maior coesão.
Gramsci já havia sublinhado este fenômeno quando demonstrava que
a Igreja, a partir da Contra-Reforma, se organizou de maneira a
resistir ao assalto das ideologias modernas. Por outro lado, é muito
significativo que o catolicismo tenha resistido muito bem às lutas
ideológicas e políticas — porque estava preparado —, ao passo que
0 protestantismo foi laminado e a Igreja ortodoxa, por causa de sua
estrutura nacional, se tornou um verdadeiro ramo do aparelho ideoló­
gico do Estado, embora permanecendo mais facilmente perseguida.
A resistência ideológica do catolicismo coincidiu, pois, com a
manutenção da organização tradicional da Igreja.
Ora, foi neste domínio que as previsões gramscianas se revelaram
mais perspicazes se considerarmos a evolução do mundo católico
ocidental.
O bloco ideológico católico, efetivamente, sofreu uma transfor­
mação radical por causa da
— independência dos partidos e sindicatos católicos;
— transformação da Ação católica;
— crise estrutural e ideológica do aparelho eclesiástico.
Depois da guerra, a criação dos partidos democratas-cristãos
beneficiou-se do contributo estrutural da Ação católica, mas a evolu­
ção destes partidos levou-os a superar seu caráter confessional —
que se tornou puramente formal: — o caráter “católico” só se mantém
no nível da clientela eleitoral e da defesa dos interesses corporativos
da Igreja. Deste ponto de vista, é impossível estabelecer um paralelo
entre o partido popular italiano e a democracia cristã. Por outro lado,
é significativo o fracasso do MRP francês, tentativa próxima do partido
popular e que desapareceu por não ter compreendido que seu único
futuro era o de uma formação francamente conservadora. Esta evolu­
ção não foi total e a estratégia do partido comunista italiano fundou-se
por muito tempo na esperança de uma cisão dos elementos de esquerda
da mesma forma que Gramsci encorajou a esquerda do partido
popular a unir-se à “frente única”.
O sindicalismo católico sofreu evolução inversa, evolução cujo
caráter irreversível Gramsci havia compreendido; a passagem à
independência com relação à Ação católica e depois à desconfessio-
nalização havia sido um dos dados fundamentais da estratégia

212
gramsciana; considerando a contradição entre a doutrina social dos
sindicatos brancos e a atitude do Vaticano, a dos operários católicos
frente ao fascismo, concluiu pela inevitabilidade da ruptura. Também
neste caso, a influência católica se reduziu à de uma pura “ética”.
Paralelamente à perda do controle dos ramos católicos dos
aparelhos sindical e político, a Igreja viu diminuir seu controle sobre
outros aparelhos ideológicos; é principalmente o caso do aparelho
escolar: os privilégios reconhecidos pelas legislações escolares e concor­
datas ao ensino religioso tornaram-se efetivamente privilégios de um
ensino privado que se desconfessionaliza na medida em que a Igreja
não é mais capaz tecnicamente de formar um pessoal eclesiástico para
o magistério. Neste ponto, os perigos do “poder indireto” que Gramsci
vislumbrava para o futuro das concordatas desvaneceu-se com muita
rapidez.
A influência da Igreja sobre a sociedade civil foi, pois, radical­
mente transformada: de um controle direto dos ramos católicos dos
aparelhos sindical, político, escolar, a Igreja limitou-se a uma influên­
cia indireta, seja moral, seja pela intermediação da Ação católica.
Privada de suas organizações de “primeira linha”, a Igreja teve
que lançar na luta as organizações submetidas ao seu controle direto
e principalmente a Ação católica. Esta sofreu uma transformação que
Gramsci não havia previsto. Com exceção da Itália — e só em certa
medida —, a Ação católica não é mais fundamentalmente um grupo
de pressão tradicional mas uma série de organizações católicas leigas
articuladas sobre cada grupo social e sempre mais independentes da
hierarquia.
O recuo da Igreja no domínio da sociedade civil é, pois, o
resultado de dois fatores: um externo, devido ao recuo geral das
forças religiosas, outro interno, devido ao enfraquecimento do aparelho
eclesiástico que leva a um fortalecimento de fato dos intelectuais leigos.
Efetivamente, o aparelho eclesiástico sofreu uma mutação irrever­
sível: a crise do recrutamento, analisada nos Quaderni acelerou-se;
o aggiornamento do Vaticano II e a influência decisiva das ideologias
leigas acarretou o aparecimento de um novo conflito interno tanto
mais grave por se tornar permanente: os métodos repressivos torna­
ram-se inúteis na medida em que a Igreja não pode mais permitir-se
novos cismas. Este deslocamento ideológico da Igreja acarretou a
transformação das tendências: a ala integrista reúne agora as tendências
aristocráticas — em vias de desaparecimento — mas sobretudo a ala
conservadora que constituía o Centro antes do Vaticano II. Da mesma

213
forma, o modernismo tradicional desapareceu em proveito de correntes
influenciadas pelas ideologias marxistas; a corrente liberal, por sua vez,
foi absorvida pela doutrina oficial da Igreja.
A organização destas tendências, seus prolongamentos políticos
apresentam semelhanças impressionantes com o fenômeno estudado
por Gramsci no começo do século. Todavia, esta luta ideológica
interna apresenta um caráter específico: o conflito situa-se diretamente
no nível das ideologias leigas e não de seu suporte teológico. Mas
sobretudo, mostrando-se a Igreja incapaz de suprimir e mesmo de
controlar estas correntes, tenta definir as condições de sua coexistência
reconhecendo a legitimidade de um pluralismo político dos cristãos.'^
Esta influência das ideologias leigas é, de outro lado, a
conseqüência da crescente influência dos intelectuais leigos no seio
da Igreja, conseqüência sobretudo do enfraquecimento do aparelho
eclesiástico. Seu aparecimento progressivo em todos os níveis —
incluídos aqueles que tradicionalmente eram reservados ao clero —
havia sido previsto por Gramsci. Ele via nisso o indício de uma
secularização da Igreja, cujo processo de luteranização entrevia desde
1918.
Sobre os diferentes aspectos da evolução da Igreja, é interessante
sublinhar que a análise marxista — principalmente na França — é
particularmente superficial. Se examinarmos a literatura marxista
oficial consagrada à análise do catolicismo depois da guerra, parece
que duas atitudes se sucederam:
— Num primeiro período, esta análise ficou marcada pelos
esquemas tradicionais, recusando-se a levar em consideração — ou
melhor, não chegando a captar — as profundas transformações que
sacudiam o mundo católico, principalmente no meio político e sindical.
Depois da desconfessionalização sindical, da abertura da Igreja, tanto
no nível conciliar como nacional, o tom mudou radicalmente para
celebrar a evolução, considerá-la globalmente e fazer assim economia
de uma análise marxista, em profundidade, da crise que sacode a
Igreja, das correntes que nela se opõem e das forças que elas represen­
tam. Deste ponto de vista, parece que a perspectiva de análise crítica
que era a de Gramsci foi abandonada pelo marxismo oficial.

4 Cfr. principalmente, Lettre du Pape Paulo VI au cardinal Roy, Ed. Ouvrières,


1971, 150 p.
Mgr Matagrin, Politique, Eglise et foi, Centurion, 1972, 265 p. (declaração do
episcopado francês de outubro de 1972).

214
Considerando que a Igreja tende a situar-se progressivamente
nas posições da classe operária, tal tipo de análise chega na realidade
à conclusão de que da mesma forma que a Igreja se alinhou progressi­
vamente com a burguesia, ela se adaptará também ao futuro Estado
socialista.
Tal análise afasta-se radicalmente tanto do esquema dos Quaderni
como da política gramsciana frente à Igreja. Com efeito, Gramsci
lembra que a Igreja só se alinhou com o Estado liberal depois de
uma longa luta ideológica e da eliminação das forças monarquistas em
seu seio. Mesmo supondo que a Igreja tire a lição do passado, é
impensável, julga Gramsci, que a aliança com o Estado socialista
possa ser obra do conjunto da Igreja.
Por outro lado, é digno de nota que a análise otimista do
marxismo oficial seja contestada não só por certas correntes marxistas
heterodoxas, mas também pelas correntes internas do catolicismo que
aceitam o marxismo.
A conseqüência essencial de tal atitude é que ela não pode
suavizar a visão gramsciana do marxismo como “Reforma intelectual
e moral.”
A noção de reforma intelectual e moral deve, efetivamente, ser
considerada como o segundo contributo essencial da reflexão grams­
ciana sobre o problema religioso. Esta contribuição apresenta três
aspectos essenciais:
— o papel da religião e do senso comum como força popular
de toda ideologia;
— a definição do marxismo como “revolução cultural”;
— o aspecto nacional de que se deve revestir esta revolução.
Nos Quaderni Gramsci focaliza, pois, o obstáculo essencial da
Reforma marxista, o esteio da força católica: as classes populares são
ideologicamente conservadoras. O senso comum, a religião popular
são tão difíceis de abalar como as classes dirigentes. Toda educação
superficial não faria mais do que acrescentar uma coloração “marxis­
ta” ao senso comum.
Tal perigo parece profundamente real: Gramsci tem o exemplo
do marxismo vulgar que contribuiu amplamente para o fracasso da
segunda Internacional. Mas pode-se perguntar se o “sincretismo ideo­
lógico” não contaminou o marxismo de maneira muito mais eficaz
do que as ideologias reformistas da social-democracia. O perigo
nacionalista que Gramsci sublinhava a propósito da Igreja agravou
esta tendência. Na maior parte dos países do Terceiro Mundo, o mar­

215
xismo só se difundiu num estágio de ideologia ou mesmo de mito,
combinando-se com as ideologias nacionalistas, mais ou menos reli­
giosas. A ausência de classe operária organizada, a fraca cultura mar­
xista dos intelectuais contribuiu amplamente para isso. Assim, nestes
países, o marxismo tornou-se uma autêntica religião popular.® Da
mesma forma que o marxismo da II Internacional não era mais do
que um sincretismo do materialismo vulgar e do marxismo, assim o
“marxismo” do Terceiro Mundo com freqüência não é mais do que
coloração “marxista” das ideologias nacionalistas.®
De outro lado, o marxismo não sofreu esta evolução só no Ter­
ceiro Mundo. Com efeito, pode-se perguntar se o marxismo vulgar,
cuja influência Gramsci denunciava nas fileiras da social-democracia
e mesmo dos partidos comunistas — como o mostra a crítica de
Boukharine — não foi mantido. Deste ponto de vista parece signi­
ficativo o conflito permanente que opõe “intelectuais” e dirigentes no
seio dos partidos comunistas e cujo aspecto ideológico lembra a luta
que a Igreja travou por muito tempo para evitar o aparecimento de
uma religião popular e uma religião dos intelectuais; também neste
caso a afirmação de um “dogmatismo” — do qual se disse que é me­
nos nocivo do que os diversos “revisionismos” — foi o instrumento
de uma certa unidade ideológica.
Os temores gramscianos de uma renovação do marxismo vulgar
eram, pois, perfeitamente justificados.
Esta importância do sincretismo ideológico permite, de outro
lado, levantar a questão da natureza real do marxismo. Com efeito,
os Quaderni não permitem decidir entre duas concepções do mar­
xismo: a de uma ideologia importada nas classes subalternas ou a
de uma Weltanschauung destes grupos sociais. De fato, encontram-se
nos Quaderni estas duas concepções sob a forma de educação das
massas e de aristocratização do senso comum, visto que estes dois
aspectos estão dialetizados pelas relações intelectuais-massas.
Não menos complexa se apresenta a natureza real da “reforma
intelectual e moral”.
Com efeito, esta pode ser interpretada em dois sentidos contra­
ditórios: como sublinha acertadamente A. Zanardo,^ certas concep-

5 Gramsci julga que este fenômeno é sobretudo próprio das massas camponesas
(sua análise visava de fato às do Mezzogiorno).
6 Cfr. M. Rodinson, Marxisme et monde musulman, Le Seuil, 1972, principal­
mente pp. 297-584.
7 Studi Gramsciani, ed. Riuniti, 1969, Roma, p. 355.

216
ções tradicionais da Segunda Internacional aparecem de maneira evi­
dente nos dois aspectos da “reforma”.
— é o partido que eleva o nível cultural das massas, que as
faz chegar a um grau superior de civilização. Esta interpretação tipi­
camente humanista demonstra o caráter profundamente clássico desta
“revolução cultural”;
— tradicional também a visão do marxismo como herdeiro e
coroamentto do movimento cultural que aparecem com o protestan­
tismo.
Mas a reforma intelectual e moral pode também ser interpretada
em termos de “revolução cultural” ; deste ponto de vista, certos temas
da revolução cultural chinesa apresentam uma analogia impressio­
nante com as análises dos Quaderni:
— antes de tudo, analogia fundamental no reconhecimento da
primazia da luta ideológica; toda revolução que não alcança a socie­
dade civil está votada ao fracasso; a sobrevivência das ideologias
tradicionais tanto no nível da “filosofia” como do senso comum é
particularmente determinante e tem necessidade de uma verdadeira
“revolução cultural”;
— analogia também no nível das relações entre intelectuais e
massas: a insistência de Gramsci em sublinhar os riscos de ruptura
entre intelectuais — isto é, o partido — e massas, a necessidade de
uma renovação periódica das elites, a necessária substituição dos inte­
lectuais tradicionais, são temas comuns a Gramsci e a Mao-Tse-tung;
— por fim, analogia quanto aos métodos, tanto em nível do
marxismo vivido como uma jé, quanto da dialética espontaneidade-
direção ao nível das relação intelectuais massas.
De fato, tais analogias correm o risco de reduzir a originalidade
e a complexidade do pensamento gramsciano.
A reforma intelectual e moral não é uma concepção social-de-
mocrata mas uma superação desta tradição. O marxismo certamente
é definido como o coroamento do passado, mas também como a
crítica radical deste passado cultural. O partido é o educador das
massas, mas esta educação é recíproca e tem como finalidade derrubar
o bloco hegemônico. A concepção gramsciana do marxismo e do
partido marca, pois, uma superação orgânica da tradição social-de-
mocrata.
Quanto à analogia entre a reforma intelectual e moral e Revo­
lução cultural, convém sublinhar que se situa essencialmente a nível

217
íios métodos. Certamente para Gramsci não se trata de apagar o
passado e de gravar numa “página branca” a nova concepção do
niundo. A Reforma marxista deve partir da crítica do senso comum,
^ utilizá-la como ponto de partida para a educação das massas.
A concepção gramsciana do marxismo é, pois, profundamente
revolucionária mas também profundamente humanista.
O terceiro aspecto essencial da reforma intelectual e moral reside
em seu caráter nacional.
Nos Quaderni, Gramsci sublinha constantemente que o nível polí­
tico e cultural das classes subalternas varia segundo o país. A difusão
<^o marxismo e sua função devem adaptar-se, pois, às diferentes si­
tuações: assim, enquanto a Alemanha e da Inglaterra já conheceram
uma reforma popular com o protestantismo, a França com a Revo­
lução, a Itália ficou afastada destes movimentos culturais populares.
A burguesia italiana não soube desenvolver uma verdadeira hege­
monia cultural sobre o povo. A reforma intelectual e moral deverá,
pois, desempenhar um papel considerável: passar diretamente da cul­
tura medieval do catolicismo para o marxismo.
Tal função explica por que nos Quaderni se atribui ao partido
comunista uma tarefa pedagógica e, ao mesmo tempo, política.
A “via italiana para o socialismo” que Gramsci propõe nos
Quaderni é, portanto, a conseqüência da estrutura particular da socie­
dade civil na Itália: o marxismo deverá não só desempenhar sua
própria função histórica mas também aquela que a burguesia não
soube desempenhar: daí seu caráter “nacional-popular”.
Por isso tal visão não tem nada a ver com o que depois se
denominou “via italiana para o socialismo” e cuja característica essen­
cial não era ideológico-cultural mas antes política — reconhecimento
da autonomia política do PCI no seio do movimento comunista e
ufirmação de uma estratégia política “à italiana”.
Pode-se considerar que a concepção gramsciana do marxismo
como Reforma necessária à Itália não teve prolongamento sério. O
tema da reforma intelectual e moral tinha, contudo, uma validade
especificamente italiana: ele constituía o aspecto ideológico da estra­
tégia da aliança com a classe camponesa.
Toda apreciação atual da função que Gramsci atribui ao mar­
xismo deve, pois, levar em consideração este caráter nacional.
Gramsci raciocina no quadro de uma sociedade ainda ampla-
niente rural, onde o nível cultural das massas ainda é extremamente

218
baixo e onde a religião é a ideologia dominante. Por isso tal con­
cepção é particularmente apta para analisar a função que desem­
penha ou poderia desempenhar o marxismo nos países do Terceiro
Mundo.
Mas não se deveria concluir disso que a análise gramsciana se
tornou inaplicável aos países ocidentais. Com efeito, Gramsci lembra
que o senso comum constitui uma sedimentação ideológica perma­
nente. A crítica marxista do senso comum deve, pois, em cada época
e em cada sistema cultural, apresentar um caráter específico. Assim
é que o marxismo não pode mais ser considerado como uma “Re­
forma”, mas como a superação qualitativa da cultura leiga domi­
nante.
O tema da reforma intelectual e moral apresenta, por fim, um
interesse que ultrapassa o da teoria marxista propriamente dita e
chega a certas orientações da ciência política contemporânea.
Com efeito, Gramsci aplica o método de análise marxista ao
marxismo considerado como ideologia. No exame das relações do
marxismo com o senso comum e a religião popular, no das relações
entre partido e massas, Gramsci é levado — e a referência constante
à Igreja como modelo negativo é significativa — a utilizar os critérios
da sociologia religiosa marxista que havia esboçado para o estudo
do catolicismo.
A reflexão gramsciana sobre o problema religioso constitui assim
um precioso instrumento para a análise marxista das ideologias, mas
não será ela também uma confissão involuntária das consideráveis
dificuldades que o marxismo encontra — depois do cristianismo e
de todas as ideologias que se dirigem às classes populares — para
quebrar a resistência do senso comum e superar a divisão entre inte­
lectuais e massas?

219
LIVROS E PERIÓDICOS UTILIZADOS POR GRAMSCI

I. Livros utilizados para os Quaderni


— sobre o cristianismo primitivo:
A. Omodeo, Gesü il Nazareo, La Nuova Italia, Veneza, I9z7.
Religione e civiltà. Dalla Greda antica al cristianesimo, Principato
Messina.
—■sobre a Idade Média:
H. Pirenne, Les villes du Moyen-Age, Lamertin, Bruxelles, 192 7.
L. Salvatorelli, San Benedetto e ITtalia dei suo tempo, Laterza,
Bari.
Mgr. F. Lanzoni, Le Diocesi dTtalia dalle origini al principio
dei secolo VII, Faenza, 1927.
L. Duchesne, Les êvêches dTtalie et Vinvasion lombarde.
A. von Harnack, Die Mission und Ausbreitung des Christen-
tums, 1906, 2 vol.
— sobre o Renascimento:
G. Toffanin, Che cosa fu Vumanesimo. II Risorgimento deli an-
tichità classica nella coscienza degli italiani fra i tempi di Dante e
la Riforma, Sansoni, Florença, 1928.
D. Guerri, Le correnti popolari nel Rinascimento. Berte, burle
e baie nella Firenze dei Brunellesco e dei Burchiello, Sansoni, Flo­
rença, 1931.
F. De Sanctis, Storia delia letteratura italiana, Einaudi, Turim.
G. De Ruggiero, Rinascimento, riforma e controriforma, Bari,
Laterza, 1930.
— sobre a Reforma:
B. Groethuysen, Origines de Vesprit bourgeois en France, Paris,
Gallimard, 1927.

221
M. Weber, VEthique protestante el 1’esprit du capitalisme, pu­
blicado em italiano in “Nuovi Studi”, 1931.
— sobre o jansenismo:
A. Jemolo, II giansenismo in Italia prima delia rivoluzione,
Laterza, Bari, 1928.
—■ sobre a Revolução:
A. Mathiez, La Révolution française, A. Colin, Paris, 1922­
1928.
— sobre o movimento católico italiano:
E. Vercesi, Storia dei movimento cattolico in Italia (1870-1922),
La Voce, Florença, 1923.
G. De Rossi, II partito popolare italiano dalla fondazione al
1920, Ferrari, Roma, 1920.
— sobre a política internacional do Vaticano:
M. Pernot, Le Saint-Siège, VEglise catholique et la politique
mondiale, A. Colin, Paris, 1924.
F. Salata, Per la storia diplomática delia Questione Romana,
I Treves, 1929.
— sobre as concordatas:
“Ignotus”, Stato jascista, Chiesa e scuola, Libreria dei Littorio,
Roma, 1929.
R. Jacuzio, Commento delia nuova legislazione in matéria eccle-
siastica, Turim UTET, 1932.
V. Morello, II conflitto dopo la concilizione, Bompiani, 1931.
— sobre os integristas:
UAction française et le Vatican, Prefácio de Ch. Maurras, Flam-
marion. Paris, 1925.
N. Fontaine, Saint-Siège, Action française, catholiques integraux,
Gamber, Paris, 1928.
J. Maritain, Une opinion sur Charles Maurras et le devoir des
catholiques. Paris, Plon, 1926.
H. Massis, Défense de VOccident, Paris, Plon, 1927.
— sobre o modernismo:
G. Gentile, II modernismo e i rapporti tra religione e filosofia,
Bari, Laterza, 1909.

222
W. James, Le varie forme delia esperienza religiosa. Studio sulla
natura umana, Bocca, 1904.
— sobre a reforma intelectual e moral:
B. Croce, Etica e Politica, Laterza, Bari, 1931.
Storia d’Europa nel secolo decimonono, Laterza, Bari, 1932.
M. Missiroli, La monarchia socialista, 1913.
II Papa in guerra, Bolonha, 1915.
T. Mazaryk, La Rússia e VEuropa. Studi sulle correnti spiri-
tuali in Rússia, Roma, 1925.

II. Periódicos
Na prisão, Gramsci só tinha acesso a um número limitado de
revistas: algumas tiveram influxo notável nos Quaderni; sobre a
questão religiosa, essencial é a influência da
— Civiltà cattolica, principalmente sobre as seguintes questões:
Ação católica
Pensamento político e social da Igreja
Situação da Igreja depois das concordatas
Análise do integrismo e do modernismo
Problema da franco-maçonaria e do Rotary Club
O problema das missões
Sobre estas questões, a Civiltà cattolica muitas vezes é a única
fonte de informação como também a ocasião de comentar a posição
da Igreja.
Deve-se mencionar também
— “La Nuova Antologia”, principalmente sobre
o Humanismo e o Renascimento
o Islamismo
a aliança.

223
BIBLIOGRAFIA'

1. Obras de Gramsci

— em italiano: Edições Einaudi, Turim


Scritti giovanili (1914-1918), 1958, XIX-392 p.
Sotto la mole (1916-1920), 1960, XVIII-509 p.
UOrdine Nuovo (1919-1920), 1955, XV-501 p.
Socialismo e fascismo. UOrdine Nuovo (1921-1922), 1967,
XVII-556 p.
La costruzione dei Partito comunista (1923-1926), 1971, XV-
565 p.
Lettere dal cárcere, 1968, XLVI-949 p. Um estudo de Elsa
Fubini e Sérgio Caprioglio.
Quaderni dei cárcere:
— 11 materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce,
1966, XXIII-299 p. (compreende principalmente os textos sobre as
relações entre marxismo e religião, e a crítica das concepções de
Croce).
— Gli intellettuali e Vorganizzacione delia cultura, 1966, XV-203
p. (sobre a noção de intelectual tradicional, a Igreja e os intelectuais
italianos, o fenômeno religioso no mundo).
— II Risorgimento, 1966, XIV-235 p. (sobre a Idade Média,
as Reformas, a Igreja e a unidade italiana).
— Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno,
1966, XXIII-371 p. (compreende os Quaderni sobre'a Ação católica,
os conflitos entre Integristas, Jesuítas e modernistas, e as Concor­
datas).

1 Para uma bibliografia muito detalhada sobre Gramsci, remetemos àquela que
elaboramos em “Gramsci et le bloc historique”, PUF-SUP o Político, 1972 pp. 165-173.

225
— Letteratura e vita nazionale, 1966, XX-400 p. (sobre a li­
teratura católica).
— Passato e presente, 1966, XVIII-274 p. (religião e política).
Os Quaderni foram publicados também pelas Edições Riuniti,
Roma.
Outros escritos:
Scritti 1915-1921, Quaderni de “II Corpo”, 1968, XV-193 p.
(artigos não mencionados nos Scritti giovanili).
— 11 Vaticano e Vltalia, 1968, 142 p. (antologias dos escritos
de Gramsci sobre a questão religiosa. Prefácio de A. Cecchi).
— em francês:
Lettres de prison. NRF Gallimard, 1971, 620 p.
Oeuvres choisies. Editions Sociales, 1959, 539 p. Tradução e
notas de G. Mojet e A. Monjo. Trad. brasileira, Martins Fontes, SP.
Em português
— Concepção Dialética da História. Ed. Civilização Brasileira,
1978, 342 p. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.
—• Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Ed. Civilização
Brasileira, 1978, 446 p. Tradução de Luiz Mário Gazzaneo.
— Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Ed. Civilização
Brasileira, 1978, 246 p. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.
— Literatura e Vida Nacional. Ed. Civilização Brasileira, 1978,
274 p. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.
— Cartas do Cárcere. Ed. Civilização Brasileira, 1978, 420 p.
Tradução de Noêmio Spínola.

2. Obras sobre Gramsci

— sobre a questão religiosa:


A. Nesti, II pensiero religioso di Gramsci, Tese de teologia
apresentada na Universidade pontifícia de Latrão, Roma, 1967, 212 p.
P. Soldi, 11 pensiero etico-religioso di A. Gramsci nella pros-
pettiva dei dialogo tra cristiani e marxisti in Italia, Tese de teologia
apresentada na Universidade Pontifícia de Latrão, Roma, 1970, 365 p.
— obras gerais que abordam a questão:
A. Buzzi, La théorie politique d’Antonio Gramsci, Louvain, Nau-
welaerts, 1967, 356 p.

226
A. Broccoli, A. Gramsci e Veducazione come egemonia, Flo-
rença, La Nuova Italia, 1972, 305 p.
N. Matteuci, Antonio Gramsci e la filosofia delia prassi, Milão,
Giuffre, 1951, 153 p.
G. Nardone, II pensiero di Gramsci, Roma, De Donato, 1971,
549 p.
R. Orfei, Antonio Gramsci, coscienza critica dei marxismo, Mi­
lão, Ed. Relazioni sociali, 1965, 264 p.
L. Paggi, Gramsci e il moderno principe (vol. I), Roma, Ed.
Riuniti, 1970, 444 pp.
F. Pierini, Gramsci e la storiologia delia rivoluzione, studio
storico-semantico, Edizioni Paoline, Roma, 1978, 670 p.
J. M. Piotte, La pensée politique de Gramsci, Anthropos, 1970,
302 p.
H. Portelli, Gramsci et le bloc historique, PUF Sup Le Poli­
tique, 1972, 175 p. Tradução brasileira. Ed. Paz e Terra.
N. Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales, Maspero,
1971, 2 vol. 200 e 196 p.
N. Poulantzas, Fascisme et dictature: La Troisième Internacio-
nale face au fascisme, Maspero, 1970, 402 p.
M. L. Salvadori, Gramsci e il problema storico delia democrazia,
Turim Einaudi, 1973, 403 p.
D. Grisoni e R. Maggiori, Lire Gramsci, Editions Universitaires,
1973, 280 p.
P. Spriano, Storia dei partito comunista italiano: 1 da Bordiga
a Gramsci, Turim, Einaudi, 1967, 525 p.
M. A. Macciocchi, Pour Gramsci, Le Seuil, 1974, 429 p.

3. Artigos
—■ Gramsci e a religião:
A. Amu, Gramsci e i cattolici, Rinasciía sarda V n. 16-17, 10­
25 setembro 1967 p. 9.
A. D’Alfonso, Gramsci e i cattolici. Unità operaia, Bolonha, 14
de junho de 1967.
A. Cecchi, prefácios a II Vaticano e 1’Italia, o.c., pp. 7-38.
A. de Jaco, Cattolici e marxisti discutono di Gramsci. VUnità
XLIII, n. 95, 6 de abril de 1966.

227
V. Lanternari, Religione popolare e storicismo, Belfagor, X, n.
6, 30 de novembro de 1954.
G. de Rosa, Bakunin, Gramsci, Sturzo e il clero meridionale,
Storia contemporânea, II Mulino, Bolonha, II n. 1, março de 1971,
pp. 2-15.
— sociedade civil e aparato ideológico:
L. Althusser, Idéologie et appareil idéologique d’Etat. La Pensée,
n. 139 (1968), pp. 35-60.
N. Bobbio, Gramsci e la concezione delia società civile, in
Gramsci e la cultura contemporânea, Ed. Riuniti, vol. I pp. 75-101 e
195-199.
J. Texier, Gramsci théoricien des superestructures. La Pensée, n.
139 (1968), pp. 35-60.
— a noção de ideologia:
A. M. Cirese: Concezione dei mondo, filosofia, folclore, in
Gramsci e la cultura contemporânea, vol. 2 pp. 299-328.
— a reforma intelectual e moral:
C. Luporini, La metodologia dei marxismo nel pensiero di
Gramsci, — in Studi gramsciani, Ed. Riuniti, pp. 445-468.
A. Zanardo, II “manuale” di Bukharin visto dai comunisti te-
deschi e da Gramsci, ibid., pp. 337-368.
H. Portelli, Jacobinisme et anti-jacobinisme de Gramsci, in Dia-
lectiques, 1974, n. 4-5, pp. 28 a 43.
— a noção de intelectual:
E. Garin, — Politica e cultura in Gramsci: il problema degli
intellettuali, in Gramsci e la cultura contemporâneo, vol. 1 pp. 37-74.
C. Galli, Gramsci e le teorie delle “elites”, ibid. vol. 2 pp. 201­
216.
G. Mantovanl, Gramsci, rintellettuale orgânico, in Vita e pen­
siero, XLIX, n. 2, fevereiro, 1966, pp. 173-183.

4. Os textos marxistas clássicos

Marx, Engels, Sur la religion, Editions sociales, 1968, 358 p.


A. Labriola, La concezione materialista delia storia, Laterza,
Bari, 364 p.
Lênin, Lénine et la religion, Editions Sociales.

228
K. Kautsky, Uorigine dei cristianismo, Samona e Savelli, Roma,
1970.
Plekhanov, Les questions fondamentales du marxisme, Editions
Sociales, 1947, 273 p.
P. Togliatti, Opere (1917-1926), Ed. Riuniti, 1967, 943 p. (so­
bre o partido popular).
H. Desroches, Marxisme et religion, PUF Collection “Mythes et
religion”, 1962, 125 p.

5. Estudos marxistas sobre a religião

Podemos distinguir dois tipos de abordagens:


— aquela freqüentemente simplista do marxismo ortodoxo:
C. Hainchelin, Les origines de la religion, Editions Sociales,
1955, 340 p.
J. Delon, Le syndicalisme chrétien en France, Editions Socia­
les, 1961.
G. Mury, Essor ou déclin du catholicisme français, Editions So­
ciales, 1960, 320 p.
— aquela muitas vezes mais próxima de Gramsci, —de marxistas in­
dependentes:
M. Rodinson, Islam et capitalisme, Le Seuil, 1966, 304 p.
Marxisme et monde musulman, Le Seuil, 1962, 698. p.

6. Sobre o catolicismo na França e na Itália

—i na Itália:
1) sobre sua evolução geral:
G. Candeloro, II movimento cattolico in Italia, Ed. Riuniti,
Roma 1961.
A. Jemolo, Chiesa e Stato in Italia dalla unificazione a Gio-
vanni XXIII, Einaudi, 1968, 349 p.
2) sobre o período anterior a 1914:
G. De Rosa, II movimento cattolico in Italia. Dalla Restaura-
zione alVetà giolittiana, Laterza, Bari, 1970, 401 p.
I. Cervelli, I cattolici daU’unità alia fondazione dei partito po-
polare, Universale Cappeli, Bolonha 1969, 213 p.

229
3) sobre o Partido Popular;
L. Sturzo, II partito popolare italiano, Bolonha, Ed. Zanichelli,
3 vol. 1956-1957.
G. De Rosa, II partito popolare, Laterza, Bari, 1969, 339 p.
E. Aga Rossi, Dal partito popolare alia democrazia cristiana,
Universale Cappeli, Bolonha, 1969, 373 p.
4) sobre a Ação católica:
G. Candeloro, UAzione cattolica in Italia, Ed. Riuniti, 1949.
G. De Rosa, UAzione Cattolica, Laterza, Bari, 1964, 2 vol.
— na França:
1) sobre a evolução geral:
A. Dansette, Histoire religieuse de la France contemporaine,
Flammarion, 1965, 892, p.
A. Latreille e R. Rémond, Histoire du catholicisme en France,
T. 3. L’époque contemporaine, 709 p. SPES, 1964.
2) sobre a Revolução:
A. Mathiez, Contribution à Vhistoire religieuse de la Révolution,
Alcan, 1907.
A. Mathiez, La Révolution et VEglise, A. Colin, 1910, 307 p.
3) sobre a aliança e a Ação Francesa:
R. Rémond, La droite en France, Aubier-Montaigne, 1972, 2
vol. 470 p.

230
5 Introdução à edição brasileira
11 Prefácio
15 Inttrodução
Primeira parte
ESPECIFICIDADE DO FENÔMENO RELIGIOSO
21 Cap. I — RELIGIÃO E IDEOLOGIA
21 1. Definição de religião nos Quaderni
27 2. Crítica da religião
3. Caráter necessário da religião
31
35 Cap. II — IGREJA E APARELHOS IDEOLÓGICOS
t
35 1. A Igreja e o Estado
37 2. Religião e política
Segunda parte
A IGREJA, INTELECTUAL ORGÂNICO
47 Cap. I — O CRISTIANISMO PRIMITIVO
52 2. A evolução do cristianismo primitivo
55 Cap. II — A IGREJA, INTELECTUAL ORGÂNICO DO
FEUDALISMO
55 1. O clero, classe feudal
61 2. Os movimentos religiosos feudais
67 3. A reação da Igreja
71 Cap. III — A CRISE DO BLOCO CATÓLICO-FEUDAL
71 1. Caracteres gerais das heresias
82 3. Reforma e Contra-reforma
75 2. Reforma e Renascimento
87 4. A Revolução francesa
Terceira parte
A IGREJA, INTELECTUAL TRADICIONAL
95 Cap. I — O FRACASSO DA RESTAURAÇAO
95 1. A Igreja, intelectual tradicional
101 2. As tentativas de restauração
109 Cap. II — A ALIANÇA
131 Cap. III — O BLOCO IDEOLÓGICO CATÓLICO
131 1. A relação Igreja-fiéis
137 2. A estrutura do bloco católico
149 Cap. IV — AS CORRENTES INTERNAS DA IGREJA
153 1. As diferentes tendências
158 2. A luta contra os integristas e os modernistas
164 3. Caráter permanente das clivagens
Quarta parte
171 Cap. I PERSPECTIVAS DE EVOLUÇÃO DA IGREJA
171 1. O papel da Igreja nc seio da sociedade civil
174 2. A Igreja e o mundo cristão
178 3. A crise religiosa
187 Cap. II — A REFORMA INTELECTUAL E MORAL
188 1. O marxismo herdeiro das reformas
192 2. O problema italiano
209 CONCLUSÃO
225 BIBLIOGRAFIA
• ^
é

Você também pode gostar