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Tradugio CORO Oe| A VINGANGA DA ONC) iva a bal A CONSTRUGAO DO MUNDO GEOPOLITIC« A PARTIR DA PERSPECTIVA GEO fair C11.4.16, ADNMGO159 == GS FEAUSP Powers by RUdPreStar~ wo fgprcons com bt EM MEMORIA DE HARVEY SICHERMAN 1945-2010 PRESIDENTE DO FOREIGN POLICY RESEARCH INSTITUTE, FILADELFIA Do original: The Revenge of Geography — Tiadugao autorizada do idioma inglés da ediefo publicada por Random Hous, re Copyright © 2012 by Robert D. Kaplan Maps copyright © 2012 by David Lindroth, Inc. © 2013, Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n® 9.610, de 19/02/1998, Nonhuma parte deste lvro, sem autorizagao prévia por escrito da editora, podord sy transmitda sojam quis forem os meios emprogados: clotnicos, mecdnicos,ttogdnenn ie ty ou quaisquer outros. Davact, O prefacio contém material de quatro titulos de Robert D. Kaplan jé publicados: Soldiers of God (New York: Houghton MMi in Harcourt Publishing Company, 1990), An Empio Wits (New York: Random House, ine., 1996), Eastward to Tartary (New York: Random Houso, ne, 200) hy Pilots, Blue Water Grunts (New York: Random House, Inc., 2007). Copidesque: Shirley Lima da Siva Braz Reviséo: Casa Editorial BBM Editoragao Eletronica: Estudio Castellani Elsevier Editora Ltda, Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 ~ 16° andar 20050-006 ~ Centro — lio de Janeiro ~ RJ - Brasil A iA Rua Quintana, 753 — 8° andar (4569-011 ~ Brooklin - Sdo Paulo ~ SP ~ Brasil ABDPR Sores nena = 0800-0265340 atendimento1 @elsevier.com ISBN 978-85.352-7095-2 ISBN (versdo digital): 978-85-352-7096-9 ISBN (edigao original): 978-1-4000-6983-5 Nota: Muito zeloe técnica foram empregados na edigdo desta obra. No entanto, podem ocorrer eros ge digitagdo, impressio ou divida conceitual. Em qualquer das hipdteses, solicitamos a comunicagso 9 nosso Servigo de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar @ questa. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade is anos ou per F respons por eventuais a PPessoas ou bens, orginados do uso desta publeagao, CIP-Brasil. Catalogagao na fonte Sindicato Nacional dos Eultores do Livros, AJ ‘ jobert D, 1952 Winganga da geogratia: a construgao do mundo Peaportico a partir da perspectiva geogréfica / Robert Kaptan; Eaduno Cristiana de Assis Serra.~ 1. 0d. Flo de Janoiro: ElCovier, 2013, 4, mapas ;23 em, Traducd0 de: The revenge of geography: what the map ‘oles about coming contits and the bata against fato intl inden 2 'SBN 978-85.950-7095.2 1. Geogratia politica. Titulo, s2-02065, ee courant? Mas preci amente Por que espero pouco da condigdo hu- mana, os periodos de felicidade do homem, seus progressos parciais, seus esforgos para recomegar e prosseguir, tudo is- So me parece tio prodigioso que quase consegue compen- Sara monstruosa massa de males e derrotas, de indiferenga © erro. A catastrofe e a ruina virio; a desordem triunfara, ‘mas assim também a ordem, de tempos em tempos. Marguerite Yourcenar Memérias de Adriano (1915) AGRADECIMENTOS ideia deste livro nasceu de um artigo que Foreign Policy, a pedido de seus editores, sobretudo escrevi para a re\ Christian Brose e Susan Glasser. A medida que o livro ia se desenvol- vendo, uma versio abreviada do capitulo sobre a China foi publicada como matéria de capa de outra revista, a Foreign Affairs, pelo que agra- deco a James FE. Hoge Jr., Gideon Rose e Stephanie Giry. O Center for a New American Security (CNAS), em Washington, publicou um artigo que era a versio reduzida do capitulo sobre a India, pelo que agradeco a Kristin Lord, vice-presidente e diretora de estudos dessa organiza- 40, Alids, este livro nao teria sido concluido sem o apoio institucional que recebi do CNAS, pelo que sou grato ao CEO Nathaniel Fick, a0 Presidente John Nagl e a Diretora de Desenvolvimento Venilde Jeronimo. Partes do Prefacio foram adaptadas de varios livros meus anteriores. Ao longo de todo esse processo editorial, recebi auxilio e inspiracao de Jakub Grygiel, da Paul Nitze School of Advanced Interna- tional Studies, Johns Hopkins University. Contei também com a ajuda do Tenente-General do Exército (aposentado) Dave Barno, do consul- tor sénior do CNAS Richard Fontaine, do ex-pesquisador do CNAS Seth Myers, dos editores da revista The Atlantic James Gibney e Yvonne oo“ x A VINGANGA DA GEOGRAFIA Rolzhausen, do professor da Naval Academy Stephen Wrage e do Pro. fessor Brian W. Blouet, do College of William and Mary. Na Random House, meu editor, Jonathan Jao, Proporcionou-me as mais sensatas orientagdes em todas as dimensées do trabalho, Kate Medina foi outra fonte de incentivo, Mais uma vez, agradeco aos meus agentes literarios, Carl D. Brandt e Marianne Merola, por seu auxilio na transico entre projetos. Elizabeth Lockyer, minha assistente, trabalhou nos mapas, Minha esposa, Maria Cabral, mais uma vez me prestou apoio emocional, O AUTOR nalista, Chefe ncia privada global E ATEOR, empresa de intel ivros sobre relagdes intemacionai © Viagens, traduzidos pand the idiomas, entre eles, Monsoon: The In denar ao longo daa histiria da Rom E comrespondente estrangeiro da revista The Addantic ha mais Borvig ge 25 anos Em 2011, foi considerado pela revi +100 Principais Pensa, Entre 2009 © 2011, atuou como membro do Defense Policy (Conselho de Poli lores Globais”. ticas de Defesa) do Pentigona sob a gestio do Secretitio de Defesa Robert Gates. Desde 2008, ¢ membro sénior do Center tor New American Security, em Washington. De 2006 a 2008, foi Class of 1960 Dis g Profesor (Professor Visitante Benemerito da Jurma de 1980) de Segura cal A Unidos, em Annapolis. Visite seu site em www Robert DKaplan.com, uranga Nacional na N cademy dos Estados PREFACIO FRONTEIRAS m bom lugar para entender o presente e fazer perguntas sobre o futuro é no chao, viajando o mais devagar possivel. 2 uando a primeira linha de colinas arredondadas apontou no horizon- te, com suas ondulagées brotando do chio do deserto no Norte do Iraque e culminando em macigos de 3.000 m de altura, cobertos de carvalhos ¢ freixos, meu motorista curdo lancou um olhar para a vasta planicie acidentada as nossas costas, estalou a lingua com desprezo e resmungou: “Arabistio.” Em seguida, olhando para as montanhas, murmurou: “Cur distdo”, e seu rosto se iluminou. O ano era 1986, no auge do sufocante reinado de Saddam Hussein, mas assim que entramos nos vales claustro- fébicos e abismos proibitivos, os ubiquos retratos de Saddam desapare- ceram por completo ~ assim como 0s soldados iraquianos, Em seu lugar, surgiram os peskmerga,* curdos de cartucheira a tiracolo, turbante, calgas largas, faixa amarrada na cintura. Segundo o mapa politico, ainda estava- mos no Iraque; mas as montanhas tragavam o limite do poder de Saddam ~ limite s6 superado pelas medidas mais extremas. No final da década de 1980, irritado com a liberdade que essas mon- tanhas, ao longo de décadas e séculos, haviam concedido aos curdos, * N. Ts milicianos curdos armados. A VINGANGA OA GrOGRATIA irdistao iraqu ma total ao C 0 = a Celeb n ordenos ah 1 que resuleout morte de 100 mil civis, segung, > Al-Anfal, a unde, tan Saddam nio foram decisivas; mas, aramente s, clar : campanha de 9 0 fato original ~ desse drama tr; as, As mon a estimati a ay de fun 0 Curdisti do iraquiano- 9 par ua p uit hoje, em larga medica clas que a, gas.ae fato do Esta 9 con: rigor, consti gico. Foi gr ceparar-se de a conservadora, ndo raro resguardando, no ras nativas contra as ferozes ideologias quéncia, assolam as planicies; propor. ey efi para guerrilhas marssts carts de + © antropélogo James C. Scott, de Yale m compreendidos como comu- modernizadoras 4 cionam, do mesm drogas em nossa Pro escreve que “os montal nidades de desertores, fu Ienios, fugiram & opressao planicie que o regime stalini seus dentes na populacao. Nai 0s Carpatos na década de 1980, av ‘A cordilheira que constitui porta do: ddefinida mais pelas habitagdes de madeira e p' ‘os materiais favoritos do comunismo romeno. constituem uma fronteira pria era. nheses sao mais bet gitivos, degredados que, dos projetos estatizantt ista de Nicolae Ceausescu realmente cravou .s varias oportunidades em que tive de subir istei indicios esparsos de coletivizagio. 5 fundos da Europa Central era edra natural que pelas de ao longo de dois mi- es nos vales”? Foi na concreto e sucata, Os Carpatos, que circundam a Roménia, tanto quanto as montanhas do Curdistao. Ao penetra-los pelo flanco Oeste, vindo da deteriorada e majestosamente desolada Puszta hinga- ra, com seu solo negro como carvéo e oceanos de capim verde-limio, eu deixava o universo europeu do antigo Império Austro-Htngaro pa- 1a ir, pouco a pouco, adentrando o terreno economicamente mais de- pauperado do ex-Império Turco-Otomano. O despotismo oriental de Ceausescu, tdo mais opressivo do que 0 comuni ‘ismo um tanto ou quan- to misto* da Hungria, s6 foi ria, s6 foi possivel, em diltima instanci contrafortes dos Carpatos, |, em ultima instancia, gragas a0 NT: ius oa caracteriza 0 comunismo — a tanto de substantivo e ais ‘Tetivo, que, em ingles, si a {rg hinge com o trocailho goulash,palavia que significa une aie eet? Pico do pais, 0 gulache) miscelanea ou mixérdia de elementos PREFACIO 5D Nao obstante, os Ca 5 . Arpatos nao eram impenetraveis. Durante séculos, mercadores prosperaram em seus muitos pasos, portadores de b dle uma cultura sofisticada ~ a ponto de uma aguda semelhanca noes Europa Central conseguir langar raizes bem além deles, em vidades : aldeias como Bucareste e Ruse. De todo modo, as montanhas estabe- leceram uma gradagao inegavel, a primeira de uma série na direcao do Oriente, levada, por fim, a cabo nos desertos arabe e de Karakum. C . QY m 1999, embarquei em um navio de carga na capital do Azerbaijao, Baku, na margem ocidental do Mar Céspio, para uma travessia notur- na até Krasnovodsk, Turcomenistao, na margem oriental - 0 comego do que os persas sassanidas do século III d.C. chamavam de Turquestio. Ado ; aldeias de chocas cesbranquicadas contra 0 fundo de penhascos cor de barro, a cor da morte. acordar, deparei com um litoral despojado e abstrat Todos nés, passageiros, recebemos a ordem de nos alinhar em fila india- na, num calor de quase 40°C, diante de um portio descascado, onde um policial solitério conferiu nossos passaportes. Passamos, em seguida, para um abrigo precirio e sufocante, onde outro policial, ao encontrar minhas pastilhas de antidcido, acusou-me de contrabando de drogas. Pegou mi- nha lanterna e jogou suas baterias de 1,5 volt no chao de terra. Sua ex- pressio era tao rida e ind6mita quanto a paisagem. A cidade que acenava por tris do abrigo ndo ostentava nenhuma sombra e era depressivamente horizontal, sem maiores indicios arquitetoni pela nostalgia de Baku, com suas muralhas persas do século sonho, construidos pelos primeiros bares do petréleo ¢ gargulas - um verniz cocidental que, a despeito dos e do Grande Caucaso, recusava-se @ desvanecer a Europa fora evaporando icos de uma cultura material. Fui assaltado Xile palacios de adornados com frisos € Cirpatos, do Mar Negro de todo. Em minha jornada rumo a0 Leste, thos, e fronteira natural do Mar Céspio Passo a passo diante de meus es anunciando o deserto de Karakum. havia indicado 0 derradeiro del Naturalmente, a geografia é i do Turcomenistio. Pelo contrari sabedoria na busca de um padrao ad russos czaristas, soviéticos e uma mi- ‘acapaz de expressar todo o desamparo io, indica tao somente 0 principio da histérico - um padrao de invasdes sucessivas por mong6is, Persas, tiade de tribos turcas, todos investindo contra uma Palsagemn nua ¢ wt A VINGANGA DA GEOGRAFIA jagdo era SEMPTe precérig Jes permanentes, 0 que ex. de qualquer civ tido fincar raiz jes daquele lugar. desprotegida. A existencia porque a nenhuma era permil plica minhas primeiras impress e até momentos antes parecia uma -se num labirinto de leitos de jam tons de cinza e caqui. o ou ocre, conforme o sol inclinacoes. Lufadas O soto comesous seergue 2048 massa homogénea de arenito desintegrou ire escavados na pedra e dobras que reflet © topo de cada morro coloria-se de vermelh atingia angulos mais altos e agudos, em diferentes ; meu primeiro contato com 0 de ar mais fresco penetraral frescor das montanhas apés 0 ¢a} da Fronteira Noroeste do Paquist Khyber, em si, ndo chegavam a impressionar. nos de 2.200 m, e a subida é ingreme apenas em alguns pontos. En- tretanto, em 1987 percorri, num intervalo de menos de uma hora, um no vulcanico e confinado de penhascos e canions serpenteantes; riante vegetacao tropical do subcontinente indiano, no nivel do scos descampados do coragio da Asia; de um mundo de solo m o onibus — Jor sufocante de Peshawar, na Provincia 403 As dimensées do desfiladeiro de O pico mais alto tem me- infer da luxu mar, aos fre negro, tecidos berrantes e uma culinéria rica e apimentada a outro de areia, lé grosseira e carne de bode. Assim como os Cérpatos, porém, cujos desfiladeiros sao percorridos por mercadores, a geografia da fronteira entre o Afeganistao e o Paquistao tem outras lic¢des a dar; afinal, aquilo que os britanicos foram os pri- pies a denominar de “fronteira noroeste” nunca foi, “historicamente, Frontia ee segundo o professor de Harvard, Sugata Bose, “mas me” de um contin “indo- ” e “indo-islamico”, raza potas Pi ton noone con do para sua incoeréncia geografica come fake aed conn 10 Estados distintos.4 Cw fonts ainda mais artificiais, Zel O it , ame ® oe ny a caminho de Berlim Oriental em dues encimads por -A cortina de concreto de 3,5 m de altura, branco de bairoe so E2850 #ravessava um nebuloso censrio preto & pobres de imigrantes ture i von ne le 05 € iugoslavos, no lado da PREFACIO a pose ae sce Neti circere urbano a céu aberto ‘ mento que se fazia a seu respeito era em termos morais, uma vez que a premissa suprema daquele tempo era que a Guerra Fria seria eterna, Sobretudo para quem, como eu, ha- via crescido durante a Guerra Fria, mas no tinha nenhuma recordagio da Segunda Guerra Mundial, 0 Muro, por mais brutal e arbitrario que fosse, parecia permanente como uma cordilheira. A verdade sé aparecia nos livros e mapas histéricos da Alemanha que eu, por total e absoluta coincidéncia, havia comegado a consultar nos primeiros meses de 1989, quando me encontrava em Bonn, trabalhando em uma matéria para uma revista. Os livros e mapas contavam a seguinte historia: Ocupando o coragio da Europa, entre os mares do Norte e Biltico € 0s Alpes, os germanicos, segundo o historiador Golo Mann, sempre foram uma forca dinamica encerrada em uma “grande prisio” e évida por escapar. Bloqueados ao Norte e a0 Sul por égua e por montanhas, porém, as tinicas saidas eram a Leste e a Oeste, onde nio havia impe- dimentos geograficos. “O que caracterizou a natureza germanica, por falta de forma, sua falta de confiabilidade”, uma centena de anos, foi sua escreve Mann, referindo-se a0 turbulento periodo entre as décadas de 1860 e 1960, marcado pela expansio de Otto von Bismarck e as duas guerras mundiais.> Todavia, é possivel dizer 0 mesmo do tamanho e do formato do pais como um todo nos mapas 40 longo de sua Historia. Com efeito, o Primeiro Reich, fundado por Carlos Magno em 800, vasta bolha de territrio que, em diferentes momentos, incluiu a Austria e partes da Suiga, da Franga, da ee da ee Avi ia destinada a ser énii jlia e da lugoslavia. A Europa parecia : ° ae ; aa tase ‘ anha. Contudo, sobreveio, en- ida tia ma a que fragmentou @ cristandade ocidental com a Refo ual, por sua vez, deflagrou a Guerra dos Trinta Anos, tra- aaa or solo germanico € responsivel pela devastagao da e = sol Jo XVIII, sobre a unio fiscal dos io passou de uma orresponde a Alem: vada basicamente : Europa Central. Quanto mais et lia écul ea Austria dos Habsburgo no S€< bre o dualismo entre a Prussia A VINGANGA DA GEOGRAFIA minicos no comeco do século XIX e sobre a uni a, no fim desse mesmo século, promovida po, parecia que 0 Muro de Berlim nao passavg os Estados ge o em torno da Prissi Bismarck -, mais evidente me 1m estigio nesse Process diver de mai: .o continuo de transformacio territorial je mais ut . Pra razaes profissionais e de lazer, eu havia conhecido inti. ruiram logo apés 0 Muro de Berlim ~ na na Roménia, na Bulgaria e alhures. De edrontadores. A stibita derrocada cerca nao sé da instabilidade mamente os regimes que Tchecoslovaquia, na Hungria, perto, pareciam inexpugndveis, am constituiu, para mim, uma licdo preciosa a subjacente a todas as ditaduras, mas também de como o presente, por rmanente e esmagador que possa parecer, é fugidio. A tinica coi- ra é a localizacao de cada povo no mapa. Assim, em tem- mapas adquirem importancia. Com o solo politico mais pe sa que perdui pos de convulsao, os em ripida transformagao sob os nossos pés, 0 mapa, ainda que nao seja determinante, é 0 principio do discernimento de uma légica histérica quanto ao que pode acontecer em seguida. (fp ( CLyviolencia foi a marca preponderante da zona desmilitarizada entre as duas Coreias. Em 2006, vi soldados sul-coreanos iméveis em posi¢io de prontidao do tae kwon do, antebracos e punhos cerrados, en- carando suas contrapartes norte-coreanas. Cada lado designava seus sol- dados mais altos e intimidadores para a tarefa. No entanto, 0 édio formal ostentado em meio a minas e arame farpado provavelmente acabara relegado as paginas da Histéria, em algum futuro previsivel. Quando se consideram outros casos de paises divididos no século XX — Alemanha, Vietn’, lémen -, fica claro que, por mais que a separacao se prolongue, fe forcas de unificagio sempre acabam triunfando espontaneamente, € as vezes de maneira violenta e acelerada. A zona desmilitarizada, como oi ec ee Oponentes por acaso chi . me ae a eel ae nos deveriamos estar alee gore a Preparados para essa possibilidade. Também a4: PREFACIO vie ‘o mais provavel é que a que as forcas da cultura e da geografia prevalecam valegam em Uma frontei rontei ‘i ae eer de Genre aaa ea ona loa nan coc natural é algo particularmente vulneravel algum momento, Q \ Sf embem cruzei as frontei - ° eiras terrestres entri ani entre o México e os Estados Unides: vol ea Jordania e Israel e _ : los: voltaremos a esses € outros pontos mais adiante. Agora, gostaria de . : empreender outra jornada, de um tipo radicalmente diverso, através de certas pégi = politica que sobrevi ertas paginas da Histéria e da ciéncia revive i : polis viveram a0 abismo das décadas — e, em alguns casos, 8 — , em virtu é - th le de sua énfase na geografia, permitem-nos ler melhor 0 mi a i 1 is “ apa topogrifico ¢, assim, ajudam-nos a vislumbrer, ainda que de maneira vaga, os contornos da politica futura. Afinal, foi jus- tamente o fato de haver transposto tantas fronteiras que me aticgou a curiosidade acerca do destino dos lugares por onde passei. ‘Trés décadas de atividade como jornalista convenceram-me de que precisamos todos resgatar uma sensibilidade as dimensées do tempo e do espago que se perdeu na era dos jatos e da informagao, quando formadores de opiniao da elite atravessam oceanos € continentes em questao de horas, o que Thes permite falar com eloquéncia sobre 0 que Thomas L. Friedman, eminente colunista do The New York Times, de- Jano.* Pelo contrério, apresentarei aos leitores definitivamente démodés, que tecem_ pesadas fia perdeu a importancia. Exporet signou como um mundo pl uma turma de pensadores criticas a pretensao de que a geogral suas ideias em alguma profundidade na primeira metade desta jornada, a fim de aplicar sua sabedoria na segunda parte, luz do que ja se deu e provavelmente se dara por toda a Eurasia - da Europa a China, incluin- do o Grande Oriente Médio** € © subcontinente indiano. Descobrir ° que exatamente se perdeu em nossa visio da realidade fisica, examinar como o perdemos e, Por fim, restaura-lo mediante a redugao do ritmo de Thomas Friedman. ; _ i aa See sonore de Ae, re Mid ifre da Africa), a Transcaucisia (com maT | oa Central (incluindo 0 Unbequiso, © i Quirguistio), ¢0 Sul da {incluindo vro O mundo é plano, + N.T:0 autor refere-se 20 hi +N. T:definido, em um estu: composta do Oriente Médio em 5! ‘© Oriente Préximo, 4 Tarquin, 6 oni jeérgia, 0 Azerbaijo € ia), Coen ‘o Turcomenistao, © Tadjiquisteo co) ‘a India, o Paquistao € © ‘Afeganista0). * A VINGANGA DA GEOGRAFIA mos ~ por meio da riquez com que nos deslocamos € mesmo observamo$ 6 sera éesse 0 objetivo desta viagem, eruditos ja falecidos: paras afia, termo derivado de uma palavra grega que signitica, ‘cles e fatalismo ¢, assim, acaba ven- de conhecimento de A goog crigdo da Terra’, costuma ser do: |, pensar em termos giro livre-arbitrio humano, dizem. Todavia, 20 ‘ como mapas topogrificos estudos demograficos, tudo e as eae lo 6 apenas acrescentar uma nova camada de complexidade as andl ses con- vencionais de politica externa, identificando, assim, um modo mals pro- fundo e poderoso de encarar 0 mundo. Nao preciso $F determinista para reconhecer a vital importancia da geografia. Quanto mais nos ocuparmos dos eventos correntes, mais relevantes serao oS individuos e suas esco- Ihas pessoais; quanto mais considerarmos @ totalidade dos séculos, porém, mais central seré 0 papel desempenhado pela geografia. associada 20 sim, 2 geograficos implica restrin- ‘munir-me de ferramentas ¢ estigmatizada: afinal, 6 caso, por exemplo, do Oriente Médio. No momento em que escrevo, a regido que vai do Marrocos 20 ‘Afeganistdo atravessa uma crise de autoridade central. A antiga ordem das autocracias tornou-se insustentavel, ainda que o caminho rumo @ uma democratizacao estavel seja tortuoso. A primeira fase dessa gigan- tesca insurreigdo representou a derrota da geografia perante a poténcia das novas tecnologias de comunicacio. A televisao via satélite e as redes sociais na internet deram & luz uma comunidade tnica de manifestantes em ae fe mundo arabe — a ponto de paladinos da democracia em luga- Se ae ee verifica-se que hi aspectos 6” desenclava contd fo fcando clave gue eda eee 4 propria narrativa ~ esta, por sua vee, a eee desenvolvic? seogrfiaprofundas de cada um. Quante aaa ears © geografia de qualquer pais especifi ease Historia ico do Oriente Médio, pois, mene® Surpreso se fica com o dese: ‘ontecimentos por la. ica Cor “ desenrolar dos aconteci A alvez tenha sido s6, e : te i M part . i Um mapa da Anti P ay Por acaso que o levante teve inicio © Povoados onde hoj Buidade Classica mostra uma concentiag#° je se situa 0 pais ; ais, , «que —_ Pais, justaposta ao relative vazio caracteriza a Argélia ea Libia atuais, Debrucada sobre o Med eae 7 . a sobre o Mediterrineo proxima & Sicilia, a Tunisia foi o eixo demessfan cs a nio s6 sob 0 dominio de cartagineses @ romans woe nese ne roma 5 ioanti os, mas também sol vandalos, bizantinos, arabes medicvais ¢ 1 também sob os Cu Oana iba emerge ees nti i 2 a Tunisia € um nicleo ancestral de cviizacee (Con clas to unisia le civiizacdo. (Com relago 8 Lib regiao ocidental de Tripolitania orientou-se, 20 longo de toda 2 Hist para a Tunisia, a0 passo que a regigo de Cirenaica [Bengasi] sempre esteve voltada para o Egito,) Durante 2.000 anos, quanto mais perto de Cartago (mais ou menos onde hoje se situa a Tunis moderna), maior o nivel de desenvolvimento. Como a urbanizacao na Tunisia teve inicio ha dois milénios, a identida- de tribal baseada no nomadismo - que, segundo o historiador medieval Ibn Khaldun, seria nociva a estabilidade politica — é, portanto, mais fré- gil. Com efeito, depois que o general romano Cipiao derrotou Anibal, em 202 a.C., nos arredores de Tiinis, mandou escavar um fosso demar- cador, a fossa regia, para assinalar os limites do territério civilizado. A fossa regia continua significativa para a atual crise do Oriente Médio. Ainda visivel em determinados trechos, vai de Tabarka, no extremo Sul do litoral Noroeste da Tunisia, e segue diretamente para Leste — até Sfax, outro porto mediterraneo. As cidades para além dessa linha con- tém menos vestigios romanos e, hoje, tendem a ser mais pobres e menos desenvolvidas, com indices historicamente mais elevados de desempre- go.A cidade de Sidi Bouzid, onde a revolta arabe teve inicio, em dezem- bro de 2010, quando um vendedor de frutas e legumes ateou fogo a0 proprio corpo como ato de protesto, fica logo depois de linha de Cipido. Nao se trata de fatalismo. Estou apenas contextualizando, em termos is: a revolta arabe em prol da histéricos e geogrificos, os eventos atuai democracia comecou naquela que, historicamente, era a mais avancada sociedade no mundo arabe - aquela com maior proximidade fisica da Europa; entretanto, também foi deflagrada especificamente numa parte daquele pais que, desde a Antiguidade, foi ignorada e, por conseguinte, sofreu com o subdesenvolvimento. 7 Tal conhecimento pode agregar profundidade 20 que ja transpirou noutras partes: seja no Egito, outro nucleo milenar de civilizagdo, com tuma longa histéria como Estado, do mesmo modo como a Tunisia; ou no wail AVINGANGA DA GEOGRAFIA Peninsula Arabe, cujas tentativas de ypj, i anhosa ia ficagi rafia montan} © espraiada que ne or conseguinte, ng tem 0 efeito de enfraquecer 0 governo central e ci “ . Ee Pir em evidéncia a importincia das estruturas tribais ¢ dos grupos separatistas, ae ow a Siria, cujo intricado contorno no map’ a etnicidade e em identidades sectarias. A geograa Inisia eo “bia, o Jemen € a Siria, nem Egito apresentam coesao natural; a Libia, o men tanto ~ do que se conclui que a Tunisia e 0 Egito necessitavam de formas relativa. ia para hes assegurar unidade, 20 asso que mente moderadas de autocract y ° a Libia e a Siria exigiam modalidades mais extremas. Em contrapartida, 2 rritério de dificil governo, sob todos ‘empre fez do Iémen um tel ae ropeus do século XX Emest Gellner Témen, nticleo democratico da I sio perturbadas por uma topes! ncerra divisdes baseadas ny geografi ‘os aspectos; é 0 que 0S estudiosos € ‘ Ht ciedade “segmentar”, fruto de uma ¢ Robert Montagne chamam de so paisagem médio-oriental fendida por montanhas e pelo deserto. Pairando entre a centralizagao e a anarquia, trata-se do tipo de sociedade que, nas palavras de Montagne, caracteriza-se Por um regime que “drena a vida da regio”, ao mesmo tempo que, “devido a propria fragilidade”, mostra-se incapaz de estabelecer instituicdes duradouras. Aqui, as tribos sao fortes, « o governo central, elativamente fraco.® A batalha pela edificacio de ordens liberais nesses lugares néo pode ser apartada dessas realidades. -G ( medida que as convulsées politicas se acumulam e o mundo vai se tornando, ao que parece, cada vez mais impossivel de administrar, com uma infinidade de duvidas acerca de como os Estados Unidos e seus aliados devem reagir, a geografia proporciona uma maneira de pe- lo menos conferir algum sentido a tudo isso. Pondo-me as voltas com velhos mapas e gedgrafos ¢ pensadores geopolitics de antigamente, pretendo mapear o planeta no século XXI do mesmo modo como 0 fiz nessas fronteiras a partir do fim do século XX. Afinal, embora possamos enviar satélites para além dos limites do sistema solar — e ainda que 0s mercados financeiros e o ciberespago nao conhecam fronteiras -, 0 Hindu Kush* ainda constitui uma barrei i 4 cue ira formidavel. “NT: cordilhe Sao ocdenlhcta que corta 0 Afeganistdo © Pa | des condition Sse ertheins de Pamir, Karskor iquistao Ocidental e constitui a exten me do Himal fo m imalain — im wundo, com picosacinra dos 50 nas quais se situa! SUMARIO Agradecimentos © Autor Prefacio FRONTEIRAS. Parte I VISIONARIOS Capitulo I DA BOSNIA A BAGDA Capitulo 11 A VINGANGA DA GEOGRAFIA Capitulo III HERODOTO E SEUS SUCESSORES Capitulo 1V © MAPA EURASIANO Capitulo VA DISTORGAO NAZISTA Capitulo VIA TESE DO RIMLAND Capitulo VII. 0 FASCINIO DO PODER MARITIMO Capitulo VIII A “CRISE DE ESPAGO” Parte II O MAPA DO COMEGO DO SECULO XXI Capitulo IX A GEOGRAFIA DAS DIVISOES EUROPEIAS Capitulo x A RUSSIA E 0 HEARTLAND INDEPENDENTE Capitulo x1. A GEOGRAFIA DO PODER CHINES 24 40 62 a1 91 105 116 135 157 191 ww A VINGANGA DA GEOGRAFIA Capitulo XII 0 DILEMA GEOGRAFICO DA {NDIA Capitulo XT © PIVO IRANIANO © ANTIGO IMPERIO OTOMANO Capitulo XIV Parte III O DESTINO DA AMERICA Capitulo XV BRAUDEL, MEXICO E A ESTRATEGIA GERAL Notas indice onomastico 233 260 230 325 355 379 CAPiTULOT DA BOSNIA A BAGDA ara recuperar nosso senso de geografia, deve- mos primeiro identificar o momento da Historia recente em que 0 per- demos de maneira mais profunda, explicar por que ele definhou e es- clarecer como seu esmorecimento afetou nossos pressupostos acerca do mundo. Naturalmente, foi um processo gradual; no entanto, o momento que isolei, quando essa perda se manifestou de maneira mais aguda, foi imediatamente apés a queda do Muro de Berlim. Mesmo sendo uma fronteira artificial, cuja derrubada deveria ter acentuado nosso respeito pela geografia e pelo mapa topogrifico - bem como pelo que esse tipo de mapa poderia ter prenunciado tanto nos adjacentes Balcas quanto no Oriente Médio —, a supressiio do Muro acabou por deixar-nos cegos aos verdadeiros obstacuilos geograficos que ainda nos dividiam e aguardavam. De fato, de repente nos vimos em um mundo em que o desmante- lamento de uma fronteira criada pelo Homem na Alemanha conduziu as premissas de que todas as divisbes humanas seriam transponiveis; de que a democracia conquistaria a Africa e 0 Oriente Médio com a mesma facilidade encontrada no Leste Europeu; de que a globali- a a converter-se em jargdo — constituia nada zagdo — que nao tardari mais, nada menos que uma direcao moral da Historia e um sistema de seguranca internacional, ¢ nao o que era de fato, isto é, um mero A VINGANGA DA GEOGRAFIA de desenvolvimento. Considleremos a 5, acontecimentos: ums ideologia totalitaria acabara g, “Ipmeéstica dos Estados Unidos e da Europ, De modo geral, reinava a aparéncia do o Zeitgeist, Francis Fukuyama, ex-vice, cultural estigio econdmico ¢ guinte cadeia de ser derrotada, ea seguranga questiondvel- Ocidental era in paz. Captando com presciéncia P rotor de planejamento politico americano, havia publicado, pouce do Departamento de Estado norte. 5 meses antes da queda do Muro, lado "O Fim da Historia”, no qual proclamava que, ain. s e rebelides fossem prosseguir, @ Histéria no sentido visto que 0 éxito das democracias acerca de que sistema de 1 Assim, seria tudo uma imagem — eventual- um artigo intitul da que as guerra hegeliano havia chegado a seu termo, pusera fim 4 discussio liberais capitalistas governo seria 0 melhor para a humanidade. questo de moldar 0 mundo mais 4 nossa propria i mente, langando mao, para isso, do poderio militar americano, um re- (0, teria consequéncias negativas relativamen- meiro ciclo intelectual da era pés-Guerra Naquela época, as palavras “realista” e ‘orativas, implicando uma aversdo a de os interesses americanos, em curso que, nos anos 1991 te insignificantes. Este, 0 pri Fria, foi um tempo de ilusdes. “pragmético” eram tidas como pj intervencao humanitéria em lugares on sua definigéo mais convencional e estreita, pi melhor ser um neoconservador ou um inter ados pessoas inteligentes € de bem, que queriam apenas inter- areciam estar em risco. Era bem nacionalista liberal, consider: romper o genocidio nos Balcas. Essa explosdo de idealismo tinha precedentes nos Estados Unidos. A vitoria na Primeira Guerra Mundial desfraldou a bandeira do “wilsonia- nismo”, conceito associado ao Presidente Woodrow Wilson, que, como se veria, pouco levava em consideracio as verdadeiras metas dos aliados europeus dos Estados Unidos - e menos ainda as realidades dos Balcas e do Oriente Préximo, onde, como demonstrariam os acontecimentos da década de 1920, a democracia e a emancipagio do dominio impe- tial dos turcos otomanos acarretariam basicamente a intensificagao de a mais oes nos componentes individuais Guerra Fin que tanto ome Sie se seguiu & vitoria ocidental na te, a liberdade e a prosperidade sob wh aan cee ‘ies mercedae, Nan poucos f as bandeiras da “democracia” e dos ‘oram os que sugeriram que mesmo # DA BOSNIA A BAGDA lo supremo para as nacdes menos desenvolvidas do mund. por um mar e um deserto ea milhares de quilémetros de di ‘tadas ist 7 istancia, mas conec pela televisio.2 Nao obstante, assim como apés a Primeira e “ pi ae triunfo na Guerra Fria promoveria global que a batalha seguinte pela sobrevi- véncia, em que o mal adotaria novas mascaras. A democracia e um melhor governo despontariam na Africa, de fato, por todos os lados. Seria, entretanto, um embate longo e dificil, em que a anarquia (nos casos de diversos paises da Africa Ocidental), a insur- reigio e a crueldade pura e simples (no caso de Ruanda) mostrariam 0 rosto por periodos consideraveis nesse interim. A Africa desempenharia papel fundamental na definicdo da longa década que se estendeu de 9 de novembro de 1989 a 11 de setembro de 2001 - entre a queda do Muro de Berlim e os ataques da Al-Qaeda ao Pentagono e ao World Trade Center: um intervalo de 12 anos que viu assassinatos em massa € lo, separadas intervencdes humanitarias tardias frustrarem os intelectuais idealistas, ainda que o éxito ultimo dessas intervencdes tenha elevado o triun- falismo idealista a pincaros que se revelariam catastroficos na década iniciada apés 0 11 de Setembro. Na nova década que se seguiu a0 11 de Setembro, a geografia, fator, sem duvida, atuante nos Balcas e na Africa nos anos 1990, seguiria cau- sando danos irreparaveis as melhores intengdes americanas no Oriente Proximo. A jornada da Bosnia a Bagda, de uma campanha aérea e terres- tre limitada na face ocidental (a mais desenvolvida) do antigo Império Turco nos Balcas a uma invasio macisa (a menos desenvolvida) da Mesopotamia, deixaria patentes os limites esse proceso, granjearia respeito renovado de infantaria na regio oriental do universalismo liberal ¢, ao mapa topogrifico. > ( et principiou de fato nos anos 1980, antes da ( a pos-Guerra Fria anos ie queda do ma “de Berlim, com a retomada da expression ‘Europa Central”, o™~“\ 6 AVINGANGA DA GEOGRAFIA studioso de Oxford, Timothy , depois definida pelo jornalista ¢ Anton politico-cultural em rela £5te! al, Mitteleuropa, era mais uma ideia que a 0 ao ‘| Ash, como “uma distin Europa Centra vietico”S A Europa © ma . win uma declaragio de meméria: 0 regis fato geognifico. Const cio ‘vil ia intense a, marcada 0 europeia intensa e romantica, m: Por wma dey a de ruas de pedras e telhados de duas agua uma civiliza ciosa balburdia e evocativ: oa vinho delicioso, cafés vienenses e musica classica, de uma gentil trad. go humanista permeada por uma arte e um pensamento modernistas afiados e perturbadores. Conjurava 0 Império Austro-Htingaro e nomee como Gustav Mahler, Gustav Klimt e Sigmund Freud, eram levedados por uma profunda apreciagio de tipos como Immanuel Kant e 9 fils sofo judeu-holandés Baruch Spinoza. Com efeito, “Europa Central”, en. tre tantas outras coisas, significava 0 ameacado universo intelectual do judaismo de antes das devastagées nazista e comunista; significava de. senvolvimento econémico, com vigorosa referéncia 4 Boémia de antes da Segunda Guerra Mundial, que havia desfrutado de um nivel de in- dustrializagao mais acentuado que o da Belgica. Significava, apesar de toda a sua decadéncia e imperfeicdes morais, uma zona de relativa tole. rancia multiétnica sob 0 guarda-chuva de um Império Habsburgo cada vez menos funcional. Na fase final da Guerra Fria, a Europa Central foi capturada com concisio pelo professor de Princeton Carl E, Schorske, em seu incémodo e ferino classico Viena Fin-de-Siécle: Politica e cultu ra, e pelo escritor italiano Claudio Magris em Daniibio, seu suntuoso dldrio de viagem. Para Magris, a Mitteleuropa & uma sensibilidade que “significa a defesa do particular contra todo e qualquer programa totali- tario’. Para o autor htingaro Gydrgy Konrad e o romancista tcheco Milan Kundera, a Mittelewropa é qualquer coisa de “nobre”, uma “chave-mestra” Para a liberalizacao das aspiracdes politicas.4 Falar em “Europa Central” nos anos 1980 e 1990 era afirmar que uma cultura, em e por si mesma, compreendia uma geografia tanto Hee qe ou um tanque soviético. Afinal, elaaee valet ds exprency * ume critica a geografia da Guerra Fria, que . sob reg este Europeu” para denotar a metade da Europ! © controlada por Moscou. A Alemanha Orit” 4 Polénia e a Hungria haviam sido todas pat® ime comunista tal,a Tchecosloviquia, DA BOSNIA A BAGDA 7 da Europa Central, argumentava-se corretamente, e portanto nao de- veriam ter sido relegadas ao carcere de nagdes que eram o comunismo € 0 Pacto de Varsévia. Poucos anos mais tarde, ironicamente, quando a guerra étnica irrompeu na lugoslavia, a expresso “Europa Central” se tornaria também um elemento divisor, nao de unificago - com “os Balcas’ nao s6 desmembrados, no entender da opinido publica, da Europa Central, como agregados, com efeito, ao novo/antigo Oriente Préximo. Os Biles eram sinénimos dos velhos impérios Turco e Bizantino, com indomaveis cordilheiras que estorvavam o desenvolvimento € um padrio de vida ha décadas e séculos inferior, de maneira geral, a0 das terras dos antigos impérios Habsburgo ¢ Prussiano no coragao da Europa. Durante as décadas monocromaticas de dominio comunista, paises balcdnicos como Roménia e Bulgaria conheceram, de fato, um grau de pobreza e repressao desconhecido da metade mais setentrional, “centro-europeia’, do Império Soviético. Era, claro, uma situacao com- plicada. A Alemanha Oriental era 0 mais verdadeiramente ocupado dos Estados-satélite e por conseguinte seu sistema comunista estava entre (05 mais rigidos, enquanto a lugoslavia ~ que nao era um membro formal do Pacto de Varsévia - admitia um grau de liberdade, sobretudo nos meios urbanos, que era desconhecido na Tchecoslovaquia, por exer- plo. Nao obstante, de modo geral, as nagdes do antigo Sudeste europeu turco ¢ bizantino sofreram, em seus regimes comunistas, nada menos que sua propria versio do despoti invasio mongol, ao passo que os paise Habsburgo sofreram basicamente algo menos maligno: um misto enfa- donho, em graus variados, do populismo socialista radical. Ir da Hungria de Janos Kédér, relativamente liberal, ainda que comunista, 4 Roménia 9 de Nicolae Ceausescu era, sob esse aspecto, tipi- m frequéncia na década de 1980; assim que 4 Roménia, a qualidade dos materiais de ismo oriental, algo como uma segunda s da antiga Europa catélica dos sob o totalitarism: co. Percorri essa rota co! meu trem passava da Hungria construgéo apresentava uma brusca piora; as autoridades destrogavam minha bagagem e me obrigavam a pagar propina por minha maquina de escrever, 0 papel higiénico dos toaletes desaparecia ¢ a iluminagio diminuia. Sem divvida, os Balcas sofreram a mais profunda influéncia da 8 A VINGANGA DA GEOGRAFIA mbém do igualmente préximo Oriente Médio, Europa Central, mas tai s - ambos im- As estepes poeirentas, com seus espacos publicos dridos portados da Anatdlia -, eram caracteristicas de Kosovo e da Macedénia, ‘onde era mais dificil encontrar a sofisticada sociabilidade de Praga e Budapeste. Assim, nao foi inteiramente por acaso, € muito menos por obra exclusiva de individuos maléficos, que a violéncia irrompeu no cadinho étnico da Iugoslavia, e nao, por exemplo, nos estados uniétni- cos centro-europeus, como Hungria e Polonia. A historia e a geografia também tiveram algo a ver com isso. Todavia, ao se aterem a Europa Central como referéncia moral e politica, e nao geografica, intelectuais liberais como Garton Ash - uma das mais eloquentes vozes da década — propuseram uma visdo nao s6 da Europa, mas de todo um mundo que fosse mais inclusivo que discrimi- natério. Nesse sentido, nao s6 os Balcas nao deveriam ser relegados ao subdesenvolvimento ¢ a barbarie, mas tampouco qualquer outro lugar - a Africa, por exemplo. A queda do Muro de Berlim afetaria nao s6 a ‘Alemanha, mas, pelo contrario, conflagraria o sonho da Europa Central, ‘em toda a sua magnitude, pelo mundo inteiro. Essa abordagem huma- nista era o suprassumo de um cosmopolitismo subscrito tanto por inter- nacionalistas liberais quanto por neoconservadores nos anos 1990. Nao nos esquecamos de que, antes de celebrizar-se por seu apoio a Guerra do Iraque, Paul Wolfowitz foi um proponente da intervengao militar na Bosnia e em Kosovo — no que deu a mao, com efeito, a liberais como Garton Ash na New York Review of Books, de inclinagées esquerdistas. A estrada para Bagda teve suas origens nas interven¢des da década de 1990 nos Balas, as quais se opunham realistas e pragmiticos, ainda que a interferéncia militar na ex-lugoslavia viesse a revelar-se inegavelmen- te bem-sucedida. O anseio por salvar os muculmanos da Bésnia e de Kosovo nao pode ser divorciado daquele pela restauracio da Europa Central, tanto co- mo lugar concreto quanto como paisagem pungentemente imaginada, capaz de demonstrar, em tltima instancia, como sao a moralidade e © humanismo que sacralizam a beleza. (Muito embora 0 proprio Garton cena ep com relagio a0 empenho em ideelizar a Europ? mn nhecia o uso moral positivo a que tal idealizagao pode ria ser aplicada.) DA BOSNIA A BAGDA 9 Os escritos humanistas de Isaiah Berlin captaram o espirito intelec- tual dos anos 1990. “‘Ich bin ein Berliner’,* eu costumava dizer, querendo afirmar-me um seguidor de Isaiah Berlin”, escreveu Garton ‘Ash em uma obsedante lembranga de sua temporada na Alemanha Oriental. Agora que 0 comunismo fora extirpado e a falsidade das utopias marxistas, ex- posta, Isaiah Berlin constituia o antidoto perfeito para as teorias monistas tdo em voga, que haviam assolado a vida académica nas quatro décadas anteriores. Berlin, professor de Oxford que viveu no século XX, sempre foi defensor do pragmatismo burgués, preferindo as “conciliagdes con- temporizadoras” as experimentagées politicas.> Abominava o determinis- mo geogrifico, o cultural e todas as suas demais variagées, recusando-se a restringir qualquer pessoa ao proprio destino. Seus pontos de vista, ex- postos em artigos e palestras ao longo de toda a vida, nao raro como uma voz académica solitaria em meio ao nada, constituem a sintese perfeita de um idealismo comedido, empregado tanto contra 0 comunismo quan- to contra a ideia de que a liberdade e a seguranca estivessem reservadas somente a determinados povos, € nao a outros. Sua filosofia e o ideal centro-europeu formavam um par perfeito. Se, porém, a Europa Central de forma geral, tal como exposta por esses sibios e eloquentes intelectuais, constitui uma causa nobre, capaz. de desempenhar um papel permanente nas politicas externas de todos os paises ocidentais, como vou demonstrar, nem por isso 0 conceito deixa de enfrentar um empecilho com o qual também eu sou forgado a lidar. C Com feito, permanece nessa visio exaltada um problema real, um — seta ant, obstactilo que, no decorrer da Historia, com frequéncia converteu 0 con- ceito de Europa Central em algo tragico. A Europa Central nao existe °N. ‘Sou berlinense” - trocadilho com © célebre discurso proferido por Kennedy, ‘em junho de 1963, em sua visita a Berlim Ocidental, salientando © apoio americano } Alemanha Ocidental pouco menos de dois anos apés a, constfist® do Muro pela ‘Alemanha Oriental. O discurso € considerado um dos melhores do presidente ameri- cano e um dos pontos altos da Guerra Fria, O trecho citado é 0 seguinte: ‘Ha dois mil fanos, nfo havia frase que se dissesse com mais orgulho do que civis Romanus sum [sou cidadio romano]. Hoje, no mundo da Iiberdade, ndo ha frase que se diga com mais corgulho que Ich bin ein Berliner (...)- Todos os homens livres, onde oe que e eal cidadios de Berlim, e, portanto, como um homem livre, é com orgulho que digo: “Ich bin ein Berliner! 10 A VINGANGA DA GEOGRAFIA no mapa topogrifico (fato intuido por Garton Ash no titulo de sey proprio artigo “Does Central Europe Exist?” [‘A Europa Centra Bie te?"]).’ Aqui entram em cena os deterministas seograficos, t8o Asperog ¢ sombrios quando comparados & voz gentil de Isaiah Berlin ~ particy, larmente a voz da era eduardiana de Sir Halford J. Mackinder e seu dis. cipulo James Fairgrieve, para quem a ideia de Europa Central contém, um ‘lapso geografico fatal’. A Europa Central, dizem-nos Mackinder ¢ Fairgrieve, pertence a “zona de deformacio’,* que vai da Europa Marit. ma, com seus “interesses oceanicos”, a0 “Heartland eurasiano,** com sua Em suma, na visio de Mackinder e Fairgrieve perspectiva continental “ndo ha espago”, em termos estratégicos, para a Europa Central.8 A celebragdo da Europa Central a justificdvel indulgéncia demonstra. da pelos intelectuais liberais em relagio a ela, sugerem os escritos de Mackinder e Fairgrieve, indicam um afastamento da geopolitica — ou, pelo menos, é a expresso de um desejo nesse sentido. Contudo, a queda do Muro de Berlim nao pés fim - e nem poderia pér - a geopolitica; ape- nas introduziu-a em uma nova fase. Nao se pode extinguir tao simples. mente a forga de desejos, o embate entre estados e impérios no mapa. Explorarei, mais adiante e em maior profundidade, a obra de Mackinder, sobretudo sua tese a respeito do “Heartland”. Por ora, basta dizer que, tendo vindo a luz ha bem mais de 100 anos, ela se mostraria relevante para a dinamica nao sé da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, mas também da Guerra Fria. Reduzido a sua légica mais aus- tera, 0 pivé das duas guerras mundiais foi o projeto de dominacao, pela Alemanha, do Heartland da Eurasia, a Leste de seu territério; ao passo que a Guerra Fria girou em torno da dominagao do Leste Europeu - a borda ocidental do Heartland mackinderiano — pela Unido Soviética. Es- se Leste Europeu soviético, alids, incluia em seus dominios a Alemanha Oriental, ou seja, a Prussia historica, tradicionalmente motivada, em termos territoriais, por uma orientagdo no sentido Leste, voltada para * N.T: em inglés, crush zone, conceito oriundo da geologia. Por extensio, seria adotado, na década de 1950, pela industria automobilistica para se referir as secées do veiculo projetadas para, em caso de choque, sofrerem uma deformagio em vez de transmitir energia do impacto diretamente aos ocupantes do carro. ** N. T:regido localizada, segundo a definicdo de Mackinder, no centro da Eurésia, indo do Rio Volga ao Yangtzé e do Himalaia a0 Artico. “Heartland” significa, literalmente, “regido central”, “imago”, “coracio’ DA BOSNIA A BAGDA un © Heartland; ao passo que, na ali nga oceinica da OTAN, figura Alemanha Ocidental, ctsica por a ceainica da OTAN, figurava a comer oa par Mar de Net cw Asien Un eno sedge afo american do periodo da Guerra Fria saul B. oe, sna que “a oe que divide a Alemanha Ocidental da Oriental eis uma das mais antigas da Histéria’, tendo separado as tribos frances e eslavas jana Idade Média. Em outras palavras, pouco havia de artifi- cial na fronteira entre as duas Alemanhas; a Ocidental, segundo Co- hen, constituia um “notével reflexo da Europa Maritime’ enquanto a Oriental pertencia ao “Dominio do Poder Terrestre Continental”. Co- hen defendia a divisio da Alemanha como algo “de grande consisténcia geopolitica e necessidade estratégica”, na medida em que estabilizava a batalha perene entre a Europa Maritima e 0 Heartland.? Também Mackinder escreveu profeticamente, em 1919, que “a linha que corta a Alemanha (...) coincide com aquela que, com base em outros argumen- tos, tomamos como a demarcagao do Heartland em sentido estratégico, diferenciando-o do litoral [Coastland]’.:° Desse modo, por mais artifi- cial que fosse a fragmentacao de Berlim em si, 4 no seria possivel dizer o mesmo da diviso do pais. Cohen considerava a Europa Central uma “mera expresso geografi- ca, carente de substancia geopolitica’.!! A reunificago alem, a julgar ir ao renascimento da Europa Central, da da disputa pela Europa e, por Em outras palavras, para que por sua logica, em vez de conduzi levaria muito simplesmente 4 retoma: conseguinte, pelo Heartland eurasiano. Jado a Alemanha se inclinaria: para 0 Leste, em diregdo a Russia, com substanciais consequéncias para Polénia, Hungria demais ex-paises- -satélites; ou para o Oeste, pendendo para o Reino Unido e os Estados Unidos, consagrando uma vitoria do dominio maritimo? Ainda nao sa- bemos a resposta porque a era pos-Guerra Fria ainda se encontra em passos iniciais. Cohen e outros nado tinham condigdes de prever racia a natureza ““desbelicizada” da ‘Alemanha unificada atual, profundamente arraigada em sua ir tanto para estabilizar quanto e as circunstancias.!? Exata- seus com acu Jo a solugdes militares futuro pode contribuit continente, conform ado o centro da Euro straram. aguda consc! com sua “avers: cultura, 0 que no para desestabilizar 0 mente por terem ocup’ os alemies sempre demon pa como poder terrestre, jéncia da geografia e da jemos de sobrevivencia ~ algo que ainda anismo pa como mec: 8 ns x permitiria superar seu semipacifismo ora vigeny, Ihes vel ma Alemanha eunifi possivel que liberal ri nificada tesse em poténcia equilibradora entre 0 Oceano Atlinticg < convertess eq : 1 iano, propiciando a consolidacio de uma nova e ous Jtura centro-europeia e fornecendo, assim, lastrg estratégia resgatar, 0 que Com efeito, seria Heartland euras da interpretagao da cul eopolitico ao conceito de Europa Central? Isso daria aos alinhados ss com Garton Ash precedéncia sobre Mackinder e Cohen. Em suma, conseguiria a Europa Central, como ideal de tolerancia e sofisticacdo civilizacional, sobreviver a uma nova onda de disputas entre as grandes poténcias? Sao conflitos inevitaveis no coragdo da Europa, 4 vibrante cultura centro-europeia do apagar das luzes do século XIX, que tio convidativa parecia do ponto de vista do fim do século Xx, foi, cla mesma, a consequéncia légica de uma realidade geopolitica ¢ imperial especifica e destituida de qualquer sentimentalismo — a saber, a Austria dos Habsburgo. O liberalismo, em ultima instdncia, baseia-se no poder; um poder benigno, talvez, mas poder ainda assim. De toda forma, os intervencionistas humanitarios da década de 1990 nao ignoravam as disputas de poder; tampouco, a seu ver, a Europa Central constituia uma visio utépica. Pelo contrario, sua restauracio por meio da interrupgao da carnificina nos Balcas foi um sereno, ert- dito e congregador brado pelo emprego adequado do poderio militar ocidental, a fim de salvaguardar o significado da vitéria na Guerra Fria. Afinal, do que esta se tratou, em tiltima instancia, sendo de tomar 0 mundo seguro para a liberdade individual? “Para os internacionalistas liberais, a Bosnia converteu-se na Guerra Civil Espanhola dos nossos tempos”, escreveu Michael Ignatieff, historiador, intelectual e bidgrafo de Isaiah Berlin, referindo-se & paixio com que intelectuais como ele mesmo encaravam a questao balcanica,!3 O clamor pela agéncia humana - e a derrota do determinismo - era, em seu entender, urgente. Vem a mente, aqui, a passagem do Ulisses, de Joyce, em que Leopold Bloom lamenta as “condicdes genéricas impos- tas pela [lei] natural”: “epidemias dizimadoras”, “cataclismos catastréfi- Cos” e “insurreigdes sismicas”, Ao que Stephen Dedalus responde com @ simples e pungente afirmaco de “sua relevancia como animal racional consciente”.1¢ Sim, atrocidades acontecem, assim é 0 mundo ~ que »¢™ DA BOSNIA A BAGDA B Por Isso Precisa ser por nds aceito dessa forma. Sendo racional, o ser humano tem, em ultima instincia, a capacidade de sublevar-se contra 0 sofrimento e a injustiga. Assim, tendo a Europa Central como inspiragao, 0 caminho incli- nou-se para Sudeste — primeiro para a Bosnia, depois para Kosovo e, em seguida, entao para Bagdé. Naturalmente, muitos dos intelectuais que apoiaram a intervencdo na Bésnia se oporiam aquela praticada no Iraque ~ ou, no minimo, se mostrariam céticos a seu respeito. Os neoconservadores e outros, contudo, nao se deixariam dissuadir — pois, como veremos, os Balcas nos apresentaram uma concepcao de inter vencionismo, por mais tardiamente que tenha ocorrido, que pouco cus- to teve em termos de baixas militares, acalentando em muitos a ilusiio de que o triunfo indolor seria, dali por diante, o futuro da guerra. Os anos 1990, com suas intervencdes extemporaneas, foram, nas doloridas palavras de Garton Ash, andlogos a “década baixa e desonesta” de 1930, tal como a descreveu W. H. Auden.!5 Verdade, mas noutro sentido fo- ram também faceis demais. Bp CL epoca, na década de 1990, de fato parecia que a histéria e a geografia haviam erguido suas implacaveis cabecas, Menos de dois anos apés a queda do Muro, com todos os reflexos a-histéricos e universalis- tas que a ela se seguiram, os veiculos de comunicagao mundiais viram-se de repente imersos nas ruinas fumacentas, montanhas de entulho e me- tal retorcido de cidades com nomes de dificil pronuncia, situadas nas zonas de fronteira dos antigos impérios austriaco e turco ~ a saber, na Eslavénia e na Krajina, testemunhas recentes de atrocidades que nao eram vividas na Europa desde o nazismo. De etéreas contemplagdes da unidade global, as conversas entre as elites voltaram-se, entao, para complexas historias locais que se desenrolavam a apenas algumas ho- ras de carro, cruzando a planicie da Panénia, de Viena, no coracio da Europa Central. Segundo o mapa topografico, o Sul e o Leste da Crodcia, nas cercanias do Rio Sava, constituiam 0 extremo Sul da vas- ta planicie europeia, onde se prenunciava, para além das margens do rio, o emaranhado de cordilheiras conhecido em seu conjunto como os Balcas; o mapa mostra uma ampla e plana area verde que se estende da ww A VINGANCA DA GEOGRAFIA a Rus: Sul do Sava, fica amarela e pas: Fy s Pireneus aos Urais) e, abruptamente, na mar; C1 Frang: 2 (dos Pireneus aos ) p gem a marrom, indicando um terreno mais sim prossegue, na diregdo Sudeste, adentrando a Essa regido, junto ao sopé das montanhas, era a zona em que se sobrepunham e deslocavam, num constante ir e vir, as fronteiras © os exércitos austro-habsburgo e turco otomano. Aqui acaba a cristan- dade ocidental e principia o mundo da ortodoxia oriental e do Isla; aqui a Croiicia se confronta com a Sérvia, alto ¢ irregular, que a Asia Menor, io de Krajina, palavra que significa “fronteira” em servo-croata, zona militar estabelecida pelos austriacos, no fim do século XVI, contra a expansio turca, atraindo para seu lado da fronteira croatas ios, refugiados do despotismo do sultanato otomano. Assim, a assumiu um carater étnico misto que, com o desaparecimento da circunscrigdo imperial da Austria, apés a Primeira Guerra Mundial, experimentou a evolugio de identidades uniétnicas. Embora sérvios e croatas permanecessem unidos, no entreguerras, sob 0 reino dos sérvios, Croatas e eslovenos, dividiram-se e atiraram-se As gargantas uns dos ou- tros durante a ocupagio nazista, quando um Estado-fantoche croata instituido pelos nazistas massacrou dezenas de milhares de sérvios em campos de concentra: erauma © sérvi regido . Depois de novamente reunidos soba do autoritario regime comunista de Tito, 1991 assistiu a investida de tropas sérvias carapaca © colapso da Iugoslvia em para além de suas fronteiras, ai promover uma limpeza étnica de croatas. Mais tarde, quando estes, Por sua vez, retomara: adentrando Eslavénia e Krajina, para Im a regio, U territério de 4 Sérvia, 0 conflito se expandiria onde centenas de milhares encontrariam morte certy Aqui havia historia © geografia de sobra, mas 0s jomalistas « rete. lectuais envolvidos optaram, em sua maior Parte, por ignora-las — no que, sem duvid: 4 populagio de etnia sérvia local buscaria refiigio om se origem. Das fronteiras da Croicia com para a Bosn tinham uma dose de razio, uma boa do. Primeiro, foi o puro horror, e a repulsa. E, de nov se de razao, ©, la estava Garton Ash: Que ligdo tiramos dessa década terrivel na extugostavign (.) Aprendemos que a natureza humana n&o mudo ropa do fim do século XX segue t8o capaz de p, to no Holocausto de meados do século. (...) No U. Que a Eu. arbarie quan. SSOS Mantras DA BOSNIA A BAGDA 1s Politicos ocidentais, no apagar das luzes do século XX, foram “integragao’ “multicutturalismo” ou, se formos um pouco mais antiquados, “caldeirao”. A ex-lugostavia foi o contrario de tudo isso — como uma gigantesca “desnatadeira’, uma espécie de tubo girat6rio onde se separam creme de leite e manteiga. (...) Eis aqui povos que foram selvagemente apartados pela forga centrifuga do grande aparelho (...), enquanto o sangue escorria de um filtro em sua base," Apés a repulsa, sobrevieram as acusagées de “apaziguamento” por parte do Ocidente - apaziguamento, neste caso, de Slobodan Milosevic, um maligno comunista que, a fim de assegurar sua sobrevivéncia politi- ca ea de seu partido apés a queda do Muro, mantendo, assim, suas vilas e cabanas de caca ¢ outros beneficios do poder, ergueu a bandeira do mais fanatico nacionalismo sérvio e deflagrou uma espécie de segundo Holocausto. O apaziguamento de Hitler em Munique, em 1938, logo se converteu na principal analogia dos anos 1990. Com efeito, o receio de uma nova Munique nio era novidade. Fora um elemento subjacente a decisaio de defender o Kuwait da agressio de Saddam Hussein em 1991. Se nao rechagassemos Saddam no Kuwait, ele invadiria a Arabia Saudita, assumindo, entio, 0 controle do abasteci- mento global de petréleo e mergulhando a regido em trevas indiziveis em termos de direitos humanos. Todavia, foi o assalto sérvio 4 Croacia e, em seguida, 3 Bésnia, entre 1991 ¢ 1993 - e a incapacidade do Oci- dente de responder -, que fez “Munique” ganhar peso no vocabulario internacional. A analogia com a cidade alema tende a florescer apos um periodo de paz longa e préspera, quando os 6nus da guerra encontram-se distantes 0 suficiente para adquirir contornos de abstracao. Era 0 caso nos anos 1990, quando a lembranca, entre os americanos, de uma suja guerra ter- restre na Asia, entdo com mais de duas décadas de idade, j4 se esvane- cera o bastante. “Munique” é uma questo de universalismo, de cuidado para com o mundo e a vida alheia. A palavra seria ouvida com frequén- cia em reacio a incapacidade de impedir, em 1994, 0 genocidio em Ruanda; mas atingiria um pico febril na escalada que levaria as tardias, porém eficazes, intervenes militares da OTAN na Bésnia, em 1995, ¢ AFIA ca DA GEOGR 16 A VINGANG 1999, Os opositores 2 contraria do Vietna; visto, porém, que nao cheyoy eiro impasse, foi nos Balcas, na década de 1999 foram exorcizados de uma vez por todas - ervencao nos Balca: em Kosovo, em interveng: ils tentaram desfraldar a analogia aurar um verdad ase insti a que os fantasmas do Vietna f i ‘ou assim se pensou & escreveu na €poca. / © poderio militar, tao abominado na época do Vietna, tornaya. animo mesmo de humanitarismo. “Uma guerra contra 9 genocidio deve ser travada com furia, pois é uma faria que se esta com- batendo”, escreveu Leon Wieseltier, editor literario da revista The New Republic. "Quando 0 objetivo é impedir 0 genocidio, o uso da forga nio € 0 ultimo recurso, mas 0 primeiro”. E prosseguiu, invectivando contra a necessidade de estratégias de saida em intervengdes humanitérias: se agora sin Em 1996, Anthony Lake, seu [do Presidente Bill Clinton] ator- mentado e timido consultor de seguranga nacional, chegou a ponto de estabelecer uma “doutrina da estratégia de saida’: “Antes de enviarmos nossas tropas para um pais estrangeiro, devemos saber como e quando vamos tiré-las de la”, Lake fez da onisciéneia prerrequisito para o uso da forga americana. Ora, a doutrina da “estratégia de salda” encerra um equivoco com relag&o a natureza da guerra e, em termos mais amplos, da pro- pria ago histérica. Em nome da cautela, nega a contingéncia das quest6es humanas. Afinal, 0 conhecimento do fim ndo nos 6 concedido jé no principio."® Como exemplo, Wieseltier citou Ruanda, onde 1 milhao de tatsis sucumbiu em um holocausto em 1994: qualquer atoleiro militar que os ocidentais viessem a meter-se, caso houvessem interferido pa impedir a carnificina, sem duvida seria preferivel ao que acontect Wieseltier - que, como Garton Ash, foi uma das mais formidavels € moralmente persuasivas vozes da década — escreveu, na época, & luz 4 frustracio que sentiu com relagdo a limitada e tardia guerra aérea tr vada pela OTAN a fim de libertar os albaneses mugulmanos de Kose’? das politicas de expulsio e exterminio de Milosevic, Os ataques #¢¢° tiveram as aldeias e as cidades sérvias como avo, quando 0 que © & ia necessiri, segundo os intervencionistas humanitérios,era libero cidades kosovar com tropas de infantaria, O titubeante estilo bélico # DA BOSNIA A BAGDA ” Clinton acumpliciow-se com um sofrimento em larga escala. “A fungao eo idealismo » escreveu Wieseltier, “foi reduzida a socorro ¢ resgate, as consequéncias da catastrofe. Para onde deveriamos ter levado tiros, ago- ra levamos cobertores’. Clinton, disse ele, descobrira uma espécie de guerra “em que 08 americanos nio morrem, uma (.) guerra covarde, movida a tecnologia de alta precisio, que deixa imperturbados consci- éncias e resultados eleitorais”. E previu: “Essa era de imunidade nao vai durar para sempre. Cedo ou tarde, os Estados Unidos terdo de enviar seus soldados para (...) algum lugar onde sofrerao ferimentos ou morte. O que fara a diferenca sera se a causa é justa, e ndo se é perigosa.”"? Com efeito, a invasio do Iraque comegou a despontar como causa nos anos 1990, quando as Forgas Armadas dos Estados Unidos eram consi- deradas invenciveis contra as forcas da histéria e da geografia, desde que delas se lancasse mao a tempo e a plena forca, isto é, com botas no chao. Foram os idealistas que clamaram, com paixio e em alto e bom som, pelo emprego da forca na Somélia, no Haiti, em Ruanda, na Bésnia e em Kosovo, ainda que realistas como Brent Scowcroft e Henry Kissinger, ca- da vez mais ridicularizados como impiedosos, defendessem a contengao. ‘Ainda assim, na verdade, os anos 1990 foram uma década menos de poder militar em geral que especificamente de poderio aéreo. As aero- as foram cruciais na expulsio das tropas iraquianas do Kuwait em nautic: nesse caso, facilitou muito a guerra de 1991 — se bem que a geografia, medida em que as operacdes foram conduzidas sobre e de chuvas esparsas. Passados quatro anos, 0 buiria para o fim da guerra na Bésnia; ¢, garantiria a vitria sobre alta tecnologia, na um deserto homogéneo poderio aéreo também contril apesar de todas as suas evidentes limitagées, Milosevic em Kosovo, mais de quatro anos depois. Os refugiados de Ibanesa acabariam voltando para suas casas, enquanto Milosevic wuecido a ponto de ser derrubado do poder no ano seguinte, em 2000. “Nao encaramos montanhas”, era 0 mote que sintetizava a Exército norte-americano em enviar soldados para foi que, uma vez assegurado 0 hoso bastante etnia al via-se enfraq resisténcia inicial do a Bésnia e Kosovo. O que se viu, poem, dominio dos ares, o Exército encararia o terreno montan! bem. A geografia havia, de fato, mostrado a cara nos Balcas, gas aéreas logo a haviam_ sobrepujado. Vieram entio os jatos de com- bate da Aeronautica e da Marinha americanas patrulhando as zonas de mas as for- A pA GEOGRATI INGANGA 18 av antendo Saddam em sua toca ; ms a0 lo jo adres iraquianas, MY! Op exclusio aérea intd) : | Asterming sme HO de xelu Fea e ainda depois, Dai determinados segmentos da lite " toda a década e 3 | eepeeeee erem se delyad.. nbraddos com © poderio militar americano, terem se deixado inva sombra 0 moral contra as administragdes Geoy, Re por certo senso de indigns H.W. Bush e Clinton, por? su : re de milhao de pessoas do genocfdio bales Jo terem feito uso de suas for de salvar um q nao falar no 1 mila ‘0 de mortos em Ruanda). Essa mentalid, lade, pelo ndimento de alguns, podia induzir a alguma temeridade+ menos no entet como de fato aconteceu ~ te, ao desmonte parcial da a do respeito perdido pela geografia ao longo dos anos 1990. Esse perio. do viu os mapas, em virtude do poder aéreo, serem reduzidos a duas © que, por sta vez, levaria, na década seguiy logia de Munique e a restituicio de parte dimensées, No entanto, 0 mapa tridimensional nao tardaria a voltar 3 cena, nas montanhas do Afeganistio ¢ nas traicoeiras vielas do Iraque, c . 6 m 1999, expressando um sentimento cada vez mais recorrente entre os intelectuais liberais, Wieseltier escreveu: O mais notavel da recusa de Clinton de incluir, entre seus obje- tivos de guerra, a derrubada desse vildo [Slobodan Milosevic] é © fato de ele mesmo ter herdado as consequéncias da recusa de seu predecessor em adotar a remogao de outro vilao como uma de suas metas de guerra, Em 1991, meio milhdo de sold dos americanos viu-se a umas poucas centenas de quilémetios de distancia de Saddam Hussein, e George Bush néo ordendY que marchassem sobre Bagda. Seus generais receavam 4° houvesse mortos, tendo acabado de levar a cabo uma gue"? Sem uma baixa sequer. Também eles ressaltaram a “integride® territorial” do Iraque, como se todo o sofrimento decorrente Colapso do Estado pudesse ser comparado ao sofrimentoinfidr 8 do 20s curdos, no Norte, ¢ aos xiitas, no Sul, pela sobrevie"™ do Estado.2° dads em ing 'm inglés, adventurism ~ termo Pe Politcas ou %5 04 de ativismo, uma posturs oat : ejorativo usado para descrever em 3 atitudes imprudentes ou irresponsive DA BOSNIA A BAGDA 9 Era como se as fronteiras imaginarias da Europa Central fossem ili mitadas, estendendo-se até a Mesopotamia. No fim das contas, a ver- dade seria outra, naturalmente; mas, em 2006, no auge do massacre sectirio no Iraque que se seguiu ao colapso do Estado ~ e cuja violéncia talvez. rivalizasse com aquela perpetrada por Saddam contra o pais -, Wieseltier teve a delicadeza de confessar certa “ansiedade com relagdo a arrogincia”, e admitiu nao ter nada de titil a dizer, ainda que continu- asse a ser um defensor da guerra. Ele no foi um daqueles partidarios da invasdo incansavelmente empenhados em se justificar por escrito." Também eu fui favoravel a Guerra do Iraque, por escrito e como parte de um grupo que insistia em que o governo Bush optasse pela invasio.” Impressionara-me sobremaneira o poder militar americano nos Balcas ¢, dado que Saddam havia promovido o assassinato direto ou indireto de um nimero de pessoas maior que Milosevic e consti- tuia uma ameaca estratégica, a respeito de quem se acreditava deter armas de destruicio em massa, na época me pareceu que a interven- Gao era justificada. Como jornalista, estava também envolvido demais com meu tema; tendo atuado no Iraque nos anos 1980 e constatado quanto o Iraque de Saddam era mais opressivo que a Siria de Hafez al-Assad, eu era um ferrenho defensor da derrubada de Saddam. Mais tarde, talvez se alegasse que a preocupagio com Israel e o resguardo de sua expansio territorial eram a motivacao de muitos dos partidarios da guerra;23 todavia, a julgar por minha experiéncia lidando, nessa época, ndo s6 com neoconservadores, mas também com alguns liberais, Bosnia e Kosovo tiveram mais peso em sua maneira de pensar que Israel.2* As intervengdes nos Balcas, na medida em que pagaram dividendos estra- tégicos, pareciam justificar a abordagem idealista da politica externa. A intervengao de 1995 na Bosnia transfigurou o debate de “Deveria a OTAN existir?” em “Deveria a OTAN se expandir?”. A guerra de 1999 em Kosovo, tanto quanto 0 1] de Setembro, acabou permitindo a ex- pansao da OTAN no Mar Negro. Para uns poucos idealistas, o Iraq paixdes dos anos 1990. Representou, ainda que talvez de maneira in- consciente, ou a derrota da geografia ou sua total desconsideragao, tan- tos foram os deslumbrados com o poderio militar americano. A década de 1990 foi uma época em que paises da Africa Ocidental como Libéria ue representou a continuagao das 20 A VINGANGA DA GEOGRAFIA ¢ Serra Leoa, apesar da violéncia em que se encontravam imersos ¢ de seu desenvolvimento institucional bastante inferior a0 do Iraque, eram considerados candidatos criveis a democracia. Foi, contudo, a forga mi- litar, em particular a aérea, a mao oculta que permitiu que as ideias uni- versalistas ganhassem preponderncia tio esmagadora sobre o terreno e a experiéncia histérica de seus habitantes. Munique também entrou em aco na abordagem do dilema de Saddam Hussein apés o 11 de Setembro. Embora os Estados Unidos tivessem acabado de sofrer um ataque dentro de seu territério com- paravel a Pearl Harbor, a experiéncia do pais com guerra no solo fora, Por um quarto de século, minima, ou pelo menos nao desagradavel. Ademais, Saddam nao era um ditador qualquer, mas um tirano dire- tamente oriundo da antiguidade mesopotamica, que, no entender de muitos, igualava-se a Hitler ou Stalin e, acreditava-se, abrigava armas de destruico em massa. A luz do 11 de Setembro ~ 4 luz de Munique -, a Historia jamais nos perdoaria se nio tomassemos alguma atitude. Quando Munique nos levou mais longe do que deveriamos, a conse- quéncia légica foi aquela outra analogia, que tinhamos chegado a crer que fora derrotada: o Vietna. Assim comegou o ciclo intelectual poste- rior & era pés-Guerra Fria. WT. (CVV esse ciclo subsequente, que coincidiu aproximadamente com a primeira década do século XI ¢ as arduas guerras no Iraque € no Afeganistao, os termos “realista” e “pragmatico” tornaram-se marcas de respeito, indicando aqueles que desde o principio se mostraram céticos em relacio aventura americana na Mesopotimia, a0 Passo que “neo- conservador” assumiu conotacio risivel. Se, nos anos 1990, diferengas étnicas e sectarias nos mais longinquos cantos do mundo eram tidas como obstaculos que as pessoas de bem deviam empenhar-se em su- Perar ~ a fim de escapar ao rétulo de “fatalistas” ou na década seguinte esses édios Passaram a ser consi desaconselhavam a agdo militar; ou assim deveriam Se tivermos de apontar um momento em que se tornou inegavel que a analogia do Vietnd havia sobrepujado a de Muni ique, nao havera data melhor que 22 de fevereiro de 2006, quando um atentado a bomba “deterministas” -, iderados sinais que ter sido entendidos. DA BOSNIA A BAGDA a cometido por extremist sunil a . ea unitas da Al Qaeda contra a mesquita xiita ee eae conflagrou um furor de atrocidades entre diferentes comunidades iraquianas, que os militares americanos foram incapazes de conter, De rey pazes de conten De repente, nossas tropas terrestres foram vistas como impotentes em meio § > ft forgas do caos e de édios primordiais. © mito da onipoténcia militar americana, nascido no Panama e na Primeira Guerra do Golfo, ligeitamente enfraquecido na Somilia e de- pois restaurado e polido no Haiti, na Bésnia e em Kosovo, ficaria por algum tempo estilhagado, junto com o ideslismo que o acompanhava. Enquanto Munique diz respeito ao universalismo, a ideia de cuidar do mundo e da vida de pessoas distantes, 0 Vietnd tem carater domés- tico, Trata-se do cuidado para com os nossos, apés os 58 mil mortos naquele conflito. O Vietna recomenda que, para evitar a tragédia, é pre- ci ‘0 pensar de forma trigica; e v8 com desdém o fervor incessante, que sugere grandes desastres. Com efeito, foi um senso idealista de missio que enredou os Estados Unidos naquele conflito no Sudeste Asi co, para comecar. © pais estava em paz, no auge de sua prosperidade pés-Segunda Guerra, enquanto os comunistas vietnamitas - 0 mais implacivel e determinado grupo produzido pelo século XX ~ massa- craram mais de 10 mil de seus préprios cidadaos até o desembarque das primeiras tropas regulares americanas. Que guerra poderia ser mais A geografia, a distancia e nossa propria experiéncia horrenda nas ‘em outro conflito irregular,* seis décadas antes, na virada justa? selvas filipinas do século XX, eram as tiltimas coisas que as pessoas tinham em mente ao entrarmos no Vietna. que ganha corpo apés um trauma nacional - O Vietna é uma analogia pois 0 realismo nao desperta entusiasmo, e s6 se faz respeitar depois que sua aparente auséncia leva dada sit basta olhar para o Iraque, onde sucut mais de 30 mil foram gravemente feridos) e talvez centenas de milhares de iraquianos morreram, a um custo de mais de USS1 trilhao. Ainda e torne uma democracia semiestivel e um aliado implicito suagdo a uma piora evidente. De fato, mbiram quase 5 mil americanos (e que o pais s Tro autor veferese & guerra de guerrilha enfrentada pelos Estados Unidos nas Filipinas entre 1899 ¢ 1902, depois de o arquipéago thes "et sido cedido pela Espanha, junto com Porto Rico e Guam, em consequéncia de sua derrota na Guerra Hispa- no-Americana. N A VINGANGA DA GEOGRAFIA preco pago a esta altura chegou a patam; as Estados Unidos, 0 a a ‘ i se observou, é sinceramente dificil en, ACS tig exes I olapou um el XCr gar valor ético dessa conquista. O Iraque solaps lemento-chaye, entender de alguns: a ideia de que a mera projecao do poderig ameri esultado moral. Ja outros entenderam que ° ivos que, como j cano sempre obtinha um r uso irrefreavel de forca por parte de qualquer Estado, mesmo uma i mocracia amante da liberdade como a América, nao é necessariamente virtuoso. Concomitantemente ao novo respeito pelo realismo, despontoy um interesse renovado pelo fildsofo seiscentista (século XVII) Thomas Hobbes, que exalta os beneficios morais do medo e considera a anarquia violenta a maior ameaga a sociedade. Para Hobbes, o medo da morte vio. lenta é a pedra angular ao egocentrismo esclarecido. Mediante 0 estabe- lecimento do Estado, o ser humano substitui o temor da morte violenta— um receio mituo e abrangente - por outro s6 enfrentado por aqueles que transgridem a lei. Sao conceitos de dificil entendimento para a classe média urbana, que ha muito perdeu qualquer contato com a condicio natural do homem.* Todavia, a violéncia medonha vista na desintegracio do Iraque, que, diferente de Ruanda e da Bésnia sob alguns aspectos, nio foi fruto de uma maquina mortifera organizada de forma singular, mas da propria ruptura da ordem, permitiu a muitos de nés imaginar o estado humano original. Assim, Hobbes foi o filésofo eleito desse segundo ciclo do periodo pés-Guerra Fria, assim como Berlin fora o do primeiro.° Eis, pois, para onde a era pés-Guerra Fria nos trouxe: ao reconheci- mento de que talvez 0 mesmo totalitarismo que combatemos nas d& cadas subsequentes & Segunda Guerra Mundial seja, em umas poucis circunstancias, preferivel a uma situago em que nao haja ninguém 1° Poder. He coisas piores que 0 comunismo, descobrimos, e no lraque ‘Mos nés que as provocamos, Di one . - ee igo isso como alguém que apoiou 4 sub: tituicdo do regime, “H CE m marco de 2004, serto do Kuwait, Havia Ue, com o resto da 1a Di jo do de" » eu estava na base de Udairi, no meio 4° as : a ™e incorporado a um batalhao de fale 'visdo dos Fuzileiros Navais, estava pronto P DA BOSNIA A BAGDA 2 Sta sion italy eae Se teter * -Xército, Era um mundo de barracas, pale- tes, contéineres de carga e refeitorios. Longas filas de caminhdes de sete toneladas e Humvees* estendiam-se pelo horizonte, todos a caminho do Norte. A escala épica do envolvimento americano no Iraque era ime- diatamente evidente. Irrompeu uma tempestade de areia. Soprava um vento gélido. Havia ameaca de chuva, Veiculos quebraram. E ainda nem haviamos comegado a jornada de algumas centenas de quilémetros até Bagda — que, poucos anos antes, os que consideravam a derrubada de Saddam Hussein uma continuagdo natural da derrubada de Slobodan Milosevic haviam desdenhado como de facil realizacdo, Vastos labirin- tos de cascalho recendendo a petréleo e gasolina anunciaram o primeiro posto de caminhées construido por empreiteiras, um dos varios ergui- dos ao longo do caminho para fazer a manutengao das muitas centenas de veiculos a caminho do Norte e alimentar os milhares de fuzileiros. Motores e geradores roncavam na escuridao. Foram necessarios dias da mais complexa logistica - envolvendo armazenamento e transporte de tudo, de garrafas de 4gua mineral a refeigdes prontas e kits de ferramen- tas — para transpormos 0 deserto hostil e chegarmos a Faluja, a Oeste de Bagdé. Apenas algumas centenas de quilémetros.”” E essa foi a parte facil e sem violéncia de uma ocupagao militar americana que se esten- deria por todo o pais, Sem davida, seria um erro sugerir que 0 terreno fisico perdera a relevancia. hamados “Veiculos Automéveis Multifungdo de Alta Multipurpose Wheeled Vehicle, sio conhecidos pela unciada, Humvee. +N. Tos utilitérios militares Mobilidade, em inglés High Mobility sigla HMMWY, ou, em sua forma pron

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