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A PARTIR DA INTENÇÃO

CRÓNICA DE ALBERTO MARTINS

Ensinar a criança a dizer “não”


Hoje em dia, como ensinar à criança a indispensável competência de dizer que
não com a consciência tranquila?

É um direito humano básico escolher o que acontece com o nosso corpo.

Um direito que muitos pais e adultos se esquecem que as crianças, tal como eles,
também têm. 

Geralmente quando escrevo sobre este tema que adoro, pois são muitas as
pessoas que se recusam a olhar para a verdadeira ligação entre as coisas.

Culturalmente tem sido difícil compreender o consentimento quando se trata de


crianças. 

Agarramos as crianças para limpar o nariz que anda a pingar, pois é nojento e ela
está praticamente a comer o ranho. Limpamos a boca suja à força, pois não fica
bem andar assim. Seguramos a criança que está a espernear para poder mudar a
fralda cheia de cocó. Obrigamos a vestir o casaco porque está frio. Enfiamos
mais uma colher de sopa na boca, por entre os lábios cerrados, pois a criança
quase não comeu nada. Mexemos naqueles lindos caracóis do bebé que acabamos
de conhecer sem pedir permissão. 

Ufa...! Como conseguir fazer estas coisas todas desafiantes, e por vezes
bem-intencionadas ... e ainda termos de nos preocupar com o consentimento ... de
um bebé que nem sequer fala?! 

A questão é, se quisermos mudar o entendimento do mundo sobre o


consentimento, se quisermos educar filhos e filhas que tenham coragem de dizer
não quando a sua integridade é comprometida e se quisermos educar filhos e
filhas que saibam respeitar os nãos dos outros, então, este trabalho começa em
casa, pois “Em casa de pais, escola de filhos”1. 
Quando as crianças aprendem com os adultos mais próximos que são elas as
donas do seu corpo conseguem integrar esta mensagem. Quando se encontram
numa situação onde não se sentem seguras, fisicamente ou emocionalmente, vão
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saber que têm o direito de dizer que não e que os seus nãos vão ser ouvidos.
Dizer que não se sentem bem com uma certa situação, não se transforma num
drama, mas numa coisa natural a fazer. Percebem que o seu valor e o carinho, o
amor que o outro sente por eles não são postos em causa por um “não quero”!
Para a criança ter esta segurança para conseguir dizer não numa situação
insegura, tem de ter tido treino a dizer não em situações com adultos em que
confiam e que sabem ouvir os seus nãos. Isso não quer dizer que a criança vá ter
sempre tudo o que quer. Que vai andar de fralda suja um dia inteiro, que só vai
comer bolachas com chocolate porque não quer a sopa ou que nunca vai limpar o
nariz. Quer dizer que elas é que mandam no seu corpo e que nós estamos aqui
para os ajudar nesse processo. 

Quando temos a intenção de educar para o consentimento, não só ensinamos a


criança a dizer que não com a consciência tranquila, como também ensinamos à
criança que:

É possível distinguir o que é confortável e o que é desconfortável para ela.


É possível dizer não e continuar a respeitar o outro.
O seu valor próprio e o amor que recebe, não depende de satisfazer os desejos
dos outros.
Pode sentir-se à vontade para dizer o que quer e o que não quer, o que precisa e o
que não precisa, o que funciona e o que não funciona para ela.
Quando o corpo “fala”, é importante ouvir e que pode confiar na mensagem que
o corpo está a dar;
Quando alguém diz  “pára”  ou  “stop”  ou  “não quero”  é para respeitar
imediatamente. 
Ensinamos sobre o consentimento através do nosso comportamento e das nossas
palavras. As aprendizagens que a criança faz dependem da forma como
comunicamos. 

Se a criança não quer comer, muitos ficam preocupados. Talvez possamos dizer
coisas como: 
“Come só mais três colheres, uma por cada ano de idade.”. 
“Se não comeres, a avó fica triste! Ela esforçou-se tanto para fazer esta papinha
tão boa para ti.” 
“Se não comeres, não jogas mais!”

Se a criança não quiser dar um abraço ao tio, talvez os adultos à volta digam: 
“Ohhh, não sejas mau... dá um abraço ao tio!” ;
“Se não deres um abraço, o tio fica muito triste!”; 
“Se não deres um abraço ao tio, nunca mais podes ficar cá a brincar.”

Se a criança se recusar a vestir um casaco, os adultos talvez digam coisas como: 


“Está muito frio! Veste o casaco que ficas doente!”; 
“Se não vestires o casaco, não brincas mais!”; “Comprei este casaco tão lindo
para ti e agora não queres usar... vou ficar muito triste.”
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O que a criança aprende com este tipo de comunicação (que eu sei que é bem-
intencionada) é que ela deve ignorar os sinais do seu próprio corpo. E que é mais
importante e mais seguro satisfazer os outros do que ouvir os seus próprios nãos. 

Alternativas aos exemplos acima poderiam ser: 

“Diz-me lá, como é que tu sabes que estás satisfeito?


Onde é que sentes isso?
O que é que o teu corpo te está a dizer?”;
ou 
“Parece-me que estás com falta de apetite, estou com receio de ir ao parque e
depois lá ficares com fome e isso estragar a brincadeira. O que achas de tentar
comer mais um bocadinho?” 
“Não te estás a sentir à vontade para dar um abraço ao tio? Vamos inventar
uma outra forma de nos despedirmos com a qual te sintas bem?”
“Brrrr... eu estou cheia de frio, mas tu pareces um Viking! Se, entretanto,
precisares, está aqui o teu casaco.” 

Para quem é mais resistente e acredita numa forma mais autoritária de


parentalidade, isto provavelmente vai soar estranho à primeira. É provável que haja
uma preocupação com “permissividade”. Pode ir buscar uma série de argumentos
para justificar a sua maneira de ver as coisas e pode ser bem provável que tenha
exactamente a mesma intenção do que nós, que acreditamos no direito ao respeito
pela integridade física e emocional das crianças também. No entanto, na visão
autoritária falta uma visão mais ampla e mais a longo prazo. Não é apenas a
intenção que conta. Temos de avaliar se estamos a conseguir estar alinhados com a
nossa intenção, avaliando o impacto do comportamento que temos para colocar a
intenção em prática. Se a intenção for ensinar a criança a defender a sua integridade
física e emocional e respeitar a integridade física e emocional dos outros, então,
obrigar, mandar, ameaçar, subornar, premiar e castigar não se adaptam à educação
da nova geração.

1
“Em casa de pais, escola de filhos”, expressão tradicional

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