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Osasco, tinta vermelha e fotojornalismo


Tuca Vieira (http://revistazum.com.br/radar/chacina-osasco-barueri/?autor=Tuca+Vieira)
Publicado em: 09 de setembro de 2015
Curtir 1,3 mil Tweetar
(http://revistazum.com.br/wp­content/uploads/2015/09/MORTES_OSASCO_BURUERI.jpg)

Bar onde ocorreu a chacina em Osasco, SP, 13 de agosto de 2015. © Avener Prado/Folhapress

O jornal já não chega mais por baixo da porta. A assinatura eletrônica me obriga a ligar o computador, acessar o site, inserir
dados e senha para enfim ver na tela uma reprodução exata da versão impressa. Embora de difícil navegação, é reconfortante
saber que encontrarei ali a mesma coisa que na banca da esquina; algo me sugere que alguém deve pensar duas vezes antes de
imprimir, diferentemente do que se vê no mundo virtual, onde tudo é efêmero e cambiante.

Foi dessa maneira que entrou em minha casa uma das fotografias mais impressionantes que vi nos últimos tempos,
estampada na capa da Folha de S.Paulo, de autoria de Avener Prado. Ilustrava, no alto da primeira página – o lugar mais
nobre de um jornal –, a notícia da terrível chacina ocorrida na madrugada de 13 de agosto na grande São Paulo, quando
dezenove pessoas foram brutalmente assassinadas e cinco ficaram feridas num crime ainda sem solução. As suspeitas recaem
sobre policiais militares que teriam agido por retaliação à morte de um policial na região.

Na imagem, três pessoas limpam o chão coberto de sangue num bar de Osasco. Nas bancas, o impacto deve ter sido ainda
maior, dada a enorme quantidade de tinta vermelha exigida pela foto ao ser impressa.

Reparem nesse espaço trapezoidal que se afunila como uma armadilha: o piso de azulejos, o balcão de tijolos pintados, a
parede de cimento aguardando uma pintura ou revestimento, a pilha de caixas de cerveja que, como um paredão, bloqueia o
caminho para quem quisesse tentar fugir. O local reúne elementos exemplares da arquitetura popular brasileira recente,
orientada por praticidade, improviso e baixo custo, presente nos bares da periferia, nas paradas de ônibus, nas igrejas
evangélicas e nas delegacias de polícia. Desprezado pelos arquitetos, o piso frio de azulejos tem pelo menos duas qualidades
inegáveis: é barato e fácil de limpar.

(http://revistazum.com.br/wp­content/uploads/2015/09/6FA01SAK0815_0004.jpg)

Agora vejam esse homem meio índio, meio negro, meio fora de foco à nossa esquerda. Parece estar colhendo os resíduos
sólidos daquela barbaridade: pedaços de roupa, cacos de vidro, tampinhas de garrafa, o lixo revirado e talvez alguma cápsula
de bala. Estamos ao lado dele, ombro a ombro, dentro da cena, convidados a limpar o mesmo chão (o rodo encostado na
máquina à nossa espera é um elemento especialmente perturbador). Mas é preciso muita coragem para atravessar o oceano
vermelho.

Coragem que não
faltou a essas duas
mulheres com os
cabelos
trabalhados no
salão no bairro.
Parece que foram
pegas de surpresa
em plena
madrugada,
colocaram a
primeira roupa à
vista e foram
limpar a sujeira
dos homens na
fria madrugada
paulista.

Os olhares
convergem para o
piso, onde está o
verdadeiro drama
desta imagem. É
ali que o sangue
de um se mistura
ao sangue de
outro, e ambos se
mesclam à água,
ao sabão, à cerveja
e à sujeira da rua,
trazida nas solas
que pisaram esse
chão frio pouco
tempo atrás. A
mistura que desce
pelos degraus
toma o rumo
inexorável das
galerias
subterrâneas de
Osasco, fundindo
para sempre as
vítimas com a
própria cidade,
cenário e
protagonista de
tantas
barbaridades,
num processo
irreversível.

A jukebox com
motivos futuristas
parece deslocada de uma imagem de Robert Frank. Aquelas tocavam baladas melancólicas para corações solitários em

paradas à beira da estrada. Mas a América beatnik dos anos 50 de Frank definitivamente não é a Osasco dos nossos dias. O
que será que tocava nessa noite fatídica? Qual é a trilha sonora de uma chacina?

Na paleta de cores, ressaltado pelo contraste com o azul, predomina o vermelho, que parece manchar de sangue toda a
imagem. É como se escorresse pelas paredes e pela pilha de caixas de cerveja, lembrando uma espécie de cascata kubrickiana
(como na cena do elevador em O iluminado). À distância, parece uma das abstract paintings de Gerhard Richter, até
percebermos que, de abstrato, aqui não há nada.

Vejamos, por fim, o que não está na foto. As vidas perdidas, sobretudo. Como toda grande fotografia, esta nos remete a
ausências.

***

Esta fotografia reacende em mim a fé no fotojornalismo como linguagem. Por algum tempo, procurei, sem resposta, uma
fórmula que pudesse atualizá­lo em nosso mundo fugaz. Apostar na rede, nos vídeos, nas montagens, nos coletivos, no
cinema e na arte – nada me parecia suficiente para devolver a ele a relevância que teve um dia. Ao contrário, isso sempre me
pareceu uma renúncia a sua especificidade, ao poder único da imagem estática em convidar à reflexão crítica.

Ao ver esta imagem, penso que, na verdade, o fotojornalismo deveria fazer o que sempre fez. Consciente de sua própria
limitação, continuar a perseguir imagens que informem, que falem da vida. Para o fotojornalista, às vezes a realidade vem em
doses cavalares como veio a este jovem fotógrafo naquela madrugada de Osasco. O bom profissional é capaz de subverter a
vocação de um instrumento tão poderoso e narcisista como a câmera fotográfica e pôr a informação em primeiro plano.
Avener fez isso, e também o mais difícil: soube se colocar diante da tragédia.

Tuca Vieira é fotógrafo.

Tags: chacina (http://revistazum.com.br/tag/chacina/), fotojornalismo (http://revistazum.com.br/tag/fotojornalismo/), osasco


(http://revistazum.com.br/tag/osasco/), QuemMatou19 (http://revistazum.com.br/tag/quemmatou19/), São Paulo
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gabrielove • 8 meses atrás


A foto é pesadíssima. Sou fã do Avener há um tempo. O texto então, nem se fala. Se complementam.
Como entusiasta, além de acreditar no poder do fotojornalismo, acredito na grandeza de longas e
concisas análises que ele causa, iguais a essa. Que percamos mais tempo analisando fotos, detalhes
e toda os significados ali presentes.
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