Você está na página 1de 15

“Todo o Piauí Tranquilo” com a revolução: vestígios da ditadura

militar nas páginas do Jornal O Dia1

OLIVEIRA FILHO, Tertuliano Vicente de2


RÊGO, Ana Regina3
Universidade Federal do Piauí - UFPI

Resumo: O presente artigo busca revelar a ação do jornalismo, enquanto lugar de memória, na construção
da memória coletiva e do imaginário da sociedade teresinense sobre o período da ditadura militar, vivida
no Brasil entre 1964 e 1985. Foram pesquisados exemplares do Jornal O Dia datados entre os anos 1964 e
1970, nos quais foram analisados os vestígios sobre a ditadura militar através das matérias sobre política.
Buscou-se situar o contexto histórico político em níveis nacional e estadual daquele período, explicar os
conceitos de história e memória e o papel do jornalismo enquanto lugar de memória, além de resgatar a
história do periódico analisado. Depois, partiu-se para análise de conteúdo dos jornais pesquisados, nos
quais foi possível perceber que a ditadura exposta por O Dia teria sido uma revolução necessária para
livrar o Brasil da “ameaça comunista” e instituir a paz e tranquilidade entre governo e sociedade.

Palavras-chave: Ditadura Militar, Jornal O Dia, Memória, História, Jornalismo.

Introdução

Nesse trabalho pretende-se expor o papel do jornalismo como um lugar de


memória e agente constituinte de uma memória histórica. O jornalismo influencia no
processo de consolidação da memória através da exposição de versões de realidade,
expondo fatos em detrimento da ocultação de outros. Suas imagens, mensagens,
informações e notícias, influem diretamente no imaginário simbólico coletivo e
constituem fontes para as pesquisas históricas.

1 Trabalho apresentado no GT de História do Jornalismo, integrante do 9º Encontro Nacional de


História da Mídia, 2013.
2 Aluno de Graduação em Comunicação Social – Hab. em Jornalismo da Universidade Federal do Piauí.
Bolsista ICV /UFPI. Membro do NUJOC-Núcleo de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação/UFPI.
E-mail: tertuliano.filho@gmail.com.
3 Professora Doutora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí. Orientadora do
trabalho. E-mail: ana.rani@uol.com.br.
A presente investigação se volta para o jornal O Dia nos primeiros anos da
ditadura militar no Brasil, tendo sido analisados exemplares datados entre 1964 e 1970.
Vale ressaltar que o periódico nasceu na década de 1950 e foi vendido ao Coronel
Otávio Miranda no final de 1963, tendo o primeiro exemplar sob sua gestão circulado
em fevereiro de 1964.

Inicialmente, situaremos o contexto histórico político em níveis nacional e


estadual do período pesquisado, que foi marcado pela entrada dos militares no cenário
político de vários países da América Latina. No Brasil, tal processo teve início em 1964
e se estendeu até os anos 1980.

Explicaremos ainda, brevemente, os conceitos de história e memória e o papel


do jornalismo enquanto lugar de memória, além de resgatar a história do periódico
analisado, para só então partirmos para a explanação dos resultados obtidos na análise
do conteúdo das matérias, artigos e editorias dos jornais pesquisados, revelando que
tipos de vestígios sobre a ditadura foram deixados por O Dia, e de que modo estes
contribuíram para a criação de uma memória coletiva sobre a ditadura àquela época.

A Ditadura no Brasil

A América Latina da década iniciada em 1970 ficou marcada por uma sucessão
de golpes de Estado e pela entrada dos militares no cenário político de vários de seus
países. Em 1979, “dois terços da população latino-americana, calculada na época em
400 milhões de habitantes, viviam em Estados dotados de regimes militares ou sob
dominação castrense” (NILSON, 2010, p.15). No Brasil, o ciclo militarista teve início
em 1964 com o processo intervencionista – o golpe de 64 ou, como foi chamado pelos
próprios militares, a “revolução”, e a consequente derrubada do governo de João
Goulart. E, ao contrário do que se acreditava na época de sua implantação, acabaria se
estendendo até 1985.

Apesar de o golpe ter iniciado um período de grande cerceamento das liberdades


civis e do jornalismo, a grande imprensa, em geral, o apoiou, bem como parte da
população brasileira, “principalmente setores das classes médias e grupos conservadores
preocupados com os rumos esquerdizantes do governo João Goulart e com os
problemas econômico-financeiros do país (inflação, dívida pública)” (LAGO;
ROMANCINI, 2007, p. 120).

O desenrolar dos fatos levaria a uma radicalização do regime, que a cada ameaça
de enfraquecimento de seu poder – marcadas pela indignação da população e
manifestações na imprensa – criaria mecanismos de manutenção do governo e coerção
dos dissidentes, concentrando cada vez mais o poder no grupo militar e enfraquecendo a
influência dos políticos civis tradicionais. Fortalecer-se-ia, assim, “uma facção, a ‘linha-
dura’, autoritária e tecnocrática”, sempre buscando legitimar-se sob o pretexto de
garantir a segurança nacional contra o comunismo e combate à corrupção (LAGO;
ROMANCINI, 2007, p. 120).

No dia 9 de abril de 1964 foi publicado o primeiro Ato Institucional (AI) pelos
militares; um decreto que alterava a estrutura institucional do país, sem a consulta do
Congresso. Em votação indireta, conforme estabelecia o AI-I, no dia 15 do mesmo mês,
o general Humberto Castelo Branco é eleito presidente (LAGO; ROMANCINI, 2007, p.
122). No mesmo ano, houve uma repressão às Ligas Camponesas, aos estudantes e a
construção de um aparelho de controle dos cidadãos, principalmente por meio do
Serviço Nacional de Informação (SNI), criado em junho de 1964.

Em outubro, pouco depois das eleições, viria o AI-2, que estabeleceria


definitivamente as eleições indiretas para presidente e extinguiria os partidos políticos
existentes, instituindo o bipartidarismo: um partido governista, a Aliança Renovadora
Nacional (Arena), e outro de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O
AI-3, de fevereiro de 1966, estabeleceria eleições indiretas também para os
governadores. E ainda no governo Castelo Branco, ocorreu a aprovação de uma nova
Constituição que consolidava os Atos Institucionais, de uma Lei de Imprensa, editada
em 1967, que cerceou a atividade jornalística, e de uma Lei de Segurança Nacional, que
restringiu as liberdades civis.

Em 1966, Carlos Lacerda, que havia rompido com os militares, articula a


formação da Frente Ampla, junto com Juscelino e Jango. Esses políticos propõem-se a
lutar conjuntamente pela democratização do país (LAGO; ROMANCINI, 2007, p. 125).

Ocorrem vários fatos que acentuam a oposição entre o regime e a


sociedade civil: a Frente Ampla é declarada ilegal, em abril; são
realizadas várias mobilizações pela democratização, como a chamada
“passeata dos 100 mil” – que reuniu estudantes e membros do clero e
classe média do Rio de Janeiro, em 25 de junho -; o governo reprime o
que seria uma reunião clandestina de estudantes, em Ibiúna, em
outubro; greves operárias ocorrem em Belo Horizonte e Osasco em
meados de 1968, e começam as ações armadas contra o regime
praticadas por grupos de esquerda [...]. Todos esses eventos dão
combustível ao chamado “golpe dentro do golpe”, a edição do Ato
Institucional nº 5 (LAGO; ROMANCINI, 2007, p.125-126).

Após o AI-5, seguiram-se prisões e constrangimentos a líderes sindicais,


estudantes e intelectuais, provocando uma onda de exílios. Sistematizou-se a tortura e a
censura aos meios de comunicação foi institucionalizada. Na intenção de respaldar
juridicamente seus instrumentos de censura, o regime militar elabora uma legislação
casuística e recorre a brechas em legislações existentes, interpretadas em sentido
repressivo. Estrutura, ainda, um quadro burocrático encarregado de exercer essa
censura.

Em 1969, diante da impossibilidade de Costa e Silva governar (por ter sofrido


um derrame), foi organizada uma junta composta pelos três ministros militares para
conduzir o governo e o processo de sucessão. Essa junta baixou uma série de novos atos
repressivos contra os grupos armados, entre eles o AI-13, que criou a pena de banimento
do território nacional aplicável a cidadãos que fossem considerados pela ditadura como
brasileiros “nocivos” à “segurança nacional” e o AI-14, que estabeleceu a pena de morte
contra os que fossem julgados “agentes subversivos” (LAGO; ROMANCINI, 2007, p.
135-136).

A forte repressão aos opositores, especialmente aos grupos armados, e o controle


da sociedade civil marcariam o governo do general Emílio Garrastazu Médici,
empossado pelos militares ainda em 1969. Durante seu mandato como presidente a
guerrilha urbana, que lutava contra a ditadura, foi violentamente combatida.

A Ditadura no Piauí

Parte dos reflexos da ditadura no Piauí pode ser elucidada a partir da história
oral. Em seu artigo “A Censura e o Rádio no Piauí”, o pesquisador Francisco Alcides
do Nascimento4 traz uma série de relatos de profissionais do rádio que trabalharam na
época da ditadura e que nos mostram que o jornalismo piauiense também sofreu com a
censura.

No Piauí, também foi intensa a atuação de agentes censores durante o regime.


Segundo Carlos Augusto de Araújo Lima, em 1963 o programa de maior audiência no
rádio piauiense era o “Almanaquinho no Ar”, veiculado pela Rádio Clube de Teresina,
que teria sido retirado do ar por ser considerado subversivo pelos militares, uma vez que
sua linha era voltada à discussão de problemas sociais que atingiam a sociedade e que,
na opinião de seu apresentador, Francisco Figueiredo de Mesquita – que chegou a ser
preso –, não recebiam atenção dos governantes (NASCIMENTO, 2006, p. 33).

Agentes da Polícia Federal costumavam visitar as emissoras no horário dos


programas jornalísticos para avaliar as notícias que seriam lidas no rádio, como meio de
controle e intimidação. Além disso, o controle das atividades das emissoras de rádio era
feito de outras formas. Segundo Joel Silva (apud NASCIMENTO, 2006, p. 35-36), os
profissionais tinham de fazer um cadastro na Polícia Federal para exercer sua atividade,
além de cumprir “protocolo rigoroso”. Até mesmo a programação musical tinha que ser
encaminhada ao Departamento Cultural com 24 horas de antecedência, para que fosse
analisada e autorizada. Em dado momento, teria sido proibida, inclusive, a participação
de ouvintes nos programas através de telefonemas.

A Rádio Pioneira de Teresina seria a mais visada pelos militares, por conta do
seu projeto de colocar “os microfones a serviço da comunidade” (NASCIMENTO,
2006, p.39). A emissora colocaria no ar o programa do Movimento de Educação de Base
(MEB), também considerado “subversivo” pelos militares. Por conta disso, professores
do MEB chegaram a ser presos e alguns passaram a ser vigiados e indiciados em
inquéritos policiais. Houve período em que todos os roteiros dos programas do MEB
tinham que ser levados à Polícia Federal antes de irem ao ar, para que pudessem ser
autorizados ou não (BONFIM apud NASCIMENTO, 2006, p. 41). Agentes da polícia
chegavam a ficar do lado de fora da cabine de locução (geralmente separada das outras
áreas da rádio por uma lâmina de vidro) observado os profissionais, na intenção de
dificultar o trabalho dos integrantes do MEB.

4
Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento é professor do Programa de Pós-Graduação em História do
Brasil da UFPI.
Mas não foi apenas o rádio que sofreu com a censura no Piauí. Em fevereiro de
1971, o promotor Valter de Oliveira Sousa acusou jornalistas atuantes em Teresina à 10ª
Região Militar, por terem divulgado noticiário “capaz de incitar a opinião pública contra
o Poder Judiciário” (NASCIMENTO, 2006, p. 49).

Deoclécio Dantas, que trabalhou na Rádio Pioneira entre 1964 e 1979,


demonstra, através do seguinte relato, como a chamada “censura prévia” também
aconteceu nos veículos de comunicação piauienses:

A Rádio Pioneira era censurada diariamente. Eu, por exemplo, já


nesse tempo como diretor de jornalismo da emissora recebia
diariamente uma visita do agente federal, que levava um livro com um
papel cortado, papel ofício, mas cortado em faixas, aí dizia lá: ‘De
ordem superior nada pode ser divulgado sobre o pronunciamento de
Dom Elder Câmara feito em Recife’. No outro dia chegava outra
censura: ‘De ordem superior nada pode ser divulgado sobre o surto de
meningite em São Paulo’. Noutro dia chegava outro edital: ‘De ordem
superior nada pode ser divulgado a respeito da renúncia do governador
do Paraná, seu Aroldo Leão Pires’ (DANTAS apud NASCIMENTO,
2006, p. 51-52).

Fica claro que a censura aos meios de comunicação promovida durante o regime
militar não se limitou aos grandes meios do eixo Rio-São Paulo, mas, de fato, se
estendeu por todo o Brasil, incluindo o Piauí.

História, Memória e Jornalismo

Há pelo menos duas histórias, diz Le Goff (2003): a da memória coletiva e a dos
historiadores. “A primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas
constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado” (LE GOFF,
2003, p. 50). Sendo assim, a memória, enquanto objeto da história, deve ser por ela
esclarecida e ter seus erros retificados.

O jornalismo também é lugar de memória, na medida em que repercute e ajuda a


manter vivos outros lugares de memória (arquivos, monumentos, museus, tradições e
celebrações, como proposto por Nora (1981). Grande parte dos periódicos impressos em
momentos vários da história do país, caso de O Dia, não são
“apenas receptáculos de informação, mas agentes autorizados
socialmente a captar, burilar, confrontar e produzir o relato do
cotidiano reduzindo a angústia do desconhecido e da imprecisão que é
viver.” (CARVALHO, 2009).

A atuação desses impressos (o que se publica – ou não -, como se publica e


quando se publica) pode produzir tanto silêncios quanto emitir sentidos e versões de
realidade a serem perpetuadas no tempo e no imaginário (na memória) da sociedade.
Dessa forma, possuem papel significativo na construção da memória (e, por
consequência, da história) individual e coletiva, além de poder e enorme
responsabilidade – daí a sua importância enquanto objetos da história, a qual deve caber,
entre outras, a função de elucidar as memórias produzidas por eles. Afinal, diz Le Goff,

“tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes


preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram
e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios
da história são reveladores destes mecanismos de manipulação
coletiva.” (LE GOFF, 2003, p. 422).

Ainda segundo este mesmo autor, a memória coletiva é também instrumento e


objeto de poder. “Nas sociedades desenvolvidas, os novos arquivos (arquivos orais e
audiovisuais) não escaparam à vigilância dos governantes, mesmo que possam controlar
esta memória tão estreitamente como os novos utensílios de produção desta memória.”
(LE GOFF, 2003, p. 470-471). Cabendo aos “profissionais científicos da memória”
(antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos) lutar pela democratização da
memória social. Ora, o mesmo O Dia que ovacionou a “Revolução Militar” na década
de 60, é o que hoje comemora os quase 30 anos do fim da “Ditadura Militar” e o direito
à liberdade de imprensa.

O Jornal O Dia

O jornal O Dia foi fundado em Teresina-PI no primeiro dia de fevereiro de 1951,


passando a circular às quintas-feiras e aos domingos. Tinha como diretor e proprietário,
Leão Monteiro, e o seguinte slogan: “Jornal ‘O Dia’: órgão independente, noticioso e
político” – que já revelava seu caráter extremamente político, no que diz respeito ao seu
conteúdo.
Nos seus primeiros anos, O Dia contou com a colaboração de Bugyjia Brito,
Cunha e Silva, Camal Curi, Petrônio Portella e Arimatéia Tito Filho. O jornal
demonstrava apoios e oposições políticas abertamente, razão pela qual alguns
colaboradores chegavam a abandonar suas colunas.

Na década de 1960, o jornal passa por crises financeiras e é vendido para o então
governador do Estado, Chagas Rodrigues. Em 1962, passará a ser publicado três vezes
por semana, propagando as ideias do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) (CONDE,
2011). Depois de 1963, quando assumiu como governador do Estado Petrônio Portella,
o jornal se posicionava contrário ao governo até que, em agosto do mesmo ano, é
vendido à empresa Folha da Manhã (OLIVEIRA, 2006, p. 205).

A partir de outubro daquele ano, O Dia passa a ter outra linha editorial,
orientando-se pelos princípios do liberalismo e pautado na “suposta defesa da
imparcialidade na apuração dos fatos”. Seu novo proprietário, Coronel Otávio Miranda,
era um grande empreendedor e homem de grande influência no meio político – foi em
suas mãos que o jornal passou a circular diariamente, a partir do dia primeiro de
fevereiro de 1964 (CONDE, 2011). E foi nesse momento de mudança administrativa e
gerencial do noticioso que se deu o golpe de 1964. O Dia passou então a apoiar o status
quo governamental, reproduzindo inúmeras matérias contra o comunismo. Nesse
período, assinavam a maioria dos textos: Simplício Mendes, A. Tito Filho, Deoclécio
Dantas, Hardi Filho, Conceição Castelo Branco, a cronista Elvira Raulino, Andréa
Sousa Lélis, Celso Barros Coelho, Carlos Said e Deusdedith Nunes. Enquanto o jornal
pertenceu a Miranda, os redatores foram José Lopes dos Santos e Deoclécio Dantas.

José Lopes mudou significativamente a linha editorial do jornal, que se tornou


mais conservadora.

José Lopes dos Santos exprimia no editorial toda sua formação


jurídica. Considerava-se um legalista e democrata e dessa mesma
forma o jornal deveria agir: a favor da democracia. Demonstrando
apoio ao golpe civil-militar – ao qual chamava revolução -, justificou
essa atitude afirmando terem as “Gloriosas Fôrças Armadas” salvado
o país de uma ditadura comunista (OLIVEIRA, 2006, p. 209).

Deoclécio Dantas tornou-se o editor-chefe de O Dia quando José Lopes deixou a


redação. Em 1969, o slogan do jornal passa a ser: “Se ‘O Dia’ disse a notícia existe”.
A Revolução Militar e a Ameaça Comunista: vestígios sobre a Ditadura em O Dia

O nosso processo analítico se pautou no método da análise de conteúdo5 tendo


como amostra 10 exemplares a seguir detalhados: O Dia, nº 1194, 15 de março de 1964;
O Dia, nº 1201, 24 de março de 1964; O Dia, nº 1206, 2 de abril de 1964; O Dia, nº
1213, 11 de abril de 1964; O Dia, nº 1214, 12 de abril de 1964; O Dia, nº 1218, 17 de
abril de 1964; O Dia, nº 2031, 10 de janeiro de 1967; O Dia, nº 2032, 11 de janeiro de
1967; O Dia, nº 2596, 17 de dezembro de 1968 e O Dia, nº 2922, 13 de fevereiro de
1970. O nosso objetivo foi, conforme dito, investigar os vestígios sobre o
posicionamento do Jornal O Dia em relação ao processo de tomada e manutenção do
governo pelos militares e de que forma o periódico ajudou a construir uma memória
sobre a ditadura militar no momento em que esta se estabeleceu.

O Jornal O Dia, de modo geral, manteve-se favorável aos presidentes Castelo


Branco, Costa e Silva e Médici, que se sucederam na presidência entre 1964 e 1970. No
entanto, o jornalismo sofrerá mudanças em sua forma e conteúdo ao longo desse
período, tornando-se cada vez menos opinativo e mais direto, objetivo e informativo.

Nos jornais pesquisados de fevereiro de 1964 a março de 1968, encontra-se


conteúdo fortemente opinativo nos textos que tratavam de política, que tomavam a
maior parte do jornal (que, em média, possuía oito páginas). O apoio à revolução era
claro – assim como ao governo em nível estadual.

A notícia da “eleição” de Castelo Branco viria no dia 12 de abril de 1964, uma


edição de domingo, abaixo da seguinte manchete: “Castelo Branco eleito Presidente da
República por esmagadora maioria” (figura 1). Cinco dias depois, na edição do dia 17
de abril daquele mesmo ano, O Dia traz em sua capa (de uma ponta a outra da página)
sua manchete principal: “Nação inteira confia no nôvo Presidente”, seguida do
“Discurso do Presidente Castelo Branco”. Ao mesmo tempo, são constantes notas e
artigos de discurso anticomunista, que contribuíram para justificar a revolução de 64.
Segundo Oliveira (2006), o “golpe civil-militar utilizou o discurso comunista para se

5
A análise de conteúdo constitui uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o
conteúdo de toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições sistemáticas,
qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus
significados num nível que vai além de uma leitura comum (MORAES, 1999).
legitimar e aqui no Piauí não foi diferente”. Muitas pessoas teriam sido induzidas a
apoiarem o golpe, ainda que não soubessem do que se tratava o comunismo nem terem
sentindo sua “infiltração” no Estado, por conta da grande divulgação do discurso
anticomunista (OLIVEIRA, 2006, p. 215-216).

Em edição do dia 15 de março de 1964 (duas semanas antes do golpe), viria uma
nota na capa intitulada “Mulheres rezam contra o Comunismo”, na qual se lia:
“Durante todo o tempo que durou o comício de anteontem, na Guanabara, numerosas
mulheres, na capital paulista, permaneceram rezando. Pedindo a Deus que livre o Brasil
do regime comunista” (O DIA, 1964, n. 1194, p. 01). Em edição do dia 24 de março do
mesmo ano, constava uma “Oração das Mulheres Democratas”, também com conteúdo
anticomunista.

Figura 1 - O Dia, nº 1214, 12 de abril de 1964

Fonte: Acervo O Dia

Seguidas vezes, Simplício Mendes traria em sua coluna “Televisão” artigos com
teor fortemente anticomunista. Em menos de dez dias, dois títulos contra o comunismo
apareceram em sua coluna: O primeiro, na edição do dia 2 de abril de 1964, era
“Comunismo e Revolução”, no qual Mendes afirma que:
“O comunismo nega todos os valores espirituais e diviniza a matéria.
Todos os princípios educacionais e familiares da civilização cristã são
negados. Portanto a catástrofe, entre nós no Brasil, seria
profundamente incalculável – rebaixando-nos ao nível de Cuba, - a
grande ilha do Caribe, caída nas malhas de aventureiros e traidores da
Pátria.” (O DIA, 1964, n. 1206, p. 3).

Apenas nove dias depois, na edição de 11 de abril, o título do artigo na coluna


“Televisão”, de Simplício Mendes, seria “Terror Comunista”.

Os editoriais de O Dia, de 1964 até o fim de 1968, faziam referências a regimes


de outras épocas e países, de modo a fazer críticas através de comparações – a União
Soviética era um alvo constante –, colocando o Brasil numa posição de vantagem em
relação a outras nações. Além disso, criticavam também a própria constituição
brasileira, denunciando brechas na legislação do país. Nos dias 10 e 11 de janeiro de
1967, aparecem na capa do jornal, respectivamente, os títulos: “A Armadilha Dos
Artigos 150 e 151” e “Monstruosidade do Art. 151”. Os dois criticam duramente a
redação, tida como falha, dos citados artigos, porém, tomando o cuidado para não
ofender o trabalho do então presidente Castelo Branco:

O artigo 150 vale um absurdo.


Mas o 151 está pior. [...] A regulamentação está omissa. [...] Chega-se
a conclusão de que esse artigo não foi redigido por jurista – senão por
jurista reles – e o presidente Castelo Branco nunca, pelo seu passado e
pela dignidade do cargo que exerce, se acumpliciaria com jurista
assim caracterizado (O DIA, 1967, n. 2032, p. 1).

Defendia-se também a liberdade de imprensa e os princípios da democracia.


Percebe-se ainda que a maioria das matérias trazia informações de outros países e de
outros estados do Brasil, em detrimento de matérias com conteúdo local.

Quando o slogan do jornal muda pra “Se ‘O Dia’ disse a notícia existe”, em
1969, a linha editorial do jornal já tem mudado bastante. Para Marylu Alves de Oliveira,
isso estaria bastante relacionado ao contexto histórico – o regime militar endurecia, e
acabava de ser decretado o AI-5 (OLIVEIRA, 2006, p. 207-208). O discurso jornalístico
opinativo foi desaparecendo, e entre 1969 e 1970 (ano limite do universo dessa
pesquisa) predominava o discurso jornalístico objetivo, de caráter meramente
informativo. A coluna política de Rodrigues Filho, intitulada “Política e Políticos” do
início de 1964 até janeiro de 1965 (quando passa a ser identificada apenas pelo nome de
seu autor acompanhado do subtítulo “Informa e Comenta”), há muito não existe. Em
seu lugar, já em dezembro de 1968, surge a coluna “O Dia Político”, que descrevia
acontecimentos políticos (nacionais e locais) de forma direta – sem identificação de seu
autor. Nenhuma menção aos cerceamentos da atividade jornalística (seja a nível local ou
nacional) era feita. O “sentimento” de paz entre governo e nação continuava presente
nas matérias.

Quatro dias após o decreto do AI-5, o periódico estampa em sua capa duas
manchetes emblemáticas: “Líderes Certos de Que o Congresso Abrirá em Março” e
“Todo o Piauí Tranquilo”. A atmosfera criada por essas manchetes amenizava – e
deixava a população alheia – a violência que o Ato Institucional nº 5 representou para as
liberdades civis e de imprensa, evitando insatisfações e apaziguando os ânimos da
população, passando a ideia de que as decisões do presidente e seus aliados contribuíam
apenas para o bom funcionamento do Estado.

[...] eis o que a reportagem de O DIA constatou ao entrar em contacto


com as diversas áreas responsáveis de perto pela normalidade e pela
segurança da coletividade piauiense. Em têrmos gerais, devemos
destacar suas personalidades que, cercadas de equipes sensatas e
esforçadas, vêm conseguindo manter incólume a tranquilidade do
povo piauiense [...] o nosso Estado vive em clima de maior
tranquilidade e do mais perfeito entendimento (O DIA, 1968, n. 2596,
p. 1).

Em alguns momentos, fica óbvio o apoio ao presidente Costa e Silva, não apenas
na sua função de governador do país, mas como pessoa. Mais de uma vez, matérias
sobre Costa e Silva continham expressões que chegavam a demonstrar certo apreço e
afeição pelo presidente – fato mais facilmente observado durante o período que
antecedeu sua morte, quando as complicações de saúde do chefe do governo se
tornaram públicas, gerando, inclusive, grande comoção no povo brasileiro. Após seu
falecimento, O Dia passaria a publicar – em um espaço de quase uma página inteira,
durante mais de 19 exemplares – uma retrospectiva da vida na presidência até a morte
do general Arthur Costa e Silva, intitulada “Impedimento e Morte de Costa e Silva”.

Por fim, durante o último recorte da pesquisa – de 1969 até setembro de 1970 -,
seu sucessor, Emílio Garrastazu Médici, é referenciado junto a expressões que o
qualificam. As matérias políticas resumem-se, cada vez mais, aos “fatos”. E, agora, são
matérias de cunho local a ocupar a maior parte das páginas do periódico, dividindo
espaço, sobretudo, com matérias policiais que se utilizavam de fotografias de cenas
violentas, como acidentes automobilísticos e corpos de pessoas assassinadas.

Considerações Finais

A ditadura militar no Brasil pintada nas páginas de O Dia entre 1964 e 1970
(recorte desta pesquisa), é o avesso da visão ampla e dialética atual sobre o período,
recuperada pelo trabalho histórico e constantemente reforçada nos mais variados
suportes midiáticos - que, tendo em vista os princípios da liberdade e democracia,
apontam o período como uma mancha na democracia brasileira, marcada pela restrição
das liberdades civis e de imprensa, perseguições e pressões contra jornalistas e civis que
se colocaram contra o regime, além das práticas de tortura e casos de assassinatos
(muitos ainda hoje não solucionados) envolvendo militares a serviço da manutenção do
governo autoritário.

De forma prática, a ditadura nesses termos sequer existiu nas matérias


veiculadas à época pelo jornal. O processo de tomada do governo pelos militares tratou-
se, segundo sua representação nos textos de O Dia, de uma revolução necessária à
retomada da ordem através da eliminação da ameaça comunista no Brasil, e que acabou
por instalar a paz e tranquilidade entre governo e a sociedade brasileira como um todo.

O Jornal O Dia não ecoou as manifestações e indignações da população que se


rebelou contra o regime, tampouco denunciou as perseguições sofridas por vários
jornais no país e professores e radialistas do próprio estado, apesar de proclamar-se, via
editoriais, a favor das liberdades de imprensa e expressão. Naturalmente, a existência da
censura era ignorada – a exemplo do que acontecia na mídia impressa tradicional, com
exceção de veículos alternativos como os pasquins. Primordialmente político, O Dia
publicava reflexões sobre artigos considerados “falhos” da constituição brasileira, ao
mesmo tempo em que reproduzia alguns dos Atos Institucionais instituídos um após o
outro pelos presidentes militares. No entanto, sem promover qualquer discussão ou
explanação acessível sobre seu significado prático para os direitos civis e o
aparelhamento do governo.
Através de manchetes como “Nação inteira confia no nôvo Presidente”,
“Líderes Certos de Que o Congresso Abrirá em Março” e “Todo o Piauí Tranquilo”, O
Dia estampava uma realidade de quietude e ordem nas instâncias governamentais, além
do contentamento geral da população em relação à administração estatal. Reforçava
ainda, por meio de artigos de opinião e editoriais sobre o comunismo, o “terror” do qual
a “Revolução” livrara o país, além de rememorar anualmente a data de sua instituição e
construir memórias relacionadas ao regime (caso da retrospectiva da vida de Costa e
Silva).

Dessa forma, O Dia contribuiu para a produção e perpetuação de uma memória


coletiva sobre a ditadura militar, tanto através da omissão quanto da escolha de temas e
vieses específicos sobre as atividades do governo e sua recepção por parte da sociedade.
Sem dúvidas, constitui-se enquanto lugar de memória e agente na construção de uma
memória histórica. No entanto, levando em conta os conhecimentos posteriormente
produzidos sobre a ditadura militar e os vestígios de fatos e ações não contemplados por
O Dia, além de considerar a própria postura pró-governista do periódico e seu domínio
por um coronel do exército, tal memória é falha, ainda que válida e útil, necessita ser
apropriada pela história, para que se ajustem suas distorções.

Referências Bibliográficas

CARVALHO, Sônia Maria dos Santos. O arcebispo impresso: as relações entre


história, memória e jornais teresinenses a partir das narrativas jornalísticas sobre
Dom Avelar Brandão Vilela. Teresina: INTERCOM, 2009. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/regionais/nordeste2009/resumos/R15-0507-1.pdf>.
Acesso em 2 abr 2013

CONDE, Mariana Guedes. O jornalismo especializado e a segmentação do público


no jornal O Dia, de Teresina: uma breve análise. Recife: INTERCOM, 2011.

GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letas, 2004.

LAGO, Cláudia; ROMANCINI, Richard. História do Jornalismo no Brasil.


Florianópolis: Insular, 2007. 276 p.

LE GOFF, Jacques. História e Memória; tradução: Bernardo Leitão. 5ª ed. –


Campinas, SP: Editoria da UNICAMP, 2003.

MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p.
7-32, 1999.

NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Censura e o Rádio no Piauí. In: Francisco


Alcides do Nascimento, F. C. Fernandes Santiago Jr. (Org.). Encruzilhadas da História:
rádio e memória. Recife: Bagaço, 2006. 278p.

NILSON, Borges. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In:


DELGADO, Lucilia; FERREIRA, Jorge. O tempo da ditadura: regime militar e
movimentos sociais em fins do século XX. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010. – (O Brasil Republicano; v.4)

NORA, Pierre. Entre a Memória e a História, a problemática dos lugares. In:


PROJETO História. Revista do Programa de Pós-Graduados em História do
Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: PUC, 1981. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763>. Acesso em: 8
abr 2013.

OLIVEIRA, Marylu Alves de. Considerações sobre o discurso anticomunista no


jornal "O Dia". In: Francisco Alcides do Nascimento, F. C. Fernandes Santiago Jr.
(Org.). Encruzilhadas da História: rádio e memória. Recife: Bagaço, 2006. 278p.

Referências Hemerográficas

O DIA, Teresina, 15 mar. 1964, n. 1194.


______________, 24 mar. 1964, n. 1201.
______________, 2 abr. 1964, n. 1206.
______________, 11 abr. 1964, n. 1213.
______________, 12 abr. 1964, n. 1214.
______________, 17 abr. 1964, n. 1218.
______________, 10 jan. 1967, n. 2031.
______________, 11 jan. 1967, n. 2032.
______________, 17 dez. 1968, n. 2596.
______________, 13 fev. 1970, n. 2922.

Você também pode gostar