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Resumo: O presente artigo busca revelar a ação do jornalismo, enquanto lugar de memória, na construção
da memória coletiva e do imaginário da sociedade teresinense sobre o período da ditadura militar, vivida
no Brasil entre 1964 e 1985. Foram pesquisados exemplares do Jornal O Dia datados entre os anos 1964 e
1970, nos quais foram analisados os vestígios sobre a ditadura militar através das matérias sobre política.
Buscou-se situar o contexto histórico político em níveis nacional e estadual daquele período, explicar os
conceitos de história e memória e o papel do jornalismo enquanto lugar de memória, além de resgatar a
história do periódico analisado. Depois, partiu-se para análise de conteúdo dos jornais pesquisados, nos
quais foi possível perceber que a ditadura exposta por O Dia teria sido uma revolução necessária para
livrar o Brasil da “ameaça comunista” e instituir a paz e tranquilidade entre governo e sociedade.
Introdução
A Ditadura no Brasil
A América Latina da década iniciada em 1970 ficou marcada por uma sucessão
de golpes de Estado e pela entrada dos militares no cenário político de vários de seus
países. Em 1979, “dois terços da população latino-americana, calculada na época em
400 milhões de habitantes, viviam em Estados dotados de regimes militares ou sob
dominação castrense” (NILSON, 2010, p.15). No Brasil, o ciclo militarista teve início
em 1964 com o processo intervencionista – o golpe de 64 ou, como foi chamado pelos
próprios militares, a “revolução”, e a consequente derrubada do governo de João
Goulart. E, ao contrário do que se acreditava na época de sua implantação, acabaria se
estendendo até 1985.
O desenrolar dos fatos levaria a uma radicalização do regime, que a cada ameaça
de enfraquecimento de seu poder – marcadas pela indignação da população e
manifestações na imprensa – criaria mecanismos de manutenção do governo e coerção
dos dissidentes, concentrando cada vez mais o poder no grupo militar e enfraquecendo a
influência dos políticos civis tradicionais. Fortalecer-se-ia, assim, “uma facção, a ‘linha-
dura’, autoritária e tecnocrática”, sempre buscando legitimar-se sob o pretexto de
garantir a segurança nacional contra o comunismo e combate à corrupção (LAGO;
ROMANCINI, 2007, p. 120).
No dia 9 de abril de 1964 foi publicado o primeiro Ato Institucional (AI) pelos
militares; um decreto que alterava a estrutura institucional do país, sem a consulta do
Congresso. Em votação indireta, conforme estabelecia o AI-I, no dia 15 do mesmo mês,
o general Humberto Castelo Branco é eleito presidente (LAGO; ROMANCINI, 2007, p.
122). No mesmo ano, houve uma repressão às Ligas Camponesas, aos estudantes e a
construção de um aparelho de controle dos cidadãos, principalmente por meio do
Serviço Nacional de Informação (SNI), criado em junho de 1964.
A Ditadura no Piauí
Parte dos reflexos da ditadura no Piauí pode ser elucidada a partir da história
oral. Em seu artigo “A Censura e o Rádio no Piauí”, o pesquisador Francisco Alcides
do Nascimento4 traz uma série de relatos de profissionais do rádio que trabalharam na
época da ditadura e que nos mostram que o jornalismo piauiense também sofreu com a
censura.
A Rádio Pioneira de Teresina seria a mais visada pelos militares, por conta do
seu projeto de colocar “os microfones a serviço da comunidade” (NASCIMENTO,
2006, p.39). A emissora colocaria no ar o programa do Movimento de Educação de Base
(MEB), também considerado “subversivo” pelos militares. Por conta disso, professores
do MEB chegaram a ser presos e alguns passaram a ser vigiados e indiciados em
inquéritos policiais. Houve período em que todos os roteiros dos programas do MEB
tinham que ser levados à Polícia Federal antes de irem ao ar, para que pudessem ser
autorizados ou não (BONFIM apud NASCIMENTO, 2006, p. 41). Agentes da polícia
chegavam a ficar do lado de fora da cabine de locução (geralmente separada das outras
áreas da rádio por uma lâmina de vidro) observado os profissionais, na intenção de
dificultar o trabalho dos integrantes do MEB.
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Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento é professor do Programa de Pós-Graduação em História do
Brasil da UFPI.
Mas não foi apenas o rádio que sofreu com a censura no Piauí. Em fevereiro de
1971, o promotor Valter de Oliveira Sousa acusou jornalistas atuantes em Teresina à 10ª
Região Militar, por terem divulgado noticiário “capaz de incitar a opinião pública contra
o Poder Judiciário” (NASCIMENTO, 2006, p. 49).
Fica claro que a censura aos meios de comunicação promovida durante o regime
militar não se limitou aos grandes meios do eixo Rio-São Paulo, mas, de fato, se
estendeu por todo o Brasil, incluindo o Piauí.
Há pelo menos duas histórias, diz Le Goff (2003): a da memória coletiva e a dos
historiadores. “A primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas
constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado” (LE GOFF,
2003, p. 50). Sendo assim, a memória, enquanto objeto da história, deve ser por ela
esclarecida e ter seus erros retificados.
O Jornal O Dia
Na década de 1960, o jornal passa por crises financeiras e é vendido para o então
governador do Estado, Chagas Rodrigues. Em 1962, passará a ser publicado três vezes
por semana, propagando as ideias do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) (CONDE,
2011). Depois de 1963, quando assumiu como governador do Estado Petrônio Portella,
o jornal se posicionava contrário ao governo até que, em agosto do mesmo ano, é
vendido à empresa Folha da Manhã (OLIVEIRA, 2006, p. 205).
A partir de outubro daquele ano, O Dia passa a ter outra linha editorial,
orientando-se pelos princípios do liberalismo e pautado na “suposta defesa da
imparcialidade na apuração dos fatos”. Seu novo proprietário, Coronel Otávio Miranda,
era um grande empreendedor e homem de grande influência no meio político – foi em
suas mãos que o jornal passou a circular diariamente, a partir do dia primeiro de
fevereiro de 1964 (CONDE, 2011). E foi nesse momento de mudança administrativa e
gerencial do noticioso que se deu o golpe de 1964. O Dia passou então a apoiar o status
quo governamental, reproduzindo inúmeras matérias contra o comunismo. Nesse
período, assinavam a maioria dos textos: Simplício Mendes, A. Tito Filho, Deoclécio
Dantas, Hardi Filho, Conceição Castelo Branco, a cronista Elvira Raulino, Andréa
Sousa Lélis, Celso Barros Coelho, Carlos Said e Deusdedith Nunes. Enquanto o jornal
pertenceu a Miranda, os redatores foram José Lopes dos Santos e Deoclécio Dantas.
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A análise de conteúdo constitui uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o
conteúdo de toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições sistemáticas,
qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus
significados num nível que vai além de uma leitura comum (MORAES, 1999).
legitimar e aqui no Piauí não foi diferente”. Muitas pessoas teriam sido induzidas a
apoiarem o golpe, ainda que não soubessem do que se tratava o comunismo nem terem
sentindo sua “infiltração” no Estado, por conta da grande divulgação do discurso
anticomunista (OLIVEIRA, 2006, p. 215-216).
Em edição do dia 15 de março de 1964 (duas semanas antes do golpe), viria uma
nota na capa intitulada “Mulheres rezam contra o Comunismo”, na qual se lia:
“Durante todo o tempo que durou o comício de anteontem, na Guanabara, numerosas
mulheres, na capital paulista, permaneceram rezando. Pedindo a Deus que livre o Brasil
do regime comunista” (O DIA, 1964, n. 1194, p. 01). Em edição do dia 24 de março do
mesmo ano, constava uma “Oração das Mulheres Democratas”, também com conteúdo
anticomunista.
Seguidas vezes, Simplício Mendes traria em sua coluna “Televisão” artigos com
teor fortemente anticomunista. Em menos de dez dias, dois títulos contra o comunismo
apareceram em sua coluna: O primeiro, na edição do dia 2 de abril de 1964, era
“Comunismo e Revolução”, no qual Mendes afirma que:
“O comunismo nega todos os valores espirituais e diviniza a matéria.
Todos os princípios educacionais e familiares da civilização cristã são
negados. Portanto a catástrofe, entre nós no Brasil, seria
profundamente incalculável – rebaixando-nos ao nível de Cuba, - a
grande ilha do Caribe, caída nas malhas de aventureiros e traidores da
Pátria.” (O DIA, 1964, n. 1206, p. 3).
Quando o slogan do jornal muda pra “Se ‘O Dia’ disse a notícia existe”, em
1969, a linha editorial do jornal já tem mudado bastante. Para Marylu Alves de Oliveira,
isso estaria bastante relacionado ao contexto histórico – o regime militar endurecia, e
acabava de ser decretado o AI-5 (OLIVEIRA, 2006, p. 207-208). O discurso jornalístico
opinativo foi desaparecendo, e entre 1969 e 1970 (ano limite do universo dessa
pesquisa) predominava o discurso jornalístico objetivo, de caráter meramente
informativo. A coluna política de Rodrigues Filho, intitulada “Política e Políticos” do
início de 1964 até janeiro de 1965 (quando passa a ser identificada apenas pelo nome de
seu autor acompanhado do subtítulo “Informa e Comenta”), há muito não existe. Em
seu lugar, já em dezembro de 1968, surge a coluna “O Dia Político”, que descrevia
acontecimentos políticos (nacionais e locais) de forma direta – sem identificação de seu
autor. Nenhuma menção aos cerceamentos da atividade jornalística (seja a nível local ou
nacional) era feita. O “sentimento” de paz entre governo e nação continuava presente
nas matérias.
Quatro dias após o decreto do AI-5, o periódico estampa em sua capa duas
manchetes emblemáticas: “Líderes Certos de Que o Congresso Abrirá em Março” e
“Todo o Piauí Tranquilo”. A atmosfera criada por essas manchetes amenizava – e
deixava a população alheia – a violência que o Ato Institucional nº 5 representou para as
liberdades civis e de imprensa, evitando insatisfações e apaziguando os ânimos da
população, passando a ideia de que as decisões do presidente e seus aliados contribuíam
apenas para o bom funcionamento do Estado.
Em alguns momentos, fica óbvio o apoio ao presidente Costa e Silva, não apenas
na sua função de governador do país, mas como pessoa. Mais de uma vez, matérias
sobre Costa e Silva continham expressões que chegavam a demonstrar certo apreço e
afeição pelo presidente – fato mais facilmente observado durante o período que
antecedeu sua morte, quando as complicações de saúde do chefe do governo se
tornaram públicas, gerando, inclusive, grande comoção no povo brasileiro. Após seu
falecimento, O Dia passaria a publicar – em um espaço de quase uma página inteira,
durante mais de 19 exemplares – uma retrospectiva da vida na presidência até a morte
do general Arthur Costa e Silva, intitulada “Impedimento e Morte de Costa e Silva”.
Por fim, durante o último recorte da pesquisa – de 1969 até setembro de 1970 -,
seu sucessor, Emílio Garrastazu Médici, é referenciado junto a expressões que o
qualificam. As matérias políticas resumem-se, cada vez mais, aos “fatos”. E, agora, são
matérias de cunho local a ocupar a maior parte das páginas do periódico, dividindo
espaço, sobretudo, com matérias policiais que se utilizavam de fotografias de cenas
violentas, como acidentes automobilísticos e corpos de pessoas assassinadas.
Considerações Finais
A ditadura militar no Brasil pintada nas páginas de O Dia entre 1964 e 1970
(recorte desta pesquisa), é o avesso da visão ampla e dialética atual sobre o período,
recuperada pelo trabalho histórico e constantemente reforçada nos mais variados
suportes midiáticos - que, tendo em vista os princípios da liberdade e democracia,
apontam o período como uma mancha na democracia brasileira, marcada pela restrição
das liberdades civis e de imprensa, perseguições e pressões contra jornalistas e civis que
se colocaram contra o regime, além das práticas de tortura e casos de assassinatos
(muitos ainda hoje não solucionados) envolvendo militares a serviço da manutenção do
governo autoritário.
Referências Bibliográficas
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letas, 2004.
MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p.
7-32, 1999.
Referências Hemerográficas