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A Batalha do Apocalipse

Eu costumava dizer por aí que meu lamento sobre a literatura fantástica brasileira era que eu
ainda não tinha encontrado um livro que me despertasse o mesmo sense of wonder que senti
com grandes autores como Arthur Clarke, Ursula Le Guin, Marion Zimmer Bradley... Ou seja,
ainda não tinha lido uma obra brasileira arrebatadora.

Posso dizer que essa queixa, sim, ficou no passado! O livro A Batalha do Apocalipse, do
Eduardo Spohr, é merecedor do ISO9001 de excelência literária, e mais: virou um incontestável
best seller digno de calar a boca de quem desacreditou do potencial da fantasia brasileira!

Um pouco por preconceito, um tanto por pós-conceito, nunca achei clara a associação entre
best seller e qualidade literária, até porque acredito que para se tornar best seller o autor, por
mais hábil que seja, precisa fazer certas concessões para agradar a um público numeroso.
Nesse pensamento, alguns clichês são previsíveis (quiçá inevitáveis?). Não vou dizer que A
Batalha do Apocalipse é um livro isento de clichês, mas é com certeza um best seller de uma
qualidade literária surpreendente.

O livro conta a saga do anjo Ablon e seu séquito de anjos guerreiros, todos renegados, vivendo
na terra entre os mortais e atravessando os milênios desde a expulsão do paraíso até o tempo
do Juízo Final. A diferença fundamental entre anjos e homens é que os anjos não tem alma,
nem paixões humanas: são movidos por objetivos maiores, têm uma personalidade estoica e
uma inexplicável atração pelo combate. Nesse perfil, Ablon é o típico guerreiro solitário:
lutador incansável, puro, movido por um ideal e até mesmo celibatário – exatamente como
eram os heróis das novelas de cavalaria. Acontece que Lúcifer, o príncipe do inferno, quer
erradicar os anjos renegados, razão pela qual o exército de anjos caídos de Ablon está sendo
caçado. Na sua jornada milenar pelo mundo, Ablon tem como sua única companheira a
feiticeira Shamira, que conquistou a imortalidade com o domínio das artes da necromancia.
Ablon e Shamira levam vidas solitárias, mas com encontros e desencontros através dos séculos
e em grandes momentos da história humana. É fascinante a habilidade com que o autor
desenha a trajetória dos protagonistas tomando confortavelmente como pano de fundo todo
o planeta e a história da humanidade! A trama se passa em momentos e regiões tão diferentes
quanto a Babilônia, a China, Roma, Alexandria, a Bretanha medieval, o Império Romano do
Oriente, o Rio de Janeiro e a Jerusalém contemporânea – e mesmo as cidades bíblicas de
Enoque e Sodoma – amarrando todos esses lugares e períodos dentro de uma única aventura,
que se saiu muito variada, instigante.

Há um cuidado especial com as ambientações históricas, geográficas, técnicas e até mesmo


bíblicas! É muito bom ler um livro tão rico e que passe as informações corretas, nota-se um
profundo respeito para com a história e, principalmente, para com o leitor! Dentro da
proposta do épico, o livro é praticamente perfeito. É uma história ambiciosa, variada, e
constituída por uma pesquisa riquíssima. O texto é bem redigido, e tem o ritmo certo. Apesar
de ser um livro longo, não enrola o leitor. O universo tem consistência interna, é coerente e
verossímil. E é bonito! Repleto de cenas grandiosas, é cinematográfico!

É bastante interessante a forma com que foi tratada a coexistência dos universos: o mundo
dos anjos que se liga ao dos mortais pelo “tecido da realidade”, que por sua vez pode se
relacionar a outras teogonias, como os contos de fadas celtas e a mitologia chinesa.

Eu comentei que o livro não é isento de clichês. Como no épico, tudo é idealizado: os
personagens, as lutas, as situações. Em algumas circunstâncias, a idealização torna certos
detalhes da trama bastante previsíveis, o que não prejudica a beleza e a força do resultado
final.

Por uma questão de gosto pessoal, eu sou uma leitora que cochila em cenas de ação e de luta
– curto mais a viagem, os questionamentos – então os últimos trechos, que contam a Batalha
do Apocalipse propriamente dita, me pareceram um pouco cansativos. Em contrapartida, pude
me deleitar em maravilhosas viagens com Ablon, Shamira e Flor do Leste (uma personagem de
carisma irresistível!) através da antiguidade – trechos lindos, extraordinários!

Provavelmente a razão (e o merecimento) de tamanho sucesso d’A Batalha do Apocalipse é


esta: é uma saga variada, com potencial de agradar a gregos e troianos e encantar todo
mundo!

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