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Uma grande angular sobre a guerra colonial,

manual de leitura obrigatória


Publicado em Outubro 5, 2020Abril 21, 2021 Em Leituras Por Mário Beja Santos
Guerra Colonial, por Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Porto Editora,
2020, é o mais abrangente de todos os documentos até hoje publicados para o
grande público sobre o acontecimento mais marcante da nossa História na
segunda metade do século XX. Abalançaram-se a um grande desafio estes dois
investigadores com créditos firmados neste ramo historiográfico, saem altamente
compensados pelo resultado final, deram-nos uma obra irrepreensível,
fundamentada do princípio ao fim, ponto curioso, graças a uma primorosa
narrativa que nunca cede ao rigor, mas dentro de uma estrutura comunicativa
acessível a leigos e igualmente suscetível de interessar todo e qualquer
estudioso nesta matéria.

O que torna este manual ou roteiro o livro que deve constar das nossas estantes
é o modelo estrutural adotado, não se descuram políticas ou doutrinas, os
territórios onde se fizeram as guerras, a composição dos diferentes ramos das
Forças Armadas que estiveram envolvidos, quem era quem nos movimentos de
libertação, como reagiram as populações que a guerra envolveu, na retaguarda
portuguesa o que se pensava da guerra, ao longo da sua duração e crescente
penosidade, como se constituíra ou fermentara o ideal imperial português de que
Salazar se tornou o arauto irredutível.

Em sequência, dá-se ao leitor os cenários da guerra, as doutrinas sobre a guerra


subversiva, vemos dispostos no terreno os diferentes efetivos e vemos atuar a
guerrilha e reagir a contra-guerrilha. Estamos num tempo, a nova África do pós-
guerra, há instâncias novas, onde funciona um diálogo multilateral que alterou a
diplomacia convencional, a ONU. Adriano Moreira dá um excelente depoimento
sobre Salazar e o seu Estado beatificável, parece estarmos num drama
shakespeariano de um regime personalizado que foi entrando em
degenerescência interna.

Abrem-se as cortinas do palco e estamos no início da guerra em Angola, vamos


depois conhecer os teatros de operações, os movimentos de libertação da mais
vasta das colónias. A seguir vem a Guiné, acompanhamos as razões de Amílcar
Cabral e a fundação do PAIGC, o pensamento e ação conducentes a uma
guerrilha que teve uma entrada fulgurante e uma estratégia que surpreendeu os
Comandos portugueses, acompanhamos o desenrolar da guerra, conhecemos
os seus efetivos e releva-se os acontecimentos de 1973, que se revelaram
cruciais. Passa-se para a guerra em Moçambique, apresenta-se a FRELIMO e a
evolução do teatro de operações, tudo começara no Norte, depois a FRELIMO
avançou para o Sul até que a população branca explodiu em Vila Pery e Beira,
chegara o terror às fazendas, os colonos criticavam asperamente a incapacidade
das forças portuguesas.

Os autores dissecam a orgânica das Forças Armadas, dão-nos um resumo


admirável dos dispositivos, do armamento, das forças especiais. De igual modo,
são apresentados os movimentos de libertação, os dispositivos efetivos, o
armamento. Recorda-se o esforço de conquistar as almas, como a guerra se
africanizou. Passa-se para o quotidiano, a vida nos quartéis, a importância do
correio, a exaltação de valores como o das cerimónias do 10 de Junho ou a
atribuição de condecorações.
Contra-guerrilha significa ter de haver um preceito estratégico basilar, e os
autores distinguem três modos de fazer a guerra nas pessoas de Costa Gomes,
Spínola e Kaúlza de Arriaga, o leitor mais exigente encontrará nestas
apresentações o que distinguia estes três cabos de guerra: o delineamento
estratégico, frio e pragmático, de Costa Gomes, que obteve sucesso na
desarticulação da guerrilha, sobretudo na Frente Leste de Angola; Spínola
começou por conter o ímpeto da guerrilha do PAIGC, procurando atrair
populações indecisas, gerando novas formas de diálogo como foi o caso dos
Congressos do Povo, jogou seriamente a cartada de pôr grupos do PAIGC nas
Forças Armadas Portuguesas, que teve um desfecho trágico, deu impulso a uma
operação na Guiné Conacri que redundou num desastre diplomático sem
precedentes, tentou negociar um processo de auto-determinação para a Guiné
que Marcello Caetano recusou e depois os acontecimentos de maio de 1973,
verificando que não lhe davam equipamento que se pudesse confrontar com os
novos armamentos e novas táticas de quase guerra convencional montadas pelo
PAIGC, pediu exoneração, ato que teve ressonância para o futuro da guerra; e
Kaúlza de Arriaga, o mais ideológico dos três generais, para quem só a vitória
militar contava, montou uma operação no Planalto dos Macondes convencido
que aniquilaria os efetivos e a influência da FRELIMO junto das populações,
enganou-se redondamente, estes efetivos começaram a progredir para o Sul e
corresponderão ao desafio de fazer a vida negra na construção da barragem de
Cahora Bassa.

Este manual ou roteiro não descura as finanças ou o custo da guerra, o rol de


mortos, feridos e prisioneiros. Chegamos à última etapa do Império, à formação
do MFA e à queda do Estado Novo. Não são esquecidas as feridas de guerra,
os deficientes em particular. Usando da maior franqueza, os autores questionam
a mitologia saudosista de que a guerra fora perdida por falta de vertebração dos
militares, aquela guerra era sustentada e alegam mesmo que os guerrilheiros
davam mostras claras de esgotamento, houvera uma “vitória traída”. Agarrando
na documentação que hoje se pode compulsar, desmontam, peça por peça, a
mitologia de que as Forças Armadas controlavam a situação nos três teatros de
operações, ou de que haviam alcançado a vitória militar em parcelas desses três
teatros ou de que conseguiriam manter a soberania sobre os territórios
ultramarinos desde que tivessem vontade para combater. Mostram como a
situação de Angola não era de paz, havia uma séria e assumida ameaça
convencional sobre Cabinda e o Norte, que em Moçambique a FRELIMO estava
a infiltrar grupos cada vez mais para Sul, chegando à estrada Beira–Lourenço
Marques, era uma situação em profunda degradação, a Igreja Católica
manifestava uma clara oposição à guerra, nos bastidores Jorge Jardim
procurava uma alternativa à continuação da guerra, que ele considerava perdida;
e a Guiné-Bissau fora reconhecida como país independente, os Altos Comandos
tinham decidido uma manobra de retração, que era a clara admissão de que as
forças portuguesas abdicavam da posse de uma boa parte do território da Guiné,
iriam concentrar-se no reduto central, a soberania portuguesa seria apenas
formal e enquanto pudesse sê-lo, adivinhava-se com o reconhecimento da
independência que muitos países iriam apoiar ataques ao reduto português,
adivinhavam-se as consequências, teríamos ali uma nova Índia. Enquanto tudo
isto se passa, o último trimestre de 1973 e o primeiro de 1974 revelam um regime
em conspiração e a tentativa desesperada do governo de Marcello Caetano em
encontrar interlocutores junto dos movimentos de libertação, mantendo a
fachada que a guerra continuaria sem desfalecimento. Recorda-se ao leitor de
que o Governo Português, desde Salazar, recebia um programa de apoio da
África do Sul graças a uma aliança política e militar, o Exercício Alcora. E este
manual ou roteiro de indiscutível importância, único no panorama editorial
português, termina com uma lista de protagonistas tidos como bastante
influentes no quadro da guerra colonial.

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