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O Observador inicia hoje a publicação de uma série de ensaios sobre a

Guerra Colonial Portuguesa, 1961-1975. Começamos por discutir as


divergência entre Salazar e Botelho Moniz no início do conflito

Embora não tenha sido a mais mortífera, a guerra colonial foi


cronologicamente o mais longo conflito militar em que Portugal se viu
envolvido desde as guerras da Restauração, iniciadas em 1640 e
concluídas em 1668 (para Angola e Moçambique, porém, as guerras de
libertação nacional – treze anos no primeiro caso e dez no segundo –,
foram mais curtas do que as guerras civis iniciadas, respectivamente, em
1975 e em 1977). Num conjunto de curtos ensaios a publicar a partir
deste mês de Agosto, procurarei analisar alguns episódios que considero
relevantes, mesmo quando aparentemente menos óbvios, da história
das guerras coloniais ocorridas em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique
entre 1961 e 1975, embora aqui e ali tanto as fronteiras geográficas como
as cronológicas sejam desrespeitadas.

Estes pequenos estudos tratarão temas de história militar num sentido


amplo. Ou seja, abordarão questões militares do ponto de vista das suas
origens e significado político, cultural, económico ou social.
Estes pequenos estudos tratarão temas de história militar num sentido
amplo. Ou seja, abordarão questões militares do ponto de vista das suas
origens e significado político, cultural, económico ou social. Por outro
lado, não se centrarão apenas numa análise da guerra colonial na
perspectiva do confronto político-militar entre o estado colonial
português e os movimentos de libertação. A guerra colonial, como se
verá e é minha convicção, foi, também, uma disputa política interna ao
estado colonial e aos movimentos de libertação — com outros
protagonistas estatais, não estatais, regionais, nacionais ou
internacionais. Por outro lado, a guerra só pôde ser feita, tanto do lado
português, como do lado africano, porque ambos os beligerantes
contaram com apoios externos — umas vezes óbvios, outras vezes
inesperados, aqui e ali ostensivos, mas muitas vezes repetidamente
ocultos ou dissimulados. Por fim, a guerra não ocorreu apenas em
Portugal e no seu império africano; aconteceu em vários pontos do
globo.

Na longa história (ou evolução) desta guerra global, não importava


apenas a qualidade e a quantidade do armamento, no sentido
convencional do termo, de que as partes dispunham. Particularmente
importante foi o uso que se fez de recursos políticos dos mais variados e
que se destacavam por terem como objectivo não apenas vencer um
confronto militar no terreno mas, também, conseguir a conquista dos
“corações e das mentes” das populações africanas residentes nas
colónias portuguesas, da opinião pública portuguesa, das elites políticas,
sociais e militares portuguesas, e ainda da opinião pública internacional
e de decisores políticos ou actores económicos espalhados pelo mundo.
Ou seja, devemos preparar-nos para ver um conflito como a guerra
colonial enquanto um acontecimento em que as questões militares são
necessárias para perceber aquilo que esteve em causa, mas não
suficientes para explicar a sua natureza, desenvolvimento e desenlace.
Os principais actores do conflito perceberam muito bem esta realidade
e agiram em conformidade. Os historiadores e o público que se interessa
pela história da guerra colonial nem por isso.

A questão da preparação portuguesa para a guerra


(1961) – Que guerra e quando?

“Não são as sublevações que hão-de definir os resultados finais.”


Oliveira Salazar, 30 de Agosto de 1960

Numa reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional realizada a 30


de Agosto de 1960 no Palácio de São Bento, e no decurso da qual se
trataram “assuntos relacionados com a defesa do Ultramar”, Oliveira
Salazar iniciou os trabalhos com uma exposição que dava mostras da sua
preocupação com os desenvolvimentos registados recentemente na
situação política da África subsaariana. O presidente do Conselho
reconheceu que desde Julho de 1959, quando se tinha realizado a última
reunião entre os conselheiros da defesa nacional, a situação naquela
região sofrera alterações profundas tornando-se “mais difícil para nós”.

Salazar percebeu que povos e territórios


“subordinados a países amigos”, no presente
ou num futuro mais ou menos próximo,
tornar-se-iam independentes e, portanto,
teriam para com Portugal, e o seu estatuto de
estado colonial, uma atitude certamente
hostil, ainda que com gradações distintas.
A causa era simples: se em Julho de 1959 a independência da Guiné
francesa (ocorrida em Outubro de 1958) e a do Congo belga (que teria
lugar em Junho de 1960), pareciam ser as únicas ameaças sérias ao
status quo prevalecente na chamada África negra e à estabilidade e
segurança relativas existentes nas colónias da Guiné, de Angola e de
Moçambique, um ano mais tarde era evidente que o “desmoronamento
dos territórios” que rodeavam as províncias ultramarinas portuguesas
iria ter repercussões tanto na sua segurança externa como interna. Povos
e territórios “subordinados a países amigos”, no presente ou num futuro
mais ou menos próximo, tornar-se-iam independentes e, portanto,
teriam para com Portugal, e o seu estatuto de estado colonial, uma
atitude certamente hostil, ainda que com gradações distintas.

Definido o quadro geral, Salazar enunciou depois outro tipo de


consequências para a segurança e integridade dos territórios
portugueses em África, que decorreriam desta nova realidade. Entre
aquelas, a principal relacionava-se com a planificação política e militar
que vinha sendo feita e que devia ser revista. Ou seja, era imperioso que
se preparassem as Forças Armadas para fazerem face não já à forte
probabilidade mas à inevitabilidade de uma “sublevação da população
negra.” Ora, é sobre esta questão política e militar e o seu significado que
este primeiro texto sobre a guerra colonial se debruça.

Dilemas militares e confrontação política.

A formação e consolidação de uma nova realidade política africana no


final da década de 1950 e no início da década de 1960 significava que, a
par do reconhecimento da existência de outras potenciais ou reais
ameaças à política colonial portuguesa, medidas extraordinárias deviam
ser tomadas pelas autoridades coloniais. No domínio da acção político-
militar que pretendia prevenir, adiar e, finalmente, limitar os custos de
uma inevitável sublevação ou insurgência armada nos territórios
coloniais, as autoridades portuguesas procuraram definir e pôr em
prática uma nova estratégia. Ou melhor, uma estratégia que
complementasse aquela que até meados do ano de 1960 considerou que
a situação política em África, e a questão global da descolonização, não
se alterariam nem substancial nem rapidamente.

Salazar foi acusado de não ter preparado as forças armadas para a


guerra que se aproximava
Note-se, porém, que modificado o ritmo e o alcance das transformações
ocorridas no espaço africano, tal não significou que se tivesse tornado
irrelevante a existência de outras ameaças ou riscos para os interesses
portugueses. Era o caso, por exemplo, e ainda segundo Salazar, de ter
prosseguido e ter sido aprofundada uma “modificação geral” na “política
das Nações Unidas em relação à África”; ou o facto dos “Americanos”
desconhecerem “completamente os problemas Asiáticos e Africanos”.

Isto indica que em Lisboa se percebia que os EUA estavam já a


desinvestir, ou em vias de desinvestir mais ainda, na sua política de
apoio ao colonialismo europeu como forma de travar a formação de
vazios de poder na Ásia e em África resultantes de descolonizações
precipitadas — facto que, segundo Washington, e durante cerca de uma
década, proporcionara oportunidades para a afirmação da presença e do
poder da União Soviética e de seus aliados naqueles dois continentes.

Durante décadas, fruto dos testemunhos deixados sobretudo por


militares que nos meses de Março e Abril de 1961 conspiraram frustrada
mas intensamente com o intuito de afastarem Salazar da chefia do
governo, foi voz corrente a ideia de que o ditador ignorou as ameaças
políticas e militares que pairavam sobre o império africano português
como consequência da resistência do Estado Novo aos ventos de
mudança que teriam tornado mais ou menos inevitável a descolonização
dos impérios ultramarinos europeus.

Paralelamente, Oliveira Salazar foi acusado de ter recusado aceitar a


inevitabilidade do deflagrar de uma guerra contra movimentos de
guerrilha na Guiné, em Angola e em Moçambique, à imagem das guerras
revolucionárias de libertação nacional, anticoloniais ou não, que
enxamearam a Ásia, a África e a América Latina no decurso da Guerra
Fria. Essa recusa teria impedido as chefias militares de apetrecharem as
Forças Armadas com meios materiais, humanos e a doutrina que
poderiam possibilitar que se travasse com êxito uma guerra de contra-
insurgência.

Botelho Moniz, o ministro da Defesa que quis derrubar Salazar

No entanto tal acusação está longe de corresponder à verdade, sendo


desmentida por factos que demonstram ter Salazar percebido, como
toda a cúpula política e militar do Estado Novo, que a guerra — provável
primeiro, e inevitável depois — com que Portugal se confrontaria, não só
ocorreria em África como teria uma natureza “subversiva” (é verdade
que Salazar temeu em 1959, 1960 e 1961 que se pudesse reunir na Guiné-
Conacri um exército internacional, cujo intuito seria invadir e ocupar o
território da Guiné portuguesa).

Sendo assim, que razão terá levado militares próximos de Botelho Moniz
a difundiram a imagem, hoje genericamente aceite, de um Oliveira
Salazar incapaz de reconhecer que a guerra que iria ocorrer na África
portuguesa seria combatida segundo o paradigma da contra-
insurgência, por um lado, e que o ditador tudo teria feito para travar,
pelo menos em parte, uma preparação adequada das Forças Armadas
portuguesas para um conflito com aquelas características?

A ideia de que a um Salazar “reaccionário” ou


“ultraconservador” se opunha um Botelho
Moniz liberal, não passa de uma mistificação
construída posteriormente por defensores
da “Abrilada”
Na verdade a resposta é simples e pouco ou nada tem que ver com
questões natureza militar. As divergências que se instalaram no topo do
Estado Novo e do Governo sobre como preparar a guerra que aí vinha
eram exclusivamente políticas, pelo que a questão da forma como a
guerra de contra-insurgência seria planeada e executada foi um
elemento lateral naquilo que era uma rivalidade e uma desconfiança
profunda entre membros do Governo desde Agosto de 1958 – data em
que uma importante remodelação governamental fez substituir
Fernando Santos Costa por Júlio Botelho Moniz na condução da pasta
da Defesa Nacional.

Note-se, porém, que essas rivalidades não tinham por trás quaisquer
divergências político-ideológicas inconciliáveis sobre a forma como
Portugal devia ser governado. Eram essencialmente pessoais e andavam
em torno da mais pura luta pelo acesso ao poder e seu uso. A ideia de
que a um Salazar “reaccionário” ou “ultraconservador” se opunha um
Botelho Moniz liberal, não passa de uma mistificação construída
posteriormente por defensores da “Abrilada” (qualquer biografia
política do general Botelho Moniz mostra à saciedade as suas credenciais
autoritárias e salazaristas).
Botelho Moniz fez parte de uma missão militar que visitou a frente leste
durante a II Guerra, acompanhando o exército alemão

Deixemos agora de lado a discussão sobre a natureza da política colonial,


e do próprio regime político, que conduziu à opção pelo uso da força
militar como forma de preservar a integridade do império ultramarino
português.

Como Salazar preparou a guerra

No que diz respeito à preparação portuguesa para uma guerra colonial,


Salazar criou uma equipa em vários ministérios e subsecretarias de
Estado com o objectivo de preparar as Forças Armadas, e especialmente
o Exército, para um conflito com aquelas características. Fê-lo, porém,
tendo em conta, pelo menos, três condicionantes que os seus adversários
de então no Governo e no regime, nomeadamente os ministros da Defesa
Nacional e do Exército (além do subsecretário de Estado do Exército,
Francisco da Costa Gomes), combateram na altura e ignoraram depois
em grande parte dos testemunhos produzidos sobre os acontecimentos
que precederam a “abrilada”.

A primeira condicionante reconhecia e aceitava que os meios financeiros


e humanos à disposição do estado português eram limitados e, por isso,
deveriam ser usados criteriosamente. Por exemplo, a preparação
financeira para uma guerra colonial implicava, segundo Salazar, um
desinvestimento do empenhamento político, militar e também
financeiro por parte das Forças Armadas Portuguesas e do estado
português na NATO e na cooperação militar com a Espanha ao abrigo
dos acordos político-diplomáticos e militares celebrados em 1939 e
depois várias vezes revistos e reafirmados.

Desfile militar em Luanda, no início da guerra

Em segundo lugar, o reforço moderado do investimento no dispositivo


militar colonial – criado no império, para lá deslocado ou a deslocar –
deveria ser rigoroso e realista tanto política como financeiramente. Isto
é, não devia pôr em perigo o equilíbrio orçamental, a distribuição justa
e necessária de recursos entre ministérios, mas também não devia nem
podia criar desequilíbrios excessivos – quanto às dotações financeiras,
prontidão operacional ou aquisição de armamento – no seio das
próprias Forças Armadas, uma vez que tal eventualidade poderia ter
consequências políticas imprevisíveis.

Finalmente (terceira “condicionante”), o calculismo de Salazar


relativamente à questão do investimento numas Forças Armadas que
deviam estar mais apetrechadas para prevenirem e/ou enfrentarem com
êxito uma guerra colonial decorria da desconfiança que o presidente do
Conselho sistematicamente nutriu relativamente aos chefes militares,
com especial destaque para aqueles que não conhecia bem e/ou em
quem não confiava.

Botelho Moniz pretendia manter e até reforçar os compromissos com a


NATO, ao mesmo tempo que defendia acirradamente um reforço da
presença militar em África. Ora a persecução destes dois objectivos teria
como consequência inevitável provocar a rotura das finanças do estado
português
Ora a falta de confiança política nas chefias militares, tanto ou mais do
que a falta de recursos e a necessidade de os usar de forma quantitativa
e qualitativamente equilibrada, foi a causa do imobilismo aparente que
teria norteado a acção de Salazar nos anos que precederam o início da
guerra em Angola em Março de 1961. Ou seja, embora se pudesse
argumentar em 1960-61, como se pode argumentar hoje, que havia algo
no domínio da definição e da organização da política de defesa que
poderia separar Salazar de Botelho Moniz, tal não radicava na forma
como um e outro antecipavam a evolução da situação militar nas
colónias e a melhor forma para responder à guerra que se adivinhava.
Ela radicava, em primeiro lugar, no facto de Botelho Moniz pretender
manter e até reforçar os compromissos com a NATO, ao mesmo tempo
que defendia acirradamente um reforço da presença militar em África.
Ora a persecução destes dois objectivos teria como consequência
inevitável provocar a rotura das finanças do estado português.

A preparação portuguesa para a guerra


denotou, pois, a existência de um regime
politicamente dividido, embora essa divisão
fosse mais circunstancial do que estrutural.
Superadas essas divisões, o governo e o
regime, com as Forças Armadas, puderam
então centrar-se no essencial.
Uma outra diferença importante, a segunda, manifestava-se na
circunstância de, aparentemente, Botelho Moniz não valorizar o impacto
que, no conjunto das Forças Armadas, nomeadamente na sua coerência
e coesão interna, teria uma mudança demasiado rápida nas suas
estruturas como resultado da atribuição de dotações orçamentais
generosas para cumprir os compromissos NATO e os compromissos
africanos. Aliás, uma qualquer subida substancial dos gastos com a
defesa, ainda antes dos acontecimentos ocorridos em Angola em 1961,
teria tido como resultado, caso Salazar a aceitasse, provocar mal-estar
não só entre membros do governo, mas certamente entre outros círculos
mais afastados mas necessariamente não menos importantes no apoio
ao regime e ao seu líder.

A sublevação político-militar começou a 15 de Março de 1961 no “norte”


de Angola

A preparação portuguesa para a guerra denotou, pois, a existência de um


regime politicamente dividido, embora essa divisão fosse mais
circunstancial do que estrutural. Superadas essas divisões, o governo e
o regime, com as Forças Armadas, puderam então centrar-se no
essencial. E o essencial era enfrentar a sublevação político-militar
lançada a 15 de Março de 1961 no “norte” de Angola, sublevação que,
independentemente daqueles que foram os seus mentores e
perpetradores, acabaria por ser reivindicada pela UPA liderada por
Holden Roberto.

Próximo ensaio.

Se o estado colonial português se preparou, dentro das suas limitações,


para uma guerra que sabia inevitável, qual era a o grau de prontidão do
lado dos movimentos políticos e militares que reivindicaram a partir de
Fevereiro e Março de 1961 o início da luta armada contra o estado
colonial português? A esta pergunta tentarei responder no próximo
ensaio, sendo certo que o maior ou menor grau de preparação militar
para dar início e continuidade a acções de insurgência política e militar
dependia de três variáveis.

Primeiro, da capacidade demonstrada pelas lideranças destes


movimentos para agregarem a constelação de sensibilidades e
personalidades que pretenderam ao longo das décadas de 1950 e 1960
ocupar o espaço político, ideológico, cultural e social do nacionalismo na
Guiné-Bissau e em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique.
Segundo, do nível de coesão interna existente em maior, menor ou
nenhum grau nos movimentos nacionalistas que tinham a luta armada
como desígnio.

Finalmente, da capacidade de mobilizar apoios políticos, militares ou


financeiros internacionais e de os usar de forma eficaz, não apenas no
combate ao colonialismo mas ainda, e sobretudo, na mobilização e
sensibilização de franjas tão largas quanto possível da opinião pública
internacional, alertando-a para a legitimidade e a bondade do
anticolonialismo em geral e do nacionalismo que se opunha ao estado
colonial português em particular.

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