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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia,
I.P., no âmbito do projeto Identidades Nacionais em Diálogo: Construções de Identidades Políticas e
Literárias em Portugal, Angola e Moçambique (1961–presente) (IF/00654/2015/CP1283/CT0004).
Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade dos seus
autores e das suas autoras.
Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita
do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infrator.
______________________________________________________________________
biblioteca nacional de portugal – catalogação na publicação
DecliNações : género e nação nas literaturas e culturas africanas de língua portuguesa / org. Doris Wieser,
Jessica Falconi. – (CES)
ISBN 978-989-40-0466-0
I – WIESER, Doris
II – FALCONI, Jessica
CDU 821.134.3(6).09(042)
A Coleção CES/Almedina é o instrumento mais visível da produção científica atual-
mente desenvolvida no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
Procura espelhar a atualidade e a interdisciplinaridade dos debates nas Ciências
Sociais e Humanas que marcam a investigação aqui realizada.
Disseminar o trabalho de investigação e contribuir para a reflexão científica em curso
constituem-se como os seus dois objetivos principais – sempre a partir de perspetivas
históricas, culturais, políticas e sociológicas diversas, que não temam abraçar os novos
desafios epistemológicos em emergência, sendo exemplo os diálogos com o Sul e desde o Sul.
A parceria que está na origem da Coleção procura potenciar as vantagens que resultam
do encontro entre a produção científica realizada no CES – enquanto unidade de investiga-
ção de excelência reconhecida internacionalmente – e o prestígio das Edições Almedina.
Todos os manuscritos submetidos à Coleção CES/Almedina passam por um rigoroso
processo de revisão por pares, em sistema de double-blind peer review.
Comissão Editorial da Coleção CES/Almedina – Maria Paula Meneses (Diretora),
Catarina Martins, Daniela Nascimento, Graça Capinha, Fernando Fontes, João Arriscado
Nunes, João Paulo Dias, José António Bandeirinha, Marta Araújo, Nancy Duxbury, Pedro
Hespanha.
Mais informações em www.ces.uc.pt/pt/publicacoes/ces-almedina
ÍNDICE
SECÇÃO 1
DECLINANDO TRADIÇÕES E MODERNIDADES
7
D ECLI N AÇÕES
SECÇÃO 2
DECLINANDO ESCRITAS EM CHAVE COMPARATISTA
SECÇÃO 3
DECLINANDO «RETORNOS», PERCURSOS E DIÁSPORAS
8
ÍNDICE
SECÇÃO 4
DECLINANDO RESISTÊNCIAS: DO COLONIALISMO À ATUALIDADE
9
CAPÍTULO 11
ELAS AQUI: MULHERES ARTISTAS DE ANGOLA,
DE MOÇAMBIQUE E DAS DIÁSPORAS
E OS CIRCUITOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA*
*
Por vontade da autora, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
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D ECLI N AÇÕES
1. Notas introdutórias
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MULHERES ARTISTAS: ANGOLA, MOÇAMBIQUE E DIÁSPORAS
1
O Instituto Superior de Artes (ISART) foi fundado em Luanda em 2014 e teve os seus
primeiros alunos licenciados em 2019. A educação artística anteriormente disponível era
de nível secundário no Instituto Nacional de Formação Artística (INFA). Em 2015, o INFA
passou para a zona de Camama, na periferia de Luanda, integrando o Complexo das Es-
colas de Arte (CEARTE).
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D ECLI N AÇÕES
2
A União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP), fundada em 1977, desempenhou um
importante papel dinamizador das artes visuais na pós-independência. Sobre a concep-
ção socialista do «homem novo» e o conceito nacionalista de «angolanidade» na política
cultural e na produção artística da pós-independência, nomeadamente no que concerne à
UNAP, conferir Collier (2013) e Siegert (2014).
3
À excepção do critério geracional, a mesma lógica centrada no uso de certos meios e na
investigação de certos temas preside à selecção das artistas moçambicanas.
4
A guerra civil foi combatida pelos três movimentos de libertação — MPLA (Movimento
Popular de Libertação de Angola, liderado por Agostinho Neto), FNLA (Frente Nacional
de Libertação de Angola, liderada por Holden Roberto) e UNITA (União Nacional para
a Independência Total de Angola, liderada por Jonas Savimbi) — imediatamente após a
independência em 1975, com o apoio da União Soviética e de Cuba ao MPLA, do Zaire
à FNLA (que perdeu progressivamente relevância durante a guerra) e da África do Sul do
apartheid e dos Estados Unidos à UNITA. A guerra civil fez parte das dinâmicas alargadas
da Guerra Fria, ainda que não exclusivamente (Pearce, 2017a, 2017b), e terminou com a
morte de Jonas Savimbi em 2002. Líder do MPLA entre 1962 e 1979, Neto foi o primeiro
presidente da Angola independente. Sucedeu-lhe José Eduardo dos Santos (1979–2017),
que, por sua vez, foi sucedido por João Lourenço (2017–). O MPLA está no poder desde
a independência.
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Além de angolana, Kilomba também tem ascendência são-tomense.
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D ECLI N AÇÕES
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Várias organizações activistas negras têm lutado contra a lei da nacionalidade e as for-
mas pelas quais ela contribui para a exclusão dos filhos nascidos em Portugal de migrantes
africanos vindos das antigas colónias portuguesas. Muitos desses migrantes mudaram-se
para Portugal antes da independência dos seus países em 1973–1975, ou seja, num mo-
mento em que a legislação pós-Segunda Guerra Mundial do Estado Novo considerava
(apenas em teoria) que todos eram portugueses. Os governos revolucionários de 1974–
–1975 em Portugal nunca resolveram completamente a questão da nacionalidade, e os
pós-revolucionários chegaram a inscrever o ius sanguinis na lei, pois não era mais do inte-
resse do país que todos continuassem portugueses. Mais recentemente, algumas alterações
legislativas foram introduzidas para melhorar a situação, sem resolvê-la completamente.
7
Sobre estas intersecções e os feminismos negro, interseccional e descolonial, conferir,
entre outras, hooks (2015), Davis (1983), Hill Collins (2009), Crenshaw (1989), Vergès
(2017 e 2019).
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pela glória perdida das suas supostas «descobertas» e do seu império. Tais
amnésia e nostalgia foram reembaladas sob a forma da benevolente e fra-
terna influência portuguesa no mundo, nomeadamente nos países africanos
anteriormente colonizados, através do projecto de diplomacia política, eco-
nómica e cultural da lusofonia. Se a descolonização política teve lugar em
1974, as descolonizações epistémicas, psíquicas e institucionais continuam
por fazer. Por isso, sem confundir um sujeito diaspórico privilegiado com
um nacional, migrante ou refugiado racializado e destituído, e sem cair nas
armadilhas perigosas do essencialismo, uma política e uma ética da diáspora
e da migração em Portugal têm de estar profundamente sintonizadas com
a urgência da luta interseccional anti-racista, feminista e anticapitalista.8
Apesar da especificidade dos contextos, tais lutas permanecem igualmente
urgentes em Angola, em particular a feminista e a anticapitalista.
Trabalhando a partir de uma variedade de percursos pessoais contra
todas as formas de absolutismo étnico (ethnic absolutism) e outras formas
de essencialismo — para citar a proposta de Gilroy de uma dupla consci-
ência atlântica, inspirada, por sua vez, na obra de Du Bois (Gilroy, 1993)
—, as artistas aqui em discussão examinam as complexidades da pertença
nacional, continental e cultural. Uma actividade ético-política orientada para
mundos e futuros partilhados poderá, em última instância, surgir a partir
das próprias ambiguidades e ambivalências da migração e da diáspora.
O sujeito diaspórico negoceia necessariamente uma profusão de experiên-
cias díspares, e até contraditórias, de pertença, incluindo as herdadas, das
quais pode emergir um habitar partilhado e comunal do mundo; um habitar
8
Apesar de elaboradas a partir do contexto britânico, as ideias de Gilroy (1992 e 2004)
sobre melancolia pós-colonial, raça, racismo e multiculturalismo poderiam aplicar-se a
Portugal e a outros países europeus. As comunidades racializadas e segregadas, que vi-
vem maioritariamente nas periferias de Lisboa, têm um acesso estruturalmente dificultado
ao ensino superior e a empregos qualificados, nomeadamente nas artes. A sua situação
contrasta com a de muitas das artistas abordadas neste ensaio. Os sectores culturais e ar-
tísticos, nomeadamente da arte contemporânea, tendem a manter-se reservados às elites,
seja na Europa ou em África, em Portugal ou Angola. Assim, apesar da invisibilização
comparativa em relação aos seus pares brancos na cena artística portuguesa, a maioria des-
tas artistas é, no entanto, privilegiada — o que não significa que não enfrentem racismo,
sexismo e a precariedade económica de uma carreira artística.
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D ECLI N AÇÕES
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A noção de (un)belonging, que tenho elaborado em vários textos (por exemplo, Balona
de Oliveira, 2015, 2017, 2018b, 2018c e 2018d) e que traduzi por (des)pertença (Balona de
Oliveira, 2015 e 2019), é também usada por Rogoff (2000) e aproxima-se da unhomeliness
de Bhabha (1994).
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Gilroy escreve sobre a dimensão performativa e a dimensão discursiva da cultura
atlântica negra em termos de uma política (performativa) de transfiguração (politics of
transfiguration) e de uma política (discursiva) de realização (politics of fulfilment), con-
siderando-as como dimensões irmãs da sensibilidade negra (sibling dimensions of black
sensibility) (1993: 37–38).
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D ECLI N AÇÕES
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A luta de libertação foi levada a cabo pela FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique) a partir de 1964. O movimento foi liderado por Eduardo Mondlane até
seu assassinato a 3 de Fevereiro de 1969, e por Samora Machel, o primeiro presidente de
Moçambique independente, até à sua morte num acidente de avião a 19 de Outubro de 1986.
O avião no qual Machel viajava da Zâmbia para Moçambique caiu numa área montanhosa
da África do Sul. Houve suspeitas, nunca confirmadas, de que o governo sul-africano
estaria envolvido no acidente. A guerra civil (1977–1992) opôs a FRELIMO à RENAMO
(Resistência Nacional Moçambicana). A Rodésia patrocinou a fundação da RENAMO em
1975 para combater o apoio da FRELIMO aos movimentos de libertação do que viria a
ser o Zimbabwe. Ao contrário do que aconteceu em Angola, a África do Sul não invadiu
Moçambique, mas interveio na guerra apoiando a RENAMO contra o governo da FRELIMO.
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Kala foi co-curadora, com Melissa Goba, da exposição colectiva Cultural Brokerage:
Africa Imagined (Act 1), o segundo projecto da !KAURU, que teve lugar no Pretoria Art
Museum entre Maio e Junho de 2013 e que incluiu o trabalho de Adam. Com a VANSA,
Kala trabalhou nomeadamente no programa PAN!C — Pan African Network of Indepen-
dent Contemporaneity, uma plataforma para espaços independentes de arte contemporânea
no continente africano.
13
Ferreira e Adam foram as duas formadoras convidadas para a primeira edição do
Upcycles em 2019, um programa de residências artísticas em Maputo, organizado pela
Associação dos Amigos do Museu do Cinema em Moçambique (AAMCM) e destinado a
artistas emergentes dos países africanos de língua oficial portuguesa.
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A Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM)
foi criada em 2002. O Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC) iniciou as suas activi-
dades lectivas na Machava, em Maputo, em 2010.
15
Em Luanda, destacam-se as galerias Jahmek, Movart, This Is Not a White Cube (TI-
NAWC), Espaço Luanda Arte (ELA), Tamar Golan e Hall de Lima Pimentel. Em Maputo,
a única galeria comercial com participação em feiras de arte internacionais é a Arte de
Gema (ainda que a venda de obras de arte ocorra igualmente em espaços não comerciais).
Espaços expositivos relevantes são o MUSART, o Núcleo de Arte, a galeria da Associação
Kulungwana na Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique, a Fortaleza, a
Casa de Ferro e as galerias da Fundação Fernando Leite Couto e da Direcção de Cultura
da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). A forte presença dos centros culturais por-
tuguês, francês, brasileiro e alemão também se faz sentir em Luanda, em particular a do
português no que a exposições diz respeito. Outros espaços expositivos relevantes são a
galeria do Banco Económico, a UNAP, o Memorial Dr. António Agostinho Neto (MAAN),
o Museu de História Natural, o Palácio de Ferro, a Fundação Arte e Cultura, a Fábrica
de Sabão, a Academia BAI e o Hotel Globo, onde existiu a galeria Soso e a sede da Trienal de
Luanda e onde vários artistas têm organizado as edições do Fuckin’Globo desde 2015.
No passado, também o Teatro Elinga foi um importante espaço expositivo.
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D ECLI N AÇÕES
alguns dos seus nomes, como Josina Machel e Janet Mondlane (uma mulher
branca norte-americana), evocadas por Kala, e a poeta Noémia de Sousa
(tia-avó de Sousa e por si homenageada, entre outros, em Mafalala Blues,
2010, e celebrada por Ferreira em Súplica, 2018). Numa perspectiva pan-
-africanista, Kala expandiu esta lista com os nomes das inúmeras mulheres
que se destacaram nas várias lutas de libertação do continente (Imagine If
Truth Was a Woman... And Why Not?, 2016); e Ferreira prestou homenagem,
nomeadamente, à sul-africana Miriam Makeba, a partir de um olhar arqui-
tectónico sobre a sua casa no exílio na Guiné-Conakry (Pan African Unity
Mural, 2018; Dalaba: Sol d’Exil, 2019). Kala lembrou ainda as anónimas
mulheres moçambicanas que, envergando as suas capulanas, migram para
a vizinha África do Sul em busca de melhores condições de vida para se
depararem com a frequente realidade da xenofobia (Will See You in Decem-
ber... Tomorrow, 2015).
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forte destes meios quando se olha para lá do que uma geração e um circuito
artísticos mais internacionalizados têm produzido. Apesar desta preponde-
rância, a exposição não abdicou de uma interessante diversidade de meios.
Às obras fotográficas e videográficas de Abe, Boswell, Cherono Ng’Ok,
Kala, Keyezua, Kganye, Miranda, Mntambo, Muholi e Muluneh (muitas
delas de qualidade fortemente performativa pela forma como as câmaras
retratam ou auto-retratam os corpos em vários tipos de paisagem ou no
estúdio), acrescentaram-se interessantes exemplos de trabalho pictórico e
de colagem em tela, como o de Silva; serigráfico, material e espacial, como
o de Opoku; e mais explicitamente tridimensional, como os de Abe, Kala
(ambas conjugando fotografia e instalação), Mali e Ounga.
A exposição constituiu uma proposta discursiva de pendor tanto poético
quanto assumidamente ético-político, reflectindo sobre questões tão diversas
— ainda que intimamente relacionáveis — como as memórias pessoais e
familiares e as histórias colectivas; o habitar e ocupar dos espaços domés-
ticos e públicos, interiores e exteriores, das arquitecturas e das paisagens;
a política da representação e da auto-representação do corpo feminino;
o casamento, a maternidade e a religião; a desconstrução de estereótipos
patriarcais, cis e heteronormativos, racistas e eurocêntricos, nomeadamente
aqueles inscritos nas narrativas da história da arte ocidental; a agência do
olhar, da pose e do movimento; a materialidade corpórea do sujeito, o seu
poder político de transfiguração e de subversão de normatividades social-
mente impostas e naturalizadas, e as suas múltiplas manifestações virtuais.
Por tudo isto, e apesar de Being Her(e) ter ocupado a galeria do Banco
Económico (i.e., um espaço não propriamente dedicado a formas mais expe-
rimentais, horizontais e não-comerciais de produção artística e curatorial),
a exposição tornou-se de visita obrigatória.
Com efeito, um feminismo interseccional verdadeiramente descolonial
está longe de envolver apenas a questão da presença igual de mulheres e
homens em todas as arenas da vida pública e cívica, pois exige uma luta mais
ampla contra o capitalismo, o racismo, o sexismo, a homofobia e a transfobia
em vista de mudanças estruturais e sistémicas e um real compromisso com
meios de produção verdadeiramente democráticos e horizontais, incluindo
na produção cultural, artística, curatorial e historiográfica. No entanto, tal
presença constitui uma parte inestimável da luta — a da visibilidade e da
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Referências bibliográficas
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