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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

IAN PASCHOAL DA SILVA TEIXEIRA

“HÁ SUJEITO NO AUTISMO?”: A SÍNDROME AUTÍSTICA E A PSICANÁLISE


CONTEMPORÂNEA NA PANDEMIA DE COVID-19

Volta Redonda

2022
IAN PASCHOAL DA SILVA TEIXEIRA

“HÁ SUJEITO NO AUTISMO?”: A SÍNDROME AUTÍSTICA E A PSICANÁLISE


CONTEMPORÂNEA NA PANDEMIA DE COVID-19

Monografia apresentada ao Curso de


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, Campus de Volta
Redonda, como requisito parcial para a
obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

Orientadora:

Prof.ª Dr.ª Claudia Henschel de Lima

Volta Redonda

2022
Ficha catalográfica automática - SDC/BAVR
Gerada com informações fornecidas pelo autor

T266" Teixeira, Ian Paschoal da Silva


"Há Sujeito no Autismo?": A Síndrome Autística e a
Psicanálise Contemporânea na Pandemia de COVID-19. / Ian
Paschoal da Silva Teixeira. - 2022.
84 f.

Orientador: Claudia Henschel De Lima.


Trabalho de Conclusão de Curso (graduação)-Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Volta Redonda, 2022.

1. Emergência Humanitária. 2. Autismo. 3. Psicanálise. 4.


Psicopatologias do Apoio. 5. Produção intelectual. I. De
Lima, Claudia Henschel, orientadora. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. III.
Título.

CDD - XXX

Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368


IAN PASCHOAL DA SILVA TEIXEIRA

“HÁ SUJEITO NO AUTISMO?”: A SÍNDROME AUTÍSTICA E A PSICANÁLISE


CONTEMPORÂNEA NA PANDEMIA DE COVID-19

Monografia apresentada ao Curso de


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, Campus de Volta
Redonda, como requisito parcial para a
obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

Volta Redonda, 15 de dezembro de 2022.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________
Prof.ª Drª Claudia Henschel de Lima - UFF
Orientadora

_______________________________________________
Prof. Dr. Antônio Augusto Pinto Junior - UFF

_______________________________________________
M. Thalles Cavalcanti dos Santos Mendonça Sampaio – UFRJ

Volta Redonda

2022
AGRADECIMENTOS

Iniciar os agradecimentos em qualquer trabalho não é tarefa fácil. Nos perguntamos


sobre a forma de organizar os nomes, a ordem de importância de cada um (se é que há), as
pessoas que fizeram parte e hoje não são mais e o que isso tudo diz de nós mesmos. Existe uma
infinidade de nomes não nomeáveis para um agradecimento, e inicio então agradecendo àqueles
que, por infortúnio da memória e do tempo, não são trazidos neste texto.
Agradeço aos meus pais – Jussara e Luiz –, que enquanto fosse possível proporcionaram
tudo que fosse necessário para minha plena formação social e intelectual. Em especial minha
mãe que, tendo a história que tem, nunca permitiu que o mundo a desanimasse, sempre seguindo
em frente apesar de qualquer dificuldade: sem ela nenhuma dessas palavras aqui estariam. Ao
Luiz agradeço por escolher de bom grado retornar à paternidade comigo, enfrentando os
desafios de “pegar o trem andando”, mas pelo menos pegamos juntos.
À minha tia Alba por ter se disposto a cuidar de mim quando pequeno, me incluindo em
seu mundo enquanto me protegia dele. Apesar da morte de meu pai, seu irmão, se manteve
firme, me embalando o quanto pôde e enquanto pôde. Infelizmente o tempo não é amigo (nem
inimigo), e minha tia acabou por falecer antes do fim desse curso, mas felizmente a linguagem
me permite mantê-la viva comigo, mesmo que doendo (creio que seja esse o preço).
Ao meu pai que em todo seu amor exerceu o quanto foi possível seu cuidado, e que
mesmo após 16 anos continua sendo meu melhor amigo. Ainda o carrego comigo em tudo que
digo, escrevo e faço, o mantendo vivo o quanto posso e à minha maneira. As lágrimas ainda
caem, mas é através delas que confirmo o imenso amor que vivenciei.
Aos meus amigos entre cidades (e países) que, ainda bem, fiz lentamente e que
perduraram. Não caberiam todos os nomes neste pedaço de papel, mas agradeço os que me
abraçaram em meus momentos de fraqueza. A dor nunca foi grande suficiente para que eu
estivesse completamente só. Agradeço que em meio a pandemia pude ter alguns deles comigo,
e que após ela tive a oportunidade de descobrir e redescobrir alguns deles.
Agradeço à Isabela por ter me mostrado um caminho além do flagelo, e que com todo
seu amor e carinho me ensinou a paz no caos. O contato com pessoas sempre foi de extrema
dificuldade para mim, sendo quase impossível me comunicar perfeitamente ou expressar o que
sinto, e graças a ela consigo aceitar que até no gaguejar há fala, bastava alguém para ouvir.
À minha orientadora Prof.ª Dr.ª Claudia Henschel de Lima, que em seu cuidado e rigidez
possibilitou meu desenvolvimento como pesquisador, analista e psicólogo em formação. Sou
muito grato por todo nosso trabalho em conjunto com o laboratório e, acima de tudo, por toda
a paciência e consideração que teve comigo e outros diversos alunos. Sem sua parceria nada
disso seria possível, e torço para que nosso trabalho juntos possa se estender por toda minha
formação e além.
À FAPERJ que, através de seu projeto de bolsa em Iniciação Científica, propiciou um
espaço fértil para meu desenvolvimento como pesquisador; ao LAPSICON, laboratório em que
diversas pesquisas de extrema importância ao tema da saúde mental puderam ser desenvolvidas
e divulgadas; aos membros da banca, que fazem parte desse período essencial de minha
formação, se propondo a ler, discutir, avaliar e, acima de tudo, se empenhar como parte do
desenvolvimento de um novo companheiro de profissão; e à UFF, que é mãe de tantas outras
temáticas importantíssimas, e deu lar a mim e diversos pesquisadores para nos desenvolvermos.
Agradeço a Fernando Pessoa, que desde cedo caminha pela minha existência, me
lembrando que apesar de muitas vezes incapaz, conflituoso com meus próprios pensamentos e
destinado ao sofrimento da metafísica de mim mesmo, me coloco humano em todas essas coisas
que me ferem e constituem. Sou acima de tudo dividido subjetivamente, mesmo que deva deixar
isso de lado para enfim arrumar a mala.
Para finalizar, agradeço a todos aqueles que, mesmo sem nome para mim, fizeram e
fazem parte da luta por uma universidade pública, gratuita e de qualidade. Agradeço àqueles
que lutaram e lutam por um Estado democrático, incubador de produções científicas, arte,
cuidado em saúde pública, pedagogias inclusivas e, enfim, humanidade. Sem eles a questão não
seria minha ausência na universidade, mas do próprio espaço de estudo. A todos os pensadores,
clássicos e contemporâneos, que compuseram um local de luta pela subjetividade devo todo e
qualquer trabalho que fiz, faço e farei.

A todos supracitados deixo meu amor e respeito.


Atenciosamente, Ian.
Como um Marxista deixe-me dizer que se
qualquer pessoa te falar que Lacan é difícil,
isto é propaganda de classe pelo inimigo.

Slavoj Žižek
RESUMO

O presente trabalho foi entregue como requisito parcial à conclusão da graduação em Psicologia
da UFF – Volta Redonda, e para a obtenção do título de Bacharel em Psicologia. O objetivo
deste trabalho consiste em trazer, através da bibliografia psicanalítica, uma exposição acerca
dos modelos de tratamento atuais mais comuns à Síndrome Autística e suas relações com a
psicopatologia contemporânea e o sofrimento psíquico destes indivíduos durante a pandemia
do vírus SARS-CoV-2. Além disso, irá explicitar a formação histórica do diagnóstico de
autismo desde sua apresentação à literatura psiquiátrica pelo médico suíço Eugen Bleuler
(1911/1960) até a contemporaneidade, como forma de localizar historicamente o autismo. A
pandemia de COVID-19 expôs à pesquisa em psicologia uma diversidade de problemáticas em
torno da saúde mental em condições de emergência humanitária – como o isolamento social,
crise econômica e o luto –, e, com isso, a demanda para o cuidado de indivíduos autistas
afetados por elas. É através da proposta de Laznik (2011; 2016), que iniciamos uma relação aos
ensinos dos seminários de Lacan para pensar a formação e estruturação psíquica do autismo, de
forma a explicitar suas sintomatologias e formação egóica, relacionando-as ao sofrimento
causado pela emergência humanitária da pandemia de COVID-19.

Palavras-Chave: Emergência Humanitária. COVID-19. Autismo. Psicanálise. Psicopatologias


do Apoio.
ABSTRACT

The present work was sent as a partial requirement for the conclusion of the graduation degree
in Psychology at UFF – Volta Redonda, and the title attainment of bachelor’s in psychology.
The goal of this work consists in bringing, through psychoanalytical bibliography, an exhibit
of the current most general treatment models for the Autistic Syndrome and its relationship with
contemporary psychopathology and these individuals’ mental suffering during the SARS-CoV-
2 virus pandemic. Furthermore, it will explain the historical formation on autism diagnosis from
its presentation to the psychiatric literature by Swiss doctor Eugen Bleuler (1911/1960) to the
contemporaneity, as a way to historically place autism. The COVID-19 pandemic exposed to
the research in psychology a variety of problematics around mental health in humanitarian
emergency conditions – such as social isolation, economic crisis and mourning –, and, with
that, the demand for the care of autistic individuals affected by it. It is with Laznik’s (2011;
2016), that we start a relation to Lacan’s Seminars’ teachings to think about the formation and
psychic structuring of autism, in order to explain its symptomatology and egoic formation,
relating them to the suffering caused by COVID-19 pandemic humanitarian emergency.

Key-Words: Humanitarian Emergency. COVID-19. Autism. Psychoanalysis. Support


Psychopathology.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fig. 1 Modelo Conceitual para Abordagem do Autismo em Pandemia de COVID-19,


p. 14

Fig. 2 Modelo Conceitual para Abordagem do Autismo em Pandemia de COVID-19


Atualizado, p. 15

Fig. 3 Esquema Óptico de Bouasse, p. 37

Fig. 4 Esquema de Dois Espelhos, p. 38

Quadro 1 Natividade, p. 45

Fig. 5 Nó Borromeano, p. 48

Fig. 6 Evolução das Crianças Diagnosticadas Autistas, p. 55

Fig. 7 Evolução das Crianças Diagnosticadas Psicóticas (TID não autísticos), p. 56

Fig. 8 Fórmula da Metáfora, p. 60

Fig. 9 “Casa”, p. 64

Fig. 10 “Árvore”, p. 64

Fig. 11 “Tia Carol”, p. 64


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Quadros sintomáticos da Peste Bubônica, segundo Ministério da Saúde (2020),


p. 22

Tabela 2 Quadros sintomatológicos do autismo entre Kanner (1943/1971) e Asperger


(1943/2015), p. 28

Tabela 3 Comparação entre os quadros sintomatológicos do autismo conforme Kanner


(1943) e Asperger (1943/2015) e o DSM-III (APA, 1980), p. 29

Tabela 4 Diferenciação entre Funcionamento Autístico e Funcionamento Psicótico em


LAZNIK (2016), p. 30

Tabela 5 Traços estruturais do autismo, segundo Jean-Claude Maleval (2015) –


(MOREIRA, 2020), p. 32

Tabela 6 Os Movimentos de Sobreposição da Trança ao Nó Borromeano – LAZNIK,


2016, p. 48
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, p. 13
1. Objetivos, p. 16
1.1 Objetivos Específicos, p. 17
2. METODOLOGIA, p. 17
3. PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA, p. 18
CAPÍTULO 1. O ISOLAMENTO SOCIAL EM EMERGÊNCIAS HUMANITÁRIAS E
SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE, p. 21
1.1 Considerações Iniciais, p. 21
1.2 A Peste Negra e sua Correlação com a COVID-19, p. 22
1.3 Considerações Atuais sobre a Pandemia e a Morte, p. 23
1.3.1 Neuroses de Guerra e I Guerra em Emergência Humanitária, p. 24
CAPÍTULO 2. HISTÓRICO DO AUTISMO ENQUANTO PSICOPATOLOGIA – DE
1908 AO SÉCULO XXI, p. 27
2.1 Considerações Iniciais, p. 27
2.2 Da Identificação entre Autismo e Esquizofrenia à sua Independência como Classe
Diagnóstica, p. 27
2.3 Psicose e Autismo – diferenciação estrutural, p. 30
2.4 A Importância da Distinção, p. 35
CAPÍTULO 3. PSICANÁLISE E A CLÍNICA – O AUTISMO EM SEU ESPAÇO DE
SUBJETIVIDADE, p. 36
3.1 Considerações Iniciais, p. 36
3.2 O Esquema Óptico de Bouasse, p. 37
3.2.1. O Narcisismo como Fundamento do Esquema Óptico, p. 39
3.2.2. O Esquema Óptico como Formalização do Eu, p. 41
3.3 O Caso Petit Roberto, p. 41
3.3.1 A Leitura de Lacan e Rosine Lefort sobre o Caso Petit Robert, p. 42
3.4 A Pesquisa de Laznik com Crianças Autistas e Psicóticas, p. 45
3.4.1 Diferenciação Acerca do Esquema Óptico Entre Lacan e Laznik, p. 46
3.5 A Hipótese de Laznik: o “erro” no Nó-Borromeano na Base do Autismo, p. 47
3.6 A Borda Autística e o Eu-corpo, p. 51
3.6.1 A Borda Autística como Estabilizadora do Eu-corpo, p. 53
3.7 A Clínica Autística em Laznik, p. 54
CAPÍTULO 4. UM ESTUDO DE CASO ATRAVÉS DOS ÍNDICES CLÍNICOS DE
LAZNIK, p. 57
4.1 Considerações Iniciais, p. 57
4.2 Apresentação do Caso Giovanna, p. 57
4.2.1 Escola, p. 58
4.2.2 Neurologistas, p. 59
4.2.3 Família, p. 60
4.2.4 Mãe, p. 61
4.3 A 5ª Sessão, p. 63
4.4 Índices Clínicos e a Função do Analista na Clínica Autística, p. 66
CAPÍTULO 5. “HÁ SUJEITO NO AUTISMO?”, p. 69
5.1 Considerações Iniciais, p. 69
5.2 A Resolução SS – 83 e o Cuidado ‘Psi’ em Autismo, p. 70
5.3 A Psicanálise Contemporânea e a Escuta do Sujeito, p. 71
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O AUTISMO COMO MARCO ESTRUTURAL, p. 75
Referências Bibliográficas, p. 80
13

INTRODUÇÃO

Iniciada no ano de 2020 em conjunto com o Laboratório de Investigação das


Psicopatologias Contemporâneas (LAPSICON), a pesquisa relacionando a Síndrome Autística
à pandemia de COVID-19 teve como questionamento central a situação de indivíduos autistas
frente à situação de emergência humanitária que se alastrou pelo país em março de 2020 – e
mundialmente no ano de 2019. Através do encaminhamento do projeto de iniciação científica
ao edital 2020/2 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo À Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ1), pudemos realizar um extenso trabalho em torno do tema do autismo em
pandemia, através da relação entre bibliografia psicanalítica clássica e contemporânea,
propiciando avanços conceituais no tema que foram base para a manutenção do mesmo.
Os trabalhos exercidos pelo LAPSICON, desde sua fundação no ano de 2011, caminham
lado a lado com a proposta de base do ensino da universidade pública, sustentado no tripé:
ensino, pesquisa e extensão. Com o Laboratório, além do projeto de pesquisa em autismo e
pandemia, houve o contato com diversas temáticas relevantes à pesquisa em psicanálise e
psicologia, possibilitando uma formação de base rica para o desenvolvimento de seus
integrantes.
Após o primeiro trabalho de Iniciação Científica, finalizado no ano de 2021, outro
projeto foi submetido à bolsa de Iniciação Científica FAPERJ, pensando em articular uma
continuação da pesquisa, de forma a propiciar maior base para a formação do perfil de
pesquisador do aluno. Com o primeiro processo de pesquisa, pensando centralmente na temática
do autismo e COVID-19, foi possível a produção de uma estrutura conceitual (reproduzida na
figura 1) para o estudo do tema em torno de 3 tópicos principais: 1. As Psicopatologias do
Apoio (ALLOUCH, 2003); 2. A Morte e Seus Valores Anti-Civilizatórios (FREUD,
1915/2009); 3. A Angústia Contemporânea (LACAN, 1962-1963/2005).

1
PESQUISA PSICANALÍTICA SOBRE A FUNCIONALIDADE DA BORDA AUTÍSTICA PARA
ESTABILIZAÇÃO DO AUTISMO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19. Número de matrícula
2019052711.
14

Figura 1. Modelo Conceitual para Abordagem do Autismo em Pandemia de COVID-19.

Fonte: TEIXEIRA & HENSCHEL DE LIMA (2021).

Com o fim do projeto em 2021, iniciamos um questionamento acerca da forma como o


método psicanalítico em sua origem se debruça em torno do tema do autismo e, além disso,
como seria possível a visualização da Síndrome Autística nos espaços clássicos da literatura,
como os textos freudianos e os seminários lacanianos iniciais. Com isso, utilizando os
seminários de Lacan em seu primeiro momento de ensino (LACAN, 1953-1954/2009), foi
possível trazer temáticas importantes para a pesquisa em autismo na contemporaneidade,
relacionando o caso Roberto aos pesquisadores contemporâneos no tema do autismo – como
Marie-Christine Laznik (2011; 2016) e Jean-Claude Maleval (2011; 2015).
A passagem do projeto de iniciação científica realizado ao presente trabalho acaba por
reestruturar nosso desenvolvimento, que se inicia no projeto por uma tentativa de pautar a
instância simbólica como marco central ao desenvolvimento em torno do autismo. Porém, com
o aprofundamento do tema para a continuação da pesquisa e produção de monografia nossa
hipótese foi modificada para o estudo em torno da problemática do Imaginário, que teve início
no aprofundamento do texto de Laznik Distinção Clínica e Teórica entre Autismo e Psicose na
Infância (2016).
A justificativa para este trabalho se localiza na tentativa de trazer à pauta da saúde
pública e clínicas psicanalíticas em pandemia de COVID-19 o tema do autismo em sua
contemporaneidade e, assim, propor uma atualização. O cuidado com esses sujeitos se mostra
de pontual notoriedade, uma vez que as atualizações acerca do mesmo na clínica psicanalítica
são de grande importância, visto os resultados e observações trazidas pelos autores de nosso
referencial bibliográfico. Além disso, o contexto de emergência humanitária traz novos
caminhos à economia pulsional, nos posicionando em um contexto social que traz, em seu
15

método de cuidado contra o vírus, uma quebra da rotina e do contato entre sujeitos, podendo
assim afastar o sujeito autista de seus mecanismos de defesa, como a borda e seus objetos.
É com isso que propomos, no decorrer da continuidade da pesquisa por meio do Edital
IC 20212, a atualização do modelo conceitual previamente proposto, atualizando sua base
teórica. Sendo assim, o Esquema em Triângulo seria alterado em suas bases lacanianas e
freudianas, sendo elas: 1. As Psicopatologias do Apoio (ALLOUCH, 2003); 2. O Seminário.
Livro 1: os escritos técnicos de Freud e a pesquisa de Laznik (2016) acerca d’O Seminário.
Livro 23: O Sinthoma; 3. O Narcisismo e suas formações (FREUD, 1914/2010). A proposta
será então usada como base para o desenvolvimento deste trabalho.

Figura 2. Modelo Conceitual para Abordagem do Autismo em Pandemia de COVID-19


Atualizado.

A Síndrome Autística será observada por esse trabalho de conclusão de curso como um
marco estrutural em psicanálise. Demonstrado por Laznik (2011; 2016), que faz parte da base
teórica desta pesquisa, o autismo está situado em um quadro sintomatológico de grande
diferença da psicose, com divergências extensas, se destacando dessa estrutura, e, como
proposto também por Maleval (2011), o autismo demanda uma observação clínica diferencial,
e é a partir disso que o trabalho se sustenta.
Inicialmente, o trabalho se trataria de uma revisão bibliográfica em torno do tema,
buscando através das pesquisas dos autores de nossa base referencial sustentar nossa hipótese
de uma estrutura autística e, a partir disso, pensarmos em uma clínica própria a esse sujeito.
Porém, nos momentos finais de realização deste trabalho, com a apresentação de casos em

2
UM MODELO CONCEITUAL PARA ABORDAGEM DO AUTISMO NA PANDEMIA DE COVID-19.
16

supervisão, entramos em acordo da importância de trazer um caso clínico do aluno que traria
base fortificadora para sustentação desta hipótese.
Pensando no processo de graduação em psicologia e da produção do perfil de
pesquisador, a oportunidade de executar a pesquisa de Iniciação Científica foi de grande
importância para o encaminhamento do estudante à possibilidade de ingresso na carreira
acadêmica – que é traduzida pela tentativa, ao fim do curso, de ingresso em um mestrado para
a continuação da pesquisa. Tal possibilidade foi propiciada pelo modelo de pesquisa realizado
no LAPSICON, que permite contato direto com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia
(PPGP) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criando uma base de conhecimento
tanto do ambiente de pesquisa acadêmica de pós-graduação, quanto das formas de ingresso. A
pesquisa de Iniciação Científica em questão foi voltada tanto para o preparo técnico do
estudante quanto para a elaboração de uma base teórica sólida que servirá ao preparo de um
projeto de mestrado posteriormente.
A temática da pesquisa em iniciação científica foi utilizada como base para responder o
questionamento do aluno enquanto na apresentação de seu trabalho na 15ª Mostra Regional em
Psicologia (CRP-RJ), em que na sala com temática do espectro autista houve predominância
das abordagens comportamentais que, em sua metodologia, tratavam não de um sujeito, mas de
uma série de comportamentos que deveriam ou ser reforçados para que se mantenham, ou
extintos completamente. A partir disso, questionamos se não haveria no discurso
comportamental o apagamento da subjetividade, ou seja, uma tentativa de retirar dos indivíduos
autistas o sentido que existe por trás de seus comportamentos. Seria possível (e ético) cuidar de
um sujeito autista a partir da extinção de comportamentos considerados negativos sem antes
dar espaço para o paciente enquanto sujeito e senhor de seu desejo, e àquilo que é dito através
destes comportamentos? Ou ainda, há no indivíduo autista a existência de um sujeito do desejo?
1. Objetivos
O trabalho de conclusão de curso foi elaborado com o objetivo geral de produzir um
apanhado acerca do tema de acordo com a pesquisa previamente realizada, de forma a
esquematizar a bibliografia em autismo e psicanálise em torno da realidade do século XXI. O
trabalho tende então a trazer as problemáticas em torno do autismo, tanto a realidade do
contexto da psicologia no Brasil, quanto o observado na clínica psicanalítica (tanto da
bibliografia quanto do caso apresentado pelo Serviço de Psicologia Aplicada da UFF) e as
demandas em torno dela frente a um esquema social neoliberal. Com base neste objetivo geral,
propomos os seguintes objetivos específicos.
17

1.1. Objetivos Específicos


1. Propor uma clínica diferencial do autismo, através da diferenciação estrutural do
autismo e psicose;
2. Situar a Síndrome Autística como um Marco Estrutural em psicanálise, através das
atualizações feitas por Laznik (2011/2016) acerca dos textos lacanianos e pela nossa
experiência clínica através do estudo de caso com base na bibliografia de Laznik;
3. Abrir a discussão do tema do sujeito em psicanálise em torno dessa atualização
estrutural acerca do autismo.
2. Metodologia
Para o desdobramento dos objetivos dessa pesquisa qualitativa, foi realizado o
levantamento bibliográfico em quatro etapas:
Levantamento 1: Levantamento de material, nacional e internacional, a respeito da irrupção
da COVID-19, a partir de veículos como a OMS (Organização Mundial da Saúde), Ministério
da Saúde e FIOCRUZ. Esse levantamento de dados ocorreu por meio das plataformas virtuais
da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Os
descritores utilizados foram “Pandemia de COVID-19” e “COVID-19 and psychological
distress”.
Levantamento 2: Resgate da psicanálise clássica (abrangendo majoritariamente o campo
lacaniano) para elucidar processos como o luto, neuroses traumáticas e de guerra, angústia e
funcionamento da linguagem, fazendo uma correlação com a pandemia de COVID-19.
Levantamento 3: Produção de horizonte conceitual através da bibliografia reunida e,
posteriormente, a elucidação das conexões produzidas pelos conceitos psicanalíticos referentes
à formação do Eu, à dialética entre os conceitos de ideal Ich (Eu ideal) e Ich ideal (ideal do Eu),
e suas formações no campo da instância Imaginária.
Levantamento 4: Nova proposta de uma formação e estruturação egóica a partir das
atualizações das leituras clássicas em psicanálise, através do que foi produzido por ALLOUCH
(2003) e LAZNIK (2011; 2016) acerca dos sentidos e as repercussões no cuidado destes
sujeitos;
Levantamento 5: Utilização de caso clínico atendido pelo aluno no Serviço de Psicologia
Aplicada da universidade como forma de elucidação clínica da teoria de Laznik e utilização da
pesquisa como base para produção clínica específica ao caso, aplicando a teoria clínica da
autora ao campo prático.
18

3. Plano de Desenvolvimento da Monografia


A partir da metodologia, plano de desenvolvimento e a bibliografia acima destacadas, a
construção da pesquisa e a divisão de capítulos desta monografia se deu pelo seguinte percurso:
CAPÍTULO 1. O ISOLAMENTO SOCIAL EM EMERGÊNCIAS HUMANITÁRIAS E
SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE: Ao pensarmos sobre o tema do autismo em um
contexto pandêmico, mostrou-se necessário dar à pesquisa um terreno sólido para que caminhe
e se apresente. Como será possível observar, a pesquisa caminha para fora do tema da pandemia
de COVID-19, mas para que a parede seja quebrada ela mesma precisa existir e ser apresentada,
logo a escrita deste trabalho se inicia com a contextualização do tema de base: as emergências
humanitárias, suas relações com o ambiente social, perpassando pelos escritos freudianos
(FREUD, 1914-1916/2010; 1919/ 2010; 1920/2010) acerca da I Guerra e especificando para a
pandemia de COVID-19, que tem papel central para a exposição e representação da
sintomatologia específica do Transtorno do Espectro Autista (TEA), revelando o papel do
isolamento social como parte do adoecimento psíquico dos sujeitos.
CAPÍTULO 2. HISTÓRICO DO AUTISMO ENQUANTO PSICOPATOLOGIA:
Seguindo para o tema principal, a Síndrome Autística, é de grande importância a compreensão
do que já foi o autismo e como o transtorno se desenvolveu pelo tempo. Para isso, a
apresentação de seu desenvolvimento na literatura psiquiátrica – desde Bleuler (1911/1950) à
Kenner (1943) e Asperger (1944/2015), a separação entre psicose e autismo e, posteriormente,
a psicopatologia contemporânea em psicanálise –, será a base para a contextualização
nosográfica do autismo, passo essencial para a montagem desta “peça”. A psicanálise
contemporânea, como conhecemos, se baseia nesse desenvolvimento para sua própria
produção, sendo necessário para o conhecimento geral da temática e, assim, separarmos o que
nos é utilizável para uma possível clínica com esses indivíduos e o que não serve mais à
psicopatologia. Essa separação será dada, em partes, pela métrica do DSM (Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais), que conforme fora atualizado com o passar dos anos,
torna palpável as alterações no modelo psiquiátrico em torno do tema e a linguagem utilizada
para falar do autismo.
CAPÍTULO 3. PSICANÁLISE E A CLÍNICA – O AUTISMO EM SEU ESPAÇO DE
SUBJETIVIDADE: A separação do autismo das manifestações esquizofrênicas, como
observado no Capítulo 2, foi estopim para o início do questionamento acerca das divisões entre
autismo e psicose, sendo uma temática de grande relevância para o desenvolvimento desse
trabalho. A partir dessa divisão, e em conjunto com a bibliografia psicanalítica, a necessidade
de falarmos acerca da atualidade em psicanálise e as discussões contemporâneas sobre o
19

autismo é latente, sendo ponto de partida para a apresentação de novas conceituações sobre o
tema. O horizonte de pesquisa caminhará então para um desenvolvimento sobre as pontuações
presentes nesse capítulo, que se situarão nas temáticas de narcisismo, o Esquema Óptico como
formalização do Eu, a análise do Caso Roberto por Rosine Lefort e a relação destes com o que
é observado na bibliografia contemporânea de Laznik (2011; 2016) e Allouch (2003),
apontando o trabalho para o campo do trabalho analítico em torno da falta do entrelaçamento
do Imaginário ao Nó-Borromeano.
CAPÍTULO 4. UM ESTUDO DE CASO ATRAVÉS DOS ÍNDICES CLÍNICOS DE
LAZNIK: Apesar de não fazer parte do plano inicial do trabalho, pudemos entrar em contato
com um caso clínico que tem forte papel comprobatório à nossa hipótese. Através deste capítulo
iremos expor o caso em seus detalhes, pontuando suas relações com a hipótese de Laznik e
direcionamentos produzidos na clínica escola em torno da aplicação de nossa bibliografia ao
cuidado da paciente e seus resultados imediatos.
CAPÍTULO 5. “HÁ SUJEITO NO AUTISMO?”: Este capítulo servirá para cercear o
questionamento tema de nosso trabalho, através da observação da Resolução SS-83 de 2013 e
a utilizando como base para o desenvolvimento do mesmo. O tema da escuta é o que sustenta
a psicanálise em seu espaço de ação, agindo através da aposta no sujeito e seu saber e é através
disso que este capítulo se dará: para apoiar e sustentar uma aposta no sujeito nas clínicas
autísticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O AUTISMO COMO MARCO ESTRUTURAL: A
pesquisa de Maleval (2011) acerca do autismo cerca uma tentativa de posicionar o autismo
como uma 4ª estrutura frente às tradicionais freudianas (neurose, psicose e perversão). O que é
colocado em questão nesse espaço não é do autismo como uma estrutura ou subdivisão de outra,
mas questionar a importância do encaixe dele sobre esse espaço ao tratamento destes sujeitos.
Este capítulo, que encerra o trabalho, será dividido em três objetivos: 1. Denotar o autismo
como este marco da pesquisa em torno da clínica psicanalítica, pautando sua necessidade de
atenção dos pesquisadores e analistas, de forma a repensarmos a atuação em torno da Síndrome
Autística; 2. Apontar a importância da relação pesquisa e estágio na formação do aluno
graduando em seu perfil de pesquisador; 3. Demarcar o horizonte de pesquisa e expectativas
em torno do tema. Com o encerramento deste trabalho, as Considerações Finais têm a intenção
de fazer um apanhado geral do desenvolvimento ao decorrer do texto em relação aos objetivos
da pesquisa e os resultados obtidos com a pesquisa em torno do tema em questão. Além disso,
é mencionado o Horizonte de Pesquisa, em que são pontuadas as questões que se mantém em
20

aberto em relação à Síndrome Autística e a perspectiva de continuidade do tema com base


nessas questões.
Para que este trabalho possa, então, seguir para o tema da contemporaneidade e seu
enfoque, o autismo na pandemia de COVID-19 em psicanálise, mostra-se necessária que a base
de conhecimento em torno do tema tenha sua fundamentação. Para isso, iniciaremos o texto
com a introdução ao que é o isolamento social e suas formações iniciais.
21

CAPÍTULO 1. O ISOLAMENTO SOCIAL EM EMERGÊNCIAS HUMANITÁRIAS E


SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE

1.1 Considerações Iniciais


Este capítulo tem como objetivo esclarecer o surgimento do Isolamento Social como
método de controle patológico em cenários de emergência humanitária e, a partir disso,
aproximá-lo ao tema do autismo. A rotina tem papel essencial para esses sujeitos e seu manejo
com o mundo, sendo este formato de vivência social, que quebra com o modelo habitual do
sujeito de controle da experiência do mundo em conjunto ao encontro desses indivíduos com
os efeitos da emergência humanitária um possível adoecedor. Resgatar os textos freudianos
acerca da I Guerra tem grande importância para a manutenção deste capítulo, uma vez que ao
observarmos a guerra e a pandemia viral como emergências humanitárias abrimos caminho para
a observação dos efeitos traumáticos das crises humanitárias no aparelho psíquico.
O Isolamento Social tem em seu princípio a tentativa de isolar, não apenas as pessoas
em situação de emergência humanitária, também o adoecimento que se localiza nesse contexto.
A partir disso, em conjunto ao efeito de isolamento da doença e sua contenção, temos o
afastamento desses sujeitos entre si. A sociabilidade tem sua base cortada do meio social,
entrando em pausa, tendo grande funcionalidade em sua proposta, mas gerando efeitos na saúde
mental.
Além disso, o contato com a morte demonstra, como observado por Freud (1914-
1916/2010), possíveis efeitos negativos na economia pulsional, sendo um possível causador de
eventos traumáticos e avanços para as chamadas neuroses traumáticas. Sendo assim, estes dois
efeitos da pandemia de COVID-19 (o isolamento social e a morte), serão a base para o início
da contextualização da Síndrome Autística na emergência humanitária que se inicia no ano de
2020 com o vírus SARS-CoV-2.
Como trazido pela OMS (2022), a prevalência global de ansiedade e depressão
aumentou em 25% como consequência de um contexto pandêmico, sendo o isolamento social
parte dos efeitos provocativos do adoecimento. De forma a pensarmos as consequências do
isolamento social no psiquismo, mostra-se necessária, inicialmente, a compreensão do que foi
sua formação, ou seja, o contato com a temática da Peste Negra na Europa do século XIV, que
foi o berço da metodologia do isolamento como forma de contenção da bactéria causadora da
doença.
22

1.2 A Peste Negra e sua Correlação com a COVID-19


Com seu início em 1343, a Peste Negra produz na Europa a maior devastação já
observada desde então: a morte da “terça parte do mundo” (DELUMEAU, 1989, p. 107). A
bactéria Yersinia pestis¸ trazida pelos próprios europeus através de sua principal rota comercial
náutica (a Rota da Seda) – que ligava o continente Europeu à Ásia para a comercialização da
seda –, assolara a população europeia que, com uma diferença de quase 700 anos aos
conhecimentos tecnológicos e médicos do século XXI, foi incapaz de responder ao adoecimento
rápido e mortífero da época. A principal forma de contágio se dava pela picada de pulgas
advindas de roedores silvestres (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020) que causavam o seguinte
quadro sintomático:

Tabela 1 – Quadros sintomáticos da Peste Bubônica, segundo Ministério da Saúde (2020).


Quadros Sintomáticos da Peste Bubônica:
• Febre Alta;
• Calafrios;
• Dor de Cabeça Intensa;
• Dores Generalizadas;
• Falta de Apetite;
• Náuseas;
• Vômitos;
• Confusão Mental;
• Olhos Avermelhados;
• Pulso Rápido e Irregular;
• Pressão Arterial Baixa;
• Prostração (moleza corporal com dificuldade de realizar atividades em geral) e Mal-
Estar Geral;
• Tumefação (aumento do volume de célula, tecido, órgão ou parte do corpo) nos
Linfonodos Superficiais.
Tabela nossa. Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE (2020).

A partir dos casos de adoecimento da época, o conhecimento médico do século XIV


trouxe a formação do isolamento social como forma de prevenir o contágio da doença,
separando os doentes dos não-doentes, tentando assim amenizar os efeitos destrutivos de uma
bactéria impossível de ser contida. A contenção da peste se deu inicialmente com um período
23

de quarentena dos barcos que atracavam nos portos de Viena na Itália, o que se mostrou
eficiente para a diminuição do contágio (BIBLIOTECA NACIONAL, 2020).
Afetados pelo contato constante com a morte, o medo do contágio e, posteriormente, da
própria morte, a peste negra é causadora de diversas mudanças no cenário filosófico e artístico
da época. Ela se mostra parte essencial para o nascimento do movimento Renascentista, que se
fundaria no pensamento materialista e antropocentrista, cada vez menos ligado à espiritualidade
(TUCHMAN, 1978).
Sem a vacina para a doença, a mesma retorna ao mundo nos últimos anos do século
XIX, sendo trazida para o América Latina ao final de 1899, alcançando a cidade de Santos (SP)
em 1899 e a capital de seu estado, São Paulo (SP), no ano de 1901. A partir de 1902, com a
vacina produzida pelo médico russo Waldemar Haffkines, o Brasil inicia sua produção em
massa através do Instituto Butantan (INSTITUTO BUTANTAN, 2021). O desenvolvimento
em torno do conhecimento medical teve papel essencial para o cuidado da saúde dos adoecidos
que, com uma diferença de 556 anos, tiveram maior possibilidade de sobrevivência e
recuperação.
Com a pandemia de COVID-19, que se apresenta no Brasil em março de 2020, diversas
medidas preventivas à infecção foram tomadas, pautadas no modelo de isolamento social, ou
seja, distanciamento físico para impedir maior transmissão viral. A partir disso, uma série de
mudanças foram feitas no sistema de funcionamento social, como o trabalho e estudo online,
consequentemente a maior permanência da população em espaço domiciliar, e, com isso,
isolados lidando com o sentimento de angústia trazido pela pandemia e o contato frequente com
a morte de milhares – como demonstrado por GAO et al. (2020), pela observação da população
de Wuhan na China.
1.3 Considerações Atuais sobre a Pandemia e a Morte
Ao entrar em contato com a I Guerra Mundial e suas consequências, Freud postula,
através de seu texto “Reflexões Atuais sobre a Guerra e a Morte” (1914-1916/2010), acerca da
morte e sua inscrição no inconsciente:
[...] naturalmente nos dispúnhamos a sustentar que a morte é o desfecho necessário de
toda vida, que cada um de nós deve à natureza uma morte e tem de estar preparado
para saldar a dívida, em suma, que a morte é natural, incontestável e inevitável. Mas
na realidade nós agíamos como se as coisas fossem diferentes. Manifestávamos a
inconfundível tendência de pôr a morte de lado, de eliminá-la da vida. (FREUD,
1915/2010, p. 171).

As mudanças constantes geradas pela situação de enfrentamento militar internacional,


reposiciona o convívio social para um modelo de sobrevivência, ou seja, os sujeitos estão em
contato constante com uma ameaça mortífera e surpresa – surpresa uma vez que os ataques
24

bélicos poderiam ser realizados de forma imprevisível como bombardeamentos, invasão militar
e etc. A partir do que fora observado por Freud, a morte seria retratada como um processo
natural da condição humana, porém, em realidade, a mesma se posiciona como inconcebível
(1915/2020, p. 171), aquém de um projeto civilizatório enraizado no sujeito. Nisto estamos de
encontro com o perturbador da guerra: a morte que imaginamos e falamos sobre nunca é a
própria, mas de um outro que não se faz presente no diálogo sobre ela (1915/2010, p. 171-172).
Para o inconsciente freudiano a morte é terminantemente inconcebível e inimaginável
quando dita sobre a do próprio sujeito que a discursa. E, ao contato com a ameaça constante do
fim da vida, como foi durante a I Guerra Mundial, temos um conflito com a máxima
inconsciente da própria imortalidade. Nisto Freud irá observar as chamadas Neuroses de Guerra
em Introdução às Psicanálises das Neuroses de Guerra (FREUD, 1919/2010, p. 292), em que
o evento traumático produz um temor do ferimento, pelo Eu, de um inimigo externo.
1.3.1 Neuroses de Guerra e I Guerra em Emergência Humanitária
O tema das Neuroses de Guerra tem sua base de desenvolvimento na relação que Freud
propõe entre os eventos traumáticos e os acontecimentos clínicos em torno do adoecimento sem
atribuição orgânica, a partir da I Guerra Mundial:
Há muito se conhece um estado que sobrevém após sérias comoções mecânicas,
desastres ferroviários e outros acidentes com risco de vida, ao qual se deu o nome de
“neurose traumática”. A terrível guerra que há pouco terminou fez surgir um grande
número dessas doenças, e ao menos pôs fim à tentação de atribuí-las a uma lesão
orgânica do sistema nervoso, ocasionada por força mecânica (FREUD, 1920/2010, p.
125).

O autor nos propõe uma ligação direta entre o evento das neuroses de guerra e os sonhos
traumáticos descritos, trazida na Conferência XVIII: A Fixação no Trauma, O Inconsciente
(1917/2014, p. 298), sendo as neuroses traumáticas construídas sobre uma fixação no momento
traumático. Os pacientes observados por Freud repetem com certa regularidade esses eventos
em seus sonhos, como se o enfrentamento do trauma fosse uma tarefa a ser concluída (FREUD,
1917/2014, p. 298-299), o que fora também observado nas neuroses traumáticas em sua relação
com os sonhos:
Acham que é justamente uma prova de como foi forte a impressão deixada pela
vivência traumática, que até no sonho volta a se impor ao doente. Este se acha, então,
psiquicamente fixado ao trauma, por assim dizer (FREUD, 1920/2010, p. 126).

As neuroses traumáticas em situação de guerra se apresentam em torno deste ponto de


fixação destacado por Freud (1917/2014, p. 298) que se posicionam de forma patológica na
economia pulsional. O evento traumático é colocado como um pilar que anexa passado,
presente e futuro em um único ponto, que permanece ressurgindo, tendo relação direta com a
25

quebra feita por Freud em 1920, através da explicitação do conceito de ‘Compulsão à


Repetição’ (1920/2010, p. 132).
No texto Além do Princípio do Prazer (1920/2010, p. 141), Freud aponta que “um
evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no gerenciamento de energia
do organismo e pôr em movimento todos os meios de defesa”, uma ação geral dos sujeitos em
suas diferentes estruturações frente a um cenário de perturbação. Porém, através do conceito de
compulsão à repetição, Freud nos aponta uma problemática com a função do sonho, o
posicionando como também portador destes fenômenos de retorno ao trauma, ou seja, sem o
objetivo tradicional da satisfação:
Tais sonhos buscam lidar retrospectivamente com o estímulo, mediante o
desenvolvimento da angústia, cuja omissão tornara-se a causa da neurose traumática.
Assim nos permitem vislumbrar uma função do aparelho psíquico, que, sem contrariar
o princípio do prazer, é independente dele e parece mais primitiva que a intenção de
obter prazer e evitar desprazer (FREUD, 1920/2010, p. 143).

Além disso, e de grande importância ao nosso tema, Freud neste mesmo texto nos aponta
um direcionamento referente à compulsão à repetição e seus fenômenos semelhantes além das
neuroses:
O que a psicanálise aponta nos fenômenos de transferência dos neuróticos é
encontrado igualmente na vida de pessoas não neuróticas. Nelas dá-se a impressão de
um destino que as persegue, de um traço demoníaco em seu viver, e a psicanálise
sempre viu tal destino como, em boa parte, preparado por elas mesmas e determinado
por influências da primeira infância. A compulsão que aí se manifesta não é diferente
da compulsão à repetição dos neuróticos, embora essas pessoas nunca tenham
apresentado sinais de que lidaram com um conflito neurótico produzindo sintomas
(FREUD, 1920/2010, p. 134).

Dessa forma, podemos observar uma relação direta entre os temas de emergência
humanitária, neuroses traumáticas e de guerra, e o autismo em pandemia de COVID-19. Os
fenômenos observados por Freud durante a I Guerra Mundial em torno do adoecimento mental
dão abertura para o desenvolvimento deste trabalho em torno do que é o adoecer em contextos
de emergência humanitária além da neurose, observando estes fenômenos de adoecimento
psíquico nas experiências clínicas da bibliografia da pesquisa em relação aos desenvolvimentos
teóricos propiciados por esses autores.
A pandemia, vivida a partir do ano de 2020, nos faz relembrar o estudo de Freud acerca
dos eventos traumáticos na I Guerra e suas consequências nocivas ao inconsciente. O contato
com as consequências de uma pandemia viral – como a morte, isolamento social, quebra da
rotina e etc – poderiam estar diretamente atreladas à desestabilização do funcionamento da
estrutura egóica e da economia psíquica do sujeito, uma vez que o trauma desestabilizador viria
exatamente deste local desprotegido, inesperado, diferente da angústia (FREUD, 1920/2010, p.
126). Este terror que não é passível de “angustiar”, exatamente pela “inesperabilidade” – e nisto
26

estamos falando do fator imprevisível da emergência humanitária, desde bombardeamentos


como na I Guerra até novas medidas preventivas e adoecimentos durante uma pandemia viral
–, poderia se comunicar com o inimigo invisível viral observado no século XXI com a pandemia
de COVID-19.
De acordo com a descrição do Guia de Intervenção Humanitária (GIH-mhGAP)
(OPAN, 2020), emergência humanitária se caracterizaria como uma variedade de “situações de
emergência agudas e crônicas decorrentes de conflitos armados e de desastres naturais e
industriais” (OPAN, 2020, p. 1), abrangendo tanto a I Guerra quanto a implosão da COVID-19
no século XXI. Apesar de um diferente tipo de desordem mundial, a pandemia também é
produtora de efeitos psicológicos graves ao sujeito, tanto pelo desencadeamento de formas de
sofrimento psíquicos, quanto pelo agravamento de sofrimentos preexistentes – como é o caso
da psicose, transtornos alimentares, transtornos depressivos e transtornos por uso de
substâncias. O mesmo se faz possível de observar no autismo.
Apontado por AMORIM et al (2020), em seu processo de entrevista com 99 crianças
em Portugal, sendo destas 43 autistas, foram eles os menos impactados pelo modelo de aulas
on-line, porém, os com maiores índices de impacto negativo em desenvolvimento e em suas
emoções (39,5% e 55,8%, respectivamente), além de terem os maiores índices de mudança
negativa de comportamento: 83,9% das crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro
Autista.
Pensar o autismo através das observações freudianas relacionadas ao tema da
Emergência Humanitária tem papel fundamental para a manutenção do tema, uma vez que é
através do conhecimento do adoecimento traumático tanto neurótico quanto não-neurótico em
Freud que podemos pensar em:
1. O que é este adoecimento do indivíduo autista;
2. Sua relação com a estrutura autística;
3. Formas de pensarmos o manejo clínico destes sujeitos através da bibliografia utilizada
como base da pesquisa, propiciando novas formas de observar o autismo e, assim, repensarmos
sua clínica.
Para isso, mostra-se necessário pensarmos o que é o autismo através do seu
desenvolvimento histórico na psicopatologia até a sua separação das psicoses e elevado à uma
classe diagnóstica.
27

CAPÍTULO 2. HISTÓRICO DO AUTISMO ENQUANTO PSICOPATOLOGIA – DE


1908 AO SÉCULO XXI

2.1 Considerações iniciais


Este capítulo tem como objetivo esclarecer o desenvolvimento do autismo enquanto
psicopatologia em sua própria classe diagnóstica, além de um quadro sintomático. Através
dessa distinção, propomos o esclarecimento acerca do funcionamento diferencial entre ambas
essas estruturações psíquicas, de forma a reforçar a diferenciação estrutural e sintomatológica
entre autismo e psicose, denotando a importância desta distinção diagnóstica. Observar o
autismo a partir de sua gênese psicopatológica e seu desenvolvimento histórico é de suma
importância para o desenvolvimento deste trabalho, uma vez que é com essa distinção que
podemos propor o estudo de uma clínica psicanalítica própria a esses sujeitos em suas
particularidades.
O autismo tem sua raiz no início do século XX, na observação deste quadro sintomático
como um evento precoce das esquizofrenias infantis. Porém, com os avanços no tema de
psicopatologia tanto no universo psiquiátrico, quanto nos estudos psicológicos e psicanalíticos,
pudemos observar vagarosamente a independência do autismo em sua classe diagnóstica.
Este tema é de suma importância para a construção de base da nossa pesquisa, uma vez
que é na aposta do autismo em sua estruturação própria, além da psicose, que sustentamos nosso
referencial bibliográfico para a observação e cuidado da Síndrome Autística. Posicionar o
autismo em sua própria classe diagnóstica é também validar seu diferencial sintomatológico em
relação às esquizofrenias infantis e os quadros psicóticos de adoecimento.
De forma a explicitarmos essa diferenciação demanda-se, inicialmente, retomarmos o
contexto histórico do autismo nos estudos em psicopatologia e seus fenômenos clínicos para
que, posteriormente, possamos avançar para sua independência diagnóstica e definições
próprias.
2.2 Da Identificação entre Autismo e Esquizofrenia à sua Independência como Classe
Diagnóstica
Difundido a partir de 1908 através do trabalho observacional de Eugen Bleuler, o quadro
psiquiátrico do autismo apontava para uma ‘Introversão Autista’, sendo descrita como uma fuga
da realidade para o mundo interior observado em quadros de esquizofrenia, ou seja, uma
retração do indivíduo para afastar-se do ambiente ao seu redor.
Em 1943 o psiquiatra Leo Kanner, com sua obra Distúrbios Autísticos do Contato
Afetivo (1943), relatando 11 casos de crianças com características atualmente tipificadas de uma
28

sintomatologia autística, sendo elas: 1. as chamas mesmices – tentativas de preservação de uma


rotina; e 2. extremo isolamento do sujeito ao mundo exterior. No mesmo período, Hans
Asperger em seu artigo “Os ‘psicopatas autistas’ na idade infantil” (1943/2015) destaca novas
características gerais do autismo infantil, que podemos comparar ao quadro sintomático
disponibilizado pelo DSM-III (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais),
lançado em 1980, que dava lugar pela primeira vez ao autismo fora do diagnóstico da
esquizofrenia infantil, se fazendo necessário inicialmente tabelar as características
sintomatológicas entre Kanner e Asperger para, posteriormente, utilizar os quadros
sintomatológicos gerais em relação ao DSM-III:
Tabela 2. Quadros sintomatológicos do autismo entre Kanner (1943/1971) e Asperger
(1943/2015) – MOREIRA & HENSCHEL DE LIMA (2020).
Características Sintomatológicas da Síndrome Autística entre Kanner e Asperger.
Kanner (1943/1971) Asperger (1943/2015)
Recusa autista. Desenvolvimento da linguagem antes da
idade escolar/ fala artificial, mas com
possibilidade criativa em relação à
linguagem.
Traços frios e formais, preocupações Movimentos estereotipados, com
abstratas, falta de calor. movimentos rítmicos repetitivos.
Inabilidade no uso da linguagem, Pobreza de expressões gestuais e faciais.
combinando palavras como um papagaio,
sem evidência de comunicação.
Recusa alimentar, podendo levar à grande Capacidade de observar eventos a partir de
seletividade com relação à consistência e perspectiva original, com campos de
cor. interesses distintos daqueles que são
apresentados por crianças de sua idade
Obsessão ansiosa pela permanência e Originalidade de pensamento/ interesses
necessidade de imortalidade, em função do direcionados para assuntos,
medo da mudança e da incompletude o preferencialmente, abstratos/ Inventividade e
que explica a repetição monótona com sagacidade diretamente proporcionais ao
comportamento ritualísticos, a limitação isolamento social com tentativas de
na variedade da atividade espontânea e a aproximação
imutabilidade.
29

Alteração qualitativa no funcionamento das


emoções/ Desarmonia nas emoções e na
disposição.
Extremo egocentrismo.
Relações atípicas com pessoas e objetos,
podendo ou ignorar certos elementos do
ambiente ou se fixar exageradamente em
outros, com fixação fugaz do olhar em coisas,
deslizando sobre as pessoas.
Fonte: Adaptado de ASPERGER, 1943/2015; KANNER, 1943/1971; MOREIRA & HENSCHEL DE LIMA,
2020.
É a partir desta diferenciação entre Kanner e Asperger – que, em realidade, comprovam
semelhança diagnóstica no que fora apresentado clinicamente por ambos os pesquisadores –,
que podemos propor características gerais para o quadro de autismo em sua base
sintomatológica e, então, comparar com o que nos é apresentado através da 3ª edição do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III). A comparação foi então tabelada
(Tabela 3) e apresentada da seguinte forma:
Tabela 3. Comparação entre os quadros sintomatológicos do autismo conforme Kanner
(1943) e Asperger (1943/2015) e o DSM-III (APA, 1980)․
Características Gerais do Autismo Sintomatologia do Autismo Infantil no DSM-
entre Kanner (1943) e ASPERGER III (APA, 1980):
(1943/2015):
• Predominância em meninos; • Predominância em meninos (cerca de 3
vezes mais que em meninas);
• Falta de empatia; • Falha no desenvolvimento de relações;

• Baixa capacidade de contato • Pouca resposta ao contato interpessoal;


interpessoal e formação de
laços;
• Conversação unilateral; • Prejuízo bruto na comunicação;
• Foco intenso; • Interesse atópico em certos objetos e/ou
temas;
• Movimentos descoordenados3. • Comportamento ritualístico, incluindo
movimentos repetitivos.
Fonte: Adaptado de ASPERGER, 1943/2015; APA, 1980.

3
Hoje denominados de Estereotipia com diagnóstico DSM-5 307.3 que, no caso do autismo, seria englobado
pelo diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) DSM-5 299.00 (APA, 2013).
30

A partir do surgimento do diagnóstico em autismo infantil com a alteração bruta entre a


segunda (1968) e terceira edição (1980) do DSM, em que o quadro autístico deixa de ser um
sintoma da esquizofrenia infantil e passa para sua própria categoria, observamos o início do
desenvolvimento de um tratamento especial ao autismo em suas próprias singularidades. A
partir do DSM-III, o autismo é colocado na categoria de Distúrbios Globais do
Desenvolvimento, sendo alterado para Distúrbios Invasivos do Desenvolvimento com o DSM-
III-R (1989), sendo retirado assim da categoria de sintoma.
Publicado no ano de 2013, o DSM-5 propõe a mais atualizada lista de critérios
diagnósticos do autismo, agrupando os critérios de comunicação e interação social sob o termo
“déficit persistente na comunicação social e interação social em múltiplos contextos”. Além
disso, o conceito de imutabilidade trazido por Kanner (1943), é traduzido em sintomas de
“comportamentos inflexíveis”.
2.3 Psicose e Autismo – diferenciação estrutural
O autismo é atrelado, desde o surgimento de sua nomenclatura, à estrutura psicótica.
Em sua gênese o autismo era, como demonstrado anteriormente, considerado um sintoma da
esquizofrenia, e a partir do ano de 1980 categorizado como um distúrbio por si só. A presente
pesquisa trabalha com base na separação do autismo da estrutura psicótica, observando sua
sintomatologia e características clínicas de forma a comprovar sua diferença estrutural.
A partir disso, mostra-se necessário comparar ambos os quadros clínicos, através da
bibliografia psiquiátrica, de forma a esclarecer essa separação para o prosseguir do tema e seu
desenvolvimento geral. LAZNIK (2016) em conjunto com pesquisadores do Centro Alfred
Binet, em Paris, produz uma tabela diferenciando o funcionamento autístico e o funcionamento
psicótico, diferenciando-os assim:

Tabela 4. Diferenciação entre Funcionamento Autístico e Funcionamento Psicótico em


LAZNIK (2016).
Funcionamento Autístico Funcionamento Psicótico
Pensamento concreto, enunciados Fantasmatização do real, indistinção entre
factuais, colagem ao real perceptível – mundo interno/externo - distorções,
precisão, unicidade, fixidez. variações.
Produção ideica por contiguidade. Associação por embalamento, processos
primários.
Desmantelamento sensorial. Quadros alucinatórios.
31

Pobreza ou ausência de operações visando Relação de ambivalência primitiva, expondo


a construção de existência de objetos à reorganização delirante.
ausentes (permanência do objeto),
expondo ao colapso.
Ausência de projeção, identificação Projeção, identificação projetiva, projeção
adesiva. alucinatória.

Manipulação de objetos sem conferir valor Capacidade de brincar, animar objetos, de


simbólico. Automatismo. ficção.
Memorização de situações múltiplas (entre Fixações arcaicas e pré-genitais, risco
os de alto nível), por vezes combinatórias, persecutório, angústias e despersonalização
mas isoladas. diante da emergência de conflitos.
Ausência de triangulação primária Triangulação edipiana angustiante e
(edipiana) operante. desorganizante.
Sobrecarga sensorial. Capacidade de expansão projetiva,
multiplicação de laços, construções
imaginárias, alucinações.
Aderência auto sensorial, estereotipias. Dispraxias.
Despersonalização4.
Hipotonia.
Fonte: LAZNIK, 2016.

O funcionamento autístico apresentado por Laznik está de acordo com o que


encontramos na literatura em psicanálise contemporânea. Como contribuição à diferenciação
entre autismo e psicose, e afim de apresentar esse comum acordo, trazemos o autor Jean-Claude
Maleval, que estrutura em seu texto “Por que a hipótese de uma estrutura autística?” (2015)
traços da síndrome autística que se acentuam na diferenciação entre ambas as estruturas:

4
O sintoma de despersonalização aparece cercado pelo funcionamento autístico por se tratar de um sintoma que
se faz presente em ambos.
32

Tabela 5. Traços estruturais do autismo, segundo Jean-Claude Maleval (2015) –


(MOREIRA, 2020).

Traço estrutural Resumo

Ausência de delírio e alucinações verbais Delírio e alucinações, no caráter de


automatismo mental, são característicos de
quadros psicóticos e são raros nos autistas.
Mesmo que o ambiente seja invasivo, esses
traços não são ligados a interpretações
delirantes. Uso da língua pelo autista é
separado do imaginário do corpo, ao
contrário da psicose.
Vontade de imutabilidade Imutabilidade é um conceito posterior a
Bleuler e designa um mundo estático e
imutável. Ex: sucessão idêntica de
acontecimentos. Caracteriza-se como um
mecanismo de defesa contra a angústia.
Enquanto Kanner dá central importância,
esse traço é minimizado nos DSMs. Esse
traço é oposto à esquizofrenia, na medida
que essa não dá relevância a regras e normas
como os autistas dão. Esquizofrenia rejeita o
Outro e o autista busca um “Outro de
síntese”.
Ausência de desencadeamento no autismo Retração autística é percebida desde cedo na
infância enquanto o quadro esquizofrênico
advém após período de normalidade. Ainda,
grande parte dos desencadeamentos
esquizofrênicos é na idade adolescente, em
contrapartida ao autismo. Na esquizofrenia
há variações entre momentos de
estabilização enquanto o autismo tem
funcionamento linear.
33

Evolução do autismo para o próprio Relatos de passagens do autismo à


autismo esquizofrenia e de superposições
sintomatológicas são raros na literatura.
Sintomas autísticos não têm aspecto
evolutivo e permanecem lineares.
Constatação de um continuum no
transtorno, por exemplo entre as síndromes
de Kanner e de Asperger. O Caso Schreber
mostra como, na psicose, pode haver
passagens por quadros diversos como
paranoia, melancolia, mania e parafrenia.
Por outro lado, o autismo não apresenta tal
variação.
Especificidade dos escritos autistas Escritos possuem caráter demonstrativo do
intelecto e servem para reivindicar espaço às
suas especificidades. Por outro lado, maior
parte dos psicóticos não se considera dentro
deste quadro. Grande parte dos escritos
psicóticos traz revelações ou descobertas em
relação à realidade simbólica.
A retenção da voz e o primado do signo O autista se recusa a ceder objetos pulsionais
e isso é comum ao autismo e à psicose,
porém o autista possui domínio sobre seu
objeto ao passo que a empreitada do
psicótico vai na direção de estabelecer uma
composição com o objeto, que emerge do
exterior. Para o psicótico, o objeto tem valor
significante, mas não valor fálico. Por sua
vez, para o autista, o objeto é captado em
alguma forma sígnica, estável, de forma que
o domínio dele é um mecanismo de defesa.
Volição apoiada em uma borda Indiferença autística é variável conforme a
direção libidinal e na maior parte das vezes
34

se interesse mais por objetos do que por


pessoas. Enquanto que, na esquizofrenia, o
desinteresse é estendido a quase tudo e a
libido é investida no próprio corpo.
Exemplificando: com frequência os sujeitos
autistas se servem de parte do corpo de
outras pessoas, como objetos no caráter de
duplo, para apoiar suas as próprias ações.
Nesse sentido, Maleval aponta a
diferenciação: o duplo psicótico é percebido
como invasivo e maldoso, tornando o sujeito
impotente, e o duplo autista é tranquilizante
na medida em que pode ser controlado e
tornado familiar.
A borda autística A borda autística que protege contra o
caráter invasivo do Outro possui três
componentes: o objeto autístico, o duplo e a
ilha de interesse. As particularidades da
borda autística são: servir como fronteira em
relação ao mundo, um canal em direção a ele
e um componente que pode captar e tornar o
gozo dinâmico. Possibilidade de transformar
a ilha de interesse em habilidades sociais é
caminho para a inserção do autista. Sobre
essa diferença de mecanismos de defesa,
Maleval, afirma (p. 34): “o psicótico tenta
compor com um gozo rejeitado do exterior
(perseguidores, alucinações), enquanto o
autista se esforça na retenção de um gozo
dominado sobre uma borda”.
Fonte: Adaptado de MALEVAL, 2015; MOREIRA, 2020.
35

2.4 A Importância da Distinção


Através da observação feita por Laznik acerca do funcionamento de ambas as estruturas
psíquicas, a separação entre psicose e autismo fica clara em suas sintomatologias. Apesar da
ocorrência de despersonalização em ambos os funcionamentos, não se apresenta como um
conectivo das duas em uma estrutura única, mas um sintoma comum a elas. É a partir desses
traços diferenciais que Laznik (2016) irá iniciar seus trabalhos em Paris buscando caminhos
possíveis para uma clínica do autismo.
O cuidado clínico em psicanálise está diretamente atrelado ao funcionamento estrutural
dos sujeitos em tratamento. Observar essas diferenças sintomáticas é ponto de partida para o
início de um tratamento específico para o autismo em torno de sua formação estrutural. Lacan
em seu primeiro seminário (1953-1954/2009) nos aponta o Esquema Óptico de Bouasse como
forma de tratar do processo de formação do infante, se comunicando com os momentos do
narcisismo em Freud (1914-1916/2010), tema essencial para pensarmos nessas diferenciações
sintomatológicas como consequências de formações estruturais diferentes.
Afim de esclarecermos o tema e iniciarmos a pauta principal de nossa pesquisa, pensar
o indivíduo autista através do estatuto de sujeito na psicanálise lacaniana, vê-se necessário
explicitar o conteúdo bibliográfico em torno do Esquema Óptico, e do narcisismo em Freud, de
forma a trazer o processo de formação da estruturação egóica na relação infante-Outro. A
relação inicial entre o bebê e seus cuidadores tem papel essencial para a formação do sujeito
em psicanálise, este que enuncia e se faz sujeito da enunciação (GUIDO, 2009), sendo este tema
essencial para o pensar em torno de uma clínica própria ao autismo – na possibilidade de
surgimento do sujeito da enunciação (LAZNIK, p. 231).
A partir disso, pontuarmos a proposta desta pesquisa bibliográfica: pensar o autismo em
seu espaço de subjetividade clínica, diferenciado e afastado das psicoses – em sua constituição
diferencial.
36

CAPÍTULO 3. PSICANÁLISE E A CLÍNICA – O AUTISMO EM SEU ESPAÇO DE


SUBJETIVIDADE

3.1 Considerações Iniciais


Este capítulo tem como objetivo trazer relação entre a formação egóica em Lacan e
Freud, propondo através disso um sustento para a estruturação da temática da clínica em
autismo através da bibliografia de base em psicanálise contemporânea. Através dessa base
construída na leitura clássica em psicanálise podemos estruturar um caminho para o avanço
teórico em torno dos desenvolvimentos contemporâneos da clínica autística, propondo um
diálogo entre o que é posto na construção em torno do Esquema Óptico de Bouasse (1953-
1954/2009), nas formações narcísicas em Freud (1914/2010) e relacioná-las à construção
clínica de Laznik (2011;2016) e a leitura contemporânea em torno das questões corporais
(ALLOUCH, 2003).
Como observado anteriormente, o tema do autismo é envolto inicialmente de uma trama
em torno da psicose e as esquizofrenias infantis, tendo como principal temática no
contemporâneo sua distinção. Uma vez que esse trabalho se dá em volta da distinção
psicopatológica e estrutural entre autismo e psicose, temos como base para a pesquisa a
necessidade de uma formação de espaço para o autismo em sua subjetividade.
Para isso, denota-se a necessidade de retornar aos temas clássicos do narcisismo, através
de Freud e Lacan, de forma a retomar os conceitos que estão em torno do tema e, com eles,
avançarmos à pesquisa de Laznik (2016) com bebês e crianças autistas. Ou seja, a retomada do
tema tem sua importância pautada na atualização da mesma com base no que é observado no
trabalho clínico psicanalítico contemporâneo, como está tratando Laznik em seu trabalho com
crianças em Paris.
Através do que é descrito por Lacan (1953-1954/2009), com o auxílio gráfico do
Esquema Óptico de Bouasse, podemos visualizar os passos iniciais da psicanálise estrutural em
torno do aparelhamento psíquico do infante por parte do Outro primordial: aquele que dá espaço
à criança na Linguagem.
É evidente a importância de trazer o Esquema Óptico em seu espaço na teoria
psicanalítica lacaniana para que seja possível, posteriormente, pensarmos na atualização da
psicanálise contemporânea acerca do tema da constituição do Eu e sua relação com o autismo.
37

3.2 O Esquema Óptico de Bouasse


Lacan em O Seminário. Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954/2009),
parte do Esquema Óptico de Bouasse, conforme está reproduzido na Figura 3, para a
esquematização da formação egóica em sua fundamentação no narcisismo. Neste experimento
Bouasse posicionava um vaso de flores (vazio) frente a um espelho côncavo e abaixo deste vaso
colocou flores que, ao se refletirem no espelho, se fazem visíveis ao observador posicionado
corretamente – proporcionado a ele tanto o objeto Real (que existe) quanto a imagem Real (que
não existe, ou seja, o vaso com flores).

Figura 3. Esquema Óptico de Bouasse

Fonte: LACAN, 1953-1954/2009, p. 107.

Lacan (1953-1954/2009) nos apresenta o Esquema como formalização do


funcionamento da relação entre a mãe (o Outro primordial) e a criança, no processo de
constituição do sujeito. O olho seria o Outro primordial (A), a mãe, aquele que nomeia o bebê
e dá a ele espaço no universo da linguagem, o atraindo para o processo de alienação à ela. O
vaso seria o corpo real do bebê, enquanto as flores em seu reflexo no espelho aquilo que é sua
nomeação e possibilidade de existência com a linguagem, o vir-a-ser.
O olho observado sobre o vaso tem o papel de tornar real a imagem virtual, sendo ele o
responsável pela ligação e transmissão dessa imagem para o corpo real. Neste esquema a mãe
se propõe ao papel de observar o que não existe, antecipando a imagem egóica do bebê para si,
tendo sua relação com este infante pautada pelo seu “Eu-virtual”.
É a partir disso que Lacan (1953-1954/2010) altera o esquema de Bouasse substituindo
o olho do observador, pelo espelho plano como olhar do A, representando a função materna,
enquanto o olho permanece, mas agora representando o bebê, que passa a se enxergar pelo olhar
38

do A (espelho plano). Além disso, o vaso e as flores são trocados de posição, conforme é
retratado na Figura 4, pelo Esquema de Dois Espelhos.

Figura 4. Esquema de Dois Espelhos.

Fonte: LACAN, 1953-1954/2009.

Para Lacan, o bebê então passaria por dois momentos do narcisismo em sua observação
em torno do esquema: o narcisismo primário, caracterizado pela imagem real do bebê, e o
narcisismo secundário, caracterizado pela relação do bebê com seu reflexo no espelho plano. O
bebê então passaria através do contato com o reflexo do outro por um momento de correlação
imaginário-simbólico, em que, através da imagem idealizada presente no reflexo do espelho o
bebê se reconhece e, com ela dialoga com o mundo. Greco (2011), traz uma síntese acerca do
esquema em seu texto Os Espelhos de Lacan:
Então, uma síntese da leitura do esquema óptico poderia ser: o sujeito se mira no ideal
de Eu (espelho plano), de modo que esse espelho faz função do outro como lugar
simbólico. É através dessa tela do espelho plano que o Eu pode se reconhecer na
imagem do outro, pode se projetar (sua imagem) numa relação que pode ser lida como
projeção de um Eu ideal (GRECO, 2011, p. 8).

A partir do Esquema Óptico observamos o momento da alienação do bebê pelo Outro


que, em sua origem, aliena o bebê a uma imagem antes mesmo de um significante: essa imagem
que o infante observa no olhar do Outro sobre o eu (LACAN, 1953-1954/2009, p. 186). Com
isso surge o questionamento de como esse processo se daria no autismo.
De forma a nos aprofundarmos na temática das formações egóicas, denota-se a
necessidade de retornamos aos textos freudianos acerca do narcisismo e, assim, relacioná-los
com o observado em Lacan sobre o Esquema Óptico e o Esquema de Dois Espelhos. O tema
do narcisismo é a base para as formulações lacanianas em torno de seu ensino sobre os espelhos
39

e a constituição do sujeito em seu Seminário 1, sendo assim, essencial para nosso


desenvolvimento.
3.2.1 O Narcisismo como Fundamento do Esquema Óptico
É no texto Introdução ao Narcisismo (1914/2010) que Freud trará dois pontos essenciais
para a sustentação deste trabalho e que denotam a importância do tema do narcisismo para sua
continuação:
1. O eu como objeto de investimento libidinal;
2. A relação entre as pulsões e a noção de apoio.
A passagem pelo momento de autoerotismo, período este que Freud descreve como
caracterizado por libido localizada, sem conexão às satisfações parciais, seria ultrapassado com
a ação do narcisismo, momento em que podemos observar a constituição do Eu, ou seja, uma
instância unificada para o investimento libidinal (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p.132),
que será observado no narcisismo primário:

[...] o Eu tem que ser desenvolvido. Mas os instintos autoeróticos são primordiais;
então deve haver algo que se acrescenta ao autoerotismo, uma nova ação psíquica,
para que se forme o narcisismo (FREUD, 1914-1916/2010).

O narcisismo primário se estruturaria no contato com seus cuidadores, que contribuem


para a instauração de uma onipotência primária, o que Freud irá chamar de Sua Majestade o
Bebê. Neste momento o bebê se reconheceria no que o autor aponta como ideal Ich (Eu ideal),
que seria a imagem produzida pelo Outro no espelho plano (como observado na Figura 2) em
suas projeções sobre a criança, ou seja, os ideais paternos. Este momento inicial de pleno amor
e potência e a relação de onipotência quanto ao seu objeto de satisfação libidinal (o seio) é então
caracterizado por esse Eu ideal: Sua Majestade o Bebê.
Porém, esta formação imaginária acaba em algum momento, momento este que Laznik
(2016) apontará posteriormente – e entraremos neste tema –, como a passagem do Simbólico
sobre o Imaginário, que em termos freudianos seria a irrupção da lei sobre a imagem
“majestificada” do bebê construída pela mãe. Neste momento o bebê se posiciona em uma nova
relação com seus cuidadores, em que ele não é mais possuidor de todos os dons e criador de
sua realidade, mas um corpo dependente de um outro para se estabilizar no mundo.
O Esquema Óptico se apresenta então como uma formalização lacaniana do tema do
narcisismo em Freud, uma vez que é nele que observamos os dois momentos desta passagem,
com o corpo real do bebê e seus limites sendo deixado de lado em troca do olhar maravilhado
de seu cuidador, mas que, em algum momento, é destituído de poder por algo que ultrapassa o
real do corpo: a lei. É neste momento que o bebê tentaria tamponar esse furo criado pela
40

instância Simbólica, de forma a sobreviver sem o sentimento de onipotência que havia antes
enquanto tenta relembrá-lo, formando o Ich ideal (ideal do Eu), como uma tentativa de
“saborear” este primeiro momento do Eu no narcisismo novamente, criando um molde a tentar
alcançar rumo à satisfação.
O ideal do Eu é formado como uma instância de comparação ao Ego, sendo ele a base
para o que há de ser satisfatório, e caminharia em conjunto ao supereu. O supereu sendo o
resultado da quebra com o desejo da mãe, instância que pode ser caracterizada como a
introjeção da lei paterna ao ultrapassarmos o Complexo de Édipo, para que seja usado de
imperativo ao Eu real, que não mais se apresenta como sujeito virtual do olhar do Outro
(LACAN, 1953-1954/2009). Ou seja, o supereu funcionaria delimitando o desejo através da
ordem e métrica paterna (“faça isso”, “não faça isso”), enquanto o ideal do Eu como um
horizonte ao desejo, aquilo que o Eu “gostaria de ser”; “o supereu é constrangedor e o ideal do
Eu exaltante” (1953-1954/2009, p. 123). A partir disso, Lacan nos formula:
Qual é o meu desejo? Qual é a minha posição na estruturação imaginária? Esta posição
não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do imaginário, ao nível
do plano simbólico, da troca legal que só pode se encarnar pela troca verbal entre os
seres humanos. Esse guia que comanda o sujeito é o ideal do Eu (LACAN, 1953-
1954/2009, p 166).

É através disso que postulamos a passagem do Simbólico sobre o Imaginário na vida do


bebê, pelo guia do sujeito em sua posição simbólica no mundo: o ideal do Eu. O ideal do Eu
seria então o Eu-ideal transformado pela exigência do simbólico, daquilo que castra o
sentimento de onipotência do bebê (CAMPOS, 2018).
É através da temática do narcisismo que podemos observar a evolução dos pontos
essenciais supracitados: o Eu como objeto alvo de investimento libidinal (observado pelas
formações egóicas da passagem pelo narcisismo e suas importâncias na economia pulsional) e
a noção de apoio. Em Eu e o id (1923-1925/2011, p. 24), Freud nos aponta a posição corporal
do Eu, utilizando o termo Körper-Ich (Eu-corpo), que será retomado posteriormente pelo estudo
de Allouch (2003), mas que demanda prévia exposição por se tratar de parte essencial ao tema
do narcisismo.
O que observamos no momento do narcisismo seria o apoio das pulsões sexuais sobre
as funções corporais, uma conexão de um Eu, ainda que primitivo, com sua existência corporal
na relação imaginária egóica, que é visível também no Esquema Óptico lacaniano, uma vez que
é no vaso vazio a base da unificação do Eu. Em suma, é a partir do Esquema Óptico lacaniano
que podemos observar a esquematização em torno da constituição do Eu e sua formalização,
tema que demanda explicitação para prosseguirmos no trabalho.
41

3.2.2 O Esquema Óptico como Formalização do Eu


O Esquema Óptico utilizado por Lacan se trataria então, como proposto anteriormente,
de uma resolução gráfica aos momentos iniciais de vida do sujeito, enquanto infante. Ele viria
como uma tentativa de explicitar a relação do bebê com seus cuidadores (Nebenmensch) e o
olhar advindo deles, que o falicizaria no imaginário de Majestade. É através dele que podemos
observar o momento da passagem de um Eu-virtual, fruto da relação imaginário-simbólico do
Outro, para uma construção de fato de um Eu-corpo em sua relação com suas instâncias
psíquicas em contato com a sensorialidade e o mundo.
É através do Esquema que podemos observar então a formalização do Eu, ou seja, certa
denotação da formação egóica através das possibilidades de contato com os cuidadores do
infante e, assim, termos base para prosseguir ao tema do Eu-corpo em relação à pesquisa e seus
objetivos. A passagem pelas etapas do narcisismo freudiano explicitada por Lacan nos
remeteria ao que temos como base do conceito de sujeito em suas diversas fases de
desenvolvimento, e é a partir desta base que podemos trazer o que é observado por Laznik em
sua clínica autista (como a teoria dos “erros” no nó borromeano) e, até mesmo, no que Lacan
explicitará, em conjunto à Rosine Lefort, com o Caso Petit Roberto (1953-1954/2009, p. 125-
145) e nosso primeiro contato com o tema da sensorialidade na psicanálise lacaniana.
3.3 O Caso Petit Roberto
Roberto foi paciente de Rosine Lefort na instituição que trabalhava com criança órfãs,
sendo trazido por ela no primeiro seminário de Lacan, expondo o caso para os ouvintes e
abrindo o mesmo para discussão. Trazer o Caso Roberto para o tema do autismo é de notável
importância para a construção da pesquisa bibliográfica uma vez que Lacan demonstra um
espaço aberto para a interpretação do mesmo. Questionado por Dr. Lang sobre a possibilidade
de um diagnóstico de delírio alucinatório Lacan o responde:
Um delírio alucinatório, no sentido em que se entende, de uma psicose alucinatória
crônica, só tem uma coisa em comum com o que se passa nesse sujeito, é essa
dimensão, que foi observada com fineza pela Sra. Lefort, que é o fato de essa criança
só viver o real (LACAN, 1954-1954/2009, p. 124.).

Rosine, em conjunto com Lacan, nos apresente um caso de grande importância para a
temática do autismo, uma vez que observamos uma criança fora da estruturação neurótica, mas
que permanece em um espaço nebuloso no caminho das psicoses. Sua sintomatologia nos faz
questionar uma hipótese diagnóstica voltada para uma forma precoce de desencadeamento
psicótico (como uma esquizofrenia infantil), uma vez que difere de diversas formas do que
observaríamos na estrutura psicótica.
42

Posteriormente, o autor traz ainda um avanço, denotando uma diferenciação entre o caso
de Roberto e a estrutura psicótica, mostrando que, diferente da psicose em que ocorre uma
síntese entre real e imaginário, temos em Roberto um funcionamento imaginário secundário,
que é de grande valia para nosso trabalho. Dessa forma, faz-se necessário explicitar, na medida
do necessário ao tema da pesquisa, o Caso Petit Roberto.
3.3.1 A Leitura de Lacan e Rosine Lefort sobre o Caso Petit Roberto
Roberto chega à instituição de cuidado à crianças órfãs que trabalhava Rosine Lefort
com 3 anos e 9 meses, após ter passado por negligência de sua mãe (diagnóstica como
paranoica), que deixava o menino passar fome a ponto de ser hospitalizado com apenas 5 meses
por desnutrição e hipotrofia, além de procedimentos cirúrgicos para o tratamento de otite
bilateral e passado por cerca de 25 mudanças de residência entre hospitais e instituições de
cuidado, sem nunca viver um ambiente propriamente familiar. O quadro de Roberto era
saudável fisiologicamente (à parte uma otorreia bilateral crônica), mas com movimentos
descoordenados, hiperagitação constante e capaz de dizer apenas duas palavras: “O lobo! O
lobo!”, além de gritos guturais e discordantes.
Além disso, era acompanhado de problemáticas em torno de seu lugar no mundo: seus
movimentos eram desordenados e sem finalidade. Ao tentar alcançar um objeto, caso não
conseguisse, não poderia retificar o movimento, iniciando do zero sua movimentação. Tinha
perturbações variadas do sono além de crises de agitação convulsiva por ocasião de cenas
rotineiras de sua vida – o penico e seu esvaziamento, despir-se, a comida, portas abertas, o
escuro, gritos de outras crianças e as mudanças de quarto.
Seu tratamento pode ser separado em diferentes fases, sendo cada um representante do
caminhar do cuidado de Rosine Lefort com Roberto, desde o início do tratamento (com os
primeiros encontros entre os dois) e o avanço dele para uma produção de continentes ao corpo
de Roberto e uma formação egóica delimitativa (que é observado no “Batismo” com a água e
com o leite).
As mudanças residenciais constantes de Roberto eram presentes no ambiente de análise,
em que Roberto se via aterrorizado pela mudança de quartos, sendo esta mudança um princípio
de destruição marcado em sua vida psíquica, sendo exprimido com a mamadeira e com o
penico. Roberto se via obrigado a fazer cocô durante as sessões, como se suas fezes fossem um
presente à Rosine para que ela se conservasse ali, ocorrendo até mesmo um momento em que
Roberto de fato oferece suas fezes à sua analista.
Além disso, certa vez fez uma mistura com areia, boneca, leite, xixi e mamadeira no
penico, e quando em dado momento parte da areia cai no chão a sensação era de que parte dele
43

mesmo havia caído. Ao ver sua imagem no espelho gritava “O lobo! O lobo!”, sendo ele mesmo
“O lobo!” e todos os elementos no penico, “é a sua própria imagem que ele golpeia ou evoca
com tanta tensão” (p. 114). Seu pânico apenas sessou com um relaxamento diarreico, em que o
menino fez questão de espalhar suas fezes com as mãos pelas paredes e sua cama.
Todos esses itens simbolizavam de alguma forma aquilo que era conteúdo de seu corpo,
mas com pouquíssima diferenciação (como observado pela cena do penico), mas que eram
unidos em sentimento de destruição do seu corpo. De forma a se proteger dessa destruição,
Roberto produz continentes aos objetos: a mamadeira quebrada que era enfiada, em pedaços,
nesses conteúdos destrutivos.
Após esse momento, Roberto passa ao trabalho de exorcizar “O lobo!” – exorcizar por
passar a impressão de que estava possuída. A criança trazia consigo uma simbolização de seu
comportamento importante para o trabalho aqui apresentado, e creio ser nesse momento o foco
de nossas investigações.
Rosine faz um extenso trabalho de compreensão sobre os objetos corporais de Roberto:
a urina, as fezes e o leite. O leite seria o que se recebe, as fezes o que se dá e o xixi é destrutivo.
Certo momento, Roberto chorava por ter feito pouco cocô, momento este que foi apaziguado
por Lefort ao lhe dizer que não se pode dar muito recebendo pouco sem ser destrutivo ao seu
corpo, o que o deixou calmo e levando, agora tranquilo, o penico para ser esvaziado no vaso.]
Em outro momento, Rosine nos aponta algo sobre seus ritos de limpeza do penico, esta
instância unificadora dos objetos corporais de Roberto:
Começava por esvaziar a urina no lavabo do WC, deixando a torneira de água correr
de modo a poder substituir a urina por água. Enchia o penico, fazendo transbordar
muito, como se um continente não tivesse existência a não ser pelo seu conteúdo e
devesse transbordar como para contê-lo, [...]. Esvaziava esse xixi, e tentava recuperá-
lo, persuadido de que era ele que se iria. Berrava: - O lobo!, e o penico só podia ter
realidade para ele, quando cheio. Toda a minha atitude consistiu em lhe mostrar a
realidade do penico, que ficava, após ter sido esvaziado do seu xixi, como ele,
Roberto, ficava, após ter feito xixi, como a torneira não era arrastada pela água que
corre (LACAN, 1953-1954/2009, p. 115).

É no trabalho de Rosine que observamos o que será o avanço da clínica de Laznik (2016)
acerca do tema. A analista apontava seu trabalho para complementar à Roberto aquilo que era
incapaz de produzir sozinho, fazendo assim como uma instância imaginária secundária através
do processo de análise. Roberto não iria embora com o xixi uma vez que o xixi não era Roberto,
mas uma produção de seu funcionamento fisiológico, mas tal processo não tinha clareza alguma
para o menino, sendo explicitado por Rosine.
Lacan (1953-1954/2009) nos elucida esse ponto, explicando que o desenvolvimento de
Roberto é de fato prejudicado precisamente no plano do imaginário, ou seja, do Eu enquanto
44

função imaginária. Tal proposta nos remete também ao tema do Espelhos, uma vez que o
desenvolvimento de Roberto está de fato atrelado aos seus primeiros momentos em contato com
o Outro, este que não se apresenta propriamente a ele, mas aparecia como um abandono e
descaso (como observado pela desnutrição e abandono da criança por sua mãe e suas entradas
frequentes no âmbito hospitalar). Este Eu, supostamente, nunca pôde ser unificado, se mantendo
no que seria o Eu primitivo, pré-narcisismo, em que o corpo é alvo das pulsões enquanto
desmembrado de um conectivo imaginário, ou seja, uma manutenção do autoerotismo.
A separação entre psicose e autismo não é prevista por Lacan ao se tratar de Roberto,
uma vez que neste momento histórico ainda era uma temática pouco trabalhada, ainda se
tratando do primeiro seminário apresentado pelo autor. Porém, o mesmo nos traz uma
observação: Roberto claramente não tem uma esquizofrenia no sentido de um estado, uma vez
que observamos nele simbolização, mas há uma relação esquizofrênica com o mundo, mas
tratando a hipótese como uma aproximação. Ou seja, há aí um mistério sobre sua estruturação
que o afasta das esquizofrenias.
Laznik (2016) aponta para um cuidado com o autismo próximo ao que foi feito por
Rosine em relação ao auxílio com os objetos de Roberto. Ao trabalhar com uma função
imaginária com Roberto, Rosine permite a ele compreender as coisas do ponto de vista
imaginário, mesmo que em uma instância secundária: Roberto não é sua urina ou o amontoado
de itens em um penico.
Roberto em um dado momento passa pelo que Rosine chama de batismo pela água e
pelo leite, onde a criança joga sobre seu corpo um pouco de água que pegara com as mãos e
começa a dizer “Roberto, Roberto.”, e, logo após isso, derrama sua mamadeira com leite sobre
seu corpo, sendo este objeto (o leite) ao mesmo tempo conteúdo e continente. Roberto produz
com sua terapia formas de produzir continentes sobre seu corpo desmembrado, se separando
dos objetos externos, o permitindo ter algo como um Eu. O que observamos é a produção da
borda autística, que agora permite que Roberto mantenha seus objetos sem tê-los como o que é
o Eu, mas como funções de suporte e manutenção de sua existência corporal e sensorial,
introjetados na borda.
Afim de explicitar a relação do Caso Roberto com a pesquisa de Laznik, psicanalista
francesa faz parte da base do desenvolvimento deste trabalho, é necessário trazer sua pesquisa
no Centro Alfred Binet em Paris com crianças autistas e psicóticas e, assim, avançarmos à teoria
da pesquisadora.
45

3.4 A Pesquisa de Laznik com Crianças Autistas e Psicóticas

Para um bebê que vai bem, seu tempo de Majestade deverá ser cada vez mais curto.
Rapidamente, é conveniente que sua “Pessoa Experiente”, sua mãe ou alguém que se
ocupe dele, coloque a divindade retransformada em bebê para dormir. Trata-se aqui
de uma primeira forma de castração Simbólica (LAZNIK et. al, 2016, p. 39).

Publicado no ano de 2016, o texto Distinção Clínica e Teórica entre Autismo e Psicose
na Infância (LAZNIK et. al., 2016) apresenta tanto uma diferenciação do funcionamento
autístico e psicótico (Tabela 3) quanto o resultado de uma série de avaliações de encontros
clínicos com crianças psicóticas (TID não autístico) e autistas.
A partir de 2010, no Centro Alfred Binet (Paris), Laznik se dedicou, em conjunto com
seu grupo de pesquisadores e analistas, ao atendimento de 53 crianças autistas e 85 crianças
psicóticas (138 no total), a partir da diferenciação de ambas em entrevistas inicias e,
posteriormente, apresentando a evolução clínica dessas crianças. Porém, antes de trazer a
pesquisa acerca da clínica de Laznik, é notável a importância de pontuar o que fora capturado
pela autora em sua experiência com crianças autistas e sua hipótese sobre possíveis formações
estruturais.
Ao tratar de sua experiência clínica, Laznik retoma os escritos de Lacan em O
Seminário. Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954/2009). O esquema óptico é,
como apresentado por Laznik, comparável ao quadro exposto na Figura 5. Trata-se do quadro
Natividade (1430), de Giovanni da Fiesole (Fra Angelico). Laznik observa que a coroa de luz
no menino Jesus é dada não por sua divindade em si, mas pelo olhar maravilhado de seus pais
que lhe confere essa aura que lhe faliciza.

Quadro 1. Natividade.

Fonte: Fra Angelico (1430).


46

Esta interpretação de Laznik se coaduna com a formulação de Lacan (1953-1954/2009)


sobre o esquema óptico. De fato, conforme já mencionamos anteriormente, Lacan pontua o
esquema óptico como um visualizador dos processos primários de formação egóica e conexão
eu-corpo. É o olhar do observador que confere ao vaso essa Imagem Real que não se faz na
materialidade, mas que dá espaço para sua existência simbólica, ou seja, este Outro primordial
em sua função materna confere ao bebê espaço como um outro – que é palpável por
investimentos libidinais: os desejos em torno das realizações futuras do bebê, uma tentativa de
“sujeitação” desse infante pela via da linguagem e sua apresentação, enfim, a aura que o faz
divino.
É a partir dessa comparação entre as proposições lacanianas e o quadro Natividade que
Laznik inicia sua proposta de mudança de paradigma em torno no Esquema Óptico, através de
uma alteração no esquema em torno do vaso, a partir do que é observado em sua experiência
clínica.
3.4.1 Diferenciação Acerca do Esquema Óptico Entre Lacan e Laznik
A Sua Majestade o Bebê seria colocada sobre uma ilusão antecipadora que o posiciona
no registro do narcisismo, como descrito por Freud (1914-1916/2010), mas que, como
observado no quadro, há um detalhe importante destacado pela autora: o bebê está participando
ativamente nesse esquema, estendendo o braço na direção dos pais. A imagem estática do
esquema de Bouasse posiciona o vaso como um objeto imóvel a ser preenchido, o que Laznik
não nota em sua clínica, mas nos apresenta com sujeitos ativos em relação ao investimento
fálico-libidinal de seus pais.
Nisto encontramos uma pontual diferença entre o exposto em Lacan (1953-1954/2009)
e a pesquisa de Laznik: o bebê proposto por Lacan é imóvel, não-ativo em sua formação egóica
e apenas um receptor da aura divina imposta pelo Outro, enquanto que em Laznik isso não se
apresenta. Em sua clínica, o que é notável é exatamente a importância da atividade do bebê em
sua formação, como exposto em sua leitura da pesquisa de NAGY & MOLNARB (2013).
Os pesquisadores propunham a bebês de menos de três dias de vida o movimento de
levantar e abaixar o dedo, imitando os pesquisadores, na forma de uma brincadeira. Os bebês,
como declarado por Laznik, tinham o “extraordinário comportamento de imitação”, porém,
mais extraordinário ainda, é que, ao parar com a brincadeira e não olhar mais para o bebê, ele
tomava a iniciativa mostrando seu dedo e olhando fixamente para Emese (aguardando que ela
o olhe de volta).
47

Ainda, Emese constata através da frequência cardíaca desses bebês que o movimento de
imitação e provocação (como ela chama o ato do bebê de levantar o dedo e aguardar o retorno
da pesquisadora) são fisiologicamente diferentes.
Além disso, Laznik nos aponta algo que remete ao tema da alienação do sujeito à
linguagem pelo Outro: o que ocorre no autismo parece ser, primeiramente, uma falha de
convocação do infante pelo Outro, ou seja, o bebê não corresponde ao chamado, ou até mesmo
não o observa (2004, p. 56). A não resposta ao olhar da mãe, diferente do que é observado em
Natividade, nos proporciona um ponto de partida para observar a hipótese da autora em torno
do nó-borromeano lacaniano.
3.5 A Hipótese de Laznik: o “erro” no nó-borromeano na base do autismo
Através dessa observação, Laznik irá se voltar ao caso de James Joyce, que Lacan
apresenta em seu O Seminário. Livro 23: O Sinthoma (1975-1976/2007). A autora nota no
discurso de Joyce dado a Lacan uma desconexão entre o sujeito e seu corpo, como retratado em
um episódio que sofre um espancamento por parte de colegas de sala, mas que, ao acabar, o
sofrimento se esvai como uma casca. Em sua clínica encontrou grande quantidade de crianças
autistas que apresentavam desdém às aflições do corpo, como bebês que não choram ou infantes
que não procuram consolo ao se machucar (crianças então inativas em sua relação investimento
pulsional-bebê) – e, além disso, crianças que se machucavam propositalmente como forma de
obter informações sobre um corpo desconexo do resto.
Sua hipótese não é de que Joyce seja um sujeito autista, mas que seu discurso apresenta
um marco na formação egóica em relação ao nó borromeano (Figura 5). Este nó, como
apresentado por Lacan, se trata de uma ilustração da relação entre os registros do Real,
Simbólico e Imaginário, sendo suas características gerais: 1. o Real representando aquilo que
foge ao discurso, o impossível de dizer, o impensável, subtraído da realidade; 2. o Simbólico
como regimento onde nasce o discurso representante não-todo do Sujeito (S/), um conjunto de
elementos a serem ligados em prol da formação discursiva; 3. o Imaginário se tratando daquilo
que aliena o Sujeito à uma suposta compreensão que da volta aos problemas de comunicação,
regimento das identificações.
48

Figura 5. Nó Borromeano.

Fonte: LACAN, 1975-1976/2007, p. 21.

Em 18 de dezembro de 1973, Lacan (1973-1974/2018) redige em seu quadro o


entrelaçamento dessas três linhas na formação do bebê em que elas, ao se entrelaçarem, dão
espaço para as possibilidades estruturais. O autor renomeia então as instâncias para dar lugar o
recém-nascido: o Real seria o corpo do bebê, o Simbólico seria a ordem do mundo e as regras
que os sujeitos se submetem, e o Imaginário a possibilidade de ver o que ainda não está ali –
Sua Majestade o Bebê.
Laznik (2016, p. 31-44) apontará então os 6 momentos de enodamento entre Real,
Simbólico e Imaginário, postulando o que são essas passagens e sua relação com a realidade do
relacionamento entre bebê e cuidadores, como demonstrado pela Tabela 6 a seguir. É através
destes enodamentos (e não enodamentos) que as estruturas psíquicas e seus mecanismos seriam
formados, e é nisto também que a autora destaca sua hipótese em torno da estruturação autística.

Tabela 6. Os Movimentos de Sobreposição da Trança ao Nó Borromeano – LAZNIK,


2016.
Movimento de Sobreposição da Descrição da Sobreposição
Trança

1. Real ao Simbólico O papel do cuidador estaria em diminuir as excitações


externas e internas ao organismo (FREUD, 1895/1990),
porém, algumas são incontroláveis – principalmente ao
falarmos do trato gástrico -, e nisto o corpo do bebê se
sobressai ao Simbólico.
49

2. Imaginário ao Real O bebê nota a excitação e surpresa que sua presença


produz no olhar do Outro primordial. Esse investimento
o coroa e o diviniza (faliciza).
3. Simbólico ao Imaginário Este é o momento de colocar a majestade para dormir
enquanto bebê. Não se trata de um desamparo ao
infante, mas do Simbólico retomando seu lugar na
relação Simbólico-Imaginário, com a queda da
divindade do infante, sem atacar o Real do corpo do
bebê.
4. Real ao Simbólico Aqui o Real aparece através do cuidado apesar de não
mais Majestade. O cuidador permanece diminuindo
suas excitações, mesmo que para isso tenha que
enfrentar o cansaço.
5. Imaginário ao Real Temos aqui o Estádio do Espelho, com a construção do
Eu como instância imaginária. Ele é o que o Outro vê, e
se enxerga nesse olhar maravilhado, desviando de sua
imagem no espelho para reencontrar o olhar do Outro.
6. Simbólico ao Imaginário Aqui tratamos da castração simbólica: o momento em
que a lei paterna (Nome-do-Pai) age sobre o Outro,
retirando o Desejo da Mãe de cena. Se trata da queda do
ideal Ich (ideal do Eu), e construção de um Ich ideal
(Eu-ideal) como forma de lidar com o fim de sua
onipotência monárquica, o narcisismo primário.
Fonte: Adaptado de LAZNIK, 2016, p. 31-44.

Laznik (2016) apontará que a “falha” no enodamento das instâncias que encaminharia
o sujeito à uma estruturação autística se encontraria no Imaginário, o que condiz com a
sintomatologia encontrada na clínica da autora sobre esses sujeitos: dificuldades para imaginar
histórias, não atração pela admiração de seus pais quando bebês, sem se deixar tomar pelo olhar
do Outro, ou seja, sem estender a mão em direção aos seus pais, como Jesus em Natividade.
Esta falha se iniciaria, segundo a psicanalista, no primeiro enodamento, em que o
cuidador aparece diminuindo as excitações. Tal postulação entra em concordância com o
trabalho realizado por Lacan em O Seminário. Livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-
1954/2009, p.125-145) com o Caso Roberto, em que o garoto teria sido, logo após nascer,
50

abandonado por sua mãe diversas vezes, sofrendo de desnutrição em tenra idade por falta de
leite materno, sem um cuidador responsável por reduzir as excitações internas (a fome) e
externas (o ambiente hospitalar em suas características: exames, luzes, monitoramento e etc.),
mas que, ao invés disso, aparece como responsável por essas excitações.
Enquanto isso, a autora também retrata a falha no enodamento que daria possibilidade
de formação de uma estrutura psicótica baseada no entrelaçamento 3, se tratando de um não
movimento do Simbólico sobre o Imaginário, ou seja, daquilo que diz sobre um regimento de
mundo que o sujeito é submetido. O bebê não é colocado na posição de cessar de gozar, se
sustentando ali como anexada à função materna do Outro primordial, em acordo com o trazido
por Lacan (1997), sendo o psicótico aquele que não tem barras para o Outro, foracluído do
discurso Simbólico. A diferença na formação desses sujeitos e suas relações com as instâncias
RSI é a base para suas sintomatologias e funcionamentos e, consequentemente, necessidades
clínicas específicas.
Nisto, Lacan apresenta concordância ao citar o Caso Roberto (1953-1954/2009, p. 141-
142), em que quando questionado pelo Dr. Lang sobre uma hipótese diagnóstica de delírio
alucinatório, Lacan nos confirma que, na psicose, o sujeito se vê desconexo do plano simbólico,
com a síntese entre Real e Imaginário, enquanto Roberto propõe uma elaboração imaginária
secundária. Essa elaboração imaginária se deu pela própria via da análise com Rosine e Robert
Lefort que, ao possibilitar vias de contato às elaborações imaginárias antes inexistentes,
asseguram o que Laznik propõe em sua clínica diferencial: um trabalho de análise em que o
analista fornece representações a esses sujeitos até que eles próprios possam simbolizar o que
não se faz diretamente presente nas vias imaginárias.
A conexão proposta por Laznik (2016) acerca das excitações e o corpo do bebê em sua
relação com o enodamento – principalmente ao pensarmos no bebê enquanto um ser necessitado
de cuidados essencialmente biológicos em sua dimensão Real – fome, cólicas e desconfortos
em geral – mostra concordância com a proposta abordada por Allouch (2003).
Através da concepção de um Eu-corpo não existente, como proposto por Allouch
(2003), podemos relacionar esta pesquisa com a proposta de Laznik (2016) em torno da falha
do nó-borromeano em relação à função imaginária. Roudinesco e Plon (1998) descrevem a
instância egóica em seu primeiro momento de funcionamento:
Para Lacan, o eu se distingue, como núcleo da instância imaginária, na fase chamada
de estádio do espelho. A criança se reconhece em sua própria imagem, caucionada
nesse movimento pela presença e pelo olhar do outro (a mãe ou um substituto) que a
identifica, que a reconhece simultaneamente nessa imagem. Nesse instante, porém, o
51

eu [Je] é como que captado por esse eu [moi] imaginário: de fato, o sujeito, que não
sabe o que é, acredita ser aquele eu [moi] a quem vê no espelho (ROUDINESCO,
PLON, 1998, p. 212).
Com base nisso, pensar o tema do Eu-corpo em Allouch (2003) seria um caminho em
concordância e agregador ao observado por Laznik em sua clínica. A proposta de Laznik (2016)
para a não sustentação imaginária no nó borromeano que, como trazido por Roudinesco e Plon,
seria a instância responsável para comportar o eu, nos aponto ao que é proposto por Allouch de
uma não formação da instância egóica no autismo, através de sua pesquisa acerca das
Psicopatologias do Apoio.
3.6 A Borda Autística e o Eu-corpo
Trazido por Allouch (2003) através de sua clínica, a Síndrome Autística estaria atrelada
ao que a autora chama de Psicopatologias do Apoio. Em seu cerne, essas psicopatologias – que
englobariam a Síndrome Autística, Síndrome de Resignação e Síndrome de Somatização –,
seriam pautadas na falta do apoio das pulsões sexuais sobre as funções corporais do infante.
Para este trabalho não caberia pautar de forma extensiva as Síndromes de Resignação e
Somatização, portanto, irei me ater à Síndrome Autística, foco de nossa pesquisa.
Allouch (2003) observa nos relatos obtidos com seus atendimentos clínicos um discurso
próprio da borda autística, mecanismo de defesa desses sujeitos. A falta de apoio das pulsões
sexuais no corpo produziria o desmantelamento sensorial desses indivíduos, os separando do
pleno funcionamento de sua sensorialidade fisiológica e a relação pulsional com essas funções,
tendo como consequência a não formação do Eu-corpo5, que seria a instância egóica mediadora
das pulsões parciais, em acordo com o eu lacaniano imaginário (ROUDINESCO, PLON, 1998,
p. 212). Ou seja, o que observamos é uma perturbação na constituição do Eu – segundo a leitura
do texto Introdução ao Narcisismo (1914-1916/2010).
Na teoria freudiana (FREUD, 1923-1925/2011, p. 24), a instância egóica, o Eu, caminha
pelo espaço da corporeidade, sendo ele mesmo a projeção de uma superfície. A separação
observada no capítulo 1.3.1 entre libido (interna) e violência da guerra (externa) tem sua divisão
espacial através dessa superfície projetada que é o corpo. Ou seja, há em Freud uma delimitação
clara entre fora e dentro em relação ao corpo.

5
É interessante ressaltar que Rosine Lefort utiliza este mesmo termo ao se tratar do Caso Roberto, uma vez que
este termo é advindo da teoria freudiana (Körper-Ich) em O Eu e o Id, que afirma o eu como “sobretudo corporal,
não apenas uma entidade superficial, mas ele mesmo a projeção de uma superfície” (FREUD, 1923-1925/2011, p.
24).
52

Lacan atualizará este tema, trazendo a noção de continuidade no corpo, uma estrutura
una que não relaciona externo e interno em sua formação (VÍCTORA, 2016). Através do
conceito de pulsão escópica (1964/1985) trazido em O Seminário. Livro 11: Os Quatros
Conceitos Fundamentais da Psicanálise, o autor aborda a questão de outros dois objetos
pulsionais além do seio, das fezes e do falo, sendo eles a voz e o olhar (as pulsões escópicas),
que se localizam como pulsões invocantes, não tendo correlação com a “divisão espacial”
propiciada por Freud entre interno e externo.
A relação que Allouch retrata entre o autismo e sua característica sintomatológica
envolta do desmantelamento sensorial nos remete ao que é proposto por Lacan em seu ensino
acerca da pulsão escópica: há no desmantelamento sensorial também a correlação entre
sensorialidade em sua materialidade corporal e as pulsões, como uma instância única6.
O que é observado nesses sujeitos dialoga com o retratado em Freud acerca das neuroses
traumáticas (1920/2010, p. 131-153), em que como tentativa de resolução do trauma os sujeitos
acometidos por neuroses traumáticas são acometidos por eventos de retorno do trauma, através
de métodos característicos da pulsão de morte: a compulsão à repetição. Este conceito
caminharia em conjunto aos métodos de estabilização do sujeito autista, como os movimentos
repetitivos, a ecolalia e o funcionamento da rotina como estabilizador da borda autística
(TEIXEIRA & HENSCHEL DE LIMA, 2021).
Há na borda autística uma tentativa então de mediação das excitações, criando barreira
de proteção ao Outro e seu discurso invasivo. Como forma de cuidar de suas necessidades, o
sujeito autista se prende à produção de rotinas e a criação de objetos autísticos em sua borda,
para que possam mediar a relação sujeito-Outro e criar possibilidade de existência desses
indivíduos em conjunto ao meio social.
É então, através das noções de Eu-corpo, como o eu imaginário em sua relação com as
funções corporais, e borda autística que podemos pensar em uma abordagem terapêutica a esses
sujeitos. A borda autística aqui apresentada tem a função de sustentação do indivíduo em seu
desmantelamento, propiciando uma estabilização de suas funções dentro de seu continente
produzido.
Além disso, o conceito da borda autística em sua relação com a não localização da
instância imaginária no nó-borromeano trabalharia em conjunto com a proposta clínica de
Laznik (2016), uma vez que é na observação deste eu imaginário não aparente que seu trabalho
se desloca. A partir disso, temos a borda autística como uma função estabilizadora do eu,

6
O tema da pulsão escópica nos traz novos horizontes à pesquisa, sendo parte do que irei pontuar como os
avanços possíveis do tema no desejo de uma continuação da pesquisa em programas de pós-graduação.
53

propiciando uma possibilidade de existência desses sujeitos em seu funcionamento não-


neurótico. Portanto, elucidar esta relação tem papel fundamental para a estruturação de um
projeto de manejo diferencial ao autismo em suas particularidades.
3.6.1 A Borda Autística como estabilizadora do Eu-corpo
Apontado por Maleval (2011), a rotina tem papel essencial no manejo do sujeito autista
e seu sofrimento; a roteirização do ambiente e das suas relações são de grande importância a
esses sujeitos, sendo este método a principal maneira de sustentar o contato com o mundo. A
borda autística, mecanismo de defesa no autismo, trabalharia como uma concha (ALLOUCH,
2003), separando o sujeito do mundo, dando a ele espaço seguro para existir e o protegendo.
A pandemia de COVID-19 apresenta um desafio a esses sujeitos, uma vez que foi ela a
causa de grandes mudanças nas formas do convívio social, através do que observamos
anteriormente no capítulo 1 pelo isolamento social e o adoecimento. Porém, podemos pensar
esta possibilidade de invasão em todos os âmbitos sociais possíveis além de uma situação de
emergência humanitária, com exemplos “menores” como os gritos das crianças da instituição
que Roberto tinha como residência, que eram suficientes para tirá-lo de seu conforto.
A borda autística seria formada, como apontado por Maleval (2015, Tabela 5) por três
componentes, sendo eles: o objeto autístico, o duplo e a ilha de interesse. Como observado em
Roberto, é com o auxílio da produção de continentes que podemos observar o desenvolvimento
terapêutico de Rosine, em que, a partir do manejo dos objetos de Roberto (sua urina, fezes,
mamadeira, leite, areia e penico principalmente), produziu-se uma unificação do corpo.
Essa unificação do Eu-corpo, mesmo que fragilizada por se tratar de uma função
imaginária secundária, nos aponta aquilo que é a base do trabalho com esses sujeitos na tentativa
de auxiliá-los a produzir ferramentas para lidar com o que os invade. A borda autística
trabalharia neste sentido como uma produção de continente ao autista, o separando daquilo que
é nocivo à sua estruturação “movediça”, o que também demanda cuidados particulares à essa
estrutura, como apontado por Laznik (2016) com seu grupo de atendimento à essas crianças.
Pensando na especificidade do cuidado com os indivíduos autistas, Laznik (2016)
propõe uma clínica diferencial ao autismo, desenvolvendo o setting analítico em torno da
sustentação destes sujeitos. Apesar de não tratar da conceituação do Eu-corpo como Allouch
(2003) ou da borda autística (MALEVAL, 2011; 2015), Laznik aponta para um trabalho
semelhante ao que pudemos observar com Roberto (1953-1954/2009) e com a clínica de
Allouch, em que estes objetos da borda autística e suas características são mantidas no projeto
terapêutico, de forma a produzir um caminho propício e seguro para o indivíduo autista. Os
casos clínicos apresentados por Laznik em Rumo à Fala (2011) e o trabalho realizado pela
54

autora na Clínica Alfred Binet (2016) nos apontam para uma tentativa de trabalhar em conjunto
à borda, a utilizando como parte do tratamento, tendo a mesma como primeiro contato ao
infante e, com ela, partindo para o trabalho de análise.
Com isto, a apresentação da proposta clínica de Laznik (2011; 2016) é de grande
importância ao desenvolvimento do tema. Através da relação teórica entre estes autores
podemos observar uma concordância em torno do tratamento e manejo destes sujeitos: utilizar
o funcionamento destes indivíduos como parte do trabalho analítico. Para isso, Laznik (2011)
nos propõe uma clínica em torno de uma aposta no sujeito por-vir, apostando na possibilidade
de dar espaço à formação egóica através de uma sustentação imaginária pelo analista.
3.7 A Clínica Autística em Laznik
É a partir de uma clínica diferencial do autismo, respeitando sua estruturação própria
fora das psicoses, que a clínica é formada. Técnicas como o psicodrama, o uso de aspectos
corporais, além das expressões gestuais e sonoras, são partes integrantes do tratamento.
Sabendo da não ocorrência de projeção, dos pensamentos concretos e voltados ao “palpável”
(aquilo é claro, explícito), os pesquisadores agem respeitando essas diferenças, produzindo
intervenções mais ativas, demonstrativas, fornecendo ao sujeito representações ao mesmo
tempo que respeitam o modo de funcionamento deles, produzindo a possibilidade de um diálogo
analista-paciente. A clínica com essas crianças segue um rumo, primeiramente, corporal, dando
contorno às expressões sensoriais e, assim, seguindo para um primeiro trabalho de simbolização
ou representação daquilo que não é o “palpável”, que não está diretamente percebido ou
presente.
Com a base da formação estrutural desses sujeitos (como destacado pelo capítulo 2.3.2),
Laznik propõe uma clínica autística em que o tratamento se dá por uma base multidisciplinar,
tendo em sua metodologia:
1. psicoterapias de várias sessões por semana;
2. contato com outras disciplinas de cuidado como fonoaudiologia, psicopedagogia,
psicomotricidade, sensoriomotricidade, psicodramas, formação de grupos com as crianças e etc.
3. entrevistas individuais com os pais e reuniões em grupos com os mesmos.
4. acolhimento terapêutico por vários dias em meio período.
5. unidades de cuidados intensivos diversificados;
6. trabalho em conjunto com escolas e serviços hospitalares.
Como apresentado por Laznik (2016) em seu estudo, esses sujeitos acabam por
necessitar de uma certa “legislativização” do mundo, ou seja, uma produção de regras explícitas
e claras por não haver a possibilidade de dedução delas mesmas por meio da relação imaginária
55

com o outro (Laznik, 2016, p. 52), sendo esta via algo a ser produzido pelo trabalho analítico7.
Aqui nós tratamos do que é o funcionamento da borda, em que esta legislativização se dá na
rotina e na utilização da borda autística para sua manutenção e proteção do sujeito.
A evolução dos casos (Figuras 6 e 7) foi apresentada pelos pesquisadores ao final do
ano de 2012, apresentando os resultados dessa separação teórica e estrutural sobre o
funcionamento da clínica. Em relação aos resultados, os pesquisadores obtiveram 55,8% de
boas evoluções de quadros clínicos no total (60,4% referente às crianças autistas e 52,9% para
as crianças psicóticas), com apenas 10% dos casos não evoluindo bem, sendo motivo de
encorajamento para que os analistas que trabalharam na pesquisa continuassem na busca de
trilhar um caminho possível para o cuidado diferencial desses sujeitos.

Figura 6. Evolução das Crianças Diagnosticadas Autistas no Centro Alfred Binet.

Fonte: LAZNIK, 2016, p. 75.

7
E nisso, o cuidado mais presente e a observação têm papel fundamental neste território clínico. Enquanto isso, o
cuidado em psicose, como dito por ela, teria menos intervenções, mas sempre funcionamento com uma apreensão
integrativa, semelhante ao que vemos no Brasil através da Rede de Atenção Psicossocial e seus representantes
(CAPS e CAPSi, principalmente).
56

Figura 7. Evolução das Crianças Diagnosticadas Psicóticas (TID não autísticos).

Fonte: LAZNIK, 2016, p. 76.

Este trabalho de Laznik foi possível através do que ela cerceia em seu texto Rumo à
Fala (2011) acerca do avanço do sujeito do enunciado para o sujeito do desejo, o que nos remete
ao questionamento inicial deste trabalho acerca da relação de sujeito na Síndrome Autística.
Porém, antes de passarmos ao tema do sujeito, colocamos aqui a importância da prática
clínica em torno da contextualização teórica propiciada pelos autores. O afastamento entre
bibliografia e clínica são gritantes frente a produção de uma hipótese em torno do autismo e sua
estruturação frente a psicanálise. Pensando nisto, após encontro em supervisão de estágio na
universidade, decidimos inserir neste trabalho um estudo de caso com uma paciente que poderia
ser o início de um trabalho clínico em torno da comprovação de nossa bibliografia e hipóteses
e, além disso, da tentativa de produção de uma clínica autística atualizada no Brasil.
57

CAPÍTULO 4. UM ESTUDO DE CASO ATRAVÉS DOS ÍNDICES CLÍNICOS DE


LAZNIK

4.1. Considerações Iniciais


Inicialmente, este trabalho não contava com a produção de um estudo de caso em torno
do tema ou aplicação dos achados na bibliografia à clínica escola, se baseando apenas em uma
revisão bibliográfica. Porém, com a apresentação do caso em supervisão no âmbito da
universidade, apontamos grande importância na apresentação deste caso no trabalho, uma vez
que seus fenômenos clínicos se coadunam com nossa base de estudos e hipótese sustentada de
uma falha imaginária no autismo.
Sendo assim, este capítulo tem como objetivo utilizar os achados de Laznik em sua
própria clínica acerca da estrutura autística para demarcar em um caso modelo, encontrado pelo
estudante no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da universidade, os índices clínicos
diagnósticos relevantes ao autismo. De forma a esclarecer a estrutura teórica do trabalho, a
prática clínica tem grande importância para posicionar a bibliografia em um cenário de cuidado
em saúde mental prático, tendo maior importância quando se tratando de um tema com base
teórica tão específica à nossa hipótese.
Durante o processo de escrita desta monografia, tive contato com a clínica escola de
forma a manter meu período de estágio clínico no curso de psicologia com vertente
psicanalítica. Através deste contato pude iniciar um processo terapêutico com a paciente que
chamaremos de Giovanna e sua mãe Camila (nomes fictícios de forma a manter o sigilo clínico),
que será usado como base deste capítulo para argumentação em prol de nossa hipótese do não-
enodamento imaginário no autismo.
4.2. Apresentação do Caso Giovanna
Giovanna chega ao SPA da universidade através do serviço de plantão introduzido no
ano de 2021 para acolhimento de pacientes e, posteriormente, oficialização destes indivíduos
no quadro terapêutico dos estagiários. Ela foi introduzida aos atendimentos com demandas em
torno de seu comportamento, com diagnóstico médico de TDAH (Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade8) e hipótese diagnóstica de TOD (Transtorno Opositivo-Desafiador).
O principal desafio, segundo sua mãe Camila, é seu comportamento em casa. A
convivência entre elas é rodeada de gritos e brigas, tendo grandes desavenças em torno das
ordens maternas; um episódio marcante foi com a lavagem de seu cabelo depois de entrar na

8
DSM-V: 314.01 (F90.9).
58

piscina, em que Giovanna se recusava a lavar dizendo que seu cabelo não estava sujo pelo cloro,
que resultou em gritos de sua mãe para que entrasse no banho.
Antes de entrar em contato com o atendimento no SPA, Giovanna passou por situações
delicadas envolvendo o divórcio dos pais que, com a separação, sua mãe passa a colocar em
pauta o cuidado psicológico de sua filha após a ida a um neurologista que concede seu
diagnóstico de TDAH. Além disso, sua relação com seu pai tem certa conturbação que cabe ser
pautada no corpo deste texto.
A forma como as consultas se dava foi produtora de grande desafio ao estagiário: a mãe
era a única a falar durante as sessões. Giovanna se mantinha em silêncio pela maior parte do
tempo, falando às vezes palavras soltas ou respondendo perguntas de sua mãe como “Por que
você não me obedece?”, respondendo todas elas com “Não sei”, sem nenhum desenvolvimento
de resposta conexo. As poucas palavras produzidas eram feitas com grande desconexão entre
ela e sua língua, com esta sempre vazando enquanto verbalizava, como se fosse cair da boca.
A separação de nossos encontros e seus acontecimentos tem papel fundamental para a
explicitação do marco produzido na clínica, que colocou à prova seu enodamento borromeano
através da atividade lúdica (desenhos e montagem de sua casa). Para isso, pontuaremos este
capítulo entre as 5 sessões em conjunto com a paciente, em que na quinta a atividade lúdica foi
introduzida e permanece sendo até o presente momento.
De forma a dividir devidamente as relações de Giovanna com sua rede multidisciplinar
de cuidado e apoio, separaremos em subcapítulos os seguintes tópicos:
1. Escola;
2. Neurologistas;
3. Família;
4. Mãe.
Através desta divisão pretendemos elaborar a relação do caso e suas particularidades
com a pesquisa de Laznik em torno da estrutura autística. Não iremos tratar Giovanna como um
caso de autismo, mas que perpassa com a estruturação apresentada por Laznik e que deva ser
colocado dentro do âmbito de uma hipótese psicodiagnóstica em autismo.
4.2.1 Escola
Giovanna tem 9 anos e está no 4º ano do Ensino Fundamental, com notas razoáveis e
comportamento social no âmbito escolar. Segundo a mãe, as professoras chamam Giovanna de
“manhosa”, necessitada de atenção (e demanda isso das colegas de sala). Além disso, as
pedagogas pontuam para a mãe suas desconfianças da possibilidade de TOD, uma vez que o
59

comportamento opositor-desafiador é direcionado apenas para ela, não aparecendo em nenhum


outro ambiente de convivência da menina (inclusive com outros familiares).
Além disso, Giovanna apresenta sociabilidade com seus colegas, tendo poucos amigos,
mas estes poucos aparentam dar suporte para sua vivência escolar – além da mãe de uma dessas
colegas que se oferece para dar aulas de matemática para que ela se preparasse para a prova que
viria. O contato dela com a escola é pouco aparente em seu discurso, tendo maiores relações
discursivas com seu âmbito familiar, se atendo a 3 sujeitos principalmente: sua mãe, sua tia e
sua vó de consideração.
O que obtivemos na clínica em relação à escola é finalizado por aqui, surgindo
pouquíssima demanda de dizer sobre esse espaço, com todas essas informações sendo passadas
nos primeiros dois encontros, e desde então nada mais sobre a escola foi dito. Dessa forma,
passarei a dizer sobre seu contato com os dois neurologistas que a atenderam em torno da
demanda diagnóstica de sua mãe.
4.2.2 Neurologistas
Em nosso primeiro encontro Giovanna já havia entrado em contato com um neurologista
da região, que após ouvir o relato de Camila em torno de sua atenção para os estudos, tarefas
de casa e dificuldade de cumprir ordens a concede um diagnóstico de TDAH. Além disso, uma
tia psicóloga sugere revisitar outro médico para checagem da hipótese de um diagnóstico de
TOD, uma vez que sua convivência com a criança era grande e observava o comportamento
desafiador na relação entre Giovanna e sua mãe.
Levando em consideração a necessidade observada pela tia e por Camila, que havia
colocado durante os atendimentos que tinha dúvidas em relação ao diagnóstico, sugeri que ela
buscasse a opinião de um psiquiatra, de forma a termos uma segunda opinião sobre o caso.
Após o pedido, a mãe afirma que encontrou um psiquiatra e que levaria sua filha para
atendimento em algumas semanas, mas que, ao procurar o nome dele na internet, observei que
sua especialização era em neurologia, não psiquiatria.
Na sessão após o encontro com o neurologista (3ª sessão), a mãe relata que o médico
colocou em xeque o diagnóstico de TDAH e a hipótese de TOD, discordando da hipótese de
TOD e afirmando que talvez devessem ter mais encontros para que se confirmasse o
diagnóstico. A presença dos neurologistas desaparece aí, partindo para sessões em torno do
funcionamento familiar e sua lógica, tendo grande grau de importância para a mãe, encontrando
ali sua demanda em torno da filha.
60

4.2.3 Família
O contexto familiar de Giovanna é disposto com a problemática principal em torno de
seu pai, que tem função de algoz na família. Em todos os anos de casamento entre ele e Camila,
o pai constantemente a traía (chegando a ter 4 filhos de outros relacionamentos), agrediu tanto
Giovanna quanto seu filho mais velho com Camila durante sua infância, além de agredir tanto
verbal quanto fisicamente sua ex-esposa.
Camila mantém o relacionamento com este homem por 30 anos, mesmo sabendo de
suas traições e vivendo a violência diariamente (principalmente quando tentava dar um fim ao
relacionamento), e durante a 4ª sessão afirma reconhecer que estava sendo feita de refém pelo
marido em casa e pela sua fé, dizendo que “Deus muda todos, mas primeiro precisamos aceitar,
e ele nunca aceitou”.
Camila relata um momento em que o pai, antes do divórcio, briga com Giovanna por
“algum motivo qualquer” e, durante a briga, afirma que Giovanna a olhou de “um jeito
desafiador” e dá um tapa em seu rosto. Outros momentos de violência foram destacados, mas
que não cabem à explicitação deste texto.
É importante notar sobre este pai sua função em casa em relação ao que é trazido por
Lacan em O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1966/1998,
537-590) através da Fórmula da Metáfora (Figura X), em que o autor aponta a função do
imaginário na função formatória do sujeito, o qual afirma que é no imaginária onde a
significação do falo será inscrita por meio da metáfora paterna.

FIGURA 8. Fórmula da Metáfora.

Fonte: LACAN, 1966/1998, p. 563.

Parte deste momento de inscrição no sujeito o Nome-do-Pai e sua relação com o Outro
e a função fálica depende da elisão do S (representado na fórmula pelo Desejo da Mãe). Com
isso podemos capturar o que tange o nosso desenvolvimento em torno do Caso Giovanna: o
Nome-do-Pai (NP) trabalha pela via da remoção do Desejo da Mãe (DM) em sua presença
invocante e nociva à criança, permitindo que exista uma separação do bebê de sua mãe e
inserção do sujeito na lógica neurótica pela via da inscrição do falo na função imaginária.
O questionamento que surgiu em supervisão sobre o caso foi se o pai de Giovanna,
violento com ela e sua mãe e nocivo frente à relação Pai-Mãe-Bebê, poderia ter relação com o
61

que foi possível observar na clínica acerca de sua sintomatologia. Ainda, podemos observar
essa hipótese através da relação entre Giovanna e sua mãe, que vejo importância ter seu espaço
específico posteriormente de forma a retomarmos esse ponto de hipótese em conjunto com o
conhecimento do contexto relacionado à Camila.
Além de seu ex-marido, Camila aponta outras 3 pessoas de importância para Giovanna:
a tia, irmão mais velho e a vó de consideração. Essas pessoas aparecem pouquíssimo nas
sessões, tendo maior aparição quando sua vó é colocada como ponto de comparação ao
comportamento de Giovanna frente à mãe, como por exemplo: “Giovanna só age desse jeito
comigo, mas quando está na casa da vó é calma e não rebate nada que ela diz”.
O irmão mais velho também aparece pouco, tendo papel importante na separação dos
pais ao agredir seu pai após descobrir a traição que foi estopim do término. Enquanto isso, a tia
é acompanhada pela palavra “legal” no discurso de Giovanna, sendo alguém de confiança à
menina e moradora do andar de baixo da casa. Dito isto, podemos avançar para a relação de
Giovanna com sua mãe e seus desdobramentos em torno da clínica com ela.
4.2.4 Mãe
A mãe tem papel essencial nesta articulação do caso, uma vez que é através dela que
nosso trabalho se inicia. Giovanna chega às consultas sem dizer muito, apenas ouvindo maior
parte de minha conversa com Camila, porém sem parecer de fato escutar. Grande parte das
sessões foram passadas com ela olhando fixamente para a parede ou mastigando/chupando
qualquer objeto que tivesse à sua mão (como sua garrafa, seu colar ou algo que estivesse na
bolsa de sua mãe que Camila permitisse que ela segurasse).
A mãe frequenta um psicólogo que teve papel importante em formação de sentido sobre
alguns pontos em relação à sua filha, mas que aparentemente não produzia resultados, uma vez
que os problemas se mantinham e Camila dizia não saber o que fazer quanto o que ela chama
de ‘gritos’. ‘Gritos’ é a forma como ela denomina as brigas com Giovanna, que iniciam de
maneira constante: ordem da mãe, desobediência da filha, grito de Camila, grito de Giovanna.
Esse psicólogo afirma para ela que Camila já aguentou muitos gritos em silêncio e que
agora, com o divórcio, está liberando os próprios gritos, o que Camila concorda. Mas em sessão,
ao ser questionada sobre a assertividade desses gritos no cuidado com Giovanna a mesma
afirma “não ajuda em nada”. A sessão é finalizada com a pontuação da necessidade de buscar
essa forma de extravasar em outros espaços que não a maternidade, sabendo que “não ajuda em
nada” no cuidado materno e nem extravasa da maneira como ela gostaria.
A mãe tem forte presença no momento das sessões, sendo a única a dizer e cortando
constantemente qualquer tentativa de comunicação com Giovanna, respondendo perguntas por
62

ela, explicando o que ela quis dizer com alguma palavra desconexa e etc. A mãe aparece na
sessão com a função de dar sentido ao que a filha fala, mas acaba por dizer sobre si mesma e
posicionar a demanda em torno de seu próprio sofrimento com a filha.
Em dado momento de nosso primeiro encontro a mãe afirma que sabe que não pode
dizer tal frase, mas que “Giovanna é parecida com o pai dela”, enquanto começa a chorar.
Giovanna fica visivelmente desconfortável com a frase e pede para a mãe parar, enquanto
Camila permanece repetindo e chorando. Tento manejar a frase de forma a produzir uma
separação entre o pai e Giovanna, o que parece surtir efeito e a comparação some das sessões.
Separar a mãe da filha é de grande dificuldade, tendo momentos em que preciso cortar
as tentativas da mãe de simbolizar o pouco discurso produzido pela filha para que a menina
pudesse falar. Essas ações tiveram péssimos resultados, uma vez que Giovanna, mesmo com
espaço para dizer, não diz. As palavras parecem ser vazias de sentido ou com muito pouco,
muitas vezes até sustentando as ações da mãe de completar suas falas. Por vezes Giovanna
olhava para a mãe quando questionada sobre algo de forma que Camila pudesse responder por
ela e, após a resposta, Giovanna voltava seus olhos para a parede que estivera olhando desde o
início.
Durante a 3ª sessão Camila aponta uma observação sobre o desenvolvimento
educacional da Giovanna, dizendo que iria juntar um dinheiro com sua irmã para que pagassem
um curso de melhora de raciocínio para Giovanna. A criança diz que gostou muito de ter ido e
que quer continuar, mas com maior atenção aos brinquedos do curso.
Ainda, a mãe aponta durante a sessão a seguinte problemática: enquanto casada,
Giovanna sempre pedia para dormir com a mãe dizendo ter medo do escuro, e o pai quase
sempre a barrava, deixando a luz do corredor ligada para que ela conseguisse dormir. Porém,
com o fim do casamento, Giovanna passa a dormir apenas com sua mãe, e ao questionar se não
poderia Camila ligar a luz do corredor para que ela pudesse dormir em um quarto separado, ela
apenas diz que não consegue por Giovanna já ir direto para o quarto.
Além disso, Camila aponta que sabe que não deveria deixar Giovanna dormir consigo
(informação dada por seu psicólogo e por sua irmã), mas que não consegue tirá-la do quarto.
Ao ser questionada o motivo ela não consegue responder e muda de assunto.
Na 4ª sessão Camila aponta um problema em torno do cuidado com Giovanna
relacionado ao seu trabalho. Camila é uma mãe solteira que trabalha fora de casa, tendo todas
as adversidades de um cuidado parental solo, sobrando pouco tempo para o lazer,
principalmente quando em torno de sua filha. Por advento disto, Giovanna demanda bastante
atenção de sua mãe que acaba por ser não correspondida. Como tentativa de produzir algum
63

contato minimamente prazeroso entre elas (diferente dos ‘gritos’), tento incentivar a produção
de um momento para as duas, com o que a mãe concorda e diz que tentará fazer.
O que surge de questionamento em torno desta relação entre Giovanna e Camila e o pai
violento é se seria possível, concluir que o pai não cumpre a inscrição do NP como demonstrada
pela Fórmula Metafórica, tendo sua operatividade voltada à Camila fora de sua função no
matema, enquanto mulher, e à Giovanna diretamente, não possibilitando assim a formalização
do recalque9.
Ao fim da sessão a mãe me questiona sobre a sala lúdica, perguntando o que era, e ao
apresentar a sala para ambas Giovanna parece se encantar com os brinquedos. Neste momento
vejo oportunidade de tentar uma separação de ambas, questionando se Giovanna gostaria que
nossa próxima sessão fosse feita na sala, o que ela responde com a cabeça que sim.
Com isto, finalizo a série de apresentação do paciente com suas relações para iniciar a
apresentação das descobertas em torno da sessão de número 5 e, a partir disso o
desenvolvimento em torno de nossa hipótese da falha imaginária.
4.3 A 5ª Sessão
Com o que foi produzido até o momento temos um panorama geral de como o caso
aparece ao SPA e ao tratamento, tendo como carga uma série de complicações em torno da
parentalidade. A partir da descoberta da sala lúdica iniciamos um trabalho na próxima sessão
em torno das atividades projetivas, em que teve como princípio uma tentativa de convocar
alguma significação próprio sobre seus pais, família, escola ou qualquer conteúdo de fato
autêntico, ou seja, sem intervenção do discurso materno.
Ao entrarmos inicio uma tentativa de brincadeira com Giovanna, a convocando a
desenhar as figuras típicas de um teste HTP (Casa, Árvore, Pessoa) – porém, sem o intuito de
aplicação de um teste, utilizando-os apenas como base para um diálogo10 sobre as figuras – e
uma quarta imagem: como ela se sente quando sua mãe grita com ela, que Giovanna responde
dizendo não querer fazer. Apresento a seguir os desenhos produzidos por ela nesta conversa e
as nomeações feitas por Giovanna para essas figuras.

9
Esta hipótese faz parte de nosso Horizonte de Pesquisa, sendo alvo de possíveis futuros desenvolvimento em
um programa de pós-graduação;
10
Durante a atividade do desenho, temos como nota um comportamento de Giovanna frequente: sua fala era feita
sem pausas para respiração. Enquanto o ar era inspirado, a menina permanecia verbalizando, sem separar um
momento para troca de ar, porém, era uma atividade feita sem pressa (que levaria a supor uma pressa pra falar),
mas feita calmamente e com naturalidade – suponho assim uma falta de costume com a atividade discursiva, que
valeria um questionamento posterior.
64

Figura 9. “Casa”.

Figura 10. “Árvore”.

Figura 11. “Tia Carol”.


65

Cada um destes desenhos foi produzido ao decorrer da sessão, e utilizado como


mecanismo projetivo na tentativa de colocar a função imaginária em jogo. Porém, o que ocorreu
foi uma inadequação da criança com a atividade, afirmando achar ao mesmo tempo chato e não
achar chato desenhar, sem produção imaginária sobre as figuras.
Acerca de cada um deles houve pouquíssima produção contextual, com ela
denominando as figuras da mesma forma como eu as havia apresentado. Além disso, todas as
características dos desenhos são inconstantes, sem uma narrativa em torno delas. De forma a
esclarecer essa atividade propus uma descrição rápida sobre cada um deles.
1. A Casa (Figura 9): Giovanna começa o desenho sem nada específico, parecendo meio
perdida, e então introduzo o meu questionamento de que casa era essa sendo desenhada, o qual
ela responde “não sei”. Ao perguntar se era sua casa ela responde positivamente e passa a ganhar
certo rumo no desenho.
Ao colorir ela inicia com a cor marrom, dizendo que a casa ainda estava em reforma,
faltando pintar as paredes, porém, ao ser questionada se o marrom era pelos tijolos da casa ainda
aparentes ela nega e diz que a parede é na verdade amarela. A partir disso ela seleciona o lápis
de cor amarelo e passa a pintar a casa com essa cor. Essa pintura foi feita após a pintura da
árvore, em que ela retorna ao desenho da casa para pintá-la;
2. A Árvore (Figura 10): Giovanna inicia o desenho da árvore da mesma forma que o
da casa, pelo céu (o qual ela desenha exatamente da mesma forma e na mesma ordem em
ambos). Ao iniciar a árvore a pergunto que tipo de árvore seria, o qual ela responde dizendo
não gostar de árvores, falando que são feias. O motivo dado por ela seria “porque ela tem folhas
e não tem maçãs”, o que não condiz com o desenho dela o qual ela desenha maçãs, e ao ser
confrontada com isso ela responde com “é, mas acho feio”. Passamos assim ao desenho da
pessoa, logo após ela finalizar a pintura da casa;
3. Pessoa (Figura 11): Giovanna me questiona sobre o que é desenhar uma pessoa neste
momento, em que eu tento explicar ser o desenho de uma pessoa qualquer que ela queira, tendo
que me esforçar para destrinchar algo que para mim é extremamente intuitivo. Após a
explicação ela pensa por alguns segundos e inicia o desenho de uma figura feminina, afirmando
ser sua tia Carol (nome fictício).
Pergunto a ela sobre essa tia, sobre como ela é com Giovanna e como funciona a relação
delas. Com a pergunta Giovanna permanece olhando para cima e pensando, dizendo ao final
que ela é legal porque prometeu dar um Tablet à menina.
Com o fim do momento de desenhar, Giovanna olha para o lado (em direção a uma casa
de brinquedos) e pergunta o que é, o qual respondo e pergunto se ela gostaria de brincar com
66

ela. Após dizer que sim ela rapidamente levanta e vai em direção à casa, perguntando para que
servia o brinquedo, o qual explico ser para brincar de montar uma casa, e assim ela começa a
organizar os quartos.
Passando os brinquedos para um lado e para o outro sem muito norteamento pergunto
que casa ela estava montando, com a resposta genérica “não sei”. Com isso pergunto se é a casa
dela, e com essa pergunta inicia-se uma organização completamente nova e articulada de sua
casa, organizando detalhadamente cada móvel e cômodo.
Durante a organização percebo que estava em falta seu quarto, e ao questionar Giovanna
sobre isso ela responde que não era necessário fazê-lo “porque eu durmo com minha mãe”, e
posiciona então duas bonecas em cima da cama, representando sua mãe e ela. Ao passarmos
para a cozinha questiono Giovanna sobre qual cômodo é mais frequentado por ela, o que ela
responde dizendo que geralmente a cozinha “porque minha mãe não gosta que eu deixe ela
sozinha”, denotando certa ligação nunca quebrada entre ela e sua mãe.
Produzindo os cômodos os móveis nunca eram os “certos”, sendo todos os brinquedos
envoltos de frases como “não é assim na minha casa” e sustentados pela minha fala: “mas
podemos fingir que é”, e sua concordância. O mesmo acontecia com os bonecos, em que todos
eram trazidos para a casinha pela fala “minha mãe não é assim”, “minha tia não é assim”, e
ainda sustentados pela minha abertura à possibilidade de fingir.
Durante a sessão a criança diz que não houveram ‘gritos’ durante a semana, o que foi
confirmado pela mãe ao fim da sessão quando a convido para entrar. Essa semana sem gritos
foi associada a um momento que a mãe permite de Giovanna pintasse suas unhas, em que
finalizo a sessão retomando a importância do momento de lazer em conjunto.
4.4 Índices Clínicos e a Função do Analista na Clínica Autística
A partir da explicação do processo terapêutico em sua totalidade, incluindo informações
importantes para o desenvolvimento de nossas sessões, podemos iniciar a pontuação dos pontos
essenciais na 5ª sessão que coadunam com a hipótese de Laznik e, além disso, fazem parte de
nossa hipótese psicodiagnóstica de autismo desta paciente.
Frente ao apontado em sua relação familiar (Pai-Mãe-Giovanna) notamos o que
podemos apontar como uma baixa operatividade do NP frente o DM, impedindo que exista uma
separação da mãe e suas funções. Porém, diferente da psicose, observo que essa conexão mãe
e filha é sustentada pela produção feita por Camila, similar à função do duplo no autismo,
67

mediando sua comunicação com o mundo pela criança11, sustentando a mesma em algo similar
à posição fálica do primeiro tempo do Complexo de Édipo:
[...] o sujeito se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo de sua
mãe. Essa é a etapa fálica primitiva, aquela em que a metáfora paterna age por si, uma
vez que a primazia do falo já está instaurada no mundo pela existência do símbolo do
discurso e da lei. Mas a criança, por sua vez, só pesca o resultado. Para agradar à mãe,
se vocês me permitem andar depressa e empregar palavras figuradas, é necessário e
suficiente ser o falo (LACAN, 1957-1958/1999, p. 198).

Ou seja, o que observamos é a hipótese de fixação de Giovanna neste primeiro momento, sendo
inativa em sua relação com o mundo por colocar uma extensão de si para a realização das tarefas
de comunicação: sua mãe; nunca passando a um segundo momento do édipo pela intervenção
do NP no DM através do plano imaginário (LACAN, 1957-1958/1999, p. 198-200), podendo
interagir com duas hipóteses observáveis: o NP com baixa operatividade, sem um pai capaz de
portar e introjetar esse significante, e sem uma função imaginária para portar esse significante,
pela falha no nó-borromeano12.
Outra hipótese possível caminha em conjunto ao “não gostar” que Giovanna apresenta
sobre seu pai, sendo o divórcio visto com grande felicidade e alívio. Esta hipótese seria de uma
negação de Giovanna frente a função paterna que a separaria de sua mãe, se sustentando como
falo e objeto de desejo da mãe enquanto Camila se mantém como também negadora desta
operatividade (possivelmente pela violência exercida pelo ex-marido), o que Lacan apontaria
em seu tempo como produtor de uma série de diferentes distúrbios e perturbações, “dentre elas
as identificações que qualificamos de perversas” (LACAN, 1957-1958/1999, p. 198). Ou seja,
o que observamos é uma mãe que não conseguiria ter realizado a alienação da criança e se
mantém como portadora de sua filha como objeto de desejo.
Com os desenhos produzidos pela paciente o que notamos foi de fato uma inanição do
imaginário, sem capacidade de produção imaginária em torno deles, se atendo apenas aos
significantes dados por mim. O mesmo ocorre com a organização da casa, porém de forma mais
gritante.
Ao observar a forma que a organização foi feita, podemos notar que é nela que podemos
verificar o funcionamento autístico (Tabela 4) denotado por Laznik. Podemos pontuar essa
concordância através da seguinte relação:

11
Esta dependência da significação e disponibilização discursiva do outro também acontece durante nossa 5ª
sessão, porém de maneira que possibilita a existência de seu discurso, sem inibir sua existência e viés desejante,
ou seja, de forma terapêutica com o processo de análise.
12
E podemos ainda avançar essa hipótese para uma relação da baixa operatividade do NP como causa inicial do
não enodamento imaginário, interligando ambas as hipóteses em uma única função, sendo alvo possível de
pesquisas posteriores através do avanço da pesquisa em iniciação científica e programas de pós-graduação.
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1. Pensamento concreto: Produção de desenhos em torno do nome dado por mim, sem
produção fantasiosa mesmo quando convocada a fazê-la;
2. Pobreza ou ausência de operações visando a construção de existência de objetos
ausentes e manipulação de objetos sem conferir valor simbólico: observamos este ponto na
relação dela com os móveis de brinquedo e bonecos da casinha, em que ela não consegue se
adaptar imaginariamente ao que é apresentado. O boneco não é igual à pessoa, o móvel não é
dessa forma, não tem o móvel que ela precisa e etc.
O que observamos na paciente é uma falta clara da articulação imaginária com o mundo,
com pouca ou nenhuma capacidade projetiva e deslocamento da linha imaginária. Apesar de
uma hipótese diagnóstica, levando em conta os índices clínicos de funcionamento apontados
por Laznik temos em nossas mãos um possível exemplo de um sujeito autista em sua relação
com o analista.
Ao me posicionar frente as suas produções, por exemplo sobre a cor da casa no desenho,
a possibilidade de fingirmos que o boneco é alguém apesar da diferença na aparência e a
organização da casinha de brinquedos pude colocar em prática o que é apresentado por Laznik:
o analista como função imaginária artificial ao infante. O resultado disto foi de grande
importância para o desenvolvimento de nossa sessão, com a passagem de uma paciente que
quase nunca falava para o início de uma capacidade comunicativa, podendo dizer através de
minhas funções metafóricas.
Este estudo de caso tem grande importância no processo de pesquisa em torno da
monografia, uma vez que é através dele que podemos ter algum contato com a prática clínica
proposta por Laznik. Além disso, é com o atendimento destes sujeitos que podemos observar
um horizonte de produção clínica e de pesquisa em tornos dos sujeitos autistas, sendo um
trabalho pioneiro no Brasil quando colocado na relação entre o “erro” no nó-borromeano e a
função do analista frente à esta estrutura que temos como aposta.
A partir deste estudo de caso, produzimos maior base para nosso questionamento em
torno da pergunta inicial da pesquisa. Enquanto o que observamos em Giovanna é a necessidade
de um outro para realização de qualquer tentativa de discurso, fizemos a pergunta inicial frente
ao caso: há aqui um sujeito a nos endereçarmos e a ser utilizado como mediador de um discurso
em torno de seu desejo?
Com isso, passamos ao tema de nossa pesquisa que dá forma ao trabalho, uma abertura
para o questionamento da presença do sujeito nessa clínica e seus desdobramentos.
69

CAPÍTULO 5. “HÁ SUJEITO NO AUTISMO?”

5.1 Considerações Iniciais


Este capítulo tem como objetivo apresentar o questionamento produzido com uma
observação feita pelo aluno em torno do que foi visto ao decorrer da apresentação de sua
pesquisa de Iniciação Científica (TEIXEIRA & HENSCHEL DE LIMA, 2022) na 15ª Mostra
Regional de Práticas em Psicologia no ano de 2022, em que a sala de apresentação tinha como
tema geral a prática em psicologia com o autismo. A importância deste questionamento se situa
pela conexão entre as formas de cuidado com esses sujeitos no Brasil e a aposta da clínica de
Laznik (2011; 2016), demarcando o que é também a aposta ética deste trabalho de um cuidado
particular a esses sujeitos em psicanálise.
A prática de cuidado do autismo pelo conhecimento psicológico parece ter passado ao
olhar comportamental, sendo este alvo de considerações e extensas críticas pelo campo
psicanalítico. Essas críticas decorrem de uma tentativa de apontar o trabalho de observação
desses sujeitos apenas pelos seus comportamentos (traduzindo estes como funcionamentos
funcionais ou disfuncionais, e excluindo-os) como nocivo ao valor ético de sustentação de sua
subjetividade.
Apontado por Lacan em O Seminário. Livro 17: O Avesso da Psicanálise (1969-
1970/1992, p. 16) temos o que é a formulação do funcionamento sujeito quanto ao seu saber:
Certamente faz-se presente no seio da experiência analítica, que é uma experiência de
discurso, essa tendência de retorno ao inanimado. Freud chega até aí. Mas o que
constitui, diz ele, a subsistência dessa bolha [...] é que a vida só retoma aí pelos
mesmos caminhos de sempre [...]. Essa trilha, esse caminho, já o conhecemos, é o
saber ancestral (LACAN, 1970/1992, p.16).

É neste momento que o autor nos aponta aquilo que é a importância do discurso como
um saber sobre o sujeito, sua experiência com suas pulsões e seus endereçamentos. Ou seja, é
no fazer surgir o discurso que podemos pensar no cuidado com esses sujeitos, observando isso
que as linhas comportamentais apontam no comportamento como um caminho do discurso em
torno do gozo.
Afim de trazer esse espaço crítico da psicanálise, apontamos a demarcação do cuidado
em saúde pública apresentado no Brasil no ano de 2013, dentro da luta ‘psi’ contra a Resolução
SS – 83 e sua relação com a psicanálise contemporânea na ética da escuta do discurso.
70

5.2 A Resolução SS – 83 e o Cuidado ‘Psi’ em Autismo


Estaremos sempre buscando fazer com que fenômenos complexos como o autismo
sejam tratados como o que efetivamente são: fenômenos humanos, e não de cérebros
sem vida. Por isso mesmo, altamente delicados, sutis e refinados (LAURENT, 2019,
p.14).

Em 4 de setembro de 2012, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publica um


comunicado da Coordenadoria de Regiões de Saúde – Departamento Regional de Saúde da
Grande São Paulo, um Edital apresentando a Resolução SS - 83, de 7-8-2012, em que, de forma
geral, demanda das instituições de cuidado de pacientes diagnosticados com TEA o cuidado
desses sujeitos a partir de técnicas cognitivas-comportamentais, exigindo esse compromisso
dos responsáveis legais dessas instituições. A oposição por parte de profissionais da área ‘psi’
de forma geral (psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, psicopedagogos, etc) deu espaço para a
derrubada desse edital, que fora reescrito e lançado em julho de 2013, através da Resolução SS-
63 (SÃO PAULO, 2013), alterando a demanda técnica dos profissionais para uma “equipe
técnica multidisciplinar”.
A importância desta equipe multidisciplinar é destaca por Laznik em sua metodologia
de cuidado com o sujeito autista, o que foi parte essencial para o quadro de melhora observado
neles. A crítica trazida pelos profissionais quanto à exclusividade do tratamento
comportamental traz consigo um modelo de interpretação do sujeito no mundo: ao colocarmos
o cuidado desses indivíduos numa pauta funcionalista, ou seja, que produza pessoas que
funcionem em sociedade – através da extinção de comportamentos considerados negativos –,
afirmando assim sua não singularidade (LIMA, 2014). Observar o humano através do
comportamento e sua função social é retirar da pauta sua individualidade e demandas subjetivas,
ou seja, é retirar do cuidado o sujeito que ali está.
Trazido por Laurent em entrevista à revista Haaretz, no ano de 2012, o autor é
questionado acerca do tema dos tratamentos comportamentais, em que o autor aponta estes
métodos como uma troca terapêutica que, em retorno, temos uma posição fetichista quanto à
uma figura ideal que tentamos nos identificar. A reposta de Éric caminha em torno do tema do
neoliberalismo que, em sua definição, caminha em conjunto ao modelo capitalista de produção:
Uma das demandas de nosso momento capitalista é que nós somos impelidos a pensar
sobre nós mesmos como empresários que devem maximizar nossas vidas. Nós temos
que pensar mais, aproveitar mais, experienciar uma vida sexual mais intensa. Se nós
não maximizarmos, nós vemos isso como uma falha e somos os culpados por isto.
Então, o pedido comum seria “Por favor me concerte, me faça super produtivo”. No
meu ponto de vista, é mais correto ver isto como uma demanda superegóica que
rebaixa o sujeito e interpretarmos isso de acordo sem nos aderirmos. No fim, todos
podem se perceber como falhas de alguma forma, e a verdade é que isso não é tão
terrível (LAURENT. in HAARETZ, 20 jul. 2012, tradução nossa).
71

O que o autor francês nos aponta se coaduna ao que é a crítica ‘psi’ à Resolução SS-83
e o que podemos observar quanto à crescente utilização de abordagens comportamentais como
forma de cuidado ao autismo no ambiente neoliberal capitalista, em que o sujeito carrega a
culpa de tudo aquilo que é o não-feito da demanda superegóica.
Em seu texto A Batalha do Autismo (2014), Laurent nos aponta as dificuldades do
ambiente da terapia comportamental tanto para os sujeitos autistas quanto seus cuidadores, que
se veem presos à essa lógica culpabilizante tradicional, em que os comportamentos das pessoas
no espectro são colocados na mesma ordem superegóica apontada acima, caindo sobre os
cuidadores essa culpa. Ao abrirmos o espaço de análise para colocarmos em jogo aquilo que é
além do “bom” ou “ruim” – termos que são da métrica superegóica social –, saímos do campo
de comportamentos que devem ser excluídos e mantidos, passando a pensar o que são esses
comportamentos e o que existe para se dizer sobre eles.
Assim como observado no Caso Roberto, o comportamento do menino era algo além do
que estava sendo feito no campo da materialidade: havia ali um sujeito tentando tamponar um
sofrimento (viver); foi com o trabalho de Rosine que Roberto pôde então ser visto além do
menino “possuído” (1953-1954/2009, p. 115), mas um indivíduo em sua tentativa de existir e
um discurso a ser ouvido e colocado em holofote.
5.3 A Psicanálise Contemporânea e a Escuta do Sujeito
A psicanálise, como trazido por Figueiredo e Alberti (2006), se trata de uma aposta no
sujeito e seu discurso, aposta essa que se baseia em haver algo ali para se ouvir. As autoras
trazem essa aposta para o que é o campo da saúde mental no cuidado em saúde pública,
principalmente em relação ao tema dos não-neuróticos.
Segundo as autoras, há uma grande problemática em torno do DSM e CID e suas funções
para a psicopatologia da contemporaneidade, uma vez que esses grandes dispositivos manuais
de diagnósticos se encontram em uma lógica não apenas medicalizante, mas de apagamento do
sujeito, dando demasiada ênfase às crises, delírios grotescos e etc. Há então, através dessa
formulação manual psiquiátrica, uma imposição de um aspecto negativo na psicose, deixando
de lado que há na psicose uma lógica própria de funcionamento e de constituição de um sujeito
no mundo. O que é proposto por Tenório e Rocha (2006) é um resgate à ideia do delírio como
um mecanismo de cura para esse sujeito, que deve ser parte essencial do trabalho, não excluído.
Lima (2014) traz consigo duras críticas ao tratamento em Terapia Cognitivo-
Comportamental (TCC), retomando textos de Aaron Beck e produzindo pontuações. Em torno
do que é tratado nesse trabalho, retira-se de suas postulações a chave para a crítica da abordagem
TCC frente ao cuidado em saúde mental:
72

Portanto, para a psicandsmálise, o sintoma deve ser escutado e interpretado para que
a verdade do sujeito possa emergir, a fim de que este possa elaborar um ‘savoir-faire’
com o real que o sintoma recobre. Assim, fazer calar o sintoma, tomando-o como uma
simples disfunção do pensamento que deve ser corrigida pelo terapeuta-mestre, só
pode conduzir ao pior. (LIMA, 2014, p. 4).

Ao citar “calar o sintoma” o autor trata exatamente do que fora trazido por Figueiredo e
Alberti, um silenciamento do sujeito, o proibindo de dizer sobre si em troca de uma suposta
melhora na capacidade de conviver em um trato social que, em conjunto com Lima, abordará a
consequência desse silenciamento do sujeito, que é o sofrimento causado por ele, a exemplo
disso temos os episódios de somatização.
A importância do tema do cuidado em saúde mental em relação à permissão do sujeito
de dizer sobre si é de pontual importância ao pensarmos no tratamento do sujeito autista.
Trazido por Kanner e Asperger, e confirmado na psicanálise e psicopatologia contemporâneas,
a comunicação com o indivíduo autista é de grande complexidade, sendo caracterizada pelas
ditas verborragias ou a inexistência da fala de forma geral, porém, como observado por Rosine
Lefort ao falar sobre Roberto, encontramos, mesmo que sem comunicação, um sujeito que
permite sua lógica de funcionamento a aparecer e, consequentemente, o desejo em sua
característica constitutiva.
Apesar de complexo, o cuidado de Roberto só foi possível uma vez que Rosine permitiu
que esse sujeito aparecesse e, à sua maneira, dissesse sobre si, e, assim como na psicose, seus
comportamentos considerados nocivos e alvos de exclusão na clínica da TCC foram partes
essenciais de seu tratamento e melhora visível. Foi com esses comportamentos que se tornou
possível emergir ali um sujeito que caminharia para a cura. O mesmo serviria à neurose, uma
vez que os comportamentos nocivos do neurótico estarão frente à mesma metodologia
comportamental: exclusão para a cura, sem espaço para o sujeito e seu desejo.
Da mesma maneira observamos isso com Giovanna, que com a separação da mãe no
ambiente da sala lúdica é confrontada com questionamentos que deveriam ser respondidos por
ela através da função imaginário do analista. A passagem do “não sei” para suas opiniões acerca
do que produzimos – desenhos, conversa, a organização da casa –, nos dá um horizonte de
tratamento para esse sujeito, através da abertura para seu próprio discurso sobre o mundo, sem
o apoio deste Outro não afastado pela função paterna.
De forma a pensarmos no enfrentamento do trauma através dos fundamentos
psicanalíticos, precisamos, primeiramente, posicionar o sujeito que ali se apresenta buscando a
cura para seu adoecimento, ou seja, vasculhar em seu discurso aquilo que diz sobre seu
sofrimento. Ao pensarmos sobre os efeitos do discurso na clínica psicanalítica e a função do
73

analista perante ele temos, tradicionalmente nos ensinos de Freud, um setting frente a um sujeito
que, ao decorrer da análise, irá discorrer sobre o que o aflige, discursar e, assim, estender e
“escavar” sua cadeia de significantes em conjunto com o psicanalista. Nisto, abrimos o
questionamento inicial do trabalho: há sujeito no autismo? Ou seja, há algo de sujeito naquilo
que não é sua estrutura egóica, mas sua estrutura não-egóica, na falta do Eu-corpo como
apontado por Allouch (2003)?
Observamos em Roberto aquilo que é uma tentativa constante de existir: na manutenção
de seus objetos (como a urina e as fezes), na tentativa de manter o ambiente e sua rotina, de se
afastar daquilo que o aflige, enfim, a manutenção de sua borda para estabilização desse
indivíduo. Apontado por Laznik em Rumo à Fala (2011), seus pacientes apresentam diversas
formas de produções artísticas (no grau possível ao infante), de posicionamento de si mesmos
em suas enunciações (como observado em Mourad no episódio do dedo machucado).
Neste mesmo texto, a autora traz a história de Halil em seu atendimento, que tem dentro
de suas problemáticas uma relação de ciúme com seu irmão mais novo. Laznik, ao falar deste
caso em sua conclusão, nos aponta o seguinte:
Se Lacan insiste no fato de que a cena agostiniana é uma experiência crucial, é bem
porque o sujeito barrado virá – ou não virá, acrescentarei – ali se constituir. Com
efeito, o sujeito barrado pode não se constituir, aterrorizado pela emergência do
desejo. No seminário sobre A Identificação, Lacan diz textualmente que o objeto que
se constitui como objeto perdido remete a uma perda na própria imagem, a uma perda
no Eu (moi). Por isso, o sujeito barrado só pode se instaurar contanto que suporte essa
perda na imagem [...] (LAZNIK, 2011, p. 220).

Com isto, Laznik nos aponta o que é a subjetividade do atendimento desses sujeitos.
Halil, posteriormente, produz uma instalação do tempo, que antes trabalhava apenas na ordem
do presente absoluto, demonstrando os resultados da análise com a autora. O que Laznik nos
diz vem da ordem de uma aposta: o sujeito do enunciado se faz presente como um primeiro
registro, mesmo que ecolálico, porém, o sujeito do inconsciente é apenas uma possibilidade,
que pode ou não pode ocorrer.
O trabalho da autora se dá no que é a clínica psicanalítica em sua ética, na aposta de um
sujeito. A clínica de Laznik nos remete àquilo que é central ao trabalho de análise desses
indivíduos: dar espaço para que o sujeito do inconsciente se faça possível, “permitir que se
instale a alienação constitutiva do eu (moi), que o sujeito do enunciado possa emergir” a partir
do sujeito da enunciação, dando local para instauração do sujeito do desejo.
Podemos observar a importância desta abertura na clínica com Giovanna, que quando
em contato com minha presença como portador de funções imaginárias para seu uso, pôde
iniciar seus trabalhos metafóricos e passar de uma criança silenciosa a alguém comunicativo e
74

capaz de dizer sobre como se sente frente à essas metáforas – como ao opinar sobre a árvore,
dizer se quer ou não realizar sessões na sala lúdica e etc.
Além disso, o conceito de sujeito deve ir além da metodologia de posicionamento na
linguagem psicanalítica, nos apontando também ao que é o trabalho de base da psicanálise: a
escuta. Destituir o autista da posição de sujeito (ou sujeito-por-vir) é também entregá-lo à
metodologia do “bom” e “ruim”, do comportamento que deve ser excluído ou não. A aposta da
prática psicanalítica depende de um sujeito a quem confiar a escuta de um saber, e posicioná-
lo nesse local é também dar a ele possibilidade de dizer sobre si mesmo, mesmo que este seja
o sujeito da enunciação, visto que é por ele que o trabalho se inicia.
75

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O AUTISMO COMO MARCO ESTRUTURAL

Apresentado por Bialer (2015) em seu artigo sobre Donna Williams, escritora autista
que foi alvo de análise textual tanto pela autora quanto por Maleval (2011) através de seus
textos autobiográficos, ela nos aponta o que é constatado por Laznik em seu espaço clínico: o
trabalho em análise ao sujeito autista nos remete à um auxílio nas formações imaginárias do
sujeito. Donna nos faz lembrar o trabalho produzido por Joyce, que com sua escrita produz um
enodamento artificial das instâncias RSI, uma vez que ela mesma utiliza sua escrita para
produzir uma aproximação das produções imaginárias, tecendo “um estofo imaginário que lhe
permita construir um ego, apropriar-se do corpo próprio” (BIALER, 2015).
Assim como no trabalho apresentado por Rosine em relação a Roberto, o que
observamos é uma necessidade do analista de propor ao paciente aquilo que lhe falta em sua
produção individual: uma relação imaginária com o mundo. Claro que, assim como Joyce, o
que a clínica nos apresenta não é uma forma de dar fim ao autismo, mas maneiras de o sujeito
lidar com seus adoecimentos, suas capacidades e incapacidades e, enfim, com aquilo que lhe é
próprio de sua estruturação.
A hipótese de uma estrutura autística tem grande relevância para seu cuidado em
psicanálise, uma vez que o que é observado no espaço clínico é exatamente uma estruturação
própria em sua relação com os temas de narcisismo e enodamento das instâncias RSI (Real,
Simbólico e Imaginário). Além disso, como apontado por Lacan sobre Roberto, e Laznik sobre
os pacientes atendidos no Centro Alfred Binet, o que observamos é outra relação entre sujeito
e o campo Imaginário - Simbólico, sendo o autismo caracterizado pela falta de produção das
formalizações egóicas nas vias do Imaginário, enquanto o psicótico se abstém daquilo que é a
conexão Simbólica pelo processo de foraclusão.
O autismo como apontado por nossa base bibliográfica se daria como um marco
estrutural à psicanálise contemporânea, uma vez que é nele que encontramos provocações
quanto ao funcionamento dos mecanismos clássicos da psicanálise. Em O Seminário. Livro 17:
O Avesso da Psicanálise (1969-1970/1992, p. 81-123) Lacan nos aponta uma extensa crítica
quanto à utilização do modelo do Complexo de Édipo como uma verdade universal de
funcionamento, o destacando como uma ilustração clássica do funcionamento de formação do
sujeito, não um fato clínico – ou seja, um mecanismo analítico. Este destaque é importante à
nossa pesquisa, uma vez que é nela que encontramos subsídio para questionar estes
funcionamentos clássicos da literatura ao observamos o autismo através delas (como no
Esquema Óptico de Bouasse ou as características dos momentos do Narcisismo).
76

O autismo então se apresenta em um espaço de quebra com as formalizações narcísicas


a partir da alienação, período inicial de apresentação ao infante seu reflexo no olhar do Outro.
Posicionar o autismo nos esquemas psicanalíticos é um processo para constituição de uma base
teórica sólida para sustentação da hipótese de uma estrutura autística, e, além de uma estrutura,
como um marco para o estudo da psicanálise lacaniana, nos apontando um caminho necessário
para o estudo, entendimento e capacitação de atendimento a esses sujeitos foco de nossos
estudos.
É com esta quebra de Lacan com um tema tão abrangente à psicanálise que podemos
pensar em questionar os modelos tradicionais dos ensinos iniciais do autor e, com isso,
tentarmos repensá-los à clínica psicanalítica contemporânea em sua subjetividade. Como
observado através da leitura do Caso Roberto, Lacan não produz uma conclusão ao caso, tendo
ele como um marco de questionamento ao que é a relação sintomatologia-estrutura. O autismo
se mantém como uma grande interrogação para a psicanálise, e é através da manutenção dos
estudos do tema que podemos pensar em produzir avanços à clínica destes sujeitos.
Além disso, com a emergência da COVID-19 no mundo, foi possível observar também
o progressivo aumento de quadros de adoecimento psicológicos em todas as áreas sociais,
independentemente da estrutura psíquica. Neste espaço de desconforto o sujeito autista se vê
obrigado a lutar contra essa invasão de seus continentes, sendo ela capaz de produzir
adoecimento em uma escala muito diferente das “pequenas invasões” como as estimulações
sensoriais do cotidiano (luzes de estabelecimentos, sons altos em geral, quebra momentânea da
rotina), passando a um novo esquema de vida por completo. Pensar em avanços da clínica
desses sujeitos também é pensar em formas de lidar com os adoecimentos que têm origem neste
momento de emergência humanitária.
A produção deste trabalho se deu na tentativa de sustentar uma base bibliográfica em
torno da renovação do tema do autismo em psicanálise através de autores contemporâneos. Para
isso trouxemos o que é a base da teoria psicanalítica em torno do tema da constituição do Eu,
suas interpretações na psicanálise freudiana e lacaniana, como o tema do narcisismo em Freud
(1914/2010) e o Esquema Óptico de Bouasse e o Caso Roberto em O Seminário. Livro 1: Os
Escritos Técnicos de Freud (1953-1954/2009).
Avançando, pudemos iniciar o que pontuamos como a bibliografia de base para a
produção deste trabalho, que é a pesquisa de Laznik em torno de sua clínica (2011; 2016) em
conjunto com os escritos de Maleval (2011; 2015) sobre o tema do autismo. Estes autores foram
destacados para utilização no trabalho por terem hipóteses muito próximas e, de certa forma,
que funcionam em conjunto acerca do tema: a hipótese de uma estrutura própria ao autismo.
77

Ademais, trouxemos o que foi tema inicial de abordagem do tema na estrutura da pesquisa em
Iniciação Científica do aluno em torno dos escritos de Allouch (2003), que caminha junto aos
estudos freudianos trazidos neste trabalho, além de dar maior base para uma abordagem ao
autismo pensando na relação do sujeito com o corpo.
Traçando este percurso entre os autores, propomos o autismo como um marco estrutural
em psicanálise, tanto por se tratar de uma aposta a uma estrutura autística, quanto por estarmos
lidando com algo que remete a um debate atual e, ainda, sem resposta. A comunidade
psicanalítica se encontra dividida quanto ao “enquadramento” do autismo, com autores o
classificando na estrutura psicótica e outros apostando em uma estrutura própria. Porém, o que
observamos na pesquisa podem ser separados em dois pontos: 1. uma diferenciação clara entre
autismo e psicose; e 2. que este debate não importa tanto quanto a discussão do cuidado sobre
esses sujeitos dentro do que é observado na clínica autística.
Com a exposição do Caso Giovanna pudemos observar em ação a clínica proposta por
Laznik em suas produções e, além disso, observar a importância do processo de pesquisa para
a formação de pesquisador e terapeutas. É através da pesquisa em torno do desenvolvimento de
Laznik que pudemos observar Giovanna de um outro local, propondo à ela uma clínica própria
às suas necessidades em torno do não-enodamento imaginário, gerando resultados ótimos em
sua capacidade discursiva frente a análise
Pensando na propagação de saúde, inclusive no âmbito da saúde pública, a psicanálise
tem papel essencial para a possibilidade de escuta desses sujeitos e na produção de espaços
seguros para o cuidado deles. A crítica trazida no capítulo 5 quanto as abordagens
comportamentais dão base para aquilo que faz parte da aposta do trabalho e tem concordância
com os casos de crianças autistas aqui apresentados: a aposta na escuta destes sujeitos foi parte
essencial para o desenvolvimento do tratamento destes. Pensar nesses indivíduos como
portadores de comportamentos, sem dar espaço para emergir algo além disso, um dito sobre seu
sofrimento e suas formas de proteção.
Pensar a clínica psicanalítica e a ação do psicanalista em instituições de cuidado a
qualquer tipo de adoecimento é pensar no sujeito como capaz de dizer sobre si e apostar em
uma relação possível com o sofrimento do outro, pensando nela como parte do processo de
cuidado.
O trabalho não se encerra em sua conclusão, demandando continuação da pesquisa nessa
temática, com a pretensão que isso seja possível através da pesquisa em iniciação científica que
se mantém até o ano de 2023 e de programas de pós-graduação. O Horizonte de Pesquisa nos
remete ao que é o tema de Laznik em torno de sua clínica e possíveis relações com os ensinos
78

de Lacan além de seu momento inicial. Como observado no capítulo 5, Lacan irá quebrar com
diversos temas tradicionais da psicanálise freudiana, dando espaço para questionamentos sobre
a posição do mesmo em relação aos conceitos inicias de seu ensino e seus possíveis
desdobramentos. O tema da pulsão escópica, principalmente em relação à voz, tem grande
porção do questionamento do trabalho, sendo ele um dos alvos de futuras investigações, uma
vez que a proposta inicial desta pesquisa é de dar uma base sólida à hipótese de uma estrutura
autística para que, posteriormente, avançássemos ainda mais em torno dos ensinos posteriores
de Lacan.
Além disso, o avanço da pesquisa está diretamente relacionado ao tema da revisão dos
matemas e fórmulas lacanianas em torno da formação do sujeito e estruturação psíquica, o que
foi feito através do Esquema Óptico de Bouasse, abrindo a possibilidade de um processo de
revisão do mesmo para a formação autística. De forma a manter o trabalho e sustentá-lo no
ambiente psicanalítico acadêmico, o direcionamento da pesquisa aponta para o que é proposto
por Lacan em O Seminário. Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-
1955/2010) através do Esquema L e seus avanços conceituais, e a Fórmula da Metáfora
proposta por Lacan em Escritos (1966/1998, p. 563).
Este trabalho se dá como uma síntese de todo o conjunto que foi possível de se produzir
no espaço da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o avanço constante que é possível de
se obter neste espaço de produção, se baseando no tripé do sistema de educação das
universidades públicas: ensino, pesquisa e extensão. A experiência da graduação através da
soma das aulas, os materiais teóricos, supervisões, o contato com a clínica do SPA e o diálogo
possível de produzir no ambiente da UFF e seus laboratórios foram partes essenciais para o
desenvolvimento de base deste trabalho.
Com a experiência de Iniciação Científica pude começar a caminhar pelo espaço da
pesquisa e iniciar o desenvolvimento de um perfil de pesquisador, que se sustenta no desejo de
produzir e caminhar cada vez mais com o tema. O que a experiência na pesquisa em uma
universidade pública me trouxe foi o desejo de ver mais produções, mais pesquisas, mais temas
e, enfim, mais pessoas entrando em contato com um sistema de educação público, de qualidade
e capaz de instigar questionamentos como os meus e de meus colegas de laboratório.
Através do contato com a clínica do SPA pudemos entrar em contato com um caso
clínico que serve de construção de marcos como relação entre teoria e prática, possibilitando
que o aluno possa ter contato com os resultados de sua pesquisa com a aplicação da mesma no
cuidado ao indivíduo. Considero este o papel e objetivo da pesquisa no âmbito acadêmico:
desenvolvimento teórico e prático em torno de temas de importância ao bem-estar social.
79

Com isso, concluo que o viés que sustento em torno do tema é de manutenção da
pesquisa em âmbito acadêmico, desenvolvendo formas de cuidado aos sujeitos autistas capazes
de contemplar a particularidade desta estruturação psíquica. A conclusão se fecha no desejo do
pesquisador e aluno de avançar a pesquisa como tema de mestrado, relacionando a prática
clínica com a teoria psicanalítica, buscando atualizar e renovar o tema do autismo para seu
estudo e manejo.
80

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