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John Murray
Por que somos punidos pelo pecado de Adão? A resposta pode ser encontrada em Romanos
5, e a exposição do argumento de Paulo feita por John Murray é a melhor que já vi. Murray
mostra claramente o paralelo entre a imputação divina do pecado de Adão a nós e a
imputação divina da justiça de Cristo a nós. Sem o pecado de Adão não haveria
necessidade da cruz de Cristo.
— John Frame
A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é um clássico em sua área.
Fundamentado na Bíblia, claro, convincente e humilhante é historicamente fiel,
intelectualmente estimulante e espiritualmente edificante. Trata-se de uma leitura
obrigatória — um livro fundamental para entender por implicação a imputação da justiça
de Cristo. Já era hora de o livro aparecer em português!
— Joel R. Beeke
1ª edição, 2019
Tradução: Marcos Vasconcelos e William Campos da Cruz (Cap. 4)
Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Bárbara Lima Vasconcelos
PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.
Murray, John
A imputação do pecado de Adão / John Murray, tradução Marcos Vasconcelos e William Campos da Cruz —
Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.
Título original: The Imputation of Adam’s Sin
ISBN 978-85-69980-93-3
I. A CONSTRUÇÃO SINTÁTICA
É quase desnecessário defender o fato de o versículo 12 ser uma comparação
em que falta a parte final. Poucos intérpretes contestam essa realidade. A
locução kaiV ou{twv" [ kai Joutws , também assim] no meio do versículo não
tem o efeito de fechar a comparação introduzida por w}sper [ jJwsper , como].
Nesse caso, devíamos ter ou{twv" kaiV [ Joutws kai , assim também] e não
kaiV ou{twv" [ kai Joutws , também assim] (cf. vs. 15, 18, 19, 21 e 6.4, 11). A
locução kaiV ou{twv" [ kai Joutws ] é coordenativa ou continuativa e não
significa “ainda assim”, mas “e assim” ou “e de modo semelhante” (cf. At
7.8; 28.14; 1Co 7.17, 36; 11.28; Gl 6.2). Nem mesmo Pelágio supôs algo
diferente a respeito da sintaxe do versículo 12. O texto latino no qual ele
baseava seus comentários era, nesse particular, fiel ao grego: et ita in omnes
homines [mors] pertransiit.[7]
Não é difícil descobrir a razão por que a comparação introduzida no
versículo 12 tenha sido interrompida. O desenvolvimento do raciocínio de
Paulo exigia um parêntese após a oração finalizadora do versículo 12. Esse
parêntese começa no versículo 17. Bom seria que não considerássemos esses
cinco versículos como um parêntese, mas como dois: o primeiro consistindo
dos versículos 13 e 14; e o segundo, dos versículos 15-17.[8] Quanto à
construção dessa porção parentética deveríamos ter a dizer que o raciocínio
expresso no versículo 12, e de modo especial na última oração, impunha a
necessidade de anexar de imediato os dados citados nos versículos 13 e 14, e
depois, pela vez, o dado tipológico enunciado no final do versículo 14 —
“quem é o tipo daquele que virá” — demandava a definição da série de
similitudes, mas especialmente a definição de contrastes, instituída nos
versículos 15-17. A despeito do modo como interpretarmos esses cinco
versículos, como um ou dois parênteses, é por demais evidente que Paulo não
retorna ao tipo de sintaxe com que começara no versículo 12, mas que fora
interrompida, senão até chegarmos no versículo 18. Temos aqui o término de
uma comparação provida tanto de prótase como de apódose, a primeira
denotada por wJ" [ Jws, como] e a última, por ou{twv" kaiV [ Joutws kai ,
assim também). “Assim, pois, como por uma única transgressão veio a
condenação para todos os homens, assim também por um único ato de reta
justiça, veio para todos os homens a justificação para a vida.”
Não é muito importante determinar se o versículo 18 é continuação ou
recapitulação.[9] É bastante sabermos que Paulo não nos deixa nenhuma
dúvida sobre como teria sido a apódose do versículo 12 caso tivesse sido
completada nos termos da prótase suprida pelo versículo 12. As comparações
dos versículos 18 e 19, quando completadas, põem acima de qualquer dúvida
qual é o raciocínio que rege essa passagem, e que se apresenta nos termos do
raciocínio dominante que a comparação do versículo 12 teria para ser
completado.
Sob exame mais acurado, o parêntesis dos versículos 13-17, que a
princípio parece estranho e desconcertante, estabelece eloquentemente para
nós a exata importância da oração que, afinal de contas, é a mais crucial na
exegese de toda essa passagem, a saber, a última oração do versículo 12. A
interpretação é determinada pelas expressivas repetições dos versículos
subsequentes e, como tivemos ocasião de comentar, nenhuma consideração é
mais pertinente à questão do que o fato de os versículos 13-17 estarem em
forma de parêntesis.
II. O PECADO CONTEMPLADO
O xis da questão com relação a essa passagem é a referência da oração ejf=
w{/ pavnte" h{marton [ ef ’ Jw pantes Jhmarton , porque todos pecaram] no
versículo 12. Essa oração nos informa por que a morte passou a todos os
homens e deveria ser traduzida como “em que todos pecaram”.[10] Em razão
disso, a pergunta é: ao que Paulo se refere quando diz “todos pecaram”? Com
respeito à forma, a expressão em si poderia se referir aos pecados individuais
dos homens (cf. Rm 3.23). Além do mais, se Paulo tinha em mente os
pecados individuais dos homens, essa seria sem dúvida a expressão que ele
teria usado. Nenhuma outra seria mais adequada para expressar esse
pensamento. O sentido, no entanto, não deve ser determinado pela
possibilidade gramatical, mas por considerações contextuais. Há várias visões
acerca da força dessa expressão.
1. A visão pelagiana
Segundo essa perspectiva, a oração em questão se refere aos pecados pessoais
dos homens.[11] Nesse caso, o raciocínio de Paulo seria: assim como Adão
pecou e por isso morreu, assim também todos os homens morrem porque
pecam. Adão é o protótipo: ele pecou e introduziu a morte no mundo. Os
outros, da mesma maneira, pecam e são também afligidos com a morte. A
interação entre pecado e morte, exemplificada em Adão, aplica-se a todo caso
em que houver pecado.
É necessário observar que a estrutura do versículo 12 não desaprova
essa interpretação. Embora, segundo essa visão devíamos esperar que Paulo
usasse ou{tw" kaiV [ Jout ō s kai , assim também] no meio do versículo e não
kaiV ou{tw" [ kai Jout ō s , também assim], ainda assim é possível supor que
Paulo estivesse traçando o paralelismo entre a entrada do pecado e da morte
por meio de Adão e a transmissão do pecado e da morte por meio de todos
sem concluir a comparação nos termos da analogia obtida na esfera oposta de
retidão e vida. Em outras palavras, não é possível apelar à sintaxe do
versículo 12 em si mesma como argumento contra a visão pelagiana. Há, no
entanto, objeções conclusivas em bases factuais, exegéticas e teológicas.
(i) A visão pelagiana não é de fato nem historicamente verdadeira. Nem
todos morrem porque pecam de modo concreto e intencional. Bebês morrem,
mas na realidade não transgrediram à semelhança da transgressão de Adão.
(ii) Nos versículos 13-14, Paulo declara o oposto da visão pelagiana.
Pois aqui somos informados que a morte reinou sobre todos quantos não
pecaram à semelhança da transgressão de Adão. O quê ou quem Paulo tem
em vista é difícil determinar, mas é óbvio que ele está considerando a morte
como exercendo seu poder sobre pessoas que não pecaram da forma como
Adão pecou. É uma futilidade tentar escapar do peso imediato desse fato
sobre a interpretação pelagiana. Paulo está afirmando o contrário, ou seja, que
a morte reina universalmente e, portanto, domina sobre quantos estão numa
categoria diferente da de Adão.[12]
(iii) A refutação mais concludente da interpretação pelagiana deriva-se
das repetidas e enfáticas afirmações de Paulo no contexto imediato, as quais
significam que o domínio universal da condenação e da morte só pode dizer
respeito ao único pecado de um único homem, Adão. Esse princípio é
reafirmado em ao menos cinco ocasiões nos versículos 15-19: “pela
transgressão de um muitos morreram” (v. 15, A21); “o juízo veio de uma só
transgressão para a condenação” (v. 16, A21); “a morte reinou pela
transgressão de um só” (v. 17, A21); “por uma só transgressão veio o
julgamento sobre todos os homens para a condenação” (v. 18, A21); “pela
desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores” (v. 19, A21).
Talvez achemos que Paulo se repetiu sem necessidade, mas essa repetição
estabelece sem nenhuma dúvida que o apóstolo considera que a condenação e
a morte passaram a todos os homens pela transgressão única de um único
homem, Adão. É um tanto impossível interpretar essa ênfase com base no
único pecado de um único homem como equivalente ao pecado pessoal e
intencional de incontáveis indivíduos. Não há dúvidas, portanto, que Paulo
considera a universalidade da condenação e da morte como fundamentada e
procedente de uma única transgressão de um único homem, Adão. A
insistência pelagiana de que a morte e a condenação fundamentam-se
exclusivamente no pecado intencional e pessoal dos indivíduos da raça não
pode ser harmonizado com esse firme testemunho do apóstolo.
(iv) A exegese pelagiana destrói toda a força da analogia instituída por
Paulo nessa passagem. A doutrina que ele ilustra, com o apelo à analogia da
condenação e morte advindas de Adão, é a doutrina segundo a qual os
homens são justificados pela livre graça de Deus, com base na retidão e
obediência de Cristo. Na parte inicial da epístola, Paulo contesta que os
homens sejam justificados por suas próprias obras e estabelece a verdade de
que são justificados e obtêm vida pelo que foi feito por outro, um único
homem, Jesus. Quão vazio e contraditório seria apelar de alguma maneira ao
paralelo tirado da relação de Adão com a raça, se a interpretação pelagiana
fosse a mesma de Paulo; ou seja, que os homens morrem simplesmente por
causa do próprio pecado e jamais com base no pecado de Adão! A doutrina
da justificação apresentada por Paulo seria anulada se, nesse ponto, o paralelo
usado por ele para a ilustrar e confirmar seguisse o modelo da interpretação
pelagiana. Isso significaria que os homens são justificados por sua própria
ação voluntária, da mesma maneira que caem em condenação exclusivamente
por seu próprio pecado voluntário. Isso é sem dúvida doutrina pelagiana, mas
é evidente na própria epístola que tal ensinamento contradiz o ensinamento
de Paulo. A doutrina da justificação estabelecida por essa epístola não pode
tolerar como sua analogia ou paralelo nenhuma interpretação do reino do
pecado, da condenação e da morte que se assemelhe minimamente à doutrina
pelagiana. Por conseguinte, a visão pelagiana tem de ser rejeitada tanto com
base nesse argumento, como nos outros já mencionados.
1. A visão católica romana
Não é possível sustentar que haja unanimidade entre os teólogos católicos
romanos com respeito a Romanos 5.12, ou quanto à parte na qual estamos
mais especificamente interessados. No período do Concílio de Trento,
Ambrósio Catarino defendia posição semelhante à qual, mais adiante,
deveremos propor como a visão correta. Ele sustentava que o pecado referido
no trecho, “porque todos pecaram”, é a transgressão voluntária de Adão
imputada a toda a posteridade em razão do relacionamento pactual firmado
por ele para a raça — quando Adão pecou toda a humanidade pecou nele e
com ele. Ele insistia que o pecado de cada um é ato exclusivo da transgressão
de Adão, não da falta de retidão nem da concupiscência, consequências desse
pecado. É esse pecado de Adão imputado à posteridade que Catarino chamou
de “pecado original” sendo esse o pecado, e ele somente, sustentava ele, que
Paulo tem em vista em Romanos 5.12-19.[13] Alberto Piguio, contemporâneo
de Catarino, defendia a mesma posição. Ele afirmava sem rodeios que muitas
vezes o apóstolo associava o reino da morte e o juízo de condenação, sob o
qual todos nos achamos encerrados, ao único pecado de um único homem,
Adão. Nele, portanto, não em nós, estava o pecado mediante o qual todos nós
pecamos. Até mesmo crianças recém-nascidas são culpadas e pecadoras não
por causa de seu próprio pecado, mas em razão do pecado e desobediência de
Adão.[14]
Essa posição, porém, não é o ensinamento oficial da Igreja Romana, e
seus teólogos seguiram uma linha de raciocínio diferente. O Concílio de
Trento em seu “Decretum de Peccato Originali” diz: “1. Se alguém não
confessar que o primeiro homem, Adão, quando transgrediu a ordenança de
Deus no Paraíso, perdeu de imediato a santidade e a justiça em que fora
constituído, e pela transgressão dessa prevaricação incorreu na ira e
indignação de Deus, e, portanto, na morte com que Deus antes lhe ameaçara,
e, juntamente com a morte, no cativeiro sob o poder daquele que, desde
então, teve o império da morte, qual seja: o Maligno, e que Adão, pela
transgressão dessa prevaricação foi completamente mudado, em corpo e
alma, para pior, seja anátema.
“2. Se alguém afirmar que a transgressão de Adão prejudicou só a ele e
não à sua posteridade, e que a santidade e a justiça que ele recebeu de Deus, e
por ele perdidas, perdeu-as só para si mesmo e não também para nós; ou que
ele, ao ser corrompido pelo pecado de desobediência, transmitiu apenas a
morte e as dores do corpo para toda a raça humana, mas não também o
pecado, o qual é a morte da alma, seja anátema”.[15] Por essas declarações,
poder-se-ia concluir que o pecado de Adão, que é o pecado de todos, é
transmitido a todos os homens por propagação. Obviamente, essa noção é
bastante distinta da ideia de imputação da transgressão de Adão a todos os
homens, conforme abraçadas por Catarino e Piguio.
É essa direção de raciocínio, que aparece nos decretos de Trento, e que
tem sido distintiva dos teólogos romanistas na formulação dessa doutrina.
Não é que Roma negue de toda maneira o fato ou as consequências da
transgressão de Adão. É apenas porque — na interpretação de Romanos 5.12
e do pecado em que todos estão implicados por causa do pecado de Adão —
esse pecado é compreendido não como o pecado pessoal de Adão, que foi
imputado, mas como o pecado habitual transmitido pela geração natural. A
questão é claramente definida por Joseph Pohle: “O pecado de Adão é
original em dois sentidos: (1) como ato pecaminoso pessoal (peccatum
originale originans), e (2) como estado pecaminoso (peccatum originale
originatum). É o estado, não o ato, que é transmitido aos descendentes de
Adão”.[16] O primeiro relaciona-se com o segundo em dois aspectos.
Primeiro, o ato pecaminoso pessoal trouxe à existência o estado pecaminoso;
segundo, o estado pecaminoso é realmente pecaminoso “só na sua ligação
lógica com a transgressão voluntária de Adão contra a ordenança divina no
Paraíso”.[17] Mas é somente “o pecado habitual de Adão (habitus peccati),
que ‘entrou neste mundo’ por meio dele, i.e., foi transmitido por ele a toda
sua descendência”.[18]
Roma reluta em definir com exatidão aquilo em que consiste o pecado
original e o habitual. Até onde se pode arriscar uma definição, concebe-se o
pecado como consistindo principalmente da privação de santidade e de
justiça.[19] No entanto, uma vez que a queda do homem implicou também na
perda de integridade, é difícil aos teólogos romanistas excluírem a
concupiscência do âmbito do pecado original. Assim, conquanto sejam
enfáticos em sustentar que o pecado original não consiste de concupiscência,
[20]
todavia estão dispostos a conceder que a concupiscência, embora não
sendo em si mesma verdadeira e propriamente pecado, está compreendida no
âmbito do pecado habitual.[21]
Após levar em consideração todas essas distinções e qualificações o
desfecho é que na teologia romanista o pecado referido na última parte de
Romanos 5.12 é o pecado habitual ou original, transmitido ou inoculado na
posteridade de Adão pela geração natural e que, quanto à sua natureza, esta
consiste essencialmente da privação de santidade, que pode ser classificada
como pecaminosa, devido à relação lógica que mantém com a transgressão
“voluntária” de Adão.[22] Em suma, o pecado de Romanos 5.12, pelo qual a
morte passou a todos, é a pecaminosidade transmitida.
Não nos interessa no presente momento examinar a doutrina romanista
do pecado original. Sobre essa questão, a luta da Reforma foi acompanhada
de perto e poderia parecer que a situação, da forma que hoje se encontra, não
ofereça a mínima razão para a minimização dessa controvérsia. No entanto,
nossa questão no presente não é se a doutrina de Roma sobre o pecado
original está certa, mas se o que Paulo tem em mente quando diz “porque
todos pecaram” é a noção de pecado original em contraposição à de pecado
imputado. No que tange a isso, estamos investigando a capacidade de defesa
da interpretação cogitada por alguns protestantes, bem como por Roma. Há,
para essa interpretação, objeções determinantes de caráter exegético e
teológico.
(i) Antes de tudo, há um argumento presuntivo. Seria demasiadamente
difícil ajustar a noção em questão à ideia expressa pelo aoristo
h{marton [ jJ ē marton , pecaram]. O pecado original, segundo a interpretação de
Roma ou, quanto a isso, dos protestantes, é transmitido sempre por geração
natural. Quanto à transmissão, o processo é contínuo; quanto ao resultado, a
condição é constante. Se o pecado aludido no trecho em questão for o pecado
original, então tem-se em vista o processo e a condição definidores do
pecado. É difícil, senão impossível, conceber a maneira como um aoristo
histórico ou indefinido seria usado para denotar esse tipo de pecado. A única
maneira de usar esse tempo verbal seria concentrar a atenção na inauguração
histórica desses processo e condição. Mas a interpretação romanista não tanto
assim o raciocínio, e caso tenha-se em mente o pecado original, não seria
viável limitar o raciocínio ao começo definitivo da história. Quanto mais
pensamos nessa objeção, tanto mais irrefutável ela se torna. Todavia, estamos
dispostos a caracterizá-la como provável, mas não conclusiva.
(ii) Mais convincente é a consideração teológica de que essa visão não
se harmoniza com o paralelo ou a analogia que Paulo estabelece na
passagem. A validez desse argumento assenta-se, obviamente, na rejeição
categórica da visão romanista sobre a justificação. Roma considera que a
justificação consiste na regeração e renovação operadas pela infusão da
retidão, e seus teólogos ao lidarem com Romanos 5.12-19 recorrem a esse
conceito de justificação para apoiar a forma como interpretam o versículo 12,
a de que, por conta do pecado de Adão, há na justificação um óbvio paralelo
entre a infusão da retidão e a transmissão do pecado original. Não podemos
agora nos desviar da questão principal para refutar essa doutrina de
justificação. Devemos nos satisfazer com a afirmativa de ser ela totalmente
contrária ao ensino bíblico e paulino. Segundo a doutrina de Paulo, somos
justificados com base na retidão de Cristo e não por alguma retidão infundida
em nós nem tão pouco por alguma retidão efetuada em nós. Em sendo essa a
doutrina do apóstolo, e visto que ele faz um paralelo entre a forma como a
condenação e a morte passam a todos os homens e a forma como a
justificação e a vida passam aos justificados, o modus operandi do último
caso não pode ser considerado análogo à transfusão ou transmissão do pecado
original. O paralelo exigido pela doutrina paulina da justificação tem de ser
de natureza muitíssimo diferente. Por isso, resumindo, a introdução da ideia
de pecado transmitido e herdado no raciocínio de Paulo nessa passagem viola
as exigências da analogia proposta em vez de atendê-las.
(iii) Mais decisiva é a objeção de que a interpretação em debate não é
consistente com as repetidas afirmações de Paulo em Romanos 5.15-19. Já
tivemos ocasião de nos referir a elas ao refutarmos a visão pelagiana. Mas é
bom lembrar que Paulo, em pelo menos cinco ocasiões, em versículos
sucessivos (15, 16, 17, 18, 19), refere-se ao âmbito universal da condenação e
da morte relacionado à ofensa de um só homem, Adão. Essa ênfase
sistemática na “unicidade” do pecado e do homem não se adequa à noção de
pecado original. Apesar de a visão romanista reconhecer que o pecado
original decorre da transgressão concreta de Adão, esse é o pecado que, por
ser transmitido ou transfundido, pertence a todos quantos vêm por geração
natural, não sendo possível considerá-lo como algo que se ajusta a essa
especificação, por ser a ofensa de um só homem, Adão. O que é habitual para
nós, como declaram os teólogos romanistas, dificilmente pode ser
caracterizado como a ofensa de Adão. Por essas razões, temos de rejeitar essa
interpretação da expressão “porque todos pecaram”.
3. A interpretação de Calvino
A questão principal persiste ainda diante de nós: Que pecado Paulo tem em
vista quando ele diz “porque todos pecaram”? Para chegarmos ao que
acreditamos ser a visão apropriada é indispensável que as seguintes
considerações sejam levadas em conta:
(i) É inquestionável que o domínio universal da morte está
representado no versículo 12, tendo-se como base o fato de que “todos
pecaram”. Seja qual for o pecado em questão, ele é a razão por que a morte
passou a todos os homens. E isso significa simplesmente que ele é a base da
universalidade da morte.
(ii) Nos versículos 15-19, no entanto, Paulo afirma com inequívoca
clareza que o reino universal da morte firma-se na única transgressão de um
único homem. “Pela ofensa de um só, morreram muitos” (v. 15); “pela ofensa
de um e por meio de um só, reinou a morte” (v. 17). E, é claro, esse
relacionamento referente à morte está em harmonia e em paralelo com as
outras declarações de Paulo com referência à condenação. “O julgamento
derivou de uma só ofensa para a condenação” (v. 16); “por uma só ofensa,
veio o juízo sobre todos os homens para condenação” (v. 18). A morte e a
condenação reinam sobre todos por causa da única transgressão de Adão.
(iii) Será que devíamos supor que Paulo está tratando de dois fatos
diferentes quando no versículo 12 ele baseia a morte de todos no pecado de
todos e, nos versículos 15 e 17 ele baseia a mesma morte na transgressão
singular de Adão? Deveríamos entender que no versículo 12 Paulo se refere
ao pecado pessoal e individualmente universal, tanto por ação como por
hábito, mas nos versículos 15-19 ele está se referindo ao pecado em sua
singularidade específica como a transgressão única de um único homem,
Adão? A conclusão à qual somos levados pelas considerações exegéticas é
que o caso não pode ser esse, mas, ao contrário, Paulo deve ter em vista o
mesmo pecado quando no versículo 12 diz “todos pecaram” e quando nos
versículos 15-16 ele se refere ao pecado de um só homem. Os argumentos
determinadores dessa conclusão são os seguintes.
(a) A passagem inteira (Rm 5.12-19) forma uma unidade. Não podemos
deixar de ver que sua estrutura central resulta da analogia entre o modus
operandi do pecado, condenação e morte, por um lado, e da retidão,
justificação e vida, pelo outro. Na natureza do caso, uma vez que o último
trio tem o propósito de negar o primeiro, há contrastes importantes e
magníficos, e Paulo raciocina com base neles. No entanto, a linha de
raciocínio é o paralelismo, e até os contrastes se baseiam nessa estrutura. Por
isso, somos forçados a concluir que a comparação introduzida no versículo
12 — embora interrompida e incompleta nos termos expressos em que a
prótase do versículo 12 poderia sugeri e determinar — é quanto ao raciocínio
essencialmente idêntica à declarada de forma completa nos versículos 18 e
19. Isso significa que o pecado ao qual se refere o versículo 12, e de modo
particular na última oração, só pode ser o mesmo pecado identificado no
versículo 18 como “uma só ofensa” e no versículo 19 como “desobediência
de um só homem”. E se recuarmos aos três versículos precedentes (15-17),
tendo em mente a unidade absoluta da passagem, só será possível
concluirmos que os versículos 15 e 17 visam ao mesmo pecado, nos quais é
denominado de ofensa de um só.
(b) O versículo 12 é uma comparação incompleta. Só temos
conhecimento de sua apódose implícita por causa dos versículos seguintes.
Não dá para supor que Paulo, tratando expressamente da questão do reino
universal da morte, afirmasse de forma tão explícita e repetida nos versículos
subsequentes algo bem diferente do que ele afirma no que seria a introdução
incompleta de seu argumento. Se o versículo 12 estivesse em um contexto
exclusivamente dele, e se houvesse alguma evidência plausível da transição
de uma fase do ensino para outra, então poderíamos dizer que no versículo 12
o apóstolo trata de um fato e nos versículos 15-19, de outro. Mas o fato de o
versículo 12 não finalizar a comparação e depender dos versículos seguintes
para substanciar essa inferência impossibilita totalmente qualquer suposição
de transição de uma fase da verdade para outra.
(c) No que tange ao pecado praticado pelo indivíduo, o versículo 14
exclui a possibilidade de interpretar a última oração do versículo 12 nesses
termos. O versículo 12 nos apresenta a razão por que a morte passou a todos
os homens. Qual seja, “todos pecaram”. Mas o versículo 14 nos diz que a
morte reinou sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de
Adão. O reinado da morte no versículo 14 deve ter a mesma importância que
a passagem da morte no versículo 12. Paulo, portanto, está afirmando que a
morte tanto passou aos que não transgrediram pessoal e intencionalmente à
semelhança de Adão, como também reinou sobre eles, e, portanto, o “todos
pecaram” do versículo 12 não pode estar se referindo à transgressão pessoal
individual. Por essas razões somos compelidos a inferir que, ao dizer que
“todos pecaram” (v. 12) e falar na ofensa de um só homem (v. 15-19), Paulo
só pode estar se referindo ao mesmo fato ou evento, de sorte que esse evento
ou fato único pode ser expresso em termos tanto de singularidade como de
universalidade. Se essa identidade nos confronta, como devemos explicá-la?
Como é possível Paulo afirmar que “todos pecaram” e, então, que uma única
pessoa pecou e isso diga respeito ao mesmo fato?
Ao se tentar responder tal pergunta, há um erro específico a ser evitado.
Não devemos diminuir a importância nem da singularidade nem da
universalidade. Paulo usa de linguagem expressiva para as duas. A única
solução é a existência obrigatória de algum tipo de solidariedade entre “um
só” e “todos” de sorte que o pecado em questão seja considerado — ao
mesmo tempo e com igual relevância — como o pecado de “um só” ou o
pecado de “todos”. O que vem a ser essa solidariedade é o assunto da
próxima parte principal de nossa defesa.
Capítulo Dois
III. A UNIÃO ENVOLVIDA
1. A visão realista
Talvez o expoente e defensor mais competente da visão de que a natureza
humana era numérica e especificamente uma em Adão seja William G. T.
Shedd. “A doutrina da unidade específica de Adão e sua posteridade”, diz ele,
“remove as maiores dificuldades relacionadas com a imputação do pecado de
Adão à sua posteridade, decorrentes da injustiça de castigar alguém por causa
de um pecado em que não se teve nenhuma participação”.[24] E ao contestar a
visão representativa, ele afirma: “Imputar o primeiro pecado de Adão a sua
posteridade tão só e unicamente porque Adão pecou como representante em
lugar dela, torna a imputação um ato arbitrário de soberania, não um ato
jurídico de justiça que porta em si moralidade e justiça intrínsecos”.[25]
Resumindo a posição, a natureza humana em sua unidade não
individualizada existia em sua inteireza em Adão, por isso quando Adão
pecou, não somente ele pecou, mas também a natureza comum existente nele
em sua unidade, e, como toda pessoa vinda ao mundo é uma individualização
dessa natureza humana única, cada uma como “parcela individualizada”
dessa natureza comum é culpada e passível de castigo por causa do pecado
cometido por essa unidade.[26] “Essa unidade comete o primeiro pecado […]
Esse pecado é imputado à unidade que o cometeu, é inerente à unidade, sendo
propagado por ela. Por conseguinte, todos os aspectos particulares
concernentes ao pecado aplicáveis à unidade ou à natureza comum, aplica-se
de forma igual e estrita a cada uma de suas parcelas individualizadas.
Sócrates, individualmente, era parte fracionária da natureza humana que
‘pecou em, e caiu com, Adão em sua primeira transgressão’ […] Portanto, a
comissão, imputação, inerência e propagação do pecado original adere
indissoluvelmente à parte individualizada da natureza comum, da mesma
maneira que ao seu todo não individualizado. A distribuição e propagação da
natureza não lhe causa nenhuma alteração, exceto com respeito à forma”.[27]
A visão de A. H. Strong tem quase o mesmo efeito. Ele a denomina de
teoria augustiniana e afirma que “ela sustenta que Deus imputa o pecado de
Adão imediatamente a toda sua posteridade, em virtude dessa unidade
orgânica da humanidade, pela qual toda a raça, no momento da transgressão
de Adão, existia, não individualmente, mas seminalmente nele, como o seu
cabeça. Toda a vida da humanidade estava, então, em Adão; a raça, nesse
momento, tinha todo o seu ser somente nele. No livre ato de Adão, a vontade
da raça revoltou-se contra Deus e corrompeu a própria natureza […] O
pecado de Adão é-nos imputado de imediato, portanto, não como algo
externo a nós, mas porque é nosso — nós e todos os outros homens existindo
como uma única pessoa moral ou como um único todo moral, em Adão,
como resultado dessa transgressão, possuindo uma natureza destituída do
amor de Deus e inclinada para o mal”.[28] “Houve um tempo no qual Adão era
a raça, e quando ele caiu, a raça caiu. Shedd: ‘Todos existíamos em Adão em
nossa substância elementar e indivisível. O Seyn de todos nós estava lá,
embora o Daseyn não estivesse; o noumenom, embora não o phenomenom
estava em existência’”.[29]
Deve-se admitir que, se essa fosse de fato a visão correta, ela explicaria
adequadamente os dois aspectos a partir dos quais o fato ou evento únicos
poderiam ser vistos, ou seja, o de que “um pecou” e “todos pecaram”. A
questão é se a evidência relevante serve para apoiar essa construção da
relação adâmica.
Ao se lidar com essa posição realista e com o debate entre seus
proponentes e os defensores da visão representativa da relação entre Adão e
sua posteridade, é indispensável estabelecer qual seja o ponto crucial do
debate na perspectiva apropriada. Às vezes a questão fica confusa por não se
reconhecer que os proponentes da representação como visão contrária à
perspectiva realista não negam, antes sustentam, que Adão seja o cabeça
natural da raça, bem como sua cabeça representativa. Quer dizer, eles
afirmam que a raça está de forma única e seminal em Adão e que essa união
representativa não é abstraída da união seminal. Francis Turretine, por
exemplo, é bem explícito a esse respeito. Apesar de defender que o
fundamento da imputação do pecado de Adão seja principalmente “moral e
federal”, ele não deixa de levar em consideração a liderança natural, que
procede da unidade de origem, e o fato de todos serem do mesmo sangue. Foi
da vontade de Deus que Adão fosse “a origem e o Cabeça de toda a raça
humana” e por essa razão se diz que “todos são um único homem”.[30] A
questão na qual insistem os proponentes da liderança representativa de Adão
é que a união natural ou seminal sozinha não é suficiente para explicar a
imputação do pecado de Adão à posteridade. Nesse aspecto particular, eles
concordam com os proponentes da união realista, porque esta também insiste
na necessidade de mais do que unidade de origem.
Além disso, os proponentes da representação não defendem apenas a
união seminal, mas insistem também na comunhão de natureza. Em outras
palavras, a união natural está envolvida na liderança natural da cabeça e, por
isso, eles dirão que a natureza humana se corrompeu em Adão e que ela,
corrompida em Adão, é transmitida à posteridade pela geração natural. Mas
quanto ao termo “natureza humana”, a diferença não está em os proponentes
da representação negarem a comunhão da natureza, nem em negarem também
que a natureza humana corrompida em Adão propaga-se aos membros da
raça. A diferença está apenas em que o realismo mantém em Adão a
existência da natureza humana como entidade específica e numericamente
única, e nesse aspecto os expoentes da representação discordam.
Portanto, o xis da questão não é se a visão representativa não leva em
conta a união seminal, a liderança natural ou a comunhão de natureza na
unidade existente entre Adão e a posteridade, mas só e exclusivamente se o
algo mais necessário, postulado pelas duas visões, deve ser interpretado em
termos da entidade que em sua totalidade existia em Adão e está
individualizada nos membros da raça, ou nos termos da representação
estabelecida pela ordenação divina. É sobre essa questão específica que o
debate deve se debruçar. Não há dúvida que, quanto a esse aspecto restrito,
outras questões vêm à tona, mas são relativamente subordinadas e periféricas.
A confusão só pode ser evitada se a questão crucial for avaliada e discutida
com base nos dados pertinentes.
Quando se percebe que o aspecto peculiar do realismo é o conceito da
natureza humana como específica e numericamente única em Adão, o apelo
dos realistas aos teólogos do passado para sustentar essa posição não é jamais
tão válido quanto possa parecer. Por exemplo, A. H. Strong diz que “Calvino
era essencialmente agostiniano e realista” e apela às Institutas (II.i-iii) para
validar essa alegação.[31] De fato, Calvino afirma que toda a posteridade de
Adão torna-se culpada devido à falta (culpa) de um único. Ele refere-se ao
pecado de um só como comum.[32] Todos estão mortos em Adão, diz ele, e,
portanto, comprometidos com a ruína do pecado dele. E, nesse caso, também
sustenta Calvino, todos devem ser responsabilizados pela culpa da
iniquidade, porque não há condenação quando não há culpa.[33] Adão imergiu
toda a sua descendência nas mesmas desgraças das quais ele mesmo se
tornou herdeiro. Se atribuirmos a tais expressões a mais plena abrangência e
as interpretarmos como implicando que o único pecado de Adão é o pecado
de todos, não há prova nenhuma que Calvino tenha concebido a união
existente entre Adão e a posteridade em termos realistas. Calvino, no entanto,
não nos deixa em dúvida quanto ao seu entendimento sobre o envolvimento
da posteridade no pecado de Adão, ou, em outras palavras, como o pecado de
Adão torna-se no pecado de todos. Calvino estava ciente da objeção
levantada contra a doutrina de que o pecado de Adão envolvia a raça em
ruína, ou seja, que a posteridade recebe a culpa de um pecado cometido por
outrem e não da sua própria transgressão pessoal.[34] Mas ele não enfrentou
essa objeção alegando que o pecado em questão não era exclusivo de Adão,
mas também da específica e numericamente única natureza humana, que, em
sua totalidade indivisível, existia em Adão e pertencia a cada membro da raça
tanto quanto ao próprio Adão. E não deve haver dúvidas acerca da resposta
positiva dada por ele à questão sobre como fomos envolvidos no pecado de
Adão; ele não se cansa de repetir. É por efeito que derivamos de Adão, pela
geração natural e propagação, a natureza corrompida. O conceito chave é a
depravação hereditária. Adão com o seu pecado corrompeu sua própria
natureza e todos nós com o nosso nascimento estamos infectados por esse
contágio.[35] “Temos ouvido que a impureza dos pais é transmitida aos filhos
de sorte que todos, sem nenhuma exceção, estão conspurcados desde o
próprio princípio. Mas só devemos encontrar a origem dessa mácula se
retrocedermos até o primeiro pai de todos, como à fonte. Portanto, é certo que
Adão não era só o progenitor da natureza humana, mas era a raiz, e, por isso,
a raça humana foi arruinada na corrupção dele.”[36] Adão “contaminou toda a
sua semente com a corrupção na qual ele caíra”.[37] “Por isso, de uma raiz
putrefata brotam ramos putrefatos, os quais transmitem a sua podridão para
os outros ramos que brotam deles.”[38] A figura, obviamente, é a propagação
de um contágio a partir de uma fonte corrompida. Mesmo assim Calvino
toma o cuidado de afirmar que a corrupção pessoal de Adão não nos
pertence; o fato é simplesmente que ele nos contamina com a depravação na
qual ele havia caído.[39] Sem nenhuma dúvida, portanto, de acordo com
Calvino, o pecado pelo qual a posteridade está arruinada é a depravação que
foi originada do pecado de Adão, a natureza humana corrompida que é
consequência da apostasia de Adão e nos é comunicada e transfundida pela
reprodução. E não é sem razão de alguma importância que ele recorre a
Agostinho para apoiar sua argumentação. “Por isso alguns homens bons, e
acima de todos Agostinho, trabalharam ardorosamente nessa questão para
mostrarem que somos corrompidos não pele perversidade adquirida, mas que
trazemos a depravação inata desde o ventre da nossa mãe.”[40]
Neste momento, não temos o propósito de sustentar que Calvino deu
devidamente conta da relação da raça com o pecado individual de Adão.
Agora, só nos interessa mostrar que a ênfase de Calvino na depravação
hereditária, e na corrupção de nossa natureza que emana do pecado de Adão,
não é prova de que ele defendia a concepção realista da união adâmica. A
visão representativa de nossa relação com Adão insiste em adotar tudo quanto
Calvino propõe acerca da propagação da depravação hereditária e o faz em
termos calvinistas.
Os realistas também apelam confiadamente para Agostinho como um
dos proponentes da posição realista. Não temos o interesse nem a intenção de
demonstrar que Agostinho entretém concepções realistas. No entanto, é
indispensável mostrar que suas declarações sobre a matéria, citadas ou
mencionadas pelos proponentes do realismo, não põem termo à questão.
Agostinho de fato diz que “todos pecaram, já que todos eram aquele único
homem”.[41] Talvez esta próxima citação dê apoio mais evidente do que
qualquer outra à interpretação realista da posição de Agostinho. “Deus, autor
da natureza e não de depravações, criou o homem reto, mas o homem,
corrompendo-se por sua própria vontade e, condenado com justiça, gerou
filhos corrompidos e condenados. Porque todos estávamos naquele único
homem, pois éramos todos esse único homem, o qual caiu em pecado por
conta da mulher feita a partir dele antes do pecado. Pois ainda não fora criada
nem distribuída para nós a forma particular em que, como indivíduos,
devíamos viver, mas ali já estava presente a natureza seminal da qual
devíamos ser reproduzidos, e por estar ela corrompida pelo pecado, presa
pelos grilhões da morte e justamente condenada, o homem não poderia nascer
de outro homem em condição diferente. Assim, do mal uso do livre-arbítrio
surge o rastilho dessa calamidade que conduz a raça humana através de uma
combinação de desgraças desde sua origem corrompida, como se procedesse
de uma raiz corrupta, para a destruição da segunda morte, que não tem fim,
da qual se excetuam os libertados pela graça de Deus.”[42] Mas ao se
examinar os contextos desse tipo de citações, notar-se-á que o supremo
interesse de Agostinho, bem como o de Calvino, é negar que seja pela
imitação que a ofensa de Adão aplica-se à condenação de todos, e provar que
o pecado foi transmitido do primeiro homem para os outros homens por meio
da reprodução.[43] Referindo-se a Paulo, ele escreve: “‘por um só homem’,
ele diz, ‘entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte’. Isso fala de
reprodução, não de imitação, porque, se fosse pela imitação, ele teria dito,
‘pelo maligno’”.[44] “Assim pois, ele, em quem todos recebem vida, além de
oferecer a si mesmo como exemplo de retidão para seus imitadores, dá
também aos que nele creem a graça oculta de seu Espírito, a qual graça
infunde em segredo até mesmo em bebês; semelhantemente, portanto, aquele
em quem todos morrem, além de servir de exemplo para a imitação dos que
transgridem deliberadamente o mandamento do Senhor, despojou também na
própria pessoa todos quantos vêm de sua linhagem, por meio da oculta
corrupção de sua própria concupiscência carnal. É inteiramente por isso, e
por nenhuma outra razão, que o apóstolo afirma: ‘por um só homem entrou o
pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a
todos os homens, porque todos pecaram’.”[45]
Portanto, embora Agostinho afirme que todos os da posteridade de
Adão sejam esse único homem, que a raça humana inteira estava no primeiro
homem,[46] e que todos pecaram em Adão quando eram ali esse único
homem,[47] quando ele define mais especificamente o pecado pelo qual todos
pecaram em Adão e através do qual a morte passou a todos, ele o faz em
termos de pecado original ou depravação hereditária transmitida de Adão à
sua semente pela reprodução. A razão por que se diz que a posteridade pecou
em Adão é que a “natureza seminal”,[48] a partir da qual todos devem ser
reproduzidos, fora conspurcada em Adão quando existia somente nele. E,
portanto, quando Agostinho faz a exegese de Romanos 5.12 e de modo
particular a exegese de “em quem todos pecaram”, seu conceito mais preciso
é que Adão “corrompeu […] em si mesmo pela corrupção oculta de sua
concupiscência carnal todos quantos vêm de sua linhagem”[49] e que essa
corrupção propaga-se pela geração natural.
Quando se admite isso, a ideia de que o pensamento de Agostinho
segue o padrão realista não fica tão evidente. Na última análise, ele retrocede
à noção do pecado original como algo transmitido. Além disso, devemos ter
em mente que o conceito de que a natureza humana foi corrompida em Adão
sendo transmitida à posteridade pela reprodução não é monopólio dos
realistas. Os proponentes da teoria da representação apegam-se a essa
doutrina com tanta tenacidade quanto os realistas. Embora seja verdade que
algumas das expressões de Agostinho se encaixariam de pronto na concepção
realista da união adâmica, não há evidência clara nem conclusiva nessas
citações de ele conceber a base lógica do nosso envolvimento no pecado de
Adão como consistindo na participação da natureza humana, como
específica e numericamente um, no pecado de Adão. Ele, sem dúvida,
concebeu a natureza humana como tendo-se corrompido em Adão e como
transmitida a nós, mas esses dois conceitos não são idênticos e não conseguir
diferençá-los só leva à confusão e à má compreensão do status quaestionis.
Se a característica distintiva do realismo foi posta em foco e se a
questão em pauta foi apresentada na devida perspectiva, nós mesmos
podemos agora nos voltar para examinar como o realismo se aplica ao nosso
tópico. Pode-se repetir que, caso se revelasse como certo, o realismo daria a
explicação adequada às duas formas como um evento único pode ser visto,
isto é, o de que “um pecou” e também “todos pecaram”. No entanto, existe
alguma prova capaz de sustentar essa construção do relacionamento de um
para muitos?
(i) W. G. T. Shedd sustenta que não é razoável considerar a união
representativa de Adão e da posteridade como a base apropriada para a
imputação do seu pecado, pois isso seria “um ato arbitrário de soberania”.
Mas somos forçados a perguntar se a noção de natureza humana, específica e
numericamente uma, como “substância invisível elementar”, alivia de alguma
forma a dificuldade implicada. Porque a real questão é como os membros
individuais da raça podem levar a culpa de um pecado no qual, como
indivíduos, não participaram pessoal nem voluntariamente. Além disso, os
realistas são obrigados a admitir que os membros individuais da raça não têm
parte pessoal e voluntária no pecado dessa natureza humana, da forma como
existia em sua unidade em Adão. O pecado da humanidade genérica está tão
longe do pecado individual dos membros da posteridade quanto está o pecado
de uma cabeça representativa e isso pela simples razão de que, como
indivíduos, a posteridade ainda não existia. Em outras palavras, é tão difícil
estabelecer o nexo entre o pecado da humanidade genérica e os membros da
raça, quanto é estabelecer o nexo entre o pecado de Adão como cabeça
representativa e os membros da raça. Afinal, a humanidade genérica,
conforme existia em Adão, é natureza humana não individualizada impessoal.
(ii) A analogia instituída em Romanos 5.12-19 (cf. 1Co 15.22)
apresenta uma objeção formidável à construção realista. Os realistas admitem
que não há união “realista” entre Cristo e os justificados. Quer dizer, não há
natureza humana, específica e numericamente única, cuja unidade exista em
Cristo, que se acha individualizada nos beneficiários da retidão do Salvador.
No entanto, segundo as premissas realistas, deve-se supor uma disparidade
radical entre o caráter da união existente entre Adão e sua posteridade, por
um lado, e a união existente entre Cristo e os que lhe pertencem, por outro.
Em Romanos 5.15-19, as diferenças entre o reino de pecado, condenação e
morte, e o reino de retidão, justificação e vida estão em primeiro plano; elas
se evidenciam tanto nas negações dos versículos 15-17 como na ênfase da
superabundância predominante nas provisões da graça. Não há, porém,
indicação sobre que tipo de discrepância predominaria se a distinção entre a
natureza da união nos dois casos fosse tão radical quanto o realista tem de
supor. Em si mesmo, esse argumento de silêncio teria pouco peso, mas o caso
não é meramente questão de não existir indicação desse tipo de diferença; o
paralelismo contínuo milita contra qualquer suposição dessa ordem. Adão é o
tipo daquele que viria (v. 14). Adão como o “um só” está em paralelo com
Cristo como o “um só” (v. 17). A transgressão do “um só” para a condenação
é paralela à obediência do “um só” para a justificação (v. 18). A
desobediência do “um só” é paralela à obediência do “um só” (v. 19). Essa
ênfase contínua — não apenas no “um só” homem Adão e no “um só”
homem Cristo, mas também no “um só pecado” e no “um só ato de justiça”
— aponta para uma identidade básica com respeito ao modus operandi. Mas
se, em um só caso, temos unicidade concentrada na unidade da natureza
humana, conforme postula o realismo, e, no outro caso, unicidade
concentrada no “um só” homem Jesus Cristo, em quem não existe tal
unidade, é difícil não acreditar que a discrepância entra exatamente no ponto
em que a semelhança precisa ser preservada. Pois, afinal, segundo as
suposições realistas, não é a nossa união com Adão a consideração crucial do
nosso envolvimento em seu pecado, mas o nosso envolvimento no pecado
dessa natureza humana que existia em Adão. O que o paralelismo de
Romanos 5.12-19 poderia indicar é que o “um só pecado” do “um só
homem” Adão é análogo, do lado da condenação, ao “um só ato de justiça”
do “um só homem” Jesus Cristo, do lado da justificação. O tipo de
relacionamento que vigora em um caso vigora no outro. E como seria isso
possível, se o tipo de relacionamento é tão diferente no que tange à natureza
da união subsistente?
Não é objeção válida ao argumento precedente sacado do paralelismo
em Romanos 5.12-19 afirmar que — devido à incontestável distinção entre a
relação de Adão com a raça e a relação de Cristo com os seus — não há razão
para que a distinção ulterior postulada pelo realismo seja inconsistente com o
paralelismo da passagem considerada. A distinção indubitável é que Adão
sustenta uma relação genética com toda a raça e todos estão seminalmente
unidos a ele e são derivados dele. Situações que não vigoram na relação de
Cristo com o seu povo. No entanto, a razão por que essa consideração não
afeta o argumento, em termos de debate entre realistas e representacionistas,
não é o fato da relação genética seminal que constitui o terreno específico de
nosso envolvimento no “um só pecado” do “um só homem” Adão, tanto para
os realistas como para os expoentes da representação. Para os realistas ela é
união realista; para os representacionistas ele é união representativa. No caso
de Romanos 5.12-19 é a questão da base sobre a qual o “um só pecado” de
Adão se aplicar à condenação de todos e o “um só ato de justiça” de Cristo se
aplicar à justificação de todos quantos são de Cristo. Nem os realistas nem os
representacionistas sustentam que, no caso do pecado de Adão, a base é o
fato de Adão ser o progenitor natural da raça. O interesse de ambos é a base
específica da imputação do pecado de Adão, e, com respeito ao paralelo
traçado em Romanos 5.12-19, a questão é se a base específica postulada
pelos realistas para essa imputação é compatível com a analogia instituída
pelo apóstolo entre o “um só pecado” do “um só homem” para a condenação
e o “um só ato de justiça” do “um só homem” Jesus Cristo para a justificação.
O caráter específico da união que serve de base específica para condenação e
justificação é a questão em debate.
(iii) Quando perguntamos sobre que prova a Escritura forneceu sobre
existir em Adão essa “substância elementar invisível” chamada de natureza
humana interpretada como específica e numericamente uma, não sabemos
como achá-la. Somos verdadeiramente um com Adão, em termos de Hebreus
7.9-10 estávamos todos nos lombos de Adão, ele é o primeiro pai de toda a
humanidade, e existe seminalmente a unidade de Adão e sua posteridade.
Adão foi o primeiro a ser dotado de natureza humana e transmitiu essa
natureza humana a toda sua descendência pela procriação natural. Tudo isso é
defendido tanto por representacionistas como por realistas e acha-se apoiado
na Escritura. Mas o postulado adicional da parte dos realistas, o pressuposto
indispensável à sua posição distintiva, não é dos que podem apelar ao amparo
da evidência bíblica. Além disso, não é um postulado indispensável à
explicação dos fatos trazidos à nossa atenção na revelação bíblica. A união
existente entre Adão e a posteridade é tal que pode ser interpretada em termos
para os quais há evidência suficiente nos dados da revelação à nossa
disposição.
(iv) O argumento dos realistas, de que só a doutrina da unidade
específica da raça em Adão lança, em termos de justiça, a base apropriada
para a imputação do pecado de Adão à posteridade e a alegação deles de que
a imputação do pecado de um representante vicário à posteridade viola a
ordem da justiça[50] não leva em conta, o tanto quanto é preciso, o que nossos
relacionamentos solidários ou corporativos envolvem. Os realistas admitem
que seu postulado da unidade específica mostra-se verdadeiro apenas no caso
de Adão e sua posteridade. Ademais, eles também precisam admitir que
existem relacionamentos solidários em outras instituições nas quais nunca se
faz presente a unidade específica exemplificada em Adão. Todavia, se
analisarmos as responsabilidades implicadas nesses outros relacionamentos
solidários e as avaliarmos em termos bíblicos, deveremos descobrir que a
responsabilidade moral recai nos membros de uma entidade corporativa em
virtude das ações dos representantes, ou do representante, dessa entidade.[51]
Portanto, a negação da imputação do pecado vicário vai de encontro ao modo
como opera o princípio da solidariedade em outras esferas. Além disso, não é
válido insistir que o pecado vicário só pode ser imputado quando há a
disposição voluntária para se aceitar tal imputação.[52] O relacionamento
corporativo existe por instituição divina, e as responsabilidades corporativas
existem e vigoram absolutamente à parte de as pessoas envolvidas as
assumirem ou não de modo voluntário. É só porque ignoramos a onipresença
da responsabilidade corporativa e não damos importância às implicações
dessa responsabilidade que podemos estar prontos a aquiescer ao argumento
de que o pecado de um representante não nos pode ser imputado. Já que o
princípio é aplicável a Adão, não é difícil perceber que a imputação de
pecado com base em sua posição representativa seria aplicada de forma
exclusiva e universal. Isso seria apenas a ampliação para toda a raça humana,
nos termos da sua solidariedade em Adão, de um princípio exemplificado
muitas vezes em relacionamentos corporativos mais restritos.
2. A visão representativa
2. A imputação imediata
V. O PECADO IMPUTADO
Quando se fala do pecado de Adão como imputado à posteridade, admite-se
que em lugar algum das Escrituras nossa relação com a transgressão de Adão
é expressamente definida sob a ótica da imputação. E, visto que este é o caso,
o ensino bíblico a respeito do envolvimento da raça no primeiro pecado de
Adão não pode ser prejudicado ou distorcido pelo uso do termo “imputação”,
se este não transmitir de maneira adequada ou precisa o significado bíblico. O
vocábulo, entretanto, tem sido amplamente usado neste contexto e não há um
bom motivo para abandonar este uso. A Escritura não emprega a noção de
imputação referindo-se ao juízo que Deus entretém e registra no caso da
pessoa que pecou ou que é pecadora. Isso vale para ambos os Testamentos
(cf. Lv 17.4; Sl 32.12; Rm 4.18; 2Co 5.19). As expressões negativas no
sentido de que Deus não imputa pecado àquele cujos pecados são perdoados
implica que Deus não imputa pecado e que a bênção do perdão consiste na
anulação desta imputação. Ademais, não podemos nos esquecer de que,
mesmo na passagem a que particularmente nos dedicamos, a ideia de
imputação está claramente enunciada. “O pecado não é imputado onde não há
lei” (Rm 5.13), implicando, evidentemente, que o pecado é imputado onde
quer que ocorra transgressão da lei. Daí poder-se afirmar biblicamente o juízo
de Deus com referência ao pecado, ao dizer que Deus imputa o pecado, e isso
significa que ele considera o pecador culpado do pecado que lhe pertence ou
que é cometido por ele. Se dissermos que a transgressão de Adão é imputada
à posteridade, todos podemos estrita e propriamente encarar como
significando que o pecado de Adão é considerado por Deus também como o
pecado da posteridade. O mesmo pecado é posto na conta deles; é
reconhecido como deles. Não podemos permitir nenhuma associação
arbitrária que possa ser anexada à palavra “imputação” a fim de complicar ou
obscurerer o significado simples do termo “imputar”. Se for aplicado, neste
significado bíblico, à relação que mantemos com o pecado de Adão, quer
dizer simplesmente que este pecado é considerado por Deus como nosso. Já
vimos que o ensino de Paulo vem no sentido de que a transgressão de um foi
o pecado de todos, que, quando Adão pecou, todos pecaram. Se todos
pecaram em Adão, Deus avalia que assim foi; e é julgado por Deus pelo que
é. Nada mais, nada menos é o que se pretende dizer com imputação do
pecado de Adão à posteridade. Se restringir-nos à noção bíblica de
imputação, o uso do termo não lança mais luzes sobre as questões que
surgem e que passaremos a discutir do que essas outras expressões
sinônimas. Em outras palavras, não podemos pensar que o termo
“imputação” em si mesmo tem alguma noção diferenciadora que forneça a
solução para o problema do caráter preciso de nosso envolvimento no pecado
de Adão. Assim, nossa pergunta agora é: o que, no juízo divino, foi
considerado como ocorrido no caso da posteridade quando Adão caiu? O
juízo de Deus sempre é conforme a verdade, e o que ele considera como
ocorrido de fato ocorreu. A questão, portanto, é: o que aconteceu? E isso quer
dizer: o que foi imputado à posteridade?
Talvez possamos descobrir o status quaestionis se considerarmos, em
primeiro lugar, a posição um tanto categórica assumida por Charles Hodge.
No século XIX, ninguém entrou no rol dos defensores da doutrina da
imputação imediata com mais vigor do que o Dr. Hodge. Ao tratar da questão
do que foi imputado à posteridade, diz ele: “Quando Adão caiu do estado em
que fora criado, a posteridade caiu com ele em sua primeira transgressão, de
modo que a penalidade por esse pecado veio sobre esta assim como veio
sobre ele. Os homens, portanto, tiveram sua prova em Adão. Tendo ele
pecado, seus descendentes vieram ao mundo em um estado de pecado e
condenação”.[115] Isso claramente equivale a afirmar que a posteridade pecou
e caiu em Adão. Em seu comentário sobre a epístola ao Romanos, há um uso
recorrente de fórmulas como: “todos pecaram quando Adão pecou”, “eram
considerados e tratados como pecadores por causa do pecado dele”,[116] pelo
pecado de Adão todos “fomos rebaixados de nível ou categoria de
pecadores”.[117] Portanto, não pode haver dúvida de que o Dr. Hodge
afirmaria que todos pecaram em Adão e caíram com ele em sua primeira
transgressão. Entretanto, quando explica esta declaração, Hodge também
insiste em que este pecado da posteridade ou, em outras palavras, o pecado de
Adão imputado à posteridade consiste simplesmente na obrigação de
satisfazer à justiça. “Imputar”, diz ele, “é considerar ou por na conta de
alguém... Imputar pecado, no sentido bíblico e teológico, é imputar a culpa do
pecado. E por culpa não se quer dizer criminalidade ou a humilhação moral,
nem o demérito, muito menos a contaminação moral, mas a obrigação
judicial de satisfazer a justiça”.[118] Visto que o Dr. Hodge em outro lugar
discorre em detalhes sobre esta questão do modo mais polêmico,[119] não nos
resta dúvida — ele concebia esta imputação do pecado de Adão à posteridade
como consistindo na obrigação de satisfazer a justiça. O envolvimento da
raça no pecado de Adão, portanto, há de ser interpretado nesses termos
restritos, e a imputação à posteridade há de equivaler à obrigação teológica de
satisfazer à justiça. Em termos latinos, a imputação não era a culpa do pecado
de Adão, nem o demeritum, mas simplesmente o reatus, especificamente o
reatus poenae.
O Dr. Hodge, ao discutir acerca desta interpretação do significado de
imputação podia recorrer às declarações de outros na tradição reformada. Ele
cita, por exemplo, John Owen, que diz de modo claríssimo: “Nada se
pretende com a imputação do pecado a alguém senão a retribuição daqueles
justamente antipáticos à punição devida por aquele pecado”.[120] No entanto,
surgem questões vinculadas a esta equação. A primeira é de exegese. Temos
razão em interpretar as expressões fundamentais “todos pecaram” e “muitos
se tornaram pecadores” (Rm 5.12, 19) neste sentido estrito, a saber, “foram
postos sob a obrigação de satisfazer à justiça”?
Naturalmente, não há problema senão que a imputação de pecados traz
consigo o reatus, a obrigação de satisfazer à justiça. Não podemos,
entretanto, ignorar o fato de que Paulo, em Romanos 5.12-19, usa não apenas
expressões que implicam a consequência penal do pecado, mas também
expressões que implicam envolvimento no próprio pecado. Como vimos
observando repetidamente no curso deste estudo, Paulo não só leva em
consideração a morte como incidindo sobre todos e reinando sobre todos por
meio de uma transgressão (v. 12, 14, 15, 17) nem só a condenação como
recaindo sobre todos mediante uma única transgressão, mas também o fato de
que todos se tornaram pecadores. Ou seja, não só o salário do pecado recai
sobre todos, não só o juízo de condenação pesa sobre todos, mas todos são
acusados do pecado que é a base do juízo condenatório e do qual a morte é o
salário. A imputação mencionada no versículo 13 significava meramente a
obrigação de satisfazer à justiça, a reatus poenae, e então teria bastado que
Paulo falasse de morte e condenação. Na realidade, ele não está satisfeito
com o pensamento de consequência penal; ele lança as bases de toda
predicação à luz das consequências nas proposições, “todos pecaram”,
“muitos se tornaram pecadores” (v. 12, 19), e, por implicação, “o pecado foi
imputado a todos” [porque todos pecaram] (v. 13). É esta nítida progressão
de pensamento que nos impede de admitir como certo que proposições no
sentido de que “todos pecaram” ou “se tornaram pecadores” possam ser
interpretadas simplesmente como “foram postos sob a sentença de
condenação” ou “tornaram-se judicialmente sujeitos às sanções da justiça”.
É verdade que há expressões no Antigo Testamento em que o termo para
pecado é usado no sentido de ser considerado como pecador. A estes apela o
Dr. Hodge (Gn 43.9; 44.32; 1 Reis 1.21) e conclui: “Pecar, portanto, ou ser
um pecador, pode, em linguagem bíblica, significar ser julgado um ofensor,
ou seja, ser considerado e tratado como tal”.[121] Mas não é evidente que tais
textos signifiquem simplesmente estar sujeitos à punição que as respectivas
situações contemplavam, e não podemos pressupor que ser contado como
pecador, no sentido empregado na Escritura ou na teologia, possa reduzir-se à
noção de obrigação para satisfazer à justiça. Ademais, embora se conceda que
“visitar a iniquidade dos pais nos filhos” (Êx 20.5; 34.7; Nm 14.18; cf. Jr
32.18; Lm 5.7) refere-se a nada mais do que carregar a pena dos pecados dos
pais, não podemos concluir que nada mais esteja implicado nas expressões
paulinas de Romanos 5.12, 13, 19 do que que a posteridade está sujeita à
punição do pecado de Adão.[122] No mínimo, portanto, somos postos sob a
necessidade de exercer cautela e hesitação antes de admitir que os termos
“pecaram” e “tornaram-se pecadores” (Rm 5.12, 19) devam ser interpretados
meramente como denotando a obrigação de satisfazer à justiça.
Há outra consideração derivada do paralelo que o apóstolo institui nesta
passagem que deve levantar suspeita quanto à adequação da fórmula que
Hodge emprega. O paralelo à imputação do pecado de Adão é a imputação da
justiça de Cristo. Ou, para usar os próprios termos de Paulo, “tornaram-se
pecadores” mediante a desobediência de Adão está em paralelo com
“tornaram-se justos” mediante a obediência de Cristo. Na justificação,
segundo a teologia reformada e segundo a própria posição do Dr. Hodge, não
está simplesmente o benefício jurídico da justiça ou obediência de Cristo que
é imputada aos crentes, mas a própria justiça. Reduzir a imputação à
consequência jurídica seria esvaziar a doutrina paulina da justificação de seu
significado central e mais precioso. A consequência jurídica flui da
imputação da própria justiça, e as duas não podem ser equiparadas.
Deveríamos esperar essa mesma distinção e sequência do outro lado do
paralelo, isto é, a imputação do pecado de Adão. E é o mesmo tipo de
distinção que as expressões paulinas confirmam.
É irrelevante no presente estágio de nossa discussão apelar para o fato de que
não somos feitos justos subjetiva e moralmente pela imputação da obediência
de Cristo. Pois a questão agora é se ser constituído justos por meio da
obediência de Cristo envolve mais do que a consequência judicial daquele ato
constituinte e se este não é senão o resultado de um fato anterior que deve,
pela natureza do caso, ser distinguido da consequência judicial. A única
observação necessária neste estágio é que decerto há espaço para um conceito
de ser “feito justo” que não o de ser feito subjetiva e moralmente justo, um
conceito que cai na categoria da relação forense e que não deve ser explicado
meramente à luz da recompensa ou consequência correspondente. E, de modo
semelhante, havemos de deixar espaço para um conceito de ser “feito
pecadores” que é anterior à nossa obrigação de satisfazer à justiça e não pode
ser reduzido, em sua definição, a esta obrigação resultante.
Pode-se entender prontamente por que o Dr. Hodge, em sua vigorosa defesa
da doutrina da imputação imediata, deve ter definido imputação como a
obrigação de satisfazer a justiça. Ele foi confrontado com a objeção de que a
imputação imediata envolvia a noção de que, a partir daí, somos
representados como pessoal e voluntariamente participantes no primeiro
pecado de Adão. E a uma suposição assim há a óbvia objeção de que, quando
Adão pecou, nós, sua posteridade, não existíamos como agentes pessoais
voluntários e não se podia conceber que agíssemos assim de modo pessoal e
voluntário. Além disso, ele teve de enfrentar a objeção de que a imputação
imediata supunha a transferência do caráter moral de Adão à posteridade. Ele
foi enfático em sua negação de tal implicação com base, com a qual seus
adversários concordavam, em que a qualidade moral de uma ação não pode
ser transferida do perpetrador a outro que não seja o verdadeiro perpetrador.
Negando, portanto, ambas as alegações a respeito do significado da
imputação imediata, ele tinha de definir a imputação em termos que
patentemente evitassem essas duas noções. O conceito que lhe apareceu para
definir esta diferenciação e que ao mesmo tempo correspondia ao ensino
bíblico era aquele do reatus, a obrigação de satisfazer à justiça.
Havia também outra razão por que o Dr. Hodge era tão zeloso com este
conceito definidor: a analogia entre a imputação do pecado de Adão à
posteridade e a imputação de nossos pecados a Cristo quando este
vicariamente tomou os nossos pecados sobre si. Este argumento aparece
repetidas vezes em suas polêmicas. Uma citação deve bastar. “Quando se diz
que nossos pecados foram imputados a Cristo, ou que Ele levou sobre si
nossos pecados, não significa que Ele realmente tivesse cometido nossos
pecados, ou fosse moralmente criminoso em decorrência disso, ou que o
demérito de nossos pecados estivesse sobre Ele… E quando lemos que o
pecado de Adão é imputado à sua posteridade, não significa que eles pecaram
esse pecado, ou que foram os agentes de seu ato, nem se pretende que sejam
moralmente criminosos pela transgressão dele… significa simplesmente que,
em virtude da união entre ele e seus descendentes, seu pecado é a base
judicial da condenação de sua raça”.[123]
No entanto, permanece a questão de se o Dr. Hodge, ao defender-se contra
mal-entendidos ou interpretações errôneas da doutrina da imputação
imediata, fez justiça aos dados bíblicos e, em seu zelo por uma diferenciação
aguda entre imputação, de um lado, e participação pessoal ou transferência de
caráter moral, de outro, não hipersimplificou o problema e deixou de fora
certa implicação de nossa relação com o pecado de Adão, enunciado, por
exemplo, na expressão “tornaram-se pecadores” (Rm 5.19). E há também a
questão de se a analogia da assunção vicária de nossos pecados por Cristo
proporciona uma base para a inferência precisa que o Dr. Hodge extrai dela.
Afinal, há uma singularidade no fato de Cristo ter tomado sobre si nossos
pecados, e, embora sem dúvida haja uma analogia, pode muito bem ser que
devamos ter de descobrir uma distinção no ponto em que o Dr. Hodge insiste
em identidade.
Em conexão com a insistência de Hodge em que a obrigação de satisfazer à
justiça define para nós o que está envolvido na imputação do pecado de
Adão à posteridade, não há só a questão exegética; também nos perguntamos
se a posição de Hodge representa adequadamente o pensamento dos teólogos
reformados e, mais particularmente, o pensamento daqueles que têm sido
expoentes da imputação imediata. Há que se admitir que esta não é uma
pergunta simples. Há particularmente a dificuldade relacionada ao significado
preciso da palavra “culpa” conforme usada neste ponto. E de considerável
importância é a definição do termo latino reatus, e sua relação com culpa, de
um lado, e poena, de outro.
Se examinarmos o ensino de John Owen, a quem, por exemplo, Hodge apela,
descobriremos que certas posições tomadas por Owen em sua exposição da
imputação pareceriam, no mínimo, consideravelmente diferentes das do Dr.
Hodge. A citação de Owen já apresentada concorda com a insistência de
Hodge em que a culpa imputada à posteridade é a obrigação moral de
satisfazer à justiça. Pode-se citar algo mais de Owen nesta linha. Entretanto,
no contexto daquela mesma citação, Owen também diz: “Mas que os homens
sejam sujeitos à morte, o que não é nada senão a punição do pecado, quando
não pecaram, é uma flagrante contradição. Pois, embora Deus, por seu poder
soberano, possa infligir morte a uma criatura inocente, é impossível que uma
criatura inocente seja culpada da morte: para ser culpado da morte, há que ter
pecado. Porquanto nesta expressão, ‘todos pecaram’, que expressa o
merecido castigo e a culpa da morte quando o pecado e a morte entraram no
mundo, nenhum pecado pode ser incluído nela senão o pecado de Adão, e
nosso interesse nessa questão: ‘Eramus enimomnes ille unus homo’; e isso
não pode ser de outro modo a não ser pela imputação da culpa do pecado
sobre nós”.[124] O pensamento a ser notado aqui é a insistência em que não
pode haver obrigação à pena do pecado sem o pecado, que é o próprio
fundamento daquela obrigação. Isso quer dizer que a obrigação à penalidade
não pode ocorrer a menos que um pecado a anteceda. Decerto isso implica
que a imputação do pecado de Adão a nós não pode ser definida à luz da
obrigação de penalidade; esta é o efeito da imputação. Mais uma vez, em
referência à distinção entre culpa e poena, diz Owen: “Tampouco há algo de
peso na distinção de ‘reatus culpae’ e ‘reatus poenae’; pois esta ‘reatus
culpae’ não é nada senão ‘dignitas poenae propter culpam’... Assim, portanto,
não pode haver punição, nem ‘reatus poenae’, a culpa, mas onde há ‘reatus
culpae’, ou pecado considerado com sua culpa...”.[125] Esta última citação
convenientemente introduz-nos ao que pode muito bem ser considerado o
consenso dos teólogos reformados dos séculos XVI e XVII.
A rejeição de Owen da distinção entre reatus culpae e reatus poenae reflete-
se na antipatia difusa a esta distinção entre os teólogos protestantes. Essa
antipatia brotou do recuo contra o abuso romano dessa distinção pela qual foi
lançado o fundamento da doutrina da satisfação penitencial ou purgativa —
em perdão do pecado, a culpa é remida, mas, para a poena temporal dos
pecados pós-batismais, deve-se cumprir a satisfação nesta vida ou no
purgatório.[126] Mas ainda mais importante para o assunto em pauta é o modo
como os teólogos reformados concebiam as relações entre culpa, reatus e
poena, e mais particularmente, sua insistência em que não pode haver poena
ou, aliás, reatus poenae separada da culpa.
Sobre as relações desses três elementos, a definição de Van Mastricht é
representativa e, em todo caso, mais sucinta: “Reatus, portanto, é o medium
quid entre culpa e poena, pois surge da culpa e leva à poena, de maneira que
é ao mesmo tempo reatus de culpa e de poena e, como meio, intervém entre
esses dois termos e toma seu nome de ambos igualmente”.[127] Reatus
portanto é a imputabilidade na punição que surge da culpa que o pecado
acarreta. Embora não seja impróprio falar de reatus culpae, não se pode
pensar nisso como um reatus distinto de reatus poenae pois, na realidade, o
reatus culpae é simplesmente o reatus poenae. Em nossos termos, a sujeição
acarretada na culpabilidade não é outra senão a obrigação à punição, a
obrigação de satisfazer à justiça. Deveríamos esperar desta definição das
relações de culpa, reatus e poena que não se pode conceber reatus poenae à
parte da culpa. Mas os teólogos reformados têm sido muito zelosos em
insistir neste princípio e não é supérfluo citar algumas das copiosas
evidências que a teologia reformada fornece em apoio deste princípio.
O princípio em questão é claramente enunciado por Calvino. Nos primeiros
capítulos do livro II das Institutas, ele está tratando especificamente do tema
do pecado original e da depravação hereditária, e é neste ponto que ele dá
vazão ao axioma em pauta. No entanto, afirma-se como princípio que detém
uma verdade geral. Do pecado original com o qual os bebês são afligidos, ele
diz: “Donde se segue que o pecado seja propriamente censurado ante os olhos
de Deus, uma vez que não seria reprovado (reatus) se fosse ausente a culpa”.
[128]
Isso quer dizer que não há imputabilidade de pena sem culpabilidade. A
partir daí, como princípio geral, ele argumenta em favor da pecaminosidade
da depravação em que os infantes nascem.
Jerome Zanchius, ao tratar da imputação da desobediência de Adão a nós, é
explícito. Suas palavras são: “Portanto, dizemos que esta desobediência,
embora não pudesse ser-nos transmitida como ato, todavia foi-nos
transmitida como culpa e reatus mediante imputação, à medida que aquele
pecado de Adão como nosso cabeça nos imputa, e isso de modo muitíssimo
merecido, como os membros”.[129] Mais uma vez, “a desobediência de Adão
recai sobre nós como culpa e reatus”.[130]
A Leyden Synopsis é igualmente explícita quando diz: “A forma do pecado
original consiste naquela transgressão e desobediência pela qual todos os que
estavam em Adão... pecaram com ele; a desobediência e culpa com seu
reatus resultante foram justamente imputados por Deus como juiz a todos os
filhos de Adão, à medida que todos eram e são um com ele”.[131]
Embora Amesius não faça uso do termo culpa neste ponto, é interessante
notar os termos em que ele fala da imputação e como ele distingue entre a
imputação e a transmissão que se dá por meio da geração natural. “Esta
propagação do pecado consiste em duas partes, a saber, a imputação e a
transmissão real. Por imputação, o mesmo ato singular de desobediência, que
foi de Adão, torna-se também nosso. Por transmissão real, não chega a nós o
mesmo pecado singular, mas o mesmo em tipo ou de razão e natureza
semelhantes”.[132]
Turretine, também, afirma o mesmo princípio em pelo menos dois pontos. Ao
refletir sobre a falsidade da distinção romana entre reatus culpae e reatus
poenae ele diz que:
a futilidade da distinção transparece na natureza de ambas; visto que a
culpabilidade [culpa] e o castigo [poena] se relacionam, e a culpa [reatus] nada
mais é que a obrigação para com o castigo [poena] oriundo da culpabilidade
[culpa], mutuamente impõem e removem uma à outra, de modo que a
culpabilidade [culpa] e a culpa [reatus], sendo removidas, o próprio castigo
[poena] deve ser removido (porquanto o castigo [poena] só pode ser infligido em