Você está na página 1de 93

A imputação do pecado de Adão

John Murray
Por que somos punidos pelo pecado de Adão? A resposta pode ser encontrada em Romanos
5, e a exposição do argumento de Paulo feita por John Murray é a melhor que já vi. Murray
mostra claramente o paralelo entre a imputação divina do pecado de Adão a nós e a
imputação divina da justiça de Cristo a nós. Sem o pecado de Adão não haveria
necessidade da cruz de Cristo.
— John Frame
A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é um clássico em sua área.
Fundamentado na Bíblia, claro, convincente e humilhante é historicamente fiel,
intelectualmente estimulante e espiritualmente edificante. Trata-se de uma leitura
obrigatória — um livro fundamental para entender por implicação a imputação da justiça
de Cristo. Já era hora de o livro aparecer em português!
— Joel R. Beeke

O livro A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é um clássico na tradição da


teologia reformada. A exposição cuidadosa da teologia paulina do pecado feita por Murray
— em especial a exegese atenciosa de Romanos 5 — nos ajuda a entender a profundidade
total de nossa depravação. A doutrina não é desencorajadora; em última análise, seu caráter
é esperançoso, pois a imputação também significa nossa salvação: a justiça de Cristo nos é
imputada pela fé.
— Philip Ryken
É-nos muito fácil apresentar desculpas. Pensamos que, se nascemos perversos assim, no
caminho da rebelião contra Deus — à semelhança dos demais —, como podemos ser
culpados? Contudo, a Bíblia ensina que não só o pecado de Adão nos prejudica, mas
também que somos responsáveis por nossa condição. De maneira semelhante, Jesus, nosso
Salvador, não nos concede apenas nova vida, mas liberdade da culpa para que possamos
viver com o Deus santo. Isso é vital para nossa fé, mas precisamos de ajuda concreta a fim
de compreender tudo isso e sermos gratos! John Murray nos dá essa ajuda, de forma que o
coração de cada um de nós transborde de gratidão repleta de alegria.
— D. Clair Davis
A imputação do pecado de Adão, de John Murray, é uma das obras mais importantes já
escritas sobre o assunto. Ela não fornece apenas exegese bíblica sólida do material bíblico
relevante, mas também excelente análise histórica e teológica. Murray mostra que Adão
não é apenas um “modelo de ensino”, como algumas interpretações atuais alegam, e que a
continuidade Adão-Cristo é essencial para o entendimento adequado do pecado, da
redenção e da imputação.
— Paul Wells
Copyright @ 2019, Editora Monergismo
Publicado originalmente em inglês sob o título
The Imputation of Adam’s Sin
pela Wm. B. Eerdmans Publishing Co.,
Grand Rapids, Michigan, 49505, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
EDITORA MONERGISMO

1ª edição, 2019
Tradução: Marcos Vasconcelos e William Campos da Cruz (Cap. 4)
Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Bárbara Lima Vasconcelos

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Murray, John
A imputação do pecado de Adão / John Murray, tradução Marcos Vasconcelos e William Campos da Cruz —
Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.
Título original: The Imputation of Adam’s Sin

ISBN 978-85-69980-93-3

1. Teologia 2. Antropologia 3. Novo Testamento I. Título


CDD 230
Sumário
Prefácio
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Sobre o autor
12
Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo,
e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os
homens, porque todos pecaram. 13Porque até ao regime da lei havia
pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há
lei. 14Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre
aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual
prefigurava aquele que havia de vir. 15Todavia, não é assim o dom
gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram
muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só
homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos. 16O dom,
entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o
julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça
transcorre de muitas ofensas, para a justificação. 17Se, pela ofensa de
um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a
abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de
um só, a saber, Jesus Cristo. 18Pois assim como, por uma só ofensa,
veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também,
por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a
justificação que dá vida. 19Porque, como, pela desobediência de um só
homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da
obediência de um só, muitos se tornarão justos.
Romanos 5-12-19
Prefácio
O material apresentado nas páginas seguintes foi publicado em quatro
edições sucessivas do The Westminster Theological Journal, XVIII, 2; XIX,
1 e 2; e XX, 1. Quero expressar minha dívida para com o editor, Rev.
Professor Ned B. Stonehouse, pela generosidade de aceitar os artigos para a
publicação e pelo zelo de ler e examinar os manuscritos. Sou igualmente
devedor ao Supervisor Editorial, Rev. Professor Paul Wooley, por seu
empenho e zelo na correção das provas tipográficas. Ao Conselho Diretor do
Seminário Teológico Westminster, estendo minha cordial gratidão pela
concessão de licença de trabalho durante 1955 e 1956. Foi a concessão da
desobrigação de outros compromissos durante esse período que me permitiu
realizar parte da pesquisa exigida para escrever este estudo.
Estendo aqui meu débito de gratidão aos seguintes editores por me
permitirem citações de livros com copirraite: à Muhlenberg Press, Filadelfia,
Commentary on Romans (1949), de Anders Nygren; à Lutterworth Press,
Londres, The Christian Doctrine of Creation and Redemption, Dogmatics II
(1952), de Emil Brunner; à B. Herder Book Company, St. Louis, Canons and
Decrees of the Council of Trent (1941), de H. J. Schroeder, e God the Author
of Nature and the Supernatural (1934), de Joseph Pohle, Arthur Preuss (ed.);
à The Macmillan Company, Nova Iorque, The Teaching of the Catholic
Church (1949), de George D. Smith (ed.).
— John Murray
Capítulo Um
A mentalidade teológica da presente era não é apenas hospitaleira à noção de
solidariedade no pecado e na culpa, é também altamente consciente do fato
dessa solidariedade. Ao tratar da doutrina agostiniana do pecado original,
Emil Brunner disse: “Quero deixar claro desde o início minha plena
concordância com o duplo objetivo de Agostinho: representar o pecado como
uma força dominante, e a humanidade como associada juntamente numa
solidariedade de culpa”.[1] E C. H. Dodd, comentando acerca do argumento
de Paulo em Romanos 5.12-21, diz: “O que subjaz a isso é a antiga
concepção de solidariedade. A unidade moral é a comunidade […] e não o
indivíduo […] Dessa maneira, poder-se-ia enxergar toda a humanidade como
a tribo de Adão, e o pecado de Adão era o pecado da raça. Com a crescente
valorização da importância ética do indivíduo, a antiga ideia de solidariedade
enfraqueceu. Ela, no entanto, correspondia a fatos reais. O isolamento do
indivíduo é uma abstração”.[2] “Adão”, continua Dodd, “é para ele (Paulo) o
nome da ‘personalidade corporativa’ da humanidade”.[3] Mas acerca de
Romanos 5.12, eis o que também diz Brunner: “Isso não se refere à
transgressão de Adão, na qual todos os seus descendentes têm parte; mas
declara o fato de todos os descendentes ‘de Adão’ estarem envolvidos com a
morte, pois eles próprios cometem pecado”.[4] Além disso, C. H. Dodd
também pode afirmar: “Dessarte a doutrina paulina de Cristo como ‘segundo
Adão’ não está tão presa ao relato da Queda como acontecimento literal que
deixa de ter sentido quando não mais aceitamos esse relato. Na verdade, não
devíamos assumir tão prontamente que Paulo o aceitasse assim”.[5] Por isso
vemos que o reconhecimento da ênfase dada ao pecado e culpa solidários e
corporativos em nossa teologia atual não devem ser interpretados como
idênticos à doutrina protestante clássica da imputação do pecado de Adão.
Não é proveitoso para a causa da teologia, ou da exegese, considerar o apelo
de Paulo à queda de Adão como uma mera forma mítica para expressar o fato
da unidade solidária no pecado. Não seria fazer mais do que o necessário,
portanto, se tratássemos uma vez mais da questão da imputação do pecado de
Adão à posteridade e do estudo da passagem na qual, mais do que em
qualquer outra, a doutrina se baseia. É animador descobrir em um erudito tão
brilhante como Anders Nygren uma investigação tão capaz de reconhecer o
lugar central que Romanos 5.12-19 ocupa nessa grandiosa epístola.
O paralelismo que Paulo traça entre Adão e Cristo parece tão
estranho e inimaginável que tem despertado nos estudiosos o
desejo de tratarem essa seção como um parêntese. De forma
mais ou menos consciente, os intérpretes têm agido baseados na
suposição de que algo, que de tão estranho à mentalidade
moderna parece irreal, não pode ter sido também de importância
decisiva para Paulo. Para explicar como ele veio a incorrer na
digressão, tem-se feito referência, por exemplo, à importante
posição que a ‘especulação sobre Adão’ veio a exercer na mente
rabínica […] Não devemos esquecer que Paulo leu a respeito de
Adão em uma das primeiras páginas de sua Bíblia; portanto, não
é necessário ir procurar fontes mais remotas da qual a ideia pode
ter vindo […] Paulo não vê Cristo como um Adão redivivo. Ele
situa Adão e Cristo nesse paralelo, não para confirmar a
identidade deles, mas, ao contrário, para demonstrar o contraste
entre eles. Quando se entende o que isso significa para Paulo,
descobre-se de imediato que essa passagem não é jamais um
parêntese ou uma digressão do pensamento apostólico. Ao
contrário, aqui chegamos ao ponto mais alto da epístola. O ponto
no qual todas as linhas do seu raciocínio convergem, tanto as
dos capítulos precedentes como as dos capítulos seguintes.[6]
Ao estudarmos Romanos 5.12-19, em razão de sua pertinência na
questão da imputação do pecado de Adão para a posteridade, agruparemos
nossa discussão nas principais subdivisões seguintes: I. A construção
sintática; II. O pecado contemplado; III. A união envolvida; IV. A natureza
da imputação; V. O pecado imputado.

I. A CONSTRUÇÃO SINTÁTICA
É quase desnecessário defender o fato de o versículo 12 ser uma comparação
em que falta a parte final. Poucos intérpretes contestam essa realidade. A
locução kaiV ou{twv" [ kai Joutws , também assim] no meio do versículo não
tem o efeito de fechar a comparação introduzida por w}sper [ jJwsper , como].
Nesse caso, devíamos ter ou{twv" kaiV [ Joutws kai , assim também] e não
kaiV ou{twv" [ kai Joutws , também assim] (cf. vs. 15, 18, 19, 21 e 6.4, 11). A
locução kaiV ou{twv" [ kai Joutws ] é coordenativa ou continuativa e não
significa “ainda assim”, mas “e assim” ou “e de modo semelhante” (cf. At
7.8; 28.14; 1Co 7.17, 36; 11.28; Gl 6.2). Nem mesmo Pelágio supôs algo
diferente a respeito da sintaxe do versículo 12. O texto latino no qual ele
baseava seus comentários era, nesse particular, fiel ao grego: et ita in omnes
homines [mors] pertransiit.[7]
Não é difícil descobrir a razão por que a comparação introduzida no
versículo 12 tenha sido interrompida. O desenvolvimento do raciocínio de
Paulo exigia um parêntese após a oração finalizadora do versículo 12. Esse
parêntese começa no versículo 17. Bom seria que não considerássemos esses
cinco versículos como um parêntese, mas como dois: o primeiro consistindo
dos versículos 13 e 14; e o segundo, dos versículos 15-17.[8] Quanto à
construção dessa porção parentética deveríamos ter a dizer que o raciocínio
expresso no versículo 12, e de modo especial na última oração, impunha a
necessidade de anexar de imediato os dados citados nos versículos 13 e 14, e
depois, pela vez, o dado tipológico enunciado no final do versículo 14 —
“quem é o tipo daquele que virá” — demandava a definição da série de
similitudes, mas especialmente a definição de contrastes, instituída nos
versículos 15-17. A despeito do modo como interpretarmos esses cinco
versículos, como um ou dois parênteses, é por demais evidente que Paulo não
retorna ao tipo de sintaxe com que começara no versículo 12, mas que fora
interrompida, senão até chegarmos no versículo 18. Temos aqui o término de
uma comparação provida tanto de prótase como de apódose, a primeira
denotada por wJ" [ Jws, como] e a última, por ou{twv" kaiV [ Joutws kai ,
assim também). “Assim, pois, como por uma única transgressão veio a
condenação para todos os homens, assim também por um único ato de reta
justiça, veio para todos os homens a justificação para a vida.”
Não é muito importante determinar se o versículo 18 é continuação ou
recapitulação.[9] É bastante sabermos que Paulo não nos deixa nenhuma
dúvida sobre como teria sido a apódose do versículo 12 caso tivesse sido
completada nos termos da prótase suprida pelo versículo 12. As comparações
dos versículos 18 e 19, quando completadas, põem acima de qualquer dúvida
qual é o raciocínio que rege essa passagem, e que se apresenta nos termos do
raciocínio dominante que a comparação do versículo 12 teria para ser
completado.
Sob exame mais acurado, o parêntesis dos versículos 13-17, que a
princípio parece estranho e desconcertante, estabelece eloquentemente para
nós a exata importância da oração que, afinal de contas, é a mais crucial na
exegese de toda essa passagem, a saber, a última oração do versículo 12. A
interpretação é determinada pelas expressivas repetições dos versículos
subsequentes e, como tivemos ocasião de comentar, nenhuma consideração é
mais pertinente à questão do que o fato de os versículos 13-17 estarem em
forma de parêntesis.
II. O PECADO CONTEMPLADO
O xis da questão com relação a essa passagem é a referência da oração ejf=
w{/ pavnte" h{marton [ ef ’ Jw pantes Jhmarton , porque todos pecaram] no
versículo 12. Essa oração nos informa por que a morte passou a todos os
homens e deveria ser traduzida como “em que todos pecaram”.[10] Em razão
disso, a pergunta é: ao que Paulo se refere quando diz “todos pecaram”? Com
respeito à forma, a expressão em si poderia se referir aos pecados individuais
dos homens (cf. Rm 3.23). Além do mais, se Paulo tinha em mente os
pecados individuais dos homens, essa seria sem dúvida a expressão que ele
teria usado. Nenhuma outra seria mais adequada para expressar esse
pensamento. O sentido, no entanto, não deve ser determinado pela
possibilidade gramatical, mas por considerações contextuais. Há várias visões
acerca da força dessa expressão.
1. A visão pelagiana
Segundo essa perspectiva, a oração em questão se refere aos pecados pessoais
dos homens.[11] Nesse caso, o raciocínio de Paulo seria: assim como Adão
pecou e por isso morreu, assim também todos os homens morrem porque
pecam. Adão é o protótipo: ele pecou e introduziu a morte no mundo. Os
outros, da mesma maneira, pecam e são também afligidos com a morte. A
interação entre pecado e morte, exemplificada em Adão, aplica-se a todo caso
em que houver pecado.
É necessário observar que a estrutura do versículo 12 não desaprova
essa interpretação. Embora, segundo essa visão devíamos esperar que Paulo
usasse ou{tw" kaiV [ Jout ō s kai , assim também] no meio do versículo e não
kaiV ou{tw" [ kai Jout ō s , também assim], ainda assim é possível supor que
Paulo estivesse traçando o paralelismo entre a entrada do pecado e da morte
por meio de Adão e a transmissão do pecado e da morte por meio de todos
sem concluir a comparação nos termos da analogia obtida na esfera oposta de
retidão e vida. Em outras palavras, não é possível apelar à sintaxe do
versículo 12 em si mesma como argumento contra a visão pelagiana. Há, no
entanto, objeções conclusivas em bases factuais, exegéticas e teológicas.
(i) A visão pelagiana não é de fato nem historicamente verdadeira. Nem
todos morrem porque pecam de modo concreto e intencional. Bebês morrem,
mas na realidade não transgrediram à semelhança da transgressão de Adão.
(ii) Nos versículos 13-14, Paulo declara o oposto da visão pelagiana.
Pois aqui somos informados que a morte reinou sobre todos quantos não
pecaram à semelhança da transgressão de Adão. O quê ou quem Paulo tem
em vista é difícil determinar, mas é óbvio que ele está considerando a morte
como exercendo seu poder sobre pessoas que não pecaram da forma como
Adão pecou. É uma futilidade tentar escapar do peso imediato desse fato
sobre a interpretação pelagiana. Paulo está afirmando o contrário, ou seja, que
a morte reina universalmente e, portanto, domina sobre quantos estão numa
categoria diferente da de Adão.[12]
(iii) A refutação mais concludente da interpretação pelagiana deriva-se
das repetidas e enfáticas afirmações de Paulo no contexto imediato, as quais
significam que o domínio universal da condenação e da morte só pode dizer
respeito ao único pecado de um único homem, Adão. Esse princípio é
reafirmado em ao menos cinco ocasiões nos versículos 15-19: “pela
transgressão de um muitos morreram” (v. 15, A21); “o juízo veio de uma só
transgressão para a condenação” (v. 16, A21); “a morte reinou pela
transgressão de um só” (v. 17, A21); “por uma só transgressão veio o
julgamento sobre todos os homens para a condenação” (v. 18, A21); “pela
desobediência de um só homem muitos foram feitos pecadores” (v. 19, A21).
Talvez achemos que Paulo se repetiu sem necessidade, mas essa repetição
estabelece sem nenhuma dúvida que o apóstolo considera que a condenação e
a morte passaram a todos os homens pela transgressão única de um único
homem, Adão. É um tanto impossível interpretar essa ênfase com base no
único pecado de um único homem como equivalente ao pecado pessoal e
intencional de incontáveis indivíduos. Não há dúvidas, portanto, que Paulo
considera a universalidade da condenação e da morte como fundamentada e
procedente de uma única transgressão de um único homem, Adão. A
insistência pelagiana de que a morte e a condenação fundamentam-se
exclusivamente no pecado intencional e pessoal dos indivíduos da raça não
pode ser harmonizado com esse firme testemunho do apóstolo.
(iv) A exegese pelagiana destrói toda a força da analogia instituída por
Paulo nessa passagem. A doutrina que ele ilustra, com o apelo à analogia da
condenação e morte advindas de Adão, é a doutrina segundo a qual os
homens são justificados pela livre graça de Deus, com base na retidão e
obediência de Cristo. Na parte inicial da epístola, Paulo contesta que os
homens sejam justificados por suas próprias obras e estabelece a verdade de
que são justificados e obtêm vida pelo que foi feito por outro, um único
homem, Jesus. Quão vazio e contraditório seria apelar de alguma maneira ao
paralelo tirado da relação de Adão com a raça, se a interpretação pelagiana
fosse a mesma de Paulo; ou seja, que os homens morrem simplesmente por
causa do próprio pecado e jamais com base no pecado de Adão! A doutrina
da justificação apresentada por Paulo seria anulada se, nesse ponto, o paralelo
usado por ele para a ilustrar e confirmar seguisse o modelo da interpretação
pelagiana. Isso significaria que os homens são justificados por sua própria
ação voluntária, da mesma maneira que caem em condenação exclusivamente
por seu próprio pecado voluntário. Isso é sem dúvida doutrina pelagiana, mas
é evidente na própria epístola que tal ensinamento contradiz o ensinamento
de Paulo. A doutrina da justificação estabelecida por essa epístola não pode
tolerar como sua analogia ou paralelo nenhuma interpretação do reino do
pecado, da condenação e da morte que se assemelhe minimamente à doutrina
pelagiana. Por conseguinte, a visão pelagiana tem de ser rejeitada tanto com
base nesse argumento, como nos outros já mencionados.
1. A visão católica romana
Não é possível sustentar que haja unanimidade entre os teólogos católicos
romanos com respeito a Romanos 5.12, ou quanto à parte na qual estamos
mais especificamente interessados. No período do Concílio de Trento,
Ambrósio Catarino defendia posição semelhante à qual, mais adiante,
deveremos propor como a visão correta. Ele sustentava que o pecado referido
no trecho, “porque todos pecaram”, é a transgressão voluntária de Adão
imputada a toda a posteridade em razão do relacionamento pactual firmado
por ele para a raça — quando Adão pecou toda a humanidade pecou nele e
com ele. Ele insistia que o pecado de cada um é ato exclusivo da transgressão
de Adão, não da falta de retidão nem da concupiscência, consequências desse
pecado. É esse pecado de Adão imputado à posteridade que Catarino chamou
de “pecado original” sendo esse o pecado, e ele somente, sustentava ele, que
Paulo tem em vista em Romanos 5.12-19.[13] Alberto Piguio, contemporâneo
de Catarino, defendia a mesma posição. Ele afirmava sem rodeios que muitas
vezes o apóstolo associava o reino da morte e o juízo de condenação, sob o
qual todos nos achamos encerrados, ao único pecado de um único homem,
Adão. Nele, portanto, não em nós, estava o pecado mediante o qual todos nós
pecamos. Até mesmo crianças recém-nascidas são culpadas e pecadoras não
por causa de seu próprio pecado, mas em razão do pecado e desobediência de
Adão.[14]
Essa posição, porém, não é o ensinamento oficial da Igreja Romana, e
seus teólogos seguiram uma linha de raciocínio diferente. O Concílio de
Trento em seu “Decretum de Peccato Originali” diz: “1. Se alguém não
confessar que o primeiro homem, Adão, quando transgrediu a ordenança de
Deus no Paraíso, perdeu de imediato a santidade e a justiça em que fora
constituído, e pela transgressão dessa prevaricação incorreu na ira e
indignação de Deus, e, portanto, na morte com que Deus antes lhe ameaçara,
e, juntamente com a morte, no cativeiro sob o poder daquele que, desde
então, teve o império da morte, qual seja: o Maligno, e que Adão, pela
transgressão dessa prevaricação foi completamente mudado, em corpo e
alma, para pior, seja anátema.
“2. Se alguém afirmar que a transgressão de Adão prejudicou só a ele e
não à sua posteridade, e que a santidade e a justiça que ele recebeu de Deus, e
por ele perdidas, perdeu-as só para si mesmo e não também para nós; ou que
ele, ao ser corrompido pelo pecado de desobediência, transmitiu apenas a
morte e as dores do corpo para toda a raça humana, mas não também o
pecado, o qual é a morte da alma, seja anátema”.[15] Por essas declarações,
poder-se-ia concluir que o pecado de Adão, que é o pecado de todos, é
transmitido a todos os homens por propagação. Obviamente, essa noção é
bastante distinta da ideia de imputação da transgressão de Adão a todos os
homens, conforme abraçadas por Catarino e Piguio.
É essa direção de raciocínio, que aparece nos decretos de Trento, e que
tem sido distintiva dos teólogos romanistas na formulação dessa doutrina.
Não é que Roma negue de toda maneira o fato ou as consequências da
transgressão de Adão. É apenas porque — na interpretação de Romanos 5.12
e do pecado em que todos estão implicados por causa do pecado de Adão —
esse pecado é compreendido não como o pecado pessoal de Adão, que foi
imputado, mas como o pecado habitual transmitido pela geração natural. A
questão é claramente definida por Joseph Pohle: “O pecado de Adão é
original em dois sentidos: (1) como ato pecaminoso pessoal (peccatum
originale originans), e (2) como estado pecaminoso (peccatum originale
originatum). É o estado, não o ato, que é transmitido aos descendentes de
Adão”.[16] O primeiro relaciona-se com o segundo em dois aspectos.
Primeiro, o ato pecaminoso pessoal trouxe à existência o estado pecaminoso;
segundo, o estado pecaminoso é realmente pecaminoso “só na sua ligação
lógica com a transgressão voluntária de Adão contra a ordenança divina no
Paraíso”.[17] Mas é somente “o pecado habitual de Adão (habitus peccati),
que ‘entrou neste mundo’ por meio dele, i.e., foi transmitido por ele a toda
sua descendência”.[18]
Roma reluta em definir com exatidão aquilo em que consiste o pecado
original e o habitual. Até onde se pode arriscar uma definição, concebe-se o
pecado como consistindo principalmente da privação de santidade e de
justiça.[19] No entanto, uma vez que a queda do homem implicou também na
perda de integridade, é difícil aos teólogos romanistas excluírem a
concupiscência do âmbito do pecado original. Assim, conquanto sejam
enfáticos em sustentar que o pecado original não consiste de concupiscência,
[20]
todavia estão dispostos a conceder que a concupiscência, embora não
sendo em si mesma verdadeira e propriamente pecado, está compreendida no
âmbito do pecado habitual.[21]
Após levar em consideração todas essas distinções e qualificações o
desfecho é que na teologia romanista o pecado referido na última parte de
Romanos 5.12 é o pecado habitual ou original, transmitido ou inoculado na
posteridade de Adão pela geração natural e que, quanto à sua natureza, esta
consiste essencialmente da privação de santidade, que pode ser classificada
como pecaminosa, devido à relação lógica que mantém com a transgressão
“voluntária” de Adão.[22] Em suma, o pecado de Romanos 5.12, pelo qual a
morte passou a todos, é a pecaminosidade transmitida.
Não nos interessa no presente momento examinar a doutrina romanista
do pecado original. Sobre essa questão, a luta da Reforma foi acompanhada
de perto e poderia parecer que a situação, da forma que hoje se encontra, não
ofereça a mínima razão para a minimização dessa controvérsia. No entanto,
nossa questão no presente não é se a doutrina de Roma sobre o pecado
original está certa, mas se o que Paulo tem em mente quando diz “porque
todos pecaram” é a noção de pecado original em contraposição à de pecado
imputado. No que tange a isso, estamos investigando a capacidade de defesa
da interpretação cogitada por alguns protestantes, bem como por Roma. Há,
para essa interpretação, objeções determinantes de caráter exegético e
teológico.
(i) Antes de tudo, há um argumento presuntivo. Seria demasiadamente
difícil ajustar a noção em questão à ideia expressa pelo aoristo
h{marton [ jJ ē marton , pecaram]. O pecado original, segundo a interpretação de
Roma ou, quanto a isso, dos protestantes, é transmitido sempre por geração
natural. Quanto à transmissão, o processo é contínuo; quanto ao resultado, a
condição é constante. Se o pecado aludido no trecho em questão for o pecado
original, então tem-se em vista o processo e a condição definidores do
pecado. É difícil, senão impossível, conceber a maneira como um aoristo
histórico ou indefinido seria usado para denotar esse tipo de pecado. A única
maneira de usar esse tempo verbal seria concentrar a atenção na inauguração
histórica desses processo e condição. Mas a interpretação romanista não tanto
assim o raciocínio, e caso tenha-se em mente o pecado original, não seria
viável limitar o raciocínio ao começo definitivo da história. Quanto mais
pensamos nessa objeção, tanto mais irrefutável ela se torna. Todavia, estamos
dispostos a caracterizá-la como provável, mas não conclusiva.
(ii) Mais convincente é a consideração teológica de que essa visão não
se harmoniza com o paralelo ou a analogia que Paulo estabelece na
passagem. A validez desse argumento assenta-se, obviamente, na rejeição
categórica da visão romanista sobre a justificação. Roma considera que a
justificação consiste na regeração e renovação operadas pela infusão da
retidão, e seus teólogos ao lidarem com Romanos 5.12-19 recorrem a esse
conceito de justificação para apoiar a forma como interpretam o versículo 12,
a de que, por conta do pecado de Adão, há na justificação um óbvio paralelo
entre a infusão da retidão e a transmissão do pecado original. Não podemos
agora nos desviar da questão principal para refutar essa doutrina de
justificação. Devemos nos satisfazer com a afirmativa de ser ela totalmente
contrária ao ensino bíblico e paulino. Segundo a doutrina de Paulo, somos
justificados com base na retidão de Cristo e não por alguma retidão infundida
em nós nem tão pouco por alguma retidão efetuada em nós. Em sendo essa a
doutrina do apóstolo, e visto que ele faz um paralelo entre a forma como a
condenação e a morte passam a todos os homens e a forma como a
justificação e a vida passam aos justificados, o modus operandi do último
caso não pode ser considerado análogo à transfusão ou transmissão do pecado
original. O paralelo exigido pela doutrina paulina da justificação tem de ser
de natureza muitíssimo diferente. Por isso, resumindo, a introdução da ideia
de pecado transmitido e herdado no raciocínio de Paulo nessa passagem viola
as exigências da analogia proposta em vez de atendê-las.
(iii) Mais decisiva é a objeção de que a interpretação em debate não é
consistente com as repetidas afirmações de Paulo em Romanos 5.15-19. Já
tivemos ocasião de nos referir a elas ao refutarmos a visão pelagiana. Mas é
bom lembrar que Paulo, em pelo menos cinco ocasiões, em versículos
sucessivos (15, 16, 17, 18, 19), refere-se ao âmbito universal da condenação e
da morte relacionado à ofensa de um só homem, Adão. Essa ênfase
sistemática na “unicidade” do pecado e do homem não se adequa à noção de
pecado original. Apesar de a visão romanista reconhecer que o pecado
original decorre da transgressão concreta de Adão, esse é o pecado que, por
ser transmitido ou transfundido, pertence a todos quantos vêm por geração
natural, não sendo possível considerá-lo como algo que se ajusta a essa
especificação, por ser a ofensa de um só homem, Adão. O que é habitual para
nós, como declaram os teólogos romanistas, dificilmente pode ser
caracterizado como a ofensa de Adão. Por essas razões, temos de rejeitar essa
interpretação da expressão “porque todos pecaram”.

3. A interpretação de Calvino

A forma como Calvino entende o pecado original é radicalmente diferente da


de Roma. Segundo ele, o pecado original transmitido por geração natural é
em si mesmo, intrinsecamente, a depravação radical. A polêmica protestante
direcionava-se com vigor contra a visão romanista, segundo a qual o pecado
original consistia apenas da privação da retidão e integridade originais e que a
concupiscência resultante da perda de integridade não era por si só real e
propriamente pecaminosa. Por sua vez, a polêmica romanista direcionava-se
com igual vigor contra a doutrina protestante de que o pecado original
envolvia a corrupção radical de nossa natureza moral e espiritual. As
respectivas polêmicas desses dois ramos da cristandade devem ser entendidas
sob essa luz e a existência e qualquer possível concordância a respeito da
transgressão concreta de Adão com o pecado original, que a todos faz sofrer,
não deve obscurecer as diferenças acerca da própria natureza do pecado
original.
Embora a visão de Calvino sobre o pecado original difira tão
radicalmente da de Roma, seu modo de ver a expressão crucial de Romanos
5.12, “porque todos pecaram”, é, do ponto de vista exegético, parecida com a
de Roma. Pois o reformador, de modo semelhante, entende que Paulo aqui
está se referindo ao pecado original. “Paulo, contudo, expressamente afirma
que o pecado atingiu a todos os que sofrem o castigo devido ao pecado.
Insiste de forma ainda mais enfática quando logo a seguir aponta a razão por
que toda a progênie de Adão está sujeita ao domínio da morte. É porque
todos nós pecamos. Pecar, como o termo é usado aqui, é ser corrupto e
maligno. A depravação natural que trazemos do ventre de nossa mãe, embora
não produza seus frutos imediatamente, é, não obstante, pecado diante de
Deus, e merece sua punição. Isto é o que se chama pecado original. Assim
como Adão, em sua criação primitiva, recebeu tanto para sua progênie quanto
para si mesmo os dons da divina graça, também, ao rebelar-se contra o
Senhor, inerentemente corrompeu, viciou, depravou e arruinou nossa
natureza — tendo perdido a imagem de Deus, e a única semente que poderia
ter produzido era aquela que traz a semelhança consigo mesmo. Portanto,
todos nós pecamos, visto que nos achamos saturados da corrupção natural, e
por esta razão somos ímpios e perversos”.[23]
As mesmas objeções aplicadas a essa interpretação aplicam-se também
à posição romanista. Embora, na verdade, Calvino não enfrente a dificuldade
encontrada pelos exegetas romanistas ao necessitarem categorizar como
pecado aquilo que inerentemente não cabe na definição de pecado postulada
por eles mesmos, e embora a ideia do reformador sobre o pecado original seja
totalmente paulina e bíblica, ainda assim, do ponto de vista exegético, ele não
conseguiu analisar a ideia exata do apóstolo nessa passagem. Em outras
palavras, ele não conseguiu ir além da tradição agostiniana na exposição de
Romanos 5.12.

4. A interpretação protestante clássica

A questão principal persiste ainda diante de nós: Que pecado Paulo tem em
vista quando ele diz “porque todos pecaram”? Para chegarmos ao que
acreditamos ser a visão apropriada é indispensável que as seguintes
considerações sejam levadas em conta:
(i) É inquestionável que o domínio universal da morte está
representado no versículo 12, tendo-se como base o fato de que “todos
pecaram”. Seja qual for o pecado em questão, ele é a razão por que a morte
passou a todos os homens. E isso significa simplesmente que ele é a base da
universalidade da morte.
(ii) Nos versículos 15-19, no entanto, Paulo afirma com inequívoca
clareza que o reino universal da morte firma-se na única transgressão de um
único homem. “Pela ofensa de um só, morreram muitos” (v. 15); “pela ofensa
de um e por meio de um só, reinou a morte” (v. 17). E, é claro, esse
relacionamento referente à morte está em harmonia e em paralelo com as
outras declarações de Paulo com referência à condenação. “O julgamento
derivou de uma só ofensa para a condenação” (v. 16); “por uma só ofensa,
veio o juízo sobre todos os homens para condenação” (v. 18). A morte e a
condenação reinam sobre todos por causa da única transgressão de Adão.
(iii) Será que devíamos supor que Paulo está tratando de dois fatos
diferentes quando no versículo 12 ele baseia a morte de todos no pecado de
todos e, nos versículos 15 e 17 ele baseia a mesma morte na transgressão
singular de Adão? Deveríamos entender que no versículo 12 Paulo se refere
ao pecado pessoal e individualmente universal, tanto por ação como por
hábito, mas nos versículos 15-19 ele está se referindo ao pecado em sua
singularidade específica como a transgressão única de um único homem,
Adão? A conclusão à qual somos levados pelas considerações exegéticas é
que o caso não pode ser esse, mas, ao contrário, Paulo deve ter em vista o
mesmo pecado quando no versículo 12 diz “todos pecaram” e quando nos
versículos 15-16 ele se refere ao pecado de um só homem. Os argumentos
determinadores dessa conclusão são os seguintes.
(a) A passagem inteira (Rm 5.12-19) forma uma unidade. Não podemos
deixar de ver que sua estrutura central resulta da analogia entre o modus
operandi do pecado, condenação e morte, por um lado, e da retidão,
justificação e vida, pelo outro. Na natureza do caso, uma vez que o último
trio tem o propósito de negar o primeiro, há contrastes importantes e
magníficos, e Paulo raciocina com base neles. No entanto, a linha de
raciocínio é o paralelismo, e até os contrastes se baseiam nessa estrutura. Por
isso, somos forçados a concluir que a comparação introduzida no versículo
12 — embora interrompida e incompleta nos termos expressos em que a
prótase do versículo 12 poderia sugeri e determinar — é quanto ao raciocínio
essencialmente idêntica à declarada de forma completa nos versículos 18 e
19. Isso significa que o pecado ao qual se refere o versículo 12, e de modo
particular na última oração, só pode ser o mesmo pecado identificado no
versículo 18 como “uma só ofensa” e no versículo 19 como “desobediência
de um só homem”. E se recuarmos aos três versículos precedentes (15-17),
tendo em mente a unidade absoluta da passagem, só será possível
concluirmos que os versículos 15 e 17 visam ao mesmo pecado, nos quais é
denominado de ofensa de um só.
(b) O versículo 12 é uma comparação incompleta. Só temos
conhecimento de sua apódose implícita por causa dos versículos seguintes.
Não dá para supor que Paulo, tratando expressamente da questão do reino
universal da morte, afirmasse de forma tão explícita e repetida nos versículos
subsequentes algo bem diferente do que ele afirma no que seria a introdução
incompleta de seu argumento. Se o versículo 12 estivesse em um contexto
exclusivamente dele, e se houvesse alguma evidência plausível da transição
de uma fase do ensino para outra, então poderíamos dizer que no versículo 12
o apóstolo trata de um fato e nos versículos 15-19, de outro. Mas o fato de o
versículo 12 não finalizar a comparação e depender dos versículos seguintes
para substanciar essa inferência impossibilita totalmente qualquer suposição
de transição de uma fase da verdade para outra.
(c) No que tange ao pecado praticado pelo indivíduo, o versículo 14
exclui a possibilidade de interpretar a última oração do versículo 12 nesses
termos. O versículo 12 nos apresenta a razão por que a morte passou a todos
os homens. Qual seja, “todos pecaram”. Mas o versículo 14 nos diz que a
morte reinou sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de
Adão. O reinado da morte no versículo 14 deve ter a mesma importância que
a passagem da morte no versículo 12. Paulo, portanto, está afirmando que a
morte tanto passou aos que não transgrediram pessoal e intencionalmente à
semelhança de Adão, como também reinou sobre eles, e, portanto, o “todos
pecaram” do versículo 12 não pode estar se referindo à transgressão pessoal
individual. Por essas razões somos compelidos a inferir que, ao dizer que
“todos pecaram” (v. 12) e falar na ofensa de um só homem (v. 15-19), Paulo
só pode estar se referindo ao mesmo fato ou evento, de sorte que esse evento
ou fato único pode ser expresso em termos tanto de singularidade como de
universalidade. Se essa identidade nos confronta, como devemos explicá-la?
Como é possível Paulo afirmar que “todos pecaram” e, então, que uma única
pessoa pecou e isso diga respeito ao mesmo fato?
Ao se tentar responder tal pergunta, há um erro específico a ser evitado.
Não devemos diminuir a importância nem da singularidade nem da
universalidade. Paulo usa de linguagem expressiva para as duas. A única
solução é a existência obrigatória de algum tipo de solidariedade entre “um
só” e “todos” de sorte que o pecado em questão seja considerado — ao
mesmo tempo e com igual relevância — como o pecado de “um só” ou o
pecado de “todos”. O que vem a ser essa solidariedade é o assunto da
próxima parte principal de nossa defesa.
Capítulo Dois
III. A UNIÃO ENVOLVIDA

O princípio da solidariedade está embutido e exemplificado na Escritura de


muitas maneiras. Não é necessário enumerar os casos em que ele aparece. É
evidente o fato de haver no governo de Deus sobre os homens as instituições
da família, do Estado e da igreja nas quais predominam e funcionam relações
solidárias e conjuntas. Isso quer dizer apenas que as relações de Deus com os
homens e as relações dos homens uns com os outros não são exclusivamente
individualistas; Deus lida com os homens nos termos desses relacionamentos
grupais e os homens precisam lidar com seus relacionamentos e
responsabilidades grupais.
Há também a instituição do indivíduo, e não fazer caso de nossa
individualidade é profanar nosso relacionamento responsável com Deus e
com os homens. O princípio da solidariedade pode ser exagerado, pode
tornar-se uma obseção e levar ao abuso fatalista (cf. Ez 18.2). Todo esse tipo
de exagero é perverso, mas é também maligno conceber nossas relações com
Deus e os homens de forma atomística, sem darmos o devido valor às
entidades grupais, as quais, em grande medida, condicionam nossa vida e
responsabilidade. A solidariedade funciona tanto para o bem como para o
mal. É quase desnecessário lembrar das influências benéficas decorrentes da
sua aplicação no âmbito da graça. O projeto, realização, aplicação e
consumação da redenção foi modelado nos termos desse princípio. E, no
âmbito do mal, é um fato, tanto da revelação como da observação, que Deus
visita “a iniquidade dos pais nos filhos daqueles que” o odeiam (Êx 20.5).
É em consonância com esses fatos da revelação bíblica e da nossa
experiência humana que o princípio da solidariedade deveria alcançar sua
expressão mais ampla e mais inclusiva em solidariedade racial, e não
deveríamos nos surpreender por achar nesse caso a solidariedade prototípica.
A solidariedade racial é a única construção possível a partir dos vários dados
que a Escritura traz a nossa atenção. Paulo dá testemunho incisivo desse fato
ao afirmar que “em Adão, todos morrem” (1Co 15.22), e é esse mesmo
relacionamento solidário que forma o pano de fundo do pensamento do
apóstolo, quando este afirma que: “O primeiro homem, Adão, foi feito alma
vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante” (1Co 15.45).
Se levarmos em consideração o fato da solidariedade racial e, portanto,
o relacionamento solidário que Adão mantém com a posteridade e a
posteridade com ele, aceitaríamos com menos relutância, para dizer o
mínimo, a proposição de que o pecado “de um só” em Adão pode muito bem
ser interpretado como o “pecados de todos”.
Mas o fato da solidariedade não determina para nós a questão de sua
natureza. Qual é a natureza da união que existia entre Adão e a posteridade?
De qualquer ponto de vista biblicamente orientado tem-se por certo que de
Adão, por meio da geração natural, procederam todos os demais membros da
raça humana, que Adão foi o pai natural de toda a humanidade. Afirmar que a
união entre Adão e a posteridade é biológica e genealógica e que nada mais é
exigido para explicar os fatos pode parecer a resposta adequada à nossa
indagação. Isso quer dizer que Adão era a “raiz natural” de toda a
humanidade. Levi estava nos lombos de Abraão, seu pai, quando este pagou o
dízimo a Melquisedeque, podendo-se dizer, portanto, que Levi pagou dízimo
a Melquisedeque (Hb 7.9, 10). De forma semelhante, todos estavam nos
lombos de Adão quando ele pecou e, portanto, pode-se dizer que todos
pecaram nele e caíram com ele em sua primeira transgressão. Nesse caso, não
é possível alegar que o fato do relacionamento seminal é irrelevante. Não
podemos supor que dizer que a solidariedade da raça com Adão — a razão de
todos estarem envolvidos em seu pecado — seria verdadeira se ele não fosse
o pai de toda a humanidade. Nenhum outro princípio de solidariedade que se
possa supor ou estabelecer não pode ser abstraído do fato da ancestralidade
biológica.
Exegetas e teólogos não se contentam em explicar a solidariedade com
Adão simplesmente nos termos de nossa descendência dele. Eles têm sido
obrigados a postular alguma relação solidária diferente da genealógica como
base necessária apropriada para o envolvimento no pecado de Adão, seja esse
outra relação concebida coordenadamente com o relacionamento
genealógico, ou como sendo em si mesmo a base específica da imputação do
primeiro pecado de Adão. Há duas visões dessa relação dignas de serem
avaliadas com seriedade, sendo talvez as únicas que possam reclamar
consideração. Uma afirma que a natureza humana era numérica e
especificamente uma em Adão; e a outra, que Adão era o cabeça e
representante constituído para toda a raça humana.

1. A visão realista
Talvez o expoente e defensor mais competente da visão de que a natureza
humana era numérica e especificamente uma em Adão seja William G. T.
Shedd. “A doutrina da unidade específica de Adão e sua posteridade”, diz ele,
“remove as maiores dificuldades relacionadas com a imputação do pecado de
Adão à sua posteridade, decorrentes da injustiça de castigar alguém por causa
de um pecado em que não se teve nenhuma participação”.[24] E ao contestar a
visão representativa, ele afirma: “Imputar o primeiro pecado de Adão a sua
posteridade tão só e unicamente porque Adão pecou como representante em
lugar dela, torna a imputação um ato arbitrário de soberania, não um ato
jurídico de justiça que porta em si moralidade e justiça intrínsecos”.[25]
Resumindo a posição, a natureza humana em sua unidade não
individualizada existia em sua inteireza em Adão, por isso quando Adão
pecou, não somente ele pecou, mas também a natureza comum existente nele
em sua unidade, e, como toda pessoa vinda ao mundo é uma individualização
dessa natureza humana única, cada uma como “parcela individualizada”
dessa natureza comum é culpada e passível de castigo por causa do pecado
cometido por essa unidade.[26] “Essa unidade comete o primeiro pecado […]
Esse pecado é imputado à unidade que o cometeu, é inerente à unidade, sendo
propagado por ela. Por conseguinte, todos os aspectos particulares
concernentes ao pecado aplicáveis à unidade ou à natureza comum, aplica-se
de forma igual e estrita a cada uma de suas parcelas individualizadas.
Sócrates, individualmente, era parte fracionária da natureza humana que
‘pecou em, e caiu com, Adão em sua primeira transgressão’ […] Portanto, a
comissão, imputação, inerência e propagação do pecado original adere
indissoluvelmente à parte individualizada da natureza comum, da mesma
maneira que ao seu todo não individualizado. A distribuição e propagação da
natureza não lhe causa nenhuma alteração, exceto com respeito à forma”.[27]
A visão de A. H. Strong tem quase o mesmo efeito. Ele a denomina de
teoria augustiniana e afirma que “ela sustenta que Deus imputa o pecado de
Adão imediatamente a toda sua posteridade, em virtude dessa unidade
orgânica da humanidade, pela qual toda a raça, no momento da transgressão
de Adão, existia, não individualmente, mas seminalmente nele, como o seu
cabeça. Toda a vida da humanidade estava, então, em Adão; a raça, nesse
momento, tinha todo o seu ser somente nele. No livre ato de Adão, a vontade
da raça revoltou-se contra Deus e corrompeu a própria natureza […] O
pecado de Adão é-nos imputado de imediato, portanto, não como algo
externo a nós, mas porque é nosso — nós e todos os outros homens existindo
como uma única pessoa moral ou como um único todo moral, em Adão,
como resultado dessa transgressão, possuindo uma natureza destituída do
amor de Deus e inclinada para o mal”.[28] “Houve um tempo no qual Adão era
a raça, e quando ele caiu, a raça caiu. Shedd: ‘Todos existíamos em Adão em
nossa substância elementar e indivisível. O Seyn de todos nós estava lá,
embora o Daseyn não estivesse; o noumenom, embora não o phenomenom
estava em existência’”.[29]
Deve-se admitir que, se essa fosse de fato a visão correta, ela explicaria
adequadamente os dois aspectos a partir dos quais o fato ou evento únicos
poderiam ser vistos, ou seja, o de que “um pecou” e “todos pecaram”. A
questão é se a evidência relevante serve para apoiar essa construção da
relação adâmica.
Ao se lidar com essa posição realista e com o debate entre seus
proponentes e os defensores da visão representativa da relação entre Adão e
sua posteridade, é indispensável estabelecer qual seja o ponto crucial do
debate na perspectiva apropriada. Às vezes a questão fica confusa por não se
reconhecer que os proponentes da representação como visão contrária à
perspectiva realista não negam, antes sustentam, que Adão seja o cabeça
natural da raça, bem como sua cabeça representativa. Quer dizer, eles
afirmam que a raça está de forma única e seminal em Adão e que essa união
representativa não é abstraída da união seminal. Francis Turretine, por
exemplo, é bem explícito a esse respeito. Apesar de defender que o
fundamento da imputação do pecado de Adão seja principalmente “moral e
federal”, ele não deixa de levar em consideração a liderança natural, que
procede da unidade de origem, e o fato de todos serem do mesmo sangue. Foi
da vontade de Deus que Adão fosse “a origem e o Cabeça de toda a raça
humana” e por essa razão se diz que “todos são um único homem”.[30] A
questão na qual insistem os proponentes da liderança representativa de Adão
é que a união natural ou seminal sozinha não é suficiente para explicar a
imputação do pecado de Adão à posteridade. Nesse aspecto particular, eles
concordam com os proponentes da união realista, porque esta também insiste
na necessidade de mais do que unidade de origem.
Além disso, os proponentes da representação não defendem apenas a
união seminal, mas insistem também na comunhão de natureza. Em outras
palavras, a união natural está envolvida na liderança natural da cabeça e, por
isso, eles dirão que a natureza humana se corrompeu em Adão e que ela,
corrompida em Adão, é transmitida à posteridade pela geração natural. Mas
quanto ao termo “natureza humana”, a diferença não está em os proponentes
da representação negarem a comunhão da natureza, nem em negarem também
que a natureza humana corrompida em Adão propaga-se aos membros da
raça. A diferença está apenas em que o realismo mantém em Adão a
existência da natureza humana como entidade específica e numericamente
única, e nesse aspecto os expoentes da representação discordam.
Portanto, o xis da questão não é se a visão representativa não leva em
conta a união seminal, a liderança natural ou a comunhão de natureza na
unidade existente entre Adão e a posteridade, mas só e exclusivamente se o
algo mais necessário, postulado pelas duas visões, deve ser interpretado em
termos da entidade que em sua totalidade existia em Adão e está
individualizada nos membros da raça, ou nos termos da representação
estabelecida pela ordenação divina. É sobre essa questão específica que o
debate deve se debruçar. Não há dúvida que, quanto a esse aspecto restrito,
outras questões vêm à tona, mas são relativamente subordinadas e periféricas.
A confusão só pode ser evitada se a questão crucial for avaliada e discutida
com base nos dados pertinentes.
Quando se percebe que o aspecto peculiar do realismo é o conceito da
natureza humana como específica e numericamente única em Adão, o apelo
dos realistas aos teólogos do passado para sustentar essa posição não é jamais
tão válido quanto possa parecer. Por exemplo, A. H. Strong diz que “Calvino
era essencialmente agostiniano e realista” e apela às Institutas (II.i-iii) para
validar essa alegação.[31] De fato, Calvino afirma que toda a posteridade de
Adão torna-se culpada devido à falta (culpa) de um único. Ele refere-se ao
pecado de um só como comum.[32] Todos estão mortos em Adão, diz ele, e,
portanto, comprometidos com a ruína do pecado dele. E, nesse caso, também
sustenta Calvino, todos devem ser responsabilizados pela culpa da
iniquidade, porque não há condenação quando não há culpa.[33] Adão imergiu
toda a sua descendência nas mesmas desgraças das quais ele mesmo se
tornou herdeiro. Se atribuirmos a tais expressões a mais plena abrangência e
as interpretarmos como implicando que o único pecado de Adão é o pecado
de todos, não há prova nenhuma que Calvino tenha concebido a união
existente entre Adão e a posteridade em termos realistas. Calvino, no entanto,
não nos deixa em dúvida quanto ao seu entendimento sobre o envolvimento
da posteridade no pecado de Adão, ou, em outras palavras, como o pecado de
Adão torna-se no pecado de todos. Calvino estava ciente da objeção
levantada contra a doutrina de que o pecado de Adão envolvia a raça em
ruína, ou seja, que a posteridade recebe a culpa de um pecado cometido por
outrem e não da sua própria transgressão pessoal.[34] Mas ele não enfrentou
essa objeção alegando que o pecado em questão não era exclusivo de Adão,
mas também da específica e numericamente única natureza humana, que, em
sua totalidade indivisível, existia em Adão e pertencia a cada membro da raça
tanto quanto ao próprio Adão. E não deve haver dúvidas acerca da resposta
positiva dada por ele à questão sobre como fomos envolvidos no pecado de
Adão; ele não se cansa de repetir. É por efeito que derivamos de Adão, pela
geração natural e propagação, a natureza corrompida. O conceito chave é a
depravação hereditária. Adão com o seu pecado corrompeu sua própria
natureza e todos nós com o nosso nascimento estamos infectados por esse
contágio.[35] “Temos ouvido que a impureza dos pais é transmitida aos filhos
de sorte que todos, sem nenhuma exceção, estão conspurcados desde o
próprio princípio. Mas só devemos encontrar a origem dessa mácula se
retrocedermos até o primeiro pai de todos, como à fonte. Portanto, é certo que
Adão não era só o progenitor da natureza humana, mas era a raiz, e, por isso,
a raça humana foi arruinada na corrupção dele.”[36] Adão “contaminou toda a
sua semente com a corrupção na qual ele caíra”.[37] “Por isso, de uma raiz
putrefata brotam ramos putrefatos, os quais transmitem a sua podridão para
os outros ramos que brotam deles.”[38] A figura, obviamente, é a propagação
de um contágio a partir de uma fonte corrompida. Mesmo assim Calvino
toma o cuidado de afirmar que a corrupção pessoal de Adão não nos
pertence; o fato é simplesmente que ele nos contamina com a depravação na
qual ele havia caído.[39] Sem nenhuma dúvida, portanto, de acordo com
Calvino, o pecado pelo qual a posteridade está arruinada é a depravação que
foi originada do pecado de Adão, a natureza humana corrompida que é
consequência da apostasia de Adão e nos é comunicada e transfundida pela
reprodução. E não é sem razão de alguma importância que ele recorre a
Agostinho para apoiar sua argumentação. “Por isso alguns homens bons, e
acima de todos Agostinho, trabalharam ardorosamente nessa questão para
mostrarem que somos corrompidos não pele perversidade adquirida, mas que
trazemos a depravação inata desde o ventre da nossa mãe.”[40]
Neste momento, não temos o propósito de sustentar que Calvino deu
devidamente conta da relação da raça com o pecado individual de Adão.
Agora, só nos interessa mostrar que a ênfase de Calvino na depravação
hereditária, e na corrupção de nossa natureza que emana do pecado de Adão,
não é prova de que ele defendia a concepção realista da união adâmica. A
visão representativa de nossa relação com Adão insiste em adotar tudo quanto
Calvino propõe acerca da propagação da depravação hereditária e o faz em
termos calvinistas.
Os realistas também apelam confiadamente para Agostinho como um
dos proponentes da posição realista. Não temos o interesse nem a intenção de
demonstrar que Agostinho entretém concepções realistas. No entanto, é
indispensável mostrar que suas declarações sobre a matéria, citadas ou
mencionadas pelos proponentes do realismo, não põem termo à questão.
Agostinho de fato diz que “todos pecaram, já que todos eram aquele único
homem”.[41] Talvez esta próxima citação dê apoio mais evidente do que
qualquer outra à interpretação realista da posição de Agostinho. “Deus, autor
da natureza e não de depravações, criou o homem reto, mas o homem,
corrompendo-se por sua própria vontade e, condenado com justiça, gerou
filhos corrompidos e condenados. Porque todos estávamos naquele único
homem, pois éramos todos esse único homem, o qual caiu em pecado por
conta da mulher feita a partir dele antes do pecado. Pois ainda não fora criada
nem distribuída para nós a forma particular em que, como indivíduos,
devíamos viver, mas ali já estava presente a natureza seminal da qual
devíamos ser reproduzidos, e por estar ela corrompida pelo pecado, presa
pelos grilhões da morte e justamente condenada, o homem não poderia nascer
de outro homem em condição diferente. Assim, do mal uso do livre-arbítrio
surge o rastilho dessa calamidade que conduz a raça humana através de uma
combinação de desgraças desde sua origem corrompida, como se procedesse
de uma raiz corrupta, para a destruição da segunda morte, que não tem fim,
da qual se excetuam os libertados pela graça de Deus.”[42] Mas ao se
examinar os contextos desse tipo de citações, notar-se-á que o supremo
interesse de Agostinho, bem como o de Calvino, é negar que seja pela
imitação que a ofensa de Adão aplica-se à condenação de todos, e provar que
o pecado foi transmitido do primeiro homem para os outros homens por meio
da reprodução.[43] Referindo-se a Paulo, ele escreve: “‘por um só homem’,
ele diz, ‘entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte’. Isso fala de
reprodução, não de imitação, porque, se fosse pela imitação, ele teria dito,
‘pelo maligno’”.[44] “Assim pois, ele, em quem todos recebem vida, além de
oferecer a si mesmo como exemplo de retidão para seus imitadores, dá
também aos que nele creem a graça oculta de seu Espírito, a qual graça
infunde em segredo até mesmo em bebês; semelhantemente, portanto, aquele
em quem todos morrem, além de servir de exemplo para a imitação dos que
transgridem deliberadamente o mandamento do Senhor, despojou também na
própria pessoa todos quantos vêm de sua linhagem, por meio da oculta
corrupção de sua própria concupiscência carnal. É inteiramente por isso, e
por nenhuma outra razão, que o apóstolo afirma: ‘por um só homem entrou o
pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a
todos os homens, porque todos pecaram’.”[45]
Portanto, embora Agostinho afirme que todos os da posteridade de
Adão sejam esse único homem, que a raça humana inteira estava no primeiro
homem,[46] e que todos pecaram em Adão quando eram ali esse único
homem,[47] quando ele define mais especificamente o pecado pelo qual todos
pecaram em Adão e através do qual a morte passou a todos, ele o faz em
termos de pecado original ou depravação hereditária transmitida de Adão à
sua semente pela reprodução. A razão por que se diz que a posteridade pecou
em Adão é que a “natureza seminal”,[48] a partir da qual todos devem ser
reproduzidos, fora conspurcada em Adão quando existia somente nele. E,
portanto, quando Agostinho faz a exegese de Romanos 5.12 e de modo
particular a exegese de “em quem todos pecaram”, seu conceito mais preciso
é que Adão “corrompeu […] em si mesmo pela corrupção oculta de sua
concupiscência carnal todos quantos vêm de sua linhagem”[49] e que essa
corrupção propaga-se pela geração natural.
Quando se admite isso, a ideia de que o pensamento de Agostinho
segue o padrão realista não fica tão evidente. Na última análise, ele retrocede
à noção do pecado original como algo transmitido. Além disso, devemos ter
em mente que o conceito de que a natureza humana foi corrompida em Adão
sendo transmitida à posteridade pela reprodução não é monopólio dos
realistas. Os proponentes da teoria da representação apegam-se a essa
doutrina com tanta tenacidade quanto os realistas. Embora seja verdade que
algumas das expressões de Agostinho se encaixariam de pronto na concepção
realista da união adâmica, não há evidência clara nem conclusiva nessas
citações de ele conceber a base lógica do nosso envolvimento no pecado de
Adão como consistindo na participação da natureza humana, como
específica e numericamente um, no pecado de Adão. Ele, sem dúvida,
concebeu a natureza humana como tendo-se corrompido em Adão e como
transmitida a nós, mas esses dois conceitos não são idênticos e não conseguir
diferençá-los só leva à confusão e à má compreensão do status quaestionis.
Se a característica distintiva do realismo foi posta em foco e se a
questão em pauta foi apresentada na devida perspectiva, nós mesmos
podemos agora nos voltar para examinar como o realismo se aplica ao nosso
tópico. Pode-se repetir que, caso se revelasse como certo, o realismo daria a
explicação adequada às duas formas como um evento único pode ser visto,
isto é, o de que “um pecou” e também “todos pecaram”. No entanto, existe
alguma prova capaz de sustentar essa construção do relacionamento de um
para muitos?
(i) W. G. T. Shedd sustenta que não é razoável considerar a união
representativa de Adão e da posteridade como a base apropriada para a
imputação do seu pecado, pois isso seria “um ato arbitrário de soberania”.
Mas somos forçados a perguntar se a noção de natureza humana, específica e
numericamente uma, como “substância invisível elementar”, alivia de alguma
forma a dificuldade implicada. Porque a real questão é como os membros
individuais da raça podem levar a culpa de um pecado no qual, como
indivíduos, não participaram pessoal nem voluntariamente. Além disso, os
realistas são obrigados a admitir que os membros individuais da raça não têm
parte pessoal e voluntária no pecado dessa natureza humana, da forma como
existia em sua unidade em Adão. O pecado da humanidade genérica está tão
longe do pecado individual dos membros da posteridade quanto está o pecado
de uma cabeça representativa e isso pela simples razão de que, como
indivíduos, a posteridade ainda não existia. Em outras palavras, é tão difícil
estabelecer o nexo entre o pecado da humanidade genérica e os membros da
raça, quanto é estabelecer o nexo entre o pecado de Adão como cabeça
representativa e os membros da raça. Afinal, a humanidade genérica,
conforme existia em Adão, é natureza humana não individualizada impessoal.
(ii) A analogia instituída em Romanos 5.12-19 (cf. 1Co 15.22)
apresenta uma objeção formidável à construção realista. Os realistas admitem
que não há união “realista” entre Cristo e os justificados. Quer dizer, não há
natureza humana, específica e numericamente única, cuja unidade exista em
Cristo, que se acha individualizada nos beneficiários da retidão do Salvador.
No entanto, segundo as premissas realistas, deve-se supor uma disparidade
radical entre o caráter da união existente entre Adão e sua posteridade, por
um lado, e a união existente entre Cristo e os que lhe pertencem, por outro.
Em Romanos 5.15-19, as diferenças entre o reino de pecado, condenação e
morte, e o reino de retidão, justificação e vida estão em primeiro plano; elas
se evidenciam tanto nas negações dos versículos 15-17 como na ênfase da
superabundância predominante nas provisões da graça. Não há, porém,
indicação sobre que tipo de discrepância predominaria se a distinção entre a
natureza da união nos dois casos fosse tão radical quanto o realista tem de
supor. Em si mesmo, esse argumento de silêncio teria pouco peso, mas o caso
não é meramente questão de não existir indicação desse tipo de diferença; o
paralelismo contínuo milita contra qualquer suposição dessa ordem. Adão é o
tipo daquele que viria (v. 14). Adão como o “um só” está em paralelo com
Cristo como o “um só” (v. 17). A transgressão do “um só” para a condenação
é paralela à obediência do “um só” para a justificação (v. 18). A
desobediência do “um só” é paralela à obediência do “um só” (v. 19). Essa
ênfase contínua — não apenas no “um só” homem Adão e no “um só”
homem Cristo, mas também no “um só pecado” e no “um só ato de justiça”
— aponta para uma identidade básica com respeito ao modus operandi. Mas
se, em um só caso, temos unicidade concentrada na unidade da natureza
humana, conforme postula o realismo, e, no outro caso, unicidade
concentrada no “um só” homem Jesus Cristo, em quem não existe tal
unidade, é difícil não acreditar que a discrepância entra exatamente no ponto
em que a semelhança precisa ser preservada. Pois, afinal, segundo as
suposições realistas, não é a nossa união com Adão a consideração crucial do
nosso envolvimento em seu pecado, mas o nosso envolvimento no pecado
dessa natureza humana que existia em Adão. O que o paralelismo de
Romanos 5.12-19 poderia indicar é que o “um só pecado” do “um só
homem” Adão é análogo, do lado da condenação, ao “um só ato de justiça”
do “um só homem” Jesus Cristo, do lado da justificação. O tipo de
relacionamento que vigora em um caso vigora no outro. E como seria isso
possível, se o tipo de relacionamento é tão diferente no que tange à natureza
da união subsistente?
Não é objeção válida ao argumento precedente sacado do paralelismo
em Romanos 5.12-19 afirmar que — devido à incontestável distinção entre a
relação de Adão com a raça e a relação de Cristo com os seus — não há razão
para que a distinção ulterior postulada pelo realismo seja inconsistente com o
paralelismo da passagem considerada. A distinção indubitável é que Adão
sustenta uma relação genética com toda a raça e todos estão seminalmente
unidos a ele e são derivados dele. Situações que não vigoram na relação de
Cristo com o seu povo. No entanto, a razão por que essa consideração não
afeta o argumento, em termos de debate entre realistas e representacionistas,
não é o fato da relação genética seminal que constitui o terreno específico de
nosso envolvimento no “um só pecado” do “um só homem” Adão, tanto para
os realistas como para os expoentes da representação. Para os realistas ela é
união realista; para os representacionistas ele é união representativa. No caso
de Romanos 5.12-19 é a questão da base sobre a qual o “um só pecado” de
Adão se aplicar à condenação de todos e o “um só ato de justiça” de Cristo se
aplicar à justificação de todos quantos são de Cristo. Nem os realistas nem os
representacionistas sustentam que, no caso do pecado de Adão, a base é o
fato de Adão ser o progenitor natural da raça. O interesse de ambos é a base
específica da imputação do pecado de Adão, e, com respeito ao paralelo
traçado em Romanos 5.12-19, a questão é se a base específica postulada
pelos realistas para essa imputação é compatível com a analogia instituída
pelo apóstolo entre o “um só pecado” do “um só homem” para a condenação
e o “um só ato de justiça” do “um só homem” Jesus Cristo para a justificação.
O caráter específico da união que serve de base específica para condenação e
justificação é a questão em debate.
(iii) Quando perguntamos sobre que prova a Escritura forneceu sobre
existir em Adão essa “substância elementar invisível” chamada de natureza
humana interpretada como específica e numericamente uma, não sabemos
como achá-la. Somos verdadeiramente um com Adão, em termos de Hebreus
7.9-10 estávamos todos nos lombos de Adão, ele é o primeiro pai de toda a
humanidade, e existe seminalmente a unidade de Adão e sua posteridade.
Adão foi o primeiro a ser dotado de natureza humana e transmitiu essa
natureza humana a toda sua descendência pela procriação natural. Tudo isso é
defendido tanto por representacionistas como por realistas e acha-se apoiado
na Escritura. Mas o postulado adicional da parte dos realistas, o pressuposto
indispensável à sua posição distintiva, não é dos que podem apelar ao amparo
da evidência bíblica. Além disso, não é um postulado indispensável à
explicação dos fatos trazidos à nossa atenção na revelação bíblica. A união
existente entre Adão e a posteridade é tal que pode ser interpretada em termos
para os quais há evidência suficiente nos dados da revelação à nossa
disposição.
(iv) O argumento dos realistas, de que só a doutrina da unidade
específica da raça em Adão lança, em termos de justiça, a base apropriada
para a imputação do pecado de Adão à posteridade e a alegação deles de que
a imputação do pecado de um representante vicário à posteridade viola a
ordem da justiça[50] não leva em conta, o tanto quanto é preciso, o que nossos
relacionamentos solidários ou corporativos envolvem. Os realistas admitem
que seu postulado da unidade específica mostra-se verdadeiro apenas no caso
de Adão e sua posteridade. Ademais, eles também precisam admitir que
existem relacionamentos solidários em outras instituições nas quais nunca se
faz presente a unidade específica exemplificada em Adão. Todavia, se
analisarmos as responsabilidades implicadas nesses outros relacionamentos
solidários e as avaliarmos em termos bíblicos, deveremos descobrir que a
responsabilidade moral recai nos membros de uma entidade corporativa em
virtude das ações dos representantes, ou do representante, dessa entidade.[51]
Portanto, a negação da imputação do pecado vicário vai de encontro ao modo
como opera o princípio da solidariedade em outras esferas. Além disso, não é
válido insistir que o pecado vicário só pode ser imputado quando há a
disposição voluntária para se aceitar tal imputação.[52] O relacionamento
corporativo existe por instituição divina, e as responsabilidades corporativas
existem e vigoram absolutamente à parte de as pessoas envolvidas as
assumirem ou não de modo voluntário. É só porque ignoramos a onipresença
da responsabilidade corporativa e não damos importância às implicações
dessa responsabilidade que podemos estar prontos a aquiescer ao argumento
de que o pecado de um representante não nos pode ser imputado. Já que o
princípio é aplicável a Adão, não é difícil perceber que a imputação de
pecado com base em sua posição representativa seria aplicada de forma
exclusiva e universal. Isso seria apenas a ampliação para toda a raça humana,
nos termos da sua solidariedade em Adão, de um princípio exemplificado
muitas vezes em relacionamentos corporativos mais restritos.

2. A visão representativa

Ao apresentar e defender a visão representativa é indispensável aliviá-la de


algumas representações errôneas, da parte de seus oponentes, e de certa
extravagância, da parte de seus proponentes. Quanto aos últimos, conforme
mostrar-se-á mais tarde nesta série de estudos, a visão representativa não está
presa à suposição de que a posteridade está envolvida só na poena do pecado
de Adão e não, na culpa. Além disso, à visão representativa não se deve
impor distinção entre reatus culpae e reatus penae, rejeitada pelos antigos
teólogos reformados — caracterizada e criticada por eles como papista.
Quanto à representação errônea, ou pelo menos equivocada, da parte de seus
oponentes, talvez não seja desnecessário repetir que a visão representativa
não nega mas, ao contrário, afirma que Adão é o cabeça natural da raça, sua
união seminal com a posteridade; que todos derivam dele por geração natural
uma natureza corrupta; e que, portanto, o pecado original é transmitido por
procriação. W. G. T. Shedd afirma que: “Visto que a ideia da representação
de Adão é incompatível com a da existência específica em Adão, é preciso
decidir entre a união representativa e a união natural. Uma combinação das
duas visões é ilógica”.[53] É verdade que a união natural com existência
específica em Adão, segundo a definição de Shedd, não pode ser a
combinação de duas ideias para explicar a imputação do pecado Adão à
posteridade. Para dizer o mínimo, uma ideia torna a outra supérflua. Além
disso, é também verdade que a ideia representativa tem na representação, e
não na cabeça natural, a base específica da imputação do pecado de Adão.
Nesse aspecto ela é similar à distinção realista, porque os realistas têm na
unidade específica, e não na paternidade de Adão, a base específica da
imputação do pecado de Adão. Mas é bem ilógico sustentar que na visão
representativa da cabeça natural de Adão haja alguma incompatibilidade
entre a cabeça natural e a união representativa. Segundo a construção
representativa, a cabeça natural e a cabeça representativa são correlatas, e
cada aspecto tem função própria e específica para explicar o status e condição
em que os membros da raça se acham em consequência da relação deles com
Adão. Portanto, é indispensável compreender que a ênfase de teólogos
reformados na cabeça natural de Adão e na união seminal entre ele e sua
posteridade não deve ser interpretada como a hesitação entre duas ideias
incompatíveis,[54] nem que o apelo desses teólogos à cabeça natural e à
relação seminal deve ser considerado como adesão à construção realista.[55]
Quando chegamos à questão de evidências que apoiem a visão
representativa, faz-se necessário aduzir de forma mais positiva as
considerações já mencionadas na crítica ao realismo.
(i) A união natural ou seminal entre Adão e a posteridade não está em
questão; ela é pressuposta. Poder-se-ia alegar que isso é todo o necessário,
que a Escritura não estabelece com clareza nenhum tipo extra de união, que,
assim como Levi pagou o dízimo quando estava nos lombos de Abraão,
assim também a posteridade pecou estando nos lombos de Adão.[56] Que mais
pressupor? Algo mais, no entanto, parece ser indispensável. Talvez não se
questione que haja algo gravemente singular e distinto sobre o nosso
envolvimento no pecado de Adão. O pecado é o “um só pecado” de Adão. Se
a relação com Adão fosse simplesmente a da união seminal, a de estar em
seus lombos, isso não daria nenhuma explicação por que o pecado imputado
seria apenas o primeiro pecado. Estaríamos igualmente em seus lombos
quando ele cometeu outros pecados, os quais seriam tão aplicáveis a nós
como seu primeiro pecado, caso a justificativa total da imputação de seu
primeiro pecado residisse no fato de que estávamos em seus lombos. Por isso
é indispensável que exista algum outro fator para explicar a restrição ao “um
só pecado” de Adão. À luz da narrativa de Gênesis 2 e 3 seremos obrigados a
inferir que a proibição à árvore do conhecimento do bem e do mal estava
associada com e exemplificava algum tipo de relacionamento especial
estabelecido por instituição divina e em razão do qual o delito ou
desobediência de Adão nesse particular envolvia não somente Adão, mas
toda a sua posteridade por geração natural. Em outras palavras, havia um ato
especial da providência que estabelecia um relacionamento especial em cujos
termos devemos interpretar quais são, para a posteridade, as implicações do
delito de Adão, em tomar parte do fruto proibido.
(ii) Em 1 Coríntios 15.22, 45-49, Paulo nos apresenta uma das mais
impactantes e significativas elucidações de toda a Escritura. Ele encerra a
forma como Deus lida com os homens sob a dupla liderança dos dois Adãos.
Não há ninguém antes de Adão; ele é o primeiro homem. Não há ninguém
entre Adão e Cristo, porque Cristo é o segundo homem. Não há ninguém
depois de Cristo; ele é o último Adão (v. 45-47). Adão e Cristo mantêm
relacionamentos singulares com os homens. E o fato dessa história e destino
serem determinados por esses relacionamentos é demonstrado pelo versículo
22: “assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão
vivificados em Cristo”. Todos quantos morrem, morrem em Adão; todos
quantos são vivificados, são vivificados em Cristo. Diante dessa abrangente
filosofia da história e destino humanos, e em vista dos papéis centrais e
determinantes do primeiro e do último Adão, não podemos deixar de supor
uma ordenação constitutiva da parte de Deus para esses relacionamentos
singulares. E uma vez que a analogia instituída entre Adão e Cristo é tão
conspícua, é sem dúvida necessário assumir que o tipo de relacionamento que
Adão mantém com os homens segue o padrão de relacionamento que Cristo
mantém com os homens. Explicando o caso pelo modo reverso, sem dúvida o
tipo de relacionamento que Cristo mantém com os homens segue o padrão do
que Adão mantém com os homens (cf. Rm 5.14). Mas se tudo o que
conjecturarmos no caso de Adão for apenas a sua liderança ou paternidade
naturais, não temos o tipo de relacionamento capaz de servir como padrão
para a liderança de Cristo como o cabeça. Por isso, a analogia demandaria
uma comunhão de relacionamento cuja liderança natural de Adão como
cabeça não tem para oferecer.
(iii) Conforme já mencionado, Romanos 5.12-19 oferece mais
evidências relevantes para a questão em apreço do que qualquer outra
passagem. O fato de Adão ser o tipo daquele que havia de vir (v. 14) e o
paralelismo contido em todos os versículos seguintes (v. 15-19) implicam
alguma similaridade de relacionamento. Mas se questionarmos que princípio
comum seria esse, três coisas devem ser ditas. (a) Na relação de Adão com a
posteridade, devemos pressupor mais do que a liderança natural como
cabeça, pela mera razão de que, conforme vimos acima, esse tipo de união
não fornece nenhuma analogia para a união existente entre Cristo e seu povo.
(b) No caso de Cristo e dos justificados, sabemos que essa é uma união de
representação vicária. Pelas provisões da graça, Cristo foi ordenado a agir em
favor e em lugar dos beneficiários da redenção. A justiça de Cristo torna-se
deles, para sua justificação e vida eterna. É uma provisão que existe por
instituição divina, e todo o processo que anula o reino do pecado, condenação
e morte fundamenta-se na união assim constituída. (c) O ímpeto geral da
passagem, bem como seus detalhes, pode indicar a existência de um
relacionamento semelhante no reino do pecado, condenação e morte. A
construção da passagem toma por base, por um lado, o contraste entre o reino
de pecado, condenação e morte, e por outro, o reino de retidão, justificação e
vida, procedente da retidão de Cristo. Somos compelidos a reconhecer a
existência de uma identidade de modus operandi, pois Adão é o tipo de
Cristo. Por que razão, podemos perguntar, deveríamos ir em busca de
qualquer outro princípio em termos do qual o reino do pecado, condenação e
morte opera em lugar do princípio exemplificado no reino de retidão,
justificação e vida? Não podemos conjecturar menos. Por que deveríamos
conjecturar mais, quando não há nenhuma evidência que o exija ou lhe dê
apoio?
Concluímos, portanto, que é necessário mais do que liderança natural,
que a liderança natural não traz em si a noção de “unidade específica” em
Adão, que o algo mais exigido para explicar a imputação do primeiro pecado
de Adão, e de nenhum outro, não é apresentado pela Escritura como o tipo de
união defendida pelo realismo, e que, ao buscarmos descobrir a característica
específica da união que servirá de alicerce à imputação do primeiro pecado de
Adão, descobrimos que ela é do mesmo tipo de união análoga à união
existente entre Cristo e seu povo e toma por base que a retidão de Cristo é a
retidão de seu povo para a justificação e a vida eterna deles. A forma como
devemos denominar esse tipo de união é uma questão de terminologia. Se a
chamarmos de união representativa ou de liderança, será suficiente para os
propósitos de identificação. A solidariedade foi constituída pela instituição
divina, sendo ela de tal natureza que o pecado de Adão recai sobre toda a
posteridade procriada naturalmente.
Capítulo Três
4. A NATUREZA DA IMPUTAÇÃO
Se a união existente entre Adão e sua posteridade for análoga à união
existente entre Cristo e seu povo, podendo por isso ser chamada de união
representativa, a questão que surge em seguida é sobre o modo como o
pecado de Adão recai na conta da posteridade. A discussão dessa questão é
indispensável em razão de considerações exegéticas e teológicas.
particularmente pelos dados implícitos em Romanos 5.12-19. Todavia a
história do debate acerca dessa questão força-nos a ter de lidar com ela,
mesmo se tendêssemos a descartar ou ignorar os dados exegéticos. A história,
nesse caso, como em tantos outros, determina a direção que a discussão deve
tomar. Há dois pontos de vista que, em contraste mútuo, servem para pôr a
questão na perspectiva que derrama um dilúvio de luz sobre a importância
dos dados exegéticos.
1. A imputação mediata
O nome particularmente associado à doutrina da imputação mediata é o de
Josua Placaeus (Josué de la Place) da escola reformada de Saumur. Entende-
se que ele ensinava que o pecado original consistia na depravação derivada
de Adão e não abrangia a imputação da culpa do primeiro pecado de Adão. O
28º Sínodo das Igrejas Reformadas da França, reunido em Charenton, de 26
de dezembro de 1644 a 26 de janeiro de 1645, condenou oficialmente essa
doutrina com os seguintes termos: “Relatou-se ao Sínodo da existência de
certo texto, tanto impresso como manuscrito, o qual sustenta esta doutrina:
toda a natureza do pecado original consiste apenas nessa corrupção,
hereditária a toda a posteridade de Adão, e reside originalmente em todos os
homens, e nega a imputação do seu primeiro pecado. O Sínodo condena a
dita doutrina porque limita a natureza do pecado original à exclusiva
corrupção hereditária da posteridade de Adão, excluindo a imputação do
primeiro pecado, pelo qual ele caiu, e proíbe, sob pena de incorrer na total
censura da Igreja, todo pastor, mestre, e outros que venham a tratar dessa
questão, apartando-se do parecer comum recebido das Igrejas Protestantes, as
quais (além dessa corrupção) todas admitem a imputação do primeiro pecado
de Adão à sua posteridade”.[57] Placaeus respondeu que não negava a
imputação do primeiro pecado à posteridade de Adão e, por isso, concordava
totalmente com o decreto do Sínodo em não restringir o pecado original à
corrupção hereditária. Ele, no entanto, defendia que a imputação do primeiro
pecado de Adão era mediata, e não imediata. A imputação imediata e
antecedente, alegava ele, deve ser distinguida da mediata e consequente.
Aquela ocorre de imediato sem interferência da corrupção hereditária; esta
ocorre de forma mediata pela interferência dessa corrupção. No primeiro
caso, a imputação do pecado de Adão precede a corrupção na ordem da
natureza sendo considerado causa da corrupção; no último caso, a imputação
do primeiro pecado segue-se à corrupção hereditária sendo considerada
efeito. Placaeus rejeitava a imputação imediata e esposava a imputação
mediata. Em síntese, sua posição era que a imputação do primeiro pecado de
Adão à posteridade foi mediata por herdar dele uma natureza corrupta.[58]
Não é surpreendente que se tenha entendido que Placaeus negasse
completamente a imputação do primeiro pecado de Adão, pois em várias
partes de suas obras, mesmo subsequentes ao decreto do Sínodo de
Charenton, ele debate contra a doutrina da imputação do primeiro pecado
factual de Adão à posteridade, seja essa imputação concebida ou não como
culpa ou poena.[59] Ademais, é compreensível que os críticos da posição de
Placaeus sustentassem que a imputação mediata, conforme proposta por ele,
seja equivalente à negação da imputação do primeiro pecado de Adão à
posteridade.[60]
No debate desencadeado após a emissão do decreto do Sínodo,
Placaeus muito se afligiu com seu oponente Garissolius, mas também com
outros, cujos mais notáveis foram Andrew Rivetus e Samuel Meresius.
Rivetus escreveu um bem extenso tratado[61] consistindo principalmente em
citações dos credos das igrejas protestantes e de teólogos protestantes.
Grande parte dessas citações não tinha a ver exatamente com o caso da
distinção proposta mais tarde por Placaeus em sua Disputatio. Algumas delas
sequer diziam respeito à imputação do primeiro pecado de Adão, mas tinham
a ver com a doutrina do pecado original ou da depravação inerente. No
entanto, muitas citações estavam diretamente ligadas à questão levantada pela
distinção de Placaeus, pois asseveravam expressamente a prioridade da
imputação do primeiro pecado de Adão. Segundo parece, o propósito de
Rivetus não era alegar que todas essas citações se referiam à distinção feita
pelo Sínodo entre a imputação do primeiro pecado de Adão e a depravação
hereditária derivada dele, e muito menos que todas elas sustentassem a
antecedência da culpa do primeiro pecado de Adão. Podemos apenas inferir
que ele apresentou uma rica variedade de citações, muitas delas apoiando a
distinção formulada pelo Sínodo, com a qual, Placaeus depois professou estar
em plena concordância, dentre as quais algumas estavam claramente em
conflito com a proposição enunciada posteriormente por ele mesmo, isto é, a
da imputação consequente ou posterior do primeiro pecado de Adão.[62] Seja
o que for que se tenha dito sobre a validade da contenção de Placaeus nos
dois últimos capítulos de sua Disputatio, no sentido de que as Confissões das
igrejas reformadas não são favoráveis à doutrina da imputação imediata do
pecado de Adão e de que, ainda mais, essa doutrina é estranha à dos
primeiros reformadores, não lhe foi difícil demonstrar que tais credos —
como o francês, o belga, o escocês e o suíço — não formulavam uma
doutrina da imputação imediata e, portanto, não sendo possível apelar para
eles.[63]
O ponto de vista proposto por Placaeus e o debate que isso provocou
exerceram profunda influência no pensamento subsequente acerca da questão
como um todo. No século 17, teólogos do calibre de Heidegger e Turrentine
valeram-se de seus talentos para a polêmica para se oporem à doutrina da
imputação mediata. Em termos de formulação credal, o fato mais importante
foi a Formula Consensus Helvetica (1675) declarar-se explicitamente
favorável à doutrina da imputação imediata.[64] A imputação mediata teve
também seus defensores nos séculos seguintes. No continente europeu, os
nomes de Campegius Vitringa, Hermann Vennema e J. F. Stapfer são
usualmente listados como expoentes da imputação mediata.[65] Nos Estados
Unidos da América, a imputação mediata foi adotada por alguns teólogos da
Nova Inglaterra no século 18, sendo uma das doutrinas da nova escola de
teologia da Igreja Presbiteriana no século 19. Como um de seus
representantes, Henry B. Smith opunha-se vigorosamente à imputação
imediata[66] e estabeleceu a imputação mediata como a posição que, segundo
considera ele, faz mais justiça aos fatos do caso.[67] Para tratarmos dos
desenvolvimentos ocorridos entre os teólogos da Nova Inglaterra, é preciso
entrar em maiores detalhes. Pois, apesar de haver certa afinidade com a
doutrina da imputação mediata formulada por Placaeus, surgiram tantas e tão
marcantes diferenças que a doutrina da imputação mediata, entendida
historicamente, quase não pode ser considerada uma descrição apropriada do
ponto de vista em questão. O caso poderia ser descrito mais precisamente
como a oposição deliberada à doutrina da imputação imediata; oposição que
serviu como ponto de partida para uma construção, em alguns casos,
semelhante à da imputação mediata, mas que, no decorrer do
desenvolvimento, implica o total abandono da noção de imputação do
primeiro pecado de Adão à posteridade.
Quanto a isso, Samuel Hopkins é explícito em afirmar “que o pecado, e
as consequentes culpa e condenação de toda a raça humana, estavam
conectados, por constituição divina, com o pecar de Adão”,[68] de sorte que
“em virtude da aliança e constituição firmadas com o pai da humanidade”
todos os homens “incorreram na condenação à morte” e “fizeram-se
totalmente corruptos e pecaminosos”.[69] Por isso “o pecado e a ruina de todos
homens estavam implicados e sem dúvida envolvidos no primeiro ato de
desobediência de Adão”.[70] Mas, prossegue Hopkins, “não se deve supor que
a ofensa de Adão lhes é imputada para a condenação, porquanto são
considerados em si mesmos, na próprio pessoa, inocentes; nem que são
culpados do pecado de seu primeiro pai, que antecede à pecaminosidade
deles mesmos”. Isso tudo quer dizer que, segundo a constituição supracitada,
há “uma certa ligação entre o primeiro pecado de Adão e a pecaminosidade
de sua posteridade” e que, por causa dessa constituição, estabeleceu-se que
“toda a humanidade pecaria assim como Adão pecou, e consentiria
plenamente com a transgressão dele”.[71] Por isso, a humanidade uniu-se a ele
em sua transgressão e tornou-a sua própria transgressão. Essa concepção da
constituição divina ecoa como refrão na discussão de Hopkins, sendo a base
para a dependência da ligação do pecado de Adão com a pecaminosidade de
todos. Além disso, embora por conta dessa constituição todos os homens
nascem em pecado e são pecaminosos desde o começo de sua existência,
Hopkins defende a constituição como justa, sábia e boa.
Nessa análise da relação do pecado de Adão com o pecado da
posteridade deve-se reconhecer, no entanto, que o pecado de Adão não é
debitado na conta da posteridade. Na realidade, não há nenhuma imputação
do pecado de Adão à posteridade, tanto mediata como imediatamente.
Hopkins afirma sem rebuços: “E se a pecaminosidade de toda a posteridade
de Adão estivesse sem dúvida conectada ao seu pecar, isso não os torna
pecadores antes de serem de fato pecadores; e quando se tornarem pecadores
de fato, eles mesmos serão pecadores, será o pecado deles mesmos, e serão
tão culpáveis e culpados como se Adão jamais tivesse pecado, e cada um
fosse o primeiro pecador que houvesse existido. Os filhos de Adão não
podem responder pelo pecado dele, e o pecado deles não é senão o que eles
aprovam em Adão, pecando como ele pecou. Assim, eles só se tornam
culpados do pecado dele, quer dizer, quando aprovam o que ele fez e se
juntam à sua rebelião. E sendo previamente certo, por constituição divina,
que toda a humanidade pecaria assim e seu juntaria em rebelião ao seu cabeça
comum, seus pecado e crime não se tornam menos propriamente seus do que
se essa certeza tivesse ocorrido em qualquer outra base ou de qualquer outra
forma; ou do que se não houvesse nenhuma certeza que ela pecaria assim, se
isso fosse possível”.[72] A força desse argumento está em que a posteridade
não se acha envolvida no pecado de Adão em razão da relação, constituída
divinamente, entre Adão e a posteridade; a constituição divina assegura
simplesmente que a posteridade pecará assim como Adão pecou.
Há mais duas observações a serem feitas acerca da posição de Hopkins.
Primeira, a doutrina da imputação mediata, originalmente formulada, põe
ênfase na corrupção hereditária como o meio pelo qual o primeiro pecado de
Adão foi imputado à humanidade. Quanto a isso, Hopkins é claro ao afirmar
que a “humanidade nasce totalmente corrompida ou pecaminosa em
consequência da apostasia de Adão”[73] e, portanto, “uma criança, um bebê,
tão logo passe a existir, teria corrupção moral ou pecado”.[74] Mas à vista do
que já foi mostrado, essa depravação nativa não deve ser interpretada como o
meio pelo qual o pecado de Adão é imputado até mesmo a bebês, mas apenas
como a certeza de que todos os membros da raça “passam a pecar tão logo
comecem a agir como agentes morais”.[75] Quanto a isso, Hopkins
dificilmente poderia ser classificado com os primeiros expoentes da
imputação mediata, apesar de existir uma relação genética. Em segundo
lugar, quando Hopkins afirma que o pecado, que “ocorre na posteridade de
Adão, não pode ser apropriadamente distinguido entre pecado original e
pecado fatual, pois na verdade tudo é pecado fatual, e não há, estritamente
falando, nenhum outro tipo de pecado senão o pecado fatual”,[76] não se deve
interpretar que ele está equiparando a palavra “fatual” com o que chamamos
de “transgressões fatuais”. O que ele quer dizer é que onde existe pecado,
mesmo em um bebê, existe uma inclinação corrompida da mesma natureza
do pecado expresso na transgressão voluntária escancarada. O que Hopkins
está afirmando corretamente é que a inclinação para o mal sempre precede o
pecado evidente e que essa tendência maligna é de fato pecaminosa e, como
impulso perverso, existe em bebês. Portanto, segundo os termos dos próprios
princípios de Hopkins, o pecado pelo qual a posteridade se torna pecaminosa
e peca, assim como Adão pecou, é previsível nos recém-nascidos em razão da
inclinação pecaminosa com a qual nascem, embora não tenham ainda a
capacidade, ou a oportunidade, para a transgressão voluntária evidente.[77]
No caso de Nathanael Emmons, o desenvolvimento da ideia
apresentada em Hopkins assume uma complexidade distintamente mais
avançada. Ao tratar da questão sobre como nos tornamos pecadores por meio
de Adão, Emmons sustenta que “Adão não nos tornou pecadores levando-nos
a cometer seu primeiro delito”,[78] nem transferiu à posteridade a culpa de sua
primeira transgressão,[79] nem lhe transmitiu uma natureza moralmente
corrupta.[80] A única resposta adequada, como entende Emmons, é que, ao
fazer de Adão o cabeça público de sua posteridade, Deus “determinou tratá-la
conforme a conduta dele”.[81] Deus suspenderia a santidade e o pecado da
posteridade conforme a conduta de Adão e, conforme essa constituição
divina, toda a raça humana tornou-se ímpia e depravada, porque Adão, com
sua primeira transgressão, “deu a Deus a ocasião para trazer toda a sua
posteridade ao mundo em estado de depravação moral”.[82] Achamos em
Emmons o mesmo princípio da constituição divina, em cujos termos todos os
homens se tornam pecadores, mas não há o aspecto da noção de que o pecado
de Adão é levado em conta para a posteridade, nem mesmo na forma adotada
por Hopkins segundo a qual “ela [a posteridade] torna-se culpada do pecado
dele […] aprovando o que ele fez, e unindo-se a ele na rebelião”. O pecado
de Adão é apenas a ocasião para Deus agir conforme sua constituição, que ele
ordenou e estabeleceu.
A posição de Timothy Dwight denota o mesmo aspecto. “Quando
afirmo que em consequência da apostasia de Adão todos os homens
pecaram, não quero dizer que sua posteridade é culpada da transgressão
dele. As ações morais não são, até onde vejo, transferíveis de um ser para
outro. O ato pessoal de qualquer agente é, pela própria natureza, o ato
exclusivo desse agente e incapaz de ser transferido ou participado a outrem.
Obviamente, a culpa desse ato pessoal é igualmente incapaz de ser transferida
ou participada a outrem. A culpa é inerente à ação, sendo, portanto, atribuída
apenas ao agente […] Também não quero dizer que os descendentes de Adão
são castigados pela transgressão dele.”[83] E Dwight retrocede à mesma
explicação da universalidade do pecado, ou seja, que pelo estado como as
coisas que foram constituídas, todos se tornam pecadores em consequência da
transgressão de Adão.[84]
Mesmo uma breve investigação da Teologia da Nova Inglaterra
demanda a menção de outro nome na genealogia, Nathaniel W. Taylor.
Assim como seus predecessores, Taylor sustentava que “a pecaminosidade
da humanidade é consequência do pecado de Adão”.[85] No entanto, essa
proposição genérica não determina o modo particular da conexão entre o
pecado de Adão e a pecaminosidade da raça. Segundo julga Taylor, é “nessa
maneira geral e indefinida que as Escrituras mostram a ligação”.[86] Ele
protesta contra o que denomina de “especulação gratuita e arbitrária” e
avança em seguida para duas negações explícitas: “1. Que a posteridade de
Adão não se torna pecadora em consequência do pecado dele, mas por ser
criada com uma natureza pecaminosa, ou por essa natureza lhe ter sido
transmitida pelas leis da propagação […] 2. A posteridade de Adão não se
torna pecadora em consequência do pecado dele, por ser culpada do pecado
dele”.[87] Essas citações ilustram a franca rejeição de Taylor à doutrina da
depravação herdada, conforme sustentada pelas igrejas reformadas, e também
da doutrina da imputação do pecado de Adão, tanto mediata como imediata.
Na verdade, Taylor sustenta que “a constituição ou natureza” da humanidade
é tal “que em todas as circunstâncias apropriadas ou naturais de sua
existência, a sua vontade peca de modo uniforme desde o início da agência
moral”.[88] É nesses termos que ele se refere à depravação total e da
humanidade como depravada por natureza. Mas não se deve entender isso no
sentido de que os homens nascem com uma natureza ou disposição
pecaminosa. Também não significa que a disposição ou propensão
pecaminosa seja o fundamento ou causa de todas as volições pecaminosas.
“Com depravação queremos dizer”, afirma ele, “volição pecaminosa em si
mesma, ou antes, a preferência pecaminosa eletiva que vem a predominar na
alma, e passa a existir por meio disso na constituição física e nas
circunstâncias dos homens, as quais são a base ou razão do fato...”.[89] É por
essa razão que a depravação é por natureza.
O desenvolvimento dessa ideia na Teologia da Nova Inglaterra levanta
a questão sobre qual foi, e qual sem dúvida continuará a ser, a diferença de
julgamento. É a do lugar que Jonathan Edwards ocupa nessa área da história
do pensamento. Tem-se afirmado que em seu tratado The Great Christian
Doctrine of Original Sin Defended [A defesa da grande doutrina cristã do
pecado original] ele deu expressão à doutrina da imputação mediata do
primeiro pecado de Adão. No século 19, não houve proponentes nem
defensores da doutrina da imputação imediata do primeiro pecado de Adão
maiores do que Charles Hodge e William Cunningham. É quase impossível
achar quem tenha examinado a discussão de Jonathan Edwards com maior
cuidado do que esses dois homens. Ambos afirmavam que em um capítulo do
mencionado tratado, Edwards cedeu à doutrina da imputação mediata.
Charles Hodge diz: “Entendemos que aqui, Edwards reafirma a doutrina da
imputação mediata; isto é, que a acusação de culpa do pecado de Adão é
decorrente da depravação do coração […] A doutrina de Edwards é
exatamente a que foi tão formalmente rejeitada quando apresentada por
Placaeus”.[90] Hodge, porém, admite não conseguir conciliar a visão
apresentada por Edwards nesse capítulo com passagens diversas que ocorrem
noutras partes do mesmo tratado.[91] Da mesma forma, William Cunningham
diz que a imputação mediata “foi adotada por Jonathan Edwards em sua
grandiosa obra sobre o pecado original. No entanto, as visões de Edwards
acerca desse ponto não parecem ter sido claras nem consistentes, já que ele
faz declarações que implicam ou assumem manifestamente a doutrina
calvinista comum”.[92] Se Edwards, no lugar em questão, deu vez à imputação
mediata, seria ao menos plausível alegar que o desenvolvimento da Teologia
da Nova Inglaterra, nessa questão particular, adotou o ponto de partida de
Edwards e que este, apesar de rejeitar com toda a alma as posições esposadas
por homens como Emmons, Dwight e Taylor, abriu o caminho para a ideia
que em tempo hábil culminaria nesses desenvolvimentos. Quase não há
dúvida de que a noção de uma constituição divina que, como vimos,
desempenha um papel tão amplo nas formulações de Hopkins, Emmons e
Dwight, foram derivadas, pelo menos, de Edwards, e se tornaram nas mãos
deles uma regra geral conveniente para eliminar totalmente a ideia da
imputação do primeiro pecado de Adão à posteridade.
A forma como Edwards discute a questão merece ser examinada de
perto. É, sem dúvida, muito significativo que um teólogo tão erudito e
judicioso como B. B. Warfield discorde da análise de Hodge e Cunningham
acerca de Edwards nesse aspecto. Referindo-se a Edwards, ele afirma: “Ao
responder as objeções à doutrina do pecado original, em certo ponto ele
recorre a Stapfer, e se pronuncia ao modo deste, na linguagem da forma de
doutrina conhecida como ‘imputação mediata’, mas só para ilustrar sua
própria visão de que toda a humanidade é tão verdadeiramente uma quanto,
pelo mesmo tipo de constituição divina, uma vida individual é uma em seus
momentos sucessivos. Mesmo nesse contexto imediato, ele não ensina a
doutrina da ‘imputação mediata’ e insiste, em vez disso, que Adão e sua
posteridade, sendo, em sentido estrito, um só, nela, não menos do que nele, ‘a
culpa decorrente da existência inicial de uma disposição depravada’ não pode
ser jamais diferençada da ‘culpa do primeiro pecado de Adão’. Além disso,
noutras partes de todo o tratado ele discorre nos termos da doutrina calvinista
comum”.[93] O presente escritor é da opinião que a interpretação de Warfield
está certa, mas não havendo ele demonstrado sua tese, e uma vez que a
matéria merece tratamento mais amplo, é necessário mostrar qual era
realmente o argumento de Edwards e como esse argumento não precisa ser
identificado com a imputação mediata. Algumas observações talvez ajudem a
pôr a questão sob uma luz mais clara.
(i) Não há dúvida de que Edwards ensinava a imputação do primeiro
pecado de Adão a toda a posteridade. Algumas citações revelarão isso de
forma conclusiva. “Para podermos seguir adiante considerando com a
máxima clareza as principais objeções à suposição de o pecado de Adão ser
imputado à sua posteridade, estabelecerei como premissas algumas
observações visando a definir corretamente a doutrina da imputação do
primeiro pecado de Adão, e depois mostrarei a razoabilidade dessa doutrina,
em oposição ao grande clamor suscitado contra ela nesse tópico. Entendo que
iremos mais longe e seremos dirigidos a uma concepção mais clara e distinta
desse caso se conservamos em mente que Deus, em cada passo de seu
proceder com Adão, com relação à aliança ou constituição estabelecida com
ele, via a sua posteridade como sendo uma com ele […] E embora ele lidasse
mais diretamente com Adão, tratava-o, todavia, como cabeça de todo o
corpo, e raiz da árvore inteira; e em seu trato com ele, Deus lidava com todos
os galhos, como se eles existissem em sua raiz naquele instante.
“Daí, segue-se que tanto a culpa, ou exposição ao castigo, como
também a corrupção do coração, vieram sobre a posteridade de Adão da
mesma forma que vieram sobre ele, como se ele e sua posteridade tivessem
todos existido ao mesmo tempo, como uma árvore com muitos galhos […] é
como se, em cada passo do relacionamento, toda alteração na raiz ocorresse,
no mesmo instante, com o mesmo passo e alterações na árvore toda do
começo ao fim, em cada galho individualmente. Entendo que essa será a
conclusão natural da suposição de que eles constituem uma unidade ou
identidade de Adão e de sua posteridade nesse caso”.[94] E comentando
novamente Romanos 5.12, ele afirma da parte final do versículo “que, à vista
do Juiz do mundo, no primeiro pecado de Adão, todos pecaram; não só de
certo modo, mas todos pecaram de sorte a estarem expostos a essa morte e
destruição finais: o apropriado salário do pecado”.[95] E, referindo-se a toda a
passagem (Rm 5,12-19), ele diz: “Visto que esse trecho é de modo geral
muito completo e objetivo, a doutrina da corrupção da natureza, derivada de
Adão, e também a da imputação do seu primeiro pecado, são ambas
claramente ensinadas nele. A imputação da transgressão de um só homem,
Adão, é realmente asseverada de forma direta e frequente. Somos aqui
assegurados de que, pelo pecado de um único homem, a morte passou a
todos; todos declarados culpados desse castigo como se tivessem pecado
(assim está implícito) no pecado desse único homem”.[96]
Quanto a essas citações, duas coisas devem ser ditas. Primeira, a
evidência mais conclusiva em apoio de uma doutrina da imputação mediata
teria de ser apresentada se o sentido óbvio dessas declarações tiver de ser
descartado. As considerações que ele faz são totalmente semelhantes ao que
se deveria esperar de um expoente da imputação imediata. Se, como afirma
Edwards, Deus enxergava a posteridade como sendo uma com Adão e via os
pecados dela como simultâneos aos de Adão, então o pecado é tão
diretamente dela quanto dele. Isso é imputação imediata.[97] Segunda,
Edwards faz diferença entre “a corrupção da natureza, derivada de Adão” e
“a imputação do seu primeiro pecado”. A última é, portanto, um elemento
distinto e não consiste na natureza corrupta com a qual nascemos. Muito
menos se pode dizer que a imputação do primeiro pecado consiste na
aprovação dada por nós ao pecado de Adão, pecando como ele pecou. Vê-se
de imediato, portanto, quão radicalmente a visão de Edwards sobre a nossa
relação com o primeiro pecado de Adão difere da visão de Hopkins. Hopkins
foi um estudioso de Edwards, mas não foi dele que aprendeu que “os filhos
de Adão não têm responsabilidade no pecado dele, e que o pecado deles não é
senão o que aprovam, ao pecarem como ele pecou”.
(ii) É aqui, porém, que encontramos a análise, proposta por Edwards,
que tem causado tantas dificuldades e, segundo entendemos, tanto mal
entendidos: sua análise do primeiro pecado de Adão e de nosso envolvimento
nele. Algo que tem sido interpretado como uma queda na doutrina da
imputação mediata. Edwards prossegue: “Portanto, sou da humilde opinião
de que, quem supõe que os filhos de Adão vêm ao mundo com dupla culpa
— a culpa do pecado de Adão e a culpa decorrente do próprio coração
corrupto deles — não concebeu bem a questão. A culpa inicial que o homem
traz na alma, é única e elementar, ou seja, é a culpa da apostasia original, a
culpa do pecado pelo qual a espécie se rebelou contra Deus pela primeira vez.
Essa culpa, e a culpa resultante da corrupção inicial ou disposição depravada
do coração, não devem ser vistas como duas coisas imputadas e lançadas
distintamente sobre os homens à vista de Deus. De fato, a culpa decorrente da
corrupção do coração, como princípio confirmado e estabelecido, e que, por
conseguinte, se manifesta em suas operações, é uma culpa distinta e
adicional. Mas a culpa decorrente da existência inicial de uma disposição
depravada na posteridade de Adão, pelo que entendo, não é diferente da
culpa deles no primeiro pecado de Adão. Pois não foi assim com o próprio
Adão. A disposição inicial ou inclinação maligna do coração de Adão para
pecar não era especialmente distinta de seu primeiro ato de pecado, mas
estava embutida nele. O ato exterior que ele cometeu não era senão dele,
tanto quanto o seu coração estava nele, ou quanto essa ação decorreu da
inclinação perversa de seu coração […] Seu pecado consistia em impiedade
no coração, plena e suficiente para, e resultando em, tudo quanto decorreu do
ato que ele cometeu”.[98] Essa citação é fundamental e exige exame mais
detido.
(a) À primeira vista, isso parece contradizer o que já se afirmou: que
Edwards faz diferença entre “a corrupção da natureza, derivada de Adão” e
“a imputação do seu primeiro pecado”. Ora, ele não disse que a culpa do
pecado de Adão e a culpa resultante de um coração corrupto são uma e que
não devem ser vistas como duas coisas? A solução repousa na diferença que
Edwards teve o cuidado de esmiuçar, ou seja, a distinção entre a corrupção do
coração como um “princípio confirmado” e o coração corrupto como “a
existência inicial de uma disposição depravada”. Se, na análise de Edwards,
deixarmos de lado essa distinção e o seu significado, não conseguiremos
apreender algo indispensável ao entendimento adequado da sua posição. É da
última expressão — “a existência inicial de uma disposição depravada” — e
somente disso que ele fala ao dizer que o primeiro pecado de Adão, como
imputado, e a culpa resultante do coração corrupto são uma e a mesma coisa,
e não duas coisas diferentes. Para resolver isso de uma vez por todas,
podemos apresentar mais citações para demonstrar como Edwards elabora
essa diferença:
A disposição depravada do coração de Adão deve ser
considerada de duas maneiras. (1) Como o surgimento de uma
inclinação maligna inicial em seu coração, manifestada em seu
primeiro ato de pecado, e a base para a transgressão total.
(2) Uma subsequente e contínua disposição maligna do coração,
como princípio confirmado decorrente de Deus o ter perdoado;
como castigo por sua primeira transgressão. Essa corrupção
confirmada por sua operação remanescente e contínua acarretou
mais culpa em sua alma.[99]

(b) Edwards sustenta com clareza “a existência de uma disposição


depravada inicial na posteridade de Adão”, resumindo, que essa “disposição
maligna” não é uma consequência da imputação do primeiro pecado de
Adão; é antes a priori na ordem da natureza. “A disposição maligna é
anterior, e a acusação de culpa é consequente.”[100] Ora, isso talvez pareça
exatamente a doutrina da imputação mediata. Não é essa doutrina que afirma
que a imputação do pecado de Adão é mediada pela corrupção herdada; que a
corrupção é anterior na ordem da natureza; e que a imputação do pecado de
Adão é consequência? Não há dúvida que é. Mas esse último ensinamento
não é de Edwards. Ele nada diz sobre a culpa do primeiro pecado de Adão
ser mediada pela depravação hereditária. Essa é a diferença importantíssima
entre a análise de Edwards e a da imputação mediata. Ao dizer que a
disposição maligna é inicial e a condenação da culpa consequente, Edwards
não está falando de depravação hereditária e de sua relação com a culpa do
primeiro pecado de Adão. A disposição maligna que ele chama de anterior é
aquela que ele insiste estar embutida no primeiro pecado de Adão, sendo
realmente uma com ele; é “a culpa da apostasia original”. “A culpa
decorrente da existência inicial de uma disposição depravada na posteridade
de Adão, pelo que entendo, não é diferente da culpa deles no primeiro pecado
de Adão”, assim afirma ele. Edwards não poderia dizer isso da depravação
hereditária. A última deve ser identificada com o que ele denomina de
princípio confirmado e estabelecido no coração da posteridade, o qual é
denominado expressamente por ele como “uma consequência e castigo da
primeira apostasia […] que acarreta nova culpa”.[101] Então, devemos
perguntar, o que é essa disposição depravada inicial do coração, anterior na
ordem da natureza para a imputação da transgressão fatual de Adão, a qual é
ainda uma única com o pecado imputado? É aqui que a perspicácia de
Edwards vem à luz.
A própria resposta de Edwards revela o quanto é perspicaz por ele
apelar à analogia de Adão como o indivíduo que é. “A disposição inicial ou
inclinação maligna do coração de Adão para pecar não era especialmente
distinta de seu primeiro ato de pecado, mas estava embutida nele.” Ele aqui
pondera acerca do simples fato de que, em bases exegéticas e também em
sólidas bases psicológicas, não se pode entender o explícito ato de pecar da
parte de Adão à parte da disposição maligna que o ato evidente manifestou. A
verdade bíblica é que Adão foi tentado e atraído pela própria cobiça que o
seduziu (cf. Tiago 1.14-15). Na ordem da natureza, essa inclinação
pecaminosa é anterior ao ato de pecado explícito, todavia eles são uma coisa
só, pois o pecado não pode ser interpretado senão nos dois aspectos. Tudo
isso é tão óbvio no caso do próprio pecado de Adão, quando os princípios
bíblicos são aplicados em sua análise, que quase não é necessário elaborar a
questão. Mas o aspecto distintivo da argumentação de Edwards, na sua
exposição da imputação do primeiro pecado de Adão à posteridade, é ele ter
considerado que o pecado imputado deve ser interpretado como abrangendo
os dois aspectos aplicáveis ao próprio pecado de Adão. Isso quer dizer que,
ao falarmos da imputação do primeiro pecado de Adão, ela deve incluir tanto
a disposição maligna que dá surgimento ao ato cometido como também o ato
em si mesmo. É isso o que Edwards quer dizer com “a existência de uma
disposição depravada inicial na posteridade de Adão”. “A existência inicial
de uma disposição depravada no coração deles”, afirma ele expressamente,
“não deve ser vista como se o pecado lhes pertencesse, à parte da
participação deles no primeiro pecado de Adão”.[102] Isso é muito diferente da
noção de imputação mediata. A existência inicial de uma disposição corrupta
é exatamente tão direta quanto a participação no primeiro pecado de Adão
pela simples razão de ela estar embutido nessa participação. E o único
antecedente dessa participação é “a união que o sábio autor do mundo
estabeleceu entre Adão e sua posteridade”, porquanto Deus “via sua
posteridade como sendo uma com ele” e “tanto a culpa […] como também a
depravação de coração vieram sobre a posteridade de Adão da mesma forma
que vieram sobre ele — como se ele e sua posteridade existissem ao mesmo
tempo, como uma árvore de muitos galhos”.[103]
(c) A evidência poderia indicar que a depravação remanescente como
princípio estabelecido e confirmado, considerada por Edwards como
diferente da existência inicial de uma disposição depravada, deve ser
equiparada ao que tem sido geralmente chamado de depravação hereditária.
Edwards refere-se a ela em termos de “nascido corrupto”.[104] Ele compara
essa continuidade da corrupção na raça com a falta contínua de retidão
original no próprio Adão. “No entanto, entendo que seja tão verdadeiramente
e da mesma maneira devido ao curso da natureza, que a posteridade de Adão
veio ao mundo sem a retidão original, assim como Adão continuou sem ela
depois de a ter perdido.”[105] Mas a observação mais significativa com relação
a isso é que a depravação, vista sob essa luz, não é só uma “consequência
natural” do primeiro pecado tanto em Adão como em sua posteridade, mas
foi também uma “consequência penal” ou castigo desse primeiro pecado,
uma consequência penal ou justa condenação da posteridade como se fosse a
condenação do próprio Adão.[106] É disso que ele com certeza fala quando
afirma: “Mas a depravação da natureza que remanesce como um princípio
estabelecido no coração de um descendente de Adão, e como se viu em ações
posteriores, é uma consequência e castigo da primeira apostasia assim
compartilhada, e acarreta nova culpa”.[107] É exatamente isso o que os
proponentes da imputação imediata têm sustentado, ou seja, que a corrupção
hereditária é consequência da imputação do primeiro pecado de Adão, sendo
sua consequência penal. É mera incapacidade não reconhecer as distinções
feitas por Edwards e que obscurecerão a validade e força dessa conclusão.
Edwards está claramente do lado da imputação imediata no que tange à
relação da corrupção hereditária com o primeiro pecado de Adão.
(d) Quando Edwards fala de “derivação da disposição maligna no
coração dos pósteros de Adão” (itálicos nossos)[108] com relação à “existência
inicial de uma disposição depravada”, não devemos nos deixar enganar pelo
uso da palavra “derivação” pensando que ele está se referindo à derivação por
geração natural, como no caso da depravação hereditária. Depois de usar esse
termo, ele deixa claro que prefere falar dessa questão como “a coexistência
da disposição maligna, implicada na primeira rebelião de Adão”.[109] Além
disso, os teólogos que esposavam a imputação imediata se referiam
comumente ao primeiro pecado de Adão como derivado, quando não tinham
ideia da derivação por propagação natural, mas somente pela imputação. Na
verdade, eles podem referir-se à culpa do primeiro ato de pecado de Adão
como “derivada sobre nós” por meio da imputação e como base da corrupção
propagada.[110]
(iii) Há outra citação de Edwards que precisamos comentar. Ela é sem
dúvida a fonte de grande parte da formulação subsequente da Teologia da
Nova Inglaterra:
A existência inicial de uma disposição maligna no coração de
um filho de Adão — pela qual ele se dispõe a aprovar o pecado
de seu primeiro pai tão completamente como se ele mesmo o
aprovasse quando o cometeu, ou a ponto de implicar um pleno e
perfeito assentimento de coração ao pecado, segundo entendo —
não deve ser encarada como consequência da imputação desse
primeiro pecado nem do pleno consentimento do próprio
coração de Adão, no ato de pecar; essa disposição não decorreu
da imputação do seu pecado a si mesmo, mas, ao contrário, era
anterior a ele na ordem da natureza.[111]
Aqui, Edwards está tratando da mesma questão sobre “a existência
inicial de uma disposição depravada” no coração da posteridade de Adão que,
como se demonstrou acima, ele insiste esteja embutida na imputação do
primeiro pecado de Adão. Ele não está tratando da aprovação e
consentimento voluntários que, conforme nos podem dizer quando nós
mesmos pecamos como Adão pecou, causou o pecado de Adão. Está se
referindo à “existência inicial de uma disposição maligna no coração de um
filho de Adão”. Isso, bem como todo o contexto, demonstra que ele está
deslindando o sentido do nosso envolvimento direto no primeiro pecado de
Adão, em razão da identidade ou unicidade de Adão e sua posteridade.
Edwards não está jamais aludindo à consequência resultante de uma
constituição divina estabelecida segundo a qual todos os homens pecariam
como Adão pecou. Está afirmando o oposto: que pela constituição divina o
pecado de Adão é imputado à posteridade como disposição maligna e ato
manifesto. O conceito de Edwards é bem estranho ao de Hopkins, segundo o
qual, quando a posteridade de Adão “se tornou de fato uma posteridade de
pecadores, estes são pecadores em si mesmos, é o pecado deles mesmos, e
são tão culpáveis e culpados como se Adão jamais tivesse pecado, e cada um
deles fosse o primeiro pecador que já existiu. Os filhos de Adão não são
responsáveis pelo pecado dele, e o pecado deles não é senão o que eles
aprovam dele, pecando como ele pecou”.[112] Edwards lida com a disposição
como elemento integral do pecado imputado. Hopkins lida com a aprovação
dada pela posteridade ao pecado de Adão quando ela peca como ele pecou.
Edwards, a partir da análise do que está envolvido no primeiro pecado de
Adão, considera essa disposição um aspecto integral do pecado imputado.
Hopkins considera que o pecado de Adão não é imputado à posteridade e que
só pode ser considerado como o pecado de sua posteridade quando ela
assente a ele pecando ao feitio de Adão. Além disso, quase não é necessário
destacar que esse conceito difere muito da insistência de Edwards: que a
disposição depravada é a fonte da qual procede o ato evidente de pecar e por
isso a existência inicial de uma disposição depravada implica a imputação do
pecado de Adão à posteridade. Para o repúdio aberto de Taylor à doutrina
“segundo a qual a humanidade tem uma natureza pecaminosa, corrompida
por ela por ser uma com Adão, por agir no ato dele, ou pecar no pecado
dele”.[113]
Há, portanto, duas conclusões a respeito de Edwards. Primeira, a
alegação de ele ter proposto a doutrina da imputação mediata fundamenta-se
na incapacidade de reconhecer a exata intenção da análise de Edwards sobre a
imputação do primeiro pecado de Adão à posteridade. Segunda, embora em
alguns aspectos a terminologia dos outros teólogos da Nova Inglaterra já
mencionados seja semelhante à de Edwards, nessa doutrina particular há uma
clara divergência da posição de Edwards, não só da parte de Emmons,
Dwight e Taylor, mas também de Hopkins, além disso, não é possível
considerar que o ensinamento de Edwards sobre a questão da imputação
forneça o primeiro passo para a rejeição ou negação da doutrina da imputação
do primeiro pecado de Adão, negação que se tonou inequívoca nos
desenvolvimentos posteriores da Teologia da Nova Inglaterra. Foi a
divergência de Edwards ou, no mínimo, o entendimento equivocado de sua
posição, que deu à luz esse desenvolvimento.[114]
Ficará evidente que a questão sobre o modo pelo qual o pecado de
Adão será considerado para a posteridade deverá ser estabelecida e resolvida
nos termos da antítese entre a imputação mediata e imediata, uma vez que
essa antítese foi agudamente definida na controvérsia de Placaeus no século
dezessete. Os desenvolvimentos da Teologia da Nova Inglaterra de Samuel
Hopkins em diante, proporcionou uma nova direção à ideia da questão sobre
a relação da posteridade com o pecado de Adão. A divergência foi tão radical
que essa Teologia da Nova Inglaterra não pôde ser adequadamente
caracterizada como doutrina da imputação mediata. Por mais importantes que
tenham sido esses desenvolvimentos e por mais que devam ser levados em
consideração ao se tratar, como um todo, a questão dos efeitos do pecado de
Adão sobre a posteridade, discussão acerca da questão precisamente, assim
como foi formulada nos debates da Teologia da Nova Inglaterra do século 17
da, eles em nada contribuem para elucidar ou defender a doutrina da
imputação mediata. Esses teólogos da Nova Inglaterra rejeitaram de fato a
doutrina da imputação imediata. Nesse aspecto, formavam uma unidade com
os expoentes da imputação mediata. Pode ser que sua rejeição da imputação
imediata envolvesse logicamente a rejeição também da imputação mediata e
foram consistentes em transformar em questão de lógica o que estava
implícito na negação da doutrina da imputação imediata. Nesse caso, o
desenvolvimento do pensamento da Nova Inglaterra levou à conclusão lógica
daquilo que era inerente à doutrina clássica da imputação mediata, como
proposta por Placaeus. Mas não estamos preocupados com as consequências
lógicas decorrentes da doutrina da imputação mediata, mas com essa doutrina
em si mesma, da forma como foi entendida e proposta por seus proponentes
representativos. A imputação mediata não sustenta que o pecado de Adão foi
imputado à posteridade; que a posteridade estava envolvida no pecado de
Adão; e que o pecado de um só homem, Adão, era o pecado de todos os
homens. E a questão é se esse envolvimento está diretamente baseado na
relação que Adão mantinha com a posteridade ou se é mediado pela herança
da natureza corrupta de Adão. É estritamente com essa questão em vista que
retornamos aos dados exegéticos.

2. A imputação imediata

Com base em um estudo anterior nesta série, assumiu-se que a única


interpretação factível de Romanos 5.12-19 implica que a ofensa de um só
homem, Adão, é o pecado de todos os homens. E quando Paulo diz “um
pecou” e “todos pecaram” ele refere-se ao mesmo pecado visto sob o aspecto
duplo do pecado de Adão, um só homem, e do pecado de toda sua
posteridade. Nossa indagação agora é simplesmente se há, nessa passagem ou
em outras, quaisquer considerações que digam respeito ao modo de
imputação. É mediata ou imediata? É bom ter a questão nitidamente em foco:
a evidência indica que o pecado de Adão é reconhecido como o pecado de
todos por meio da depravação herdada? Ou será que a evidência aponta para
a instantaneidade da união que a doutrina da imputação imediata defende? As
proposições seguintes estão segura e certamente relacionadas à questão em
pauta, e caso se prove estarem bem fundamentadas, elas determinam a
questão.
(i) A ligação imediata do pecado de Adão com a morte de todos.
Romanos 5.12, 15, 17 oferece a base para essa inferência.
No versículo 12, o ponto particular de importância para nosso presente
interesse é a força da locução kaiV ou{tw" [ kai $outws , também assim] no
meio do versículo. Ela é, como já se disse, coordenativa e continuativa. Há,
todavia, em ou{tw" [ $outws , assim] um tom comparativo, mas não do tipo de
comparação que complementa a apódose w}sper [ Jwsper , como] no início do
versículo. Mas que comparação é essa? Nas duas primeiras orações faz-se
referência ao pecado de Adão e à morte, como consequência do pecado. Em
síntese, a ideia é: Adão pecou e morreu. No caso da pessoa de Adão, não
temos como interpor algo entre o seu pecado e a morte que lhe é infligida.
Não é preciso nenhum outro pecado, além daquele ao qual o apóstolo se
refere tantas vezes como o único pecado do único homem, para explicar ou
validar a morte de Adão. Além disso, seria estranho ao todo da ideia
sustentada pela passagem introduzir qualquer outro aspecto da
pecaminosidade de Adão como o fundamento de sua morte. Muito menos
estaria em harmonia com a passagem considerar a subsequente depravação de
Adão como o meio pelo qual a morte veio a acometê-lo. Isso significa apenas
que há aqui uma justaposição instantânea do pecado de Adão com a morte
que se seguiu. Então, a força de kaiV ou{tw" [ kai $outws , também assim],
como introdução das duas próximas orações, serve para estabelecer o
paralelismo. Assim como o pecado e a morte vieram por causa de Adão, o
pecado e a morte também se tornaram a sina de todos os homens. Adão pecou
e morreu: há uma ligação imediata. Todos pecaram (em Adão, como já foi
discutido) e morreram: há a mesma ligação imediata. Seria exatamente tão
arbitrário e indefensável introduzir a ideia da depravação mediata no último
caso quanto o seria no caso do próprio Adão. Supor a existência de qualquer
outro fator entre o envolvimento de todos no pecado de Adão e a consequente
morte de todos interferiria na analogia expressa por ou{twv" [ Joutws , assim].
E somos forçados à conclusão de que, quando Paulo diz “a morte passou a
todos os homens”, considerar a depravação herdada como o meio pelo qual
essa morte passou a todos é totalmente contrário aos termos do versículo 12,
bem como aos da passagem inteira. Mas se a imputação mediata estiver certa,
é assim que se deve considerar. Porque se a depravação herdada serve de
mediadora à imputação do pecado de Adão, deve também servir de
mediadora à morte, sua consequência. No versículo 12 é impossível interpor
qualquer outra consideração como razão para morte de todos, exceto o único
pecado de Adão, no qual, segundo o apóstolo, todos são considerados como
envolvidos.
No versículo 15 (“pela ofensa de um só, morreram muitos”), a morte é
associada de imediato ao pecado de Adão. Quase não é necessário
argumentar sobre isso. Supor que a depravação herdada se interpõe como o
meio através do qual a ofensa de um só homem passa a fazer efeito
contradiria a ênfase de Paulo. Porque, nesse caso, teríamos de supor que a
posteridade é considerada como pecadora e, portanto, infligida com a morte
antes de o pecado de Adão ser imputado e passar a fazer efeito. Paulo, porém,
está dizendo que é pela ofensa de um só que muitos morreram, e se isso não
tiver a prioridade, se a ofensa de um só e a morte de muitos não estiverem tão
intimamente relacionadas, a ponto de serem óbvias, então o propósito e
ênfase evidentes do apóstolo caem por terra.
No versículo 17 (“pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a
morte”), nos defrontamos uma vez mais com o pecado de Adão como
explicação para o reino universal da morte. E com ênfase talvez bem maior
do que no versículo 15, identificamos quão estranha à ligação que o apóstolo
está decidido a sustentar é a interposição da depravação hereditária entre a
“ofensa de um” e o reino da morte “por meio de um só”. É o tipo de ligação
que se harmoniza apenas com a doutrina de imputação imediata.
(ii) A ligação imediata do pecado de Adão com a condenação de todos
fica evidente nos versículos 16 e 18.
Quando, no versículo 16, o apóstolo afirma que “o julgamento derivou
de uma só ofensa para a condenação” não fica logo evidente se ele tem em
mente o “um só homem”, Adão, ou o pecado de Adão.[â] Na oração
precedente, di’ eJnoV" aJmarthvsanto" [ di ’ Jenos Jamarthsantos , por um que
pecou] refere-se a Adão como tendo pecado e poderia ser que o ejx eJnoV"
[ eks Jenos , a partir de um] da oração seguinte tenha em vista o um só homem,
Adão, e não a uma só ofensa de Adão. Mas o contraste traçado entre a
segunda e terceira orações favoreceria notavelmente a visão de que ejx
eJnoV" [ eks Jenos , a partir de um] se refere a “uma só ofensa”. Uma vez que
ejx eJnoV" [ eks Jenos , a partir de um] está em contraste com ejk pollw~n
paraptwmavtwn [ ek pollwn paraptwmatwn , a partir de muitas transgressões] —
“de muitas ofensas” — e uma ofensa pode ser mais bem contrastada com
muitas ofensas do que com um só homem. No entanto, mesmo permitindo-se
a existência de dúvida sobre a referência de ejx eJnoV" [ eks Jenos , a partir de
um] no versículo 16, não será possível restar qualquer dúvida sobre o
significado do versículo 18, no qual se declara explicitamente que “por uma
só ofensa”, di= ejno" paraptwmavto" [ di ’ enos paraptwmatos , por meio de uma
transgressão] — “veio o juízo sobre todos os homens para condenação”. Eis
aí uma afirmação inequívoca de que o fundamento, ou, se preferirmos, o
meio para a condenação de todos, é a “uma só ofensa” de Adão. Introduzir a
agência da depravação herdada acrescentaria outro fator, isto é, outro pecado
ou aspecto de pecaminosidade, que violaria abertamente a ênfase de que foi
por “uma só ofensa” que o juízo de condenação caiu sobre todos. Em outras
palavras, a interposição da depravação herdada, a qual, com base na premissa
da imputação mediata, é a consideração crucial e explicativa, postula um
acréscimo palpável e inconsistente com a ênfase do apóstolo na singularidade
da ofensa da qual decorreu a condenação universal. Isso quer dizer apenas
que não se pode permitir a interferência de nenhum outro pecado na ligação
da “uma só ofensa” de Adão com a condenação de todos. E isso significa
ligação imediata. Voltando ao versículo 16, ele é, portanto, a doutrina de
Paulo de que o juízo decorre de “uma só ofensa” para a condenação, seja isso
ou não o que ele afirma explicitamente nesse versículo. E mesmo supondo-se
que ejx eJnoV" [ eks Jenos , a partir de um] no versículo 16 refere-se a Adão (o
que não é provável, pela razão citada acima) e não à ofensa de um só, temos
de nos lembrar que o que se tem em vista é Adão pecando, ou seja, a
expressão di’ eJnoV" aJmarthvsanto" [ di ’ Jenos Jamarthsantos , por um que pecou]
da oração precedente e o ato de pecar em questão não podem ser outros
senão a ofensa de um só dos versículos 15 e 18. Por isso a ideia claramente
expressa ou implícita do versículo 16 é a de que a condenação de todos
decorreu da “uma só ofensa” de Adão e o mesmo tipo de ligação aparece no
versículo 16, tão inequivocamente como no versículo 18. É, portanto, a
imputação imediata, que os versículos 16 e 18 estabelecem com relação ao
modus operandi da condenação universal.
Chegar à conclusão de que a morte e a condenação fundamentam-se
diretamente na “uma só ofensa” de Adão, obrigar-nos-ia a inferir que assim
também o pecado de Adão estaria diretamente ligado ao pecado de todos. O
apóstolo, no entanto, não abandona esse aspecto culminante de sua doutrina à
boa e necessária inferência, mas o trata expressamente.
(iii) A ligação imediata do pecado de Adão com o pecado de todo. Isso
está evidente nos versículos 12 e 19.
No versículo 12, Paulo afirma que “todos pecaram”. Já vimos que isso
é só um outro aspecto a partir do qual se pode vislumbrar o pecado de Adão.
A explicação para esse aspecto duplo a partir do qual é possível visualizar o
pecado de Adão é a solidariedade existente entre Adão e sua posteridade.
Quanto à nossa presente questão, a introdução da depravação hereditária
como instrumento mediador é totalmente desnecessária, pois reconhecemos o
fato da solidariedade, [isto é, da ligação de Adão com a sua posteridade].
Além do mais, a depravação hereditária como explicação não é só
desnecessária, é também irrelevante e importuna. A depravação hereditária
decorre da solidariedade; é um processo subsequente à solidariedade. É,
portanto, a solidariedade em si mesma, e não o processo que dela resulta, que
explica adequada e apropriadamente a expressão “todos pecaram” do
versículo 12. O versículo 19, no entanto, põe a tese em nítido foco: “pela
desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores”. Ao dizer “se
tornaram pecadores”, não há dúvida que o apóstolo está pensando naquilo
que vem logicamente em primeiro lugar quando nos tornarmos ou passamos a
ser considerados pecadores. E quando perguntamos, como os homens
passaram a ser considerados assim? A resposta está à mão: “pela
desobediência de um só homem”. Nos termos do contexto é a ofensa de um
único homem, Adão. A imputação mediata sustenta que a depravação
hereditária vem básica e logicamente em primeiro lugar para tornar os
homens em pecadores, e não a desobediência de um só homem. Vê-se nesse
argumento o mesmo tipo de incompatibilidade já percebida na ligação entre
morte e ressurreição. Paulo relaciona diretamente o pecado de todos com o
pecado de Adão. A imputação mediata nega essa ligação e a contradição
torna-se evidente. Na mente de Paulo, não apenas a morte é infligida a todos
pela única ofensa de Adão, não apenas a condenação é aplicada sobre todos
por essa única ofensa, mas pela mesma ofensa, chamada de desobediência no
versículo 19, todos se tornaram pecadores. Quando contemplamos o pecado,
a condenação e a morte de todos — em outras palavras o reino universal do
pecado, da condenação e da morte —, nada temos nessa passagem que
explique senão o único pecado de Adão. Esses dois fatos estão diretamente
relacionados um com o outro. Portanto, a única consideração que resta à
nossa inferência é que esse relacionamento de um com o outro deve-se à
existência da solidariedade da raça no pecado de Adão. Paulo não deixa
espaço para nenhum outro fator ou constituição.
É possível relacionar essas conclusões com o que está implícito em 1
Coríntios 15.22: “em Adão, todos morrem”. Essa morte é o salário do pecado
(Rm 6.23) e como tal, segundo o princípio paulino, não é possível concebê-la
como se existisse ou exercesse seu domínio à parte do pecado. Quando ele
diz “em Adão, todos morrem” é impossível, segundo as premissas paulinas,
excluir a antecedência do pecado. Nesse caso, a antecedência só será válida
compreendendo-se que todos pecaram em Adão. Caso contrário faltaria à
declaração “em Adão, todos morrem” o fundamento exigido pelo princípio de
Paulo. Visto que relacionamos a premissa de 1 Coríntios 15.22 — isto é, “em
Adão, todos morrem” — com o ensinamento de Romanos 5.12-19, chega-se
apenas a uma conclusão: todos pecaram em Adão, por uma só ofensa sua. O
imediatismo da ligação estabelecida por tantas linhas distintas de argumentos
tirados de Romanos 5.12-19 é o mesmo tipo de ligação que se adequa à
proposição pressuposta em 1 Coríntios 15.22 e, na realidade, é o tipo de
ligação cuja proposição implicada seria o entendimento naturalmente
esperado.
(iv) A analogia apoia a imputação imediata. O paralelo que Romanos
5.12-19 institui é entre a forma como a condenação passa aos homens por
meio do pecado de Adão e a forma como a justificação alcança os homens
mediante a justiça de Cristo. No caso da justiça de Cristo (designada
dikaivwma [ dika íō ma ] no versículo 18 e uJpakohv [ hypako ē ] no versículo 19)
essa justiça alcança os justificados por nenhum outro meio senão mediante a
união com Cristo; não é mediada pela justiça operada internamente no crente
na regeneração e na santificação. Apelando-se à linguagem da imputação:
não é pela imputação mediata que os crentes tomam posse da justiça de
Cristo na justificação. A doutrina paulina da justificação seria contraditória se
supusesse que a justiça e obediência de Cristo tornar-se-iam nossas para a
justificação porque a santidade nos é comunicada a partir de Cristo ou que a
justiça de Cristo nos é mediada através da santidade gerada em nós pela
regeneração. O fundamento único sobre o qual a imputação da justiça de
Cristo torna-se nossa é a união com Cristo. Em outras palavras, a pessoa
justificada passa a ser justa mediante a obediência de Cristo, por causa da
solidariedade estabelecida entre Cristo e o justificado. A solidariedade é a
ligação pela qual a justiça de Cristo passa a ser a do crente. Uma vez que a
solidariedade esteja firmada, não há nenhum outro fator de mediação
concebível como indispensável à ligação entre a justiça de Cristo e a justiça
do crente. Isso significa que a ligação é imediata. Em sendo esse o caso,
segundo a perspectiva da analogia pertinente à justificação, seria de esperar
que, com relação à condenação, o modus operandi fosse o mesmo. Para
alinhar o argumento à ordem subjacente ao paralelismo, a imputação
imediata, no caso do pecado de Adão, fornece o paralelo com o qual ilustra a
doutrina da justificação e está, portanto, ligado notavelmente à tese do
apóstolo que rege essa parte da epístola.
Capítulo Quatro

Nestes estudos, estamos tratamos do tema da relação que Adão, como o


primeiro homem, mantém com os membros da raça humana e, mais
particularmente, da relação que os membros da raça mantêm com o primeiro
pecado de Adão. Os variados aspectos já discutidos do tópico levaram à
pergunta decisiva: qual é o caráter do envolvimento da parte da posteridade
na transgressão de Adão? Tendo em vista o pecado, o que estava implicado
para a posteridade? Se todos pecaram em Adão, como haveremos de definir
este pecado de todos no pecado de Adão?

V. O PECADO IMPUTADO
Quando se fala do pecado de Adão como imputado à posteridade, admite-se
que em lugar algum das Escrituras nossa relação com a transgressão de Adão
é expressamente definida sob a ótica da imputação. E, visto que este é o caso,
o ensino bíblico a respeito do envolvimento da raça no primeiro pecado de
Adão não pode ser prejudicado ou distorcido pelo uso do termo “imputação”,
se este não transmitir de maneira adequada ou precisa o significado bíblico. O
vocábulo, entretanto, tem sido amplamente usado neste contexto e não há um
bom motivo para abandonar este uso. A Escritura não emprega a noção de
imputação referindo-se ao juízo que Deus entretém e registra no caso da
pessoa que pecou ou que é pecadora. Isso vale para ambos os Testamentos
(cf. Lv 17.4; Sl 32.12; Rm 4.18; 2Co 5.19). As expressões negativas no
sentido de que Deus não imputa pecado àquele cujos pecados são perdoados
implica que Deus não imputa pecado e que a bênção do perdão consiste na
anulação desta imputação. Ademais, não podemos nos esquecer de que,
mesmo na passagem a que particularmente nos dedicamos, a ideia de
imputação está claramente enunciada. “O pecado não é imputado onde não há
lei” (Rm 5.13), implicando, evidentemente, que o pecado é imputado onde
quer que ocorra transgressão da lei. Daí poder-se afirmar biblicamente o juízo
de Deus com referência ao pecado, ao dizer que Deus imputa o pecado, e isso
significa que ele considera o pecador culpado do pecado que lhe pertence ou
que é cometido por ele. Se dissermos que a transgressão de Adão é imputada
à posteridade, todos podemos estrita e propriamente encarar como
significando que o pecado de Adão é considerado por Deus também como o
pecado da posteridade. O mesmo pecado é posto na conta deles; é
reconhecido como deles. Não podemos permitir nenhuma associação
arbitrária que possa ser anexada à palavra “imputação” a fim de complicar ou
obscurerer o significado simples do termo “imputar”. Se for aplicado, neste
significado bíblico, à relação que mantemos com o pecado de Adão, quer
dizer simplesmente que este pecado é considerado por Deus como nosso. Já
vimos que o ensino de Paulo vem no sentido de que a transgressão de um foi
o pecado de todos, que, quando Adão pecou, todos pecaram. Se todos
pecaram em Adão, Deus avalia que assim foi; e é julgado por Deus pelo que
é. Nada mais, nada menos é o que se pretende dizer com imputação do
pecado de Adão à posteridade. Se restringir-nos à noção bíblica de
imputação, o uso do termo não lança mais luzes sobre as questões que
surgem e que passaremos a discutir do que essas outras expressões
sinônimas. Em outras palavras, não podemos pensar que o termo
“imputação” em si mesmo tem alguma noção diferenciadora que forneça a
solução para o problema do caráter preciso de nosso envolvimento no pecado
de Adão. Assim, nossa pergunta agora é: o que, no juízo divino, foi
considerado como ocorrido no caso da posteridade quando Adão caiu? O
juízo de Deus sempre é conforme a verdade, e o que ele considera como
ocorrido de fato ocorreu. A questão, portanto, é: o que aconteceu? E isso quer
dizer: o que foi imputado à posteridade?
Talvez possamos descobrir o status quaestionis se considerarmos, em
primeiro lugar, a posição um tanto categórica assumida por Charles Hodge.
No século XIX, ninguém entrou no rol dos defensores da doutrina da
imputação imediata com mais vigor do que o Dr. Hodge. Ao tratar da questão
do que foi imputado à posteridade, diz ele: “Quando Adão caiu do estado em
que fora criado, a posteridade caiu com ele em sua primeira transgressão, de
modo que a penalidade por esse pecado veio sobre esta assim como veio
sobre ele. Os homens, portanto, tiveram sua prova em Adão. Tendo ele
pecado, seus descendentes vieram ao mundo em um estado de pecado e
condenação”.[115] Isso claramente equivale a afirmar que a posteridade pecou
e caiu em Adão. Em seu comentário sobre a epístola ao Romanos, há um uso
recorrente de fórmulas como: “todos pecaram quando Adão pecou”, “eram
considerados e tratados como pecadores por causa do pecado dele”,[116] pelo
pecado de Adão todos “fomos rebaixados de nível ou categoria de
pecadores”.[117] Portanto, não pode haver dúvida de que o Dr. Hodge
afirmaria que todos pecaram em Adão e caíram com ele em sua primeira
transgressão. Entretanto, quando explica esta declaração, Hodge também
insiste em que este pecado da posteridade ou, em outras palavras, o pecado de
Adão imputado à posteridade consiste simplesmente na obrigação de
satisfazer à justiça. “Imputar”, diz ele, “é considerar ou por na conta de
alguém... Imputar pecado, no sentido bíblico e teológico, é imputar a culpa do
pecado. E por culpa não se quer dizer criminalidade ou a humilhação moral,
nem o demérito, muito menos a contaminação moral, mas a obrigação
judicial de satisfazer a justiça”.[118] Visto que o Dr. Hodge em outro lugar
discorre em detalhes sobre esta questão do modo mais polêmico,[119] não nos
resta dúvida — ele concebia esta imputação do pecado de Adão à posteridade
como consistindo na obrigação de satisfazer a justiça. O envolvimento da
raça no pecado de Adão, portanto, há de ser interpretado nesses termos
restritos, e a imputação à posteridade há de equivaler à obrigação teológica de
satisfazer à justiça. Em termos latinos, a imputação não era a culpa do pecado
de Adão, nem o demeritum, mas simplesmente o reatus, especificamente o
reatus poenae.
O Dr. Hodge, ao discutir acerca desta interpretação do significado de
imputação podia recorrer às declarações de outros na tradição reformada. Ele
cita, por exemplo, John Owen, que diz de modo claríssimo: “Nada se
pretende com a imputação do pecado a alguém senão a retribuição daqueles
justamente antipáticos à punição devida por aquele pecado”.[120] No entanto,
surgem questões vinculadas a esta equação. A primeira é de exegese. Temos
razão em interpretar as expressões fundamentais “todos pecaram” e “muitos
se tornaram pecadores” (Rm 5.12, 19) neste sentido estrito, a saber, “foram
postos sob a obrigação de satisfazer à justiça”?
Naturalmente, não há problema senão que a imputação de pecados traz
consigo o reatus, a obrigação de satisfazer à justiça. Não podemos,
entretanto, ignorar o fato de que Paulo, em Romanos 5.12-19, usa não apenas
expressões que implicam a consequência penal do pecado, mas também
expressões que implicam envolvimento no próprio pecado. Como vimos
observando repetidamente no curso deste estudo, Paulo não só leva em
consideração a morte como incidindo sobre todos e reinando sobre todos por
meio de uma transgressão (v. 12, 14, 15, 17) nem só a condenação como
recaindo sobre todos mediante uma única transgressão, mas também o fato de
que todos se tornaram pecadores. Ou seja, não só o salário do pecado recai
sobre todos, não só o juízo de condenação pesa sobre todos, mas todos são
acusados do pecado que é a base do juízo condenatório e do qual a morte é o
salário. A imputação mencionada no versículo 13 significava meramente a
obrigação de satisfazer à justiça, a reatus poenae, e então teria bastado que
Paulo falasse de morte e condenação. Na realidade, ele não está satisfeito
com o pensamento de consequência penal; ele lança as bases de toda
predicação à luz das consequências nas proposições, “todos pecaram”,
“muitos se tornaram pecadores” (v. 12, 19), e, por implicação, “o pecado foi
imputado a todos” [porque todos pecaram] (v. 13). É esta nítida progressão
de pensamento que nos impede de admitir como certo que proposições no
sentido de que “todos pecaram” ou “se tornaram pecadores” possam ser
interpretadas simplesmente como “foram postos sob a sentença de
condenação” ou “tornaram-se judicialmente sujeitos às sanções da justiça”.
É verdade que há expressões no Antigo Testamento em que o termo para
pecado é usado no sentido de ser considerado como pecador. A estes apela o
Dr. Hodge (Gn 43.9; 44.32; 1 Reis 1.21) e conclui: “Pecar, portanto, ou ser
um pecador, pode, em linguagem bíblica, significar ser julgado um ofensor,
ou seja, ser considerado e tratado como tal”.[121] Mas não é evidente que tais
textos signifiquem simplesmente estar sujeitos à punição que as respectivas
situações contemplavam, e não podemos pressupor que ser contado como
pecador, no sentido empregado na Escritura ou na teologia, possa reduzir-se à
noção de obrigação para satisfazer à justiça. Ademais, embora se conceda que
“visitar a iniquidade dos pais nos filhos” (Êx 20.5; 34.7; Nm 14.18; cf. Jr
32.18; Lm 5.7) refere-se a nada mais do que carregar a pena dos pecados dos
pais, não podemos concluir que nada mais esteja implicado nas expressões
paulinas de Romanos 5.12, 13, 19 do que que a posteridade está sujeita à
punição do pecado de Adão.[122] No mínimo, portanto, somos postos sob a
necessidade de exercer cautela e hesitação antes de admitir que os termos
“pecaram” e “tornaram-se pecadores” (Rm 5.12, 19) devam ser interpretados
meramente como denotando a obrigação de satisfazer à justiça.
Há outra consideração derivada do paralelo que o apóstolo institui nesta
passagem que deve levantar suspeita quanto à adequação da fórmula que
Hodge emprega. O paralelo à imputação do pecado de Adão é a imputação da
justiça de Cristo. Ou, para usar os próprios termos de Paulo, “tornaram-se
pecadores” mediante a desobediência de Adão está em paralelo com
“tornaram-se justos” mediante a obediência de Cristo. Na justificação,
segundo a teologia reformada e segundo a própria posição do Dr. Hodge, não
está simplesmente o benefício jurídico da justiça ou obediência de Cristo que
é imputada aos crentes, mas a própria justiça. Reduzir a imputação à
consequência jurídica seria esvaziar a doutrina paulina da justificação de seu
significado central e mais precioso. A consequência jurídica flui da
imputação da própria justiça, e as duas não podem ser equiparadas.
Deveríamos esperar essa mesma distinção e sequência do outro lado do
paralelo, isto é, a imputação do pecado de Adão. E é o mesmo tipo de
distinção que as expressões paulinas confirmam.
É irrelevante no presente estágio de nossa discussão apelar para o fato de que
não somos feitos justos subjetiva e moralmente pela imputação da obediência
de Cristo. Pois a questão agora é se ser constituído justos por meio da
obediência de Cristo envolve mais do que a consequência judicial daquele ato
constituinte e se este não é senão o resultado de um fato anterior que deve,
pela natureza do caso, ser distinguido da consequência judicial. A única
observação necessária neste estágio é que decerto há espaço para um conceito
de ser “feito justo” que não o de ser feito subjetiva e moralmente justo, um
conceito que cai na categoria da relação forense e que não deve ser explicado
meramente à luz da recompensa ou consequência correspondente. E, de modo
semelhante, havemos de deixar espaço para um conceito de ser “feito
pecadores” que é anterior à nossa obrigação de satisfazer à justiça e não pode
ser reduzido, em sua definição, a esta obrigação resultante.
Pode-se entender prontamente por que o Dr. Hodge, em sua vigorosa defesa
da doutrina da imputação imediata, deve ter definido imputação como a
obrigação de satisfazer a justiça. Ele foi confrontado com a objeção de que a
imputação imediata envolvia a noção de que, a partir daí, somos
representados como pessoal e voluntariamente participantes no primeiro
pecado de Adão. E a uma suposição assim há a óbvia objeção de que, quando
Adão pecou, nós, sua posteridade, não existíamos como agentes pessoais
voluntários e não se podia conceber que agíssemos assim de modo pessoal e
voluntário. Além disso, ele teve de enfrentar a objeção de que a imputação
imediata supunha a transferência do caráter moral de Adão à posteridade. Ele
foi enfático em sua negação de tal implicação com base, com a qual seus
adversários concordavam, em que a qualidade moral de uma ação não pode
ser transferida do perpetrador a outro que não seja o verdadeiro perpetrador.
Negando, portanto, ambas as alegações a respeito do significado da
imputação imediata, ele tinha de definir a imputação em termos que
patentemente evitassem essas duas noções. O conceito que lhe apareceu para
definir esta diferenciação e que ao mesmo tempo correspondia ao ensino
bíblico era aquele do reatus, a obrigação de satisfazer à justiça.
Havia também outra razão por que o Dr. Hodge era tão zeloso com este
conceito definidor: a analogia entre a imputação do pecado de Adão à
posteridade e a imputação de nossos pecados a Cristo quando este
vicariamente tomou os nossos pecados sobre si. Este argumento aparece
repetidas vezes em suas polêmicas. Uma citação deve bastar. “Quando se diz
que nossos pecados foram imputados a Cristo, ou que Ele levou sobre si
nossos pecados, não significa que Ele realmente tivesse cometido nossos
pecados, ou fosse moralmente criminoso em decorrência disso, ou que o
demérito de nossos pecados estivesse sobre Ele… E quando lemos que o
pecado de Adão é imputado à sua posteridade, não significa que eles pecaram
esse pecado, ou que foram os agentes de seu ato, nem se pretende que sejam
moralmente criminosos pela transgressão dele… significa simplesmente que,
em virtude da união entre ele e seus descendentes, seu pecado é a base
judicial da condenação de sua raça”.[123]
No entanto, permanece a questão de se o Dr. Hodge, ao defender-se contra
mal-entendidos ou interpretações errôneas da doutrina da imputação
imediata, fez justiça aos dados bíblicos e, em seu zelo por uma diferenciação
aguda entre imputação, de um lado, e participação pessoal ou transferência de
caráter moral, de outro, não hipersimplificou o problema e deixou de fora
certa implicação de nossa relação com o pecado de Adão, enunciado, por
exemplo, na expressão “tornaram-se pecadores” (Rm 5.19). E há também a
questão de se a analogia da assunção vicária de nossos pecados por Cristo
proporciona uma base para a inferência precisa que o Dr. Hodge extrai dela.
Afinal, há uma singularidade no fato de Cristo ter tomado sobre si nossos
pecados, e, embora sem dúvida haja uma analogia, pode muito bem ser que
devamos ter de descobrir uma distinção no ponto em que o Dr. Hodge insiste
em identidade.
Em conexão com a insistência de Hodge em que a obrigação de satisfazer à
justiça define para nós o que está envolvido na imputação do pecado de
Adão à posteridade, não há só a questão exegética; também nos perguntamos
se a posição de Hodge representa adequadamente o pensamento dos teólogos
reformados e, mais particularmente, o pensamento daqueles que têm sido
expoentes da imputação imediata. Há que se admitir que esta não é uma
pergunta simples. Há particularmente a dificuldade relacionada ao significado
preciso da palavra “culpa” conforme usada neste ponto. E de considerável
importância é a definição do termo latino reatus, e sua relação com culpa, de
um lado, e poena, de outro.
Se examinarmos o ensino de John Owen, a quem, por exemplo, Hodge apela,
descobriremos que certas posições tomadas por Owen em sua exposição da
imputação pareceriam, no mínimo, consideravelmente diferentes das do Dr.
Hodge. A citação de Owen já apresentada concorda com a insistência de
Hodge em que a culpa imputada à posteridade é a obrigação moral de
satisfazer à justiça. Pode-se citar algo mais de Owen nesta linha. Entretanto,
no contexto daquela mesma citação, Owen também diz: “Mas que os homens
sejam sujeitos à morte, o que não é nada senão a punição do pecado, quando
não pecaram, é uma flagrante contradição. Pois, embora Deus, por seu poder
soberano, possa infligir morte a uma criatura inocente, é impossível que uma
criatura inocente seja culpada da morte: para ser culpado da morte, há que ter
pecado. Porquanto nesta expressão, ‘todos pecaram’, que expressa o
merecido castigo e a culpa da morte quando o pecado e a morte entraram no
mundo, nenhum pecado pode ser incluído nela senão o pecado de Adão, e
nosso interesse nessa questão: ‘Eramus enimomnes ille unus homo’; e isso
não pode ser de outro modo a não ser pela imputação da culpa do pecado
sobre nós”.[124] O pensamento a ser notado aqui é a insistência em que não
pode haver obrigação à pena do pecado sem o pecado, que é o próprio
fundamento daquela obrigação. Isso quer dizer que a obrigação à penalidade
não pode ocorrer a menos que um pecado a anteceda. Decerto isso implica
que a imputação do pecado de Adão a nós não pode ser definida à luz da
obrigação de penalidade; esta é o efeito da imputação. Mais uma vez, em
referência à distinção entre culpa e poena, diz Owen: “Tampouco há algo de
peso na distinção de ‘reatus culpae’ e ‘reatus poenae’; pois esta ‘reatus
culpae’ não é nada senão ‘dignitas poenae propter culpam’... Assim, portanto,
não pode haver punição, nem ‘reatus poenae’, a culpa, mas onde há ‘reatus
culpae’, ou pecado considerado com sua culpa...”.[125] Esta última citação
convenientemente introduz-nos ao que pode muito bem ser considerado o
consenso dos teólogos reformados dos séculos XVI e XVII.
A rejeição de Owen da distinção entre reatus culpae e reatus poenae reflete-
se na antipatia difusa a esta distinção entre os teólogos protestantes. Essa
antipatia brotou do recuo contra o abuso romano dessa distinção pela qual foi
lançado o fundamento da doutrina da satisfação penitencial ou purgativa —
em perdão do pecado, a culpa é remida, mas, para a poena temporal dos
pecados pós-batismais, deve-se cumprir a satisfação nesta vida ou no
purgatório.[126] Mas ainda mais importante para o assunto em pauta é o modo
como os teólogos reformados concebiam as relações entre culpa, reatus e
poena, e mais particularmente, sua insistência em que não pode haver poena
ou, aliás, reatus poenae separada da culpa.
Sobre as relações desses três elementos, a definição de Van Mastricht é
representativa e, em todo caso, mais sucinta: “Reatus, portanto, é o medium
quid entre culpa e poena, pois surge da culpa e leva à poena, de maneira que
é ao mesmo tempo reatus de culpa e de poena e, como meio, intervém entre
esses dois termos e toma seu nome de ambos igualmente”.[127] Reatus
portanto é a imputabilidade na punição que surge da culpa que o pecado
acarreta. Embora não seja impróprio falar de reatus culpae, não se pode
pensar nisso como um reatus distinto de reatus poenae pois, na realidade, o
reatus culpae é simplesmente o reatus poenae. Em nossos termos, a sujeição
acarretada na culpabilidade não é outra senão a obrigação à punição, a
obrigação de satisfazer à justiça. Deveríamos esperar desta definição das
relações de culpa, reatus e poena que não se pode conceber reatus poenae à
parte da culpa. Mas os teólogos reformados têm sido muito zelosos em
insistir neste princípio e não é supérfluo citar algumas das copiosas
evidências que a teologia reformada fornece em apoio deste princípio.
O princípio em questão é claramente enunciado por Calvino. Nos primeiros
capítulos do livro II das Institutas, ele está tratando especificamente do tema
do pecado original e da depravação hereditária, e é neste ponto que ele dá
vazão ao axioma em pauta. No entanto, afirma-se como princípio que detém
uma verdade geral. Do pecado original com o qual os bebês são afligidos, ele
diz: “Donde se segue que o pecado seja propriamente censurado ante os olhos
de Deus, uma vez que não seria reprovado (reatus) se fosse ausente a culpa”.
[128]
Isso quer dizer que não há imputabilidade de pena sem culpabilidade. A
partir daí, como princípio geral, ele argumenta em favor da pecaminosidade
da depravação em que os infantes nascem.
Jerome Zanchius, ao tratar da imputação da desobediência de Adão a nós, é
explícito. Suas palavras são: “Portanto, dizemos que esta desobediência,
embora não pudesse ser-nos transmitida como ato, todavia foi-nos
transmitida como culpa e reatus mediante imputação, à medida que aquele
pecado de Adão como nosso cabeça nos imputa, e isso de modo muitíssimo
merecido, como os membros”.[129] Mais uma vez, “a desobediência de Adão
recai sobre nós como culpa e reatus”.[130]
A Leyden Synopsis é igualmente explícita quando diz: “A forma do pecado
original consiste naquela transgressão e desobediência pela qual todos os que
estavam em Adão... pecaram com ele; a desobediência e culpa com seu
reatus resultante foram justamente imputados por Deus como juiz a todos os
filhos de Adão, à medida que todos eram e são um com ele”.[131]
Embora Amesius não faça uso do termo culpa neste ponto, é interessante
notar os termos em que ele fala da imputação e como ele distingue entre a
imputação e a transmissão que se dá por meio da geração natural. “Esta
propagação do pecado consiste em duas partes, a saber, a imputação e a
transmissão real. Por imputação, o mesmo ato singular de desobediência, que
foi de Adão, torna-se também nosso. Por transmissão real, não chega a nós o
mesmo pecado singular, mas o mesmo em tipo ou de razão e natureza
semelhantes”.[132]
Turretine, também, afirma o mesmo princípio em pelo menos dois pontos. Ao
refletir sobre a falsidade da distinção romana entre reatus culpae e reatus
poenae ele diz que:
a futilidade da distinção transparece na natureza de ambas; visto que a
culpabilidade [culpa] e o castigo [poena] se relacionam, e a culpa [reatus] nada
mais é que a obrigação para com o castigo [poena] oriundo da culpabilidade
[culpa], mutuamente impõem e removem uma à outra, de modo que a
culpabilidade [culpa] e a culpa [reatus], sendo removidas, o próprio castigo
[poena] deve ser removido (porquanto o castigo [poena] só pode ser infligido em

virtude da culpabilidade [culpa]).[133]

Talvez de maior relevância seja o comentário posterior relacionado a 1


Coríntios 15.22 — “em Adão todos morrem” — onde lemos:
Portanto, num só [Adão] e no mesmo homem também pecaram e são mantidos em
comum culpabilidade [culpa] com ele. Ninguém poderia em alguém merecer o
castigo de morte, a menos que tivesse com ele e nele um pecado comum, como
causa da morte. Nem é suficiente dizer que todos morrem em Adão
eficientemente [efficienter] apenas porque contraíram de Adão o pecado original
(que é a causa da morte). Da mesma forma, podemos dizer que morremos em
nossos pais e ancestrais, de quem recebemos o pecado imediatamente (o que, não
obstante, a Escritura em parte alguma afirma, mas somente acerca de Adão,
porque estávamos nele de uma forma peculiar, não só como o princípio seminal,
mas também como o cabeça representativo). Assim somos informados de que
pecamos nele não apenas em razão da eficiência (porque ele é a causa pela qual o
pecado nos é propagado), mas também em razão do demérito (porque por sua
criminalidade [culpa] contraímos culpa [reatus]).[134]
Há pouca margem de dúvida, portanto, de que os teólogos reformados mais
representativos eram zelosos em manter que reatus e poena e, se quisermos,
reatus poenae, sempre pressupõem culpa e que, portanto, nosso
envolvimento no reatus, a obrigação à penalidade, do pecado de Adão quer
dizer que também estávamos envolvidos na culpa de seu pecado. Para usar a
fórmula de Turretine: “poena… nonnisi propter culpam potest infligi”. Se
temos o reatus em comum com Adão, semelhantemente temos sua culpa.
Não eram só os teólogos reformados que defendiam essa correlação de culpa
e poena. Os expoentes clássicos do luteranismo evangélico fizeram o mesmo,
e a semelhança no modo de declarar é evidente. David Hollaz pode dizer: “O
primeiro pecado de Adão, na medida em que ele é considerado pai, cabeça,
raiz e representante comum de toda a raça humana é verdadeiramente e, pelo
justo juízo de Deus, imputado a toda a sua posteridade pela culpa e poena”.
[135]
E Quenstedt diz muito no mesmo sentido: “Pois no pecado do primeiro
homem concorrem: 1. culpa real, 2. reatus legal, 3. perversão natural. Todos
esses entraram no mundo ao mesmo tempo, e na posteridade de Adão. Pois
estamos envolvidos (1) na participação da culpa real, na medida em que
todos pecamos em Adão, (2) na imputação da reatus legal, pois o primeiro
homem levantou-se e caiu como cabeça..., e (3) pela propagação da perversão
natural, porque esta se espalha para todos os homens mediante a concepção
natural”.[136]
Assim, descobrimos que teólogos reformados e luteranos não concebiam o
reatus do pecado de Adão como imputado à posteridade à parte da culpa pelo
mesmo pecado. E isso é simplesmente dizer que a relação da posteridade para
com o pecado de Adão não pode ser interpretada ou definida meramente
como a obrigação de satisfazer a justiça (reatus poenae), mas também deve
incluir, como antecedente e fundamento daquele reatus, envolvimento na
culpa da transgressão de Adão. Daí, quando o Dr. Hodge diz que a imputação
da culpa do pecado de Adão à posteridade não quer dizer a imputação de
“criminalidade” ou “demérito”, mas apenas da “obrigação judicial de
satisfazer à justiça”, descobrimos que somos impelidos a considerá-la uma
divergência dos teólogos reformados mais antigos a respeito do princípio que
consideravam fundamental na construção da doutrina de nossa relação com o
primeiro pecado de Adão. É precisamente o envolvimento da posteridade na
culpa do pecado de Adão que Hodge é zeloso em negar, quando esses outros
teólogos eram insistentes em que poena e culpa são inseparáveis e que reatus
surge de culpa e leva à poena. E pareceria que a dificuldade que encontramos
com a posição do Dr. Hodge do ponto de vista da exegese, especificamente a
exegese de Romanos 5.12, 19, encontra-se bem próxima desta divergência
sobre o papel de Hodge em relação à formulação de outros teólogos
reformados. Em outras palavras, pode ser que a deficiência que se soma à
posição de Hodge a respeito da exegese é a deficiência que os demais
teólogos reformados tentavam evitar com a insistência que acabamos de
discutir. Pode-se dizer, no mínimo, que se a posteridade for considerada
como envolvida na culpa do pecado de Adão, então temos um fator adicional
à luz do qual interpretar “todos pecaram” e “tornaram-se pecadores”.
Para voltar à questão em pauta, isto é, a definição do que é imputado à
posteridade ou, em outras palavras, o significado de “todos pecaram” e
“muitos tornaram-se pecadores” (Rm 5.12, 19), parece ao presente escritor
ilegítimo restringir a imputação à “obrigação jurídica de satisfazer à justiça”
ou ao que amiúde tem-se chamado de reatus poenae. A razão fundamental
deste julgamento já foi indicada. Na passagem crucial (Rm 5.12-19), Paulo
não só fala do salário do pecado como abrangendo a todos, não só da
condenação judicial como recaindo sobre todos, mas também de tudo como
implicado no pecado de Adão com o resultado de que se tornaram pecadores.
Há, semelhantemente, a consideração teológica a que os teólogos reformados
eram sensíveis, de que imputar a responsabilidade penal sem a imputação
daquilo a que a responsabilidade penal se deve é enfrentado com uma
objeção jurídica. Embora não nos caiba resolver todos os mistérios nem de
maneira alguma colocar em questão o governo de Deus infligindo toda a raça
com as consequências penais do próprio pecado de Adão, todavia não temos
necessidade ou direito de complicar o mistério ao fazer o tipo de distinção
que a noção de mera imputação de responsabilidade jurídica implica. A
Escritura não faz essa disjunção e não podemos lançar sobre nossa
formulação teológica uma responsabilidade que a própria Escritura não
justifica e da qual suas declarações expressas nos distanciam.
Há que se admitir inteiramente que a doutrina de nosso envolvimento na
transgressão de Adão é aquela que tem de ser propriamente guardada contra a
interpretação equivocada e não podemos deixá-la aberta a interpretações que
estejam em conflito com outros princípios bíblicos. Quando dizemos que
estamos envolvidos na transgressão de Adão e que este é considerado como
nosso pecado, devemos insistir com tanto zelo quanto o fez Hodge e outros
teólogos em que nós, os membros da posteridade, não comemos pessoal e
voluntariamente do fruto proibido. E tampouco devemos postular qualquer
noção do tipo como transferência de Adão a nós do caráter moral envolvido
em sua transgressão. No mínimo não devemos considerar tal postulado como
indispensável à proposição de que a transgressão de Adão é também nossa
em seu caráter como pecado. De outro lado, não devemos assim atenuar
nosso envolvimento a fim de que o que se concebe como nosso seja
meramente a responsabilidade judicial ou alguma outra consequência do
pecado. Sem consideração ao ensino bíblico, teremos de reconhecer e tomar
em consideração um envolvimento real de nossa parte no pecado de Adão,
que não deve ser interpretado como participação real voluntária ou
transferência de caráter moral, de um lado, e no entanto não há de ser
reduzido ao nível da responsabilidade jurídica de outro. Temos de insistir no
envolvimento da posteridade no pecado de Adão de modo que situe este
envolvimento na categoria de pecado e ainda mantenha que a transgressão de
Adão foi de tal modo que não é nossa. Na linguagem da teologia, temos de
tentar fazer justiça a ambas as considerações, de modo que, a respeito da
posteridade, a transgressão de Adão foi tanto peccatum alienum quanto
peccatum proprium.
No curso dessa investigação, deve-se compreender que estamos agindo assim
com o pressuposto expresso da imputação imediata à posteridade do pecado
de Adão, e a única questão agora é: o que está implicado nessa imputação que
a torna verdadeiramente uma imputação de pecado?
A expressão que Paulo usa, “tornaram-se pecadores”, é paralela e antitética à
outra expressão na apódose de Romanos 5.19, a saber, “tornaram-se justos”.
Esta expressão claramente se refere a uma ação que cai no âmbito da
justificação. Este é o tema com que Paulo está lidando nesta parte da epístola
e interpretar “tornaram-se justos” em termos diversos de “a justiça [que]
Deus” (Rm 1.17; 3.21, 22) faz valer sobre nós na justificação, “a graça [ou, o
dom gratuito] transcorre de muitas ofensas, para a justificação” (Rm 5.16), “o
dom [gratuito] da justiça” (Rm 5.17), “um ato de justiça… para a justificação
que dá vida” (Rm 5.18), e a graça que reina “pela justiça para a vida eterna”
(Rm 5.21) seria um arremedo de exegese. É legítimo perguntar se o ato
constitutivo de Romanos 5.19 é o antecedente lógico do ato justificador ou
está abarcado no próprio ato justificador. Mas esta questão não afeta o fato de
que “tornaram-se justos” deve derivar seu caráter da natureza da justificação.
Ora, se algo é evidente a partir do uso bíblico e do ensino de Paulo em
particular, é que a justificação é forense — tem referência a uma sentença
judicial. Não é mais operativa subjetivamente em seu significado do que o é a
condenação. Daí “tornaram-se justos” deve ter significado forense — alude a
um ato de Deus que contempla o relacionamento forense, o relacionamento
em que uma pessoa é concebida como submissa à lei e à justiça. Visto que é
obviamente um ato de Deus que diz respeito a uma mudança radical de
relacionamento, ela deve significar que Deus constitui uma nova relação
consigo mesmo em virtude do fato de que a pessoa pode ser declarada justa a
seus olhos. E, visto que é pela “obediência de um” que este relacionamento se
constitui, só pode haver uma conclusão, a de que por um ato de graça a
obediência de Cristo se aplica à pessoa em questão de tal modo que o juízo
registrado com respeito àquela pessoa é o juízo que a obediência de Cristo
ocasiona e exige. Dito de outro modo, a pessoa recebe propriedade na
obediência de Cristo com o resultado de que seu status judicial é aquele
pertencente à obediência em que ele veio a ter propriedade; este é o ato de
graça envolvido em “tornaram-se justos”.
A antítese paralela, “tornaram-se pecadores”, terá de ser interpretada em
conjunto com linhas similares. Em relação à investigação precisa sendo
conduzida, ela não pode ser reduzida a termos menores do que aqueles que
encontramos, antiteticamente, em “tornaram-se justos”. E talvez o modo mais
relevante de afirmar o caso por meio do paralelo seja que posteridade veio a
ter propriedade na desobediência de Adão com o resultado de que seu status
judicial é aquele pertencente à desobediência em que eles têm propriedade. A
desobediência de Adão se aplica à posteridade de tal modo que o juízo
registrado sobre eles é o juízo que a desobediência de Adão provoca e exige.
Se podemos falar em termos de imputação, há de modo igualmente
verdadeiro uma imputação da desobediência de Adão tanto quanto da
obediência de Cristo. Como a última imputação não é aquela do benefício
que advém, mas aquela do benefício que se segue à imputação, assim o
primeiro não deve ser concebido como a responsabilidade acarretada, mas a
responsabilidade que flui da imputação. É dentro da esfera forense que a
imputação se dá, mas a imputação não deve ser definida em outros termos
que não aqueles de desobediência e obediência. Vista do ponto de vista
pessoal, a ação voluntária de desobediência num caso é aquela de Adão e a
obediência é aquela de Cristo. Mas o efeito do ato “constituinte” é que outros,
não pessoal e voluntariamente envolvidos, vêm a ter propriedade, na verdade
retidão, na performance voluntária pessoal de outro. É tanto alienum quanto
proprium, e nenhum aspecto deve ser enfatizado à custa da exclusão do
outro.
Quando nos damos conta do que acontece no reino da graça e apreciamos a
realidade da propriedade do crente na justiça de Cristo e a centralidade desta
verdade no evangelho da graça, não é só factível, mas é uma incumbência
nossa ajustar as contas com uma propriedade paralela no pecado de Adão. É
totalmente indefensável excluir a possibilidade de um juízo e governo divinos
pelos quais o pecado de Adão seja considerado como real e propriamente
nosso tanto quanto o é a justiça de Cristo na justificação. E que este seja
realmente o caso é o testemunho da Escritura. Pode ser que este seja o limite
da revelação a nós a respeito do envolvimento da posteridade na transgressão
de Adão. Mas até mesmo que seja este o caso basta para determinar a
realidade de nossa propriedade em nada menos que seu pecado e, com as
qualificações próprias já afirmadas, não parece haver um bom motivo por que
a propriedade devesse ser chamada, como afirmaram alguns teólogos mais
antigos, participação na culpa de sua transgressão.
Não pode ser sem justificativa, entretanto, analisar a questão ainda mais. Em
todo caso, teólogos da família reformada têm agido assim e não pode ser
inútil levar essa busca adiante.[137] Os termos “tornaram-se justos” (Rm 5.19)
devem ser interpretados, como mostrado, dentro do âmbito da justificação e,
portanto, de modo forense. Não podemos, contudo, ignorar o fato de que é
em união com Cristo que se dá esta ação constitutiva. É em virtude da união
com Cristo que os crentes vêm a ter propriedade da justiça de Cristo em sua
justificação. E embora nada deva ser pleiteado para abrandar a natureza
forense da justificação, no entanto, com igual ênfase, a virtude que emana da
união com Cristo deve restringir-se à justificação. Toda a graça concedida aos
crentes encontra seu fundamento ou base na união com Cristo em sua morte e
ressurreição. A renovação subjetiva que é concomitante com a justificação
brota desta união, pois é em virtude da solidariedade com Cristo em sua
morte e ressurreição que as operações regenerativas do Espírito Santo se dão
no crente, quer a regeneração seja logicamente anterior à justificação, como
sustentam alguns, quer seja logicamente posterior, como defendem outros.
Deste modo, a regeneração, embora acarretada pela ação do Espírito Santo,
origina-se da solidariedade com Cristo em seu cumprimento definitivo. Se
seguimos este rumo de pensamento e aplicamo-lo à nossa união com Adão,
podemos propriamente descobrir que embora “tornaram-se pecadores” (Rm
5.19) não possa ser expresso de nenhum outro modo que não a relação
forense com o pecado de Adão, todavia a solidariedade implica mais, por
meio do envolvimento no pecado do que expresso em termos forenses. Não
podemos tentar traçar paralelos em cada detalhe; nas operações da graça
redentora há fatores que de longe transcendem as operações de julgamento
em nossa relação com o pecado de Adão, como Paulo observa em Romanos
5.12-19. Mas um paralelo a esta proporção não é decerto sem garantia, visto
que, como solidariedade representativa com Cristo em sua obediência até a
morte e em sua ressurreição, obtém e assegura a renovação subjetiva na
regeneração, de modo que a solidariedade representativa com Adão em seu
pecado envolvia para a posteridade sua depravação subjetiva tanto quanto o
juízo forense de “tornarem-se pecadores”. A seu modo, pode-se lançar uma
base para melhor entendimento da relação que o fardo da posteridade com a
depravação mantém com a transgressão de Adão. E a perversão não pode ser
concebida sequer como uma inflição penal que surge da imputação do pecado
de Adão, mas como implicação da solidariedade com Adão em seu pecado. A
depravação, portanto, é ela mesma um elemento constitutivo da identificação
com Adão em sua transgressão, e não podemos mais ser isentos da perversão
que a transgressão de Adão envolvia do que podemos ser aliviados do
julgamento forense que passou por ela. Pode contribuir para a elucidação e
sustento desta posição, se apresentarmos as seguintes teses:
(1) Os membros da posteridade não podem ser concebidos como existentes
quando Adão transgrediu. Postular tal suposição é contradizer o significado
de concepção e geração como meios divinamente constituídos para a origem
de todos os membros da raça, com exceção do primeiro casal. No entanto,
todos os membros da raça foram contemplados por Deus como destinados a
existir; foram preordenados a ser e a certeza de sua existência era portanto
garantida. É importante neste ponto ter em mente que uma vez assim
contemplados por Deus, não eram contemplados senão como membros da
raça em união solidária com Adão e, portanto, como tendo pecado nele. Em
outras palavras, não são concebidos na mente e no propósito de Deus exceto
como um com Adão. Não são contemplados como potencialmente, mas
atualmente um com Adão em seu pecado. E esta proposição é fundamental a
todo pensamento posterior sobre a questão.
(2) Todos os membros da raça vieram à existência verdadeiramente pelo ato
ou processo de geração; este é o meio divinamente constituído pelo qual o
projeto preordenado de Deus se manifesta no curso da história. É um erro
capital interpor a pergunta: quando cada membro da raça torna-se de fato
pecador? Pois a verdade é que cada pessoa jamais existe senão como
pecadora. Ele é eternamente contemplado por Deus como pecador em razão
da solidariedade com Adão e, sempre que a pessoa vem a ser
verdadeiramente, vem a ser pecador. A pecaminosidade é correlativa com o
início da existência como indivíduo no útero materno. Se, por ora, falamos da
alma como a sede da personalidade, opõe-se a todas as implicações de nossa
solidariedade com Adão pensar na alma como sempre existente ou como
concebida por Deus como pura entidade imaculada pelo pecado. A alma ou,
de modo mais próprio, a pessoa jamais existe à parte do pecado da
transgressão de Adão.
(3) Se perguntarmos: quando o pecado de Adão é imputado?, a resposta é
evidente. A imputação é correlativa com o início do ser. Este é o único outro
modo de dizer o que foi afirmado no parágrafo anterior. O pecado está
entrelaçado à nossa própria existência em vista da solidariedade adâmica.
(4) Quando tentamos definir este envolvimento que é correlativo com nossa
origem como indivíduos, não podemos dizer menos do que que somos
considerados como tendo pecado em Adão. É necessário reconhecer
plenamente que os teólogos que definem a imputação à luz da obrigação à
punição são ao mesmo tempo apoiados e enfáticos no uso de uma fórmulas
como “pecado em Adão”, “somos considerados como tendo pecado em
Adão”, “o pecado de Adão é imputado a nós”. E isso é evidência de que,
embora eles virtualmente abandonem este terreno quando definem o pecado
meramente como reatus poenae, são, no entanto, incapazes de abandonar as
fórmulas que refletem o ensinamento bíblico e que são exigidas em seu
significado próprio e verdadeiro se as implicações de nossa solidariedade
com Adão houverem de ser corretamente avaliadas. Pareceria que o motivo
por que o Dr. Hodge, por exemplo, podia provisoriamente dispensar o
significado próprio dessas fórmulas e adotar uma definição que está sobre um
fundamento inferior é que ele não estava pronto para cogitar as implicações
que um uso válido dessas fórmulas envolvia.
(5) O pecado de Adão era o que todo pecado é, uma transgressão à lei de
Deus. Como tal, era depravação e perversidade; era culpa sem atenuante. É
impossível pensar em sua transgressão à parte dessas caracterizações.
Quando se predica o pecado dele, seria uma abstração postular tal predicação
à parte destas condições caracterizadoras. Semelhantemente, quando
pensamos na solidariedade da raça com Adão em seu pecado, não é uma
abstração pensar no envolvimento da posteridade à parte dessas mesmas
caracterizações? Se não podemos fazer essa abstração, quer dizer que a
solidariedade da raça com a transgressão de Adão exige de nós inferir que a
depravação e perversidade do pecado são legadas à posteridade em sua
identificação com a transgressão original. Isso é o mesmo que dizer que,
quando cada membro da raça vem à existência, ele existe, desde o início de
seu ser, como depravado com aquela perversidade que sua identificação
solidária com o pecado de Adão envolve.
Se esta análise estiver correta, o problema da relação da depravação com a
imputação da transgressão de Adão é posta numa perspectiva diferente
daquela frequentemente imaginada. A representação normalmente feita por
aqueles que defendem a imputação imediata é que a inflição da raça com a
depravação é a consequência penal da imputação do pecado de Adão. Não é
tão certo, contudo, que esta seja a análise mais precisa ou que repouse em
base bíblica. Na interpretação precedente, seria o caso de que a inflição da
depravação está envolvida na imputação do pecado de Adão; nosso
envolvimento no pecado de Adão e nossa identificação com ele traz consigo
um ingrediente necessário de depravação e perversidade à parte do qual o
pecado não existe. Em outras palavras, a imputação do pecado de Adão traz
consigo — não meramente como consequência, mas como implicação — a
depravação com a qual todos os membros da raça começam sua existência
como indivíduos distintos. A imputação não é, portanto, concebida como algo
causalmente precedente à depravação, mas como aquilo que inclui a
depravação como um elemento.
Ademais, a relação da depravação com a geração natural também pode ter de
ser formulada de maneira diferente. Pode não ser estritamente preciso dizer
que nos tornamos depravados por geração natural. É verdade que no ato de
geração nos tornamos depravados. Isso é verdade porque é por geração que
vimos a existir como pessoas distintas. Neste sentido, não seria impróprio
dizer que nos tornamos depravados por geração natural. Mas a geração
natural não é a razão por que somos concebidos em pecado. Não é uma
explicação adequada de nossa depravação dizer que pela lei da geração
semelhante gera semelhante e, visto que Adão tornou-se depravado, era
inevitável que ele gerasse filhos na mesma condição depravada. É necessário,
claro, levar em conta este fator. Mas a razão por que somos naturalmente
gerados em pecado é que, sempre que começamos a existir, começamos a ser
pecadores por causa de nossa solidariedade com Adão em seu pecado.
Portanto, a relação da geração natural com a depravação é que pela primeira
começamos a existir e, tendo começado a existir, somos necessariamente
pecadores em razão de nosso envolvimento no pecado de Adão. Geração
natural, podemos dizer, se quisermos, como meio de transmitir a depravação,
mas estritamente, a geração natural é o meio pelo qual passamos a existir, e a
depravação é o correlato de nossa vinda ao ser. Não podemos pensar que as
declarações bíblicas mais relevantes nos ofereçam uma interpretação
diferente. “Em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51.5), “o que é nascido
da carne é carne” (João 3.6), e “éramos, por natureza, filhos da ira, como
também os demais” (Ef 2.3) apontam para o fato de que somos concebidos e
nascemos em corrupção. Mas esses textos não vão além para determinar o
fato de que somos depravados desde o útero materno e que a geração natural
inevitavelmente produz natureza humana corrupta.
Objeções a esta interpretação da relação entre depravação e imputação do
pecado de Adão são facilmente previsíveis. Talvez a mais plausível seja que
o paralelo entre a imputação do pecado de Adão a nós e a imputação de
nossos pecados a Cristo entra em colapso se esta análise estiver correta. Pois
de jeito nenhum podemos dar espaço ou emprestar qualquer apoio à ideia de
que na imputação de nossos pecados a Cristo quando ele tomou vicariamente
nossos pecados houve tal envolvimento como inflição com a depravação do
pecado. Nosso Senhor era santo, inocente, imaculado e separado dos
pecadores; foi sem mancha ou culpa e nenhuma perversão tocou-lhe a alma.
Este é um axioma da fé cristã e fazer concessões aqui é abandonar o
cristianismo. Mas instigar isso como uma objeção à formulação em pauta é
totalmente inválido. Há várias observações.
(1) A imputação do pecado de Adão à posteridade traz consigo em qualquer
caso a inflição da raça com a depravação. Se concebermos esta depravação
como implicada na imputação ou como consequência penal, é um resultado
inevitável. Não havia perversão resultante para nosso Senhor a partir de seu
ato vicário de tomar sobre si os pecados. Visto que há esta diferença patente e
radical, a questão em pauta não é afetada se concebermos a depravação que
recai sobre a posteridade como algo implicado na imputação do pecado de
Adão. As implicações da imputação nos respectivos casos são radicalmente
diferentes quanto à perversão em relação à qual a objeção é levantada. Daí a
objeção não ter validade.
(2) O fato de Cristo vicariamente ter tomado o pecado sobre si e a imputação
que ele pressupõe estão numa categoria particular. Não devemos permitir que
esta singularidade seja prejudicada ao traçar o paralelo com a imputação do
pecado de Adão em termos tão fechados que virtualmente obliteremos as
diferenças. Essas diferenças são tão básicas que descobrir uma diferenciação
radical nesta matéria de perversão exemplificaria as características sem
paralelo do ato vicário de Cristo de tomar os pecados sobre si.
(3) Na interpretação do ato de Cristo de tomar nossos pecados, temos uma
concepção demasiado limitada de seus envolvimentos para ele se o virmos
meramente como satisfação penal. Cristo de fato suportou a pena dos
pecados de seu povo. Mas a tendência a restringir seu ato de tomar sobre si os
pecados à simples noção de penalidade empobrece nossa apreciação do que
seu sacrifício vicário demandava e implicava. Basta lembrar que as Escrituras
não descrevem sua realização como consistindo apenas em sofrer nosso
castigo; “ele suportou nossos pecados”. “O Senhor tomou sobre si a nossa
iniquidade.” Ele esteve na mais estreita relação com nossos pecados que lhe
era possível sustentar sem tornar-se ele mesmo assim maculado, e este é o
mistério da humilhação, da graça e do amor que a eternidade não esgotará.
Esta perspectiva a respeito do ato vicário de Cristo de tomar sobre si os
pecados é paralela neste locus de doutrina à outra discussão relacionada à
imputação do pecado de Adão, a saber, que esta não pode ser interpretada
simplesmente como reatus poenae. Uma apreciação mais profunda do
significado do ato de Cristo de suportar o pecado e da imputação envolvida
aponta para um conceito mais inclusivo do que está implicado na imputação
do pecado de Adão.
(4) No ponto da objeção não se deve ignorar que as expressões precisas
usadas na Escritura com referência à solidariedade da raça no pecado de
Adão não tem paralelo na associação com o fato de Cristo ter tomado os
pecados sobre si. Com referência à posteridade, lemos que “todos pecaram” e
“muitos se tornaram pecadores”. Mas, conquanto se diga que Cristo “se fez
pecado por nós” (2Co 5.21), “fez-se ele próprio maldição” (Gl 3.13),
carregou nossos pecados (1Pe 2.24), foi enviado “em semelhança de carne
pecaminosa” (Rm 8.3), todavia não lemos que ele pecou ou tornou-se
pecador. Há nesta discriminação um indicador da diferença que deve ser
postulada entre imputação como se aplica ao pecado de Adão e como se
aplica ao Cristo que carrega os pecados. Descobrir a diferenciação, visto que
diz respeito à perversão, do modo preciso formulado acima, não só é
consoante com a diferença, mas exemplifica a mesma coisa de um modo que
é muitíssimo apropriado.
Pode ser que este pensamento sobre esta questão de nossa relação com o
pecado de Adão tenha recebido uma direção demasiado restrita pela
concentração excessiva na noção de imputação. Se mantivermos em mente o
que se encontra na base da imputação, a saber, a união ou a solidariedade
com Adão e, portanto, a solidariedade com Adão na transgressão, recebemos
um conceito que oferece e aponta a direção de uma definição mais inclusiva
do que está envolvido para a posteridade na imputação do pecado de Adão.
Se se reconhece que o envolvimento da posteridade no primeiro pecado de
Adão traz consigo como implicação ou ingrediente a perversão que a
transgressão de Adão implicava, esta interpretação presta um serviço triplo.
Primeiro, oferece-nos uma linha de pensamento que transmite à ideia do
pecado de todos no pecado de Adão um significado à altura da definição de
pecado. O pecado da posteridade não é aquele de simples reatus abstraído da
única base própria de reatus, a saber, o próprio pecado. Em segundo lugar,
leva a doutrina da imputação imediata do pecado de Adão a seus lugares
lógicos, porque esta interpretação encontra na depravação com que a
posteridade é infligida a implicação direta da solidariedade com o pecado de
Adão — a perversão é em si mesma um ingrediente do pecado solidário. E,
em terceiro lugar, confirma a análise que era característica tanto de teólogos
reformados quanto de luteranos, segundo a qual a reatus poenae pressupõe
culpa. Na análise precedente, culpa é claramente exibida na perversão
solidária.
Sobre o autor

John Murray (1898-1975) foi reconhecido ainda em seus


dias como um dos principais teólogos reformados do
mundo anglófono. Murray dedicou a maior parte de sua
distinta carreira ao ensino de Teologia Sistemática no
Seminário Teológico de Westminster (na Filadélfia, EUA).
Ele era um estudioso aplicado, comunicador eloquente,
pregador comovente e autor de notáveis artigos e livros. As
paixões que o moviam eram anunciar a Palavra de Cristo,
promover sua causa e abençoar seu povo. Seu Comentário
sobre Romanos, bem como os livros A imputação do
pecado de Adão e Redenção consumada e aplicada
permanecem testemunhos de sua erudição e grande
compreensão das Escrituras.
[1]
The Christian Doctrine of Creation and Redemption. Dogmatics, Vol. II (Londres, 1952), p. 103.
[2]
The Epistle of Paul to the Romans (Londres, 1934), p. 79.
[3]
Ibid., p. 80.
[4]
Op. cit., p. 104.
[5]
Op. cit., p. 80.
[6]
Anders Nygren: Commentary on Romans (Filadelfia, 1949), p. 207-209.
[7]
Ver Pelagius’s Expositions of Thirteen Epistles of St. Paul, Alexander Souter (Ed.), Cambridge, 1926, Nº 2, p. 45 in
Texts and Studies. Contributions to Biblical and Patristic Literature, J. Armitage Robinson (Ed.), Vol. IX, Nº 2.
[8]
Cf. Heinrich A. W. Meyer: Critical and Exegetical Handbook to the Epistle to the Romans (E. T., Nova Iorque,
1884), pp. 193ss. “A ilustração, qual seja, a introduzida nos vs. 13-14, oração ejf= w{/ pavnte" h{marton [ ef ’ Jw
pantes Jhmarton , porque todos pecaram], não permite agora que seja acrescentada a segunda metade da comparação
que pertence sintaticamente ao w{sper [ Jwsper , como], de sorte que o apóstolo, levado a esse ponto pelo fluxo
impetuoso do raciocínio, a partir do qual não consegue mais reverter à construção com que iniciou, não hesita em
suprimir a segunda [...] e em introduzir na sequência apenas o tom maior daquilo que está faltando por meio da oração
relativa anexada a *AdaVm o{“ ejstin tuvpo” tou' mevllonto” [ Adam Jos estin typos tou mellontos , de Adão o qual é
tipo do que haveria de vir] no versículo 14”.
[9]
Meyer (ibid., p. 194; cf. p. 215) contesta os outros intérpretes que defendem que a primeira metade da comparação é
continuada no versículo 18 e reclama para apoiar sua visão “não só o tamanho sem precedentes, mas ainda mais o
conteúdo do suposto parêntesis, que em si mesmo já abrange o paralelo sob todos os aspectos”, e conclui: “No
versículo 18 ss., temos recapitulação, mas não continuação”
[10]
É desnecessário nesta fase da história da exposição alegar que a tradução da Vulgata, “in quo omnes peccaverunt”,
apesar de teologicamente verdadeira, conforme veremos, é insustentável do ponto de vista gramatical. A força de ejf=
w{/ [ ef ’ Jw , visto que] é causal e significa “pelo que”, “pelo fato de”, ou simplesmente “porque”.
[11]
Cf. Pelagius: op. cit. “Propter ea sicut per unum hominem in hunc mundum peccatum introiit el per peccatum
mors. Exemplo uel forma. quo modo, cum non esset peccatum, per Adam aduenit, ita etiam, cum paene aput nullum
iustitia remansisset, per Christum est reuocata […] Et ita in omnes homines [mors] pertransiit, in quo omnes
peccauerunt. Dum ita peccant, et similiter moriuntur” (p. 45). “Sicut enim per inoboedientiam unius hominis peccatoris
constituti sunt plurimi, ita et per unius oboedientiam iusti constituentur multi. Sicut exemplo inoboedientiae Adae
peccauerunt multi, ita et Christi oboedientia justificantur multi” (p. 48).
[12]
A consideração de que nem todos os homens se enquadram na categoria de Adão milita contra a concepção de
Brunner, segundo a qual todos somos “Adão”. Ora, se todos somos “Adão”, com relação ao ensinamento de Paulo
nessa passagem, então, como poderia Paulo falar de alguns como não pecando à semelhança da transgressão de Adão?
Em outras palavras, nos termos da condição estabelecida, a qual é fundamental para analogia usada por Paulo, qual
seja, a da única transgressão do único homem Adão, todos nós não somos “Adão”. Não levarmos em conta a
singularidade, a “unicidade”, de Adão quanto à posição que ele ocupa nessa passagem seria renunciar cabalmente à
exegese.
[13]
Para conhecer a perspectiva de Catarino, veja Pietro Soaue Polano: The Historie of the Councel of Trent
(Nathanael Brent, Londres, 1640), p. 175 ss.
[14]
Veja Alberto Piguio: Controversiarum Praecipuarum [...] Luculenta Explicatio (Colônia, 1542). Ao lidar com
Romanos 5.12-19, ele afirma: “Uides, ut Apostolus perpetuo, et constantissime uni peccato unius Adae, acceptum
referat mortis regnum, et damnationis, sub quo omnes conclusi sumus, iudicium: unum, et unius peccatum dicit, cuius
demerito, omnes mortui sumus [...] In illo, non in nobis, peccasse omnes. In illo ergo, non in nobis fuit illud peccatum,
quo peccauimus omnes. Unius illius inobedientia, non sua propria, peccatores constitutes multos, qui per aetatem, sub
lege nondum existentes, sua inobedientia potuerunt peccatores fi eri […] Proinde, quasi interrogares, ob cuius peccatum
paruulus, reus, et peccator sit, tibi diserte respondet Apostolus, non ob suum, sed ob Adae peccatum, illum reatu
constringi, et peccatorem constitui...” (Fol. XXIV a). Cf. em Martin Chemnitz uma declaração sucinta sobre a posição
de Piguio: Examen Concilii Tridentini (Berlim, 1861), p. 103.
[15]
Conforme tradução de H. J. Schroeder: Canons and Decrees of the Council of Trent (St. Louis e Londres, 1941), p.
21.
[16]
Joseph Pohle, Arthur Preuss (Ed.): God the Author of Nature and the Supernatural (St. Louis e Londres, 1934), p.
233.
[17]
Ibid., p. 246.
[18]
Ibid., p. 248.
[19]
“Em essência, o pecado original consiste na privação da graça, até onde essa privação é voluntária em todos os
homens mediante a vontade do progenitor deles” (ibid., p. 269). Cf. também George D. Smith (Ed.): The Teaching of
the Catholic Church (Nova Iorque, 1949), Vol. I, p. 345
[20]
“A concupiscência como tal não constitui a essência do pecado original” (ibid., p. 261).
[21]
Cf. Ad. Tanquerey: Synopsis Theologiae Dogmaticae (Nova Iorque, 1933), Tomo II, p. 566. “Ergo peccatum de
quo agit S. Paulus non est peccatum actuale; nec aliunde mera poenalitas aut sola concupiscentia, sed peccatum sui
generis, peccatum habituale quod in suo ambitu complectitur reatum culpae, concupiscentiam seu inclinationem ad
peccandum, et utriusque transmissionem in omnes homines ob solius Adae culpam.”
[22]
“Portanto, o pecado original, conforme existe em cada um de nós, é voluntário, na verdade, não por nenhum ato de
nossa vontade pessoal, mas pelo ato da ‘herança familiar’, mediante nosso relacionamento de dependência espiritual, e
solidariedade, com nosso primeiro cabeça sobrenatural, divinamente instituído, e representante: Adão” (Geo. D. Smith:
op. cit., p. 348).
[23]
Comm. ad Rm 5.12; cf. ad Rm 5:15,17. [João Calvino, Romanos. Tradução de Valter Graciano Martins. 2ª Ed. São
Paulo: Edições Parakletos, 2001. p. 192-93.]
[24]
William G. T. Shedd: Dogmatic Theology (Nova Iorque, 1889). Vol. 11, p. 30.
[25]
Ibid., p. 36.
[26]
Cf. ibid., p. 43 ss.
[27]
Ibid., p. 43 ss.
[28]
Augustus Hopkins Strong: Systematic Theology (Filadélfia, 1907), Vol. 11, p. 619 ss.
[29]
Ibid., p. 621; cf. Samuel J. Baird: The Elohim Revealed in the Creation and Redemption of Man (Filadélfia, 1860),
p. 305-334; Philip Schaff em John Peter Lange: A Commentary on the Holy Scriptures (Nova Iorque, 1915), The
Epistle of Paul to the Romans, p. 178 ss. As citações que A. H. Strong faz de autoridades (op. cit., p. 622) não são
muito confiáveis. Seus apelo a diferentes teólogos para sustentar a posição realista é marcado por falta de critérios,
como mostraremos mais tarde. Por exemplo, o exame de H. Martensen: Christian Dogmatics, p. 173-183 ou de C. A.
Auberlen: The Divine Revelation, p. 175-180 não revelará a posição realista.
[30]
Institutio Theologiae Elencticae. Locus IX, Quaestio IX, &&XI, XII.
[31]
Op. cit., p. 621; cf. também Shedd: op. cit., p. 44
[32]
Institutio Christianae Religionis, II, i, 5: “Qua de re multa fuit illis concertatio, quum a communi sensu nihil magis
sit remotum quam ob unius culpam fi eri omnes reos, et ita peccatum fi eri commune”.
[33]
Inst. II, i, 6: “Qui nos omnes in Adam mortuos esse pronuntiat, jam simul aperte quoque testatur, peccati labe esse
implicitos. Neque enim ad eos perveniret damnatio qui nulla iniquitatis culpa attingerentur”.
[34]
Idem: “Neque id suo unius vitio, quod nihil ad nos pertineat; sed quoniam universum suum semen ea, in quam
lapsus erat, vitiositate infecit”.
[35]
Ibid., II, i, 5: “Omnes ergo qui ab impuro semine descendimus peccati contagione nascimur infecti”.
[36]
Ibid., II, i, 6.
[37]
Idem.
[38]
Ibid., II, i, 7: “Proinde a radice putrefacta rami putridi prodierunt, qui suam putredinem transmiserunt ad alios ex
se nascentes surculas”.
[39]
Ibid., II, i, 6.
[40]
Ibid., II, i, 5: “Nos non ascita nequitia corrumpi, sed ingenitam vitiositatem ab utero matris afferre”.
[41]
De Peccatorum Meritis et Remissione, I, x, 11: “in quo omnes peccaverunt; quando omnes ille unus homo
fuerunt”; cf. ibid., III, vii, 14.
[42]
De Civitate Dei, XIII, xiv; cf. ibid., XIII, iii. Com leve variação, essa é a tradução de Marcus Dods em A Select
Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers (Búfalo, 1887).
[43]
Cf. De Pec. Mer. et Rem., I, ix, 9.
[44]
Idem, conforme traduzido em A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers (Nova Iorque, 1887).
[45]
Ibid., I, ix,10.
[46]
Idem, conforme traduzido em A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers (Nova Iorque, 1887).
[47]
De Pec. Mer. et Rem., 111, vii, 14: “Unde nec illud liquide dici potest, quod peccatum Adae etiam non peccantibus
nocuit, cum Scriptura dicat, in quo omnes peccaverunt. Nec sic dicuntur ista aliena peccata, tanquam omnino ad
parvulos non pertineant: siquidem in Adam omnes tunc peccaverunt, quando in ejus natura illa insita vi qua eos gignere
poterat, adhuc omnes ille unus fuerunt: sed dicuntur aliena, quia nondum ipsi agebant vitas proprias, sed quidquid erat
in futura propagine, vita unius hominis continebat”.
[48]
Cf. De Civ. Dei, XIII, xiv.
[49]
De Pec. Mer. et Rem., I, ix, 10.
[50]
Cf. Shedd: op. cit., p. 36.
[51]
É de fato desnecessário afirmar, como o faz Shedd, que “a união representativa demanda e supõe o consentimento
dos indivíduos representados” (ibid., p. 39). Não é esse o caso em alguns relacionamentos solidários existentes entre os
homens, pela constituição divina. No Estado, por exemplo, é uma falácia supor que a solidariedade surge mera e
exclusivamente do consentimento de cidadãos ou súditos. O Estado é uma ordenança divina e suas sanções e
responsabilidades não emanam do contrato voluntário da parte dos membros.
[52]
Cf. Shedd: ibid., p. 57.
[53]
Ibid., p. 39; cf. pp. 37ss. Deve-se notar, porém, que os realistas não deixam de falar de Adão como cabeça
representativa da raça humana. Phillip Schaff diz: “Adão caiu, não simplesmente como indivíduo, mas como a
verdadeira cabeça representativa da raça humana” (op. cit., p. 179); e A. H. Strong: “Apenas com base na suposição da
Cabeça Natural é que Deus poderia, com justiça, constituir Adão como o nosso representante, ou então nos considerar
responsáveis pela natureza corrompida que recebemos dele” (op. cit., p. 623). No entanto, essa maneira de usar a
palavra “representante”, no conceito deles, tem por base a concepção da unidade específica da raça em Adão e não
comunga da conotação peculiar atrelada a ela pelos representes da visão representativa para se diferenciar e se opor à
visão realista.
[54]
Cf. Shedd: op. cit., p. 36.
[55]
Cf. A interpretação de Shedd sobre Calvino quanto a isso (ibid., p. 44).
[56]
Pode parecer que a Confissão de fé de Westminster (Capítulo VI.iii) fundamente a imputação do pecado de Adão
na relação seminal, quando se refere aos nossos primeiros pais dizendo: “Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o
delito de seus pecados foi imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida,
foram transmitidas a toda a sua posteridade, que deles procede por geração ordinária”. O Catecismo maior, no entanto,
fundamenta a imputação do pecado de Adão na instituição da aliança: “O pacto, sendo feito com Adão, como um
representante legal, não para si somente, mas para toda a sua posteridade, todo o gênero humano, descendendo dele por
geração ordinária, pecou nele e caiu com ele naquela primeira transgressão” (P. 22; cf. Breve catecismo, P. 16). Como a
diferença deve ser explicada é outra questão na qual não é necessário entrar agora.
[57]
Synodicon in Gallia Reformata: or, the Acts, Decisions, Decrees, and Canons of those Famous National Councils
of the Reformed Churches in France, org. John Quick (Londres, 1692), vol. 11, p. 473.
[58]
“Sin vero per primum Adae peccatum, primum ejus peccatum actuale intelligitur […] distinguenda est imputatio in
imputationem immediatam seu antecedentem, et imputationem mediatam seu consequentem: illa fit immediate, hoc est,
non mediante corruptione; haec fit mediate, hoc est, mediante corruptione haereditaria. Illa ordine naturae corruptionem
antecedit; haec sequitur. Illa corruptionis causa censetur esse, haec effectum. Illam Placeus rejicit, hanc admittit”
(Opera Omnia, I, p. 173).
“Potest enim animo concipi duplex imputatio. Immediata et Mediata […] Immediatam voco eam, quam solam
Theaibus, quas tu refutandas tibi sumpsisti, negare volui; qua putatur actio illa Adami, hoc est, vetiti fructus
manducatio ejus posteris omnibus (Christo excepto) proxime, immediate, hoc ipso quod filii sunt Adami, imputari ad
duas istas poenas proprie dictas, privationem justitiae originalis quam mortem spiritualem appellas, et mortem
aeternam. Hanc solam imputationem actionis illius ego negavi, quia non docetur in Sacris literis adequata fidei nostrae
norma, quia pugnat cum Sacris literis, quia Deum facit authorem peccati, quia Dei justitiam dehonestat, quia sequitur
ex ea Christum esse natura sua peccatorem, quia alia nonnulla trahit secum absurda, mirabilem religionis Christianae
puritatem et splendorem obscurantia, quae utinam fratres et conservi nostri a me per theses moniti, aut non prorsus
contempsissent, aut non contemptim expendissent!
“Mediatam seu consequentem appello earn, quae haereditariae corruptionis in nos ab Adamo derivatae
intuitum consequitur, eaque mediante fit. Hujus enim corruptionis participatione communicamus peccato Adami, eique,
ut ita loquar, habitualiter consentimus, ac propterea digni sumus, qui Adamo peccatori annumeremur” (ibid., p. 280).
“Quaeritur, Utrum primum peccatum actuale Adami praecise sumptum, nobis ejus posteris imputetur a Deo
justo judice proxime, immediate ac ordine naturae priusquam inhacrenkter corrupti simus? Tu venerande Frater
affirmas: ego nego” (ibid., p. 281).
[59]
“Quandocunque igitur Deus nobis peccatum originis imputare dicatur, sive cum sumus, siue antequam simis, sive
in tempore, sive ab aeterno, id peccatum aliud nihil est quam inhaerens illud a nativitate nobis vitium, quod a primo
nostro parente non per imputationem, sed per carnalem generationem traximus” (ibid., p. 442). “Denique de jure non
magis ad me poena Adami pertinet quam culpa (ibid., p. 291). “Cum enim affirmo, peccatum actuale Adami nobis non
imputari, non hoc volo, peccatum illud non considerari ut peccatum, sed tegi, condonari, et remitti nobis […] Sed,
quicquid fit, contendo peccatum illud Adami actuale nostrum peccatum non esse. Itaque nobis jure imputari non posse”
(ibid., p. 307). “Tribus autem modis communicari potest peccatum, docendo, imputando, et propagando generatione
naturali. Non communicavit (Adamus) autem docendo […] Non communicavit etiam imputatione; nam nec imputatio
est actio Adami, nec actio justi judicis peccatorem facit […] Communicavit igitur propagatione naturali, transmisso per
generationem carnalem semine, quam naturae, tam vitiositatis naturae […] Haec corruptio peccatum est, non quidem
actuale, aed habituale, et voluntaria eat, non ut actio, sed ut qualitas, hoc est, non quia est a voluntate, sed quia est in
voluntate” (ibid., p. 708 s.).
[60]
Cf. a afirmação de Francis Turretine sobre a imputação mediata: “Verum si penitus res attendatur, non obscure
patebit distinctionem istam ad fucum faciendum esse excogitatam, quae nomen imputationis retinendo, rem ipsam de
facto tollit. Nam si ideo tantum Adae peccatum nobis imputari dicitur mediate, quia apud Deum rei constituimur, et
obnoxii poenae fi mus propter corruptionem haereditariam quam ab Adamo trahimus, nulla erit imputatio proprie
peccati Adami, sed tantum labis inhaerentis” (Institutio Theologiae Elencticae, Loc. IX, Quaest. IX,8 VI).
[61]
Decretum Synodi Nationalis Ecclesiarum Reformatarum Galliae initio Anni 1645 de Imputatione Primi Peccati
Omnibus Adami Posteris (ver Opera Theologica, Rotterdam, 1660, Tomo III, p. 798-823). Veja a tradução para o inglês
de algumas citações de Rivetus feitas por Charles Hodge no Theological Essays: Reprinted from the Princeton Review
(Nova Iorque, 1846), p. 196-217.
[62]
A prioridade da imputação do primeiro pecado de Adão aparece como bastante clareza, por exemplo, nas citações
de William Bucanus, Amandus Polanus, Theodore Beza, Lambertus Danaeus Aureliur e Robert Rollock. A tese
principal de Rivetus, a saber, que a distinção estabelecida pelo Sínodo de Charenton era o sentimento comum das
igrejas protestantes, é confirmada pelas citações. É óbvio que Placaeus não professava estar em desacordo com tal tese.
Deve-se ter em mente, no entanto, que foi para apoiar a distinção estabelecida pelo Sínodo que Rivetus compilou esses
testemunhos, ao passo que a Disputatio de Placaeus dedica-se à refutação da imputação imediata. Como, porém,
algumas citações enquadram-se diretamente nessa última questão, o tratado de Rivetus é de considerável valor no que
tange ao debate da imputação imediata.
[63]
Cf. Placaeus: op. cit., p. 446-459
[64]
Formula Consensus Helvetica, Canones X, XI, XII.
[65]
Com relação a Campegius Vitringa, o Ancião, a única reflexão acerca da questão que consegui achar em sua obras
publicadas foi a da Doctrina Christianae Religionis per Apharismos Summatim Descripta (Leiden, 1762), editada por
Martinus Vitringa, na qual ele afirma: “Qui reatus, an a primo Adami peccato mediate, an immediate pendeat, in
scholis subtilius magis, quam utilius disputatur; cum eadem utrobique res teneatur, et adversus Pelagianizantes
asseratur. Id certum, intervenisse hic Dei judicium, et posse proinde hoc consequens peccati protoplastorum, in eorum
posteris, hoc sensu appelari peccatum originale imputatum” (§ 11, p. 347 ss.). Isso talvez indique que Vitringa não se
preocupava muito com a disputa de uma doutrina contra a outra. A extensa e informativa nota escrita por Martinus
Vitringa no mesmo volume (p. 349-353) fornece um levantamento do debate no século 17 e dos teólogos nele
envolvidos. A edição inglesa das Institutas da Teologia, escritas por Venema e traduzidas por Alex W. Brown
(Andover, 1853), mostra com toda clareza que Venema esposa a imputação mediata (cf. p. 518 ss.). Usaremos mais
adiante a posição de Stapfer para tratar de Jonathan Edwards.
[66]
Henry B. Smith: System of Christian Theology (Nova Iorque York, 1888), p. 304-308.
[67]
Ibid., pp. 314ss.
[68]
Works (Boston, 1854), vol. I, p. 214.
[69]
Ibid., p. 215-217.
[70]
Ibid., p. 216.
[71]
Ibid., p. 218.
[72]
Ibid., p. 230.
[73]
Ibid., p. 226.
[74]
Ibid., p. 224.
[75]
Ibid., p. 222.
[76]
Ibid., p. 224.
[77]
Cf. ibid., p. 225. Nesse aspecto, parece-me que a discussão de F. H. Foster em A Genetic History of the New
England Theology (Chicago, 1907), p. 175 ss. é nitidamente desorientadora. Ele não diferencia o suficiente para deixar
claro o que Hopkins quer dizer com “atual” em oposição a ação da vontade.
[78]
Works (Boston, 1842), vol. IV, p. 487.
[79]
Ibid., p. 488.
[80]
Ibid., p. 490.
[81]
Idem.
[82]
Ibid., p. 491.
[83]
Theology Explained and Defended (Nova Iorque, 1863), vol. I, p. 478 s.
[84]
Cf. ibid., p. 480.
[85]
Essays, Lectures, Etc. upon Select Topics in Revealed Theology (Nova Iorque, 1859), p. 242.
[86]
Ibid., p. 246.
[87]
Idem.; cf. p. 193.
[88]
Ibid., p. 192; cf. também p. 294.
[89]
Ibid., p. 204; cf. também p. 195: “Quando digo que a humanidade é depravada por natureza, quero dizer que a
depravação — que já descrevi e provei que pertence à humanidade —, origina-se verdadeira e apropriadamente das
propensões físicas ou constitucionais do homem para o bem natural que pertence ao homem, como homem, nas
circunstâncias de sua existência como a causa ou ocasião dela...”.
Mais uma citação ajudará a salientar a posição de Taylor, divergente da crença protestante, e em especial
como ela conflita com o ensinamento de Jonathan Edwards, o suposto pai da Teologia da Nova Inglaterra: “A
depravação moral dos homens também não consiste de uma natureza pecaminosa, corrompida por eles por ser uma com
Adão e por agir no ato dele. Para acreditar que eu sou um e o mesmo ser com outro, o qual existiu milhares de anos
antes de eu nascer, e que em virtude dessa identidade eu realmente agi no ato dele, sendo eu, portanto, de fato culpado
do pecado dele como ele mesmo. Para acreditar nisso, tenho de renunciar à razão que meu Criador me deu e
desconsiderar o juramento de Deus contra essa falsidade, conforme registrado [Ez 18.3-4]”. (Concio ad Clerum, New
Haven, 1828, p. 5 s.).
[90]
Op. cit., p. 150.
[91]
Ibid., p. 151.
[92]
The Reformers and the Theology of the Reformation (Edimburgo, 1866), p. 384.
[93]
“Edwards and the New England Theology” in Hastings: Encyclopaedia of Religion and Ethics, reimpressa em
Studies in Theology (Nova Iorque, 1932). p. 530.
[94]
The Great Christian Doctrine of Original Sin Defended in Works (Nova Iorque, 1855), vol. II, p. 481.
[95]
Ibid., p. 459.
[96]
Ibid., p. 461; cf. p. 460.
[97]
Não é necessário discutir se Edwards, da forma como via a união adâmica, era ou não um realista. Os Realistas,
bem como os Federalistas, aferram-se à imputação imediata e o tema em discussão não é afetado pela questão da
afinidade de Edwards nesse outro tema.
[98]
Ibid., p. 481 s.
[99]
Ibid., p. 482.
[100]
Ibid., p. 482 ss.
[101]
Ibid., p. 482.
[102]
Idem.
[103]
Ibid., p. 481 ss.
[104]
Cf. ibid., p. 480.
[105]
Idem.
[106]
E suponho que ocorre exatamente isso a cada ramo natural da humanidade: todos são vistos pecando em e com
sua comum raiz; e Deus priva-nos todos de influências especiais e comunicações espirituais por causa desse pecado
(idem).
[107]
Ibid., p. 482.
[108]
Idem.
[109]
Idem.
[110]
Cf. Thomas Goodwin: Works (Edimburgo, 1865), vol. X, p. 12; vol. V, p. 182.
[111]
Edwards: op. cit., p. 482.
[112]
Hopkins: op. cit., p. 230.
[113]
J. Taylor: Essays, conforme citado, p. 193.
[114]
Como já mencionado, J. F. Stapfer foi classificado como o proponente da imputação mediata e alega-se que
Edwards segue a Stapfer nesse sentido, por citá-lo com aprovação (op. cit., p. 483 ss.). Se Edwards não desenvolveu a
doutrina da imputação mediata, como foi defendido na discussão precedente, então seu apelo a Stapfer não era em
favor dessa doutrina. No entanto, ainda pode ser verdade que Stapfer forjou a ideia, esposada por Edwards, no molde da
imputação mediata e ele apropriou-se da primeira sem a última. Todavia não é evidente, a partir do estudo das reflexões
de Stapfer sobre a questão em sua Institutiones Theologiae Polemicae Universae (Zurique, 1743-1750), que ele tenha
adotado a imputação mediata em oposição à imediata. Ele diz: “Et cum omnes posteri ex primo parente ceu ex radice
ortum suum trahunt, generis humani universitas cum stirpe non aliter, quam unicum aliquod totum, sive unica massa
considerari potest, ut non sit aliquid a stirpe diversum, et non aliter ab ea differunt posteri ac rami ab arbore.
“Ex quibus facile patet, quomodo stirpe peccante omne illud quod ab ea descendit, et cum ea unicum aliquod
totum effi cit, etiam peccasse judicari possit, cum a stirpe non differat, sed cum ea unum sit.
“Doctrina de peccati primi parentis imputatione immediata tam incredulos, quam alios offendit, si vero ea,
quae hactenus ex ipsis rationis principiis deduximus, perpendantur, facile deprehenditur, S. Litteras nihil hic docere,
nisi quod ipsa rei ratio postulat, et justo Dei judicio fi eri potuisse, ut primus parens dignus non esset, qui susciperet
sobolem sanctam, sed pravam et poenae obnoxiam” (Tom. I, p. 236). Em resposta à objeção suscitada contra a
imputação do pecado de Adão, de nunca termos cometido o mesmo pecado com ele, Edwards faz a distinção entre o ato
físico e a moralidade do ato, e defende que é somente com respeito a esta última que a posteridade cometeu o mesmo
pecado, ou seja, deve ser “considerada como tendo cometido, numa estimativa moral, o mesmo pecado ou transgressão
da lei em quantidade e natureza” (ibid., p. 514). E quando Stapfer argumenta que a imputação do primeiro pecado de
Adão nunca deve ser interpretada abstraindo-a de nossa corrupção nativa e denomina a última de imputação para
distingui-la da culpa do pecado de Adão como imediato, não há provas de uma posição idêntica com ou que tenda à
imputação mediata (ibid. p. 562 ss.). Não é possível, nesse caso, mostrar que Stapfer faz mais do que o que era
característico dos primeiros teólogos reformados, ou seja, insistir que o pecado de Adão, como imputado, e a
depravação hereditária não devem ser separados nem concebidos abstraindo-se um do outro.
[â]
Este problema não ocorre na tradução em português adotada para esta tradução. [N. do T.]
[115]
Teologia sistemática, p. 630.
[116]
Commentary on the Epistle to the Romans (Edinburgh, 1864), p. 151.
[117]
Ibid., p. 173; cf. também Essays and Reviews (New York, 1857), p. 49 ss., em que encontramos de modo
recorrente fórmulas como as seguintes: “todos os homens são considerados e tratados como pecadores, por causa do
pecado de Adão” (p. 60); “somos tratados como pecadores por causa dele, ou, em outras palavras, o pecado dele foi
posto em nossa conta” (p. 82; cf. p. 61, 63, 79, 81).
[118]
Systematic Theology, II, p. 194. William Cunningham pode ser citado para um efeito similar. “A peculiaridade da
doutrina da imputação, como geralmente defendida pelos teólogos calvinistas, é que ela inclui outras espécies de
unidade ou identidade como subsistindo entre Adão e sua posteridade... de modo que, embora não haja participação
atual da parte deles na culpabilidade ou responsabilização de seu pecado, em consequência de sua falha em cumprir o
compromisso da aliança, rei, ou incorrência em reatus, ou culpa no sentido de responsabilidade legal, para este efeito,
que Deus, com base na aliança, considerou-os e tratou-os como se eles mesmos fossem culpados do pecado pelo qual a
aliança foi quebrada; e que deste modo tornaram-se envolvidos em todas as consequências naturais e penais que Adão
trouxe sobre si por seu primeiro pecado (Historical Theology, Edinburgh, 1870, vol. I, p. 515). Cf., também, Thomas
Ridgeley: A Body of Divinity (New York, 1855), vol. I, p. 406.
[119]
Cf. Theological Essays: Reprinted from the Princeton Review (New York and London, 1846), p. 128-217. “E se
há algo em que os calvinistas concordam, é em dizer que quando afirmam que “a culpa do pecado de Adão recaiu sobre
nós”, referem-se à exposição ao castigo por causa daquele pecado” (p. 140; cf. passim onde esta tese é apresentada e
defendida in extenso).
[120]
John Owen, The Doctrine of Justification by Faith, Works, ed. Goold (Edinburgh, 1862). vol. V, p. 324; ed.
Russell (London, 1826), vol. XI, p. 400.
[121]
Commentary conforme citado, p. 152.
[122]
Cf. a discussão de Hodge em Theological Essays, p. 153 s.
[123]
Teologia sistemática, p. 629 s.
[124]
Works, ed. Goold, V, p. 325; ed. Russell, XI, p. 401.
[125]
Ibid., V, p. 199; XI, p. 247.
[126]
Cf. Francis Turretine: Institutio Theologiae Elencticae, Loc. IX, Quaest. 111, §VI; M. Leidecker: Medulla
Theologica, Cap. IX, §XV (Utrecht, 1683, p. 150 ss.). James Henley Thornwell, embora rejeitasse a doutrina romana,
defende a propriedade da distinção e sustenta que ela é realmente a distinção, feita pelos teólogos protestantes, entre
reatus potentialis e reatus actualis, sendo a primeira o demérito intrínseco, e a última o que surge da ordenação de
Deus; cf. Collected Writings, vol. I, p. 423.
[127]
Theoretico-Practica Theologia, Lib. IV, Cap. II, VII (Amsterdam, 1724, Tom. I, p. 444). Para o mesmo fim é a
formulação da Synopsis Purioris Theologiae, conhecida como Leyden Synopsis, que diz: “Primum est Reatus, quo
nomine intelligitur obligatio ad poenam, sive vinculum illud inter peccatum et poenam, quasi medium interjectum, quo
peccator ad subeundam poenam, et quamdiu durat reatus, ad poenae quam subit, durationem, arctissime obligatur”
(Disp. XV, XXXVII).
[128]
“Unde sequitur, proprie coram Deo censeri peccatum quia non esset reatus absque culpa” (Inst., II, i, 8).
[129]
Opera Theologica, 1613, Tom. IV, col. 36.
[130]
Ibid., col. 38; cf. também col. 39, 41.
[131]
Disp. XV, XXIV.
[132]
Medulla Theologica, Cap. §§XVII, 2-4.
[133]
Op. cit., Loc. IX, Q. III, §VI.
[134]
Ibid., Loc. IX, Q. IX, §XVIII. Também se deve notar como outros teólogos reformados representativos se
declaram favoráveis a este princípio. David Pareur diz: “Nos vero Adami culpam juste luimus. 1. Quia culpa sic est
Adami, ut etiam sit nostra. Omnes enim in Adamo peccante peccauimus: Quia omnes in lumbis Adami fuimus. 2. Quia
culpam Adami omnes natura trahimus, probamus, imitamur.... 3. Cum tota Adami natura sit rea, nos vero ex massa eius
propagati simus, non possumus non etiam ipsi esse rei...” (Corpus Doctrinae Christianae, Para I, Quaest. VII, Hanover,
1634, p. 46). Mais uma vez, em referência a Romanos 5.12, ele diz: “Sic tria in eo concurrerunt: culpa actualis, reatus
legalis, pravitas naturalis: seu transgressio mandati, poena mortis. et corruptio naturae, quae fuit amissio imaginis Dei
.... Na ullo horum posteritas mansit immunis, sed omnia simul ad posteros introierunt non una via, sed triplici:
Participatione culpae, imputatione reatus, propagatione naturalis pravitatis. Participatione culpae, quia omnes posteri
seminali ratione fuerunt in lumbis Adami. Ibi omnes in Adamo peccante peccaverunt .... Imputatione reatus, quia
primus homo ita stabat in gratia, ut si peccaret, non ipse solus, sed tota posteritas ea excideret, reaque cum ipso fi eret
aeternae mortis .... Atque hoc est, quod primum Adae peccatum nobis imputari dicitur. Naturali denique propagatione
seu generatione horribilis naturae deformitas cum tristi reatu in omnes posteros sese diffudit” (In Divinam ad Romanos
Epistolam Commentarius, p. 119). Mais tarde, neste comentário, referindo-se ao primeiro pecado de Adão, Pareus diz:
“Non (inquit) ita fuit unius, quin et omnium fuit. In uno omnes illud admiserunt: alioqui mors in omnes transire non
potuisset. Qui enim non peccant, hoc est, nulla culpa et reatu tenentur, ut Sancti Angeli: in eos mors nil iuris habet.
Quia vero mors in omnes transiit omnes igitur peccaverunt, hoc est, culpa et reatu tenentur” (ibid., p. 120). Cf.,
também, B. de Moor: Commentarius Perpetuus in Johannis Markii Compendium Theologiae Christianae, (Leyden,
1765), Pars 111, p. 254 s.; William Bucanus: Institutions of Christian Religion (E. T., London, 1606), p. 158-161;
Benedict Pictet: Theologia Christiana (London, 1820), p. 147. Robert W. Landis em The Doctrine of Original Sin as
Received and Taught by the Church of the Reformation Stated and Defended (Richmond, 1884) trata detalhadamente
desta questão e outras relacionadas a ela. Essa ampla monografia dedica-se em grande medida à crítica da posição de
Hodge, e particularmente do que Landis chama de imputação gratuita do pecado de Adão à raça, uma posição que ele
considera ser a de Hodge.
[135]
Examan Theologicum Acromaticum, “Theologia”. Pars II, Cap. III, Quaest. X (Leipzig, 1763, p. 513).
[136]
Theologia Didactico-Polemica (Leipzig, 1715), Pars II, col. 914. A semelhança da terminologia de Quenstedt
com a de Pareus, conforme citado acima, é bem evidente. Cf., também, L. Hütterus: Compendium Theologicum
conforme revisto por G. Cundisius (Jena, 1652), p. 573; J. Gerhard: Loci Theologici, Loc. IX, Cap. III, §53 onde a
linguagem não é a mesma como na passagem anterior, mas aponta na mesma direção; Heinrich Schmid: The Doctrinal
Theology of the Evangelical Lutheran Church (E. T., Philadelphia, 1889), p. 247 ss.; Francis Pieper: Christian
Dogmatics (St. Louis, 1950), vol. I, p. 538 ss.
[137]
Cf. Thomas Goodwin: Works (Edinburgh, 1865), vol. X, p. 47-55; Jonathan Edwards: Works (New York, 1855),
vol. II, p. 481-495.

Você também pode gostar