Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Stella Senra
RESUMO
O artigo aborda as transmissões televisivas ao vivo de imagens de conflito, enfocando, em vez
da sua suposta objetividade, o seu potencial de mobilizar afetivamente o espectador. Analisam-
se as imagens dos atentados de 11 de setembro e aquelas, que aparentemente não são de con-
flito, dos reality shows, em particular o programa Casa dos Artistas. Argumenta-se que do
primeiro ao segundo caso passa-se de uma mobilização total a uma mobilização individual: a
intensidade máxima das poucas imagens das torres dá lugar a um estado de permanente
disponibilidade das imagens, no qual todas elas se equivalem.
Palavras-chave: televisão; atentados de 11 de setembro; reality shows.
SUMMARY
The article discusses alive television broadcasts of conflict images, emphasizing their potential
of emotionally mobilizing viewers instead of their supposed objectivity. It analyses the images
of September 11 attacks and those, which are not apparently conflictive, from reality shows,
particularly Casa dos Artistas (Artist's House). It argues that from the first to the second case
there is a transformation from a total mobilization to an individual one: the extreme intensity of
the few WTC towers images gives place to a state of permanent disposition of images, each of
them equivalent to all others.
Keywords: television, September 11 attacks, reality shows.
(1) Este trabalho foi concebido No filme Elogio do amor, de Jean-Luc Godard, um personagem diz em
para apresentação na 2a Con-
ferência Internacional do Do- certo momento a respeito do documentário: "Nunca soube bem o que é
cumentário, sob o tema "Ima-
gens de conflito", por ocasião isso". A interrogação tem de fato marcado a história dessa modalidade
do 7 a Festival Internacional de
Documentários "É tudo verda- cinematográfica, sempre assombrada por uma promessa de verdade que, se
de" (São Paulo, abril de 2002).
lhe impôs limites, fez dela um rico campo de discussões e experimentos, que
têm contribuído para impulsionar o entendimento da imagem. Essa promes-
sa, de resto, sempre rondou as imagens em movimento, donde a atribuição
a elas, como um legado "natural", de qualidades como autenticidade,
transparência, fidelidade, que, embora já deslocadas do foco principal dos
estudos da imagem, são ainda decisivas para a construção do ideário da
informação. Se o documentário foi visitado por tal sorte de compromisso
com a verdade, inaugurou — à diferença da informação jornalística, que
nunca pôs em questão suas premissas — uma profícua discussão sobre esse
regime de imagens, a qual tanto lhe permitiu reivindicar a legitimidade das
suas imagens, a convicção na sua plenitude, como o tem levado a pôr sua
NOVEMBRO DE 2002 73
O 11 DE SETEMBRO, OS REALITY SHOWS E A MOBILIZAÇÃO PELA IMAGEM
do primeiro reality show brasileiro, Casa dos Artistas. No primeiro caso trata-
se de transmissão ao vivo de alcance mundial concentrada num tempo curto:
menos de um dia de duração; no segundo esse alcance é reduzido às
dimensões da transmissão nacional, estendendo-se porém sua duração para
um tempo sem limites, o tempo real. Tentarei mostrar como, do primeiro ao
segundo caso, passa-se de uma mobilização total a uma mobilização indivi-
dual, e como da intensidade máxima das poucas imagens das torres se passa
a uma certa "rarefação" da emoção, a um estado de "disponibilidade" das
imagens, no qual todas elas se equivalem.
NOVEMBRO DE 2002 75
O 11 DE SETEMBRO, OS REALITY SHOWS E A MOBILIZAÇÃO PELA IMAGEM
No Brasil também vivemos uma guerra, uma guerra interna, não de-
clarada, guerra larvar, da qual todos sabem intimamente que fazem parte.
Num país que recalca seu estado de guerra e ao mesmo tempo abusa das
imagens, as imagens de conflito tendem a predominar, mas acabam sendo,
ao mesmo tempo, despotencializadas. É o que acontece com as cenas,
sempre renovadas, das rebeliões nos presídios, das guerras de gangues nas
favelas, dos conflitos em torno do MST: de tão freqüentes elas acabam se
tornando banais, mera paisagem sobre a qual nossos olhos deslizam, quase
sem ver. À primeira vista, as imagens do programa Casa dos Artistas não
parecem ser imagens de conflito. Mas qualquer uma delas, indiferentemen-
te, pode se prestar ao entendimento do que eu gostaria de demonstrar:
também essas imagens, aparentemente inocentes, ecoam o conflito, também
elas dizem respeito, tanto de modo direto quanto indireto, à nossa guerra
muito particular.
Lembremos, em primeiro lugar, que uma figura bastante familiar dessa
guerra — o seqüestro — as precedeu e, de certa forma, as introduziu. O se-
qüestro da filha de Sílvio Santos e a invasão da casa do animador pelo seqües-
trador antecederam, de alguns meses, o lançamento de Casa dos Artistas
(a transmissão ao vivo do segundo seqüestro chegou mesmo a bater a au-
NOVEMBRO DE 2002 77
O 11 DE SETEMBRO, OS REALITY SHOWS E A MOBILIZAÇÃO PELA IMAGEM
NOVEMBRO DE 2002 79
O 11 DE SETEMBRO, OS REALITY SHOWS E A MOBILIZAÇÃO PELA IMAGEM
alguns participantes, e levou ainda mais longe a idéia da "vida como ela é". (9) Em geral são as imagens
desse tipo de programa que
Reúnem-se pessoas ditas "normais"8, que por sua vez não devem "represen- têm sido mais visadas pelos
analistas, como aqueles que
tar papéis" nem "encenar emoções": tudo deve ser "real". Para tanto os abordaram a "proposta estéti-
ca" de um RS francês de grande
participantes são retirados de seu ambiente, trancados numa casa e vigiados sucesso, Loft Story, nos Cahiers
du Cinema de julho de 2001
por câmeras que transmitem sua imagem em tempo integral. O total isola- (nº 558). Uma polêmica foi de-
mento e a exibição permanente da imagem visam — é o que dizem os sencadeada no ano seguinte
(nos 566 e 567, fevereiro e mar-
entusiastas da nova fórmula — trazer à tona "sentimentos verdadeiros" — ço) quando a revista colocou o
mesmo programa na sua lista
donde a importância e a insistência da "conversa"9. Há um prêmio em dos dez melhores do ano. A
discussão focalizou, mais uma
dinheiro no final, e a interatividade consiste na eliminação, pelos telespec- vez, a imagem, cuja "nulidade"
foi denunciada pelos leitores,
tadores, dos participantes indesejáveis. Ganha, evidentemente, quem ficar. enquanto os críticos tomaram
seu "presente contínuo" como
Esse modelo de encenação, que oferece os participantes do programa o "horizonte absoluto da TV".
Entusiastas do novo programa
— escolhidos entre os telespectadores — em espetáculo ao vivo e em tempo da TV francesa, os Cahiers de-
fenderam seu aspecto "inova-
integral, parece de fato levar às últimas conseqüências aquele papel do dor", destacando seu caráter
telespectador definido por Alain Ehrenberg como o "profissional de sua vida" aleatório, "que questionaria o
cinema no seu próprio terre-
e como "derradeiro profissional" da TV. Mas podemos avançar um pouco no" e aboliria o discurso, colo-
cando em causa "a razão do
mais do que o autor nessa sua análise. Pois quando o telespectador se torna autor".
tal espécie de "profissional" que encena sua vida, fazendo-se ao mesmo tem-
po personagem de si mesmo, quando passa literalmente para o outro lado da
tela (e sabemos que o projeto dos participantes do programa é ficar na TV,
como verdadeiros profissionais), não é só o próprio indivíduo que deixa de
existir: o personagem, no sentido tradicional do termo, se torna, por sua vez,
obsoleto.
É bom lembrar, a essa altura, que os RS brasileiros têm uma particulari-
dade em relação aos seus congêneres: eles vieram otimizar o rendimento de
um capital eminentemente brasileiro — a emoção despertada pelas teleno-
velas. Além do prestígio desse gênero entre nós, depois de trinta anos de
convívio com as telenovelas o telespectador já aprendeu a "ler" todas as
personagens, a vasculhar suas intimidades e até a palpitar na sua trajetória.
Nesse sentido, os atuais RS não precisam mais "propor" personagens muito
definidas, nem tampouco acompanhar suas trajetórias: os telespectadores
brasileiros já podem dispensar tais exigências. Na verdade não se trata mais,
nesses programas, de personagens definidas por um caráter, dotadas de uma
interioridade, de um objetivo, mas apenas de "indicações": traços, sinais,
sugestões que ator e público podem "desenvolver" (o termo é dos partici-
pantes), enfim, uma certa "tipologia" que, como num processo de auto-
alimentação, se move num universo de significação já hiper-sinalizado pela
própria mídia.
Nem "indivíduos" nem tampouco "personagens" — daí o valor exem-
plar de Casa dos Artistas: seus participantes eram "artistas" (com a conotação
que o termo tem entre nós, de gente da televisão), artistas "fajutos" ainda por
cima, gente da periferia da TV. Menos que personagens, mais que gente
comum, esses mediadores terão de certa forma contribuído para facilitar a
passagem do telespectador das telenovelas para a nova forma televisiva,
ajudando-o a lidar mais facilmente, como num jogo, com tais traços e sinais.
Mas se não há mais personagens nem tampouco indivíduos, o que acontece
nos reality shows?
Parece-me que o que se faz nos RS são simulações, verdadeiras "si-
mulações de indivíduo". Simulação no sentido militar do termo: exercício ou
treinamento que envolve tanto atores quanto telespectadores nesta que
talvez seja a primeira (mas, para alguns, já a última) modalidade televisiva
após a convergência entre televisão e internet. Por isso eles ficam 24 horas
no ar. E talvez nem seja mais o caso de dizer que "ficam no ar": eles estão
apenas "disponíveis" — como dados e informações na rede. Não se trata
mais, portanto, de "intensidade" da imagem, como no 11 de setembro, mas
da sua "disponibilidade" em um estado de total "indiferenciação": todas as
(10) DeLillo, Don. Rumor bran- imagens se equivalem e são colocadas em disponibilidade permanente para
co. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 202. quem quiser acessar, conectar e desconectar qualquer delas, a qualquer
momento. Afinal, não foi com o computador que se desenvolveu a técnica
militar da simulação? E não foi ele que a colocou, por meio dos jogos, ao
Recebido para publicação em
30 de setembro de 2002. alcance de todos?
Stella Senra é jornalista, pesqui- Simular indivíduos enquanto a sensação de vazio cresce, os sentidos
sadora e ensaísta nas áreas de
jornalismo e cinema. fogem. Treinamento? Guerra? Jogo? Por certo esses três objetivos não se
NOVEMBRO DE 2002 81
O 11 DE SETEMBRO, OS REALITY SHOWS E A MOBILIZAÇÃO PELA IMAGEM
excluem, mas nem por isso têm o poder de alterar o estatuto mais modesto,
ou menos espetacular, em face dos atos do 11 de setembro, da simulação —
da qual uma descrição, uma vez mais, de Don DeLillo dá bem conta: Novos Estudos
"Estamos aqui para simular [...]. E lembrem que não estamos aqui para gritar CEBRAP
N.° 64, novembro 2002
nem correr pela rua. Somos vítimas discretas. Não estamos em Nova York
pp. 73-82
nem em Los Angeles. Aqui basta gemer baixinho"10.