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TÍTULO: Seca
AUTORIA: Neal Shusterman e Jarrod Shusterman
EDITOR: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original Dry© 2018 Neal Shusterman e Jarrod Shusterman.
Publicado por acordo com Simon & Schuster Books For Young Readers, uma chancela
Simon & Schuster Children’s Publishing Division. Todos os direitos reservados.
TRADUÇÃO: Pedro Carvalho e Guerra
REVISÃO: Paula Almeida
DESIGN DA CAPA: Chloë Foglia
ILUSTRAÇÃO DA CAPA: © 2018 Jay Shaw
DATA DE EDIÇÃO E-BOOK: Maio,2020
ISBN: 978-989-773-279-9
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DEDICATÓRIA
O FECHAR DA TORNEIRA
DIA UM
SÁBADO, 4 DE JUNHO
1) ALYSSA
— Corrida à Costco! — diz o tio Manjericão no final daquela tarde, por volta
das cinco. — Quem vem comigo?
— Posso comer um cachorro quente? — pergunta Garrett, sabendo que,
mesmo que o tio Manjericão diga que não, irá comê-lo. O tio Manjericão é
um trouxa.
— Os cachorros quentes são a mais pequena das nossas preocupações —
digo-lhe. E ele não põe isso em causa. Sabe por que razão vamos à loja —
não é estúpido. Ainda assim, sabe que irá comer um cachorro quente.
Subimos para a cabina da pickup com tração às quatro rodas do tio
Manjericão, que está mais subida do que deveria ser permitido a um homem
da idade dele.
— A minha mãe disse que temos algumas garrafas de água na garagem —
diz Garrett.
— Vamos necessitar de mais do que «algumas» — realço. Tento fazer
rapidamente as contas na minha cabeça. Também vi essas garrafas. Nove de
meio litro. Nós somos cinco. Não chega sequer para um dia.
Quando viramos a esquina do nosso bairro e saímos para a rua principal, o
tio Manjericão diz:
— É possível que demore um dia ou dois até que seja reposto o
fornecimento de água. Provavelmente, vamos necessitar de alguns packs.
— E de Gatorade! — diz Garrett. — Não te esqueças da Gatorade! Está
cheia de eletrólitos. — É o que dizem nos anúncios, embora Garrett não saiba
o que é um eletrólito.
— Vejam as coisas pelo lado positivo — diz o tio Manjericão. —
Provavelmente não terão aulas durante uns dias. — A versão californiana de
um dia de neve.
Tenho andado a contar os dias que faltam até ao final do primeiro ano do
secundário. Já só faltam duas semanas. Mas, conhecendo a minha escola
secundária, provavelmente encontrarão uma maneira de acrescentarem os
dias perdidos no final, retardando as nossas férias de verão.
Seguimos para a estrada, mas, por alguma razão, não parece o mesmo
quarteirão em que cresci. Há algo de estranho, como quando viramos
acidentalmente para a rua errada, e, como todas as vivendas parecem iguais,
sentimos que estamos num universo paralelo. Tento afastar a sensação,
enquanto vejo as casas pela janela do veículo.
Os nossos vizinhos do outro lado da rua, os Kiblers, costumam deitar-se
nas suas espreguiçadeiras e «supervisionar» os filhos enquanto estes brincam,
o que na realidade significa falar acerca dos outros vizinhos por entre goles
de Chardonnay enquanto se asseguram de que os filhos não são atropelados.
No entanto, hoje, os filhos dos Kiblers estão a brincar à apanhada na rua sem
supervisão. E, apesar do riso das crianças, há um silêncio insidioso que realça
tudo; por outro lado, talvez o silêncio sempre ali tenha estado, e eu só agora
me esteja a aperceber dele.
O tio Manjericão faz o acesso de marcha-atrás e começamos de imediato a
descarregar. Mesmo com o Sol a descer no céu, estão trinta e dois graus e o
gelo começa a derreter. Se queremos levar todo este gelo para casa a tempo,
temos de nos apressar.
— Porque não vais esvaziar o congelador para podermos guardar lá algum
gelo? — diz o tio Manjericão, enquanto tira o primeiro saco da traseira da
carrinha. — Podemos deixar derreter o resto e bebê-lo hoje.
— Melhor ainda, porque não limpas a banheira do piso de baixo — digo a
Garrett — e o deixamos descongelar lá?
— Boa ideia — diz o tio Manjericão, embora a ideia de limpar a banheira
não agrade muito a Garrett.
O meu pai emerge da garagem, com uma chave inglesa oleosa na mão,
claramente continuando a tentar retirar alguma água dos canos.
— Não havia Gatorade?
— Esgotou — digo-lhe, mantendo a resposta curta.
O meu pai coça a cabeça.
— Deviam ter ido ao Sam’s Club — diz. — Costumam ter mais artigos
armazenados nas traseiras da loja. — Embora o meu pai esteja a sorrir,
percebo que está mais perturbado do que quer deixar transparecer. Acho que
sabe que o mais certo é que o Sam’s Club tenha visto desaparecer todos os
seus líquidos engarrafados, tal como todas as outras lojas.
O tio Manjericão muda rapidamente de assunto.
— Pensei que ias trabalhar hoje — diz.
O meu pai encolhe os ombros e pega num saco de gelo.
— O melhor de termos o nosso próprio negócio é não sermos obrigados a
trabalhar ao sábado, a menos que o queiramos fazer.
Só que o meu pai trabalha aos sábados. E por vezes aos domingos
também. Há muitas pessoas a fazerem horas extraordinárias, por causa da
enorme subida do preço dos produtos frescos — mas, mesmo antes disso, o
meu pai sempre nos disse que, para construirmos o nosso negócio, temos de
nos comprometer vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Contudo,
parece que hoje prefere carregar gelo a vender seguros.
Tiro mais gelo da parte de trás da carrinha, mas concluo que, mesmo
dentro do saco de plástico, é difícil de agarrar, agora que começa a derreter.
— Precisam de ajuda? — diz uma voz atrás de mim, e, mesmo antes de me
virar, sei exatamente de quem se trata.
Kelton McCracken. O cromo ruivo, não muito típico, da porta ao lado. A
maior parte dos miúdos com a sua estranheza sente-se satisfeita a matar
zombies com um controlo da Xbox, mas não o Kelton. Este prefere passar o
tempo a praticar reconhecimento aéreo com o seu drone, disparando sobre
pequenos animais com a sua arma de paintball e escondendo-se numa casa da
árvore com uns binóculos de visão noturna, enquanto finge ser o Jason
Bourne. É como se nunca tivesse amadurecido para lá do sexto ano, por isso
os pais limitam-se a comprar-lhe brinquedos cada vez maiores. Mas hoje não
consigo deixar de reparar que há algo de diferente nele. Claro que cresceu
neste último ano e parece muito mais maduro — mas não é só isso. É a
maneira como se move. Há um certo ritmo no seu andar, como se toda esta
crise da água o entusiasmasse de uma maneira doentia. Kelton sorri,
revelando que já tirou os aparelhos e que os dentes foram artificialmente
endireitados.
— Claro, Kelton, dava-nos jeito uma ajuda — diz o meu pai. — Porque
não dás uma mãozinha à Alyssa?
Estou quase a passar-lhe o saco de gelo, mas, quando lho estendo, há algo
que se apodera de mim, e não pareço ser capaz de o largar.
O meu pai apercebe-se, ficando baralhado com a minha hesitação.
— Deixa-o levar o gelo, Alyssa — diz o meu pai.
Olho para o gelo nas minhas mãos e depois para Kelton, apercebendo-me
de que continuo cética quando se trata de permitir que as pessoas «ajudem».
— Há algum problema? — pergunta o meu pai, num tom perturbado,
paternal, que exige uma resposta… que não lhe dou.
Obrigo-me a entregar o gelo a Kelton.
— Mas não esperes receber um saco por estares a ajudar — digo-lhe, o que
leva o meu pai a dirigir-me um olhar firme, provavelmente perguntando-se o
que me deu para ser tão mazinha. Talvez mais tarde lhe fale do tipo na
Costco; ou talvez tente esquecer tudo o que aconteceu.
Quanto a Kelton, estou à espera que me dê uma resposta atrevida, mas, em
vez disso, fica imóvel, genuinamente chocado com o meu comentário.
Recupero a compostura e obrigo-me a fazer um sorriso, esperando que não
pareça demasiado forçado.
— Desculpa — digo-lhe. — Obrigada por ajudares.
Vamos para dentro, para pôr o gelo na banheira, mas Kelton agarra-me
pelo ombro, para me fazer parar.
— Selaram o ralo? — pergunta. — Não é muito boa ideia deitar gelo na
banheira a menos que tenham selado o ralo. A mais pequena fuga e poderão
perder tudo em poucas horas.
— Pensei que o meu tio tinha feito isso — digo-lhe, embora nenhum de
nós tenha pensado em tal coisa. Por muito que odeie admiti-lo, foi,
provavelmente, a ideia mais inteligente que ouvi o dia todo.
— Vou buscar um pouco de silicone — diz, e corre para a garagem dele
em busca do vedante, claramente satisfeito com a oportunidade para pôr em
ação o seu treino de escuteiro.
Kelton e a sua família parecem ter sempre um plano de contingência
preparado para qualquer cenário terrível. O meu pai costumava dizer, em tom
de brincadeira, que Mr. McCracken vivia uma vida dupla, trabalhando como
dentista durante o dia e preparando-se para o fim do mundo durante a noite.
Mas, recentemente, a sua piada tornou-se bastante mais real. Parece que Mr.
McCracken passa agora a maior parte do tempo a soldar engenhocas de ferro
forjado até altas horas da noite, como se estivesse a perfurar uma cárie da
monstruosidade escancarada que é a sua garagem.
Durante os últimos meses, a família de Kelton montou um sistema de
vigilância topo de gama, estabeleceu uma miniestufa no jardim e cobriu todo
o telhado com um qualquer tipo de painéis solares não registados e
independentes da rede elétrica. De há pouco tempo para cá, Kelton — que
este ano esteve em demasiadas aulas minhas — não para de se gabar do facto
de o pai ter instalado vidros à prova de bala unidirecionais — pode disparar
balas a partir do interior, mas estas são incapazes de os penetrar vindas do
exterior. Embora o resto da nossa turma ache que é um convencido, acredito
que possa ser verdade. Não me espantaria que o pai dele fizesse algo assim.
Com exceção das nossas queixas em relação à soldadura tardia, as nossas
famílias têm, por norma, uma relação amigável, mas existe sempre um clima
de tensão educada quando os meus pais lidam com eles. A certa altura
partilhámos uma área de relva entre as duas casas, até Mr. McCracken ter
instalado uma vedação de madeira que atravessou as salvas-dos-jardins
premiadas da minha mãe. A vedação era horrivelmente mais alta do que a
típica barreira suburbana caiada de branco, mas suficientemente baixa para
não violar as regras e regulamentos da associação de moradores — com
quem parecem estar sempre em guerra. Certa vez, até tentaram reclamar o
passeio em frente à casa deles como o seu lugar de estacionamento particular,
alegando que a linha da sua propriedade se estendia alguns centímetros para a
rua — contudo, essa batalha foi ganha pela associação. Desde então, o tio
Manjericão faz questão de estacionar a carrinha mesmo à frente da casa deles.
Só para os poder chatear.
Kelton regressa passados alguns minutos com o silicone e dedica-se de
imediato a selar o ralo.
— Isto é capaz de demorar algumas horas a endurecer, por isso tem
cuidado quando a encheres de gelo — diz, muito mais entusiasmado do que
alguém deveria ficar com um vedante de silicone. Segue-se um silêncio
desconfortável entre nós, que me faz aperceber que nunca tinha estado
sozinha com Kelton.
Depois lembro-me de algo que não serve apenas para fazer conversa, mas
que é importante.
— Espera um segundo. Vocês não têm um grande tanque com água atrás
da vossa casa?
— Pouco mais de cento e trinta litros — gaba-se Kelton, enquanto aplica o
silicone com a precisão de um joalheiro. — Mas esse fica dentro de casa. O
que está fora de casa é para os dejetos, está cheio de compostos químicos
quaternários de amónio. Sabes, como aquela sopa azul, malcheirosa, no
fundo das sanitas das casas de banho portáteis.
— Sim, já percebi, Kelton — digo, convenientemente enojada, sobretudo
devido ao facto de ainda nem sequer ter começado a pensar no que fazer com
as nossas casas de banho. — Bem, não se pode dizer que vocês não pensam
com antecedência — afirmo, sabendo que se trata do eufemismo do século.
— Bem, o meu pai diz sempre: «Mais vale errados do que mortos e
enterrados.» — Depois acrescenta: — Aposto que, se o teu pai pensasse no
futuro, provavelmente estariam melhor.
Claramente não faz ideia do quão insultuoso soa, por vezes. Pergunto-me
se haverá uma medalha de mérito para «O mais Irritante».
Kelton termina o trabalho. Agradeço-lhe e ele regressa a casa, para
disparar o lançador de batatas, ou dissecar insetos, ou o que quer que seja que
um miúdo como ele faz nos seus tempos livres.
Na cozinha, a minha mãe está a limpar todas as superfícies com Formula
409. Limpezas devidas ao stresse. Sempre que algo sai do nosso controlo,
trazemos ordem ao que podemos. Eu percebo. Por outro lado, a minha mãe
nunca foi de deixar a televisão ligada, em pano de fundo — mas agora tem-na
aos berros, na sala de estar. Não sei ao certo onde estão o meu pai e o meu
tio. Talvez estejam nas traseiras, a trabalhar no automóvel. Acho estranho o
facto de sentir que preciso de saber.
Na televisão, a CNN está concentrada na contínua crise do furacão Noah.
Não invejo a atenção dedicada a estas pobres pessoas, mas gostava que nos
fosse concedida alguma, também.
— Já há alguma notícia sobre o Fechar da Torneira? — pergunto.
— Um dos canais locais tem vindo a fazer atualizações regulares — diz-
me a mãe —, mas é aquele pivô desmiolado que eu não suporto. E, além
disso, também não há nada de novo.
Ainda assim, mudo de canal, para o pivô desmiolado que o meu pai diz ter
começado a carreira na indústria pornográfica, embora não me apeteça
perguntar-lhe como é que sabe.
A minha mãe tem razão; estão apenas a repetir a intervenção do
governador desta manhã e a tentar, sem sucesso, fazê-la render.
Mudo de novo para as estações noticiosas nacionais. A CNN, depois a
MSNBC, depois a Fox News, e de novo a CNN. Todos os jornais nacionais
estão a falar do Noah e apenas do Noah. Lentamente, percebo porquê.
Não há nenhuma imagem de satélite para uma crise da água.
Não há grandes tempestades, nem campos de destroços — o Fechar da
Torneira é tão silencioso como um cancro. Não há nada para ver, e por isso as
notícias tratam-na como uma nota de rodapé.
Refiro isto à minha mãe. Ela para de limpar por um momento e observa o
rol de histórias secundárias na parte de baixo do ecrã. Por fim, surge qualquer
coisa: «A crise da água na Califórnia aprofunda-se. Residentes incitados a
poupar.»
E mais nada. É tudo o que dizem as notícias nacionais.
— Poupar? Estão a brincar?
A minha mãe inspira fundo e volta a pulverizar a mesa da cozinha.
— Desde que a FEMA faça o seu trabalho, quem quer saber o que dizem
as notícias?
— Eu quero — digo-lhe. Porque se há algo que sei acerca das notícias é
que, para a maioria das pessoas, incluindo o governo federal, as notícias
definem o que é e o que não é importante. Mas as grandes estações noticiosas
não irão conceder ao Fechar da Torneira o tempo de antena crítico de que
necessita, não enquanto não houver imagens que sejam tão dramáticas quanto
ventos a arrancar telhados.
E, se demorar assim tanto tempo para que o Fechar da Torneira seja levado
a sério, então será tarde de mais.
INSTANTÂNEO: JOHN WAYNE
DOMINGO, 5 DE JUNHO
2) KELTON
O meu pai sempre me disse que há três tipos de seres humanos neste planeta.
Primeiro, as Ovelhas. As pessoas comuns que vivem em negação: devoram as
notícias da manhã, arrastam-se ao longo de um entediante dia de trabalho e
são cuspidas para as ruas das cidades deste mundo, como uma garfada de
gosto estranho de um rolo de carne que há muito ficou esquecido no
frigorífico. No fundo, as Ovelhas são a maioria indefesa que não deseja, de
modo algum, reconhecer a inevitabilidade do perigo real e que confia que o
sistema cuidará dela.
Depois há os Lobos. Os tipos maus que não respeitam as leis da sociedade,
mas que são bastante bons a fingir que o fazem, quando lhes convém. Deste
grupo fazem parte os ladrões, os assassinos, os violadores e os políticos, que
se alimentam das Ovelhas até serem lançados para a prisão ou, melhor ainda,
acabarem deitados de barriga para cima num aterro, juntamente com os
molhos de meias ásperas que a avó faz à mão, para o Natal. Aqueles que ele
todos os anos faz estourar, ritualisticamente, com uma M80.
E por fim, há as pessoas como nós. Os McCrackens. Os Pastores do
mundo. Claro que a nossa espécie se pode parecer muito com os Lobos —
grandes presas, garras afiadas e a capacidade para exercer violência —, mas o
que nos distingue dos restantes é o facto de representarmos o equilíbrio entre
os dois. Podemos circular livremente por entre o rebanho, com a capacidade
de proteger ou renegar, conforme nos aprouver. O meu pai diz que somos os
poucos a quem foi concedido o poder de escolha, e, quando o verdadeiro
perigo se apresentar, seremos nós a sobreviver — e não é só porque temos
uma Magnum .357, três Glocks G19 e uma caçadeira de repetição Mossberg,
mas porque nos temos vindo a preparar, de todas as maneiras possíveis, desde
que me lembro, para o inevitável colapso da sociedade tal como a
conhecemos.
É domingo à tarde, o segundo dia do Fechar da Torneira. Está um calor
efervescente, como uma lata de refrigerante esquecida ao sol durante o
solstício de verão. Tendo em conta o Sol, passa pouco das três, pelo que vou
para o meu «refúgio» pessoal. A saber, a unidade tática elevada que construí
no carvalho que temos nas traseiras. Há quem lhe possa chamar uma casa na
árvore, mas isso seria insultuoso em relação à sua natureza fortificada e
funcional. Não se realiza reconhecimento por infravermelhos nem se mantém
um arsenal civil numa piegas casa da árvore. Não é tão fixe como o nosso
refúgio verdadeiro: uma casa segura escondida, que a nossa família construiu
nas profundezas do bosque, para a eventualidade de um ataque nuclear, ou
EMP, ou qualquer outro cenário de fim de mundo. Construímo-lo juntos, em
família, há alguns anos, antes de o meu irmão mais velho, Brady, ter saído de
casa. E, se as coisas ficarem piores, estou certo de que iremos para lá. Mas,
entretanto, vou-me ficando pelo meu refúgio na árvore.
Tenho um bom armazenamento de provisões, separadas e independentes
das coisas que o meu pai tem na nossa sala segura. No que diz respeito a
armas, tenho uma pistola de paintball, uma fisga para caça tática e uma
espingarda de ar comprimido Wildcat Whisper. Quanto a víveres, tenho
Mountain Dew suficiente para me manter acordado durante horas, se for
preciso, já para não falar de Top Ramen com sabor a frango, o meu prato
reconfortante preferido — porque é reconfortante saber que, em caso de
ataque nuclear, a minha comida tem glutamato monossódico suficiente para
sobreviver à extinção da humanidade.
Olho pela janela do forte e vejo que alguém se aproxima da nossa casa, por
isso saco dos binóculos para conseguir uma identificação. O fato e a gravata
texana são reveladores. Trata-se de Mr. Burnside, o executivo reformado que
nunca se conformou com o final da sua carreira. Sem nada melhor para fazer,
organizou um golpe tranquilo e apoderou-se da associação de moradores há
alguns anos. Desde então, tem-na vindo a gerir com mão de ferro. Estamos
bastante certos de que é fascista. O mais provável é que nos tenha vindo
notificar de que as nossas janelas são demasiado à prova de bala, ou de que a
porta da nossa garagem é demasiado titânica, ou de que o heliporto para
drones que instalámos no telhado é demasiado espetacular. Mas, quando olho
com mais atenção, apercebo-me de que não traz consigo a habitual pasta
repleta de petições e de documentos de cessação de prática. Em vez disso,
faz-se acompanhar de um presente, cuidadosamente embrulhado, com um
lacinho e tudo. Sinto-me cético, por isso desço e dirijo-me para um dos lados
da casa, agachando-me atrás de uma sebe, a partir de onde o consigo ver
junto à porta da frente.
Mr. Burnside alisa o seu cabelo grisalho, penteado para trás, e bate quatro
vezes, e depois uma quinta, porque consegue ser irritante a esse ponto.
O meu pai responde, mas só abre parcialmente a porta.
— Boa tarde, Bill. A que devo o prazer da sua visita, hoje? — pergunta o
meu pai, quando o que quer mesmo dizer é: Mas que raio é que TU queres?
Mr. Burnside abre um sorriso, revelando um conjunto de dentes demasiado
brancos para não serem falsos.
— Estou apenas a ver como estão as famílias do bairro. — Olha para a
nossa propriedade, fingindo entusiasmo. — Tenho de admitir que começo a
compreender e a valorizar algumas das suas modificações únicas.
— Como a nossa estufa, em relação à qual a associação mantém o litígio?
— pergunta o meu pai asperamente.
— Águas passadas — diz Mr. Burnside com um banal aceno de mão, o
relógio de ouro oferecido aquando da reforma e a pulseira de informação
médica a tilintar juntos. Não sei ao certo qual é o seu problema médico, mas
estou disposto a apostar que não tem qualquer armazenamento da medicação
de que precisa.
— Não ouviu ainda? — pergunta o meu pai. — Já não há águas, passadas
ou não.
Mr. Burnside ri, mas, em vez de aligeirar a tensão, o seu riso serve apenas
para a aumentar. Por isso, entrega o presente ao meu pai.
— Da minha parte e da minha esposa — diz. — Só uma coisinha para
ajudar o passado a ficar no passado.
— Ora, é muitíssimo simpático da sua parte, Bill. Presumo que isso
signifique que o senhor e a direção da associação não se importam que eu
faça algumas atualizações às vedações de segurança. Estava a pensar em
aumentá-las até aos três metros de altura.
Mr. Burnside eriça-se um pouco, mas diz:
— Vou falar com a direção. Não deve ser um problema.
— Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si? — pergunta o meu pai,
apreciando, claramente, a sua posição de poder.
— Bem, como eu disse, estou a dar a volta ao bairro, para transmitir a
todos a certeza de que a associação de moradores está a envidar esforços no
sentido de reunir os recursos do bairro. Sabe como é, para nos ajudarmos uns
aos outros num período de crise…
Em vez de responder, o meu pai espera que ele continue, fazendo-o sofrer.
— … Tenho a certeza de que o senhor e a sua família estão bem… — Mr.
Burnisde está a sondar o meu pai, mostrando de novo os dentes de porcelana.
— Mas claro que outros há que foram apanhados desprevenidos por esta
situação da água.
— O que está a perguntar, exatamente, Bill? — diz o meu pai, num tom
um pouco menos jovial do que antes.
— Estamos a pedir a todos que façam um inventário dos seus víveres —
diz, e depois acrescenta: — Estou certo de que há coisas de que precisa e que
outras pessoas talvez tenham, e vice-versa.
— De cada um conforme a sua capacidade, para cada um conforme a sua
necessidade. Não é esse o princípio básico do socialismo, Bill? — diz o meu
pai. — Nunca pensei ouvir algo assim vindo de um capitalista de gema como
o Bill!
Bolas, o meu pai está mesmo a gostar disto! O sorriso de Mr. Burnside
começa a parecer-se com um esgar.
— Não é preciso ser insultuoso, Richard… estamos todos no mesmo barco.
Devíamos tentar aproveitar a situação ao máximo.
— Se todos estão a realizar um inventário, por que razão nos traz um
presente a nós? — pergunta o meu pai.
Mr. Burnside inspira fundo e expira.
— Sei que fomos adversários no passado… mas um pouco de boa vontade
de ambas as partes pode ajudar muito.
Mr. Burnside vira-se para partir, mas, antes de chegar ao final do acesso, o
meu pai desembrulha o presente. É uma garrafa de scotch. Do caro.
— Obrigado uma vez mais, Bill — grita o meu pai a Mr. Burnside, com
um sorriso atrevido. — Aposto que fará um excelente cocktail Molotov!
— Fica melhor com gelo — grita-lhe Mr. Burnside em resposta, não
percebendo de todo a piada. — Vamos falando.
3) ALYSSA
Estou a preparar-me para ir para a cama, algumas horas mais tarde, quando
ouço movimento no exterior. O tio Manjericão. A janela do meu quarto abre-
se para a rua, pelo que tenho o luxo de ouvir todas as suas entradas e saídas.
Olho para o relógio: meia-noite. É uma hora estranha para o tio Manjericão ir
a algum lado. Desço as escadas e, quando lá chego, descubro-o a carregar a
traseira da pickup.
— Não te queria acordar — diz, parecendo já culpado em relação a alguma
coisa.
— Vais-te embora? — pergunto.
O tio Manjericão olha para mim, de forma calorosa.
— Será só por algumas noites — diz, embora a gigantesca mala de roupa
me diga o contrário. Tal como Sofia. — Além disso — prossegue —, já
ocupei o quarto do teu irmão. Não quero usar também toda a vossa água.
O tio Manjericão sempre se mostrou algo sensível à necessidade de ficar
connosco durante este ano. E toda esta história do Fechar da Torneira é mais
um fator a somar à sua dependência em relação a nós. Mas acho que a
ameaça de ficarmos sem eletricidade foi a gota de água que fez transbordar o
copo.
— Para onde vais? — pergunto.
— Para casa da Daphne. Ela ainda está naquela casa grande em Dove
Canyon. Diz que ainda têm água. Não sei quanto tempo irá durar, mas pelo
menos é qualquer coisa — diz ele, baixando os olhos.
Eu sorrio.
— Estás a falar da água ou de ti e da Daphne?
Ele dá uma gargalhada.
— De ambos — responde.
Daphne tem sido a sua namorada de forma intermitente. Já estavam juntos
antes de a quinta dele falir. Mudaram-se para aqui no início do Grande
Resgate — aquilo que chamaram ao êxodo em massa das comunidades
agrícolas de Central Valley. Daphne sempre se recusou a permitir que lhe
chamássemos «tio Manjericão» na sua presença. Era só Herb, sempre — o
que me leva a pensar que, no fundo, ela o ama de verdade, mesmo que
estejam sempre a romper o namoro.
— Bem — digo —, espero que o Fechar da Torneira ajude na vossa
reconciliação.
— Ela não o está a fazer por mim — admite. — Está a fazê-lo por ti.
— Por mim?
— Por todos vocês. Para me impedir de ser um fardo para a tua mãe e o teu
pai.
— Não és um fardo…
Ele sorri.
— Obrigado por dizeres isso, Lyssa.
Dou-lhe um abraço de despedida apertado e vejo-o arrancar. Depois volto
para dentro, triste por vê-lo partir assim, mas ao mesmo tempo um pouco
menos preocupada do que antes. O facto de ainda haver água corrente,
algures, faz nascer em mim a esperança de que, afinal, as coisas não estejam
assim tão más.
INSTANTÂNEO: KZLA NEWS
Quando o noticiário da tarde chega ao fim, Lyla vai para o seu camarim,
descobrindo que ambos os jarros estão vazios. Alguém — talvez várias
pessoas — lhe roubou a água.
— Há mais a caminho — promete um estagiário nervoso. — Dez minutos,
no máximo.
Mas, dez minutos depois, continua a ser impossível localizar tanto a água
como o estagiário.
No corredor, Chase está ao telefone com o seu agente, o sistema de alta-
voz do telemóvel a partilhar os seus assuntos pessoais com todos os que neles
estejam interessados. O agente diz-lhe que, se souber lidar com aquilo da
melhor maneira, a crise poderá lançá-lo para o palco nacional. Talvez até para
um lugar na CNN.
— Odeio o facto de estares a usar isto como uma vara de salto — diz-lhe
Lyla.
Chase limita-se a encolher os ombros e prossegue com a sua conversa.
Ainda que Lyla também tenha as suas ambições no que diz respeito à
carreira, não é um chacal como Chase, em busca de um futuro entre os
escombros do presente. Olha por uma janela, tentando obter uma imagem real
da crise a partir do quadragésimo terceiro piso. Lá em baixo, a multidão
enche a rua. Será uma manifestação? Estará a decorrer uma distribuição de
água? Daquela altura, não consegue perceber. De súbito sente-se
claustrofóbica naquela torre. Isolada.
Depois, à medida que a tarde avança, começam a chegar mais relatos de
mortes por desidratação. Chegam a uma velocidade furiosa, e ela sabe que
terá de os noticiar, e não pode fazer mais do que imaginar como será estar do
outro lado, preso num bairro, a perguntar-se se a próxima fatalidade será
alguém da sua rua.
E, durante todo este tempo, não é trazida água ao seu camarim. O de Chase
também não tem. Parece não haver água para ninguém, e já ninguém faz
promessas.
É então que lhe ocorre. É um tiro no escuro, mas é a única ideia que lhe
ocorre.
— Põe-me no helicóptero Sky-Three — diz ao produtor.
— Como? — Ele olha para Lyla como se ela estivesse a delirar. — Lyla,
és uma pivô, já não fazes um relato a partir do ar desde os tempos em que
apresentavas o trânsito.
— Motins, incêndios e engarrafamentos: as histórias não estão aqui, estão
lá fora. As pessoas reagirão a isso — diz, fingindo que, tal como no caso de
Chase, é tudo uma questão de ambição. — Um pivô no céu irá fixar a sua
atenção. Mantê-los-á connosco em vez de mudarem de canal.
— Não — diz-lhe ele. — Preciso que permaneças no teu posto.
Mas, quando ele se afasta, ela sobe ao telhado.
O helicóptero Sky-Three está no heliporto, porque está a decorrer a
mudança de turno dos repórteres do trânsito. Por um momento, pensa no
Vietname, onde ocorreram alguns dos melhores relatos jornalísticos de
sempre. Claro que isso foi muito antes de ela ter nascido, mas não consegue
deixar de olhar para o helicóptero e imaginar como se terão sentido aqueles
repórteres que esperavam desesperadamente pela evacuação aérea enquanto
Saigão caía.
Kurt, o mesmo piloto que a costumava transportar nos seus primeiros
tempos na estação, está encostado ao poço das escadas, a fumar — algo que
não é permitido tão perto do helicóptero, mas ele não quer saber. A esperança
de Lyla é que essa não seja a única regra que não lhe interessa.
— Kurt, qual é o alcance do teu helicóptero?
— Cerca de quatrocentos quilómetros com o tanque cheio — diz-lhe. —
Neste momento provavelmente mais perto dos trezentos e vinte, porquê?
Lyla inspira fundo.
— Preciso de um favor.
Cinco minutos depois, estão a voar para longe da baixa de Los Angeles,
seguindo para leste. E quando ela sente que já colocou uma distância
suficiente entre eles e a redação, envia uma mensagem de texto ao produtor.
Vou levar o Sky-Three até Arrowhead. Relatarei a situação dos refugiados.
Envia-a. Pensa por um momento, depois escreve: Apoia-me ou despede-
me.
Pronto, está feito. Independentemente do que venha a acontecer, estará
num dos poucos locais onde ainda existe água. Os grandes lagos podem ter
níveis abaixo do habitual, mas continuam a ser lagos. Inspira fundo, aliviada,
sentindo que há uma ligação entre ela e os seus colegas jornalistas de há
tantos anos, à medida que eles subiam a bordo de helicópteros, a meio mundo
de distância, para escapar aos vietcongues.
DIA TRÊS
SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JUNHO
4) KELTON
Hoje não há aulas. Nem notícias acerca de quando recomeçarão. Com apenas
duas semanas até ao fim do ano escolar, pergunto-me se iremos regressar de
todo.
Tento manter-me ocupado a ler livros aos quadradinhos, mas, por alguma
razão, hoje não me conseguem cativar. Procuro material de caça online, para
juntar à minha lista de presentes que desejo para o Natal — continua a não
me prender a atenção. Por isso vou ver vídeos de chessboxing — um desporto
de combate híbrido em que os lutadores alternam entre uma ronda de xadrez
e outra de boxe. É o único desporto em que não se utiliza uma arma em que
sou bom. Também foi a única coisa que me atirou para as aulas disciplinares
de sábado em toda a minha carreira escolar — porque, depois de ter feito uma
exposição oral sobre o assunto em Inglês, no ano passado, fui encurralado por
um trio de não-crentes e forçado a demonstrar a parte do boxe no nariz de um
deles. Também lhes teria dado uma tareia no xadrez, mas fui arrastado até ao
gabinete do diretor.
Vejo alguns vídeos, mas hoje nem o chessboxing me consegue interessar.
No entanto, é mais do que isso. Sinto-me perturbado quanto ao estado do
mundo lá fora, mesmo tendo em consideração o quão preparados estamos.
Tudo começou quando Mr. Burnside apareceu à nossa porta com um
presente. Claro que adoro a ideia dos arqui-inimigos da nossa família se
transformarem em lambe-botas sicofânticos, mas quando o estranho se
transforma, de facto, em realidade, deixa-nos, sem dúvida, com a cabeça à
roda. À semelhança daquele sentimento de «então e agora?», quando
olhamos para os olhos escuros do primeiro veado que derrubámos, ou o
desespero triunfante de abater um pato em pleno voo apenas para o ver cair
num penhasco, não voltando a ser recuperado por toda a eternidade. E quanto
mais penso nisso… mais me apercebo de que tudo pode estar, de facto,
relacionado com a caça. Quer dizer, consta que todas as nossas ações e
inações estão relacionadas com uma programação primordial dos nossos
cérebros para combater ou fugir… Por exemplo, conquistar o afeto de uma
rapariga é muito semelhante a caçar um veado. É importante que a
abordagem seja lenta e cautelosa — e de preferência realizada a partir de um
ângulo traseiro, sobre o qual tenham pouca ou nenhuma visão. As mulheres,
como os veados, podem assustar-se com um odor forte, razão pela qual é
importante usar sempre desodorizante. Vestir roupas camufladas também não
é mau, porque, pela minha experiência, as miúdas acham os camuflados
muito fixes. Mas, para além de tudo isso, acho que o aspeto mais importante
na obtenção de uma rapariga é saber quando puxar o gatilho.
Metaforicamente, claro está. Temos de avançar quando o momento nos
parecer certo, caso contrário poderão achar-nos assustadores. Também isto
aprendi com a experiência.
Mas, no que diz respeito à minha vizinha do lado, Alyssa Morrow, sinto-
me como se ela fosse o veado que nunca consegui abater. Fico perto de dar o
último passo, ou pelo menos de lhe dizer o que sinto, mas, por alguma razão,
o momento nunca parece acertado. Sempre achei que, se estivesse no sítio
certo, o momento certo se apresentaria, por isso este ano pirateei o
computador da escola e consegui que cinco das minhas seis disciplinas
fossem com ela… teria preferido as seis, mas isso seria demasiado óbvio.
Nesta manhã, em particular, Alyssa está a terminar o trabalho no jardim da
frente. Parece estar a tentar retirar água do seu sistema de irrigação, mas isso
não vai funcionar. Tendo em conta a relva castanha, os aspersores já estão
secos há meses, tal como os de quase toda a gente. No que diz respeito ao
momento certo, começo a achar que agora é melhor do que nunca, por isso
envergo um colete tático camuflado com as cores do deserto e dirijo-me à
casa do lado.
Saio e localizo Alyssa a dirigir-se para a garagem, a tentar transportar, com
dificuldade, uma mala de ferramentas. Tenho vantagem posicional, por isso
flanqueio-a pela esquerda. À medida que me aproximo, engulo em seco, os
nervos a apertarem a minha garganta.
— Precisas de ajuda? — lá consigo dizer. Apercebo-me de que foi
exatamente a mesma coisa que disse no outro dia, quando estavam a
descarregar o gelo. Espero que ela aprecie a consistência.
— Não é preciso, acho que dou conta do recado. — Embora, claramente,
não dê. Talvez esteja a tentar não parecer fraca à minha frente. Por isso
insisto.
— Bem, pelo menos deixa-me levar isto — digo, enquanto pego em
algumas chaves inglesas e as guardo no meu bolso. Os calções com bolsos
são fundamentais. As raparigas adoram um tipo com bolsos.
— Obrigada — diz, enquanto guardamos as ferramentas nos seus
respetivos lugares, na garagem. É então que capto o cheiro de algo terrível
que vem de dentro de casa. Sou obrigado a torcer o nariz, porque ela repara e
afasta o olhar, como se eu pudesse pensar que o cheiro vem dela.
— Problemas sépticos?
— Acho que o gás dos esgotos está a invadir a nossa casa, devido à falta de
água — diz-me. — O meu pai está a trabalhar em algumas modificações na
canalização, para tentar impedi-lo.
Isto, eu já sabia, era inevitável. Provavelmente todas as casas do bairro,
com exceção da nossa, devem ter o mesmo cheiro, por esta altura. Mas nem
todos parecem tão diligentes quanto a tentar resolver o problema como
Alyssa e a família. Claro que estão a lidar com a situação da maneira errada.
— Aquilo de que precisas é de líquido de selagem de evaporação zero.
Basta despejar cerca de uma caneca em cada cano e os gases dos esgotos não
poderão entrar. — E depois acrescento: — É o que usam nos urinóis sem
água.
Ela faz uma careta de nojo, e apercebo-me de que foi demasiada
informação.
— De qualquer maneira — digo, tropeçando um pouco nas palavras e
afastando o olhar involuntariamente —, posso dar-te uma garrafa. Temos
bastantes. — O que é verdade, mas, quando o meu pai descobrir que a dei,
vai dar-me cabo do canastro.
Mas vale a pena, porque Alyssa sorri.
— Obrigada, Kelton… isso é mesmo generoso da tua parte.
E, depois de a ter visto sorrir assim para mim, algo me impele a atirar-me
de cabeça. Estendo-lhe o cantil.
— Toma, bebe um pouco — digo. — Pareces ter sede.
Alyssa pega no cantil, cautelosamente.
— Tens a certeza? — pergunta.
Encolho os ombros, como se não fosse nada.
— Para que servem os amigos?
Dá alguns goles e devolve-mo. Depois eu bebo um gole. Alyssa e eu
acabámos de partilhar um cantil. Tendo em conta a troca de saliva envolvida,
é quase como um beijo. Reprimo um pequeno arrepio perante tal pensamento.
— Obrigada, Kelton — diz. Depois ficamos ali de pé, em silêncio, mas,
pela primeira vez, o silêncio entre nós parece um pouco mais natural. Sabe
bem.
Sem aviso, Garrett surge, aparentemente do éter, e arranca o cantil das
minhas mãos.
— Obrigado, Kelton! — diz, em tom trocista.
— Não sejas mal-educado — diz-lhe Alyssa. — Isso não é teu!
Nesse preciso instante, o pai deles entra com uma caixa de trapos sujos e a
mãe logo depois. Ela sorri, quase não se conseguindo conter.
— Disseram nas notícias que vão colocar máquinas de dessalinização ao
longo da costa. Vão ter algumas em funcionamento em Laguna Beach, esta
tarde.
— O que é uma máquina de dessalinização? — pergunta Garrett.
— É uma máquina que converte água salgada em água doce — digo-lhe.
— Têm uma grande fábrica em San Diego, mas não nos vai ajudar. —
Verdade seja dita, também não vai ajudar muito San Diego. Foi bem pensado
da parte deles construí-la há alguns anos, por isso, ao menos desta vez não é
um típico caso de fazer pouco, tarde de mais. É antes fazer pouco, mesmo a
tempo. Porque, a funcionar em pleno, consegue produzir água suficiente para
oito por cento da população de San Diego. Menos de uma em cada dez
pessoas. Não foi propriamente a solução que esperavam.
O pai de Alyssa limpa o suor da testa.
— Pagamos impostos elevados para financiar organizações como a FEMA.
É tempo de avançarem e fazerem alguma coisa.
— Bem, não nos podem simplesmente deixar morrer à sede — acrescenta
a mãe dela, como se a ideia fosse estapafúrdia, mas depois espera que alguém
valide a sua afirmação.
O pai de Alyssa abana a cabeça.
— É uma questão de números — diz. — Afinal de contas, a Califórnia
sozinha é uma das maiores economias laborais. Precisam de nós e não acho
que sejam tolos a ponto de nos negligenciarem.
As palavras do pai dela ficam gravadas na minha memória… e, embora
tenham mérito, não consigo deixar de ouvir a voz do meu pai a ecoar na
minha cabeça, queixando-se dos milhares de erros acumulativos que nos
conduziram a este ponto — as diminuições de consumo falhadas, as
comissões de conservação e as tentativas radicais de poupar água, como os
milhões de bolas de plástico pretas que Los Angeles lançou para os seus
reservatórios para impedir a evaporação da água, há vários anos, e que de
nada serviram. E agora não consigo decidir se estamos a avançar para uma
solução real ou se estamos a lançar, desesperadamente, garrafas de água para
o problema…
Abro a boca para levantar essas questões, mas depois interrompo-me,
subitamente, lembrando-me do que o meu pai me disse acerca das ovelhas.
Do seu comportamento. De como o seu principal instinto é seguir os
membros da manada diretamente à sua frente, e como o facto de serem
desviadas, ainda que ligeiramente, do seu caminho, desperta nelas uma
avassaladora sensação primordial de pânico que pode ser mortal. Certa vez,
apresentei um trabalho oral sobre a atualidade, acerca de um rebanho com
quinhentas ovelhas, algures na Turquia, que mergulhou para a morte, tendo-
se as ovelhas lançado, uma a uma, para uma ravina, porque todas seguiam a
que se encontrava diretamente à sua frente, sem nunca compreenderem o
panorama geral. O que será pior, pergunto-me: ver todos os que conhecemos
a cair nessa ravina, ou ver a nossa realidade alterada com tal violência que
perdemos a vontade de viver?
5) ALYSSA
Hoje, a sanita está verdadeiramente a vingar-se de nós por todos os anos de
trabalho cruel e insalubre. Tem vindo a emitir estranhos sons gorgolejantes e
a expelir um cheiro digno de ovos podres com seis meses. Por isso, a nossa
missão atual é limpar as sanitas tão bem quanto possível e despejarmos nelas
dois copos do líquido selante de Kelton, para que a nossa casa possa voltar a
cheirar mais como uma casa e menos como uma fossa séptica rancorosa.
Sendo o governante supremo da casa, o meu pai encarregou-me, a mim e a
Garrett, de tratarmos das sanitas.
Esta manhã, o pai tomou a liberdade de delegar tarefas através de post-its
com mensagens passivas-agressivas, escondidos como ovos da Páscoa por
toda a casa. Num deles, no frigorífico, pode ler-se: «Seis copos de água por
dia!» Noutro, no chuveiro, consta: «Só banho seco!», que consiste em gel de
banho e papel de cozinha. Mas acho que o pior de todos é «Limpem-me, por
favor!», logo por cima da sanita. O meu pai instalou habilmente sacos por
baixo de cada assento, que devemos deitar fora depois de os usarmos, como
um gigantesco pesadelo de campismo. Aquilo do saco ainda se aguenta, mas
ter de limpar a sanita, no seu estado atual, é um castigo cruel.
Garrett e eu começamos pela casa de banho do piso térreo, dado que a
nossa água está guardada na banheira adjacente à sanita. Olho para a banheira
e apercebo-me de que o nível da água já desceu desde sábado. Esta manhã, a
minha mãe deu, discretamente, alguns litros a uns amigos que vivem ao virar
da esquina. Com as unidades de dessalinização a serem instaladas ao longo
da costa, ela calcula que em breve haverá água suficiente para todos, logo,
porque não há de ser generosa? Se a decisão fosse minha, provavelmente
faria o mesmo.
— Como querem que limpemos a sanita se não podemos usar água? —
pergunta Garrett, enquanto enfia as mãos naquelas luvas de limpeza amarelas
que chiam quando esfregamos os dedos uns nos outros.
— O pai disse que os produtos de limpeza estão debaixo do lavatório.
Tenho a certeza de que consegues descobrir uma maneira.
Aperto o nariz com os dedos e atrevo-me a olhar para o fundo da sanita.
Um líquido negro borbulha até à superfície.
— Porque tenho de ser eu a fazer isto? — choraminga.
— Porque o vamos fazer à vez — recordo-lhe, depois apelo ao seu ego
masculino. — Além disso, és rapaz, vais ser naturalmente melhor do que eu
no que diz respeito a canalização.
Ele acena em concordância, claramente satisfeito por me ouvir dizer que é
melhor do que eu em alguma coisa. Depois vai à procura dos produtos de
limpeza por baixo do lavatório.
— Pode ser lixívia — digo-lhe.
Garrett acaba por se decidir por uma lata verde de Comet em pó, um
produto de limpeza multiusos à base de lixívia, e prepara-se para pousá-lo na
beira da banheira. No entanto, mal o fundo da lata toca na beira da banheira,
já consigo ver o pior cenário possível a desenrolar-se na minha cabeça, mas
não é senão quando ele larga o Comet que o meu pior receio se torna
realidade. A lata, precariamente pousada na beira irregular, começa a
deslizar…
O meu coração acelera.
— Garrett! — grito, e é tudo o que consigo dizer.
Ele vira-se e, antes que seja sequer capaz de se aperceber da situação, a lata
de lixívia em pó já deslizou pelo lado da banheira e caiu com um chape na
água.
Garrett olha para mim, o rosto branco como lixívia, completamente
privado de cor. E depois segue-se o mais torturante dos silêncios.
O meu irmão lança-se sobre o Comet, mas este escorrega-lhe das mãos e
flutua ainda para mais longe. A água começa já a ficar turva, com uma névoa
rodopiante de pó de limpeza multiusos venenoso. E depois a realidade abate-
se sobre mim.
Garrett acaba de contaminar a única água que temos…
— Talvez consigamos salvar uma parte — diz, quando por fim agarra a
lata e a retira da água, de pernas para o ar, largando ainda mais pó, que se
dissolve na banheira.
— Já está contaminada, idiota — digo-lhe, em tom cortante.
— A culpa é tua — grita-me. — Tu é que me disseste para usar lixívia!
— Sempre foste um trapalhão! Tens ideia do que acabas de fazer?
Mas, em vez de apresentar nova defesa, o seu rosto contrai-se, o seu olhar
fica enviesado e brilhante, e as lágrimas começam a correr, o corpo cedendo
ao desespero.
A minha consciência de irmã entra em ação e, subitamente, desejo ser
capaz de apagar aquilo que disse.
— Desculpa — diz, por entre fungadelas, enterrando o rosto nas mãos.
— Não faz mal — digo-lhe, e dou-lhe um abraço, algo que me apercebo
que já não faço há muito tempo. — Temos as máquinas de dessalinização na
praia. A mãe e o pai vão abastecer-se, lembras-te?
Garrett acena com a cabeça, recompondo-se.
— De qualquer maneira, beber água da banheira era um nojo — digo, e ele
ri, interrompendo as lágrimas durante tempo suficiente para emergir do
desespero.
A mãe e o pai largam tudo para procurar Garrett. Querem que nos separemos
e procuremos de maneira sistemática todos os lugares para onde possa ter ido.
Estão um bocadinho mais preocupados do que pensei que ficariam. Eles
reagem sempre de forma exagerada no que diz respeito a Garrett. O meu
irmão nasceu um mês antes de tempo, e isso atirou os meus pais para um
modo de proteção hipersensível eterno; ainda hoje, se ele tiver sequer um
arranhão, o mais provável é que recorram ao número do hospital memorizado
numa das teclas de marcação rápida, para um enxerto de pele. Tento dizer a
mim mesma que são apenas os meus pais a serem pais, mas hoje não consigo
deixar de me preocupar um bocado, tendo em conta as circunstâncias.
Eu tinha concordado em verificar os parques onde ele e os amigos gostam
de passar o tempo, e o trilho para bicicletas que corre paralelamente à
autoestrada. Vou buscar a minha bicicleta, mas os dois pneus estão em baixo,
porque há anos que não a uso, e os pneus agora não mantêm o ar no seu
interior, por muito que eu dê à bomba. Tudo o que tenho disponível é o
GoPed de Garrett, que não faço ideia como se usa, e um pogo stick — um
objeto claramente inventado por Satanás, logo depois de ter inventado o
monociclo. Por isso, esgotadas todas as opções, apercebo-me de que vou ter
de pedir ajuda a Kelton. Talvez ele me empreste uma bicicleta — ou crie uma
alternativa com pastilha elástica e cera dos ouvidos.
Toco à campainha e ele vem à porta, quase depressa de mais.
Não tenho tempo para conversas. Vou direta ao assunto.
— Tenho um favor a pedir-te. O Garrett desapareceu, e eu preciso de uma
bicicleta.
Em vez de ser esquisito, Kelton responde como um ser humano normal.
— Podes usar a do meu pai — diz. — Vou buscá-la.
Volta a entrar e depois encontra-se comigo no portão lateral. É uma bela
bicicleta. Depois apercebo-me de que também traz a sua própria bicicleta.
— Duas cabeças pensam melhor do que uma — diz. — Além disso, não é
boa ideia andares por aí sozinha, neste momento. Pode parecer que está tudo
calmo, mas é sempre assim antes de uma tempestade.
Esqueçam a parte do ser humano normal.
— Não é preciso, Kelton. Não tens de vir.
— O preço de levares emprestada a bicicleta do meu pai é deixares que vá
contigo.
Kelton, tal como eu, não está com rodeios — e, claramente, não está a
negociar.
— Como queiras — digo-lhe. Na verdade, não me importo, tendo em conta
que foi oficialmente despromovido de laranja para amarelo na escala de
ameaças à minha sanidade.
Começamos pelos trilhos mais secundários, que acabam por nos levar de
volta à estrada principal perto da escola de Garrett — sendo a minha logo do
outro lado da rua. O que me leva a pensar que talvez esteja escondido no
último lugar que esperaríamos, o lugar que ele odeia mais do que couve-flor
ou lições de piano, tudo junto — Meadow Creek Elementary School.
Inclino-me para a esquerda, redirecionando a trajetória da minha bicicleta,
mas, antes sequer de conseguir virar, um camião passa por mim a acelerar,
quase nos atropelando. Primeiro dou por mim irritada com o facto de alguém
poder conduzir de maneira tão inconsciente, mas, assim que me apercebo de
que tipo de camião se trata, as minhas costas ficam rígidas e, sem sequer
pensar, as minhas pernas param de pedalar.
Trata-se de um camião militar com camuflagem verde, sem tejadilho,
repleto de soldados armados. O meu primeiro pensamento é parvo. O tipo de
coisas que pensamos antes de a nossa mente ter tempo de passar a questão
pelo cérebro.
— Que raio? Os meus pais chamaram o raio da guarda nacional?
— Calma antes da tempestade — diz Kelton.
O meu cérebro já entrou em ação e apercebo-me de que isto é muito mais
do que o simples desaparecimento do meu irmão. É bastante perturbador ver
máquinas de guerra a atravessar o bairro em que crescemos — e, como se
isso não fosse suficientemente perturbador, o camião vira à esquerda, para o
parque de estacionamento da minha escola.
— O que achas que se está a passar? — pergunto-lhe, na esperança de que
o seu extenso conhecimento de factos militares inúteis possa servir para
alguma coisa.
— Não sei — diz. — É demasiado cedo para a lei marcial…
— Em língua de gente, por favor.
— É quando o exército assume o controlo — diz. — Significa que os tipos
importantes do governo acham que a polícia local não é capaz de lidar
sozinha com a situação.
— Bem, isso devia ser uma coisa boa, certo? — digo, querendo convencer-
me. Chego-me para trás, no selim da bicicleta. — Significa que ficaremos
mais seguros…
Kelton tenta sorrir.
— Pode ser — diz, embora eu tenha a sensação de que ele não acredita que
possa ser, de todo, uma coisa boa. — Talvez.
Talvez. Estou tão farta de talvez!
Talvez seja a lei marcial. Talvez a FEMA mande camiões-cisterna com
água. Talvez tudo esteja bem amanhã. Viver neste mundo de absoluta
incerteza é cada vez mais frustrante. Por isso continuo a pedalar e sigo o
camião de transporte. Não é apenas uma questão de estar zangada, preciso de
saber. Preciso de matar o «talvez». Kelton está no mesmo comprimento de
onda que eu, porque vem a pedalar atrás de mim.
Pedalamos para lá da parte baixa do campus, do estádio de futebol e depois
dos campos de ténis, só para vermos onde irá parar o camião. Mas só quando
passamos pelo centro aquático é que temos a nossa resposta.
Não é apenas um camião, mas um monte de veículos militares. Têm a
piscina completamente cercada… porque as piscinas escolares foram as
únicas excluídas da Frivolous Use Initiative. Eram as únicas piscinas que
ainda tinham água.
O perímetro do centro aquático está agora guardado por soldados com
espingardas automáticas. E, desembocando na piscina, estão uma dúzia de
grossas mangueiras de incêndio — que parecem estar a sugar a água e a
depositá-la numa série de camiões-cisterna. Depois, um dos guardas militares
vê-me e fixa os olhos em mim. Eu não afasto o olhar, mas também não me
aproximo mais. É como se, de alguma maneira, eu fosse o inimigo.
— Já devia ter calculado — diz Kelton, irritado consigo mesmo por não
saber tudo na história de tudo.
— Aqueles idiotas acham que vamos beber aquilo? — rio-me. — Tenho
amigos na equipa de polo aquático. Já ouvi as histórias. Teriam de me pagar
para beber aquela água.
— Se conseguem filtrar o sal e as entranhas dos peixes e as poias das
baleias da água dos oceanos, tenho a certeza de que conseguem lidar com o
que quer que os idiotas da equipa de polo deixaram para trás — diz Kelton.
E, por alguma razão, aquilo fez-me pensar, ativando uma recordação. Algo
que Garrett tinha dito quando estávamos a empurrar aquele carrinho de
compras estragado na Costco…
Arquejo e Kelton olha para mim, perguntando-se porquê.
— O amigo do Garrett, o Jason, tem um aquário enorme! Aposto que foi a
casa dele pedir-lhe um bocado dessa água!
Embora Garrett sempre tenha sido duro consigo mesmo, nunca foi muito
de amuar, por isso faz todo o sentido que tente corrigir a situação em vez de
fugir dela. Levo a mão ao telemóvel e apercebo-me de que não o tenho.
Deixei-o na minha mesa de cabeceira. Parva.
— Emprestas-me o teu telemóvel? Tenho de dizer aos meus pais. Eles
conseguem lá chegar mais depressa.
Kelton passa-me o telemóvel, mas, depois de olhar fixamente para o ecrã
por alguns momentos, apercebo-me de que nem sequer sei o número dos
meus pais. De facto, não conheço de cor o número de ninguém, a não ser o do
meu namorado idiota do oitavo ano, que é a última pessoa neste ou em
qualquer outro planeta a quem ligaria.
Não quero admitir a Kelton a minha atual inutilidade, por isso limito-me a
dizer:
— Não estamos assim tão longe, vamos nós.
Uma vez regressados, a mãe e o pai não põem Garrett de castigo, o que me
deixa algo preocupada. Em vez disso, estão a virar a casa de pernas para o ar,
em busca de garrafões vazios que possam levar até às máquinas de
dessalinização.
— Achas que nos deixam trazer mais de sete litros e meio? — pergunta a
minha mãe, para quem quer que a esteja a ouvir, com a cabeça enfiada na
despensa.
— Podemos sempre voltar para ir buscar mais! — grita o meu pai,
provavelmente a partir de um qualquer armário.
Garrett emerge da porta para a garagem com um grande recipiente
reservado para as viagens de campismo.
— Isto serve?
— Sem dúvida — diz a minha mãe. Garrett, dado que não foi castigado,
está agora a fazer os possíveis por ser o filho perfeito. Dou-lhe cinco minutos,
no máximo.
— Toma conta do teu irmão — diz-me a minha mãe. — E tem cuidado
com os McCrackens. Lembra-te que nessas pessoas nem com um dedo se
deve tocar.
O meu pai passa pela cozinha e pega nas chaves do automóvel que estão na
tigela em cima da bancada.
— Ouve a tua mãe — afirma, sem sequer fazer ideia do que ela acaba de
dizer.
— O Kelton não é assim tããão mau — digo, apercebendo-me de súbito de
como isso soa estranho vindo da minha boca.
A minha mãe e o meu pai, com os recipientes vazios debaixo dos braços,
dirigem-se para a porta.
— Bem, o irmão mais velho dele pôs-se a andar daqui mal pôde. Os
sapatos até deixaram marcas de derrapagem nos degraus — diz o meu pai.
Garrett segura a porta, educadamente, e a minha mãe dá-lhe um beijo na
cabeça.
— Vemo-nos daqui a pouco — digo, com um sorriso.
Eles levam o Prius da minha mãe, porque o automóvel do meu pai ainda
está a convalescer na garagem. É em momentos como estes, vendo-os juntos,
que dou valor à família que tenho. Quando somos adolescentes passamos
muito tempo a queixar-nos de como os nossos pais são chatos, e depois
encontram sempre uma maneira de nos recordarem que, na verdade, não são
assim tão pouco fixes quanto queremos acreditar. E agora que os dois saíram,
por uma qualquer razão infantil, dou por mim a desejar poder ter-lhes dado
um abraço de despedida.
6) KELTON
Decido não contar ao meu pai acerca dos camiões militares que vimos na
nossa escola. Não que considere que não se trata de um desenvolvimento
significativo, mas, tendo em consideração que ainda não conseguimos entrar
em contacto com o meu irmão mais velho, Brady, não vale a pena levantar as
proverbiais ondas, se, de qualquer maneira, vamos ficar à espera dele, em vez
de nos pormos a andar para o nosso refúgio nas montanhas. Com o meu pai,
as achas do Armagedão depressa se transformam num inferno apocalíptico,
na sua cabeça. Já ficou com aquela expressão louca nos olhos quando ouviu
dizer que havia tantas escolas fechadas — o que, já agora, para mim, não é
tragédia nenhuma. Não que odeie a escola, é que, bem vistas as coisas,
consigo aprender mais se ficar em casa. Provavelmente, teria continuado a
estudar em casa se os meus pais tivessem paciência para isso.
Para tirar essas coisas da cabeça, carrego a minha arma de paintball e
pratico tiro ao alvo nas traseiras. Estou a acertar em todos os alvos, mesmo
no centro, e tento dizer a mim mesmo que isso é um bom presságio. As
plataformas de dessalinização na praia vão fazer o seu trabalho. Ninguém vai
passar sede. Tudo ficará bem.
O meu pai entra no pátio.
— Não te esqueças de expirar quando disparas — diz. Ele sabe do que
fala, afinal de contas passou doze anos nos Marines. A minha mãe gosta de
gozar com a sua carreira como jarhead, as suas «missões de extração»,
porque tecnicamente trabalhava como dentista militar e nunca chegou a
deixar a base.
Depois de mais alguns tiros, o meu cartucho de CO2 fica vazio. Entro em
casa para o ir trocar e, logo depois de carregar o novo cartucho, batem à porta
da frente. O meu pai abre — é Roger Malecki, um dos nossos vizinhos. Os
Maleckis tiveram um bebé há pouco, por isso quase nunca os vemos. Na
verdade, também pouco os víamos antes do bebé. A nossa família não é das
mais sociais.
— Como vão as coisas, Roger? — pergunta o meu pai, num tom
agradável.
— Uh, nem perguntes — diz Malecki. — O automóvel está
constantemente a sobreaquecer. Além disso, estamos com problemas com os
esgotos. Toda a casa fede.
— Percebo-te — diz o meu pai. — Sabes, os Morrows, aqui ao lado,
tiveram o mesmíssimo problema. — Contudo, não oferece líquido selante a
Malecki.
Então, Malecki começa a evitar o contacto visual. O meu pai não tem
paciência para rodeios.
— O que posso fazer por ti, Roger?
Malecki solta um suspiro.
— É a bebé. A Hannah ainda consegue amamentá-la, mas está a ficar
desidratada. Tenho medo de que não seja capaz de amamentar durante muito
mais tempo. Temos algum leite em pó, mas é inútil sem água…
— Lamento ouvir isso — diz o meu pai, genuinamente. — Como posso
ajudar?
— Bem… sabemos que têm mantimentos de sobrevivência. Raios, toda a
gente sabe que tens aí encafuado o suficiente para sobreviver ao apocalipse.
— Depois ri, apercebendo-se de que o meu pai franziu ligeiramente o
sobrolho perante a palavra «encafuado». Como se preparar-se para o pior
fosse, de algum modo, motivo de escárnio. E, nesse momento, percebo que as
mãos de Malecki estão a tremer ansiosamente, como se tivesse repisado
aquele diálogo na sua cabeça mil vezes, e mesmo assim tivesse conseguido
estragá-lo.
Conheço o meu pai suficientemente bem para saber que não dá «esmolas».
Além disso, quando começamos a dar coisas de graça entramos num terreno
escorregadio. E se há coisa que o meu pai odeia são terrenos escorregadios.
O meu pai coloca estrategicamente a mão na porta, num gesto casual. Não
para a fechar, mas para ter apoio caso precise de o fazer.
— A palavra-chave aqui, Roger, é «sobreviver». Temos apenas o
suficiente para sobreviver.
Malecki demora um instante a reorganizar os seus pensamentos e volta a
tentar.
— Muito bem, eu percebo — diz. — Tens princípios e não os queres
comprometer, mas estou a implorar-te, Richard. Tem de haver alguma coisas
que possas fazer… quer dizer… a bebé…
O meu pai pesa as possibilidades.
— Tenho a certeza de que te posso dar algumas dicas — diz.
— Dicas?
O meu pai aponta para o jardim de Malecki.
— Tens um maravilhoso jardim de plantas suculentas. Podes esmagar
algumas e espremer pelo menos dois litros e meio de água do seu interior.
Até te posso mostrar como fazer um condensador para extrair a água.
— Dos catuses? — Malecki ri, incrédulo.
O meu pai sorri, educadamente.
— Catos — corrige, gentilmente. — Podes ter água potável já amanhã.
O sorriso de Malecki desaparece, apercebendo-se de que o meu pai não
está a brincar.
— Tenho uma família para cuidar. Não tenho esse tipo de tempo!
— Bem, se queres água, vais ter de arranjar tempo.
Mas, em vez de formular uma resposta, os seus olhos semicerram-se e os
lábios curvam-se de raiva. Avança, ficando cara a cara com o meu pai.
— Quem é que tu pensas que és?
Mas o meu pai permanece calmo. Composto.
— Roger, estou a oferecer-te um presente muito mais valioso do que uma
garrafa de água. Autonomia.
A expressão de Malecki escurece, e ele fica com um brilho estranho,
selvagem, nos olhos.
— Vais ficar aí e deixar que o leite da minha esposa seque?
— Como te atreves a ficar zangado comigo, como se a tua falta de
previdência fosse culpa minha?!
— És um filho da mãe, sabias disso?
E o meu pai farta-se. Não atura facilmente idiotas — e, para ele, qualquer
pessoa que esteja à espera de que os outros lhe resolvam os problemas é um
idiota.
— Porque não voltas quando estiveres pronto para te comportar como um
membro útil da sociedade? — Tenta fechar a porta, mas Malecki lança-se
através do limiar, impedindo que isso aconteça.
— Devia apagar esse sorriso da tua cara — diz Malecki, embora o meu pai
não esteja a sorrir de todo. O meu pai tenta empurrá-lo para fora, mas
Malecki tem a adrenalina de um homem desesperado e empurra ainda mais
para dentro. Faz desequilibrar o meu pai, e a porta abre-se.
É então que ergo a arma, exalo e puxo o gatilho. Três vezes. Acerto no
peito de Malecki. Mesmo no alvo. A força das bolas a explodir impele-o
contra a ombreira da porta. Toda a sua coragem desaparece. Geme, pensando
que está a morrer. Depois leva a mão ao peito e examina a tinta azul
fosforescente que lhe ensopa a camisa. Provavelmente o meu coração bate
tanto quanto o dele. Ergue para mim o seu olhar perdido, desorientado, como
se eu lhe tivesse aberto mesmo um buraco no peito. Depois levo a mão à
minha mochila, pendurada no cabide perto da porta. Enfio o braço lá dentro,
vasculho e retiro uma garrafa de água que comprei na escola, quando era algo
que tomava como certo. Empurro-a para as suas mãos azuis, a pingar.
— Pegue nela e vá-se embora — digo-lhe.
Malecki olha para a garrafa de água e fica vermelho, envergonhado, como
se não fosse demasiado tarde para a sua humanidade surgir, subitamente, de
rompante. Ele vira-se e, sem mais, desaparece.
Num instante, o meu pai olha para mim, o lábio ensanguentado devido à
escaramuça, mostrando agora uma expressão violentamente carregada; e não
percebo se está só exaltado ou se desaprova realmente o que eu fiz — não
que o tenha sujado com a tinta, mas que lhe tenha dado a água.
— Não tinhas nada a ver com isto — diz o meu pai, num tom firme. —
Não devias ter interferido.
— Sim, senhor — digo-lhe. — Eu sei, senhor. — Chamo-lhe sempre
senhor quando ele está zangado comigo.
Depois fecha a porta e afasta-se.
Acontece que estou feliz por ter feito o que fiz. Não só porque sempre foi
uma fantasia minha disparar a arma de paintball contra os vizinhos, mas
também porque, quer o meu pai saiba ou não, vi o que se seguiria. O que teria
acontecido, se eu não tivesse puxado o gatilho. Porque, no auge da
escaramuça, a mão do meu pai viajara instintivamente para a cintura… onde
a sua arma se encontrava aninhada no coldre.
PARTE DOIS
Quando Pete Flores era criança, queria ser mágico. Em adulto, descobriu a
sua magia na manipulação das correntes elétricas. Quanto a si, não teria
conseguido nada mais próximo do seu sonho original, porque agora,
enquanto gerente de uma central elétrica, pode criar eletricidade a partir do ar
— literalmente —, utilizando gás natural. A sua central de Huntington Beach
produz 450 megawatts de energia, o suficiente para quase meio milhão de
casas. Mas, pela primeira vez em todos os anos que ali passou, a central
enfrenta uma situação sem precedentes.
Deveria ter recusado quando outras agências de eletricidade pediram
abrigo para os seus trabalhadores? Deveria ter recusado quando lhe pediram
para levar as famílias?
O Ministério do Interior teria recusado. Não por serem mais empedernidos,
mas por estarem tão afastados. Não viam os rostos humanos daquela crise.
Poderia receber uma reprimenda pelo que tinha feito — podia até perder o
emprego, mas estava determinado a não se arrepender. Aceitou que os dias
que o aguardam serão cada vez mais difíceis, mas o trabalho enche-o de
orgulho e honra.
Isto não é nada, pensa ele, recordando a central nuclear de Fukushima, no
Japão, que colapsou depois de um terramoto e do tsunami que se seguiu. Os
geradores ficaram inundados e pararam, e os reatores sobreaqueceram, dali
resultando uma fusão nuclear total. E o que fez o gerente da central? Em vez
de fugir do local, decidiu ficar com os seus trabalhadores, apesar do perigo,
recorrendo a água do mar para arrefecer a central. Isso expô-los a níveis fatais
de radiação, mas reduziu a contaminação nuclear do Japão em dez vezes. É
assim que se mantêm posições, quando se tem nas mãos o destino de milhões
de vidas. Por vezes, ser o herói significa afundar com o barco.
Enquanto a central for considerada uma prioridade crítica no fornecimento
de água, os pedidos de alimentos e água de Pete serão honrados. E é
precisamente por isso que todas as famílias que se encontram, agora, sob os
seus cuidados, para ali se dirigiram. Ele não é apenas o gerente de uma
central, considera-se um pouco como um presidente da câmara. É
simultaneamente aterrorizante e entusiasmante. Fá-lo perguntar-se se não
poderá haver um cargo público no seu futuro, depois de ser despedido por ter
ajudado todas aquelas pessoas.
Hoje, as suas turbinas estão a trabalhar a todo o gás, porque as centrais
elétricas de Redondo e Palomar foram desligadas. O que consta, não
oficialmente, é que tal se deveu a problemas com funcionários. Os
trabalhadores simplesmente deixaram de aparecer. Na escolha entre cuidar
das centrais ou cuidar das suas famílias durante o Fechar da Torneira,
optaram pelas famílias. Tal serve apenas para reforçar a ideia de Pete de que
ter recebido as famílias dos seus próprios trabalhadores foi a decisão certa.
Ainda assim, o encerramento das duas centrais perturbou-o. Caso haja mais
encerramentos, isso poderá provocar uma cascata de falhas na rede — e, com
tantos trabalhadores das centrais elétricas desaparecidos, não há como saber
quando uma coisa assim ficaria resolvida.
Ao final da tarde, o seu supervisor da sala de controlo alerta-o para a
presença, junto ao portão, do camião de água pelo qual têm esperado todo o
dia.
— Mas há um problema — diz ele.
Pete está apreensivo. Ainda que o seu trabalho consista em resolver
problemas, as questões que tem enfrentado ultimamente ficam algo fora da
sua especialidade.
— Que tipo de problema?
— Talvez seja melhor veres por ti.
A maior parte das câmaras de segurança mostra a atividade que seria de
esperar na propriedade. Técnicos e maquinaria em áreas restritas e, nas áreas
não restritas, os seus numerosos convidados a tratar dos seus assuntos.
Mas as câmaras do portão principal mostram algo completamente
diferente. Algo que atinge Pete como um choque de mil volts.
Há dezenas de pessoas junto ao portão, aglomeradas à entrada. A princípio
pensa que se trata de algum tipo de protesto, ou de uma estranha
manifestação — tem havido muitas neste clima de seca. Mas porquê aqui? E
depois compreende qual o objeto da sua atenção…
É o camião de água que se aproxima. E está completamente cercado.
Aquilo não é um simples protesto, é algo muito mais perigoso — muito
mais desesperado.
— Quantos guardas temos de serviço? — pergunta Pete ao supervisor da
sala de controlo.
— Três — responde ele —, incluindo o que está ao portão.
— Chama-os todos para aqui!
— Devo informar o Ministério do Interior do que se está a passar?
— Estás a brincar comigo? Liga para o cento e doze!
E depois, no ecrã, a multidão parece entrar, súbita e freneticamente, em
ação. Todos eles, todos ao mesmo tempo. Estão a arrancar os garrafões do
camião, a partir os vidros. A puxar o motorista para o exterior. Meu Deus!
Tudo acontece num piscar de olhos!
Do lugar do passageiro emerge o que parece ser um segurança.
— Aquilo é uma caçadeira?
O homem ergue-a, dispara silenciosamente para o ar e, um segundo depois,
Pete ouve o som atrasado do disparo, abafado e distante. Mas o homem que
disparou a arma não consegue fazer mais do que dar um tiro de aviso, porque
a multidão lhe arranca a caçadeira das mãos e o puxa para o chão, numa
confusão de mãos furiosas.
O supervisor envia os outros guardas e começa a telefonar freneticamente
para o 112, mas é demasiado tarde — porque aquela multidão, na sua raiva
justa, derrubou os portões e inunda a central de Pete. E são mais do que
dezenas de pessoas. Podem ser centenas.
Impotente, o gerente da central, Pete Flores, observa o ecrã das câmaras de
segurança e apercebe-se de que, tal como a eletricidade em si, aquela
multidão é uma força tão perigosa quanto o tsunami japonês… e pode muito
bem ser a sua vez de se afundar com o navio.
7) KELTON
À medida que as horas vão passando, começo a ter a sensação de que a minha
mãe não está muito satisfeita com a maneira como o meu pai lidou com o
confronto com Malecki, porque esta noite está a fazer o jantar uma hora mais
cedo — um hábito nervoso que desenvolveu quando as coisas ficam tensas
em nossa casa. Jantar cedo significa que pode ir cedo para a cama e pôr fim a
um dia indesejável. A minha mãe também é uma «congeladora» compulsiva
— e como estamos a tentar conservar a comida que temos, acabamos, não sei
bem como, a comer o fiambre assado com mel da Páscoa e meia caçarola de
feijão-verde que pode muito bem ter sido feita no último Natal, mas não me
citem.
A minha mãe enche os nossos copos de água. É mais do que deveríamos
beber, tendo em conta as nossas rações, mas não é só isso — ela enche os
copos até à borda, de tal maneira que seria impossível erguê-los sem entornar
um pouco. Mais um sinal de que está zangada com o meu pai.
O meu pai senta-se no seu lugar à cabeceira da mesa, de momento
ignorando os sinais de irritação da minha mãe, e começa a cortar o fiambre. O
som dos talheres a raspar. O tique-taque do relógio. Ninguém fala, a tensão
no ar é tão espessa que seria preciso um machete só para ir ao frigorífico e
voltar. Por fim, o meu pai repara. Ergue os olhos para a minha mãe, olha para
mim, depois continua a cortar.
Tento aligeirar os espíritos com algo positivo.
— O Brady vem? — pergunto a quem quer que esteja disposto a
responder.
O meu pai responde.
— Ainda não conseguimos contactá-lo.
Lá se vai a minha tentativa de aligeirar as coisas. Apercebo-me de que a
falta de resposta de Brady é mais um despoletador de stresse. Brady nunca foi
grande coisa com os telefones; ou os e-mails; ou qualquer tipo de
comunicação. Nos dias que correm só conseguimos contactar com ele quando
lhe apetece, e ele só responde quando tem de o fazer. Pensei que com o
Fechar da Torneira isso pudesse mudar, mas aparentemente não.
— Vamos esperar por ele, certo? — pergunto. — Quer dizer, antes de
fugirmos para o refúgio?
O meu pai mastiga com intensidade.
— Não devemos ficar aqui muito mais tempo — diz ele. — Já viste como
as coisas começam a desmoronar.
A minha mãe volta a encher o meu copo meio bebido, elevando de novo o
nível do líquido até à borda.
— Marybeth, é suposto esta água durar — diz ele por fim, apontando com
o garfo.
— O teu filho tem sede. — Embora não tenha, na verdade.
— Ótimo. Ter um bocadinho de sede irá recordar-nos do porquê de ser
necessário racionar — riposta, a sua raiva começando a subir quase até
transbordar.
— Temos bastante — recorda-lhe a mãe. — E já que não a vamos
partilhar, mais vale que a bebamos toda nós mesmos, até rebentarmos. —
Desde criança, sempre me apercebi de que os meus pais estavam a ter as suas
discussões crípticas à minha frente porque começavam a enfatizar em excesso
determinadas palavras.
— Partilhámos algo todos os dias — diz o meu pai. — Ensinei aos Clarks
como fazer uma estufa portátil e depois dei-lhes parte dos materiais. Mostrei
aos teus amigos do fundo da rua como montar uma casa de banho no exterior.
A minha mãe levanta-se e deita fora o seu prato de papel, embora quase
não tenha tocado na refeição.
— Bem, não vejo qual é o problema de partilhar alguns bens essenciais
como a água, se de qualquer maneira a iremos deixar para trás, depois de
sairmos para o refúgio.
O meu pai inspira fundo, sinal de que se prepara para um discurso. Mais ou
menos como o oceano que recua antes de um tsunami.
— Já sabes como as coisas funcionam, Marybeth. Se começarmos a dar
água de graça, as pessoas vão começar a exigir que lhes dêmos mais. E,
quando as coisas se tornarem violentas, virão tirá-la. E como podes ver
claramente — faz um aceno na direção da casa dos Maleckis —, neste
momento, até a partilha de informação é perigosa.
— São os nossos vizinhos!
— Mas, quando se trata de sobrevivência, não temos vizinhos!
— Vamos ter de viver com estas pessoas quando tudo isto terminar.
— Viver é a palavra-chave! Se isto for tão mau quanto eu acho que é, nem
todos irão sobreviver, e, se queremos permanecer entre os vivos, precisamos
de seguir à risca o nosso plano de sobrevivência e manter um forte controlo
sobre as nossas provisões. Queres dar as coisas? Ótimo. Deixa a porta aberta
quando partirmos para o refúgio, e os saqueadores que destruam esta casa
sem deixarem sequer as paredes.
A minha mãe cede. O meu pai tocou no botão certo. Aquele que se
encontra entre os comandos para «gritar» e «chorar» — o mesmo que usa
sempre, o botão do poder. A minha mãe encerra-se por completo em si
mesma, fecha-se sobre si própria e silencia-se. O mais certo é que fique assim
a noite toda, e talvez até o dia de amanhã.
Assumo a sua defesa, embora fale de uma maneira que o meu pai possa
compreender.
— Enquanto pastores, deveríamos ser uma fonte de orientação, mas não
estamos a fazer nada para ajudar as ovelhas — digo eu.
— Antes de podermos ajudar mais alguém, precisamos de garantir a nossa
segurança.
— E quando será isso?
— Dir-te-ei nessa altura. — E, dito aquilo, dobra o guardanapo, bebe a
água em goles sonoros até o copo ficar vazio e depois sai da cozinha,
deixando-me a sós com a minha devastada mãe e o bizarro jantar infernal de
restos das festas.
TERÇA-FEIRA, 7 DE JUNHO
8) ALYSSA
Percorremos Laguna Canyon Road, uma rua principal que sempre tomámos
para chegar à praia. Tento levar-me de volta para uma das vezes em que
apreciei a viagem, mas já não é a mesma coisa. O vento árido bate-me no
rosto. O ardor nas minhas pernas parece-se menos com exercício e mais com
um castigo pavoroso.
Passar por alguns bairros, numa estrada principal, permite-me espreitar a
partir de uma distância segura e apercebo-me de que algumas zonas ainda
têm eletricidade, o que representa para mim algum conforto. Faz-me pensar
que estão a trabalhar para resolver estes problemas. Talvez as torres de
telecomunicações estejam em baixo por falta de energia. Tento convencer-me
de que é por isso que não consigo qualquer resposta sempre que ligo para os
meus pais.
— Devias parar de ligar — diz-me Kelton. — Estás a esgotar a bateria e
poderás precisar do telemóvel, mais tarde.
— Talvez esteja lá muita gente — diz Garrett, tecendo as suas próprias
considerações. — Como quando as pessoas foram acampar, durante dias,
antes da estreia do último filme da Guerra das Estrelas.
Mas ficariam, a minha mãe e o meu pai, acampados na praia à espera de
receberem água, sabendo que eu e Garrett estávamos em casa sozinhos? Por
muito que queira que a resposta seja algo simples de que nos iremos rir mais
tarde, quanto mais tempo passo sem ter notícias deles, mais difícil me é
imaginar um final cor-de-rosa.
Chegamos a meio da manhã a Laguna Beach, onde a brisa marítima ainda
gera uma espécie de neblina, mantendo a linha da costa misericordiosamente
fresca. Consigo sentir o cheiro do oceano e o sal no ar, a colar-me as roupas à
pele. As ondas trovejam ao longe, e, embora a cadência do oceano sempre
tenha sido reconfortante para mim, o silêncio que se estende entre cada onda
parece-me agora estranho. Ainda assim, avanço na bicicleta, voando ao longo
da última parte da estrada, que termina na Pacific Coast Highway, e na praia
logo a seguir. Já não sinto as bolhas nas mãos ou a dor nas pernas. Tenho de
ver a praia! Tenho de saber que os meus pais estão ali, e que estão bem.
Mas, depois de atravessar a PCH, no final do passadiço, travo com força e
estaco repentinamente — porque à minha frente não está uma praia repleta de
famílias a recolher as suas rações de água, mas um vasto deserto de areia.
Está praticamente deserta, com apenas algumas pessoas que parecem
percorrê-la sem destino. Mais além, perto da beira da água, estão máquinas
empoleiradas nas traseiras de camiões — talvez meia dúzia delas espalhadas
ao longo da praia —, mas não estão a produzir água. Não estão a fazer nada.
De facto, uma delas está a cuspir fumo negro e outra está tombada de lado.
Largo a minha bicicleta e desço do passadiço para a areia, com Garrett e
Kelton logo atrás. Os meus olhos dardejam de um lado para o outro, em
busca dos meus pais, desesperada pelo mais pequeno sinal deles.
E depois Garrett diz:
— Alyssa, ouves isto?
— Ouço. — É um som quase musical, e fantasmagoricamente eletrónico,
que se ouve logo abaixo do ruído das ondas. Percorro a areia, e o som torna-
se mais alto, até me aperceber de que não é apenas um som, mas muitos,
fundindo-se num só. E de imediato me apercebo do que se trata.
Telemóveis. São toques de telemóveis.
Há dezenas deles espalhados na areia à nossa volta, criando uma
fantasmagórica sinfonia em oito bits. São as chamadas perdidas de milhares
de almas.
Não queria ter de sacar da arma, mas, assim que aquele canalha se aproximou
demasiado de Alyssa, foi como se tivesse entrado em ação um qualquer
instinto protetor dentro de mim. Agora, a minha Ruger está apontada mesmo
à sua cabeça. É suposto apontar ao peito, mas neste ângulo tudo o que tenho
são as suas costas, e uma bala nas costas atravessá-lo-ia diretamente e
atingiria Alyssa. Mas ele é alto. Um tiro na cabeça não acertaria em Alyssa.
Mal os outros dois sacanas veem a minha arma, largam Garrett e fogem a
correr. Mas o louro alto continua a agarrar Alyssa.
— Eu disse para a largares! — A minha mão treme. Ergo a outra mão,
agarrando a arma com as duas, mas isso não ajuda.
Agora ele vira-se e vê a arma, e Alyssa usa o momento para se libertar,
distanciando-se imediatamente e correndo para Garrett, para o proteger.
O sacana alto fica ali parado, a olhar para mim como se não quisesse saber
se eu puxo ou não o gatilho. Como se já se tivesse resignado com o facto de
que iria morrer.
Olho diretamente para aqueles olhos azuis gelados e depois concentro-me
de novo na mira. Agora as minhas mãos não estão apenas a tremer. Agitam-
se. Violentamente. Tento impedi-las, mas é como se o meu cérebro não
conseguisse enviar o sinal até à ponta dos braços, como se eu tivesse
desligado o meu próprio corpo. E agora sou atingido por uma onda de pânico
castradora que começa no peito e exerce a sua força com um nível de
gravidade letal, fazendo colapsar os meus pulmões até eu ter implodido para
o interior de mim mesmo e não ser capaz de respirar. Quase não consigo
arquejar.
— Ele vai fazê-lo! — grita Alyssa. O som reverbera e ecoa. — É melhor
fugires com os teus amigos.
— Não — diz ele. Apenas «não». E depois dá um passo na minha direção.
Ou será que não dá? Quase não consigo perceber, porque a minha visão está a
ficar turva, à medida que o meu cérebro começa a falhar, pistão após pistão.
— Fá-lo, Kelton! Fá-lo! — grita Garrett.
Mas não consigo. Com todo o treino, com tudo aquilo que ensinei a mim
mesmo acerca de autodefesa e do empunhar de armas, algo dentro de mim
rebenta um fusível crítico. Não consigo obrigar-me a puxar aquele gatilho.
E o miúdo sabe disso.
Atira-se para a frente, fazendo-me recuar, e a arma voa das minhas mãos.
Não posso deixar que ele a apanhe! Ele matar-nos-ia a todos! É assim tão
maluco… sei que é!
A arma cai na valeta repleta de lixo. Ambos corremos na sua direção. Não
sei qual de nós está mais desesperado por alcançá-la. E, quando chego ao
local onde acho que a vi aterrar, não está lá. Em vez disso, está lá uma
rapariga de pé, como se tivesse aparecido do nada. Uma rapariga que nunca
vi antes — e está a segurar a minha arma. Apontando-a diretamente para
mim.
Ela puxa o cão, carregando uma bala na câmara com a precisão de um
especialista, e eu apercebo-me de que, mesmo que tivesse puxado o gatilho,
nada teria acontecido, porque nunca chegara sequer a desativar a patilha de
segurança. Ela sorri, quase sedutoramente — e é nesse momento que me
apercebo de que a arma não está apontada para mim de todo. Está apontada
para o sacana de olhar gelado mesmo atrás de mim.
Ela afasta-me do caminho com um tipo de confiança meio louca e encosta
a boca da arma à testa do rapaz.
Olho para Alyssa, que, tal como eu, está em choque perante o surgimento
desta rapariga misteriosa, e aterrorizada sem saber quais serão as suas
intenções. Esforço-me por afastar o meu ataque de ansiedade.
O miúdo encolhe-se quando ela lhe pressiona ainda mais a arma contra a
testa, muito mais aterrorizado em relação a ela do que em relação a mim.
Gagueja pedidos de desculpa — qualquer coisa para ganhar tempo.
— São eles, não eu… Eles têm água. Porquê eu?
— Porquê tu? — diz ela, estranhamente pensativa. — Acho que não gosto
da tua cara. Mas aposto que já foi bonita, um dia. Um belo rapaz da praia.
Levei com os pés de demasiados rapazes desses. — Embora não compreenda
por que razão alguém lhe daria com os pés. Ela não é apenas dura, é
espantosa de um modo algo selvagem. Morena e misteriosa. Por outro lado,
talvez lhe tenham dado com os pés porque ela é completamente psicótica.
Sopra uma longa madeixa de cabelo preto para longe do rosto, revelando
os imperscrutáveis olhos negros.
Depois estende a mão livre para Alyssa, mantendo a arma contra a cabeça
do miúdo.
— As chaves, por favor — diz ela, e, quando Alyssa não se mexe,
acrescenta: — As chaves ou mato-o.
Começo a somar um mais um. Se esta rapariga sabe acerca das chaves, não
estava apenas a passar por aqui quando isto aconteceu. Significa que viu
tudo. Que estava a observar, à espera para fazer a sua jogada. Mas, se viu,
então porque é que acha que Alyssa salvaria aquele miúdo?
E, de súbito, apercebo-me porquê.
Porque Alyssa o fará. Esta rapariga «leu» a Alyssa em poucos segundos
depois de a ter visto.
— Por favor — choraminga o rapaz. Provavelmente teria feito xixi pelas
pernas abaixo se tivesse alguma água para expelir. — Por favor… a minha
mãe e a minha irmã… estão a contar comigo para levar água. Se me matares,
também as matas a elas!
— Uau, que treta — disse a rapariga, e pressiona a minha arma ainda com
mais força contra a sua cabeça. — As chaves, por favor — diz de novo a
Alyssa.
— Está bem — diz Alyssa, tentando acalmá-la. — Ninguém tem de morrer
aqui.
— Não! — queixa-se Garrett. — Deixa que ela lhe dê um tiro!
Mas Alyssa ignora-o e coloca as chaves na mão da rapariga.
Esta afasta de imediato a arma da testa do rapaz louro, encosta o pé ao
peito dele e empurra-o para trás. Quem é esta rapariga? Age de um modo
alegremente impulsivo; na realidade, não creio que haja nada de impulsivo
nela. Acho que é calculista e inteligente.
Quanto ao miúdo de olhos azuis, deixa-se ficar no chão, enroscado em
posição fetal, quebrado e soluçante, que é como imagino que passará o resto
da eternidade.
11) ALYSSA
É uma sensação poderosa — desafiar o universo para que nos ponha fim.
Todos conhecemos essa sensação. É aquela sensação que temos quando
pensamos, nem que seja por uma fração de segundo, em guinar na direção do
trânsito que segue em sentido contrário; ou em saltar de uma varanda; ou em
jogar à roleta russa com o revólver que o vosso pai pensa que desconhecem.
Não se trata de fazer realmente qualquer uma destas coisas, mas a sensação
está lá, como o vento nas nossas costas, à beira de um penhasco, incitando-
nos suavemente. E se… E se…
É aquilo a que o meu psiquiatra, mais conhecido como Doutor Charlatão,
chama o Apelo do Vazio. É uma coisa real — definida em revistas
psiquiátricas e tudo.
Conheço essa sensação intimamente. É onde vivo. Eu como, durmo e
sonho com o vazio, e, sempre que este chama o meu nome, estou lá, na fila
da frente, pronta para responder.
Imagino que o surfista palerma de cabelo louro oxigenado teve um
vislumbre disso mesmo quando encostei a arma entre os seus olhos. Não que
eu fosse realmente puxar o gatilho, mas e se…
Ameaçá-lo nem sequer tinha sido o meu plano original. Nada daquilo o
era. Não sou nem salvadora, nem mártir, nem heroína, sob qualquer aspeto.
Isso gera demasiada atenção desnecessária. Estava a pensar simplesmente em
esperar que o confronto chegasse ao fim, que os três miúdos espancassem o
velhote e lhe tirassem as chaves, e me conduzissem ao automóvel e à água
que ele tinha escondido. Mas a rapariga e o seu pequeno grupo apareceram,
complicando as coisas. Mal vi o cromo com a arma, soube que isto não ia
acabar bem se eu não intercedesse. Por isso, agora tenho um automóvel e
uma arma e talvez alguma água. Bom trabalho para uma terça de manhã.
Se Alyssa e companhia tivessem bom senso, teriam fugido mal afastei dela
os holofotes, tal como tinham feito os «amigos» do rapaz louro; ou, pelo
menos, era isso que eu esperava que eles fizessem. Por outro lado, o Fechar
da Torneira tornou as pessoas espantosamente imprevisíveis.
Há uma razão para não lhe contar o que aconteceu na praia ontem. Nada do
que eu lhe possa dizer a ajudará a enfrentar a realidade. Chamem ao meu
silêncio compaixão, se quiserem.
Eu estava lá, ontem. Não cedo o suficiente para conseguir água, mas cedo
o suficiente para ver as coisas a correrem mal. Sabem, eu já estava há cerca
de uma semana numa casa da praia, num penhasco sobranceiro às baías mais
pequenas de Laguna Beach. Um grande «D» de ferro na chaminé. Acho que
pertenceu um dia à Bette Davis — a minha atriz dos velhos tempos preferida,
porque não era bonita, mas era francamente sensual! Não sei quem é agora o
seu proprietário, mas este verão não anda por aqui. Sabem, as pessoas
horrendamente ricas fazem esta coisa horrendamente rica em que compram
propriedades só para poderem estacionar o seu dinheiro algures. E, se forem
suficientemente ricas, nem sequer se dão ao trabalho de arrendar as
propriedades, pelo que, em qualquer altura, talvez uma em cada cinco casas
do penhasco de Laguna Beach estejam vazias. E os sinais de aviso da
presença de alarme contra intrusos só cerca de metade das vezes querem dizer
que existe, de facto, um alarme. Junte-se a isto competências de serralheiro e
uma apurada capacidade para manter a discrição, e faço viagens para o colo
do luxo de um modo regular. Normalmente fico durante cerca de uma
semana. Depois limpo tudo, como se fosse um Airbnb, e desapareço, sem que
os donos se cheguem a aperceber de que lá estive. Mas a verdade é que se
apercebem — porque eu deixo sempre um bilhete num cartão da Hello Kitty,
a agradecer-lhes a sua hospitalidade e a dizer-lhes que abasteci o frigorífico
com Dr Pepper para o próximo hóspede não convidado. De que serve a vida
se não nos pudermos meter com as pessoas?
Cortei o braço a forçar a entrada da casa onde me encontro atualmente,
pela janela da casa de banho do piso superior. O golpe não era nada de
verdadeiramente preocupante — isto é, até ao Fechar da Torneira. Fui
apanhada desprevenida, tal como toda a gente, o que foi parvo da minha
parte, porque normalmente estou mais atenta. Depois, quando anunciaram
que iam fazer água potável a partir da zurrapa repleta de algas das praias do
Sul da Califórnia — e que o local mais próximo era logo ao cimo da estrada
—, peguei em cerca de uma dezena de garrafas vazias e enfiei-as na mochila
— também ela da Hello Kitty, porque, está bem, tenho uma cena com a Hello
Kitty. É um prazer secreto, um pouco como o motoqueiro machão que usa,
em segredo, roupa interior de mulher.
Cheguei cerca de uma hora antes daquela em que diziam que teria início a
operação, mas já havia filas que subiam e desciam pela praia e pelo
passadiço, que ultrapassavam o cinema, percorrendo todas as ruas
secundárias. Centenas, senão mesmo milhares de pessoas. Por uma questão
de princípio, não espero nas filas. Opto antes por me fundir. Normalmente
perto da frente da fila, e faço-o com a perícia do David Copperfield a fazer
desaparecer a Estátua da Liberdade. Preciso apenas de encontrar a abertura
certa, por isso deixo-me ficar pela praia e observo.
As máquinas de dessalinização eram mais pequenas do que eu estava à
espera. Os técnicos que estavam a trabalhar com elas pareciam pessoal da
FEMA — mas não envergavam as suas roupas azul-cobalto oficiais. Estas
eram azul-céu. Ficámos mais tarde a saber que tinham enviado o corpo de
voluntários da FEMA. O que me irritou bastante. Terão calculado tão mal
esta crise da água que não tiveram em consideração o quão extrema era e a
deixaram nas mãos de voluntários? Sei que tinham de acudir a muitos fogos,
mas não se pode deixar todo um esforço de auxílio nas mãos de um bando de
aspirantes a agentes federais. Não se trata só de uma receita para o desastre,
trata-se de uma receita à qual falta metade dos ingredientes.
As máquinas funcionaram a princípio, e os voluntários pareciam saber o
que estavam a fazer… isto, até a primeira máquina começar a deitar fumo.
Foi então que se tornou claro que todo o conjunto de capacidades dos
assistentes se limitava a abrir as torneiras e a voltar a fechá-las.
— São as algas — ouço dizer um sabichão gordo. — Estes idiotas não
tiveram em conta as algas.
Aparentemente, as máquinas tinham sido concebidas para processar água
do mar filtrada. E, embora tenham tentado criar filtros improvisados, as
máquinas estavam a falhar e a sobreaquecer uma após outra.
— Tenham calma — disseram os voluntários desconcertados à multidão
furiosa. — Os técnicos vêm a caminho para resolver o problema. Haverá
água que chegue para todos. — Mas claro que não veio ninguém, e em breve
apenas duas das seis máquinas continuavam a funcionar.
Depois, o tipo à frente da operação cometeu o erro seguinte de uma longa
série de erros. Disse às pessoas que se encontravam à frente das máquinas
estragadas que se colocassem nas filas atrás das pessoas que aguardavam nas
máquinas que ainda estavam a funcionar.
Se palavrões explosivos fossem como bombas nucleares, teríamos
aniquilado o planeta.
Estão a brincar comigo? Estamos à espera sob o sol escaldante há três
horas!
Tal como dizem no Antigo Testamento, houve grande consternação e
ranger de dentes.
As pessoas tentaram desafiar as ordens e fundir-se nas filas das máquinas
em funcionamento, mas sem um mínimo da delicadeza que eu teria trazido ao
esforço. E as pessoas que já ali estavam foram empurradas para trás e aqueles
que iam abrindo passagem empurraram com mais força ainda.
Põe-te a andar! Passámos o dia todo à espera nesta fila!
Pois, e nós estivemos à espera NAQUELA fila o dia todo!
Então voltem para lá e esperem que venham arranjar a vossa maldita
máquina!
E num instante as filas desapareceram. Tudo não passava de uma
amálgama de pessoas a tentar avançar.
Não vi a primeira luta, mas senti-a — porque toda a multidão avançou e eu
quase fui atirada ao chão. A multidão empurrava agora com tanta força que
uma das duas máquinas que continuavam em funcionamento foi atirada ao
chão — e mesmo assim as pessoas continuaram a tentar aproximar-se, encher
os seus recipientes, mas tudo aquilo que conseguiam encontrar era um visco
negro.
Nessa altura tive o bom senso de me afastar em direção à linha de
rebentação, mas fiquei ali presa, obrigada a assistir enquanto tudo se
desenrolava. Um confronto deu lugar a outro, e a outro, e de súbito os
cérebros de todos pareceram desligar-se ao mesmo tempo.
Há uma coisa que acontece com uma multidão. Chama-se
«desindividualização». É o tipo de coisa que acontece quando um polícia
veste a sua farda, ou quando usamos um par de óculos de sol para que as
pessoas não consigam ver os nossos olhos. É como se deixássemos o nosso
eu normal — e isso faz-nos sentir diferentes. Comportar de maneira diferente.
Então, o que acontece quando não somos senão mais uma alma sedenta num
mar de zombies da água? Transformamo-nos num.
Vi um velho a ser espezinhado até à morte. Vi uma mãe a roubar a água do
filho de outra pessoa. Até vi um homem a sacar de uma faca e a assassinar
um estranho a sangue-frio. A multidão assaltou as máquinas, atacou os
voluntários, alguns dos quais tinham armas e começaram a disparar para a
multidão.
Em breve, a polícia antimotim entrou em cena, empurrando a multidão
com os seus escudos antimotim, como se fossem impelir toda a gente para o
mar, onde os afogariam. E a algumas pessoas foi isso mesmo que aconteceu.
Algumas pessoas não tinham outro lugar para onde ir senão para as ondas. E
os mais fracos, ou aqueles que não sabiam nadar, afogaram-se. A polícia
antimotim disparou balas de borracha, lançou gás lacrimogénio, bateu nas
pessoas com os seus bastões.
Consegui escapulir-me dali, e trepei a uma rocha, ao fundo da praia, eu e a
minha mochila da Hello Kitty, que continuava cheia de garrafas vazias. Nesta
altura, sentia já que a febre começava a subir e sabia que era do maldito corte
infetado. Mantive-me afastada, observando todas aquelas pessoas cederem ao
Apelo do Vazio.
Depois de quase uma hora de caos absoluto, e de centenas de detenções, a
multidão começou a diminuir, o que finalmente permitiu que os paramédicos
entrassem em ação, ajudassem os feridos e levassem os mortos. Chegado o
pôr do Sol, a praia estava praticamente deserta, e os agentes da polícia
antimotim que haviam sido deixados para trás disparavam tiros de aviso a
qualquer pessoa que se atrevesse a aproximar das máquinas deterioradas.
Acho que um ou dois dos tiros não foram só de aviso.
Decidi não regressar à casa da praia. Não havia lá nada para mim. Não
havia água. Não havia mantimentos. Apercebi-me de que a minha melhor
hipótese de sobrevivência não seria escondendo-me das pessoas, mas
permanecendo entre elas. Porque seria ali que encontraria uma oportunidade.
As pessoas podem ser manipuladas, comovidas e sacrificadas. Por isso, nesse
sentido, acho que se pode dizer que gosto muito das pessoas. Moral da
história: por vezes é melhor não anunciar as más notícias. Pelo menos não ser
eu a anunciá-las. Porque, quando se trata dos pais de Alyssa e de Garrett, a
verdade é que, entre todo o sangue e toda a água derramados, podem estar em
qualquer lado, neste momento. Até na morgue.
Procurámos o BMW nas ruas próximas, ao mesmo tempo que a febre me vai
fazendo sentir cada vez pior. Passamos por montras vazias e pequenos
parques de estacionamento, e eu vou pressionando o botão de pânico do
comando, mas sem qualquer sorte.
Alyssa e o irmão não param de olhar à sua volta, e eu sei que não é do
BMW que estão à procura.
— Que tipo de automóvel conduzem os teus pais? — pergunto.
— Um Prius azul — diz Garrett.
Eu rio-me.
— Boa sorte. Isso é, tipo, metade dos automóveis de Laguna. — Ergo as
chaves no ar e volto a carregar no botão do comando.
— Se encostares as chaves ao queixo terás um maior alcance — diz
Kelton. — A corrente elétrica viaja através dos fluidos no cérebro,
transformando a tua cabeça numa antena.
Não funciona, mas ainda assim ele sorri, claramente orgulhoso da sua
capacidade para oferecer informação inútil. Os conhecimentos dos livros são
bons, como os sapatos de salto são bons: só nos levam até um determinado
ponto, até ao momento em que temos de usar a porcaria dos pés. Em
situações em que é necessário combater ou fugir, é o saber das ruas que nos
mantém vivos. Tenho uma sorte excecional, porque tenho ambos. Já há
alguns anos que estou sozinha e consegui fazê-lo sem um endereço
permanente ou um ordenado regular. Seja ficando com o namorado do mês,
ou numa casa cuja hipoteca foi executada pelo banco, ou descansando no
luxo de uma casa da praia a cheirar a naftalina, tenho-me saído bem. A vida
no limite adequa-se à minha personalidade. Mesmo nos tempos em que
andava na escola era igual. Não tinha o egoísmo melodramático necessário
para ser gótica, nem aparecia nas aulas vezes suficientes para ser considerada
um cromo. Não tinha o QI suficientemente baixo para tolerar a malta mais
popular… e tenho quase a certeza que preferia ser empalada no poste da
bandeira da escola a ser uma daquelas raparigas que seguem a última moda.
Os meus pais — que têm tantos problemas próprios que estavam
determinados a levar-me a ter os meus próprios problemas — não paravam
de me levar a terapeutas e psicofarmacologistas, que lhes respondiam que os
meus problemas tinham a sua origem mais numa disfunção ambiental do que
num desequilíbrio químico. O que sempre os deixava irados. O que poderia
haver de disfuncional numa mãe tão rancorosa que deixa propositadamente
malcozinhado o frango do marido e num pai tão narcisista que faz um facelift
aos 40? Contudo, acabaram por encontrar o único tipo capaz de lhes dar o
diagnóstico que eles queriam: Distúrbio Psico-dissociativo com Tendências
Niilistas. O que basicamente significa que não sou uma paz de alma. E
medicaram-me por isso. Muito obrigada, Doutor Charlatão.
Foi ótimo. Para eles. Eu não tinha motivação suficiente para ter opiniões
ou energia suficiente para me preocupar. A questão da medicação é que esta
pode, realmente, salvar vidas quando precisamos dela. Mas quando não
precisamos é apenas uma chatice.
Quando a minha mãe finalmente ganhou coragem e anunciou que queria o
divórcio, pus-me a andar. Aquele era um espetáculo que eu não precisava de
testemunhar, por muito bons que fossem os lugares. De vez em quando
telefono, apenas para me assegurar de que ainda não se comeram um ao
outro, nem se juntaram a um culto Kool-Aid. Fora isso, mantemo-nos cada
um do seu lado da zona desmilitarizada.
Estar sozinha durante os últimos dois anos trouxe-me perto de me tornar
uma vítima do tráfico humano e mais perto de morrer — isto mesmo antes do
Fechar da Torneira. Excelente material para as memórias que nunca chegarei
a escrever.
Por isso, agora sou motorista de três miúdos irritantes. O que
provavelmente se revelará a situação mais perigosa em que me encontrei até
hoje.
Alyssa e Garrett saem a correr de casa e quase se atiram de novo para dentro
do automóvel, batendo com a porta — e basta-me um instante para perceber
porquê. Um dobermann pinscher de aspeto bastante letal sai pela porta da
frente, seguido por Kingston e por um outro cão grande. Seguem o
dobermann, enquanto este anda em círculos em redor do veículo. Alyssa
explica o que aconteceu, e Jacqui saca da arma.
— Não! — digo-lhe. — Vamos ver o que eles fazem.
Kingston pousa a pata na porta de trás, olha tristemente para a janela, para
Garrett, cujos olhos estão a ficar marejados de lágrimas. Depois, Kingston
segue os outros dois cães para o interior da casa. Alyssa expira de alívio.
— Então vão abdicar da vossa casa e entregá-la a uma matilha de cães? —
diz Jacqui.
Alyssa não responde. Nem sequer ergue os olhos. É como se o processador
do seu cérebro tivesse congelado com esta última gota de água.
— Não importa — digo a Jacqui. — Vamos para minha casa. De qualquer
maneira estaremos lá mais seguros.
Claro que convencer o meu pai a aceitá-los será do mais divertido que há.
Tendo em consideração a maneira como as coisas pioraram rapidamente hoje,
o mais certo é que tenha entrado em modo comando — as armas prontas e
carregadas, a carrinha repleta para a nossa peregrinação até ao refúgio, e
absolutamente irritado por eu ter saído esta manhã sem ter deixado um bilhete
sequer. Mas mantenho-me firme na minha crença de que ir com Alyssa foi a
coisa certa.
E Jacqui? Bem, é um risco necessário. É como uma jogada de xadrez. É
como sacrificar uma peça importante no início do jogo, com ganhos possíveis
a longo prazo. Mas, por vezes, é isso que é preciso fazer para ganhar. Correr
riscos. Sei que trazer a Jacqui até aqui foi um grande risco. Mas apesar da
óbvia desconfiança que Alyssa sente em relação a ela, Jacqui é a única razão
por que ainda estamos vivos, quer gostemos disso ou não. Fico apenas
satisfeito por ter reparado na infeção dela — porque eu sabia que ela não ia
abdicar de um antibiótico. Não posso deixar de pensar que a sua decisão de se
juntar a nós foi, também ela, um risco calculado. E agora basta-me alimentar
a esperança de que Jacqui não se vire contra nós mal obtenha aquilo que quer.
Estacionamos no acesso, e eu conduzo-os em direção à minha casa. Já
consigo perceber que o meu pai andou atarefado. Os buracos de aranha do
nosso pátio estão tapados e preparados para receberem os seus ocupantes, as
armadilhas prontas e os estores de segurança descidos. O meu pai até cobriu
o perímetro com câmaras de vigilância adicionais.
Jacqui olha à sua volta absolutamente espantada, saindo do carreiro de
cimento e passando para a relva, e, quando o seu pé toca no chão, a terra
cede. Agarro-lhe o braço e puxo-a, para que não caia no fosso, que não chega
a ter um metro de fundo, mas está forrado com tábuas de pregos, como algo
saído de um filme do Indiana Jones.
— Armadilhas — digo. — Tenham cuidado onde põem os pés.
Jacqui abana a cabeça, demasiado fixe para se sentir horrorizada.
— E há quanto tempo é que se estão a preparar para o apocalipse?
— Há algum tempo — digo eu. — O fim do mundo é o hobby da nossa
família.
Jacqui olha à sua volta de relance, cativada pela espetacularidade sombria
do nosso pátio.
— Sempre é melhor que o crochet — diz.
Agora, a parte mais difícil. Aproximo-me da porta da frente, inspiro fundo,
muito fundo, procurando pela chave certa, mas, antes que consiga introduzir
a chave na fechadura, estaco, lembrando-me de que Jacqui ainda tem a minha
arma. Se o meu pai a vir, o caos que já está gerado aumentará de forma
exponencial. O facto de se encontrar agora na sua posse, não me torna apenas
loucamente irresponsável, mas cem por cento culpado por o que quer que ela
acabe por fazer com ela.
E, depois, a porta abre-se sem que eu use a chave — é o meu pai. É como
se estivesse à nossa espera.
— Bem-vindo a casa — diz ele, com uma frieza distante. — Tens-te
andado a divertir por aí?
— De todo — digo-lhe. — É tal como tinhas previsto.
— E as autoestradas?
— Engarrafadas — relato.
É então que a minha mãe sai a correr, envolvendo-me num abraço
terrivelmente embaraçoso.
— Kelton! Estás bem? Nunca mais nos voltes a assustar assim! — Nem
sequer tenho de olhar para ver o sorriso de Jacqui.
O meu pai gesticula para que a minha mãe volte a entrar em casa e o deixe
lidar com a situação. Depois vira-se para os restantes.
— Pelo que vejo, trouxeste amigos. Olá, Alyssa. Garrett.
Eles retribuem o cumprimento com saudações desajeitadas.
Depois olha para Jacqui de cima a baixo.
— E quem é esta?
— Chamo-me Jacqui. Fui eu quem salvou o couro do seu filho lá fora —
responde ela, avançando sem medo. — Estou aqui pelos antibióticos que ele
me prometeu.
O rosto do meu pai incha de raiva. Mas, em vez de gritar, inspira fundo,
engolindo tudo. Acena com a cabeça, mantendo a compostura, guardando a
sua raiva para outro momento.
— Isto é verdade, Kelton?
— Sim — digo eu. — Ela salvou-nos a vida e trouxe-nos para casa em
segurança.
— Obrigado por isso, Jacqui — diz o meu pai. — Mas, infelizmente, os
nossos antibióticos não pertencem ao meu filho, para que ele os possa dar.
Jacqui olha-o fixamente, quase rosnando como o dobermann em casa de
Alyssa e a minha mente já disparou, sabendo que isto não irá acabar bem. Ela
dá um passo ameaçador na direção dele.
— Pois, isso não vai funcionar para mim — diz Jacqui.
Penso na arma escondida na sua cintura. O que o meu pai faria se a visse.
Em como nunca poderá descobrir. Antes que a situação piore, dou um passo,
colocando-me entre os dois.
— Como a Jacqui disse, ela salvou-me a vida! — recordo ao meu pai,
fingindo-me indignado e depois apercebendo-me de que não tenho que fingir,
porque estou. — Estás a dizer que a minha vida não vale uns míseros
antibióticos?
— Kelton, não estás a perceber…
— E a seguir, provavelmente, vais-me dizer que não podemos acolher a
Alyssa e o Garrett!
— Eles têm a sua própria casa!
— Que foi assaltada e não é segura! E agora os pais desapareceram!
Então ele aproxima-se de mim, falando baixinho. Não é bem um sussurro,
mas não é suficientemente alto para que qualquer pessoa, além de mim, oiça.
— Não vamos ter esta conversa. Sabes como funcionam as coisas.
E eu expludo, gritando, para que a minha mãe consiga ouvir lá dentro, e
provavelmente qualquer outra pessoa a curta distância.
— Pois, eu sei exatamente como é! Tu tens razão, não vamos ter esta
conversa. Porque eu vou-me pôr a andar daqui.
Viro-me e avanço a passos largos em direção ao BMW.
— Kelton! — grita o meu pai.
Não consigo combater o impulso para parar mal ele chama o meu nome
daquela maneira — mas uso-o em meu benefício. Viro-me para ele.
— Agora percebo porque o Brady se pôs a andar daqui mal pôde. Nem
sequer vou esperar por chegar aos dezoito anos. — Depois olho para os
outros. — Venham, vamos embora. Jacqui, havemos de arranjar antibióticos
para ti junto de alguém que se preocupe minimamente.
A minha esperança é que Jacqui perceba o que estou a fazer e vá na onda
— porque, numa situação real, esta rapariga jamais aceitaria uma ordem
minha.
Mas ela percebe — porque olha para o meu pai com um sorriso e um
encolher de ombros e diz:
— Até mais, totó. — E, por um momento, pergunto-me como é que
conhece a alcunha do meu pai. Mas depois apercebo-me de que não é esse o
caso.
Chegamos a meio caminho do veículo — depois, a minha mãe sai a correr
de casa.
— Kelton! — diz ela, num tom ainda mais autoritário do que o do meu pai.
— Não te atrevas a entrar nesse automóvel!
Viro-me para ela, esperando que a situação se desenrole.
— Alyssa, Garrett: claro que podem ficar connosco — diz ela. — Tu
também, Jacqui. Temos toda a água e comida de que precisam. — Depois
vira-se para o meu pai e diz-lhe, num tom de apaixonante desafio: — E
antibióticos.
Ela empurra Alyssa e Garrett para dentro de casa, para lá do meu pai, que
nada pode fazer para a impedir.
— Marybeth, podemos falar sobre isto?
— Não.
E passa por ele, sobrepondo a sua autoridade à dele.
Sinto-me triunfante e preocupado ao mesmo tempo, porque o meu pai
contabiliza as ofensas. Sei que, um dia, isto me sairá caro. Mas não será hoje.
Jacqui passa pelo meu pai saltitando, cobrindo-o de sarcasmo.
— Obrigada pela sua hospitalidade! — Felizmente não acrescenta «totó»
desta vez, mas agarra no panfleto cor-de-rosa do encontro da comunidade
preso à porta e entrega-lho, como se lhe estivesse a fazer um favor.
Quanto a mim, mantenho uma expressão inescrutável e não olho para o
meu pai quando passo por ele. Mas por dentro estou a sorrir — porque, pela
primeira vez na minha vida, fiz do medo um vento a favor em vez de um
vento contra.
O meu círculo de amigos está, normalmente, limitado aos escuteiros,
preppers e um ou outro filho de um dentista — por isso, ter Alyssa, Garrett e
Jacqui aqui é algo até bastante significativo para mim. Mostro-lhes a casa,
começando pela minha divisão preferida: a nossa sala segura. É onde
guardamos todos os artigos em que normalmente não nos é permitido tocar.
Kits de primeiros socorros, garrafões de água, armas, munições e alimentos
enlatados não perecíveis. Fica por detrás de uma estante com dobradiças.
Puxo um livro que funciona como um manípulo, e toda a unidade de
prateleiras se abre.
— O meu pai tirou o modelo de um antigo filme do James Bond — digo-
lhes, na esperança de o poder redimir um pouco. Ficam convenientemente
impressionados. Também foi aqui que o meu pai enfiou os antibióticos:
diversos frascos de líquidos e de comprimidos, fechados em sacos com
fechos zip e reutilizáveis.
— Tens alguma alergia a antibióticos? — pergunto a Jacqui.
— Não.
Entrego-lhe dois frasquinhos de comprimidos cor de laranja de Keflex.
— Um frasco deve chegar, mas, se não for suficiente, um segundo bastará
sem dúvida. — Estendo-lhe as duas embalagens, e ela olha para elas como se
pudesse ser um truque. Depois arranca-mas da mão, abre uma delas e toma
dois comprimidos a seco.
— Finalmente. — Exala, enfiando os frascos no bolso. Depois sorri para
mim, e pela primeira vez não parece completamente louca. — Obrigada,
Kelton — diz ela, e acho que está realmente a ser sincera.
Alyssa olha à sua volta.
— A porta tem tranca? — pergunta ela.
— Só pelo lado de dentro — digo eu. — É uma sala segura, lembra-te
disso. Porquê?
— Porque — diz Jacqui — ela acha que eu a vou assaltar a meio da noite e
fugir com todas as vossas coisas.
— Nem tudo é por causa de ti — diz Alyssa, mas a maneira como evita o
olhar de Jacqui diz-me que, desta vez, até é. E talvez com alguma razão.
— Não se preocupem — digo eu. — Há um alarme com sensor de
movimento no interior, por isso, se alguém entrar durante a noite, saberemos.
— O que não é exatamente verdade, porque todos os sensores de movimento
estão no perímetro da nossa propriedade, mas Jacqui não precisa de saber
disso.
Conduzo-os às traseiras, mostrando-lhes a zona onde pratico tiro ao alvo. E
aponto para a casa de banho portátil.
— Não vamos desperdiçar água nas casas de banho interiores, por isso é
ali que tratamos das coisas. — Embora ninguém goste de uma casa de banho
portátil, nenhum deles se queixa.
Na cozinha mostro-lhes o bidão de aço inoxidável onde se encontra o
nosso fornecimento de água principal. Abro a rolha de segurança de borracha
e preparo a torneira.
— O meu pai irá racionar a água — digo eu, olhando à minha volta para
me assegurar de que não está por perto. Está de volta à garagem, a ser
diligente. — Mas, por ora, podem atestar.
Jacqui está quase a salivar, os olhos grandes como pires. Percebo que ela
começa a gostar desta casa.
Alyssa e Garrett enchem os cantis que lhes dei. Jacqui enche a sua garrafa
de água. Apercebo-me, contudo, que Alyssa não está a beber. Está apenas a
olhar para o buraco escuro da boca do cantil.
— O que se passa? — pergunto-lhe, logo depois de o irmão e Jacqui
saírem da cozinha.
— Nada. — Ela tenta afastar a questão, levando o cantil aos lábios, mas,
mal o faz, os seus olhos começam a encher-se de lágrimas, e sinto a pressão a
acumular-se no seu interior até, de súbito, as comportas rebentarem. Ela lança
os seus braços à minha volta, abraçando-me com força. Eu abraço-a também,
não com o tipo de paixão pela rapariga da porta ao lado, como poderia ter
feito no passado, mas com uma sinceridade que nunca antes senti. Apanha-
me de surpresa e, ao mesmo tempo, faz todo o sentido. Ela afasta-se
rapidamente e limpa os olhos, envergonhada. — Desculpa. Estou a ser parva.
— O quê? Não… — digo eu. Não sei propriamente o que fazer numa
situação como esta.
Ela limpa os olhos molhados.
— Que desperdício de água. — E ri.
— Todos precisamos de desperdiçar um pouco de água, por vezes — digo-
lhe. — Sempre é melhor do que fazer xixi na cama. — O que poderá ser a
coisa mais parva que alguma vez disse a outro ser humano, mas que a faz rir
um pouco mais. Não de mim, mas comigo; ou pelo menos ao meu lado.
— A semana passada teria dito que a tua casa era bizarra — admite ela —,
mas agora acho que é bastante incrível. — Os seus olhos fixam-se nos meus.
— Obrigada. Por tudo. Por te teres arriscado para que pudéssemos ficar.
Dirijo-lhe um sorriso de esguelha.
— Sou escuteiro, lembras-te? — digo, tentando arrancar-lhe um sorriso.
Funciona. — E, de qualquer maneira, tinha de fazer alguma coisa para
compensar o facto de ter sido tão inútil na praia.
— Não foste inútil — diz-me ela.
— Tivemos de ser salvos pela Rainha da Escuridão — recordo-lhe.
— Teria sido melhor se tivesses, de facto, puxado o gatilho e morto aquele
rapaz?
Aquilo leva-me a pensar. O meu pai sempre me disse que nunca
deveríamos sacar de uma arma a menos que estivéssemos plenamente
preparados para a usar. Eu não estava preparado. E talvez isso seja uma coisa
boa.
Vamos ter com Jacqui e Garrett, que já subiram e estão a ver a nossa sala
de jogos. Jacqui está a meio de um jogo numa máquina clássica da Twilight
Zone.
— A minha vida, numa conveniente forma de pinball — diz Jacqui,
fazendo agitar os flippers e mantendo a bola metálica a saltar. Garrett
examina uma consola com o Pac-Man e declara-a fatela.
— Perdoa-o, Senhor, pois não sabe o que diz — afirmo, olhando para o
teto. Alyssa desafia-o para um jogo. Ele joga uma vez e fica viciado.
Apercebo-me de que Jacqui, contudo, desistiu da sua própria máquina,
ainda com uma bola na câmara. Está estendida num puff, parecendo ainda
mais febril do que antes.
— Estás bem?
— Estou ótima — diz ela. — Deixa-me em paz.
Vou à casa de banho e regresso com uma dose de Advil para ela.
— Os antibióticos vão demorar cerca de um dia a fazer efeito. Isto ajudará
a fazer descer a febre.
Ela pega no frasco e toma três comprimidos com um gole de água. Desta
vez não me agradece. Talvez racione a gratidão como nós racionamos a água.
Desço as escadas para ver televisão com a minha mãe durante um bocado.
Ela não está a ver as notícias; em vez disso está a ver Regresso ao Futuro, um
filme que é impossível não ver quando nos deparamos com ele na televisão.
Doc Brown está a falar acerca dos 1,21 gigawatts necessários para realizar a
viagem no tempo, mas pronuncia mal «gigawatts», o que sempre me
incomodou.
Não me surpreende que ela não esteja a ver as notícias, que realçam
sempre o pior e a desgraça. Isso é algo que já ouvimos ao meu pai vezes
suficientes. A minha mão subscreve, em geral, uma escola de pensamento
mais positiva e otimista, e o meu pai acredita que os catastrofistas estão a ser
contidos na sua apresentação da verdade. Suponho que se possa dizer que se
equilibram um ao outro.
A minha mãe baixa o volume e vira-se para mim.
— Precisas de fazer as pazes com o teu pai — diz ela.
— Agora?
— Mais tarde será mais difícil.
E sei que ela tem razão.
Encontro-o a soldar algo novo na garagem. Uma espécie de pá híbrida com
um machado na ponta oposta. Não tenho a certeza se será uma ferramenta ou
uma arma. Não parece muito prática para nenhuma das situações. Fito as suas
costas durante algum tempo, pensando, sem saber ao certo como começar.
— … Pai — acabo por dizer.
Ele desliga o aparelho de soldar sem se virar.
— Sim, Kelton? — diz, num tom gelado.
— Preciso de falar contigo acerca do que aconteceu na praia.
— Deixa-me adivinhar: as máquinas de dessalinização falharam e as
pessoas amotinaram-se.
— Deu nas notícias?
Ele ergue o visor e abana a cabeça.
— Há demasiado a reportar para que as notícias consigam apanhar tudo.
Mas, se se olhar para a história de má gestão das crises, era fácil de prever.
— Sim, bem, não o vimos a acontecer, mas, ao que parece, foi bastante
mau. — Limpo a garganta e, por fim, chego àquilo que queria realmente
dizer. — Desculpa ter-te posto em xeque há pouco. Mas, na verdade, não me
deste grande escolha.
— Vamos partir amanhã de manhã — diz ele baixinho, sem aceitar nem
rejeitar o meu pedido de desculpa.
— Para o refúgio? — pergunto.
Ele acena com a cabeça.
— É hora.
— Então e o Brady?
— Não podemos continuar à espera dele, Kelton. — Percebo que não se
trata de uma decisão fácil para ele. — Tenho de acreditar que ele aprendeu
pelo menos algumas das lições que lhe ensinei — diz o meu pai — e que
manteve o seu próprio stock de emergências; talvez até tenha o seu próprio
refúgio.
— Então e a Alyssa e o Garrett? — digo, menos preocupado com Jacqui
do que com eles. Mas sabia a resposta ainda antes de ter perguntado.
— Não os podemos levar — diz o meu pai em tom firme. E desta vez sei
que não há como contorná-lo. O que significa que vamos ter de nos separar.
— Então deixa que fiquem aqui — sugiro. — Haverá água e comida… e
podemos ensiná-los a usar o sistema de segurança.
O meu pai pensa naquilo. Não mo recusa de imediato, o que é um bom
sinal. Insisto um pouco mais.
— Não podemos simplesmente deixá-los na rua…
Nesse momento, o seu olhar fixa-se no meu, mas, em vez de ter a sua
normal expressão gelada até aos ossos, os seus olhos estão diferentes.
Tremeluzentes e vidrados. Vulneráveis. Uma exibição de emoção sincera que
eu nunca antes vira. E, com esse olhar, sinto que lhe abri o seu ficheiro .zip
pessoal; subitamente, anos de informações emocionais comprimidas
explodem para o exterior, e sou atingido por uma verdade esmagadora. É isto
que se encontra por detrás da sua indignação. Todos os brinquedos do dia do
juízo final que eu adorava quando era miúdo, a raiva e a manipulação que
afastaram Brady, e que ameaçam afastar a minha mãe, não são mais do que
fios de um véu tecido para esconder o seu próprio terror interior.
Quando somos miúdos idolatramos os nossos pais. Achamos que são
perfeitos, porque são o termo de comparação pelo qual medimos o resto do
mundo e nós próprios. Depois, na adolescência, irritam-nos simplesmente,
porque nos apercebemos de que não só não são perfeitos, como também
podem ser um bocadinho mais passados do que nós. Mas há aquele momento
em que nos apercebemos de que não são nem super-heróis nem vilões. São
dolorosamente, imperdoavelmente, humanos. A questão é: conseguimos
perdoá-los por serem humanos?
Como um nervo exposto, ele fica ali, segurando aquela bizarra ferramenta
aterrorizante e híbrida, e apercebo-me de que aquela coisa é a manifestação
física de todos os seus medos. E não sei o que dizer, a não ser:
— As armadilhas funcionam.
Ele é apanhado desprevenido por aquela informação.
— Funcionam?
— Sim, a Jacqui quase caiu numa. Nem desconfiou da sua presença.
Ele sai daquele seu estado de ficheiro .zip e sorri, como eu esperava que
acontecesse.
— Excelente! — diz ele, como um miúdo. — Quer dizer, é reconfortante
que tenha funcionado.
— Ela achou que era muito fixe — digo-lhe. — Embora quase a tenha
mutilado.
Ele olha para aquela ferramenta bizarra.
— Deixa-me acabar isto — diz, a tensão entre nós desaparecida. — Saio
num instante e posso mostrar aos teus amigos todas as características da casa.
Decido não lhe dizer que já o fiz.
15) ALYSSA
O Sol põe-se e reunimo-nos para aquilo que antecipo ser o jantar mais bizarro
da minha vida. Até a comida é surreal: carne de conserva e couve e, para
sobremesa, tarte de abóbora, que ainda está congelada no meio.
— Nem perguntes — sussurra Kelton, inclinando-se para mim. O que não
representa para mim qualquer problema.
Apesar do sistema elétrico independente de que Kelton tanto se gaba, as
luzes da casa estão apagadas e Mrs. Cracken acendeu as velas na mesa de
jantar.
À cabeceira está sentado Mr. McCracken, que fita todos os presentes como
um senhor medieval que preside ao seu feudo. Imagino que seja um daqueles
pais autoritários que nos obrigam a pedir para sair da mesa, e só depois de
termos acabado as ervilhas e as cenouras. Embora neste momento o seu olhar
esteja mais concentrado em Jacqui, que já se serviu de três doses de carne
enlatada. Ela devora a comida, alegremente irreverente, e acaba por apontar
com o garfo.
— Para que são as velas?
— Boa pergunta — murmura Mr. McCraken para a carne enlatada, mas
com um tom que me diz que está a falar com a esposa. — Também já me
tinha perguntado para que seriam.
— Não queremos exibir a nossa eletricidade perante os vizinhos mais do
que o necessário — diz a mãe de Kelton, com demasiada calma.
— Foram precisos seis meses para instalar o nosso sistema elétrico.
Gostaria de o usar — diz Mr. McCracken. — Além disso, serão precisas mais
do que algumas velas perfumadas para afastar os vizinhos.
— Não teríamos de nos preocupar com os vizinhos se mostrássemos um
pouco mais de compaixão — responde a esposa.
— Talvez os devêssemos convidar para jantar — diz ele.
— Talvez devêssemos — diz ela, desafiando-o.
Ele olha à sua volta, para as restantes pessoas, como um procurador que
apresenta a sua argumentação ao júri.
— Ou não se partilha nada ou partilha-se tudo. Não existe meio-termo.
— Obrigada, Mestre Yoda — diz Jacqui.
Não creio que seja a primeira vez que os pais de Kelton têm esta discussão,
pelo que Kelton reage rapidamente.
— Chama-se psicologia da escassez e pensamento de privação — diz
Kelton, sentindo necessidade de defender o pai, embora mais pareça estar a
pedir desculpas por ele. — Junte-se a isso a dinâmica das multidões e aquilo
que obtemos é uma turba que não parará de tirar até estarmos tão desprovidos
quanto eles.
— Desprovidos — diz Jacqui —, boa palavra. Vais bater o meu resultado
dos SAT em três tempos. — Depois serve-se de mais carne enlatada.
— Bem, é uma maneira de pensar imoral, egoísta — diz Mrs. McCracken.
— Mas ele tem razão — ouço-me dizer, o que é uma surpresa para todos,
até para mim. Penso na maneira como os nossos vizinhos se comportaram
aquando da divisão daquelas garrafas de água e como tantos deles estavam
prontos para se virarem contra mim, aquela que as tinha trazido. Por muito
que odeie admitir, percebo o argumento de Mr. McCracken. A culpa não é
das pessoas, mas percebo que, quando sentem as suas vidas verdadeiramente
ameaçadas, recorrerão a qualquer opção que lhes esteja disponível. Se não
queremos que seja às nossas custas, temos de nos retirar da equação. — Ou
escancaramos as portas, ou as trancamos — digo, com pesar. — As pessoas
são demasiado complicadas para que lhes confiemos qualquer coisa
intermédia.
Mrs. McCracken estuda-me, sentindo-se, talvez, algo traída. Mr.
McCracken olha para mim com surpresa — quase orgulho —, o que gera em
mim uma sensação desconfortável, pouco à-vontade, como se a minha
viagem para o lado negro estivesse agora completa.
Ele limpa a garganta.
— De qualquer maneira não importa — diz ele. — Vamos partir para o
refúgio ao raiar do dia.
— Qual refúgio? — pergunta Garrett.
— Trata-se de um abrigo de emergência — explica Kelton. — Um local
secreto para onde nos dirigimos em caso de grande desastre.
— Então quando é que partimos? — pergunta Jacqui com a boca cheia de
comida.
Kelton não responde, e só pelo seu silêncio apercebo-me de que não
fazemos parte da equação McCracken.
— Só há espaço para nós — diz o pai de Kelton. — Lamento. — E acho
que até está a falar a sério. Para ser sincera, ainda não pensei sequer no
mundo para lá deste jantar. Não tem havido tempo para projetar qualquer tipo
de futuro, mesmo a curto prazo. Depois, Mr. McCracken surpreende-me.
— Vou deixar as chaves da casa contigo, Alyssa.
— Como? — deixo escapar por acidente.
— Vou mostrar-te como utilizar o sistema de segurança e assegurar-me de
que conheces o paradeiro de todas as armadilhas. Ficarás com toda a casa à
tua disposição enquanto isto durar — diz ele. Olha de relance para Jacqui e
acrescenta relutantemente: — Todos vocês.
Pergunto-me qual será o raciocínio que ele seguiu para me entregar, a mim,
as chaves do seu castelo. Faz-me pensar no facto de a minha mãe costumar
deixar sempre a televisão ligada quando íamos de férias, para que os supostos
ladrões julgassem que estava alguém em casa. Talvez se trate de uma versão
elaborada disso. Teria sido Kelton a convencê-lo?, pergunto-me; ou terá sido
por eu ter corroborado a sua visão catastrófica da humanidade?
Penso nos dias que nos esperam. Isto tem de acabar, não é? «Enquanto isto
durar», dissera Mr. McCracken — não pode estender-se por mais de uma ou
duas semanas, quando muito. Depois, precisamente quando me inclino para a
esperança de dias melhores, as coisas ficam muitíssimo piores.
Todos os telemóveis vibram e tocam em uníssono, uma cacofonia estranha
e perturbadora. Erguemos os nossos telemóveis e vemos uma mensagem
idêntica, onde se pode ler:
Nunca tinha visto ninguém ficar inconsciente depois de levar com a moldura
de uma fotografia, muito menos com a moldura de uma fotografia de si
próprio. Por outro lado, há uma primeira vez para tudo. A moldura metálica
era suficientemente pesada e Alyssa fê-la desabar sobre a cabeça de Kelton
com a força certa. E mesmo a tempo, porque Kelton ia realmente fazê-lo. Ia
mesmo começar a disparar sobre as pessoas.
Tudo o que consigo ver é uma agitação ofuscante de lanternas viradas em
todas as direções. Mantenho as mãos leves, os dedos na arma, mas não vou
desperdiçar uma bala a menos que seja absolutamente necessário.
Alyssa vira-se para mim e apresenta-me um par de chaves. As chaves do
BMW. Deve ter agarrado nelas durante o caos. Enquanto éramos tomados
pelo choque, Alyssa estava a planear a nossa fuga.
— Temos de sair daqui agora. — Aponta para o corpo flácido de Kelton.
— Leva-o.
Aperta as chaves com força e apercebo-me de que se tornaram objeto de
um jogo de poder.
— Quem te pôs no comando? — desafio-a, mas, com a casa a ser atacada à
nossa volta, ficar já não é grande opção; e, se o refúgio estiver disponível,
vamos precisar de Kelton para nos mostrar como lá chegar. Em suma, ela está
certa, e eu odeio isso.
Alyssa corre de novo para a cozinha; faz os possíveis por conseguir que os
pais de Kelton venham connosco, mas eles recusam mexer-se. Tudo o que
querem fazer — tudo o que são capazes de fazer agora — é reconfortar
inutilmente aquilo que me apercebo agora ser o seu filho morto.
— Vão — dizem a Alyssa por entre a sua dor. — Partam…
Enquanto à nossa volta os saqueadores pilham como chacais.
O que aconteceu aqui era inevitável. Eles tinham de exibir o seu sistema
elétrico e os seus recursos. O pai de Kelton tinha de ser o herói da família.
Era como se estivesse de tal modo obcecado com a proteção da sua casa que
tivesse esquecido que o seu principal objetivo, na realidade, era proteger
todos os que se encontravam no interior.
Agarro em Kelton por baixo dos braços e ergo-o. Lanço um olhar a
Garrett, que tem estado escondido, agachado junto a um sofá. Arrastamos
Kelton pelo corredor em direção à porta da frente, Alyssa abrindo caminho.
Enquanto saímos dali, tento perceber o que se passa, realmente, à nossa volta,
mas está demasiado escuro — tudo são formas e contornos. Mas consigo
ouvir tudo: os gemidos derrotados dos pais de Kelton, realçados por dezenas
de pés que correm de um lado para o outro, que chiam, clicam e raspam no
piso de madeira. Algures, uma porta é aberta ao pontapé — ouço a madeira
fragmentar-se. Frascos tilintam e partem-se na cozinha, derrubados das
prateleiras da despensa, ou caídos de braços demasiado carregados. Um
garrafão de água que anteriormente tínhamos levado para o piso superior
tomba pelas escadas abaixo e rebenta no chão. A casa será pilhada e destruída
até restar apenas a sua carcaça.
Alyssa abre a porta da frente e entram mais pessoas. Uma verdadeira
corrente de ar de zombies da água.
Precisamente quando passamos pela porta, um homem ergue o bastão de
basebol, ameaçando atingir Alyssa com ele. Mantém-no ali por um momento
e depois baixa a arma, reconhecendo-a.
— Eles não nos deixaram escolha! — diz ele, como se isso pudesse
desculpar as suas ações.
Mas Alyssa não diz nada. De facto, não lhe dá sequer a mais pequena
satisfação de um momento humano. Passa por ele, dirigindo-se ao BMW
parado no acesso.
Garrett e eu enfiamos o corpo flácido de Kelton no interior do automóvel
— parece que o estamos a raptar, e depois lembro-me de que, tecnicamente,
até estamos. Alyssa sobe a seguir, para cuidar dele no banco traseiro, pelo
que Garrett sobe para a frente, seguindo ao meu lado, no lugar do morto.
Hoje desejava que o lugar do passageiro não recebesse esse nome.
Coloco-me atrás do volante, fecho a porta e carrego no fecho, ouvindo o
agradável som das trancas a descer — embora os saqueadores estejam
demasiado enlouquecidos para se aperceberem da nossa saída.
Estendo a mão para Alyssa.
— Se queres que conduza, terás de me dar as chaves.
Ainda assim, ela recusa-se a entregar-me as chaves. Segura-as com força
no punho fechado.
— É uma ignição sem chave: carrega no botão.
Malditos BMW. Enquanto a chave estiver no automóvel, arrancará,
independentemente da mãozinha gordurosa que a segure. Uma vez mais,
parece que não tenho grande escolha. Ligo o motor e saio de marcha-atrás,
passando pelos zombies da água que pairam à nossa volta, em seguida acelero
para a escuridão, quase me esquecendo de ligar os faróis.
O FOSSO INTERMÉDIO
DIA CINCO
QUARTA-FEIRA, 8 DE JUNHO
18) HENRY
19) ALYSSA
Logo à saída do portão de Dove Canyon há uma fonte. Quando a seca era
apenas uma seca normal, antes das intensas restrições à água, a fonte atraía
pumas. Desciam dos montes, como gatos domésticos em busca de uma tijela
de água. Isso deveria ter alertado todos aqueles que estivessem a prestar
atenção.
Depois, as pessoas começaram a abandonar as comunidades agrícolas de
Central Valley, na Califórnia, quando aquele se transformou na Pacific Dust
Bowl, enchendo as cidades já sobrelotadas, como os grandes gatos que
abandonavam os montes secos. Por muito que tal devesse ter servido de
aviso, continuava a não o fazer com a veemência suficiente — porque as
respostas oficiais foram, bem, literalmente, uma gota no oceano. Multas para
pessoas que regavam os relvados, a Frivolous Use Initiative. Anúncios de
serviço público que recordavam às pessoas que deviam poupar água. Nada
disso importava. A água, ainda assim, acabou. Agora, a fonte de Dove
Canyon estava vazia. Os pumas ou morreram ou migraram, e os humanos
enfrentavam as mesmas duas alternativas.
Só há uma maneira de entrar ou sair de Dove Canyon: um único portão
protegido por seguranças. Alguns são amigáveis, outros agem como se
fossem membros do serviço secreto guardando a Casa Branca. Hoje não está
lá nenhum, e o portão em si foi arrancado das dobradiças.
— Isso é que é uma falsa sensação de segurança — diz Jacqui. — O mais
certo é que o portão tenha sido derrubado logo no primeiro dia.
— Alyssa, olha — diz Garrett, apontando.
Para lá do portão partido foi erguida uma bizarra barricada improvisada.
Paramos na berma da estrada, deixando o automóvel e seguindo a pé até à
entrada abandonada, confusos com a barreira que deve ter sido colocada
depois da queda do portão.
— Parece ter sido feita à pressa — nota Kelton.
A barricada foi feita com todo o tipo de tralha retirada de todas as garagens
do bairro. Escadas e móveis velhos, estantes do IKEA que já viram melhores
dias. Cadeiras de jardim e bicicletas enferrujadas. Basicamente, toda a tralha
que teria sido vendida numa venda de garagem, se a associação de moradores
permitisse vendas de garagem.
— O nosso tio disse que Dove Canyon ainda tinha água, depois do Fechar
da Torneira — digo aos outros.
— Sim — diz Garrett. — O mais provável é que as pessoas tenham tido de
afastar os saqueadores.
A ideia de mães e frequentadores de country clubs de Dove Canyon a
repelirem os saqueadores quase me faz rir… até me lembrar de que os nossos
próprios vizinhos atacaram a casa dos McCrackens.
Dado que a barricada foi concebida para impedir a passagem de veículos,
não de peões, somos capazes de a contornar. E, durante todo este tempo, não
vimos qualquer outra alma. É enervante.
— Seria de esperar — diz Jacqui — que, se ergueram a barricada, pelo
menos tivessem alguém a cuidar dela.
— Seria de esperar — ecoou Kelton. Nenhum deles quer seguir o
raciocínio até à sua conclusão lógica.
De súbito, o meu irmão começa a passar-se.
— Alyssa, não gosto disto. Vamos embora.
— Não podemos — recordo-lhe. — Precisamos da pickup do tio
Manjericão.
— Não, não precisamos! — insiste Garrett. — Passámos por diversas
carrinhas com tração às quatro rodas no caminho até aqui. Podemos fazer
uma ligação direta ao motor de uma delas. Aposto que a Jacqui sabe como
fazer isso, certo?
Jacqui fita-o de olhos arregalados.
— Sinto-me insultada por presumires que sei como cometer atos
criminosos.
— E sabes? — pergunto.
— Sim — responde. — Mas não deixo de me sentir insultada.
Olho em frente, para a rua orlada de árvores. A relva da zona ajardinada
ainda está bastante verde. O tio Manjericão disse-nos que, ali, era usada água
reciclada para irrigação. Como a casa dos McCrackens, que brilhou,
luminosa, quando a eletricidade de todas as outras se apagou, as zonas ainda
verdes de Dove Canyon fizeram da área um alvo.
— A casa do nosso tio não fica muito longe do portão — digo aos outros.
— Basta virar à direita no primeiro sinal de «Stop» e seguir cerca de meio
quilómetro a partir daí. — Depois acrescento: — Fazer uma ligação direta a
um veículo será o nosso plano B.
Jacqui ergue a ponta da blusa para mostrar que ainda tem a pistola de
Kelton ali escondida.
— Para o caso de nos depararmos com problemas — diz ela.
Aquilo irrita-me.
— Se nos depararmos com problemas, comportar-nos-emos como pessoas
civilizadas.
— Ela não está a dizer que a irá usar — diz Kelton. — O simples facto de
a mostrar fará a maior parte das pessoas recuar.
Inspiro fundo e decido não discutir. Fico surpreendida pelo facto de ele não
tomar o meu partido — especialmente contra Jacqui, e especialmente em
relação ao tema da violência. Por outro lado, foi ele quem trouxe a arma para
a equação. Talvez seja menos surpresa do que preocupação. Depois de ter
visto aquela expressão no seu olhar quando agarrou na caçadeira, não sei
quem será agora o mais perigoso, se ele, se Jacqui.
Daphne — a ocasional namorada do nosso tio — tem uma casa grande
aqui, que lhe foi deixada pela mãe. Antes de ter vindo para cá, era uma agente
imobiliária em Modesto, a mesma cidade onde o tio Manjericão tinha a sua
quinta de amêndoas. Mas as amendoeiras usam mais água do que quase tudo
o resto — e, com o racionamento definido em valores tão baixos, as quintas
de amêndoas foram as primeiras a falhar. Declarou falência, deixou que o
banco ficasse com a quinta e foi viver com Daphne — que, durante cerca de
cinco minutos, achou que estava no céu, porque tinha uma quantidade
ridícula de propriedades na sua lista. Mas, como ninguém no seu perfeito
juízo ali queria comprar casa, não conseguiu realizar uma única venda. O
valor das propriedades caiu a pique. Depois, começaram a chamar a Central
Valley a Pacific Dust Bowl, e esse foi o último prego no caixão da região.
Imagino que Modesto seja agora, acima de tudo, uma cidade fantasma,
juntamente com Bakersfield, Fresno e Merced. Seja como for, os dois
tiveram o bom senso de partir antes do Grande Resgate e escaparam à
enchente. Fizeram as malas, carregaram tudo num camião de mudanças e
transferiram-se para casa da mãe de Daphne, que estava convenientemente
moribunda e deixou à filha a casa em Dove Canyon.
Depois ela correu com o tio Manjericão, e ele foi viver connosco. Duas
vezes.
Mas eu percebo. Quer dizer, não a culpo. Sabem, não se tratou apenas de o
tio Manjericão não conseguir encontrar emprego — o problema é que ele não
estava realmente à procura. Acho que estava dilacerado com a perda da
quinta. Ela gostava o suficiente dele para lhe dar uma segunda oportunidade,
mas calculo que tenha sido mais do mesmo, porque ele voltou para nossa
casa — e, da segunda vez, estávamos certos de que seria para sempre.
«É só até me levantar», dizia ele. Mas como é que alguém se pode levantar
quando a vida nos cortou as pernas pelos joelhos?
Chegamos à rua de Daphne. Até aqui ainda não vimos vivalma.
Ainda que as zonas ajardinadas da comunidade se mantenham verdes, os
relvados particulares parecem os do nosso bairro. Alguns estão simplesmente
mortos. Erva castanha e árvores sem folhas. Outros foram substituídos por
paisagens do deserto — catos, plantas suculentas e pedras de rio. Cerca de
um terço das casas tem uma turfa artificial ridiculamente verde. Um
fingimento suburbano de que nada está errado. A casa de Daphne é deste
último tipo. É fácil de localizar, porque também tem uma figueira falsa,
levando a ficção um passo para lá do absurdo. É a única coisa com folhas
verdes na rua, o que a torna algo embaraçosa.
A pickup do tio Manjericão não está no acesso. Pressuponho que esteja na
garagem.
— E se tiverem partido? — diz Garrett. — E se tiverem abandonado esta
casa, como abandonaram a quinta dele no Norte?
É algo em que devia ter pensado, mas não pensei. Não lhe respondo. Em
vez disso dirijo-me à porta da frente, toco à campainha, que, claro, não toca.
Duh! Depois bato à porta. Sonoramente.
Nada durante alguns minutos. Começo a perguntar-me se Garrett não terá
razão, mas depois a porta abre-se ligeiramente e vejo o tio Manjericão.
— Alyssa? Garrett? — Está simultaneamente surpreendido e agradado por
nos ver, mas a sua reação é contida. — O que estão a fazer aqui? Onde estão
a vossa mãe e o vosso pai?
É uma pergunta sobre a qual não quero pensar. Compartimentei-a num
canto da minha mente, de modo a manter-me funcional. Não consigo sequer
dizer «Não sabemos» em voz alta, sem que os meus olhos se encham de
lágrimas, por isso não respondo.
— Podemos entrar?
— Sim, sim, claro. — Afasta-se e nós entramos em fila. A casa está
quente. Desconfortavelmente quente. A casa de Daphne tem exposição a sul
com imensas janelas, e não tem estores suficientes para as cobrir. Foram
pendurados lençóis para impedir a entrada da luz e do calor, mas não estão a
fazer um muito bom trabalho. E a casa tem um certo cheiro. Almiscarado e
fétido, com o uma enfermaria que não foi arejada o suficiente. Essa deveria
ter sido a minha primeira pista de que há algo errado, mas é apenas mais uma
coisa na longa lista de «esta-não-é-a-minha-realidade», que se tornou
demasiado numerosa para contar, quanto mais processar.
O nosso tio parece desidratado. Pior do que desidratado. Está pálido, e o
seu rosto parece pendurado, como se a sua pele estivesse cansada de se
agarrar aos ossos. Os olhos estão escuros e algo encovados. Parece um
drogado, mas sei que não é. Com exceção do charro ocasional, o tio
Manjericão não é desses. Não, isto é outra coisa qualquer.
— Querem água? — pergunta-nos. — Temos bastante.
— Têm? — diz Garrett, tão surpreendido por ouvi-lo quanto eu.
— Raios, sim, vou beber um pouco — diz Jacqui, sem hesitar. Ele conduz-
nos até à cozinha, onde se encontra uma caixa de água engarrafada. Restam
seis garrafas. Ele vai buscar copos de plástico e serve-nos a todos uma
pequena dose. Mas depois de nos servir hesita, agarrando-se à bancada e
fechando os olhos, encolhendo-se um pouco. Parece fraco e instável sobre os
pés.
— Tio Herb? — pergunto, usando o seu nome verdadeiro em vez da nossa
alcunha. — Estás bem?
— Vou ficar bem — diz ele. O que significa que neste momento não está.
— Não pareces bem — diz Jacqui, irritantemente direta. — Estás com
péssimo aspeto.
— Não é nada — insiste ele. — Estou com diarreia, mais nada.
Diarreia. Talvez tenha comido alguma coisa do frigorífico que se tenha
estragado depois de desligada a eletricidade. O tio estava sempre a vasculhar
o nosso frigorífico em busca de restos que a minha mãe teria deitado fora se
lhes houvesse chegado primeiro.
— Onde está a Daphne? — pergunto.
— A descansar — diz-me ele. — Também não se está a sentir bem.
Kelton dirige-me um olhar preocupado. Não tenho a certeza do que será,
mas, quando levo a água à boca, ele impede-me. Depois olha para o próprio
copo, cheirando-o e bebendo um pequeno gole.
— Está boa — diz ele.
— Porque não haveria de estar? — Olho para a garrafa de onde o nosso tio
nos servira. É ÁguaViva, que, tanto quanto me lembro, é ridiculamente cara.
É possível comprar garrafas de vinho por menos dinheiro.
— Têm fome? — pergunta o nosso tio. — Ainda tenho algumas coisas
enlatadas. Não há grande variedade, mas o que se há de fazer?
Olho para a despensa só para ver se estão bem abastecidos. Trata-se, acima
de tudo, de frascos de condimentos — uma dezena de molhos diferentes. Há
misturas para bolos da Sara Lee e o tipo de alimentos enlatados que ficam
durante anos na despensa até que precisemos deles. Coisas como fatias de
ananás, castanhas-d’água e azeitonas fatiadas. Muitas daquelas coisas, mas
nenhuma uma boa escolha para uma refeição.
— Não, obrigada — digo-lhe. — Estamos bem.
E quando os outros veem o que lá está, ninguém discorda. Todos temos
fome, mas comemos bem na casa de Kelton no dia anterior. E isto é tudo o
que têm para eles, não quero levar nada.
Depois, Kelton faz algo estranho. Dirige-se à torneira e abre-a. Claro que
nada sai, mas ele cheira a torneira. Vira-se para o nosso tio.
— Ouvi dizer que ainda houve água aqui depois do Fechar da Torneira.
— Sim, durante algum tempo — diz-lhe o tio Manjericão. —
Restabeleceram a ligação com o velho tanque de água. Manteve a água a
correr durante mais alguns dias. Era pouco mais do que um pingar. Não era o
suficiente para tomar banho, mas dava para beber.
Kelton acena, depois vira-se para mim de novo.
— Alyssa, posso falar contigo por um minuto?
Em seguida pega no meu braço e conduz-me à sala de jantar.
Afasto a mão dele de mim mal lá chegamos. Não gosto de ser puxada de
uma divisão para outra.
— O que era tão importante que não pudemos falar ali?
— Alyssa, temos de sair daqui — diz ele, num sussurro intenso.
— Estou a tratar disso — digo-lhe. — Não posso aparecer aqui, agarrar na
pickup e ir-me embora.
— Não compreendes! — diz ele, nesse mesmo sussurro que é quase
maníaco. — Não achas estranho que as ruas estejam tão silenciosas?
E agora que penso nisso, acho de facto estranho. Por onde quer que
tenhamos passado, por muito silêncio que houvesse, continuava a existir vida,
mas este local não mostra o mais pequeno traço dela.
Ele aproxima-se mais. Não fala tão alto, mas fala com igual intensidade.
— Estou certo de que a água da torneira estava estragada. Pior do que
estragada. Acho que o teu tio tem disenteria. Talvez toda a zona de Dove
Canyon tenha.
Não sei muito acerca da disenteria, para além de que é um caso sério de
diarreia que as pessoas de países do terceiro mundo contraem.
— Então… o que fazemos?
Kelton abana a cabeça.
— Não há nada que nós possamos fazer. Não sem um monte de
medicamentos que não temos. — Tira um momento para olhar para mim,
assegurando-se de que o estou a ouvir. Estou, mas isso não significa que
goste da mensagem. — Não deves tocar em nada — diz ele. — E não deves
realmente comer nada.
— Está tudo enlatado! — argumento, embora não faça tenções de comer.
— Sim, mas tudo o que ele toque pode ficar contaminado!
Não posso discutir. Por muito paranoico que soe, é provavelmente verdade.
Quando regressamos à cozinha, o tio Manjericão está a servir a Garrett
uma tijela de pedaços de ananás.
— Não fui eu! — diz Garrett. — O tio Manjericão insistiu.
O nosso tio coloca uma colher à sua frente.
— Precisas da tua energia. Sei que não é muito, mas não vou deixar que
passem fome se puder fazer alguma coisa!
Resignado, Garrett leva a mão à colher.
— Não! — digo abruptamente. Quase lhe atiro a colher para longe. Viro-
me para o nosso tio doente. As minhas ações falaram com bastante clareza,
por isso não escondo os meus motivos. — Foi a água da torneira que vos
deixou doentes, tio Herb — digo-lhe, para interromper qualquer negação em
que ele se possa encontrar. — É disenteria: pode ser contagiosa, por isso não
devíamos comer nada em que tu tocaste. Desculpa.
Ele suspira, compreendendo que tenho razão, e talvez um pouco chateado
consigo próprio por não ter já pensado nessa possibilidade.
— Então abram uma lata nova. Tenho desinfetante para as mãos.
Mas Garrett afasta-se da mesa, sem apetite para comer.
— Não faz mal, também não tenho muita fome.
Começo a aperceber-me de que o nosso tio não faz ideia de quão doentes
ele e Daphne podem estar. E depois Jacqui diz:
— Eu aceito o desinfetante. — Quando olho para ela apercebo-me de que
está com um pouco de febre. Aponta para a ferida, que está húmida e,
claramente, necessita de um penso novo. — E gaze também, se tiver.
— Claro — diz o meu tio. Agarra no desinfetante, mas primeiro limpa as
suas próprias mãos e a garrafa, antes de lha entregar com um sorriso triste. —
Em cima, segunda porta à esquerda. Deve haver um kit de primeiros socorros
por baixo do lavatório.
Vejo-a a subir as escadas, e depois apercebo-me de algo. Jacqui tem
antibióticos. Não tenho a certeza de onde se encontrarão agora. No bolso?
Ainda no BMW? Ou será que, no meio do caos, ficaram em casa de Kelton?
Tirar-lhos-ia para dar ao meu tio? Não, digo a mim mesma. Posso não gostar
muito de Jacqui, mas não lhos roubarei. Jamais magoaria uma pessoa pela
possibilidade de ajudar outra — mesmo que essa outra pessoa fosse alguém
de quem eu gostasse. Se o fizesse, não seria melhor do que os saqueadores.
— Deviam ir-se embora — digo ao meu tio. — Tanto tu quanto a Daphne.
Estão a montar abrigos. Podem ainda não ter água, mas terão medicamentos;
tenho a certeza de que terão.
Mas ele enxota a ideia com um aceno.
— Não creio que a Daphne esteja em condições de viajar. Por outro lado,
já passámos pelo pior.
Não sei se ele se estará a referir ao pior da doença, ou ao pior da crise. Seja
como for, a minha resposta é a mesma.
— Acho que o pior ainda está para vir…
Ainda assim, nada do que digo o irá persuadir.
— Vamos ficar bem.
Mais do que tudo, quero acreditar nele. Mas os meus dias de ficar à espera
que o melhor aconteça terminaram. Agora, a esperança é algo em constante
movimento, como um tubarão.
20) JACQUI
Descubro a casa de banho, fecho a porta atrás de mim e levo a mão ao bolso,
retirando um dos dois frascos cor de laranja com antibióticos. Não me lembro
por qual deles comecei, mas de que importa? Examino as pequenas cápsulas
em dois tons de verde. É espantoso pensar que estas cápsulas minúsculas que
rolam na palma da minha mão significam a diferença entre a vida e a morte.
Aposto que devem valer o seu peso cem vezes em ouro, neste preciso
momento. Por outro lado, não se pode atribuir um preço à vida humana —
por isso é bota abaixo.
Segue-se o penso. Encontro o kit de primeiros socorros precisamente onde
o Manjericão, ou Herb, ou Funcho, ou como raio se chama, disse que estava.
O penso está colado ao meu braço quando o puxo, a ferida sarando agarrada à
gaze. Bem, pelo menos está a sarar. Limpo-a cuidadosa e dolorosamente,
com panos ensopados em álcool, tendo o cuidado de não tocar em nada que
me possa infetar, e depois volto a aplicar um penso na ferida. Tão bom como
novo.
Vagueio um pouco pelo piso de cima, vendo a casa. É uma casa e tanto. O
tipo onde eu não me importaria de ficar noutras circunstâncias — embora a
decoração seja um bocado feminina de mais para o meu gosto. A namorada
do Manjericão deve ser daquelas que gostam muito de rendas e lacinhos.
Como é que ela se chama mesmo? Devia ser Rosmaninho, penso, o que me
faz rir.
Regresso às escadas, passando pelas portas duplas do quarto principal, e
apercebo-me de que uma está ligeiramente entreaberta. Pela frincha, distingo
a silhueta de uma mulher deitada, imóvel, numa cama toda branca. Há um
cheiro ácido que se ergue do quarto. Escuro e decrépito. Quando todos seriam
repelidos, eu sou atraída, puxada para a cena por um tipo de atração a que
tenho dificuldade em resistir. O Apelo do Vazio. Abro um pouco mais a porta
e dou um único passo para lá dela. É como inclinar-me ao vento na beira de
um penhasco.
Sobre a cama agita-se uma daquelas redes mosquiteiras decorativas
adequadas a uma rainha, mas, aqui, parece estar a manter a doença lá dentro
em vez de cá fora. Daphne — era esse o nome. A imperatriz doente deve ser
a Daphne.
O silêncio é esmagador. E depois apercebo-me porquê.
A mulher não está a respirar.
Agora é mais do que o vazio aquilo que me atrai. É a cena de um acidente
de viação. São os escombros depois de um tornado. Tenho de me aproximar
mais. Não lhe vou tocar. Não vou atravessar a barreira da rede, mas tenho de
ver. Tenho de olhar para o peito dela, para ver se sobe e desce. Preciso de
saber. E o cheiro agora é terrível. Bílis e enxofre e todos os fétidos fedores
orgânicos que lutamos para manter ao longe, durante toda a nossa vida.
Depois, antes que me aproxime o suficiente para ver bem, ela mexe-se,
agitando-se ligeiramente sob os lençóis. O meu coração bate com força no
peito, tão ruidosamente que acho que ela é capaz de o ouvir, porque vira
lentamente a cabeça na minha direção, e, quando olha para mim, os seus
olhos estão escuros e vidrados. Está demasiado fraca para falar ou mesmo
para se perguntar o que estará uma estranha a fazer na sua casa.
Não está morta, mas o seu corpo não sabe disso, porque acho que já se
começou a decompor — e, embora ela continue a olhar para mim, os nossos
olhares não conseguem de alguma forma relacionar-se. É então que percebo
que ela não me vê de todo.
Vê o vazio.
Alguns momentos mais tarde, estou de volta ao piso térreo com os outros,
mas mantenho o silêncio. Mantenho a distância. Porque, por cima de tudo,
tenho a imagem de Daphne impressa na minha retina. Alyssa está a tentar
convencer o tio a ir com Daphne para um centro de evacuação. Mas, claro,
ele recusa-se. E, quanto mais ela tenta convencê-lo, mais ele a afasta.
Pergunto-me se ele se aperceberá de quão mal Daphne está. Deve aperceber-
se, a um certo nível. E, embora se esteja a manter calmo por causa da
sobrinha e do sobrinho, não creio que esteja assim tão distante de se enfiar
naquela cama com ela e deixar que o fim chegue. Depois apercebo-me, com
um estremecimento, de que a cena no piso superior se está provavelmente a
desenrolar em muitas outras casas à nossa volta. Este condomínio privado
transformou-se numa morgue de luxo.
Alyssa ainda não pediu a chave ao tio. Esta sua veia educada vai acabar
por matá-la, e a nós com ela. Aparentemente, a paciência de Kelton também
chegou ao fim, porque é ele que vai direto ao assunto.
— Se não vai partir, então deixe-nos levar a sua pickup. Precisamos de
tração às quatro rodas para chegarmos ao nosso destino.
— Emprestaria, se pudesse — diz ele, envergonhado, o que chega mesmo
a devolver um pouco de cor ao seu rosto. — Mas troquei-a.
— Fizeste o quê? — digo.
— Por aquela ÁguaViva que têm estado a beber. Recuperá-la-ei mal tudo
isto passe — diz ele, baixando os olhos. — Quer dizer, estou certo de que
uma coisa como esta não pode ser legalmente vinculativa.
— Com quem a trocaste? — pergunta Alyssa.
Uma vez mais, ele baixa os olhos, envergonhado.
— Com um miúdo que mora mais acima.
21) HENRY
Lidar com pessoas irracionais exige concentração, inteligência e uma
disciplina extrema — é necessário manter uma sensação de verdadeira estase
emocional, tal como é delineado num dos meus livros preferidos, Poder
Transformativo, de Pearce Tidwell. Temos de aprender a lidar com o estado
emocional para operar de um modo consistente a partir de uma posição em
que se consegue lidar com qualquer situação, assim produzindo os resultados
desejados. Temos de agir em vez de reagir.
É por essa razão que, em vez de ceder ao horrendo latejar de dor no meu
ombro direito, o canalizo, usando a dor como uma ferramenta para aumentar
a minha concentração. (Mas dói mesmo, Deus do Céu como dói.) Não
permitirei que isso me controle. A minha atual agonia não me definirá. Em
vez disso, o meu profundo desconforto será uma prancha que me lançará para
uma realidade melhor.
Até este momento consegui evitar ver as notícias — são sempre tão
manipuladoras… Mas agora não consigo deixar de reconhecer que o Fechar
da Torneira é uma tragédia, e que os esforços de auxílio são uma palhaçada.
As cidades foram claramente atingidas com mais gravidade — as zonas
empobrecidas, em desintegração, repletas de pessoas marginalizadas, mal
equipadas para lidar com o desastre social.
Mas existe sempre uma oportunidade na desgraça. Por isso, a questão é:
Como posso virar isto a meu favor? Porque, afinal de contas, não podemos
trabalhar para o bem maior se não estivermos bem preparados primeiro.
Considerando todos os aspetos, talvez seja do meu interesse partir, em vez
de permanecer no meu atual ninho. Por outro lado, se o estado das coisas se
deteriorou de facto a um tal grau, a minha água deve valer mais do que
nunca. Tudo aquilo que troquei até aqui de pouco valerá quando comparado
com o que as minhas próximas transações renderão. Estou a rebentar por
dentro! Mas mantenho a calma… Nunca devemos reagir com exagero
perante os despojos que representam a nossa sorte. Decido que o melhor é
fazer o inventário dos meus «ativos líquidos» atuais, por isso levanto-me e
dirijo-me ao gabinete do meu pai, onde se encontra o resto da minha
ÁguaViva.
— Onde vais, Roycroft? — pergunta a rapariga um tanto dura com o
sorriso perpétuo. Digo «um tanto dura», porque duvido que seja tão dura
como quer que todos pensem. Mas não nego que possa haver um ou dois
parafusos soltos.
— Buscar mais gelo — respondo.
Acreditam em mim, porque não me seguem. Continuam colados ao ecrã da
televisão. Suponho que, com o braço assim, não me encarem como uma
grande ameaça. O que é um grande erro. Enquanto me subestimarem,
manterei a vantagem.
Fecho a porta do escritório, garantindo a minha privacidade, e puxo a
última caixa de ÁguaViva. É uma caixa bastante grande, contendo dois
packs; vinte e quatro garrafas. Abro a caixa e revela-se uma nova e
inesperada falha na minha atual situação.
A vida está repleta de muitos momentos de azar, que devemos aprender a
encarar como oportunidades. Azares como, digamos, abrir uma caixa que
acreditamos conter quarenta e oito garrafas de água, apenas para descobrir
que se encontra repleta de suportes, com vários níveis, para brochuras de
ÁguaViva.
Nestas situações, há que manter a cabeça fria.
Cabeça. Muito. Fria.
Agarro-me ao lado positivo deste desaire pessoal: pelo menos agora não
terei de me debater com uma decisão quanto a ficar ou partir. Não me resta
grande escolha; vou ter de sair daqui. De qualquer maneira, o meu gerador
em breve ficará sem combustível — e posso esconder os ativos que adquiri
no sótão, atrás das caixas com ornamentos natalícios. Exceto, claro, a pitão
— mas aquela coisa é capaz de passar semanas sem comer, e, além disso,
suponho que esteja habituada a climas quentes. Em última análise, um local
mais seguro poderá não ser uma má ideia — e se Dove Canyon é, na
realidade, a placa de Petri bacteriana que os meus hóspedes indesejados
dizem ser, imagino que qualquer lugar será melhor do que este.
Seja como for, a chegada deles é de facto uma sorte.
Mas eu teria passado bem sem o ombro deslocado.
Fecho a enorme caixa de cartão tão bem quanto consigo, com fita-cola. E
depois sobreponho a fita-cola uma e outra vez, para que seja praticamente
impossível de abrir. É então que um deles entra. É a mais razoável, a menos
desagradável das duas raparigas. Aquela que reclama a antiga carrinha do tio.
— Pensei que ias buscar gelo.
— Acabou — digo, em tom convincente. — O que me fez pensar em
verificar o meu fornecimento de água. — Bato na caixa e aponto para o
gigantesco logótipo da ÁguaViva, no flanco.
Há uma breve pausa na conversa. E sei exatamente qual a direção que isto
vai tomar. Só pode seguir para um lado. A pickup. Eles não vão sair daqui
enquanto não conseguirem aquilo que querem. Eles são quatro e eu sou só
um. Claramente, não serei capaz de os subjugar — em especial com aquele
pitbull ruivo psicótico por perto. Tenho de considerar a pickup como uma
perda de curto prazo porque, bem vistas as coisas, já não estou em posição de
negociar. Mas ela ainda não se apercebeu disso e, neste momento, somos
apenas nós os dois. Por isso, antecipo-me.
— Ainda não fomos oficialmente apresentados — digo, acionando o meu
charme. — Sou o Henry. — Estendo o meu braço esquerdo para lhe apertar a
mão, dado que quase não consigo mexer o direito.
Ela hesita, um pouco cética. É compreensível.
— Chamo-me Alyssa.
— É um prazer conhecer-te, Alyssa. — Sorrio e limpo a garganta. —
Façamos assim. Aprecio a paixão que tens pelos teus amigos e pelo bem-estar
da tua família, e percebo porque poderás sentir que tens direito àquela pickup.
Ela cruza os braços, mas continua a ouvir.
— Por isso, estou preparado para ta devolver. — Faço uma pausa para a
impressionar. — Mas apenas sob uma condição.
Ela ergue uma sobrancelha.
— Que me levem convosco.
Ela pensa na questão, mas já consigo sentir as coisas a tombarem a meu
favor. Li, certa vez, no Executivo Próspero, de R.J. Sherman, que a principal
maneira de manter um emprego, nos dias de hoje, é garantir que somos
indispensáveis; ou pelo menos fazer as pessoas pensarem que somos
indispensáveis. Ela delibera — e, precisamente quando sinto que se atingiu
aquele ponto de viragem em que as suas emoções e o seu bom senso vacilam
precariamente, dou-lhe aquele toque suave que garante para que lado tomba.
— Levarei esta caixa de ÁguaViva — digo, com um sorriso cativante.
— Podíamos simplesmente tirar-te a ÁguaViva — realça ela.
— É verdade… mas não és esse tipo de pessoa. Os outros talvez sejam,
mas tu não és.
E vejo, pela expressão no seu olhar, que ela começa a cair na direção de
uma decisão unilateral. Se me levarem, obterão aquilo que querem e eu
poderei garantir a minha própria sobrevivência. Mais uma situação em que
todos saem a ganhar.
A rapariga algo dura, cujo nome descubro ser Jacqui, insiste em conduzir. É
justo. Por agora. Enquanto conduzimos pela minha rua, começo a pensar que
poderei ter subestimado o efeito da falta de água na comunidade. Uma coisa é
ver os motins na televisão, nas densas zonas urbanas que são mais dadas a
conflagrações sociais, mas outra, bem diferente, é ver casas com janelas
partidas numa comunidade fina como Dove Canyon. Não que os ricos sejam
melhores — quer dizer, a natureza humana é a natureza humana. No entanto,
onde existe pouco espaço pessoal, as tensões tendem a subir muito mais
depressa do que num local onde os gritos de batalha de uma pessoa chegam
apenas aos ouvidos de dez vizinhos em vez de cem. O que significa que, nos
subúrbios e arredores, é difícil gerar a massa crítica necessária para
desencadear comportamentos realmente maus.
Ou talvez não.
Porque, à medida que vamos avançando, aumentam as evidências de maus
comportamentos que vão muito para lá de meros vidros partidos. Há caixas
do correio estilhaçadas, veículos que subiram os passeios e chocaram contra
as sebes e o tipo de destroços aleatórios que normalmente não encontramos
num condomínio «chave na mão» como este. Não porque as pessoas não
sejam odiosas — estou certo de que muitas delas são —, mas porque estão de
tal modo obsessivamente preocupadas com o valor das suas propriedades,
que preferem morrer a permitir que os detritos da civilização conspurquem a
atratividade da sua envolvência.
— Estou preocupada por deixar o meu tio — diz Alyssa, que se senta ao
meu lado, no banco de trás. Ela funciona como um tampão entre mim e o
ruivo psicótico do outro lado dela. Eu preferia ter ido à frente, mas o irmão de
Alyssa correu mais rápido do que eu, e, se não seguirmos a convenção que
dita que o primeiro a reclamar o lugar do morto é aquele que o utiliza, que
tipo de leis nos restará?
— O tio Salsa vai ficar bem — diz Jacqui. — E, mesmo que não fique, não
há nada que possas fazer. Pediste-lhe que viesse e ele recusou-se. Fim da
história.
Alyssa aceita a pérola de sabedoria, mas não parece reconfortada.
— Bem, ele tem bastante ÁguaViva — realço. — Mesmo que o atravesse
sem parar, continua a ter os benefícios dos eletrólitos. De facto, foi provado
que a sua fórmula patenteada melhora a qualidade de vida.
— Ótimo, é mesmo do que precisamos — diz Jacqui. — Um anúncio
televisivo com bom cabelo.
Isto é aquilo a que chamamos um insulto disfarçado de cumprimento. Eu
opto por ver o lado positivo, porque é assim que funciono.
— Essa informação pode salvar vidas — digo-lhe. — Tal como um bom
cabelo na situação certa.
A pickup ainda está quente. O ar condicionado tem estado a soprar desde
que entrámos, mas não está mais fresco. Jacqui também se apercebe, porque
começa a verificar os controlos.
— Que há de errado com esta coisa? — pergunta.
— É verdade, esqueci-me: o ar condicionado não funciona — informa
Alyssa. — O nosso tio estava sempre a dizer que ia mandar arranjá-lo, mas
nunca chegou a fazê-lo.
Jacqui fita-a de olhos arregalados.
— Já nos podias ter dito isso antes.
Todos abrimos as janelas, mas está tão quente fora do veículo como dentro
dele. O termómetro digital no painel de instrumentos regista trinta e seis
graus. A temperatura corporal parece muito mais quente quando se regista
fora do nosso corpo. O tio devia ter revelado que o ar condicionado não
estava a funcionar quando fez o acordo comigo. Legalmente, é obrigatório
revelar coisas como essa.
Depois, o irmão de Alyssa vira-se e pergunta-me:
— Por que desportos é que recebeste os emblemas?
Aponto para os emblemas no meu casaco, que se revela cada vez mais
errado para este tipo de tempo, mas recuso-me a tirá-lo.
— Este é pelo futebol — digo, o que parece prender a atenção de Alyssa,
embora perceba que ela está a tentar não o mostrar. — E este é de lacross.
— Lacross — diz Jacqui. — Não me surpreende que sejas bom com um
pau.
Opto por não comentar. Alyssa olha para outro emblema.
— Capitão da equipa de debate?
Encolho os ombros como se não fosse nada.
— Apresento bons argumentos.
— Então e as tatuagens no teu braço? — pergunta o irmão de Alyssa. — O
que são?
— Não são tatuagens — digo-lhe. — É tinta normal.
— Então o que dizem?
Puxo um pouco as mangas do blusão da escola, e tento erguer o braço para
lhe mostrar o local no meu pulso onde foram escritas, mas o meu ombro
lateja quando tento fazê-lo. Este ombro deslocado não para de me trazer
coisas boas. Consigo levantá-lo o suficiente para que ele veja as palavras. Lê-
as hesitantemente.
— Con-fla-gra-ção. De-tri-to.
— As minhas palavras do dia.
Alyssa olha para mim, algo divertida.
— Escreves o teu vocabulário no braço?
— «O vocabulário de uma pessoa necessita de ser constantemente
fertilizado ou perecerá» — digo, citando Evelyn Waugh. Não que saiba quem
é Evelyn Waugh, mas conhecer a fonte de uma citação é o que conta. —
Quando se desvanece, a palavra está já permanentemente impressa na minha
memória.
— Eu tenho algumas palavras que gostaria de escrever no teu braço — diz
Jacqui.
Quando chegamos ao portão do meu condomínio, vejo que este está
bloqueado por uma espécie de barricada; mais um sinal do quão
profundamente a crise o afetou. Deve ter sido concebido por um comité,
porque é uma barreira bastante patética. Como algo que os castores poderiam
ter erigido se tivessem polegares oponíveis e imensa força na parte superior
do corpo.
— Já me tinha esquecido disto — diz Jacqui.
— Talvez possamos passar-lhe por cima — sugere o ruivo psicótico. —
Esta pickup tem o chassis bastante alto.
— Porque havemos de arriscar danificar a pickup do tio dela? — pergunto.
— Saímos e desmontamos a barricada.
É, na verdade, o único curso de ação razoável, mas, ao dizê-lo primeiro,
fico alguns centímetros mais perto de uma posição de liderança.
Todos saímos para desimpedir o caminho até ao portão. Não sou tão eficaz
como gostaria de ser, contudo, e Jacqui repara.
— O que se passa, Roycroft? Levantar pesos é indigno de ti?
— Deixa-o em paz — diz Garrett. — Tem o ombro marado.
Sorrio e dirijo-lhe um encolher de ombros unilateral.
Tendo aberto um caminho suficientemente largo, regressamos à pickup.
Penso em reclamar para mim o lugar do morto, mas decido manter o statu
quo, e volto a entrar para a parte de trás, sentando-me ao lado de Alyssa. É
um bocadinho apertado atrás, mas, para ser sincero, não me importo.
— Olhem para aquilo — digo, quando passamos pelo portão. — Alguém
abandonou um BMW na beira da estrada.
— Sim — diz Jacqui. — Que idiotas.
À medida que nos afastamos de Dove Canyon, aproveito o momento para
realizar uma avaliação mais aprofundada dos meus companheiros de viagem.
Parece ser Alyssa quem toma as decisões, embora Jacqui queira ser ela a
tomá-las. Depois há o irmãozinho de Alyssa, que me defendeu no portão, por
isso acho que já o conquistei. E há o miúdo maluco. Ele é a parte desta
equação que eu gostaria de ver cancelada. Conheço o tipo. Furioso, sádico.
Sociopata. Provavelmente desistiu da escola e está a caminho de se tornar um
criminoso de carreira. Do tipo traficante de drogas. Sim. O tipo de rapaz que
espanca escuteiros só para se divertir.
Não vou sequer tentar ganhar a sua confiança. Por ora, preciso de me
concentrar em Jacqui. Tento decifrá-la. Muitas pessoas, provavelmente,
acham que é hispânica, devido à sua tez, mas não é. A sua entoação e
linguagem corporal apontam noutra direção. Os olhos, a forma da sua testa
parecem mais europeus. Ela apercebe-se de que é observada pelo retrovisor,
por isso não recuo.
— Italiana? — pergunto, num palpite aleatório.
— Grega — responde ela. — Mas não percebo o que isso tem a ver
contigo.
— Greco-romana, então — digo. — Não estava completamente errado. —
Depois acrescento: — Tens um lado clássico. Se a Vénus de Milo tivesse
braços, parecer-se-ia contigo.
— Se a Vénus de Milo tivesse braços, dava-te umas palmadas — responde
ela.
— Então e nós? — pergunta o irmão de Alyssa.
— Garrett, nem penses nisso — diz Alyssa. — Nunca ninguém acerta.
Ainda assim, Garrett espera que eu tente. Estou num terreno incerto,
porque, tendo em consideração a natureza volátil da nossa sociedade, se errar,
é provável que ofenda alguém.
— Calculo que seja, acima de tudo, europeu, com um toque de algo um
pouco mais exótico…
Alyssa fica impressionada.
— Isso… não está completamente errado.
Então, Garrett intervém:
— Somos um quarto holandeses, um quarto canadianos, do lado francês,
um quarto jamaicanos e um quarto ucranianos!
— Um excelente cadinho! — digo. — Aquilo a que o meu pai chamaria
«um estufado cheio de sabor». — Na verdade, o meu pai chamar-lhes-ia
«rafeiros», mas ele consegue ser um idiota. É alguém em relação ao qual
gostaria cada vez mais de degenerar. — Seja como for — digo —, sempre é
uma genealogia melhor do que a do vosso amigo viking.
— Não somos escandinavos — riposta Kelton. — Somos escoceses e
ingleses. Um dos meus antepassados veio para a América no Mayflower.
— A sério? — pergunto. — Ratazana ou barata?
É algo que me sinto em segurança para dizer, porque Alyssa está entre nós
— embora ele me possa fazer pagar por isso mais tarde, quando ninguém
estiver a olhar. Mas faz Garrett rir, e o riso de Garrett faz Alyssa sorrir, por
isso vale a pena o risco. Com exceção de Mr. Mayflower, começo a sentir-me
em casa com este pequeno grupo. Dizem que as experiências comunais
intensas são capazes de criar amizades duradouras. Acho que há aqui uma
verdadeira oportunidade.
— Então e tu? — pergunta Alyssa.
— Não faço ideia — digo-lhe. — Sou adotado.
Enquanto conduzimos, a desolação à nossa volta faz com que seja difícil
mantermo-nos animados. Por todo o lado, as coisas parecem tão desesperadas
quanto no meu bairro. Pelo menos as pessoas aqui não têm disenteria, penso
— mas se «não ter disenteria» é onde colocamos a fasquia, então esta está
bastante baixa.
O moral é tudo em tempos difíceis — é a única coisa que pode impedir o
stresse de se tornar tóxico —, mas o moral não acontece simplesmente.
Começa com a gestão e vai escorrendo até às bases. Vejo que é
responsabilidade minha ignorar o vazio das ruas, os semáforos que não
funcionam e o ocasional conjunto de mortos-vivos. Não podemos ficar presos
a esse tipo de coisas. Se as minhas decisões refletirem esta realidade atroz,
como poderão as coisas melhorar? Apercebo-me de que este grupo precisa de
mais do que um líder competente. Precisam de um herói. Decido fazer os
possíveis para me mostrar à altura das circunstâncias.
INSTANTÂNEO 1 DE 2: CH-47D CHINOOK
Alyce Marasco não é nova nos céus, mas nunca antes voou no seu
helicóptero como parte de uma equipa de emergência. No entanto, agora que
a lei marcial foi declarada e a guarda nacional ativada, Alyce foi chamada
para levar água potável aos centros de evacuação.
Como toda a gente, só tarde se apercebeu de que a crise, de um ponto de
vista humano, é tão grave quanto qualquer desastre natural, devido ao número
de pessoas afetadas e à posição desesperada em que todas elas se encontram.
Sim, houve avisos — anos deles, de facto —, mas a maior parte dos anúncios
de serviço público sobre poupar água era muito diferente de um fechar
absoluto da torneira. Não houve nenhum aviso de que a água simplesmente
seria fechada.
Alyce visita frequentemente um tio com demência que vive num lar em
Tustin, uma comunidade localizada mesmo no centro da área afetada. E,
como Alyce não foi capaz de confirmar que este terá sido evacuado em
segurança, dá por si a desviar-se ligeiramente da sua rota e a voar na direção
do lar. Embora não seja capaz de perceber grande coisa a partir daquela
altitude, precisa de ter uma ideia das coisas; uma imagem panorâmica que
possa, pelo menos, conceder-lhe algum conforto. Analisa as ruas em baixo,
sem saber ao certo o que procura. Lembra-se dos relatos de como, durante os
desastres, os lares estão entre os mais afetados. Não atraem os recursos nem
as atenções dos hospitais e, muitas vezes, têm graves problemas de falta de
pessoal, deixando tais espaços mal equipados para lidar com um dia normal,
quanto mais com uma crise.
Há páginas de Facebook de dezenas de bairros, onde as pessoas
começaram a indicar que foram evacuadas em segurança, e que têm acesso a
água — porque essas duas coisas não ocorrem necessariamente em
simultâneo. Essas páginas tornaram-se, na verdade, o registo mais correto dos
evacuados. Ela tem estado à procura de pessoas que conhece, mas ainda não
encontrou nenhuma — muito menos o tio, para quem as redes sociais
significam estar sentado numa sala repleta de gente, a ler o jornal.
O bairro do tio parece-se com todos os outros. Sem vida, com exceção dos
centros de evacuação sobrelotados, a transbordar, que parecem formigueiros
separados por intervalos de oito quilómetros. Os locais sem vida parecem
falsos a partir da sua posição aérea, como se fossem uma miniatura com
árvores de plástico ou um modelo arquitetónico em feltro. Não pode dar-se ao
luxo de procurar o edifício específico, e, mesmo que pudesse, o que faria?
Quando o copiloto realça que estão ligeiramente fora da rota, ela ajusta a
direção e esquece o assunto.
Mais à frente está uma daquelas fervilhantes bolsas de vida. Milhares de
pessoas reunidas no parque de estacionamento de um centro comercial. A
partir daquela altitude, assemelha-se ao aspeto que poderia ter Coachella, ou
um qualquer outro festival de grandes dimensões — o que é perturbador,
porque o divertimento é a última coisa de que estas pessoas precisam, neste
momento.
Abriram um círculo enorme no parque de estacionamento. A multidão
afastou-se para criar uma pista de aterragem. Um heliporto improvisado para
o seu fornecimento vital de água.
Mas não há nada que Alyce possa fazer por estas pessoas.
Este não é o seu destino.
Não se trata sequer de um centro de evacuação oficial.
E, depois, é atingida por uma torrente de emoções, uma turbulência interna
que a abana até ao seu âmago. Começa a fazer contas: por aquela altura
existem cerca de duzentos abrigos de evacuação. Mesmo que só metade da
população tenha recorrido aos abrigos, isso significa que quase dois milhões
de pessoas estarão presentes, à espera de água. São sessenta mil pessoas em
cada abrigo. E, no entanto, os helicópteros de serviço só conseguem fornecer
água a cerca de seis mil pessoas por abrigo, por dia.
O que significa que nove em cada dez pessoas não receberá a sua água
hoje.
E isso são apenas os centros oficiais.
As lágrimas começam a turvar a sua visão, mas ela limpa-as. Talvez a água
no seu helicóptero seja apenas uma gota no oceano, mas vai ajudar alguém,
algures. E, quanto aos outros, não há nada que possa fazer.
E, por isso, passa por cima do parque de estacionamento apinhado, mas
não antes de rezar uma oração silenciosa pelas almas lá em baixo.
INSTANTÂNEO 2 DE 2: TARGET
Seis.
Foi o número de helicópteros que voaram bem alto por cima da cabeça de
Hali desde que chegou ao parque de estacionamento da Target, ontem. Todos
dizem que os helicópteros militares estão a transportar água. Vão aterrar ali e
salvar toda a gente. É por isso que os «organizadores» estão constantemente a
abrir espaço para que os helicópteros possam aterrar. É por isso que todas as
famílias têm alguém à espera, numa longa e serpenteante fila — só para o
caso de haver algo para o qual seja preciso formar uma fila.
Ouve-se o som de outro helicóptero, vindo de norte. Todos erguem os
olhos, em antecipação. O som cresce. A sua sombra cruza o parque de
estacionamento. É o mais próximo que chega. O som do seu motor
desvanece-se quando desaparece para sul. E vão sete.
— Não vamos receber as entregas militares — diz uma mulher ao lado
dela, para quem queira ouvir, ou talvez só para si mesma. — Mas os outros
helicópteros… estão a acorrer a pontos não oficiais. — Ela acende um cigarro
para se consolar. — De qualquer maneira, há por aí mais helicópteros não
militares.
Onde?, quer Hali perguntar-lhe. De que helicópteros está ela a falar?
Decerto nenhum que seja suficientemente grande para transportar água. A
maior parte dos helicópteros pequenos mal consegue transportar uma mão-
cheia de passageiros, e a água é pesada. Será que esta mulher acredita mesmo
que uma qualquer empresa de passeios turísticos lhes vai enviar água?
Ela volta para junto da mãe, que assumiu uma posição na fila, apenas cerca
de trinta pessoas a contar da frente, com direito a cadeira dobrável e tudo.
Não conseguiu aquele lugar por terem ido mais cedo, mas por ter visto uma
amiga na fila, quando chegaram, e se ter oferecido para lhe guardar o lugar
quando ela foi à casa de banho. A amiga abandonou, entretanto, o parque de
estacionamento, na esperança de encontrar uma situação melhor, deixando à
mãe de Hali o seu lugar. Foi sempre assim com a mãe. Ela arranja sempre
maneira de conseguir o que quer.
— Sacanas — murmura a mãe de Hali num sussurro, enquanto esta se
senta no chão ao lado dela. Não há qualquer explicação quanto a que sacanas
se refere. É óbvio. Os sacanas nos helicópteros que voam por ali e todos os
que ignoram aquele parque de estacionamento; os deuses da água, que
lançam os dados para decidir para onde ela irá.
— O próximo será para nós — diz-lhe Hali.
Oferece a Hali um ligeiro sorriso. Ambas sabem que não passa de uma
esperança ilusória que se aproxima do delírio, mas naquele momento é tudo o
que têm. Não têm qualquer voto na matéria. A água TEM de vir até elas,
porque elas não irão a parte nenhuma. A mãe NÃO abandonará o seu lugar na
fila.
Nos primeiros dias depois do Fechar da Torneira, elas tinham água. A mãe
arrancara um pack das mãos de uma das colegas da equipa de futebol de Hali,
na Costco.
— Quem vai ao ar perde o lugar — dissera a mãe, quando chegaram à
linha de caixa. — Que sirva de lição de vida.
Mas havia, claramente, lições de vida que a mãe não recebera. Por
exemplo: «Não laves o cabelo quando não tens mais do que água
engarrafada» e «Evita o jogging matinal quando o suor é o teu inimigo»; e,
talvez, o mais óbvio de todos: «Deixa que as plantas morram.» O pack de
águas durou apenas dois dias.
Na rua, do outro lado do parque de estacionamento, encosta um pequeno
Volkswagen vermelho. O tipo de viatura que talvez tivesse sido visto em
Woodstock. Um monovolume construído antes de existirem monovolumes.
Ainda ontem ali esteve. Duas vezes. Hoje, três raparigas, mais ou menos da
sua idade, talvez um pouco mais velhas, saem. Ela não consegue ver o
condutor, mas sabe que é um homem. Sabe-o instintivamente.
— Hali, querida — diz a mãe, tentando proteger os olhos do sol —, porque
não vais para a sombra, onde está mais fresco junto à parte lateral do
edifício? Talvez possas ouvir o que as pessoas estão a dizer, talvez consigas
obter informação.
— O que as pessoas dizem é inútil — realça Hali.
— Em grande medida, sim, mas, de quando em vez, poderá aparecer
alguém a quem valha a pena dar ouvidos.
Ela odeia deixar ali a mãe, a suar, mas foi-lhe atribuída uma missão, por
isso vai, não deixando de pensar nas coisas que as duas tiveram de fazer, nos
últimos dias, para chegar até ali.
Quando ainda estavam em casa, a mãe de Hali namoriscou com Mr.
Weidner, um vizinho que se divorciara no ano anterior. A verdade é que a
mãe de Hali sempre namoriscara com ele. Mas, quando se apercebeu de que
ele tinha água, namoriscou ainda um pouco mais. Ele foi educado e, embora
não tivesse correspondido aos seus avanços, ofereceu-lhes uma garrafa de
água.
— Missão cumprida — dissera a mãe quando chegaram a casa, embora
tivesse dificuldade em olhar Hali nos olhos ao dizê-lo.
Na manhã seguinte, Hali seguiu o exemplo de sobrevivência da mãe e
ensinou algumas fintas ao miúdo irritante que morava na rua em frente, e que
não conseguia suportar, mas cuja família se dizia ter água. No final, a mãe do
miúdo deu a Hali um pequeno copo com água. Hali tinha suado mais do que
aquilo, só a brincar com o fedelho, mas era melhor do que nada. Levou
metade do copo à mãe, que o recusou, e insistiu que Hali o bebesse todo.
Agora, enquanto esperavam impotentemente por ajuda, ocorre-lhe sem
parar uma fatela citação inspiracional:
Tens de fazer algo que nunca fizeste, para ter algo que nunca tiveste.
Foi algo que um treinador de futebol lhe disse a certa altura da sua vida.
Embora pirosa, nunca a esqueceu. Presume que se aplique não apenas a
coisas que nunca teve, mas a coisas que teve e perdeu. A coisas de que
continua a necessitar desesperadamente.
No lado da Target imerso nas sombras, Hali depara-se com uma amiga,
Sydney, que é famosa por falar imenso mas não dizer absolutamente nada.
— Isto é de loucos ou quê? — diz Sydney. — É, tipo, mas que raio, certo?
Poupa-me ou algo assim! Mas suponho que seja o que é.
— A quem o dizes. — Normalmente, é a melhor maneira de lhe responder.
Depois, Sydney inclina-se na sua direção e diz:
— Queres ver uma coisa?
Ela abre sub-repticiamente uma bolsa da sua mochila e revela uma
pequena garrafa de água. Vê-la deixa Hali sem fôlego. De súbito, Sydney é a
sua melhor amiga para sempre.
— Anda, deixo que bebas um gole — sussurra-lhe.
Afastam-se na direção de uns arbustos, e Sydney tira a garrafa da mochila,
protegendo-a para que ninguém a possa ver, como se fosse algo ilegal, e
deixa que Hali beba um gole. O pequeno gole transforma-se numa enorme
golada antes de Sydney afastar a garrafa. Ela não é louca nem nada. Deve
saber como é difícil parar de beber quando começamos.
— Onde é que arranjaste isso? — pergunta Hali. — Não a tinhas contigo
ontem.
Sydney aponta para o lado, e Hali vira-se, vendo que está a apontar para o
pequeno monovolume vermelho da Volkswagen. O condutor está agora
encostado a ele, a fumar. Tem 20 e muitos ou 30 e poucos anos. Rabo de
cavalo. Fartas patilhas. Calças de ganga rasgadas que não parecem uma
afirmação de moda.
— Ele está a dar água — diz Sydney. — Mas é algo esquisito em relação a
quem a entrega. Quer dizer, não pode dar a toda a gente, sabes? — Depois,
Sydney dá uma gargalhada nervosa que revela a realidade nua e crua de que
não existe água gratuita, e Hali apercebe-se porque não viu Sydney até agora.
É uma das três raparigas que acaba de ver sair do monovolume vermelho.
— Ele não é mau nem nada — diz Sydney. — Até me deu uma garrafa
para levar para a minha família…
Hali observa enquanto uma rapariga bonita que não conhece entra no
monovolume. O tipo do rabo de cavalo segura a porta aberta para ela,
fingindo ser um cavalheiro e não um tipo nojento. Depois é abordado por um
rapaz que Hali conhece da escola. Um nadador. O homem do rabo de cavalo
pensa na questão, depois deixa-o entrar também, porque, afinal, porque não?
Hali vira-se para Sydney.
— Obrigada, mas não obrigada — diz ela, e tenta afastar-se com
indignação suficiente, mas Sydney agarra-lhe o braço.
— Não sejas parva, Hali. Ainda não percebeste? Não virá ninguém para
ajudar as pessoas aqui! Provavelmente vão morrer todas de sede. Não queres
ser uma delas!
Mas Hali continua sem poder acreditar nisso. Aquelas coisas não vão
acontecer ali. Mas Sydney não a larga. Parece desesperada.
— De que te interessa o que faço? — diz Hali, de repente. — Tens a tua
água, porque não me deixas em paz?
E Sydney revela, por fim, o seu verdadeiro motivo.
— Ele disse que me dava outra garrafa se eu lhe levasse alguém. Alguém
como tu…
Hali liberta o braço e corre, sem olhar para trás.
Mas, antes que chegue junto da mãe, ouve-se um som lá em cima. Um
helicóptero! E este é mais ruidoso — mais próximo do que qualquer outro!
Todos se levantam, olhando para o céu como uma multidão ingénua que
aguarda pelo êxtase.
O helicóptero surge sobre as copas das árvores. Não é grande. É um dos
helicópteros não militares de que a mulher estava a falar. Traça círculos sobre
a multidão. Continua a sobrevoá-la. À terceira passagem, Hali apercebe-se de
que não passa de um helicóptero noticioso. Apareceu para mostrar ao mundo
o drama da crise e o verdadeiro significado do desespero. Hali pergunta-se se
a equipa noticiosa lá em cima se apercebe, sequer, da esperança que estão a
estilhaçar com a sua mera presença.
O helicóptero passa mais uma vez e, depois, parte. As pessoas continuam
de pé, recusando-se a acreditar que partiu. Enquanto ficarem de pé, ele
poderá voltar. Poderá. Poderá.
— Sacanas! — diz a mãe.
Hali olha para ela. Olha para o passeio. Olha de novo para a mãe.
Tens de fazer algo que nunca fizeste, para ter algo que nunca tiveste,
pensa Hali. Ou algo que poderás nunca mais voltar a ter.
— Eu volto — diz à mãe. — Prometo.
Depois, dirige-se ao pequeno monovolume vermelho da Volkswagen, onde
o homem com o rabo de cavalo lhe abre a porta. Como um cavalheiro.
22) HENRY
Talvez, penso, talvez isto não seja mau. Agora que o Fechar da Torneira está
a ser levado a sério — agora que todos estes recursos estão a ser mobilizados
—, ficará tudo bem. Não teremos de realizar a viagem para aquele misterioso
refúgio, que sempre me soou bastante esquisito.
Mas Kelton é como um animal apanhado numa armadilha e está preparado
para roer o próprio pé para escapar. Estaca, recusando-se a continuar a andar,
erguendo-se no meio do caminho. Nós os quatro temos de lutar contra a
corrente de pessoas, para não sermos simplesmente arrastados por ela.
— Não podemos ficar aqui! — insiste ele.
— Mas já cá estamos — diz-lhe Jacqui, ripostando. — Lida com isso.
Tendo em consideração tudo aquilo por que Kelton passou, acho que ele
precisa de mais do que uma abordagem de «amor duro», da parte de alguém
que não o ame de verdade, pelo que tento ser um pouco mais gentil.
— Talvez isto seja uma coisa boa — digo-lhe. — Nós não somos
propriamente prisioneiros… não nos estão a obrigar a ficar se não quisermos.
E, quem sabe, talvez nós queiramos ficar.
Mas, agora que aqui nos erguemos como pedregulhos contra o fluxo
implacável das pessoas que entram no centro de evacuação, não parece ser
uma grande escolha.
— Talvez a mãe e o pai estejam aqui — grita Garrett sobre o ruído das
hélices do helicóptero. — Embora eu ache que, se aqui estivessem, já teriam
saído para nos irem buscar; ou talvez, como o soldado ia fazer pela nossa avó
imaginária, tivessem enviado alguém à nossa procura, mas já tivéssemos
partido.
— É possível — digo a Garrett, porque não quero destruir-lhe as
esperanças.
E depois Jacqui grita:
— Onde raio está o Roycroft?
Olho para trás de nós e ele não está lá. Desapareceu por completo.
— Esqueçam-no — rosna Kelton. Alguém choca contra ele e Kelton quase
perde o equilíbrio. — Se ele quiser ficar aqui deixem-no, mas nós não
podemos!
— Para! — grita Jacqui. — Já é suficientemente stressante quando tu não
te estás a passar.
Kelton cerra os dentes, a raiva a crescer.
— Vocês não fazem ideia, pois não? — Ele aponta para o campo de
futebol que se ergue no cimo de um pequeno monte. — Acham que aqui não
há prisioneiros? Olhem bem para aquela vedação! Cheguem-se ali e
perguntem às pessoas do outro lado há quanto tempo estão ali à espera. Vão!
E, só para o acalmar, é o que faço.
— Volto já — digo. — Fiquem juntos. — E abro caminho através da
multidão, dirigindo-me até à elevação relvada. Quando a subo, fico chocada
com o quão apinhado está o espaço para lá dela. As bancadas, as pistas, o
campo. Nem sequer se consegue ver a relva: tudo são pessoas. Há chapéus de
chuva e toldos montados para as manter à sombra, mas não são suficientes.
A vedação é bastante alta. Todos os campos de futebol das escolas
secundárias têm vedações. Existem para impedir que os fãs de equipas
opostas se envolvam em confrontos uns com os outros, e para tentar manter
ao longe as pessoas que não pagaram bilhete. Hoje, a cada portão encontram-
se diversos soldados armados. Por muito que odeie admiti-lo, Kelton tem
razão. No presente, aquelas vedações têm por único objetivo manter as
pessoas no seu interior. Colocaram de quarentena os zombies da água.
Milhares deles.
— Desculpem — chamo, através da vedação, tentando obter a atenção de
alguém.
Uma mulher ossuda, de cabelo castanho comprido e desgrenhado,
aproxima-se de mim.
— Viste? — pergunta. — Viste para onde a levaram?
Mas eu não tenho a certeza do que está a perguntar.
Ela fica impaciente.
— A água! Viste para onde a levaram? Todos vimos o helicóptero, mas
para onde levaram a água?
Eu vi-os a descarregarem-na, mas não sei para onde a levaram. Há tantas
áreas vedadas em redor desta escola que pode ter ido para qualquer lado.
— Não — respondo-lhe —, lamento, mas não.
Ela bate com a mão contra a vedação de elos e esta chocalha. Morde o
lábio. Semicerra os olhos e começa a pestanejar, e apercebo-me do que está a
fazer. Está a chorar. Está a chorar, mas já não lhe restam lágrimas.
Por fim, coloco-lhe a pergunta que me levou ali:
— Há quanto tempo estão aqui?
— Chegámos ontem à tarde — diz-me ela. — Este é apenas o terceiro
helicóptero a chegar desde então, e a fila nunca se move! Ainda não vimos
água nenhuma. Tens de descobrir para onde é que está a ir!
E depois ouço Jacqui atrás de mim.
— Ginásio — grita ela por cima da multidão —, estão a levá-la para o
ginásio! Também lá estão muitas pessoas.
A mulher agarra desesperadamente a vedação com tanta força que as
pontas dos dedos ficam brancas.
— Têm de nos arranjar alguma! Vão fazer isso, não vão? Vão até ao
ginásio e vão-nos trazer alguma daquela água?
Não há nada que eu lhe possa dizer.
— Por favor, promete-me que o farás. Por favor!
— Alyssa, vamos.
— Lamento… — digo. — Eu… eu…
Então, Jacqui coloca-se à minha frente, impedindo-me de continuar a ver a
mulher, e faz-me recuar, descendo o monte.
— Não te envolvas — diz-me ela. — Não irá ajudar ninguém, e ainda
menos a ti.
Penso na caixa de ÁguaViva na parte de trás da pickup, escondida por
baixo de um cobertor. Será que ainda lá está? Terá sido levada? Deveria abri-
la e começar a lançar garrafas por cima da vedação? Mas depois lembro-me
do que aconteceu ontem, em casa de Mr. Burnside. E estas pessoas têm ainda
mais sede.
Não te envolvas.
Como é que nos podemos limitar a virar costas? E, no entanto, faço-o.
Tenho de o fazer.
— Então, o que descobriste? — pergunta Kelton, quando voltamos para
junto dele. Já sabe a resposta, tendo em consideração a expressão estampada
no meu rosto.
24) HENRY
Toda a nossa dinâmica se alterou, sem dúvida, desde que Henry se juntou a
nós. Não sei se isso será bom ou mau. Ele não é o melhor dos condutores,
mas é competente e mantém os olhos fixos na estrada. Conseguiu recuperar
as nossas chaves, para que pudéssemos escapar do centro de evacuação — e
parece querer ajudar-nos verdadeiramente. Por outro lado, estava a
aproveitar-se das pessoas no seu bairro — incluindo o meu tio — e fingiu,
mais ou menos, ser alguém que não era. Não sei o que pensar dele, e é
irritante que ele não seja de todo desagradável de se ver, porque isso pode
toldar o meu julgamento.
Temos de recuar um pouco mais do que gostaríamos, para descobrir o
acesso à estrada, e sinto-me feliz por a carrinha ainda não ter ficado sem
combustível. Quase não conseguimos subir o caminho de betão, que é tão
estreito que, olhando pela janela, já não consigo ver o chão por baixo de nós,
e a inclinação abrupta até ao fundo não para de aumentar. Se o nosso pneu
direito derrapar, daremos várias cambalhotas antes de atingirmos o fundo.
Por fim, chegamos ao nível da estrada. Não faço ideia de onde nos
encontramos, e o facto de tantas zonas do Sul da Califórnia se assemelharem
é desconcertante. Sei que não estou em casa, mas a sua não familiaridade é-
me familiar. O bairro é mais antigo do que o nosso, com casas envelhecidas
com uma arquitetura ao estilo rancho, mas o centro comercial na esquina não
é diferente do do meu bairro. O ar tem um gosto acre e a queimado, e é
pesado. É o fumo dos incêndios. Chamam a esta parte da Califórnia o
Império Interior, e há sempre smog, porque todas as coisas más que existem
no ar são sopradas para aqui e ficam presas junto às montanhas. Acho que já
joguei um torneio de futebol nesta cidade; ou talvez tenha sido noutra, a
centenas de quilómetros, que tinha exatamente o mesmo aspeto.
Aproximamo-nos de uma rampa de acesso à autoestrada e Jacqui sugere
que subamos de marcha-atrás, para aproximar o tanque de combustível tanto
quanto possível do veículo escolhido. É engraçado como Kelton sabe tudo
acerca deste mundo anárquico, mas Jacqui parece que já viveu nele.
Afinal, não é necessário fazer marcha-atrás, porque, surpreendentemente, a
rampa não está repleta de veículos abandonados — por outro lado, suponho
que isso não seja de surpreender. Qualquer pessoa que se tenha apercebido de
que o trânsito se encontrava num impasse permanente, teria acabado por sair
de marcha-atrás. Era preciso estar-se nas profundezas de um coágulo
automóvel gigantesco para sentir que abandonar o automóvel é a única opção
existente. Como tal, a autoestrada está basicamente vazia durante cerca de
quarenta e cinco metros, até chegarmos ao primeiro veículo abandonado e,
por fim, ao coágulo através do qual é impossível passar e de onde é
impossível sair.
Alguns veículos estão virados em ângulos bizarros. Outros estão
completamente virados na direção errada. Há janelas partidas, portas
escancaradas, um assento vazio num tejadilho. Mais à frente vejo um
autocarro escolar amarelo abandonado. A cena não é bem como a da praia,
onde existiam provas de pânico e de violência que desenhavam uma história
arrepiante — e, no entanto, a natureza abjeta deste abandono é igualmente
perturbadora. As pessoas partiram sem levar mais nada a não ser as roupas
que traziam vestidas e os filhos pendurados nos braços. O vandalismo deve
ter ocorrido depois da sua partida — e isso implica que ainda poderão existir
saqueadores a partir janelas e zombies da água a vaguear por entre o labirinto.
— Primeiro precisamos de encontrar uma mangueira — diz Jacqui,
estacando. Dispersamos, em busca de uma carrinha de jardinagem ou de algo
que possa transportar uma mangueira, mas não temos sorte. Depois, seguindo
um palpite, dirijo-me à parte de trás da carrinha do tio Manjericão. Há imensa
tralha lá atrás. Coisas com que o nosso tio não teve forças para se preocupar
quando fez o acordo com Henry e, por isso, seguiram com a carrinha.
Tombado por entre as tralhas que tinham sido agitadas durante a nossa rude
viagem, encontro o seu hookah. A minha mãe obrigava-o sempre a mantê-lo
no jardim das traseiras, porque não queria aquela coisa dentro de casa, e
lembro-me de ele ter referido, certa vez, que Daphne se recusava a permitir
que ele o colocasse onde ela o pudesse ver. Por isso ficou na parte de trás da
carrinha, a sua mangueira de metro e vinte escondida à vista de todos. Com
alguma sorte, será suficientemente comprida para cumprir as funções
necessárias.
Henry recuou em direção a um dos automóveis no limite do coágulo, e só
depois de termos saído para procurarmos a tampa do depósito de combustível
é que nos apercebemos de que não vai encontrar nenhum. É um Tesla. É
Jacqui quem primeiro repara. Ela toca no meu braço e chama a minha atenção
para esse facto, mas não diz nada a Henry, que continua à procura de um sítio
para enfiar a mangueira. Os restantes já perceberam, mas esperamos para ver
quanto tempo demora Henry a aperceber-se do que se passa.
Dou por mim a sorrir perante tamanha ironia. Não só por causa do Tesla,
mas por causa de Henry, em todos os aspetos. O mundo seca, no entanto,
encontramos Henry totalmente à nora, a viver no seu próprio oásis. Ele
deixou que pensássemos que era outra pessoa, sem qualquer razão aparente.
É claramente esperto, mas carece de senso comum básico da forma mais
estranha. Não parece ser completamente fiável, mas, quando o olhamos nos
olhos, queremos realmente confiar nele. É como se ele quisesse ser confiável
— como se o facto de confiarmos nele fosse, subitamente, fazer com que ele
o merecesse. Eu quero que ele seja merecedor da nossa confiança. Isso
significa que tenho de confiar nele primeiro? Não consigo deixar de me sentir
um pouco intrigada pelo seu quociente desconhecido.
— Ninguém me vai ajudar? — acaba Henry por perguntar, exasperado.
— Não — diz Jacqui. — Continua à procura.
Talvez seja o sorriso no rosto dela que leva Henry a reavaliar a situação e a
olhar de relance para o logótipo da Tesla no automóvel.
— Certo — diz ele. — Duh.
Garrett ri e eu não consigo deixar de sorrir.
— Fico satisfeito por vos ter divertido esta noite — diz Henry. — É apenas
um dos muitos serviços que ofereço.
Apercebo-me de que, embora Henry tenha deixado a chave na ignição,
confiando em nós, esta se encontra agora nas mãos de Kelton. Ele devolve-as
a Henry para que possamos ligar o motor da carrinha e avançar para um
veículo que, de facto, ande a gasolina, mas há uma mensagem clara, embora
silenciosa. Não sei se é uma questão de desconfiança da parte de Kelton, ou
de poder, ou ambas.
Conduzimos por entre o emaranhado de veículos até nos depararmos com
um monovolume de elevado consumo. Jacqui sai para nos guiar. Desta feita,
quando Henry desliga a pickup tenta levar as chaves, mas Kelton impede-o de
abrir a porta do lado do condutor o suficiente para conseguir sair.
— As chaves, por favor — diz Kelton.
Mesmo assim, Henry força a porta, mas Kelton ergue-se no seu caminho.
Sinto-me irritada pelo facto de Kelton estar a forçar um confronto neste
momento, quando tudo o que procuramos é combustível.
— O que vou eu fazer? — pergunta Henry. — Fugir e acelerar em direção
aos montes? a) Não temos combustível e b) És o único que sabe para onde
nos dirigimos.
Mas Kelton não está disposto a negociar.
Henry lança um olhar rápido na minha direção e diz:
— Está bem. — Depois atira as chaves para mim em vez de as entregar a
Kelton.
Kelton irrita-se com o facto de ter sido tão flagrantemente menosprezado.
Olha para mim como se eu lhe fosse dar a chave, mas não o faço. Porque,
neste momento, ele é que está a ser um idiota. Em vez disso, enfio-as no
bolso. Se Henry me vê como a voz da razão entre nós, assim seja. Se confiar
em mim, talvez isso faça de mim uma pessoa fiável.
Felizmente, a pequena porta que protege o tampão de combustível abre do
lado de fora, em vez de ter de ser aberta a partir do interior do monovolume.
— Muito bem, então e agora? —pergunto a Jacqui.
Mas ela recorre a Kelton.
— Não sei… não és capaz de te armar em MacGyver e inventar qualquer
coisa?
Ele encolhe os ombros.
— Tu é que tens a mente criminosa — diz Kelton.
— O que é um MacGyver? — pergunta Garrett.
Jacqui suspira.
— Um tipo da televisão dos anos oitenta, com uma mullet e capaz de fazer
cenas fixes a partir do nada.
Mas nenhum de nós tem uma mullet ou os conhecimentos necessários para
tratar do asssunto. Tudo o que temos é a mangueira de um hookah. Apercebo-
me de que estamos, todos nós, fora do nosso elemento, até Jacqui. Apesar de
tudo o que ela aprendeu nas ruas, roubar combustível é algo que claramente
nunca fez, e, apesar de todos os conhecimentos de sobrevivência de Kelton,
ele é inútil neste apuro em particular.
— Tudo o que sei — digo — é que enfiamos a mangueira no tanque de
combustível e depois chupamos. — Isto é verdadeiramente o caso do cego a
guiar os cegos.
Depois de quatro tentativas falhadas e de uma boca cheia de gasolina,
Jacqui deita a mangueira ao chão, abdicando da sua coroa de rainha da
ladroagem. Pergunto-me indolentemente se terá sentido o impulso de engolir
a gasolina que lhe foi ter à boca, e isso recorda-me da minha própria sede,
mas afasto esse pensamento.
Entretanto, todos têm uma opinião sobre o porquê de não estarmos a
conseguir roubar o combustível — mas o nosso conhecimento desta arte
perdida está limitado ao laboratório de ciências do quinto ano e aos filmes.
Com todos a darem o seu contributo, apercebo-me de que ainda não ouvimos
pitada de Garrett. De facto, não o vejo desde as nossas primeiras tentativas.
— Garrett? — grito.
Grilos. Vento. Silêncio.
Verifico na pickup. Em redor da pickup. Corro de regresso ao Tesla. Nada.
— Garrett!
Kelton manda-me parar, e sei porquê — a voz nervosa de uma rapariga é
como uma ferida ensanguentada num mar de tubarões —, mas não tenho
tempo para formular outro tipo de procedimento que seja melhor. Tenho de
encontrar o meu irmão.
Sem que o faça conscientemente, os meus pés lançam-se a correr, e afasto-
me rapidamente, mergulhando no mar de automóveis. Corro por entre eles,
gritando o nome dele, mas num sussurro, o que é tão inútil quanto parece.
Tenho a cabeça a andar à roda. As autoestradas são armadilhas de morte, eu
sei, Kelton enfiou-nos isso na cabeça. E, mesmo que eu não esteja sozinha, se
alguém tiver Garrett neste momento, o seu bem-estar é a minha prioridade, e
tenho de ser destemida.
Depois vejo fumo a erguer-se no ar, em espiral, mais à frente. Um
incêndio. Fica algures mais ao fundo da autoestrada. Sei que têm existido
fogos rasteiros por todo o lado, mas na autoestrada? Avanço, trepando,
deslizando por cima dos automóveis — tropeço e caio, mas não deixo que
isso me abrande. E agora consigo ver melhor.
É uma fogueira numa lata de lixo. E à sua volta está, pelo menos, uma
dúzia de pessoas.
E têm Garrett com elas.
Quando Garrett tinha 5 anos, vagueou para longe do jipe do safári no jardim
zoológico. Tive de o salvar de ser pontapeado na cabeça por uma girafa.
Quando tinha 6, quase foi para casa com outra família, no centro comercial,
porque os filhos deles tinham brinquedos mais fixes. Quando tinha 9 anos,
vagueou pela sala de exposições do IKEA e decidiu dormir uma sesta numa
cama com a forma de um automóvel de corrida, numa tentativa de se tornar
um residente permanente da loja — e eu tive de o localizar antes de a mãe e o
pai descobrirem e chamarem a guarda nacional. Desaparecer é aquilo que
Garrett normalmente faz, e fá-lo sempre no pior momento possível, e por
alguma razão sinto-me sempre responsável. Mas, desta vez, estou mais
assustada do que furiosa, porque já vi os monstros que por aí andam — e
desconfio que ainda vou ver piores, antes de tudo isto estar terminado.
Ele ergue-se no meio de estranhos que podem ser tão hostis quanto os
salteadores que atacaram a casa de Kelton. Analiso os seus rostos para tentar
fazer uma leitura da situação. Pessoas de todas as idades. Depois, Garrett vê-
me e sorri.
— Ali está ela… aquela é a minha irmã.
O meu coração continua a bater ao ritmo do meu alarme. A minha cabeça
lateja e sinto-me tonta devido ao esforço. É a falta de fluidos. Aproximo-me
cautelosamente. Depois, uma mulher avança. Cabelo prateado ondulado, uma
tez suave. Os seus dedos parecem brilhar, mas é apenas o reflexo do fogo.
— Bem-vinda — diz ela.
— Garrett, vamos — ordeno-lhe.
— Está tudo bem — diz ele, aproximando-se. — Fui à procura de um
balde… sabes, para despejarmos para lá a gasolina, mas perdi-me. Eles
encontraram-me.
Baixo um pouco a guarda.
— Deves ser a Alyssa — diz a mulher mais velha, calorosamente.
— Quem és tu? — pergunto, ainda apreensiva.
Uma menina pequena, que segura algumas toalhas dobradas, para quando
vai a passar.
— Chamamos-lhe o Anjo da Água.
A mulher mais velha sorri docemente.
— Oh, para com isso. Chamo-me Charity, que é um nome muito mais
caridoso do que aquele que mereço, mas é o que tenho.
Tendo-me agora acalmado um pouco, olho melhor para ela. É tão velha
quanto a minha avó, talvez esteja na casa dos 70, embora também tenha algo
de jovem. A maneira como se comporta. O seu olhar apurado, radiante.
Jacqui, Kelton e Henry alcançam-me, mas mantêm a sua distância,
continuando a analisar a situação.
— Poderá dizer-se que acampámos por aqui — diz Charity, dirigindo-se a
todos nós. — Pelo menos para já.
Olho à minha volta e apercebo-me de que não se trata apenas de uma
fogueira, mas de várias, uma constelação que se estende ao longo da
autoestrada repleta de automóveis, em várias clareiras. Isto não é nada que se
pareça com o acampamento de sem-abrigos que vimos antes; são pessoas de
diversos estratos sociais, que decidiram que ficar aqui, no meio da crise, é
melhor do que estar em qualquer outra parte.
Kelton abana a cabeça.
— Mas estão completamente expostos, aqui. Não é perigoso?
— Por vezes — diz Charity —, mas arranjamos maneira de manter todos
em segurança e hidratados.
A última palavra atrai-nos a todos.
Jacqui avança um passo.
— Têm água?
— Há água por todo o lado — diz Charity com um ténue sorriso. — Basta
que procuremos nos sítios certos. — Ela examina as nossas roupas sujas e
provavelmente apercebe-se de como estamos exaustos, tanto emocional como
fisicamente. — Porque não ficam connosco? — E, quando hesitamos,
acrescenta: — O teu irmão parece gostar.
— Este lugar parece-me bem — diz Garrett. — Mais ou menos seguro.
E, embora «mais ou menos seguro» seja, provavelmente, o melhor que
vamos conseguir, Kelton está cético.
— Temos de ir para um sítio.
— Bem, pelo menos fiquem durante a noite. Está a fazer-se tarde. Podem
partir de manhã. — Depois regressa para a fogueira, deixando que
conversemos.
Henry abre a discussão.
— Eu digo que fiquemos. Descansamos. Hidratamo-nos.
— Temos uma caixa inteira de ÁguaViva na pickup — realço. E apercebo-
me, para meu horror, de que a abandonámos na caixa aberta da carrinha. —
Porque não trancamos a água dentro da pickup, aceitamos a sua
hospitalidade, e talvez estas pessoas nos ajudem a recolher combustível?
Depois podemos partir.
— E vamos para onde? — pergunta Henry. — Regressamos àqueles
terríveis aquedutos, só para nos perdermos outra vez?
— Já não estamos perdidos — diz-lhe Kelton. — E já não nos falta muito.
E depois Jacqui faz pender os pratos da balança.
— Os aquedutos serão mais fáceis de navegar durante o dia, certo? Por
isso, aceitemos o convite do Anjo da Água e passemos aqui a noite. Não
temos propriamente que nos juntar ao seu pequeno culto.
Todos concordam que se trata da melhor solução. Até Kelton, por relutante
que se mostre em confiar em tudo e em todos.
Deixo-os e vou à procura de Charity. Ela está de volta de uma panela. Está
a ferver água, para a purificar.
— Muito bem, ficaremos durante a noite — digo-lhe. — Mas acha que há
aqui alguém que nos possa ajudar a retirar combustível de outro automóvel?
— Claro — diz Charity, com um piscar de olho. — Como é que achas que
eu começo estas fogueiras?
— E talvez um pouco dessa água, quando arrefecer? — diz Jacqui,
aproximando-se por trás de mim.
Mas, em vez de responder, Charity avança e examina de perto o rosto de
Jacqui. Depois, pega na mão dela e belisca-a com o polegar e o indicador.
— Au! Para que raio foi isso?
— Lamento, mas não vos posso dar água já — diz Charity. — A tua pele
ainda está elástica, o que significa que a tua desidratação não é crítica.
— Ela tem razão — diz Kelton, e Jacqui lança-lhe um sorriso escarninho,
sussurrando «traidor» por entre os dentes.
Olha para Garrett, que continua sentado com outro miúdo que encontrou, e
depois para os restantes.
— Sei como é difícil não beber água quando se tem sede, mas não ficaria
com a consciência tranquila se vos desse água, havendo outros aqui que
precisam mais dela. Mas podemos alimentar-vos.
Comida! Já me tinha esquecido da comida. E agora sinto o meu estômago
às voltas, a devorar-se a si próprio. Tenho fome — mas, mesmo que me deem
algo para comer, será difícil mastigar, porque a minha boca está seca e em
carne viva. Até engolir água, neste momento, me magoaria como se estivesse
a engolir agulhas. E, depois, há esta crescente pressão na minha cabeça. Se
não sou merecedora de água neste estado, então nem consigo imaginar como
será estar pior.
— Ajudar-vos-emos com os vossos problemas com o automóvel, dar-vos-
emos abrigo e algo para comer — diz o Anjo da Água. — Isso terá de chegar
por ora. — Depois vira-se para alguns homens de aspeto rude, que jogam às
cartas perto da fogueira.
— Max? Achas que os podes ajudar? Precisam de gasolina.
— Claro. — Um deles levanta-se. É grande e pesadão, está vestido de
cabedal como se fosse o líder de um gangue de motards. A princípio sinto-me
apreensiva, mas, como já fiquei a saber, o aspeto pode ser enganador, porque,
no fim de contas, independentemente do exterior de uma pessoa, só há uma
coisa que define o seu comportamento, e isso é a água. Na minha outra vida,
poderia não ter confiado neste tipo. Mas, aqui e agora, confio. Porque sei que
não é um zombie da água. Ainda não se transformou num.
Sinto-me subitamente culpada por ter duvidado das suas intenções.
— Em troca, contudo, pedir-vos-ei que contribuam para o nosso pequeno
esforço — diz Charity. — Em breve iremos recolher mantimentos nas faixas
a norte. Enquanto o Max aqui está a tratar dos vossos problemas com o
veículo, talvez alguns de vocês se pudessem juntar a nós.
— Eu vou — diz Henry, avançando.
Garrett olha para ele e segue o seu exemplo.
— Eu também — diz rapidamente.
A minha reação instintiva é voluntariar-me para tomar conta de Garrett.
Para me assegurar de que ele não se afasta outra vez, nem se mete em
problemas. Mas paro. Ultimamente, o meu irmão não nos meteu em
problemas nenhuns. Talvez lhe deva conceder um pouco mais de espaço. Um
pouco mais de confiança. E, se ele está a tentar contribuir para algo maior do
que ele próprio, não deveria permitir-lhe tal dignidade? Por isso, baixo a
minha guarda de irmã mais velha, digo a Garrett para obedecer a Charity e
junto-me a Jacqui, Kelton e ao alegre motard gigante para atestar a pickup.
Estou deitada na minha cama improvisada, os olhos bem abertos. Pelo menos
acho que estão. Não tenho energia para dormir ou para ficar acordada. Por
isso, dou voltas, mergulhando e emergindo da inconsciência, num delírio de
ansiedades que assombram ambos os estados. Penso em Jacqui. Na arma.
Nos meus pais. Tudo misturado com pesadelos de saqueadores que pilham a
autoestrada como os que assaltaram a casa de Kelton — liderados por Hali,
da minha equipa de futebol, e pela mãe dela, que tem quatro metros e meio de
altura e rouba a água de toda a gente. Depois começa a chover sangue e
Kingston está lá, a lamber tudo. A chuva dá lugar ao som de batidas… Os
meus olhos abrem-se de repente. É o Henry, e está de pé, do lado de fora do
automóvel, a bater na janela meio aberta. Ainda está escuro. Não sei se será
perto da meia-noite ou mais próximo da madrugada.
— Estavas a falar enquanto dormias — diz. — Conseguia ouvir-te do meu
automóvel.
— Oh. Desculpa. — Para ser sincera, fico satisfeita por ele me ter
acordado. Mesmo cansada como estou. Prefiro-o às outras alucinações, por
isso abro a porta e saio, espreguiçando-me.
— Já reparaste que está a nevar?
— Como?
De facto, flocos de neve caem suavemente à nossa volta. Mas devem estar
mais de trinta graus. Agora sei que o mundo enlouqueceu.
— Mas não os apanhes com a língua — diz Henry. — Não me parece que
saibam muito bem.
Apanho um na mão e esfrego-o entre os dedos. É cinza.
— Os fogos rasteiros aumentaram de dimensões — diz-me. — Neste
momento, são já fogos florestais por direito próprio. É bastante para leste,
mas os ventos de Santa Ana estão a trazer a cinza na nossa direção.
Enquanto olho à nossa volta, os veículos começam a ficar com uma fina
camada de pó cinzento.
Apoiamo-nos ao lado do meu Cadillac, vendo a «neve» a cair.
— Está tudo tão calmo agora — digo. — Quase nos faz esquecer do que
anda por aí.
— Não há nada por aí a não ser pessoas — realça Henry.
— As pessoas podem ser monstros. Quer seja apenas pelas suas ações,
quer seja por realmente o serem, não importa. O resultado é o mesmo.
Henry encolhe os ombros, como se isso não o incomodasse. Pergunto-me
se será realmente tão despreocupado em relação a isto, ou se estará apenas a
montar uma encenação para mim.
— Por vezes, temos de ser monstros para sobreviver — diz.
Abano a cabeça perante tal ideia, depois faço uma careta devido à dor que
o movimento da cabeça me provoca.
— Nunca conseguiria ser esse tipo de monstro — digo-lhe. —
Independentemente do que pudesse acontecer.
Em vez de comentar, Henry permite que um «floco de neve» aterre na
palma da sua mão, estudando-o por alguns instantes.
— Queria pedir-te desculpas — acaba por dizer —, por não te ter dito a
verdade acerca de não ser o tipo que o meu casaco diz que sou, mas, com
tudo o que estava a acontecer, não me pareceu ser o momento certo.
Nenhum pedido de desculpas está completo sem o seu «mas». Bem, pelo
menos está a tentar. Por isso, decido deixá-lo em paz. Sei que é parvo da
minha parte confiar nele, mas decido fazê-lo mesmo assim.
— Eu percebo. A boa educação seguiu o mesmo caminho que a água
corrente — digo-lhe. — Ninguém está a agir como agiria normalmente.
Ele sorri.
— És uma pessoa muito indulgente. — O seu sorriso parece verdadeiro, e
afasto o meu olhar do dele. Pergunto-me se será possível ver alguém corar
sob a luz do luar cor de cinza.
— Na verdade, não — digo. — Simplesmente não guardo rancor. — O que
não é completamente verdade; tenho muitos rancores. Mas, neste momento,
mantê-los seria um desperdício de energia valiosa.
— Mas tu és clemente — insiste. — Deixaste-me vir convosco, mesmo
depois de ter adquirido a carrinha do teu tio. E parece que começas a perdoar
à Jacqui por… bem, simplesmente por ser a Jacqui. Até perdoaste ao Kelton
depois de toda aquela cena com o drone.
Concentro-me naquela última parte.
— Desculpa?
— Tu sabes. O facto de ele olhar pela tua janela com o seu drone?
Mas não sei. Não faço ideia do que estará ele a falar. O meu estômago
começa a encher-se com uma sensação esquisita, gordurosa.
— Quem te disse isso?
— É possível que o Garrett o tenha referido de passagem. Mas não o metas
em problemas. Só falo nisso para acrescentar provas ao meu argumento
acerca da tua natureza clemente. — Depois sorri. — Eu fingi ser o capitão da
equipa de debate, sabes.
Mas, neste momento, não me sinto indulgente de todo. Sinto-me parva. E
envergonhada. E violada. O meu rosto deve estar a assumir uma tonalidade
vermelha muito mais visível, porque Henry diz:
— Espera… quer dizer que não sabias?
Porque devo eu sentir-me envergonhada? Kelton é que foi sinistro! E, sem
pensar duas vezes, abandono Henry e avanço intempestivamente para Kelton,
no seu pequeno e estúpido automóvel, batendo-lhe à porta, pontapeando-a,
até ele levantar a pavorosa cabecinha ruiva e a abrir.
— O que é? O que foi? O que se passa?
— Soube-te bem, Kelton? — rosno. — Soube? Foi divertido? Foi tudo o
que estavas à espera que fosse? — Sei que, no meio de tudo o que se está a
passar, esta não é a nossa principal prioridade, mas sinto-me como se fosse.
Parece-me importantíssimo.
— O quê? De que estás a falar? — gagueja.
— Usaste ou não o teu drone para me espiar?
Ele hesita. É toda a resposta de que preciso. Empurro-o de novo contra o
automóvel.
— És um sacana! Miserável! Fedorento!
— Alyssa, isso foi no oitavo ano!
— NÃO existe um prazo legal para se ser um verdadeiro IDIOTA!
— Só o fiz uma vez!
— Não interessa quantas vezes o fizeste! O facto é que fizeste!
— Alyssa…
— Não digas o meu nome! — grito-lhe. — Nem sequer o penses. Nunca!
Afasto-me dele intempestivamente, porque sei que, se ficar, vou continuar
a gritar, e isso irá acordar metade das pessoas que ali estão e fará com que
venham a correr, e não quero fazer disto um caso maior do que já é. Neste
momento, tenho uma batalha a desenrolar-se dentro da minha cabeça. Parte
de mim quer arquivar isto e lidar com a questão quando não estivermos em
crise. O irmão dele está morto. Há mais desafios de vida ou de morte que
ainda temos de enfrentar. No entanto, há uma outra parte de mim que se
recusa a ser silenciada ou ignorada. A parte normal, que não deixa passar um
ato tão inaceitável só porque temos preocupações maiores.
Independentemente de tudo o mais que se esteja a passar, tenho todo o direito
de sentir o que estou a sentir!
Regresso ao meu veículo. Tenho sede e estou furiosa, e acho que afinal
talvez seja preferível enfrentar os pesadelos a isto.
Henry surge à janela.
— Alyssa, desculpa, não queria perturbar-te…
— Bem, fizeste-o! — riposto. Depois sinto-me culpada. Por isso falo num
tom um pouco mais gentil. — Sei que não devia culpar o mensageiro, mas é
difícil não o fazer.
— Compreendo. — Depois pousa a mão no puxador da porta. — Posso
entrar?
Considero a questão. Mas, neste momento, quero manter toda a
humanidade ao largo.
— Vemo-nos de manhã — digo-lhe.
— Está bem — diz ele. — Dorme bem.
Mas ambos sabemos que há zero hipóteses de que isso aconteça.
PARTE QUATRO
REFÚGIO
DIA SEIS
QUINTA-FEIRA, 9 DE JUNHO
30) KELTON
Alyssa não fala comigo, Garrett não olha para mim, e Jacqui parece achar
tudo isto divertido.
— Somos apenas uma família feliz e disfuncional — diz ela.
Henry não diz nada, mantendo um sorriso arrogante por trás do volante.
Garrett confessou-me aquilo que contou a Henry, e Henry não perdeu
tempo a transformar a informação numa arma para usar contra mim. Ocupo a
minha mente a pensar em todos os golpes dolorosos que posso infligir a
Henry quando chegarmos ao refúgio. Deslocar-lhe o outro ombro, partir-lhe o
braço, dar-lhe um pontapé na rótula. Conheço os golpes e estou bastante
confiante de que seria capaz de os executar. Basta apenas que ele me dê uma
razão. Expor perante Alyssa os meus disparates de miúdo do segundo ciclo
devia ser razão suficiente, mas isso foi apenas o meu karma a virar-se contra
mim. Por muito que queira, não posso aplicar um golpe desses a Henry
enquanto ele não revelar ser o perigo, claro e iminente, que desconfio que
seja. Mas não posso agir com base num pressentimento. Em especial, quando
Alyssa confia muito mais nele do que em mim.
Já passou meia hora desde que deixámos a pequena comuna de Charity, na
autoestrada. Limpámos o nosso pequeno acampamento de madrugada,
dobrámos os lençóis de linho e devolvemo-los. Soube bem dobrar aqueles
lençóis. Senti-me decente. É engraçado que essa já tenha sido a tarefa de que
menos gostava. Despedimo-nos de alguns dos amigos que fizemos durante a
nossa breve estadia, como Max, o motard habilidoso. O Anjo da Água
despediu-se de nós com mais alguns daqueles pães de ló de marshmallow e
depois distribuiu abraços. Apertado nos seus braços senti, de uma maneira
esquisita e infantil, que não queria largá-la.
Sei que Alyssa não queria partir. Na verdade, fiquei surpreendido por ela
não ter decidido ficar, só para se ver livre de mim. Quer dizer, teria recebido
água, ali; ou pelo menos recebê-la-ia quando estivesse suficientemente
desidratada. Talvez não suportasse a ideia de eu chegar ao refúgio e receber
água antes dela; ou talvez não quisesse separar-se de Henry. Porquê dar-me
ao trabalho de lhe partir um membro? Podia bater com a palma da mão no
nariz dele e enfiar-lhe o osso nasal para dentro do cérebro.
Tivemos de voltar a colocar a caixa de ÁguaViva nas traseiras da carrinha,
para termos espaço para todos no interior da cabina — algo difícil de fazer
sem levantar suspeitas. Houve uma discussão sussurrada quanto a devermos
ou não retirar algumas garrafas para bebermos de imediato — e, desta vez,
até eu estava disposto a fazê-lo… mas não tínhamos forma de abrir a caixa
sem revelar a Charity e aos seus companheiros da autoestrada que tínhamos
água.
— Se descobrirem que a temos, já sabem o que irá acontecer — disse
Jacqui. — Vai declará-la propriedade da comunidade, dividi-la pelos seus
seguidores e lá se vai o nosso fornecimento de emergência.
Estava à espera de que Alyssa objetasse, porque ela é a única, entre nós,
suficientemente altruísta para concordar com isso. Mas não o fez. Talvez a
sua raiva em relação a mim se tenha espalhado ao resto do mundo.
Concordámos que devíamos encostar e abrir a caixa quando estivéssemos
suficientemente longe, mas, agora que estamos em movimento, Henry
recusa-se, de todo, a parar.
— Estamos quase lá. Porquê parar agora? Podemos aguentar mais uma
hora, certo?
— Sim, podemos esperar — diz Garrett, que, de súbito, quando ninguém
estava a ver, se transformou no cãozinho de Henry.
E, como ninguém quer mostrar menos autocontrolo do que um miúdo de
10 anos, todos aceitamos.
— Mas, se demorar mais de uma hora, dar-te-ei pontapés na cabeça até
parares a carrinha e nos dares água — anuncia Jacqui. Eu ficaria feliz se ela
começasse já a dar-lhe pontapés na cabeça, mas guardo esses pensamentos
para mim.
Olho pela janela do veículo. Há uma neblina que paira no ar, espessa e
cáustica. Todo o Sul da Califórnia está coberto pelo fumo dos incêndios
descontrolados. A madrugada é de um carmesim furioso e o Sol — que
entretanto se ergueu o suficiente para espreitar por detrás das montanhas — é
quase bordeaux, parecendo-se mais com uma lua de sangue do que com o
Sol.
Esta manhã, não pusemos música a tocar no rádio. Em vez disso, saltámos
das estações por satélite para as normais. A maior parte das estações de rádio
ou estão desligadas ou ativaram a rede de transmissões de emergência, pelo
que dá a mesma coisa em quase todo o lado. A maioria das coisas já nós
sabíamos. Os centros de evacuação estão cheios — as pessoas estão a ser
levadas diretamente para as instalações suplementares, blá, blá, blá.
Continuamos a ouvir a transmissão, porque preciso de saber o que se passa
com os incêndios. Três lavram longe, a leste — um deles está a bloquear por
completo a estrada para o lago Big Bear. Dois ardem em Castaic, mais de
oitenta quilómetros a oeste da nossa posição atual, ameaçando o acesso ao
lago Castaic — para onde se dirigem milhões de habitantes de Los Angeles.
Um relato fala sobre a chegada de ajuda às praias, uma vez mais, durante o
dia de hoje, mas não há como saber qual será o sucesso desta segunda vaga.
Imagino a Segunda Guerra Mundial e as forças americanas a tomar de assalto
as praias da Normandia, mas com água em vez de armas. Uma operação
assim demoraria meses a ser organizada. O que quer que estejam a planear
para hoje, está condenado a ficar aquém das necessidades.
— Se há água potável na praia, talvez devêssemos ir antes para lá — diz
Henry, não fazendo ideia daquilo por que nós já passámos.
— Limita-te a conduzir — diz Alyssa, sem querer explicar.
Após percorrermos o aqueduto durante cerca de meia hora, saímos dele e
seguimos a estrada na base do monte, suficientemente longe da civilização
para deixarmos para trás a maior parte dos bloqueios. Finalmente chegamos a
um sinal que diz «ESTÁ A ENTRAR NA ANGELES NATIONAL FOREST», com um cartaz
vermelho que afirma: «RISCO DE INCÊNDIO: ELEVADO». Que grande «duh».
Parece que já houve aqui um bloqueio — cones e barreiras plásticas —,
mas foi afastado e o local está deserto. Aparentemente, o pessoal foi preciso
noutro local. Continuamos a conduzir e a estrada começa a serpentear.
— Já não falta muito — digo a toda a gente. — Cerca de quinze
quilómetros mais acima mantenham-se atentos a uma estrada de terra à nossa
esquerda. Conduz devagar, porque é fácil não a vermos.
— Dói-me a cabeça — anuncia Garrett. Como se não tivéssemos todos
dores de cabeça.
— É do fumo — diz-lhe Alyssa, embora, provavelmente, se deva mais à
desidratação. — Tenho a certeza de que haverá Advil no refúgio.
— Há — digo-lhe, mas ela nem sequer dá sinais de me ter ouvido. Sente
nojo por estar no mesmo veículo que eu. Suponho que eu também sentiria.
Claro que se fosse ao contrário, se ela tivesse um drone e olhasse pela minha
janela, me sentiria lisonjeado. A menos que estivesse a rir. Não, acho que me
sentiria igualmente horrorizado. Provavelmente devia deixar que ela me desse
uma tareia e ultrapassasse a questão. Mas suponho que, na nossa atual
situação, as tareias não sejam uma prioridade. E agora sinto-me estúpido por
me preocupar com isso. Como se a minha humilhação significasse alguma
coisa no panorama geral daquilo que estamos a enfrentar. E, no entanto, na
minha cabeça idiota significa. Parvo.
— É aquela a estrada que procuramos? — diz Jacqui, uns quinze minutos
depois.
— Sim — digo, embora, para ser sincero, não esteja cem por cento seguro.
Mas ficaremos a saber em breve. — Vira aqui.
Henry sai da estrada pavimentada e passa para o estreito trilho de terra. A
pickup quase não cabe entre as árvores, e a estrada é irregular. A suspensão
da pickup absorve o pior dos solavancos, mas tem os seus limites. O meu
cérebro chocalha contra as paredes do crânio. Garrett geme, dizendo a Henry
para não ir tão depressa, mas ele não vai nada depressa.
— O que devemos procurar? — pergunta Henry.
— Vamos passar por cima de um cume, voltando a descer para um vale —
digo-lhe. — Acabaremos por chegar a um riacho rochoso, seco. Uma vez lá
chegados, vira à direita e segue o riacho durante cerca de três cliques.
— E o que é exatamente um clique?
— Um quilómetro.
— E depois vemo-lo?
— Não o veremos — digo-lhe. — Essa é a ideia do refúgio.
Dez minutos depois chegamos ao riacho e suspiro de alívio em segredo,
porque significa que aquela sempre era a estrada de terra batida certa. Henry
vira à direita e seguimos o caminho rochoso, evitando os pedregulhos e as
valas ao longo do caminho. Por fim, chegamos a um tronco de árvore de
pernas para o ar, com uma fita vermelha presa nas suas raízes mortas,
nodosas. Só que não foi apanhada por elas, foi ali atada. É o nosso marcador.
— Para — digo a Henry. — Chegámos.
Saímos da carrinha e conduzo toda a gente pelo talude do riacho, e de volta
à floresta. Cerca de noventa metros mais à frente, paro.
— Aqui estamos — digo a toda a gente.
— Aqui, onde? — pergunta Jacqui. — Não vejo nada senão um monte de
árvores.
— É subterrâneo? — pergunta Garrett.
— Não — digo, e fico ali, à espera, perguntando-me quem será o primeiro
a vê-lo.
Alyssa é a primeira. Estava disposto a apostar que seria ela. Arqueja e
aponta.
— Ali! — diz. — É espelhado! — Corre uma dezena de metros em frente,
e os restantes seguem-na. À medida que nos aproximamos, a ilusão
enfraquece, mas só porque o vidro foi ficando sujo.
O nosso refúgio é uma pequena estrutura de forma triangular — as paredes
laterais espelhadas são inclinadas, para poderem refletir as secções mais altas
das árvores em vez de refletirem as pessoas que possam estar a aproximar-se.
É uma camuflagem muitíssimo bem-sucedida.
— Sinto um amor súbito pela tua família gravemente perturbada — diz
Jacqui.
Tal como em casa, há uma chave escondida. Está num buraco de uma
árvore, embora demore alguns minutos a descobrir a árvore certa, depois
mais alguns minutos a vasculhar o buraco, desalojando uma aranha e diversas
outras criaturas desagradáveis que dele fizeram a sua residência. Por fim,
consigo enfiar a mão e tirar a chave.
Avanço em triunfo até à porta — que também é espelhada — e deslizo a
chave para a fechadura de ferrolho.
— Bem-vindos — digo — ao Castelo McCracken!
31) JACQUI
Quantas vidas terei eu gasto até ao fim desde o motim na praia? Estou
habituada a que a vida mude num abrir e fechar de olhos, mas o Fechar da
Torneira fez de cada momento uma ameaça. A forma como vivo agora não se
assemelha a nenhum dos meus dias passados, e aquele vazio que sempre me
provocou é agora um alvo em movimento, fazendo-me perder todo o sentido
de direção.
Mas neste momento não quero saber de nada disso. Tudo o que quero é
poder beber, calma e demoradamente. Não tem de ser nada fresco. Basta que
seja líquido.
O nosso improvável grupo de sobreviventes acidentais ergue-se agora no
exterior do refúgio da família de Kelton, enquanto este faz um grande
espetáculo com a abertura da porta.
— Bem-vindos ao Castelo McCracken!
— Deixa-nos entrar de uma vez — diz Garrett.
Por fim, Kelton roda a chave e abre a porta toda.
Castelo McCracken, o tanas! O refúgio refugiou-se noutras paragens. O
espaço está um caos. Há latas no chão, roupas atiradas por todo o lado.
Caixas de cereais vazias tombadas de lado. O espaço é pequeno, mas parece
ainda mais pequeno com toda a tralha por ali espalhada. É como se um urso
tivesse entrado pelo buraco da fechadura.
— Isto não está certo… — diz Kelton. — Não deixámos isto assim…
— Quando foi a última vez que aqui estiveram? — pergunta Henry,
examinando uma colher coberta de manteiga de amendoim.
— Talvez há um ano? — diz Kelton, como se fosse uma pergunta, mais do
que uma resposta.
Parece-me que sou a única com coragem para declarar o óbvio.
— Houve um arrombamento.
Mas Kelton abana a cabeça.
— Não há qualquer sinal disso. A fechadura estava intacta, e a casa não foi
pilhada.
— A mim parece-me pilhada — diz Garrett.
— Sim — concorda Kelton —, mas não como um ladrão faria.
Explorando mais a fundo, Kelton abre uma porta para um quarto. Duas
camas. Uma está feita, a outra desmanchada. Há livros de banda desenhada
no chão.
Kelton parece ter apanhado um susto de morte.
— Não! — diz. — Não, não, não, não, não!
Volta para trás, afastando-nos do caminho e entrando na cozinha, onde
abre as portas dos armários. Estes estão praticamente vazios.
— Não, não, não, não, NÃÃÃO!
Ajoelha-se, abrindo um alçapão e deixa-se cair lá para dentro. Não
conseguimos fazer mais nada senão assistir ao seu pânico, não querendo
torná-lo nosso. Ele anda de um lado para o outro, lá em baixo. Conseguimos
ouvir o bater de garrafões — e atira dois deles violentamente. Quando baixo
os olhos, vejo lá em baixo um monte de garrafões de plástico. Vazios. Todos
vazios.
— Se não foi um arrombamento, o que raio aconteceu aqui? — pergunto.
— O meu irmão aconteceu aqui! — diz, com tanta angústia nos olhos que
tenho de afastar os meus. — Devia ser aqui que o Brady estava a viver!
Sabíamos que ele tinha perdido o trabalho e deixado os colegas de quarto.
Pensámos que estivesse a viver com a namorada. Nunca nos ocorreu que
pudesse vir para aqui. Onde sabia que havia comida e água suficientes para se
aguentar durante vários meses…
E apercebo-me de que a palavra mais importante aqui é «havia». «Havia» é
a diferença entre a salvação e a condenação.
32) ALYSSA
Isto não é o fim do mundo, digo a mim mesma. É apenas uma falha. E agora
sinto-me grata por Henry ter sido tão teimoso em relação a não abrirmos a
caixa de ÁguaViva. Apesar de todas as forças que foram mobilizadas para
trazer ajuda, ainda tardará até que a cadeia de abastecimento possa fazer face
à procura — e a ÁguaViva ajudar-nos-á a aguentar durante esse tempo.
Haverá pessoas — imensas pessoas — que não serão capazes de aguentar
assim tanto tempo, mas não estaremos entre elas. Graças a Henry. Ele queria
tanto ser o herói. Agora é.
Kelton não para de vasculhar no espaço de armazenamento lá em baixo,
agarrando em todos os garrafões de água de plástico, tentando retirar deles
nem que seja a mais ínfima gota, mas todas as garrafas estão abertas e
qualquer humidade que nelas possa ter restado já há muito secou.
— Não acredito que o Brady fez isto! — chora. — Como pode ter feito
isto? Ele sabe que não pode!
— Sabia que não podia — corrige Jacqui, e eu bato-lhe com força
suficiente para gerar um olhar de aviso, que devolvo com igual ferocidade.
Será que já se esqueceu de como foi terrível a morte de Brady, ou será tão
insensível que nem quer saber?
Jacqui vira-se para a despensa e começa a retirar copos de esferovite de
noodles.
— Bem, pelo menos temos bastante Top Ramen com sabor a frango — diz.
— Basta juntar água quente — resmunga Kelton.
Viro-me para Henry, que tem estado inusitadamente silencioso durante
todo este tempo. Ele dirige-me um sorriso amarelo, fraco e triste, e eu tento
oferecer-lhe um que não seja tão forçado.
— Um pouco de água mineral alcalina com infusão de bagas goji parece-
me bem, nesta altura — digo-lhe.
— Parece, não parece? — diz ele, com uma pequena gargalhada.
— Kelton, desiste — diz Jacqui. — O refúgio é um fiasco. De volta à
pickup.
Kelton está relutante. Continua a vasculhar por entre as mesmas garrafas
vazias, como se fosse descobrir algo diferente. Por fim, desiste. Emerge do
buraco e pontapeia as garrafas, frustrado. Estas emitem um som triste, como
sinos de igreja abafados. Quando partimos, nem sequer fecha a porta — de
que serviria?
Descemos até à pickup, que continua à nossa espera junto ao cepo virado
de pernas para o ar. E Jacqui salta para a parte de trás, afastando as coisas do
caminho, até chegar à caixa. Iça-a e trá-la consigo, pousando-a no chão. Os
cantos estão um pouco amolgados, mas de resto está intacta. Ataca a fita-cola
com as unhas, mas é fita-cola de embalar, espessa, e há múltiplas camadas.
— Alguém tem um canivete suíço? — Vira-se para Kelton. — Então e tu,
Miúdo Sobrevivencialista?
— Sim, há bastantes facas no refúgio — diz, mas nenhum de nós, muito
menos Jacqui, quer esperar assim tanto tempo.
— Eu vou buscar uma — oferece-se Henry, mas a sua oferta é rejeitada.
— Esquece — diz Jacqui, e estende a mão para ele. — Chaves, por favor.
Henry dá um passo atrás, como se na mão vazia dela estivesse uma arma,
mas Jacqui abana os dedos num gesto insistente. Tenho a certeza de que sei
porque não as quer entregar. Mal se apodere das chaves, Jacqui nunca mais
lhas devolverá. No final, ele cede e entrega-lhe as chaves. Pergunto-me
porque não terá assumido a tarefa de abrir, ele mesmo, a caixa — afinal de
contas, a caixa é dele —, mas o pensamento desaparece da minha mente,
antes que tenha tempo de lhe prestar atenção.
Jacqui procura a chave mais afiada e começa a cortar a fita-cola, depois a
serrá-la, por fim a apunhalá-la.
— Vá lá! — diz Garrett. — Despacha-te!
Jacqui resmunga de frustração.
— Que idiota é que fecha uma caixa desta maneira?
Por fim, consegue abrir um buraco suficientemente grande na fita e começa
a trabalhar para o tornar maior, até conseguir enfiar a mão e arrancar uma aba
inteira do cimo da caixa. Depois, com a caixa finalmente aberta, fica parada.
Em vez de enfiar a mão no seu interior e tirar as garrafas de água, limita-se a
olhar para a caixa.
— Oh, só podes estar a brincar! — diz. — Nem pensar!
— O que foi? — pergunto. — O que se passa?
Em vez de responder, ela derruba a caixa e eis que do seu interior tombam
centenas de brochuras brilhantes.
— ÁguaViva! Hidrate-se com Elegância!
Imagens de pessoas magras, felizes, a fazer jogging e de uma cintilante
nascente nas montanhas que suscita, na minha alma, o desejo profundo de
estar naquela fotografia.
A imagem dos panfletos atinge-me como se fosse radiação; ou seja, sinto
uma explosão súbita desta terrível verdade, no entanto sei que nem todas as
suas ramificações são já visíveis. Mas serão. Penso nos garrafões abertos no
refúgio. Depois penso nas pessoas por detrás da vedação do campo de futebol
americano, tão desesperadas que estavam dispostas a vender a alma por um
dedal de líquido. E depois recordo a pressa com que Henry estava quando
trocou a caixa para ter de volta as chaves da pickup. Como queria sair dali tão
depressa quanto possível. Antes que o soldado abrisse a caixa. E percebo que
não se trata apenas de um erro trágico. Henry sabia. Sempre soube. E é por
isso que não fico surpreendida quando Garrett diz:
— O Henry desapareceu!
33) HENRY
Na vida, devemos ter sempre uma estratégia de saída para todas as situações.
Sempre soube isto — vivi de acordo com esta ideia, até —, mas, neste caso
em particular, fui apanhado terrivelmente desprevenido. Nunca me ocorreu
que o refúgio fosse um fiasco. Porque, por muito que não goste do Ruivo
Psicótico, acreditei que ele ia cuidar de nós. É bem feita, por ter baixado a
guarda.
Num mundo perfeito, nunca seria preciso abrir aquela caixa. Seria como o
infame gato de Schrödinger. Enquanto a caixa continuasse fechada, poderia
existir água no seu interior. Pelo menos no que aos outros dizia respeito. E
quem poderia dizer que a sua realidade era menos real do que a minha?
Mas, quando a caixa foi aberta, tudo se tornou irrelevante. Se estivesse
suficientemente calmo, teria escapado e levado a pickup mal me apercebi de
que não havia água no refúgio. Devia ter abandonado toda e qualquer
esperança de ser o glorioso salvador deste grupo desgraçado, impedir que a
minha situação piorasse e pôr-me a andar. Mas hesitei. E essa hesitação
custou-me tudo.
Por isso, agora só me resta avançar aos tropeções pelo bosque, sem
veículo, com uma sede inimaginável. Lembro-me do caminho que tomámos.
Sei o quão distante é da civilização, se é que ainda se lhe pode chamar isso. O
meu plano é simples. Regressarei para junto de Charity e da sua comuna na
autoestrada. Tornar-me-ei uma parte indispensável do seu pequeno coletivo e
receberei água suficiente para sobreviver. Será uma viagem longa e difícil, e,
embora tenha dúvidas sobre se serei ou não capaz de a realizar, tenho de
tentar. É tudo uma questão de tolerância ao risco, e, neste mundo volátil, que
alternativa me resta?
Mas, antes que consiga sequer regressar à estrada, sou lançado ao chão. A
minha primeira ideia é que se trata de um urso — mas depois percebo que é
muito pior.
34) KELTON
As pessoas que tentam fugir não agem da maneira mais inteligente. Por
exemplo: Henry Não-Roycroft. Ele optou por um caminho a direito, para
longe da carrinha — diretamente para o talude do riacho. Mas para regressar
à estrada, teria de virar à direita no pequeno cume — por isso, tal como numa
expedição de caça a quadrúpedes de cérebro pequeno, triangulei o seu
caminho e calculei a hipotenusa.
Raspo os nós dos dedos com força numa rocha, quando o atiro ao chão,
mas a dor que sinto é um tipo de dor boa. Ajuda-me a concentrar a raiva em
quem a merece.
Agora tenho-o preso, com o meu joelho no seu xifoide, tornando-lhe difícil
respirar, quanto mais mexer-se. Rapidamente, agarro-lhe a traqueia com o
polegar e o indicador da mão direita. Já vi fazerem isto em vídeos de
demonstração, por isso conheço a teoria, mas na prática é diferente do que eu
tinha imaginado. A traqueia não fica quieta. Muda de posição e desliza de um
lado para o outro. Demoro um bocado até ter a certeza de que a agarrei. Sei
disso porque não o consigo ouvir a respirar. Com o ar expelido pela força do
meu joelho, bastarão dez segundos para o deixar inconsciente. Vinte
segundos para lhe provocar danos cerebrais. Trinta segundos para o matar. A
minha função de combate está agora ativada. Isso, combinado com a raiva e a
sede, não permite que tenha a certeza de qual dos três resultados prefiro.
— Kelton, basta!
Desperto ao ouvir o som da voz de Alyssa e largo a garganta de Henry,
grato por ela estar ali para tomar a decisão certa por mim, porque sei que
poderia não o ter feito. Henry arqueja e tosse e arqueja outra vez. Mas já não
tem mais vontade de lutar ou fugir. É pouco mais do que uma boneca de
trapos caída no chão, tal como quando lhe desloquei o ombro.
— Chama o teu maldito pit bull! — diz, com a voz roufenha.
— Está tudo bem, Kelton — diz Alyssa. — Ele não vai a lado nenhum.
E por isso largo-o. Não porque queira, mas porque as ordens que Alyssa
me está a dar agora são as primeiras palavras que me dirigiu o dia todo.
Por esta altura, Garrett e Jacqui já chegaram. E parece que não sou o único
com intenções homicidas, porque Jacqui saca da minha arma e aponta-a, à
queima-roupa, à testa de Henry.
— Irei resolver tantos problemas, se puxar este gatilho — rosna.
— Para! — exige Alyssa. — Matá-lo não vai resolver nada!
— Está bem, talvez não, mas vai saber mesmo bem.
— Afasta isso! — grita Alyssa, mas Jacqui não vai seguir as ordens de
ninguém, muito menos dela.
E depois Henry começa a suplicar pela vida.
— Por favor — choraminga. — Lamento. Lamento muito por tudo…
— A única coisa que lamentas é teres sido apanhado… — diz Jacqui, e
provavelmente é verdade.
E depois Garrett, sentindo a sua traição mais profundamente do que todos
os outros diz:
— Fá-lo! Fá-lo, Jacqui!
Alyssa fica em choque, horrorizada.
— Garrett!
— Fá-lo! Ele merece! Ele mentiu-nos! Ele enganou-nos! Ele fingiu ser
nosso amigo!
Se bem me lembro, Garrett também queria que eu puxasse o gatilho,
disparando sobre o zombie da água louro na praia.
Agora uma mancha espalha-se pelo entrepernas de Henry. Fez xixi nas
calças. Não é lá grande mancha — o seu corpo não tem muita água. Não sinto
qualquer pena. Talvez venha a sentir, se Jacqui lhe der um tiro. Neste
momento, nem por isso.
Jacqui olha para Garrett, quase tão surpreendida por aquela explosão
quanto Alyssa. Depois liberta o clipe e dispara a bala que já estava na câmara
para o céu. O tiro ecoa para trás e para a frente entre as montanhas à nossa
volta.
— O que se passa contigo? — grita Alyssa.
— Se não a tivesse disparado para o céu, estaria agora no crânio dele —
diz Jacqui.
— O mais provável é que estivesse no chão, mesmo atrás do crânio dele —
realço, por ser tão à queima-roupa.
Jacqui sai disparada, e Alyssa lança um olhar furioso a Garrett.
— Vai com ela. Assegura-te de que não faz nada de idiota.
— Como se eu a pudesse impedir.
Alyssa sustém o olhar do irmão, e sei o que ela está a pensar. Estás
danificado, Garrett? Será que tudo isto te danificou, mais do que a nós? E se
a arma estivesse nas tuas mãos, o Henry ainda estaria vivo?
— Vai de uma vez — diz ela.
Agora sou só eu, Alyssa e Henry. Ele recuperou o suficiente para poder
fugir, mas nem sequer tenta, porque sabe que o derrubarei de novo e ele tem
um medo de morte de mim. É engraçado, mas nunca ninguém pensou
realmente em mim como uma ameaça legítima. Nunca ninguém me chamou
de pit bull. Na sua maioria, os miúdos como Henry ou me ignoravam ou me
viam como uma piada. Mas agora sou Kelton, o Intimidador. Se sobreviver a
isto, vou mandar fazer uma t-shirt.
— Só quero saber porquê — diz Alyssa.
Henry não consegue olhar para ela. Ótimo. Não merece continuar a olhar
para ela.
— Se eu não tivesse nada para oferecer, vocês ter-me-iam deixado em
Dove Canyon, para morrer com os outros todos!
— Mentiste!
— Eu nunca disse que havia água naquela caixa. Vocês é que presumiram
isso.
Alyssa parece capaz de lhe dar um pontapé. Ver aquela expressão no rosto
dela é a mais doce vingança. Quase tão bom como se ela lhe tivesse, de facto,
dado um pontapé. Mas, como não o faz, decido atormentá-lo eu um pouco.
— Se mudarmos de ideias, há uma pá no refúgio — digo. — E o solo, aqui
no cume, é suficientemente macio para escavarmos uma campa…
— Eu compenso-vos! — suplica Henry. — A todos. Prometo.
— Cala-te de uma vez, Henry — diz Alyssa. — Ou juro que sou eu quem
vai buscar a pá.
35) ALYSSA
36) KELTON
Doem-me os pulsos, por causa dos atilhos de plástico que me cortam a pele.
O que pensam eles que farei, se me libertarem as mãos? Que estrangularei
alguém? Bem, podia fazê-lo. Agora.
Estou encostado ao lado direito da porta. Podia tentar abrir a tranca,
quando ninguém estivesse a olhar, abrir a porta e lançar-me para o exterior,
mas de que serviria isso? Além disso, tenho quase a certeza de que a
segurança para crianças está ativada. Não, o meu destino está ligado a todos
os outros elementos desta pickup. Até ao momento em que não esteja. Tenho
de manter a calma, porque existirão sempre oportunidades. Mesmo quando
todas as opções parecem perdidas, a sorte pode mudar a qualquer momento.
Tenho de estar pronto para aproveitar o momento quando isso acontecer.
39) KELTON
Onde estão, mãe e pai? Têm tanta sede quanto nós? Acho que vou morrer.
Mas se já estiverem mortos, não tenho tanto medo. Só que tenho medo —
mas não terei tanto se estiverem lá e se estiverem à minha espera. E se houver
água.
Ou será que a sede nos segue até aí? E se este anseio parvo por algo fresco
e molhado não desaparecer, mesmo depois de morrermos? Era capaz de
engolir um rio, neste momento. Podia beber as cataratas do Niágara.
Tenho os olhos abertos e doem-me quando os fecho, e doem-me quando os
volto a abrir. Os cantos por onde as lágrimas saem parecem ter sido espetados
por alfinetes, de tão secos. Por isso semicerro os olhos, tentando não os abrir
demasiado. Vejo o para-brisas e penso, por um momento, que é um ecrã de
televisão e que estou apenas a ver televisão. Tudo isto não passa da vida a
fingir de outra pessoa. É como se tivesse adormecido à frente da televisão
com os olhos abertos. E é uma boa sensação. E, por isso, deixo que a
sensação se estenda até parecer um bocadinho mais verdadeira e eu me sentir
um bocadinho melhor.
Há pessoas a falar, mas não acho que alguém esteja a dizer alguma coisa, e
é por isso que sei que comecei a sonhar — mas também continuo acordado.
Não sei o que isso significa, mas depois penso que talvez, só talvez, seja
assim que nos sentimos quando nos começamos a transformar em zombies da
água.
41) ALYSSA
Não penses nisso. Obriga-te a não pensar nisso. Lembro-me de ter ouvido
algures que a mente humana só é capaz de manter três coisas no seu
pensamento consciente a cada momento. E, se preencher esses três espaços,
não pensarei na sede que sinto.
Penso no reservatório. Não, porque isso me irá fazer pensar na água que
não tenho. Penso na escola e naquele último trabalho de casa que nunca
cheguei a fazer. Em Biologia. Mitose. Meiose. Síntese proteica. Tudo isso
exige água. Sem sucesso.
Tema 1: Futebol. Estou a correr em direção à baliza. Passo para trás e para
a frente. E, maravilha das maravilhas, Hali passa-me de facto a bola em vez
de ficar com ela. Bom. Bom.
Tema 2: Geografia. Penso nos estados. Nos países. O meu pai comprou-me
um livro de pintar, de geografia, quando descobriu que o idiota do sistema
escolar californiano tinha decidido que não precisavam de nos ensinar
geografia. Um livro de colorir? A sério? E, no entanto, foi espantoso. Eu
achava que estava a procrastinar quando, na realidade, estava a memorizar a
geografia do mundo. A França é verde e parece um homem com uma
barbicha e de nariz no ar. O Egito é um trapezoide amarelo com um ângulo
direito, e parece a pedra basilar de uma pirâmide. A Gronelândia é azul, só
para ser irónica. Portanto, futebol e geografia. Ótimo.
Tema 3: Qual é o tema 3? Espanhol. Si, Español. Pedro tiene la bolsa de
Maria. ¿Donde está el baño? ¡Quiero agua! ¡Por favor, agua, agua, agua!
Isto não está a funcionar.
Viro-me e apercebo-me de que Henry está a olhar para mim. Pergunto-me
em que estará a pensar e depois percebo que não quero saber. Futebol.
Geografia. Espanhol. É tudo aquilo que me importa neste momento.
— Não sou a pessoa terrível que pensam que sou — diz-me Henry. — Se
me tivessem conhecido no mundo real, sei que teriam gostado de mim.
— Mas nunca nos teríamos conhecido, por isso de que importa? — realço.
— Tu vives numa mansão, numa comunidade encerrada atrás de portões e
frequentas uma dispendiosa escola privada. Quais são as hipóteses de que
alguma vez nos viéssemos a conhecer?
— Não é uma mansão — diz ele. — É apenas uma casa. E poderíamos ter-
nos conhecido quando viesses visitar o teu tio. — Olha para o espaço, como
se estivesse a imaginar essa realidade alternativa. — Se nos tivéssemos
conhecido, eu ter-te-ia convidado para um jantar elegante, e teria sido doce e
atencioso, e ouvido tudo o que dizes. E quando não estivesse a ouvir, estaria a
encantar-te com a minha borbulhante inteligência.
— Borbulhante… — ecoa Garrett, carregado de desejo, e sei que está a
pensar em algo fresco com bolhinhas.
— Terias gostado de mim — diz Henry outra vez.
— Eu gostava de ti — recordo-lhe.
Henry suspira.
— No passado. Talvez possa voltar a torná-lo presente.
Não lhe respondo. Neste momento não tenho qualquer interesse em
estabelecer uma ligação com quem quer que seja. A única coisa com que me
quero ligar é com um líquido que deslize pelos meus lábios. Neste momento
era muito mais capaz de me apaixonar por um copo de água do que por um
ser humano.
De súbito, Jacqui para o veículo.
— Já chegámos? — pergunta ingenuamente Garrett. — Por favor, diz-nos
que já chegámos.
— Silêncio! — diz Jacqui, — Estão a ouvir isto? — Baixa o resto do vidro.
O fedor a fumo é mais forte do que antes. Pergunto-me se os ventos terão
mudado na nossa direção. Agora, com as janelas descidas, todos conseguimos
ouvir o que ela ouviu. É música. Alguém está a tocar música!
42) KELTON
Isto pode ser uma coisa muito boa, mas há uma voz dentro de mim — muito
provavelmente a voz paranoica do meu pai — que me diz que tenha cuidado.
Que as coisas que parecem demasiado boas para serem verdade são sempre,
sem exceção, demasiado boas para serem verdade.
— Devíamos ir ver o que se passa — diz Alyssa.
— Eu vou — digo a todos, antes que mais alguém se voluntarie.
— Sempre um escuteiro — diz Jacqui com ar trocista, e, embora esteja à
espera de que ela discuta comigo, acaba por dizer: — Como queiras. Os
restantes ficarão aqui e apreciarão o ar condicionado inexistente.
É uma indicação do quanto a sede a está a afetar, se está disposta a deixar-
me tomar conta da situação. Mas voluntariar-me para isto nada teve a ver
com o facto de ter sido escuteiro. Tem a ver com pôr a cautela à frente da
curiosidade — cautela que, neste momento, tenho muito mais do que
qualquer outro. Sou suficientemente paranoico para manter sob controlo a
minha esperança, e isso pode ser a nossa salvação.
É uma tortura chegar ao cimo do monte, pese embora não seja assim tão
íngreme e fique a uns míseros dez metros do local onde nos encontramos. As
minhas pernas estão fracas e estou tonto, mas consigo lutar contra isso. Por
agora. Mal chego ao cimo, escondo-me atrás de uma árvore e espreito. A
música está mais alta e agora reconheço a canção. É «Cashmere», dos Led
Zeppelin. Aquela batida familiar, implacável e exótica, e, no entanto, um riff
nefasto enche o ar. A voz de Robert Plant uiva por cima de tudo numa
espécie de canto religioso.
Há uma pequena caravana lá em baixo. Velha. Enferrujada. Já lá deve estar
há muito tempo. Isto é um refúgio — reconheço-o de imediato. Não tão
elaborado quanto o nosso, mas ainda assim um refúgio. À sua frente estão
sentados dois homens, em cadeiras desdobráveis. Têm armas — das mais
perigosas —, o que não é de surpreender. Estão a assar coelhos numa
fogueira, ao ar livre. Como é que se pode ser tão estúpido ao ponto de fazer
uma fogueira quando tudo está tão seco? Mas pressinto que as consequências
não são de elevada prioridade para estes homens.
E depois um deles leva uma garrafa de água aos lábios.
O poder do meu desejo é como uma corrente elétrica. É quase impossível
de resistir. Quero lançar-me lá para baixo e agarrar naquela água — embora
saiba que levaria um tiro se tentasse, mas, de alguma forma, isso não
interessa tanto ao meu cérebro de macaco-zombie quanto agarrar naquela
água. Tenho de utilizar cada grama de autocontrolo que tenho para me
impedir de o fazer e contrariar o meu imperativo biológico.
Há aqui algo de errado, diz-me uma voz na cabeça. Procuro algo de
incongruente na cena para confirmar a análise e encontro-o. Porque há uma
carteira no chão, artigos caídos. Não há sinal do seu dono. Sinto que os pelos
da parte de trás do meu pescoço se erguem. Isto não é apenas um refúgio, é
um covil, e temos de nos manter muito, muito distantes. Sabem, já frequentei
bastantes convenções de sobrevivencialismo. No fundo, há dois tipos de
preppers. Primeiro, aqueles como a minha família. Armamo-nos e reunimos
comida e outros bens essenciais, mas apenas para nos protegermos do caos.
Depois, há aqueles que trazem o caos. Esperam que as coisas se desmoronem.
Anseiam pela ausência de lei. Alimentam-se dela. Porque não há nada de
mais entusiasmante para eles do que o momento em que o mundo se
transforma no seu jogo de vida pessoal.
Esses são do tipo que toca música alta no meio do bosque para ser ouvida
por vários quilómetros, só para ver quem atrai. Esses são os lobos que
esperam para ver que tipo de presa aparecerá. Mas, tal como a sua fogueira a
céu aberto, não consideraram as consequências. Porque se outro predador
aparecer, em vez da presa, estes dois podem ser apanhados com um par de
tiros bem disparados.
Um ramo estala, viro-me e vejo Alyssa, que se aproxima por trás de mim.
— Eles têm água! — sussurra. Ela também viu.
— Chiu! — digo-lhe, porque a música está a diminuir. Mantemos o
silêncio, sustemos a respiração até ao início da música seguinte. Não nos
ouviram. Deus do céu, espero que não nos tenham ouvido. À medida que o
som de uma outra música dos Zep começa a tocar, afasto Alyssa para mais
longe.
— Não queremos ter nada a ver com aquela água — digo-lhe.
— Mas…
Não tenho tempo para explicar. Agarro nela pelos ombros. Olho para os
seus olhos raiados de sangue.
— Tens de confiar em mim — digo-lhe.
E ela assim faz. Relutantemente, mas faz. E regressamos juntos para a
pickup.
Jacqui manteve o motor ligado, para que a ventoinha continuasse a
funcionar, embora só esteja a soprar ar quente.
— Temos de sair daqui — digo-lhe, ao subir. — Não faças demasiado
barulho com o motor. Segue tão silenciosamente quanto possível.
— Porquê?
— Digo-te mais tarde — respondo —, mas temos de ir AGORA.
Por um momento, penso que Jacqui poderá ceder e aceitar a minha
avaliação da situação, mas Alyssa sente que há necessidade de explicar. Não
é disso que precisamos neste momento. Aquilo de que precisamos é de
velocidade e ocultação.
— Estão uns tipos lá em baixo. O Kelton acha que podem ser perigosos.
— Têm água? — pergunta Jacqui.
Alyssa hesita, e isso diz aos outros tudo aquilo de que precisam de saber.
Jacqui abre a porta e sai da carrinha. Ainda que eu seja capaz de resistir ao
meu impulso zombie, Jacqui é toda ela impulsos, e consigo vê-la a
transformar-se. Ponho-me à frente dela antes que possa cometer o erro que a
irá matar.
— Estamos talvez a uma hora do reservatório — recordo-lhe. — Teremos
toda a água de que precisamos.
— Parece-me que estes tipos são um pássaro na mão — diz Jacqui. — Por
isso obriguemo-los a partilhar.
— Não compreendes? — silvo. — Não são do tipo que partilha e têm
armas maiores e piores do que a minha Ruger!
E, de súbito, uma voz entra na conversa. Uma que tem estado muitíssimo
silenciosa.
— Alyssa… não me sinto bem. — Garrett ergue-se fora da pickup. Oscila,
por um momento, como se estivesse no convés de um navio agitado pela
tempestade. Depois revira os olhos, os seus joelhos cedem e ele cai.
Alyssa corre para ele. Ajudo-a a pegar-lhe e volto a colocá-lo dentro do
veículo. Henry desvia-se do caminho para que possamos deitar Garrett no
banco de trás.
— Acho que está bem — digo a Alyssa, que se esqueceu de tudo com
exceção do irmão. — A sua pressão sanguínea deve estar baixa e ele
levantou-se demasiado depressa, só isso. Só tem de se voltar a deitar durante
um bocado. — Espero ter razão.
É então que me apercebo de que algo mudou. Demoro um instante a
perceber o que se passa. A pickup já não faz barulho. O motor foi desligado.
Não é só isso: as chaves desapareceram. E com elas Henry.
43) HENRY
Fico com Garrett, não querendo deixá-lo nem por um segundo. Kelton sai a
correr para localizar Henry, enquanto Jacqui tenta, desesperadamente, fazer
uma ligação direta na pickup — mas não está a funcionar.
— Os veículos velhos são fáceis — diz. — Mas os mais recentes têm um
maldito chip de verificação digital, e acho que não há como contorná-lo!
Sei que é algo terrível de se dizer, até de pensar, mas, neste momento,
gostava que Jacqui tivesse disparado sobre Henry quando teve oportunidade
para isso. Porque haveria ele de levar as chaves? Em que estaria a pensar?
Depois, os dois homens do refúgio ferrugento saem do bosque à nossa
frente — e sei onde Henry foi… e o que estava a pensar quando lá foi.
— Olá! — diz o mais alto dos dois. — Estão a ter problemas com o
automóvel?
Apesar da saudação amigável, não há neles mais nada de amigável. De
perto, estes homens são intimidantes, e são-no intencionalmente. São
musculosos. Parecem estar, talvez, na casa dos 30, embora tenham a pele
estragada de uma maneira que torna difícil dizê-lo com toda a certeza. O mais
baixo tem os braços completamente tatuados. E não são tatuagens artísticas,
são feias. Palavras escrevinhadas e símbolos, e todos na mesma tinta preta
azulada. O mais alto tem a cabeça rapada e uma cicatriz que lhe corta, na
diagonal, parte do couro cabeludo. Dizem-nos sempre que não devemos
julgar as pessoas pelas aparências, mas não há nada de enganador nestes dois.
Algumas pessoas não têm imaginação suficiente para fazer outra coisa que
não seja abraçar o estereótipo e deixar que este as defina. Estes homens têm
vidas violentas e têm todo o gosto em revelá-lo ao mundo.
— É fácil perderem-se quando saem da estrada — diz o da cabeça rapada.
— É isso que estão? Perdidos?
Olho rapidamente à minha volta. Kelton ainda não regressou da sua busca
por Henry. Sou apenas eu, Jacqui e Garrett, que continua inconsciente no
banco de trás.
— Não queremos problemas… — digo, embora, pelo canto do olho, veja
Jacqui pronta para todo o tipo de problemas.
— Isso é bom, isso é bom — diz o tatuado. — Também não queremos
problemas. Mas tenho de vos pedir que abandonem a nossa propriedade.
— Desculpem? — diz Jacqui.
O tipo das tatuagens ergue o porta-chaves do meu tio.
— Acabámos de o comprar — diz. — O vosso amigo vendeu-no-lo por um
bom gole de água.
O careca ri, quando vê a expressão no rosto de Jacqui e no meu.
— Sim, despejámo-la nas mãos dele e ele bebeu-a toda. Parte pingou-lhe
para o sapato, por isso descalçou-se e lambeu a borracha até ficar seca. A
coisa mais estranha. Depois partiu, montanha abaixo, com um sapato calçado
e outro descalço. Miúdo engraçado.
E penso como é injusto que, dos cinco, Henry tenha sido o único a beber
água. Provavelmente o suficiente para sair vivo desta floresta.
— Vou-vos pedir mais uma vez — diz o das tatuagens. — Afastem-se da
nossa propriedade. — E saca de uma arma que não é para brincadeiras.
Ele não vai usá-la, digo a mim mesma. É para fazer valer a sua vontade.
Como tudo em relação a estes dois, tem por objetivo ser intimidante. Mas não
cederei a intimidações.
— Vamos até ao reservatório de San Gabriel — digo-lhe, sem me afastar
da porta. — Deixem que lá cheguemos e depois podem ficar com a pickup.
O das tatuagens abana a cabeça.
— O negócio já está feito. Não há mais nada para conversar.
— Espera — diz o da cabeça rapada. — Não sejamos apressados. — E
desliza os olhos por mim, observando-me de alto a baixo como se eu fosse
um objeto a leilão.
É então que Jacqui avança. Atira-se ao das tatuagens, tentando agarrar a
arma, mas ele é rápido. Usa nela golpes como os que Kelton usou em Henry
— mas este tipo é mais forte, mais rápido. Os golpes são-lhe intrínsecos,
fazem parte da sua natureza. Jacqui não tem qualquer hipótese. Ele usa o
próprio impulso de Jacqui contra ela, fá-la girar como se a estivesse a
conduzir num swing, e força-a para o chão, puxando-lhe o braço num ângulo
que não é natural, deixando-a de joelhos, fazendo caretas e resfolegando de
dor.
— Sê simpática — diz ele, e não lhe larga o braço, o que a mantém
incapacitada.
Entretanto, o da cabeça rapada não tira os olhos de mim. Aproxima-se.
— É uma pena, para ti, que o teu namorado te tenha vendido para se
salvar.
— Ele não é meu namorado — digo, por reflexo, mas preferia nada ter
dito.
Porque o careca diz:
— Melhor ainda. — E continua a aproximar-se.
Tento dar-lhe uma joelhada na virilha, e ele reage avançando, encostando-
se a mim, empurrando-me contra o lado da carrinha, e não deixando qualquer
espaço para o meu joelho.
— Podíamos partilhar a água convosco, se agissem de um modo um pouco
mais civilizado…
Mas, tendo em conta a maneira como se encosta a mim, sei que a sua ideia
de civilizado não é a mesma que a minha. Sinto o cheiro da sua respiração.
Cigarros e Doritos. Acho que não vou voltar a comer Doritos até ao resto da
minha vida. Tento lutar, mas estou agora tão fraca, devido à desidratação, que
é inútil. Nunca me senti tão indefesa, e é uma sensação pavorosa, pavorosa.
Porque me apercebo de que ele pode fazer o que quiser comigo e não serei
capaz de o deter.
— Não preocupes a tua cabecinha linda — diz-me baixinho. — Vamos
voltar para o nosso acampamento e vai ficar tudo bem.
Depois, de repente, está ali Garrett, a saltar da carrinha e a agarrá-lo.
— Afasta-te da minha irmã!
Garrett morde o braço do homem que me está a agarrar — e esta explosão
de energia deve ter-lhe concedido uma força sobre-humana, porque a sua
dentada é como a de um tubarão, deixando uma ferida ensanguentada, aberta.
O da cabeça rapada grita de dor e empurra Garrett para o chão. Tento
aproveitar o momento para me libertar, mas ele prendeu-me de tal maneira
que continuo sem me conseguir mexer.
— Meu merdinhas, o que fizeste?
Depois, o das tatuagens olha para o sangue que jorra do braço do amigo e
vira-se, apontando a arma a Garrett.
— Nããão! — grito…
E o mundo termina com um disparo.
45) JACQUI
Vejo o que está a acontecer. Vejo tudo e não o posso impedir. Nem sequer
me consigo levantar, porque o maldito sacana das tatuagens me torce o braço
sempre que me tento mexer. Tudo o que posso fazer é chamar-lhe nomes e
ameaçá-lo com as coisas que lhe farei quando me libertar.
Vejo o outro a avançar sobre Alyssa. Vejo-a a tentar impedi-lo. Não ouço o
que ele lhe sussurra, mas não pode ser coisa boa. Depois, Garrett senta-se no
veículo, finalmente consciente, sem fazer ideia do que se está a passar — e,
ao ver a irmã encurralada pelo tipo da cabeça rapada, salta diretamente para o
meio de uma situação que só pode ficar pior.
O da cabeça rapada está a gritar por causa de uma dentada dos diabos e o
idiota tatuado, quase como se fosse um reflexo, aponta a arma a Garrett,
como se estivesse prestes a disparar sobre uma ratazana que vagueou até ao
seu acampamento. E, apesar da dor, viro o corpo, gritando, porque, se
conseguir desequilibrar o tipo, o tiro perder-se-á.
Ouve-se um disparo e, de súbito, os seus joelhos cedem e há sangue no seu
rosto — e também há sangue no rosto de Garrett, mas Garrett não está morto.
E apercebo-me de que o sangue no rosto de Garrett, que lhe pinga da boca, é
da dentada que deu ao tipo da cabeça rapada. Mas o sangue do idiota tatuado
é dele mesmo. Está no chão, com um buraco provocado por uma bala na
testa, logo acima do olho esquerdo. Estremece uma vez, depois fica mole.
E Kelton ergue-se a três metros, de braço esticado, a arma na mão.
O outro homem para, em choque.
— Jesus Cris…
Mas nunca chega a terminar a invocação do seu Senhor e Salvador, porque
Kelton move o braço e volta a disparar, e a bala atinge o tipo no espaço logo
abaixo do nariz. A ferida de saída lança sangue para o rosto de Alyssa. Ela já
estava a gritar, por isso continua. Acho que não faz ideia do que se está a
passar. Provavelmente, tudo o que vê na sua mente é o irmão morto no chão,
porque essa realidade parecia tão grande há um mero instante que persiste,
mesmo depois de se ter alterado. Se ela sobreviver a isto, provavelmente terá
pesadelos com o momento que nunca aconteceu para o resto da vida.
O tipo da cabeça rapada tomba. Levanto-me e Alyssa consegue, por fim,
regressar ao mundo real. Passa por cima do tipo morto e corre diretamente
para Garrett.
— Estás bem? Estás bem? — Limpa o sangue da boca dele, voltando a
confirmar que não lhe pertence.
Garrett faz que sim com a cabeça. E ela abraça-o como as irmãs nunca
abraçam os irmãos, a menos que estes tenham estado perto de serem mortos
com um tiro na cabeça.
Aproximo-me de Kelton, que continua a segurar a arma, os olhos fixos nos
dois homens como se ainda pudessem estar vivos, talvez por terem os
cérebros nos traseiros. Por fim, baixa a arma. Acho que é capaz de começar a
tremer ou ter um qualquer colapso, mas isso não acontece. De todo. Odeio
que ele tenha tido de nos salvar — mas a situação podia muito bem ter sido a
oposta, comigo a salvar o dia. E, por muito que odeie admiti-lo, Kelton —
que teve treino com armas — tem, provavelmente, muito melhor pontaria do
que eu.
Kelton inspira fundo uma vez, depois outra.
— Apanhem as chaves da carrinha, e as armas deles — diz calmamente. —
Depois vamos ao acampamento deles e trazemos a água.
— Bem pensado — digo, apercebendo-me de como este miúdo é diferente
do Kelton que conheci na praia. Não sei ao certo de qual desgosto menos: se
do falhado trapalhão que não consegue disparar uma arma, se do miúdo capaz
de matar dois homens a sangue-frio sem sequer suar.
Bem, já nenhum de nós sua. E também não andamos a duvidar das
decisões uns dos outros. Estamos finalmente naquele ponto de determinação
em que fazemos o que tem de ser feito, seja o que for.
Pelos vistos, apenas o tatuado estava armado. Kelton tira-lhe a arma e
observa-a.
— Desert Eagle com um freio de boca — diz. — Muito melhor do que a
minha. — Reclama-a para si e oferece-me a sua arma. Eu hesito, porque já
não a quero.
— Eu fico com ela — diz Alyssa. Ainda tem o rosto salpicado de sangue.
Decido não lho dizer.
— Tens a certeza? — pergunta Kelton.
Ela acena com a cabeça.
— Ninguém me voltará a colocar numa posição como esta.
— Então e o Henry? — pergunto.
Kelton olha para a sua grande e brilhante arma nova e encolhe os ombros.
— Vou guardar uma bala para ele — diz.
E, por muito que tente, não consigo perceber se está a falar a sério ou não.
46) ALYSSA
Foi diferente do que pensava que seria. Estava à espera de uma sensação
monumental. Como se se abrisse um buraco no universo. Mas não.
Pop! Pop!
Tão simples quanto isso. Agora os dois homens estão mortos e nós estamos
vivos. Eu não estava zangado, como em casa, quando quase virei a caçadeira
contra os nossos vizinhos saqueadores. Não estava assustado, como quando o
miúdo zombie da água, na praia, estava a tentar sugar a água diretamente da
boca de Alyssa. Pop! Pop! Feito. Segue em frente.
Como eu disse, estes tipos estavam a alimentar-se do caos, a viver de
acordo com as regras dos jogos de vídeo. E, num jogo, quando derrotamos
um inimigo, o que fazemos? Ficamos com as armas dele. Que foi
precisamente o que eu fiz. Será por isso que não sinto nada? Porque também
eu, agora, estou a viver segundo essas regras?
Chegamos ao cimo do monte e baixamos os olhos para o acampamento,
descobrindo que a fogueira, sem ninguém que cuidasse dela, ficou
descontrolada. Os arbustos estão a arder. As duas espreguiçadeiras estão a
arder.
E o fogo chegou à arca ao lado deles.
Está a arder, emitindo um cheiro químico e rançoso. A tampa está aberta e
consigo ver pingos de água quando as garrafas de água no seu interior
começam a arder.
— Oh, não! — Alyssa pousa Garrett. — Não te mexas! Volto já!
Eu, Alyssa e Jacqui corremos, tentando chegar à água, mas o fogo é
demasiado quente.
— Maldição! — Jacqui tenta chegar-lhe através das chamas, mas grita,
contorcendo as mãos. Queimou-se. Ainda assim tenta outra vez. A segunda
vez deve ser tão dolorosa que ela se afasta, uivando de dor. — Não! — grita.
— Não é justo! Não é justo!
— Procurem alguma coisa que possamos usar para puxar a arca do meio
das chamas! — digo.
Mas Alyssa está a olhar para a caravana.
— Pode não ser toda a água que têm — diz. — Vou ver lá dentro.
Contorna a correr o fogo que cresce em direção à caravana. O vento está a
soprar nessa direção. É apenas uma questão de tempo até também ela se
incendiar.
— Está bem, mas despacha-te! — grito-lhe. E começo a procurar um ramo
suficientemente grande para o estender sobre as chamas e puxar para o
exterior a arca em brasa.
48) ALYSSA
Abro a porta da caravana. Não cheira nada bem aqui. Não estava à espera que
cheirasse. Não parece muito diferente do refúgio de Kelton, por dentro.
Caixas de comida e roupa suja. E algo de que não estava à espera, de todo.
— Benji, és tu?
Sigo a voz até ao quarto da caravana. Está lá uma mulher. Velha. Doente.
Com um vestido de trazer por casa, florido. Chinelos de quarto cor-de-rosa.
Fita-me com desconfiança, puxando as mantas para cima de si.
— Quem és tu? Onde está o Benji? Onde está o Kyle?
— Eles… mandaram-me cá dentro — digo-lhe. — Mandaram-me vir
buscar a água.
A sua desconfiança aumenta.
— Eles já têm a água toda na arca! Quem és tu? — volta a perguntar.
Olho em redor do quarto, recusando-me a acreditar que já não há água
nenhuma ali. Ela vê o que eu estou a fazer e apercebe-se de que as suas
desconfianças são justificadas. Começa a parecer um bocadinho assustada.
— Eles não te mandaram! Sai daqui! Estás a invadir a minha propriedade!
Sai já daqui!
Sei que ela não está armada, porque, se estivesse, já tinha empunhado a
arma. Eu, contudo, tenho uma. Mas não vou ameaçar uma velha com uma
arma. Eu não sou assim.
Os meus olhos viajam por todo o lado, e vejo coisas que não quero ver.
Porque, numa mesinha junto da cama, montou uma versão em miniatura do
que deve ser a prateleira da sua lareira, em casa, onde quer que esta seja.
Estão ali fotografias. Dois rapazes. Idades diferentes. Uma chama-me a
atenção. Uma fotografia esbatida dos mesmos dois rapazes com chapéus do
Rato Mickey, a fazerem caretas para a câmara. E percebo. Benji e Kyle. São
irmãos. Não quero saber isto. Não quero saber que usaram chapéus do Rato
Mickey. Não quero saber que alguém tem fotografias deles na mesinha de
cabeceira. Um daqueles rapazinhos ia disparar sobre Garrett. O outro ia
violar-me. Não ia? Não ia?
— Aquilo é fumo? — pergunta a mulher idosa. — O que se passa lá fora?
— Não pode ficar aqui — digo. — Pode vir connosco. — Mal o digo,
apercebo-me de que, se ela o fizer, vai ver os dois filhos mortos à frente da
pickup.
— Não vou a lado nenhum! — diz ela, sem se aperceber do panorama
geral. — Pareço-te alguém capaz de dar um passeio? — Aperta os lábios e
abana a cabeça. — É melhor que saias daqui, antes que eles voltem. Não há
nada que odeiem mais do que ladrões.
E depois vejo-o! Um copo de plástico com água no parapeito de uma
janela, quase ao alcance da mulher. Ela vê que eu o vejo. Fita-me, é um
impasse… e lança-se para ele.
Eu lanço-me também, mas ela chega-lhe primeiro. Aperta-o contra o peito
e agarro-o.
— É meu! — diz. — Esta água é minha, não é tua!
A água chocalha no copo quando lho tento tirar, entornando-se um pouco.
Não posso lutar por ele, porque, se o fizer, perder-se-á toda.
— Benji! Kyle! Socorro!
Agarro-lhe a mão, tentando impedir que a água se entorne. Ela tira uma das
mãos do copo e tenta empurrar-me. Depois leva o copo aos lábios. Sei que é
toda a água que tem. Toda a água que resta. Se eu a levar, a mulher vai
morrer. Se não a levar, o meu irmão vai morrer.
Por isso, faço algo terrível.
Esbofeteio-a. Esbofeteio-a com força. Isso fá-la perder a concentração, e
consigo deslizar o copo das mãos dela. Entorna-se mais água. Já não resta
muita — vinte mililitros, talvez cinquenta —, não chega para matar a sede de
ninguém, mas talvez seja o suficiente para manter o meu irmão vivo.
Afasto-me dela, recuando.
— O fogo está quase à porta — digo-lhe. — Tem de sair daqui.
Mas, ainda que o faça, de que lhe servirá? Está no meio do nada, sozinha.
Se o fogo não a apanhar, morrerá de sede. Ainda assim, viro-lhe as costas e
parto. Porque fiz a minha escolha. Se ela tiver de morrer para que o meu
irmão viva, levarei a água dela e deixá-la-ei a morrer. Henry tinha razão. Por
vezes, são os monstros quem sobrevive. E agora eu sou o monstro.
49) JACQUI
As minhas mãos! As minhas mãos! Como pude ser tão estúpida! As minhas
mãos! E, ainda assim, quero enfiar os braços através das chamas, para aquela
arca que arde no meio do inferno. Os meus dedos e as palmas, das minhas
mãos já estão inchados, com bolhas, a dor dando lugar a um latejar
entorpecido.
Kelton regressa com um ramo e tenta chegar com ele à arca. Prende a
ponta na beira. As minhas mãos! As minhas mãos! Puxa o pau e a arca move-
se um centímetro. Volta a puxar. Desliza mais um centímetro. Ele puxa com
mais força, e o lado da caixa, meio derretido, abre-se, entornando a água
sobre o fogo.
— Não!
A água fumega e o vapor desaparece. Consigo ver as poucas garrafas que
restam no fundo da arca rasgada a derreter, entornando o seu conteúdo para
nada. Inutilmente. A água nada faz para diminuir o fogo, porque as chamas
voltam a aproximar-se da arca e os lados que restam colapsam. Desapareceu.
Desapareceu toda. E, quando ergo os olhos, vejo até onde o fogo se espalhou.
Os ventos estão a atiçá-lo. Mais um incêndio para juntar aos que já grassam
nas montanhas à nossa volta.
Alyssa sai de repente da roulotte, saltando sobre as chamas que estão
prestes a consumi-la. Traz qualquer coisa nas mãos. O que é aquilo? É um
copo? Segura-o como se fosse algo precioso. E é.
Podia tirar-lho. Podia alcançá-la e tirar-lho. E bebê-lo. Matar esta sede que
arde ainda mais do que as minhas mãos.
Mas não o farei.
Porque sei que a água não é para ela.
Não lha tirarei. Porque, embora tenha visto toda a gente à minha volta a
perder a sua humanidade hoje, apercebo-me de que, neste momento,
finalmente, encontrei a minha.
50) ALYSSA
Jacqui não consegue conduzir. As mãos dela estão inchadas como balões.
Tenta tocar no volante e uiva de angústia. Entre mim e Alyssa, sou o menor
de dois males atrás do volante. Ela ainda não tem a sua autorização de
aprendizagem, mas eu tenho. Apesar da insistência do meu pai de que tenho
de conquistar o direito a conduzir, já me levou a parques de estacionamento
vazios. De acordo com ele, destruí cerca de vinte automóveis imaginários
enquanto tentava navegar por aqueles terrenos. Ainda bem que agora só
tenho de me preocupar com as árvores.
Engato a mudança, com Alyssa ao meu lado — ela fica encarregue do
sistema de tração às quatro rodas, enquanto eu dedico toda a minha atenção à
parte da condução normal.
Avançamos aos solavancos e arranhamos as mudanças. Raspamos nas
árvores. Saltamos violentamente por cima das pedras. Jacqui pragueja de
cada vez que, por reflexo, usa as mãos para se equilibrar. Vejo Garrett pelo
espelho retrovisor. Não parece tão mal como estava antes. Só parece mal.
Como nós.
Estou cansado, agora. Os meus pulmões ardem devido ao fumo que inalei
no acampamento. Monóxido de carbono. Une-se aos glóbulos vermelhos
como se fosse oxigénio, mas, ao contrário do oxigénio, não os abandona.
Estes tornam-se inúteis. É por isso que as pessoas morrem por inalação de
fumo. Ficam sem glóbulos vermelhos disponíveis em número suficiente para
transportar oxigénio até ao cérebro. Ainda estou consciente, por isso sei que,
por muito que tenha inalado, não é suficiente para me matar. Mas há muito
mais coisas prontas para me matar, neste momento. Incluindo a minha
própria condução. É tão difícil manter os olhos abertos! Mas tenho de o fazer.
Ultrapassamos mais um cume e descemos uma encosta. Mas esta encosta é
mais íngreme do que as outras. Eu devia ter olhado para o mapa da
topografia! Eu devia saber isto.
— Cuidado, Kelton! — diz Alyssa.
Carrego no travão e começamos a derrapar. Avançamos por uma
inclinação descendente de grau elevado. Talvez com uns trinta graus. As
rodas quase não têm tração. Os travões são inúteis. Nada vai abrandar a nossa
descida. Tenho apenas de garantir que não batemos nas árvores e nos
pedregulhos.
— Kelton — grita Jacqui —, estás a perder o controlo!
Como se eu não soubesse já. Guino o volante para a direita. Raspamos com
o lado da carrinha numa árvore. Uma curva abrupta para a esquerda.
Saltamos sobre um pedregulho tão grande que ouço algo a raspar por baixo
do chassis. E, por muito inclinada que achasse que era a descida até agora,
esta torna-se ainda mais íngreme. Não há nada que eu possa fazer. A
gravidade apoderou-se de mim. Agarro no volante, preparo-me.
Um bang sonoro. Um flash branco.
Uma dor na minha barriga e no meu peito, como se tivesse levado um
pontapé no estômago.
Arquejo, não consigo inspirar ar suficiente. Talvez o monóxido de carbono
sempre me tenha afetado.
Não, fiquei sem fôlego, mais nada. E os airbags foram acionados. E já não
estamos em movimento.
— Estão todos bem? — ouço Alyssa dizer.
— Não — diz Jacqui, que é a sua maneira de dizer que sim. Garrett limita-
se a gemer e diz-me que sou uma nódoa a conduzir.
Abro a porta ao pontapé. De imediato, sinto o cheiro da gasolina.
— Cuidado — digo a toda a gente. — Acho que rebentámos o tanque do
combustível.
Estamos agora numa estrada. Estreita, mal conservada, mas uma estrada!
— Deve ser a East Fork Road!
Pelo menos é alguma coisa. Contorno a pickup, mas mal se pode chamar
àquilo andar. Estou a arrastar os pés. Dói-me tudo. A minha cabeça parece
prestes a partir-se ao meio como um ovo. Quero tanto deitar-me… Tanto. Só
por um minuto. Mas não o faço. Porque conheço essa sensação. Sei o que
essa sensação quer dizer.
A pickup está acabada. Parece que passou por um demolition derby. Um
pneu rebentou, o outro está completamente de lado.
— O reservatório fica a cerca de quilómetro e meio naquela direção —
digo, apontando para oeste. — Teremos de fazer o resto do caminho a pé.
— Acho que consigo — diz Garrett, o único de nós que bebeu alguma
água em dois dias, mas Alyssa e Jacqui olham para mim como se eu tivesse
acabado de declarar uma sentença de morte.
Jacqui abana a cabeça.
— Não sei se ainda me resta um quilómetro e meio, Kelton.
— Não penses nisso — diz Alyssa. — Limitamo-nos a andar e
continuamos a andar. Mesmo depois de sentirmos que não somos capazes,
continuamos a andar.
Por isso, paramos de falar e começamos a andar. Para oeste. E eu dou por
mim a assumir a dianteira.
Porque tenho uma súbita explosão de energia.
52) ALYSSA
O fogo persegue-nos monte acima. Sempre que olhamos para trás, por muito
que tenhamos subido, o fogo não está mais longe. Mas também não está mais
perto. Está a avançar ao nosso ritmo — o que significa que não podemos
abrandar, nem por um instante, porque, se o fizermos, alcançar-nos-á.
Há agora vento, mas não sopra nas nossas costas. Sopra contra nós, vindo
do cimo do monte.
O fogo está a puxar o ar para baixo, penso. A sugá-lo, a alimentar-se dele.
Tenho, de imediato, uma visão da praia. De como as ondas que chegam
criam uma corrente submersa, puxando para trás a água da costa. Somos
apanhados nesse recuo com uma onda gigante atrás de nós a avançar com
mais força, e a imagem é tão poderosa, e a minha mente está tão
enfraquecida, que fico desnorteada. Os estalos da seiva a ferver e a respiração
rouca das chamas fundem-se num rugido profundo que parece tão assustador
quanto um mar agitado por uma tempestade, e penso, por um momento, que
estou junto à costa, a fugir de um tsunami que tudo consome. Só quando olho
para o meu irmão, que trepa dois passos à minha frente, é que me lembro do
que estamos a fazer e de onde estamos. Mas quem me dera que fosse água
atrás de nós. Mesmo água salgada. Se eu estivesse na costa, beberia até
morrer. Como qualquer outro zombie da água.
Quando começámos a subir o monte, íamos os três lado a lado, mas
Garrett, o último a beber água, ganhou alguns metros de avanço, e agora
Kelton está a ficar para trás.
— Quando chegarmos… quando chegarmos ao… quando chegarmos ao
topo — silva Kelton, respirando laboriosamente e tossindo —, vamos…
vamos virar à esquerda… cortar para o… para o… — Não consegue
encontrar a palavra. — … para o…
— Reservatório — termino por ele.
— Vamos! — grita Garrett. Está ainda mais à frente do que nós, frustrado
por não o conseguirmos acompanhar. — Estamos quase lá.
Mas o cimo do monte parece estar a quilómetros e quilómetros de
distância. Viro-me e vejo que Kelton ficou ainda mais para trás. Apoia-se
num cepo, tentando recuperar o fôlego, enquanto as brasas lançadas pelo
incêndio caem à sua volta como confetes em chamas.
— Kelton!
— Só um… só um…
Volto para trás, para junto dele, cortando para metade a distância entre
mim e o fogo.
— Só um… só um… segundo.
Está tão quente aqui, que sinto que as minhas roupas vão pegar fogo.
Parece que a minha pele seca vai entrar em combustão espontânea.
— Descansar um bocadinho… — diz Kelton. — Só um… só um…
— Não! — grito. A referência à palavra «descanso» leva os meus joelhos a
quererem ceder. Soa tão, tão bem. O rugido das ondas. Descansar. Os dedos
dos pés na areia fresca, fresca. — Não!
Agarro em Kelton, quase o lanço por cima do cepo.
— Tenho de… tenho de… — murmura.
— Tens de te MEXER! — Ajudo-o a levantar-se do chão e inicio o seu
movimento. Não veio até aqui, não viu acontecer as coisas que aconteceram à
sua família, só para hesitar nestes últimos momentos e morrer.
E, de alguma maneira, o facto de pôr Kelton no centro dos meus esforços,
ajuda-me a ultrapassar o meu próprio desejo de me deixar cair.
Continuamos a subir, e apercebo-me de que esta é a minha explosão de
energia. A última que terei antes de não me restar mais nada para dar. Espero
que Kelton aprecie o facto de a ter usado com ele.
Já não consigo ver Garrett, está muito acima de nós, mas ouço-o a chamar
pelo meu nome e concentro-me nisso… até as pernas de Kelton voltarem a
ceder por baixo dele. Desta vez, não está apenas inclinado e a arquejar para
tentar recuperar o fôlego. Está no chão, deitado. Nem sequer se consegue
levantar.
— S… sala segura — diz. — Vão para… vão para a sala segura.
Está a delirar, e não há nada que eu possa fazer quanto a isso. A sede
começou a desligar-lhe o cérebro. Só há uma coisa que me ocorre fazer. Uma
coisa que poderá pôr as suas pernas sem vida de novo em movimento.
— Não te vou deixar ficar aqui! — grito-lhe. — O que significa que, se
não te puseres a andar monte acima, eu também morro. É isso que queres?
Queres que morra por causa de TI?
Os seus olhos remelosos encontram-se com os meus. Uma fagulha cai ao
lado dele, pegando fogo à relva seca. Ele ergue-se sobre as mãos e os joelhos.
Esforça-se por se levantar. Funcionou! Colocar-me no primeiro plano dos
seus pensamentos permitiu-lhe aceder à pouca energia que lhe resta, tal como
quando me concentrei em ajudá-lo — e apercebo-me de que este é o
verdadeiro núcleo da natureza humana: quando perdemos a força para nos
salvarmos a nós mesmos, encontramos, de algum modo, a força para nos
salvarmos uns aos outros.
Finalmente, finalmente chegamos ao cimo do monte. Tenho dificuldade
em acreditar que ainda estou viva. Não me sinto viva. Sinto que morri quase
cem metros mais abaixo e que agora o meu espírito está aqui encurralado,
condenado a assombrar este local, a reviver a subida e a sede e as chamas por
toda a eternidade.
Garrett ergue-se num pedregulho plano, continua sem fôlego a olhar para
oeste. Junto-me a ele. A partir deste ponto alto, conseguimos ver o
reservatório! Está talvez uns quatrocentos metros abaixo de nós! Kelton tinha
razão! Ele tinha razão!
… Mas o fogo intrometeu-se, insidioso, determinado. E agora arde com
toda a sua força entre nós e o reservatório. Como pode a água estar tão perto
e, ainda assim, não sermos capazes de lá chegar?
— Para norte! — digo. — À sua volta! — As palavras quase não se
ouvem. A minha língua é um pedaço de pele curtida na minha boca, as cordas
vocais são papel quebradiço. Ainda podemos subir para norte e ultrapassar o
fogo. Trepar o monte foi a parte mais difícil, descê-lo será mais fácil, não
será? Ainda podemos contornar o incêndio e depois voltar para trás, para o
reservatório.
Mas então olho para Kelton. Está caído de rosto no chão.
— Não!
Avanço na direção dele. Rolo-o. Não consigo ouvir a sua respiração, tal o
rugido das chamas que se aproximam. Por isso, forço os seus olhos a
abrirem-se, como se ver os seus olhos pudesse significar que ele via os meus.
— Kelton! Acorda!
Por fim, ele começa a balbuciar, mas não são palavras, são apenas sons
guturais, estalos e silvos ténues. Os olhos reviram-se e sei que está a poucos
minutos de morrer. E sei que não o posso impedir. E sei que eu e Garrett não
o conseguimos transportar por muito que queiramos.
— Alyssa…?
Viro-me para Garrett, que deu alguns passos para o outro lado do monte.
Para norte. A direção que devemos seguir se queremos viver. Mas quando me
junto a ele, vejo o que ele vê, e tudo fica tão claro quanto a água a que não
conseguimos chegar.
Não há nenhuma encosta daquele lado do monte.
Há um precipício.
Uma queda abrupta — pelo menos quinze metros. Não há outra descida
senão o caminho que tomámos. O que significa que estamos encurralados.
Garrett olha para mim com um tal desespero, que é quase avassalador.
Vejo-o começar a oscilar e a ceder. Os seus ombros ficam um pouco flácidos.
A energia que lhe restava foi-lhe roubada por aquela revelação. Agarro
rapidamente nele e afasto-o da beira, antes que possa cair do penhasco, e
abraço-o com força.
— Vai ficar tudo bem — digo-lhe.
— Não, não vai — diz, debilmente. — Sabes que não vai.
Sei. Mas não o confessarei. Não a ele. Em vez disso, conduzo-o de novo ao
pedregulho plano. Parece um altar. O lugar onde a nossa esperança foi
sacrificada. Garrett vira-se para longe de mim, puxa os joelhos contra o peito,
enrolando-se numa bola. Olha na direção do reservatório e da água que quase
conseguimos alcançar. É a imagem que quer guardar na sua mente. Não a sua
vida, não a nossa família. A memória da água.
O som do fogo que se aproxima é agora ensurdecedor. O céu sobre nós
escurece com o fumo, como se a noite caísse mais cedo.
De súbito, sei o que tenho de fazer.
Ouvi dizer que a pior maneira de morrer é pelo fogo. Não irei dessa
maneira, se o puder impedir. E não deixarei que o meu irmão seja queimado
vivo.
Por isso, agarro na pistola que tem estado desconfortavelmente presa à
minha cintura desde que Kelton ma deu. Quase quis deixá-la na pickup.
Quase a deitei fora quando começámos a subir o monte, por ser tão
desconfortável. Mas algo me disse que não o fizesse. Nunca na minha vida
me senti tão horrorizada e ao mesmo tempo tão feliz por ter nas mãos uma
arma carregada. Escondo-a, para que Garrett não a veja, e ele deixa que eu o
envolva com um braço. Encosta-se a mim. Soluça, mas não correm lágrimas.
— Quero ir para casa — diz Garrett. — Quero que seja a semana passada.
— Também eu — digo-lhe. Foi só há uma semana?
Mais abaixo no monte, uma árvore cai numa explosão de fagulhas que
voam pelo céu, por cima das nossas cabeças. Sementes que irão espalhar o
fogo noutras partes. Levo a arma à cabeça de Garrett, mas não
suficientemente perto para lhe tocar, porque não quero que ele saiba.
— Amo-te, Garrett — digo-lhe, e ele diz-me o mesmo. É algo que os
irmãos e as irmãs nunca dizem uns aos outros até se encontrarem num
momento em que mais nada poderia ser dito. Depois levo o dedo ao gatilho,
sentindo o peso da arma. Mas hesito… e hesito um pouco mais… e depois
Garrett diz, no mais ténue dos sussurros:
— Fá-lo, Alyssa.
Não olha para mim. Não quer ver a arma, nem me quer ver a mim. Por
isso, encosto a boca da arma ao espaço entre o ouvido e o olho, onde o cabelo
é curto e macio.
— Fá-lo. Por favor…
Serei forte, se não por mim, então pelo Garrett. Salvá-lo-ei das chamas. E
depois salvarei Kelton. E depois salvar-me-ei a mim.
INSTANTÂNEO: BOMBARDIER 415 DO CORPO DE BOMBEIROS
DE LOS ANGELES
UM NOVO NORMAL
INSTANTÂNEO: DISNEYLÂNDIA, 8H57, SÁBADO, 25 DE JUNHO