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FICHA TÉCNICA

TÍTULO: Seca
AUTORIA: Neal Shusterman e Jarrod Shusterman
EDITOR: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original Dry© 2018 Neal Shusterman e Jarrod Shusterman.
Publicado por acordo com Simon & Schuster Books For Young Readers, uma chancela
Simon & Schuster Children’s Publishing Division. Todos os direitos reservados.
TRADUÇÃO: Pedro Carvalho e Guerra
REVISÃO: Paula Almeida
DESIGN DA CAPA: Chloë Foglia
ILUSTRAÇÃO DA CAPA: © 2018 Jay Shaw
DATA DE EDIÇÃO E-BOOK: Maio,2020
ISBN: 978-989-773-279-9

EDIÇÕES SAÍDA DE EMERGÊNCIA


Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B
2740-296 Porto Salvo, Portugal
TEL E FAX: 214 583 770
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DEDICATÓRIA

Este livro é dedicado


a todos os que lutam contra
os efeitos desastrosos
das alterações climáticas
AGRADECIMENTOS

Seca foi um projeto maravilhoso no qual colaborámos, e estamos gratos a


imensas pessoas.
Um agradecimento do fundo do coração aos nossos editores, David Gale e
Justin Chanda, e à assistente editorial Amanda Ramirez, por confiarem em
nós para, em conjunto, escrevermos este livro, e por nos guiarem ao longo de
todo o percurso! Toda a equipa da Simon & Schuster nos apoiou de forma
incrível.
Um agradecimento especial a Carolyn Reidy, Jon Anderson, Anne Zafian,
Michelle Leo, Anthony Parisi, Sarah Woodruff, Lauren Hoffman, Lisa
Moraleda, Chrissy Noh, Keri Horan, Katrina Groover, Deane Norton,
Stephanie Voros e Chloë Foglia.
E, claro, também a Jay Shaw, pela capa fantástica!
Agradecemos à nossa agente literária, Andrea Brown, bem como a Taryn
Fagerness, a nossa agente para os foreign rights; aos nossos agentes da
indústria do entretenimento, Steve Fisher, Debbie Deuble-Hill e Ryan Saul,
da APA, e ao nosso gestor, Trevor Engelson, por todo o trabalho que tiveram
a transformar Seca num filme; e aos nossos advogados, Shep Rosenman,
Jennifer Justman e Caitlin DiMotta, por terem conseguido avançar por entre
todos os obstáculos legais que surgiram no caminho.
Agradecemos à equipa do filme — Marty Bowen, Isaac Klausner e Pete
Harris, da Temple Hill, e também a Wyck Godfrey e Jon Gonda, da
Paramount.
Gostaríamos ainda de agradecer ao nosso amigo e colega Elias Gertler, por
acreditar nesta história desde o primeiro momento; a Barb Sobel, pelas suas
capacidades sobre-humanas de organização; e a Matt Lurie, o nosso guru das
redes sociais.
Graças a todos vós, a nossa taça transborda verdadeiramente!
PARTE UM

O FECHAR DA TORNEIRA
DIA UM

SÁBADO, 4 DE JUNHO

1) ALYSSA

A torneira da cozinha faz os barulhos mais estranhos. Tosse e arfa como se


tivesse ficado asmática. Balbucia como se alguém se estivesse a afogar.
Cospe uma vez e depois fica em silêncio. O nosso cão, Kingston, ergue as
orelhas, mas mantém a distância do lava-louça, pois não tem a certeza de que
este, inesperadamente, não ganhe vida — mas não temos essa sorte.
A minha mãe fica, simplesmente, ali, a segurar a tigela da água do
Kingston por baixo da torneira, confusa. Depois fecha a torneira e diz:
— Alyssa, vai chamar o teu pai.
Desde que começou a remodelar sozinho a nossa cozinha, o meu pai tem a
ilusão de ser um grande canalizador. E eletricista também.
O meu pai sempre disse «Porquê pagar fortunas a empreiteiros quando
podemos ser nós a fazê-lo?» Depois agiu de acordo com o que dizia. Desde
então, não tivemos outra coisa senão problemas com a canalização e a
instalação elétrica.
O meu pai está na nossa garagem a trabalhar no seu automóvel com o tio
Manjericão — que tem vivido connosco intervaladamente desde o fracasso
da sua quinta de amêndoas em Modesto. O verdadeiro nome do tio
Manjericão é Herb, mas, algures pelo caminho, eu e o meu irmão começámos
a chamá-lo pelo nome de várias ervas do nosso jardim. Tio Endro, tio
Tomilho, tio Cebolinho e, durante um período de que os nossos pais desejam
que nos esqueçamos, tio Canábis. No final, Manjericão foi o nome que ficou.
— Pai! — grito para a nossa garagem. — Problemas na cozinha.
Os pés do meu pai espreitam por debaixo do seu Camry como os de uma
bruxa malvada. O tio Manjericão está escondido por detrás de uma nuvem
tempestuosa provocada por um cigarro eletrónico.
— Não pode esperar? — pergunta o meu pai de debaixo do veículo.
Mas eu já pressinto que não pode.
— Acho que é importante — digo-lhe.
Ele sai de debaixo do carro e, com um suspiro pesado, dirige-se para a
cozinha.
A minha mãe já não está lá. Em vez disso, ergue-se na passagem entre a
cozinha e a sala. Está, simplesmente, ali, ainda com a tigela vazia da água do
cão na mão esquerda. Sinto um arrepio, mas ainda não sei porquê.
— O que é assim tão importante para me arrastares para fora…
— Chiu! — diz a minha mãe. Ela raramente manda calar o meu pai.
Manda-me calar a mim e ao Garrett o dia todo, mas os meus pais nunca se
mandam calar um ao outro. É uma regra implícita.
Está a ver televisão, o pivô está a tagarelar acerca da «crise da água». Foi o
que os meios de comunicação social começaram a chamar à seca desde que
as pessoas se cansaram de ouvir a palavra «seca». Como quando o
«aquecimento global» se transformou em «alterações climáticas» e «guerra»
em «conflito». Mas agora tinham um novo chavão. Uma nova etapa nos
nossos problemas com a água. Estavam a chamar a isto o «Fechar da
Torneira».
O tio Manjericão emerge da sua nuvem de vapor tempo suficiente para
perguntar:
— O que se passa?
— O Arizona e o Nevada recuaram no acordo de apoio ao reservatório —
responde a minha mãe. — Fecharam as comportas de todas as barragens,
dizendo que precisam da água para eles.
O que significa que o rio Colorado nem sequer chegará à Califórnia.
O tio Manjericão tenta compreender.
— Fechar o rio todo como se fosse uma torneira! Podem fazer isso?
O meu pai ergue o sobrolho.
— Acabaram de o fazer.
De repente, a imagem muda para uma conferência de imprensa em direto,
onde o governador se dirige a um aglomerado de repórteres ansiosos.
— É de lamentar, mas não é de todo inesperado — diz o governador. —
Temos pessoas a trabalhar sem parar numa tentativa de alcançar um novo
acordo com várias agências.
— O que quer isso dizer? — pergunta o tio Manjericão. Tanto a minha
mãe como o meu pai o mandam calar.
— Como medida de precaução, a água de todos os condados e distritos
municipais do Sul da Califórnia será temporariamente desviada para os
serviços essenciais. Mas não posso deixar de salientar a necessidade de
manterem a calma. Gostaria de garantir a todos, pessoalmente, que esta é uma
situação temporária e que não há razões para preocupação.
Os meios de comunicação social começam a bombardeá-lo com perguntas,
mas ele esquiva-se e sai sem responder a qualquer uma delas.
— Parece que a tigela da água do Kingston não foi a única a secar — diz o
tio Manjericão. — Pelos vistos, também temos de começar a beber da sanita.
O meu irmão mais novo, Garrett, que está sentado no sofá à espera que a
televisão regresse à emissão habitual, faz a careta esperada, levando o tio
Manjericão a rir.
— Portanto — diz o meu pai para a minha mãe, sem entusiasmo —, pelo
menos desta vez o problema da canalização não é culpa minha.
Vou à cozinha, para experimentar pessoalmente a torneira — como se
tivesse um toque mágico. Nada. Nem sequer uma gota. A nossa torneira
morreu e não há reanimação que a traga de volta à vida. Tomo nota da hora,
como fazem nas urgências: 13h32min, dia 4 de junho.
Toda a gente se vai lembrar de onde estava quando as torneiras secaram,
penso. Como quando um presidente é assassinado.
Na cozinha, atrás de mim, Garrett abre o frigorífico e pega numa garrafa de
Glacier Freeze, da Gatorade. Começa a bebê-la, mas eu paro-o ao terceiro
golo.
— Põe isso onde estava — digo-lhe. — Deixa um bocado para mais tarde.
— Mas eu tenho sede agora — choraminga, protestando. Tem 10 anos,
menos seis do que eu. Os miúdos de 10 anos sentem dificuldades com as
recompensas adiadas.
De qualquer maneira, está quase a acabar, portanto deixo-o ficar com ela.
Tomo nota do que há no frigorífico. Algumas cervejas. Mais três garrafas de
250 mililitros de Gatorade, uma garrafa de 3,5 litros de leite quase vazia e
restos.
Sabem como, por vezes, não nos apercebemos da sede que temos até
darmos aquele primeiro golo? Bem, de repente, fiquei com essa sensação só
de olhar para o frigorífico.
Foi o mais perto que alguma vez estive de ter uma premonição.
Agora, consigo ouvir os vizinhos na rua. Conhecemos os nossos vizinhos
— encontramo-los ocasionalmente. A única vez que saem quase todos à rua
ao mesmo tempo é no 4 de julho, ou quando há um sismo.
Os meus pais, Garrett e eu saímos também lá para fora, e ficamos todos a
olhar, estranhamente, uns para os outros, em busca de uma espécie de
orientação ou, pelo menos, de uma validação de que isto está realmente a
acontecer. Jeannette e Stu Leeson, do outro lado da rua, os Maleckis e o seu
recém-nascido e Mr. Burnside, que tem, desde que me lembro, 70 anos. E, tal
como esperado, não vemos a família solitária da porta ao lado, os
McCrackens, que, provavelmente, se barricaram no interior da sua fortaleza
suburbana depois de ouvirem as notícias.
Estamos todos ali, de mãos nos bolsos, evitando olhar diretamente nos
olhos uns dos outros, como colegas de turma no baile de finalistas.
— Muito bem — diz, por fim, o meu pai —, qual de vocês chateou o
Arizona e o Nevada?
Toda a gente ri. Não por ser especialmente engraçado, mas por aliviar
alguma da tensão.
Mr. Burnside ergue o sobrolho.
— Detesto dizer «eu já tinha avisado», mas não tinha dito já que eles iam
ficar com o que resta do rio Colorado? — Mr. Burnside abana a cabeça. —
Deixámos que aquele rio se tornasse na nossa única tábua de salvação. Nunca
deveríamos ter permitido que nos deixassem tão vulneráveis.
Antigamente quase ninguém sabia nem se preocupava com a origem da
nossa água. Estava sempre ali. Mas quando o Central Valley começou a secar
e o preço dos produtos agrícolas subiu em flecha, as pessoas começaram a
prestar atenção. Ou, pelo menos, atenção suficiente para se promulgarem leis
e propostas dos eleitores. A sua maioria era inútil, mas permitia que as
pessoas sentissem que alguma coisa estava a ser feita. Como a Frivolous Use
Initiative, que tornara ilegal coisas como atirar balões de água.
— Las Vegas ainda tem água — diz alguém.
O nosso vizinho, Stu, abana a cabeça.
— Sim, mas acabo de tentar reservar um quarto de hotel em Vegas. Um
milhão de quartos de hotel e nem um sequer está disponível.
Mr. Burnside ri pesarosamente, como se retirasse algum prazer do azar de
Stu.
— Cento e vinte e quatro mil quartos de hotel, na realidade. Parece que
muita gente teve a mesma ideia.
— Ah! Conseguem imaginar as filas na A-Quinze para se chegar lá? — diz
a minha mãe, num tom algo amargo. — Eu não queria ser apanhada ali!
E, depois, dou o meu contributo:
— Se estão a desviar o que resta da água para os «serviços essenciais»,
significa que ainda há alguma. Alguém os deveria processar para os obrigar a
libertar uma fração dessa mesma água. Como fazem com os cortes de energia
faseados. Cada bairro tinha um pouco de água todos os dias.
Os meus pais ficam impressionados com a minha sugestão. Os outros
olham para mim com uma expressão que parece dizer «Não é adorável?», e
que me irrita. Os meus pais estão convencidos de que um dia serei advogada.
É possível, mas desconfio que, se for, será apenas um meio para atingir um
fim — embora não tenha a certeza de que fim será esse.
Mas isso não nos ajuda agora — e, embora eu ache que a minha ideia é
boa, desconfio que há demasiados interesses próprios entre os Poderes
Superiores para que isso alguma vez aconteça. E, quem sabe, talvez não haja
água suficiente para partilhar.
Toca um telemóvel, indicando que alguém recebeu uma mensagem.
Jeannette olha para o seu Android.
— Ótimo! Agora a minha família no Ohio descobriu. Como se eu
precisasse do stresse deles para além do meu.
— Responde-lhe: «Mandem água» — brinca o meu pai.
— Vamos ultrapassar isto — diz a minha mãe num tom reconfortante. É
psicóloga clínica, logo, tranquilizar os outros faz parte da sua natureza.
Garrett, que estava parado e calado, leva a garrafa de Gatorade à boca… e,
por breves instantes, toda a gente para de falar. Involuntariamente. Quase
como um soluço mental, quando veem o meu irmão a beber o líquido azul
refrescante. Por fim, Mr. Burnside quebra o silêncio.
— Vamos falando — diz, ao mesmo tempo que se vira para ir embora.
Termina sempre as suas conversas desta forma. Assinala assim o fim desta
pequena e vaga irmandade. Toda a gente se despede e regressa a casa… mas
mais do que um par de olhos fita, de relance, a garrafa vazia de Gatorade de
Garrett enquanto se afastam.

— Corrida à Costco! — diz o tio Manjericão no final daquela tarde, por volta
das cinco. — Quem vem comigo?
— Posso comer um cachorro quente? — pergunta Garrett, sabendo que,
mesmo que o tio Manjericão diga que não, irá comê-lo. O tio Manjericão é
um trouxa.
— Os cachorros quentes são a mais pequena das nossas preocupações —
digo-lhe. E ele não põe isso em causa. Sabe por que razão vamos à loja —
não é estúpido. Ainda assim, sabe que irá comer um cachorro quente.
Subimos para a cabina da pickup com tração às quatro rodas do tio
Manjericão, que está mais subida do que deveria ser permitido a um homem
da idade dele.
— A minha mãe disse que temos algumas garrafas de água na garagem —
diz Garrett.
— Vamos necessitar de mais do que «algumas» — realço. Tento fazer
rapidamente as contas na minha cabeça. Também vi essas garrafas. Nove de
meio litro. Nós somos cinco. Não chega sequer para um dia.
Quando viramos a esquina do nosso bairro e saímos para a rua principal, o
tio Manjericão diz:
— É possível que demore um dia ou dois até que seja reposto o
fornecimento de água. Provavelmente, vamos necessitar de alguns packs.
— E de Gatorade! — diz Garrett. — Não te esqueças da Gatorade! Está
cheia de eletrólitos. — É o que dizem nos anúncios, embora Garrett não saiba
o que é um eletrólito.
— Vejam as coisas pelo lado positivo — diz o tio Manjericão. —
Provavelmente não terão aulas durante uns dias. — A versão californiana de
um dia de neve.
Tenho andado a contar os dias que faltam até ao final do primeiro ano do
secundário. Já só faltam duas semanas. Mas, conhecendo a minha escola
secundária, provavelmente encontrarão uma maneira de acrescentarem os
dias perdidos no final, retardando as nossas férias de verão.

Quando viramos para o parque de estacionamento da Costco, conseguimos


ver a multidão. Parece que o nosso bairro inteiro teve a mesma ideia. Não
podemos fazer mais do que andar às voltas, à procura de um lugar para
estacionar. Por fim, o tio Manjericão puxa do seu cartão da Costco e entrega-
mo.
— Vocês os dois vão lá dentro. Vou ter convosco quando encontrar um
lugar para estacionar.
Pergunto-me como poderá ele entrar sem o seu cartão, mas o tio
Manjericão sabe como contornar qualquer situação. Eu e Garrett saltamos do
veículo e juntamo-nos à enchente de pessoas que inunda a entrada. No
interior, parece a Black Friday no seu pior — mas hoje as pessoas não estão à
procura de televisores e jogos de vídeo. Os carrinhos que se alinham junto às
caixas estão cheios de alimentos enlatados, artigos de higiene pessoal, mas,
acima de tudo, água. Os bens essenciais à vida.
Há algo que parece ligeiramente errado. Não tenho a certeza do que seja,
mas paira no ar como uma fragrância. Está na impaciência das pessoas nas
caixas. No modo como utilizam os seus cartões — prestes a transformarem-
se em aríetes para abrir caminho por entre a multidão. Há uma espécie de
hostilidade primitiva à nossa volta, escondida por uma camada de educação
suburbana. Mas mesmo essa educação está a chegar ao fim.
— Este carrinho não presta — diz Garrett. Tem razão. Uma das rodas está
dobrada e, para o empurrarmos, temos de nos inclinar sobre as outras três.
Olho para trás, para a entrada. Eram poucos os carrinhos que restavam
quando agarrei neste. Agora já terão desaparecido todos.
— Terá de servir — digo-lhe.
Eu e Garrett conseguimos passar pela multidão em direção ao canto
esquerdo, onde se encontram as paletes de água. Ao fazê-lo, ouvimos
excertos de conversas.
— A FEMA já está aflita com o furacão Noah — diz uma mulher a outra.
— Como é que nos vão conseguir ajudar, também?
— Não temos culpa! A agricultura utiliza oitenta por cento da água!
— Se o país passasse mais tempo a procurar novas fontes de água em vez
de nos multar por enchermos as piscinas — diz uma mulher — não
estaríamos nesta posição.
Garrett vira-se para mim.
— O meu amigo Jason tem um aquário gigante na sala e não foi multado.
— Isso é diferente — expliquei-lhe eu. — Os peixes são considerados
animais de estimação.
— Mas não deixa de ser água.
— Então, vai bebê-la — digo eu, calando-o. Não tenho tempo para pensar
nos problemas dos outros. Temos os nossos próprios problemas com que nos
preocupar. Mas parece que sou a única que se preocupa, porque Garrett já
partiu em busca de amostras gratuitas.
À medida que empurro o carrinho, este continua a desviar-se para a
esquerda e eu tenho de me inclinar, aplicando todo o meu peso do lado
direito, para evitar que a roda dobrada faça de leme.
À medida que me aproximo do fundo do armazém, apercebo-me de que é
ali que está mais gente e, quando chego ao último corredor, a partir do qual
me é possível ver as paletes de água, percebo que é tarde de mais. As paletes
já estão vazias.
Agora, ao analisar a situação, penso que devíamos ter ido diretamente para
ali, mal as torneiras foram fechadas. Mas, quando algo drástico acontece,
ocorre um desfasamento temporal. Não é bem uma negação, e não é bem um
choque, é uma espécie de queda livre mental. Passamos tanto tempo a tentar
compreender o que aconteceu que só nos apercebemos do que é preciso fazer
quando a janela temporal para o fazermos já está fechada. Penso em todas as
pessoas que estavam em Savannah quando o furacão Noah fez uma curva
inesperada e avançou na sua direção em vez de regressar ao mar, como era
suposto. Quanto tempo terão passado de olhos fixos nas notícias, sem
pestanejar, até correrem a fazer as malas e fugir? Posso dizer-vos quanto
tempo. Três horas e meia.
Atrás de mim, as pessoas que não conseguem ver que as paletes estão
vazias vão empurrando. Mais cedo ou mais tarde, um empregado terá o bom
senso de afixar um cartaz na porta a dizer «NÃO TEMOS ÁGUA», mas, até que o
faça, os clientes continuarão a acumular-se, empurrando em direção ao fundo
da loja, criando uma multidão sufocante, como um «moche» num concerto.
Seguindo um palpite, viro para o corredor lateral — e para as prateleiras
dos refrigerantes em lata, que começam a desaparecer. Mas não estou aqui
pelos refrigerantes. Quando olho à minha volta, para as pilhas de bebidas,
encontro um pack de garrafas de água solitário, que alguém ali abandonou,
talvez no dia anterior, quando não era um bem tão valioso. Estendo a mão
para ele, mas eis que, no último instante, é levado por uma mulher de nariz
aquilino. Ela pousa-o em cima do carrinho, como uma coroa sobre os
alimentos enlatados.
— Lamento, mas chegámos primeiro — diz. E depois a filha dela avança:
é Hali Hartling, uma rapariga que conheço do futebol. É irritantemente
popular e acha-se melhor jogadora do que na realidade é. Metade das
raparigas da escola quer ser como ela, e a outra metade odeia-a porque sabe
que nunca chegará perto. Quanto a mim, limito-me a suportá-la. Não merece
mais do que a energia necessária para me ser indiferente.
Embora pareça sempre confiante, neste momento nem sequer me consegue
olhar nos olhos — porque sabe, tal como a mãe, que eu cheguei à água
primeiro. Enquanto a mãe afasta o carrinho, Hali inclina-se para mim.
— Desculpa lá isso, Morrow — diz, com sinceridade, usando o meu
apelido como fazemos no futebol. Embora, pelos vistos, neste momento
estejamos a jogar por equipas completamente diferentes.
— Não partilhei a minha água contigo a semana passada? — realço. —
Talvez pudesses pagar o favor e partilhar algumas garrafas comigo.
Ela olha para a mãe, que já avança pelo corredor, e depois volta-se para
mim com um encolher de ombros.
— Desculpa, mas aqui não as vendem à garrafa. Só ao pack. — E depois o
seu rosto torna-se um bocadinho vermelho e vira-se para partir antes de ficar
completamente corada.
Olho à minha volta. A multidão continua a aumentar, e as coisas estão a
desaparecer das prateleiras a uma velocidade alarmante. Até os refrigerantes
desapareceram. Parva! Devia ter agarrado em alguns. Corro para o meu
carrinho vazio antes que alguém o leve. Ainda não há sinal do tio Manjericão,
e Garrett deve estar a encher-se de algo gorduroso. A Gatorade que pediu
também já desapareceu.
Por fim, vejo Garrett. Está num dos corredores dos congelados, tem molho
de pizza espalhado pela cara toda. Limpa a boca à camisa, sabendo que vou
comentar. Mas não me dou ao trabalho, porque vejo algo. Logo a seguir aos
vegetais e ao gelado, está uma arca repleta de gelo. Sacos enormes de gelo.
Nem acredito que as pessoas sejam tão limitadas que não se tenham lembrado
disto! Ou talvez tenham, mas se recusem a admitir um tal nível de desespero.
Abro a porta e agarro num saco de gelo e depois noutro.
— O que estás a fazer? Precisamos de água, não de gelo.
— O gelo é água, Einstein — digo-lhe.
Vou buscar um saco e apercebo-me de que são muito mais pesados do que
tinha antecipado.
— Ajuda-me! — Juntos, eu e Garrett pomos saco de gelo em cima de saco
de gelo no carrinho, até a pilha ser tão alta quanto possível. Entretanto, as
pessoas parecem ter reparado e juntaram-se em torno da arca do gelo, tendo
começado a esvaziá-la.
O carrinho está agora ridiculamente pesado e é quase impossível empurrá-
lo — em especial com a roda torta. Depois, enquanto lutamos com o
carrinho, a roda torta a raspar no chão de betão, um homem de fato aproxima-
se de nós. Sorri.
— É uma grande carga, a que aí levam — diz. — Parece que precisam de
uma mãozinha.
Não espera pela nossa resposta, agarrando o carrinho e empurrando-o de
um modo muito mais eficaz do que nós.
— Isto hoje está uma loucura — diz, num tom jovial. — Aposto que está
uma loucura por todo o lado.
— Obrigada por nos ajudar — digo-lhe.
— Não há problema. Todos temos de nos ajudar uns aos outros.
Ele volta a sorrir, e eu respondo-lhe com um sorriso. É bom saber que os
momentos difíceis podem trazer ao de cima o melhor das pessoas.
Pouco a pouco, em solavancos curtos, mas constantes, levamos o carrinho
até à parte da frente da loja e para uma das serpenteantes filas de caixa.
— Parece que já fiz o exercício de hoje — diz, rindo.
Olho para o nosso carrinho e concluo que uma boa ação merece outra.
— Porque não leva um saco de gelo para si? — sugiro.
O sorriso dele nunca desaparece.
— Tenho uma ideia ainda melhor — diz. — Porque não levam um saco de
gelo para vocês e eu fico com o resto?
Por um instante, penso que está a brincar, mas depois apercebo-me de que
está a falar a sério.
— Desculpe?
Ele finge um forte suspiro.
— Tens razão, isso não seria justo para ti, de todo. Façamos assim: porque
não dividimos ao meio? Eu fico com metade e vocês ficam com a outra
metade.
Fala como se estivesse a ser generoso. Como se o gelo fosse dele. Continua
a sorrir, mas os seus olhos assustam-me.
— Acho que a minha oferta é mais do que justa — diz. Começo a
perguntar-me que tipo de negócio será o dele, e se não será o de enganar as
pessoas levando-as a pensar que não estão a ser enganadas. Comigo não vai
resultar — mas as mãos dele agarram firmemente no nosso carrinho, e não há
maneira de provar que é nosso e não dele.
— Há algum problema?
É o tio Manjericão. Chegou mesmo a tempo. Fita o homem friamente por
um instante, depois o homem tira as mãos do carrinho.
— Nenhum — responde.
— Ótimo — diz o tio Manjericão. — Odiaria pensar que está a incomodar
o meu sobrinho e a minha sobrinha. As pessoas são presas por coisas assim.
O homem mantém o contacto visual com o nosso tio por mais um instante
antes de desistir. Olha para o gelo, a sua expressão amarga, depois afasta-se,
sem levar consigo um único saco.
A pickup do tio Manjericão está estacionada ilegalmente — metade dela está
em cima de um canteiro, e derrubou uma fila de ficus.
— Tive de meter o sacana em tração às quatro — diz, orgulhosamente, e é
provável que tenha sido a primeira vez que teve de a usar. De súbito, a pickup
do tio Manjericão, comprada durante a sua crise de meia-idade, mais parece
uma bênção do que um embaraço.
Carregamos os sacos de gelo na caixa aberta da pickup.
— Então e esse cachorro quente? — oferece o tio Manjericão, tentando
aligeirar o ambiente.
— Estou cheio — responde Garrett, embora eu saiba que isso é um feito
quase impossível para ele. Só não quer voltar lá para dentro. Nenhum de nós
quer. E agora está a formar-se uma pequena multidão que nos observa,
enquanto carregamos o gelo na caixa aberta da carrinha. Ainda que eu tente
ignorá-los, sei que há uma dezena de olhos fixos em nós.
— Porque não sigo na parte de trás da carrinha, com o gelo? — sugiro.
— Não, não é preciso — responde calmamente o tio Manjericão. — Vais
na cabina. Há uns buracos feios no caminho. Não quero que vás aos saltos aí
atrás.
— Certo — concordo, ao mesmo tempo que subo para a cabina da pickup.
E embora ninguém fale disso, eu sei que não é com os buracos na estrada que
o meu tio está preocupado.

Seguimos para a estrada, mas, por alguma razão, não parece o mesmo
quarteirão em que cresci. Há algo de estranho, como quando viramos
acidentalmente para a rua errada, e, como todas as vivendas parecem iguais,
sentimos que estamos num universo paralelo. Tento afastar a sensação,
enquanto vejo as casas pela janela do veículo.
Os nossos vizinhos do outro lado da rua, os Kiblers, costumam deitar-se
nas suas espreguiçadeiras e «supervisionar» os filhos enquanto estes brincam,
o que na realidade significa falar acerca dos outros vizinhos por entre goles
de Chardonnay enquanto se asseguram de que os filhos não são atropelados.
No entanto, hoje, os filhos dos Kiblers estão a brincar à apanhada na rua sem
supervisão. E, apesar do riso das crianças, há um silêncio insidioso que realça
tudo; por outro lado, talvez o silêncio sempre ali tenha estado, e eu só agora
me esteja a aperceber dele.
O tio Manjericão faz o acesso de marcha-atrás e começamos de imediato a
descarregar. Mesmo com o Sol a descer no céu, estão trinta e dois graus e o
gelo começa a derreter. Se queremos levar todo este gelo para casa a tempo,
temos de nos apressar.
— Porque não vais esvaziar o congelador para podermos guardar lá algum
gelo? — diz o tio Manjericão, enquanto tira o primeiro saco da traseira da
carrinha. — Podemos deixar derreter o resto e bebê-lo hoje.
— Melhor ainda, porque não limpas a banheira do piso de baixo — digo a
Garrett — e o deixamos descongelar lá?
— Boa ideia — diz o tio Manjericão, embora a ideia de limpar a banheira
não agrade muito a Garrett.
O meu pai emerge da garagem, com uma chave inglesa oleosa na mão,
claramente continuando a tentar retirar alguma água dos canos.
— Não havia Gatorade?
— Esgotou — digo-lhe, mantendo a resposta curta.
O meu pai coça a cabeça.
— Deviam ter ido ao Sam’s Club — diz. — Costumam ter mais artigos
armazenados nas traseiras da loja. — Embora o meu pai esteja a sorrir,
percebo que está mais perturbado do que quer deixar transparecer. Acho que
sabe que o mais certo é que o Sam’s Club tenha visto desaparecer todos os
seus líquidos engarrafados, tal como todas as outras lojas.
O tio Manjericão muda rapidamente de assunto.
— Pensei que ias trabalhar hoje — diz.
O meu pai encolhe os ombros e pega num saco de gelo.
— O melhor de termos o nosso próprio negócio é não sermos obrigados a
trabalhar ao sábado, a menos que o queiramos fazer.
Só que o meu pai trabalha aos sábados. E por vezes aos domingos
também. Há muitas pessoas a fazerem horas extraordinárias, por causa da
enorme subida do preço dos produtos frescos — mas, mesmo antes disso, o
meu pai sempre nos disse que, para construirmos o nosso negócio, temos de
nos comprometer vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Contudo,
parece que hoje prefere carregar gelo a vender seguros.
Tiro mais gelo da parte de trás da carrinha, mas concluo que, mesmo
dentro do saco de plástico, é difícil de agarrar, agora que começa a derreter.
— Precisam de ajuda? — diz uma voz atrás de mim, e, mesmo antes de me
virar, sei exatamente de quem se trata.
Kelton McCracken. O cromo ruivo, não muito típico, da porta ao lado. A
maior parte dos miúdos com a sua estranheza sente-se satisfeita a matar
zombies com um controlo da Xbox, mas não o Kelton. Este prefere passar o
tempo a praticar reconhecimento aéreo com o seu drone, disparando sobre
pequenos animais com a sua arma de paintball e escondendo-se numa casa da
árvore com uns binóculos de visão noturna, enquanto finge ser o Jason
Bourne. É como se nunca tivesse amadurecido para lá do sexto ano, por isso
os pais limitam-se a comprar-lhe brinquedos cada vez maiores. Mas hoje não
consigo deixar de reparar que há algo de diferente nele. Claro que cresceu
neste último ano e parece muito mais maduro — mas não é só isso. É a
maneira como se move. Há um certo ritmo no seu andar, como se toda esta
crise da água o entusiasmasse de uma maneira doentia. Kelton sorri,
revelando que já tirou os aparelhos e que os dentes foram artificialmente
endireitados.
— Claro, Kelton, dava-nos jeito uma ajuda — diz o meu pai. — Porque
não dás uma mãozinha à Alyssa?
Estou quase a passar-lhe o saco de gelo, mas, quando lho estendo, há algo
que se apodera de mim, e não pareço ser capaz de o largar.
O meu pai apercebe-se, ficando baralhado com a minha hesitação.
— Deixa-o levar o gelo, Alyssa — diz o meu pai.
Olho para o gelo nas minhas mãos e depois para Kelton, apercebendo-me
de que continuo cética quando se trata de permitir que as pessoas «ajudem».
— Há algum problema? — pergunta o meu pai, num tom perturbado,
paternal, que exige uma resposta… que não lhe dou.
Obrigo-me a entregar o gelo a Kelton.
— Mas não esperes receber um saco por estares a ajudar — digo-lhe, o que
leva o meu pai a dirigir-me um olhar firme, provavelmente perguntando-se o
que me deu para ser tão mazinha. Talvez mais tarde lhe fale do tipo na
Costco; ou talvez tente esquecer tudo o que aconteceu.
Quanto a Kelton, estou à espera que me dê uma resposta atrevida, mas, em
vez disso, fica imóvel, genuinamente chocado com o meu comentário.
Recupero a compostura e obrigo-me a fazer um sorriso, esperando que não
pareça demasiado forçado.
— Desculpa — digo-lhe. — Obrigada por ajudares.
Vamos para dentro, para pôr o gelo na banheira, mas Kelton agarra-me
pelo ombro, para me fazer parar.
— Selaram o ralo? — pergunta. — Não é muito boa ideia deitar gelo na
banheira a menos que tenham selado o ralo. A mais pequena fuga e poderão
perder tudo em poucas horas.
— Pensei que o meu tio tinha feito isso — digo-lhe, embora nenhum de
nós tenha pensado em tal coisa. Por muito que odeie admiti-lo, foi,
provavelmente, a ideia mais inteligente que ouvi o dia todo.
— Vou buscar um pouco de silicone — diz, e corre para a garagem dele
em busca do vedante, claramente satisfeito com a oportunidade para pôr em
ação o seu treino de escuteiro.
Kelton e a sua família parecem ter sempre um plano de contingência
preparado para qualquer cenário terrível. O meu pai costumava dizer, em tom
de brincadeira, que Mr. McCracken vivia uma vida dupla, trabalhando como
dentista durante o dia e preparando-se para o fim do mundo durante a noite.
Mas, recentemente, a sua piada tornou-se bastante mais real. Parece que Mr.
McCracken passa agora a maior parte do tempo a soldar engenhocas de ferro
forjado até altas horas da noite, como se estivesse a perfurar uma cárie da
monstruosidade escancarada que é a sua garagem.
Durante os últimos meses, a família de Kelton montou um sistema de
vigilância topo de gama, estabeleceu uma miniestufa no jardim e cobriu todo
o telhado com um qualquer tipo de painéis solares não registados e
independentes da rede elétrica. De há pouco tempo para cá, Kelton — que
este ano esteve em demasiadas aulas minhas — não para de se gabar do facto
de o pai ter instalado vidros à prova de bala unidirecionais — pode disparar
balas a partir do interior, mas estas são incapazes de os penetrar vindas do
exterior. Embora o resto da nossa turma ache que é um convencido, acredito
que possa ser verdade. Não me espantaria que o pai dele fizesse algo assim.
Com exceção das nossas queixas em relação à soldadura tardia, as nossas
famílias têm, por norma, uma relação amigável, mas existe sempre um clima
de tensão educada quando os meus pais lidam com eles. A certa altura
partilhámos uma área de relva entre as duas casas, até Mr. McCracken ter
instalado uma vedação de madeira que atravessou as salvas-dos-jardins
premiadas da minha mãe. A vedação era horrivelmente mais alta do que a
típica barreira suburbana caiada de branco, mas suficientemente baixa para
não violar as regras e regulamentos da associação de moradores — com
quem parecem estar sempre em guerra. Certa vez, até tentaram reclamar o
passeio em frente à casa deles como o seu lugar de estacionamento particular,
alegando que a linha da sua propriedade se estendia alguns centímetros para a
rua — contudo, essa batalha foi ganha pela associação. Desde então, o tio
Manjericão faz questão de estacionar a carrinha mesmo à frente da casa deles.
Só para os poder chatear.
Kelton regressa passados alguns minutos com o silicone e dedica-se de
imediato a selar o ralo.
— Isto é capaz de demorar algumas horas a endurecer, por isso tem
cuidado quando a encheres de gelo — diz, muito mais entusiasmado do que
alguém deveria ficar com um vedante de silicone. Segue-se um silêncio
desconfortável entre nós, que me faz aperceber que nunca tinha estado
sozinha com Kelton.
Depois lembro-me de algo que não serve apenas para fazer conversa, mas
que é importante.
— Espera um segundo. Vocês não têm um grande tanque com água atrás
da vossa casa?
— Pouco mais de cento e trinta litros — gaba-se Kelton, enquanto aplica o
silicone com a precisão de um joalheiro. — Mas esse fica dentro de casa. O
que está fora de casa é para os dejetos, está cheio de compostos químicos
quaternários de amónio. Sabes, como aquela sopa azul, malcheirosa, no
fundo das sanitas das casas de banho portáteis.
— Sim, já percebi, Kelton — digo, convenientemente enojada, sobretudo
devido ao facto de ainda nem sequer ter começado a pensar no que fazer com
as nossas casas de banho. — Bem, não se pode dizer que vocês não pensam
com antecedência — afirmo, sabendo que se trata do eufemismo do século.
— Bem, o meu pai diz sempre: «Mais vale errados do que mortos e
enterrados.» — Depois acrescenta: — Aposto que, se o teu pai pensasse no
futuro, provavelmente estariam melhor.
Claramente não faz ideia do quão insultuoso soa, por vezes. Pergunto-me
se haverá uma medalha de mérito para «O mais Irritante».
Kelton termina o trabalho. Agradeço-lhe e ele regressa a casa, para
disparar o lançador de batatas, ou dissecar insetos, ou o que quer que seja que
um miúdo como ele faz nos seus tempos livres.
Na cozinha, a minha mãe está a limpar todas as superfícies com Formula
409. Limpezas devidas ao stresse. Sempre que algo sai do nosso controlo,
trazemos ordem ao que podemos. Eu percebo. Por outro lado, a minha mãe
nunca foi de deixar a televisão ligada, em pano de fundo — mas agora tem-na
aos berros, na sala de estar. Não sei ao certo onde estão o meu pai e o meu
tio. Talvez estejam nas traseiras, a trabalhar no automóvel. Acho estranho o
facto de sentir que preciso de saber.
Na televisão, a CNN está concentrada na contínua crise do furacão Noah.
Não invejo a atenção dedicada a estas pobres pessoas, mas gostava que nos
fosse concedida alguma, também.
— Já há alguma notícia sobre o Fechar da Torneira? — pergunto.
— Um dos canais locais tem vindo a fazer atualizações regulares — diz-
me a mãe —, mas é aquele pivô desmiolado que eu não suporto. E, além
disso, também não há nada de novo.
Ainda assim, mudo de canal, para o pivô desmiolado que o meu pai diz ter
começado a carreira na indústria pornográfica, embora não me apeteça
perguntar-lhe como é que sabe.
A minha mãe tem razão; estão apenas a repetir a intervenção do
governador desta manhã e a tentar, sem sucesso, fazê-la render.
Mudo de novo para as estações noticiosas nacionais. A CNN, depois a
MSNBC, depois a Fox News, e de novo a CNN. Todos os jornais nacionais
estão a falar do Noah e apenas do Noah. Lentamente, percebo porquê.
Não há nenhuma imagem de satélite para uma crise da água.
Não há grandes tempestades, nem campos de destroços — o Fechar da
Torneira é tão silencioso como um cancro. Não há nada para ver, e por isso as
notícias tratam-na como uma nota de rodapé.
Refiro isto à minha mãe. Ela para de limpar por um momento e observa o
rol de histórias secundárias na parte de baixo do ecrã. Por fim, surge qualquer
coisa: «A crise da água na Califórnia aprofunda-se. Residentes incitados a
poupar.»
E mais nada. É tudo o que dizem as notícias nacionais.
— Poupar? Estão a brincar?
A minha mãe inspira fundo e volta a pulverizar a mesa da cozinha.
— Desde que a FEMA faça o seu trabalho, quem quer saber o que dizem
as notícias?
— Eu quero — digo-lhe. Porque se há algo que sei acerca das notícias é
que, para a maioria das pessoas, incluindo o governo federal, as notícias
definem o que é e o que não é importante. Mas as grandes estações noticiosas
não irão conceder ao Fechar da Torneira o tempo de antena crítico de que
necessita, não enquanto não houver imagens que sejam tão dramáticas quanto
ventos a arrancar telhados.
E, se demorar assim tanto tempo para que o Fechar da Torneira seja levado
a sério, então será tarde de mais.
INSTANTÂNEO: JOHN WAYNE

Dalton adora a maneira como o avião descola do aeroporto John Wayne. É


um verdadeiro espanto. Chamam-lhe «redução de ruído modificada» e foi
especificamente implementada para poupar os milionários de Newport Beach
ao ruído de um aeroporto. Basicamente, o motor do avião é ligado na pista
com os travões acionados, depois acelera a todo o gás, numa descolagem
ridiculamente íngreme, seguida, dez segundos depois, por um súbito
nivelamento e abrandamento dos motores, que soa, aos ouvidos leigos, como
uma falha no motor, levando pelo menos uma pessoa em cada voo a arquejar
ou mesmo a gritar de pânico. O avião desliza em seguida ao longo da parte de
trás da baía, da ilha Balboa e da península de Newport, antes de o piloto
voltar a acelerar os motores e retomar a subida.
— Deviam chamar-lhe John Glenn em vez de John Wayne — dissera
Dalton certa vez, porque descolar dali seria o mais próximo que alguém
alguma vez estaria de uma descolagem para o espaço.
Dalton e a irmã mais nova eram clientes frequentes, indo visitar o pai, que
vivia em Portland, algumas vezes por ano — Natal, Páscoa, grande parte do
verão e o dia de Ação de Graças, ano sim, ano não. Hoje, contudo, os dois
não irão viajar sozinhos para norte. A mãe também vai com eles.
— Se o vosso pai não me quiser aturar, não me importo de ficar num hotel
— diz ela.
— Ele não te vai obrigar a fazer isso — diz-lhe Dalton, mas a mãe não
parece muito segura.
Há alguns anos, a mãe tinha-o trocado por um falhado com belos
abdominais e uma mosca, a quem acabaria por dar com os pés, um ano
depois. Vivendo e aprendendo. De qualquer maneira, quando o casamento se
afundou, o pai rumou para norte.
— Compreendem que não se trata de eu e o vosso pai nos irmos reconciliar
— diz a Dalton e à irmã, mas, para os filhos de pais divorciados, a esperança
é eterna.
Poucos minutos depois do Fechar da Torneira, a mãe ligara-se à Internet e
comprara três bilhetes, a preços exorbitantes, na Alaska Air — uma das
poucas companhias aéreas a voar sem escala até Portland num avião que não
é preciso sair para empurrar.
Os últimos três bilhetes — disse-lhes triunfantemente. — Têm uma hora
para fazer as malas.
Na viagem até ao aeroporto encontraram o trânsito típico. O que deveria
ser uma viagem de quinze minutos demora quase uma hora.
O estado do estacionamento no John Wayne é a primeira indicação de que
os espera alguma turbulência. Só uma das estruturas de estacionamento não
apresenta a indicação de «COMPLETO». E conseguem um dos poucos lugares
ainda disponíveis, na ponta mais afastada do último parque. Enquanto
caminham em direção ao terminal, Dalton repara nos muitos veículos que
andam às voltas, como se de um grande jogo das cadeiras se tratasse, um jogo
no qual já não restam cadeiras.
O posto de controlo da segurança é uma casa de loucos, o que aqui nunca
acontece.
— Há muitas pessoas a ir de férias — diz Sarah, a irmã de 7 anos de
Dalton.
— Sim, querida — responde a mãe, distraída.
— Para onde achas que vão?
A mãe suspira, demasiado tensa para lhe continuar a dar atenção, por isso
Dalton olha para o quadro de embarque e assume as rédeas.
— Cabo San Lucas — diz. — Denver, Dallas, Chicago…
— A minha amiga Gigi é de Chicago.
O tipo da segurança volta a verificar o passaporte de Dalton, porque na
fotografia o cabelo dele é castanho, mas agora está oxigenado.
— De certeza que és tu?
— Tanto quanto sei — responde Dalton.
O tipo sem sentido de humor da segurança deixa-os avançar para o lento
fluir do detetor de metais, que tem alguns problemas com os seus piercings
faciais. Por fim, conseguem passar pela segurança, quando faltam apenas
cinco minutos para o início do embarque. A mãe sente-se aliviada.
— Muito bem — diz ela. — Aqui estamos. Não perdemos ninguém. Não
nos faltam dedos, nem dos pés nem das mãos.
— Tenho sede — diz Sarah, mas Dalton já se apercebeu de que todos os
cafés por onde passam têm afixados cartazes indicando «NÃO TEMOS ÁGUA».
— Haverá algo para beber no avião — diz a mãe.
Dalton pensa que talvez isso seja verdade. Afinal, todos aqueles aviões
vieram de outros locais — e também ele começa a ficar com um bocadinho
de sede.
Depois, quando estão prestes a começar o embarque, a hospedeira de terra
dirige-se aos altifalantes e faz um anúncio.
— Infelizmente, temos um overbooking neste voo — diz. — Estamos à
procura de voluntários com planos de viagem flexíveis que estejam dispostos
a apanhar um voo posterior.
Sarah puxa pelo braço da mãe.
— Mãe, voluntaria-nos!
— Não desta vez, querida.
Dalton sorri. O pai diz-lhes sempre para se voluntariarem, porque as
companhias aéreas oferecem centenas de dólares em vouchers de viagem, o
que compensa o inconveniente. Mas não hoje. Hoje é tudo uma questão de
sair dali — razão pela qual há tanta dificuldade em conseguir voluntários. O
preço dos vouchers aumenta de duzentos dólares para trezentos e cinquenta e
para quinhentos dólares, e mesmo assim ninguém está disposto a entregar os
bilhetes.
Por fim, a hospedeira de terra desiste. Aproxima-se dos altifalantes,
chamando os nomes das últimas pessoas a comprar os bilhetes. Dalton, Sarah
e a mãe. Dalton sente um nó no fundo do estômago.
— Lamento — diz a hospedeira, mas não soa nada arrependida —, no
entanto, tendo sido os últimos a adquirir os bilhetes, sou obrigada e
recolocar-vos num voo posterior.
A mãe de Dalton fica histérica e ele não a pode culpar. Aquela é uma das
vezes em que precisam de lutar contra os Poderes Superiores.
— Não — diz a mãe. — Não quero saber daquilo que diz! Eu e os meus
filhos vamos entrar nesse avião!
— Irão receber um voucher de quinhentos dólares cada um: são mil e
quinhentos dólares — diz a hospedeira, tentando aplacá-los. A mãe não se
deixa comprar.
— Os meus filhos têm visitas com o pai estipuladas pelo tribunal! — grita.
— Se os tirar deste voo estará a violar a lei e eu processá-la-ei! — Claro que
aquele não é um desses períodos, mas a hospedeira não sabe disso.
Ainda assim, tudo o que faz é procurar voos posteriores.
— Há um voo esta noite, às cinco e meia… Oh, espere, não, este também
está cheio… Vejamos. — Ela continua a matraquear no computador. — Oito
e vinte… não…
Depois, Dalton vira-se para a irmã e sussurra:
— Lança-lhe os olhos.
A mãe sempre dissera, tanto a Dalton como a Sarah, que os seus grandes
olhos azuis eram capazes de derreter qualquer pessoa. Dalton já não tanto.
Um desajeitado rapaz de 17 anos, com um monte de piercings no rosto, uma
tatuagem no pescoço com o símbolo da ameaça biológica e aquilo a que o pai
chamava um cabelo «ninho de ratos», já não derretia o público em geral. Só
as raparigas de 17 anos. Mas Sarah ainda tem o seu efeito mágico sobre os
adultos empedernidos. Por isso pega nela ao colo, para que a hospedeira
possa olhar bem para ela.
— Oh, és tão fofa — diz ela. Depois retira três bilhetes novos da
impressora. — Aqui têm: amanhã de manhã, às seis e meia. É o melhor que
consigo arranjar.
Por isso esperam. Não partem, porque a multidão não para de aumentar, e
eles sabem que não vão conseguir voltar a passar pela segurança. E passam a
noite a dormir nas desconfortáveis cadeiras do aeroporto, bebendo pequenos
goles de água de qualquer pessoa disposta a partilhá-la, e não há muita gente
a fazê-lo.
Depois, quando chega a manhã, mesmo com os bilhetes confirmados, não
há lugar para eles no voo das seis e meia. Nem no voo seguinte. Nem no
outro.
E não conseguem bilhetes para voos com outros destinos.
E o aeroporto fica tão cheio que são chamados mais agentes da polícia para
manter a ordem.
E há engarrafamentos por todo o lado, os camiões de transporte de
combustível não conseguem chegar ao aeroporto.
E Dalton, a mãe e a irmã são obrigados a enfrentar o facto de que não irão
levantar voo para lado nenhum.
DIA DOIS

DOMINGO, 5 DE JUNHO

2) KELTON

O meu pai sempre me disse que há três tipos de seres humanos neste planeta.
Primeiro, as Ovelhas. As pessoas comuns que vivem em negação: devoram as
notícias da manhã, arrastam-se ao longo de um entediante dia de trabalho e
são cuspidas para as ruas das cidades deste mundo, como uma garfada de
gosto estranho de um rolo de carne que há muito ficou esquecido no
frigorífico. No fundo, as Ovelhas são a maioria indefesa que não deseja, de
modo algum, reconhecer a inevitabilidade do perigo real e que confia que o
sistema cuidará dela.
Depois há os Lobos. Os tipos maus que não respeitam as leis da sociedade,
mas que são bastante bons a fingir que o fazem, quando lhes convém. Deste
grupo fazem parte os ladrões, os assassinos, os violadores e os políticos, que
se alimentam das Ovelhas até serem lançados para a prisão ou, melhor ainda,
acabarem deitados de barriga para cima num aterro, juntamente com os
molhos de meias ásperas que a avó faz à mão, para o Natal. Aqueles que ele
todos os anos faz estourar, ritualisticamente, com uma M80.
E por fim, há as pessoas como nós. Os McCrackens. Os Pastores do
mundo. Claro que a nossa espécie se pode parecer muito com os Lobos —
grandes presas, garras afiadas e a capacidade para exercer violência —, mas o
que nos distingue dos restantes é o facto de representarmos o equilíbrio entre
os dois. Podemos circular livremente por entre o rebanho, com a capacidade
de proteger ou renegar, conforme nos aprouver. O meu pai diz que somos os
poucos a quem foi concedido o poder de escolha, e, quando o verdadeiro
perigo se apresentar, seremos nós a sobreviver — e não é só porque temos
uma Magnum .357, três Glocks G19 e uma caçadeira de repetição Mossberg,
mas porque nos temos vindo a preparar, de todas as maneiras possíveis, desde
que me lembro, para o inevitável colapso da sociedade tal como a
conhecemos.
É domingo à tarde, o segundo dia do Fechar da Torneira. Está um calor
efervescente, como uma lata de refrigerante esquecida ao sol durante o
solstício de verão. Tendo em conta o Sol, passa pouco das três, pelo que vou
para o meu «refúgio» pessoal. A saber, a unidade tática elevada que construí
no carvalho que temos nas traseiras. Há quem lhe possa chamar uma casa na
árvore, mas isso seria insultuoso em relação à sua natureza fortificada e
funcional. Não se realiza reconhecimento por infravermelhos nem se mantém
um arsenal civil numa piegas casa da árvore. Não é tão fixe como o nosso
refúgio verdadeiro: uma casa segura escondida, que a nossa família construiu
nas profundezas do bosque, para a eventualidade de um ataque nuclear, ou
EMP, ou qualquer outro cenário de fim de mundo. Construímo-lo juntos, em
família, há alguns anos, antes de o meu irmão mais velho, Brady, ter saído de
casa. E, se as coisas ficarem piores, estou certo de que iremos para lá. Mas,
entretanto, vou-me ficando pelo meu refúgio na árvore.
Tenho um bom armazenamento de provisões, separadas e independentes
das coisas que o meu pai tem na nossa sala segura. No que diz respeito a
armas, tenho uma pistola de paintball, uma fisga para caça tática e uma
espingarda de ar comprimido Wildcat Whisper. Quanto a víveres, tenho
Mountain Dew suficiente para me manter acordado durante horas, se for
preciso, já para não falar de Top Ramen com sabor a frango, o meu prato
reconfortante preferido — porque é reconfortante saber que, em caso de
ataque nuclear, a minha comida tem glutamato monossódico suficiente para
sobreviver à extinção da humanidade.
Olho pela janela do forte e vejo que alguém se aproxima da nossa casa, por
isso saco dos binóculos para conseguir uma identificação. O fato e a gravata
texana são reveladores. Trata-se de Mr. Burnside, o executivo reformado que
nunca se conformou com o final da sua carreira. Sem nada melhor para fazer,
organizou um golpe tranquilo e apoderou-se da associação de moradores há
alguns anos. Desde então, tem-na vindo a gerir com mão de ferro. Estamos
bastante certos de que é fascista. O mais provável é que nos tenha vindo
notificar de que as nossas janelas são demasiado à prova de bala, ou de que a
porta da nossa garagem é demasiado titânica, ou de que o heliporto para
drones que instalámos no telhado é demasiado espetacular. Mas, quando olho
com mais atenção, apercebo-me de que não traz consigo a habitual pasta
repleta de petições e de documentos de cessação de prática. Em vez disso,
faz-se acompanhar de um presente, cuidadosamente embrulhado, com um
lacinho e tudo. Sinto-me cético, por isso desço e dirijo-me para um dos lados
da casa, agachando-me atrás de uma sebe, a partir de onde o consigo ver
junto à porta da frente.
Mr. Burnside alisa o seu cabelo grisalho, penteado para trás, e bate quatro
vezes, e depois uma quinta, porque consegue ser irritante a esse ponto.
O meu pai responde, mas só abre parcialmente a porta.
— Boa tarde, Bill. A que devo o prazer da sua visita, hoje? — pergunta o
meu pai, quando o que quer mesmo dizer é: Mas que raio é que TU queres?
Mr. Burnside abre um sorriso, revelando um conjunto de dentes demasiado
brancos para não serem falsos.
— Estou apenas a ver como estão as famílias do bairro. — Olha para a
nossa propriedade, fingindo entusiasmo. — Tenho de admitir que começo a
compreender e a valorizar algumas das suas modificações únicas.
— Como a nossa estufa, em relação à qual a associação mantém o litígio?
— pergunta o meu pai asperamente.
— Águas passadas — diz Mr. Burnside com um banal aceno de mão, o
relógio de ouro oferecido aquando da reforma e a pulseira de informação
médica a tilintar juntos. Não sei ao certo qual é o seu problema médico, mas
estou disposto a apostar que não tem qualquer armazenamento da medicação
de que precisa.
— Não ouviu ainda? — pergunta o meu pai. — Já não há águas, passadas
ou não.
Mr. Burnside ri, mas, em vez de aligeirar a tensão, o seu riso serve apenas
para a aumentar. Por isso, entrega o presente ao meu pai.
— Da minha parte e da minha esposa — diz. — Só uma coisinha para
ajudar o passado a ficar no passado.
— Ora, é muitíssimo simpático da sua parte, Bill. Presumo que isso
signifique que o senhor e a direção da associação não se importam que eu
faça algumas atualizações às vedações de segurança. Estava a pensar em
aumentá-las até aos três metros de altura.
Mr. Burnside eriça-se um pouco, mas diz:
— Vou falar com a direção. Não deve ser um problema.
— Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si? — pergunta o meu pai,
apreciando, claramente, a sua posição de poder.
— Bem, como eu disse, estou a dar a volta ao bairro, para transmitir a
todos a certeza de que a associação de moradores está a envidar esforços no
sentido de reunir os recursos do bairro. Sabe como é, para nos ajudarmos uns
aos outros num período de crise…
Em vez de responder, o meu pai espera que ele continue, fazendo-o sofrer.
— … Tenho a certeza de que o senhor e a sua família estão bem… — Mr.
Burnisde está a sondar o meu pai, mostrando de novo os dentes de porcelana.
— Mas claro que outros há que foram apanhados desprevenidos por esta
situação da água.
— O que está a perguntar, exatamente, Bill? — diz o meu pai, num tom
um pouco menos jovial do que antes.
— Estamos a pedir a todos que façam um inventário dos seus víveres —
diz, e depois acrescenta: — Estou certo de que há coisas de que precisa e que
outras pessoas talvez tenham, e vice-versa.
— De cada um conforme a sua capacidade, para cada um conforme a sua
necessidade. Não é esse o princípio básico do socialismo, Bill? — diz o meu
pai. — Nunca pensei ouvir algo assim vindo de um capitalista de gema como
o Bill!
Bolas, o meu pai está mesmo a gostar disto! O sorriso de Mr. Burnside
começa a parecer-se com um esgar.
— Não é preciso ser insultuoso, Richard… estamos todos no mesmo barco.
Devíamos tentar aproveitar a situação ao máximo.
— Se todos estão a realizar um inventário, por que razão nos traz um
presente a nós? — pergunta o meu pai.
Mr. Burnside inspira fundo e expira.
— Sei que fomos adversários no passado… mas um pouco de boa vontade
de ambas as partes pode ajudar muito.
Mr. Burnside vira-se para partir, mas, antes de chegar ao final do acesso, o
meu pai desembrulha o presente. É uma garrafa de scotch. Do caro.
— Obrigado uma vez mais, Bill — grita o meu pai a Mr. Burnside, com
um sorriso atrevido. — Aposto que fará um excelente cocktail Molotov!
— Fica melhor com gelo — grita-lhe Mr. Burnside em resposta, não
percebendo de todo a piada. — Vamos falando.

3) ALYSSA

Levanto-me já tarde, no domingo. Passei quase toda a noite acordada, a


enviar mensagens aos meus amigos, a trocar histórias acerca do nosso dia.
Mora, como boa defensora da justiça social, marchou até à câmara municipal
com a família e mais algumas dezenas de pessoas, exigindo esclarecimentos.
Faraz passou o dia juntamente com o pai, a tentar criar um sistema de
purificação de água por osmose inversa que permitisse transformar urina em
água potável. Alerta de spoiler: não funcionou. E Cassie passou o dia no
templo, a encher garrafas de água para os idosos.
— É um mitzvah — disse-me. — E o filho do nosso rabi é giro!
Ainda só meio acordada, vou até à casa de banho e, por força do hábito,
abro a torneira do chuveiro e depois reparo que me esqueci da toalha. Vou
buscar uma e regresso à casa de banho, apercebendo-me, em seguida, de que
o chuveiro não está a deitar água. Oh. Certo. Agora sinto-me uma idiota. Até
estava a pensar no Fechar da Torneira, quando abri o chuveiro, mas, por
alguma razão, o meu exaltado cérebro de macaco não estabeleceu a ligação
com o facto de o chuveiro ser uma torneira como as outras. Não é que não
soubesse que não ia funcionar — claro que sabia. Mas quando estamos em
piloto automático, logo pela manhã, a rotina e a memória muscular não
ouvem a razão. Giro as torneiras, sem me lembrar para que lado se fecha e se
abre a água. Até a água voltar, também não importa.
Sem banho. Isto vai ser mesmo divertido. Aplico mais desodorizante
Secret do que o habitual e desço as escadas.
— Bom dia, querida — diz a minha mãe, e informa-me de que o pequeno-
almoço é um quarto de melancia que esteve num canto do frigorífico durante
uma semana. A casca da fatia de Garrett ainda está no seu prato, como um
grande sorriso verde. É uma estranha escolha para pequeno-almoço, mas ela
realça que tem um elevado conteúdo líquido, pelo que consumi-lo é como
matar dois coelhos de uma cajadada só. E, além disso, já são quase horas do
lanche.
Antes de a água ter sido fechada, o meu plano para este domingo era
dedicar-me ao meu trabalho acerca de O Deus das Moscas. A hipótese que
levanto é a de que, se tivesse sido um grupo de raparigas abandonadas na
ilha, em vez de um grupo de rapazes, as coisas teriam corrido de um modo
muito diferente. Quando o sugeri à professora, os rapazes da turma
concordaram — e mostraram-se convencidos de que toda a gente teria
morrido muito mais cedo. A minha hipótese, claro, era a oposta. Há uma
semana que andava a adiar a redação do trabalho, e devia entregá-lo na
segunda-feira. De súbito, parece já não ser assim tão importante. Foi já
anunciado que as escolas da região estarão fechadas amanhã e, além disso,
por muito que tentasse, não conseguiria preocupar-me com quem tinha a
concha e quem estava a atormentar o Piggy — ou a Miss Piggy, na minha
versão teórica.
Ainda assim, acho que é melhor manter-me ocupada, em vez de ficar a
remoer as coisas. Resolvo procurar a normalidade, e decido ir passar um
bocado com uma outra amiga, Sofia Rodriguez, que não respondeu às
mensagens de texto da noite passada. Depois de mais algumas mensagens
sem resposta, decido ir bater-lhe à porta, como costumávamos fazer quando
éramos miúdas.
Escapo para o exterior e dirijo-me a casa dela, a uma rua de distância da
minha. Enquanto caminho, apercebo-me do atual estado do meu bairro.
Quase todos os vidros dos automóveis estão salpicados de moscas e cobertos
de pó. A maior parte dos relvados estão negligenciados ou foram replantados
com plantas suculentas. Algumas pessoas até pintaram de verde os seus
relvados mortos, à semelhança das funerárias que maquilham os mortos. A
Frivolous Use Initiative não se limitou a banir os balões de água. Também
tornou ilegal encher piscinas privadas. A cena da piscina pareceu uma boa
ideia, na altura — afinal de contas, em tempo de seca, uma piscina é uma
extravagância. Mas, desde então, as pessoas com piscinas foram usando a
água que ainda tinham nelas para lavarem os veículos e regarem os relvados e
assim. Entre isso e a evaporação, a maior parte das piscinas está agora
completamente vazia. Por isso, aquilo que foram minirreservatórios de bairro,
estão agora tão secos quanto os nossos lava-louças.
Chego a casa da Sofia e vejo o pai dela a prender malas ao tejadilho do
Hyundai. Primeiro, tento dizer a mim mesma que talvez se esteja a preparar
para mais uma viagem de trabalho, mas, assim que vejo a mochila cor-de-
rosa preferida de Sofia presa ao tejadilho, não posso continuar a negar a
verdade. Estão a fazer as malas para partir.
— A Sofia está dentro de casa — diz-me o pai dela, sem parar de carregar
o automóvel por um momento que seja.
Entro em casa pela porta da garagem. Lá dentro, tudo parece normal. Os
mesmos corredores. As mesmas paredes de um azul-pastel. O mesmo sofá de
padrão floral. Contudo, por alguma razão, tudo parece diferente, como se não
fosse a mesma casa em que praticamente cresci a brincar… E depois percebo
porquê. A televisão está desligada e falta no ar o cheiro dos cozinhados de
Mrs. Rodriguez. As fotografias de família foram recolhidas, deixando
quadrados brilhantes nas paredes esbatidas pelo sol, quais sombras das
memórias que outrora cobriram aquelas paredes. Era como se a casa tivesse
sido privada de todas as pequenas coisas que faziam dela um lar.
E depois penso na minha casa. No facto de termos todas as fotografias de
família divertidas no piso térreo, para que todos as possam ver — e, embora
eu odeie o meu cabelo, ou o meu sorriso, ou as minhas roupas, em todas as
fotografias em que estou, não me conseguia imaginar a retirá-las, fisicamente,
das paredes.
Sofia sai do quarto, vê-me e dá-me um abraço, apertando-me durante mais
um segundo do que o normal, e depois afasta-se, com um sorriso fraco.
— Ia passar por tua casa antes de partirmos…
— Para onde vão? — pergunto.
— Para sul — responde. A resposta curta parece-me estranha, porque, num
dia normal, nem pagando seria possível manter Sofia calada.
Lembro-me de que os avós dela vivem algures na Baja — a península
ocidental do México — e tudo começa a fazer um pouco mais de sentido…
embora não consiga imaginar que o México esteja melhor do que o Sul da
Califórnia, neste momento. A maior parte do território também é um deserto.
— Tens visto as notícias? — pergunta-me. — Dizem que o aqueduto de
Los Angeles secou. Que está seco há semanas, mas que foi guardado segredo.
Há pessoas a demitirem-se e a serem despedidas a torto e a direito. Dizem
que o comissário da água de Los Angeles pode ser criminalmente acusado.
— Porque não fazem qualquer coisa em relação ao problema em vez de
perderem tempo a atribuir culpas?
— Pois é, não é? Seja como for, o meu pai acha que as coisas ainda vão
ficar piores antes de melhorarem. — Sofia dá uma gargalhada nervosa. —
Claro que já sabes como ele é: está sempre a exagerar.
Rio-me, mas trata-se mais de um riso por obrigação do que um riso a sério.
Mrs. Rodriguez entra na sala, com o irmãozinho de 5 anos de Sofia num
braço e uma pilha dos desenhos da filha no outro.
— Quais das tuas obras queres levar?
— Todas — responde Sofia, sem a mais pequena hesitação.
Mrs. Rodriguez pousa os desenhos sobre uma pilha que se encontra já
sobre a mesa da sala de jantar.
— Escolhe os três de que gostas mais. — Deposita um beijo na cabeça da
filha e depois sorri carinhosamente para nós as duas. A mãe de Sofia sempre
foi uma daquelas mulheres que são tão belas que as pessoas sempre a
tomavam e à filha por irmãs. Parecia jovem em todos os aspetos. Sempre
adorei isso nela. Mas hoje parece, simplesmente, cansada.
Sofia folheia as telas.
— Esta é tua — diz, virando-se para mim. — Pintaste-a para mim na aula
de arte do sétimo ano. Lembras-te?
— Sim — digo. — Foi um presente de aniversário.
— Acho que devias ficar com ela — diz.
— Bem, digamos antes que a vou levar emprestada. Durante uma semana
ou duas — corrijo-a.
— Sim. — Sofia sorri abertamente, embora os seus olhos contem uma
história diferente. Sempre foi do tipo de pessoa que vê o copo meio cheio,
mas algo, na maneira como olha para mim agora, me diz que o seu otimismo
está tão em baixo quanto a água da sua piscina.
O meu pai é do tipo que evita ir ao médico custe o que custar. Não se trata de
nunca ficar doente, ou de ter um medo mortal de agulhas; acho, pelo
contrário, que uma parte dele acredita que chamar a atenção para um
problema o torna pior. Talvez torne real algo imaginário. E, dado que uma
grande maioria das doenças acaba por passar por si mesmas, a maior parte do
tempo a estratégia funciona a seu favor. É assim que ele lida com todos os
seus problemas, das discussões com a minha mãe a um mau trimestre fiscal
na empresa. Por isso, esta noite, anuncia um Jantar de Família, que é o seu
penso rápido comunitário preferido. Claro que a lasanha nem sempre é a
melhor resposta para os problemas, mas sou uma firme crente de que, quando
o meu pai e a minha mãe cozinham juntos, esse gesto tem o poder de dar a
volta ao meu dia. Por isso, asseguro-me de que estou em casa às sete e meia
em ponto.
Mal entro em casa, a minha mãe põe-me a trabalhar, como esperado.
Entrega-me um jarro vazio.
— Vai buscar água para pormos na mesa.
Um pedido simples que, de súbito, me faz sentir como se tivesse sido
encarregue de um dever sagrado.
— Claro — respondo. Vou à casa de banho do rés do chão, mergulho o
jarro na banheira, e, mesmo depois de um dia inteiro, ainda há algum gelo.
Mal regresso, sirvo um copo a cada um.
— Não ponhas demasiado — diz o meu pai. — Estou a pensar que o
melhor é bebermos seis copos por dia, cada um. Fiz as contas e, a esse ritmo,
a quantidade que temos deverá ser suficiente para cerca de uma semana.
— Pensei que era suposto as pessoas beberem oito copos por dia — diz
Garrett.
— Pensa nos teus dois copos a menos como um investimento a longo
prazo — diz o pai a Garrett, que, por esta altura, provavelmente, já seria
capaz de gerir a sua própria empresa tendo por base apenas as analogias
empresariais baratas do meu pai.
— Além disso, o Kingston também precisa de água, lembram-se? Mas só
um copo, duas vezes por dia — acrescenta a mãe.
Tinha-me esquecido completamente do nosso cão — e sinto-me culpada
por isso. Nem conseguia imaginar racionar o consumo de algo tão indefeso
como um animal. Olho para a tigela da água dele e reparo que está vazia, por
isso, quando ninguém está a olhar, deito um bocadinho do jarro.
O tio Manjericão chega finalmente à mesa, e vira de imediato o copo todo
de água, fazendo gelar dolorosamente o próprio cérebro.
— É bem feito, Herb — diz a minha mãe, como se ele fosse um miúdo
pequeno. — É tudo o que vais receber esta noite.
— É mais saudável beber os fluidos todos antes de comer — contrapõe ele.
— Permite que o corpo processe a água separadamente dos alimentos e
absorva mais nutrientes. — E, seja ou não verdade, decido ignorá-lo,
tomando-o como ciência de trazer por casa. Acho que o tio Manjericão vai
buscar todos os seus factos científicos aos companheiros de cerveja. Alie-se
isso ao único «A» que alguma vez obteve na escola, em Biologia, e temos a
receita perfeita para a desinformação.
Apesar das palavras do tio Manjericão, todos consomem a sua água
lentamente. Talvez porque ninguém goste de olhar para um copo vazio, algo
que é verdade mesmo quando não há falta de água.
A lasanha está extrarrija, esta noite, porque a mãe cozinhou a massa no
molho de tomate do pai, numa tentativa de usar tão pouca água quanto
possível. O meu pai espera pelas nossas reações antes de provar.
— Adoro. Está boa e estaladiça — diz Garrett ao meu pai. Claro que adora.
Por alguma razão, Garrett nunca abandonou por completo certos hábitos
infantis, como comer em segredo batom do cieiro com sabor a cereja e massa
crua. Não necessariamente juntos.
— Está bom — digo-lhe, com um sorriso. Infelizmente, o meu pai sabe
sempre quando estou a mentir, mas agradece o gesto…
Passados alguns minutos de desajeitado mastigar, o tio Manjericão quebra
o silêncio.
— Pelo menos a água está fresca — diz, o que nos leva a todos a soltar
gargalhadas que acabam por ficar descontroladas. É o tipo de gargalhada que
força a sua saída, como um caso sério de soluços. Faz-me sentir um
bocadinho melhor, e, embora a princípio me tenha limitado a brincar com a
comida, quanto mais como, melhor a refeição me vai sabendo.
Foi então que as luzes piscaram e se apagaram.
E depois voltaram a acender-se.
Só ficou escuro durante um segundo. Talvez nem isso, mas foi o suficiente
para que todos parassem de comer. Ficámos todos gelados. Como é aquela
expressão? À espera da machadada final? Mas não acontece nada. As luzes
estão acesas e ficam acesas. Mas isso não altera o facto de que piscaram. E
agora todos os relógios acreditam furiosamente que são 12h00! 12h00!
12h00!
Olho, por fim, para o meu pai e vejo-o, pela primeira vez, a começar a ficar
verdadeiramente preocupado. É uma cara de «talvez deva ver um médico» —
algo que só o ouvi dizer uma vez, cinco minutos antes de ser transportado de
urgência para o hospital com uma apendicite.
Agora estamos todos aqui sentados, em silêncio, de garfo na mão, presos à
mesa de jantar. E, por alguma razão, não consigo obrigar-me a olhar
diretamente para os olhos de mais ninguém; como tal, baixo a cabeça e como.
Passados alguns segundos, apercebo-me de que todos estão a fazer o mesmo.
A enfiar a comida na boca como animais assustados. E assim continuamos
até os nossos pratos ficarem vazios. Não por termos fome, mas porque
nenhum de nós quer voltar a ver aquela expressão no rosto do pai.

Estou a preparar-me para ir para a cama, algumas horas mais tarde, quando
ouço movimento no exterior. O tio Manjericão. A janela do meu quarto abre-
se para a rua, pelo que tenho o luxo de ouvir todas as suas entradas e saídas.
Olho para o relógio: meia-noite. É uma hora estranha para o tio Manjericão ir
a algum lado. Desço as escadas e, quando lá chego, descubro-o a carregar a
traseira da pickup.
— Não te queria acordar — diz, parecendo já culpado em relação a alguma
coisa.
— Vais-te embora? — pergunto.
O tio Manjericão olha para mim, de forma calorosa.
— Será só por algumas noites — diz, embora a gigantesca mala de roupa
me diga o contrário. Tal como Sofia. — Além disso — prossegue —, já
ocupei o quarto do teu irmão. Não quero usar também toda a vossa água.
O tio Manjericão sempre se mostrou algo sensível à necessidade de ficar
connosco durante este ano. E toda esta história do Fechar da Torneira é mais
um fator a somar à sua dependência em relação a nós. Mas acho que a
ameaça de ficarmos sem eletricidade foi a gota de água que fez transbordar o
copo.
— Para onde vais? — pergunto.
— Para casa da Daphne. Ela ainda está naquela casa grande em Dove
Canyon. Diz que ainda têm água. Não sei quanto tempo irá durar, mas pelo
menos é qualquer coisa — diz ele, baixando os olhos.
Eu sorrio.
— Estás a falar da água ou de ti e da Daphne?
Ele dá uma gargalhada.
— De ambos — responde.
Daphne tem sido a sua namorada de forma intermitente. Já estavam juntos
antes de a quinta dele falir. Mudaram-se para aqui no início do Grande
Resgate — aquilo que chamaram ao êxodo em massa das comunidades
agrícolas de Central Valley. Daphne sempre se recusou a permitir que lhe
chamássemos «tio Manjericão» na sua presença. Era só Herb, sempre — o
que me leva a pensar que, no fundo, ela o ama de verdade, mesmo que
estejam sempre a romper o namoro.
— Bem — digo —, espero que o Fechar da Torneira ajude na vossa
reconciliação.
— Ela não o está a fazer por mim — admite. — Está a fazê-lo por ti.
— Por mim?
— Por todos vocês. Para me impedir de ser um fardo para a tua mãe e o teu
pai.
— Não és um fardo…
Ele sorri.
— Obrigado por dizeres isso, Lyssa.
Dou-lhe um abraço de despedida apertado e vejo-o arrancar. Depois volto
para dentro, triste por vê-lo partir assim, mas ao mesmo tempo um pouco
menos preocupada do que antes. O facto de ainda haver água corrente,
algures, faz nascer em mim a esperança de que, afinal, as coisas não estejam
assim tão más.
INSTANTÂNEO: KZLA NEWS

— As tensões crescem, à medida que o Sul entra no terceiro dia do Fechar da


Torneira, mas os funcionários do governo dizem que a ajuda vai a caminho.
A pivô da Eyewitness News, Lyla Singh, lê a sua parte, depois passa a
emissão a Chase Buxton, o seu coapresentador, que recita a sua frase a partir
do teleponto.
— Entretanto, o efeito em cascata que deixou mais de vinte e três milhões
de pessoas sem água corrente não mostra sinais de abrandar. Para atualizar a
informação, passamos a emissão a Donovan Lee, em Silverlake.
Enquanto a imagem salta do estúdio para o reservatório de betão vazio que
costumava ser Silverlake, Lyla reflete sobre as provações daquele dia. Chegar
ao estúdio a partir de Hollywood Hills foi um pesadelo. Quase tinha falhado
o jornal de atualização do meio da manhã, e agora parecia que os noticiários
iam substituir cada vez mais programas — o que significava que não iria
regressar a casa tão cedo.
— Ouviste dizer que o diretor da FEMA tem estado a ignorar os
telefonemas do governador? — dissera-lhe um dos operadores de câmara. —
Não estou a brincar: o furacão Noah é a única coisa com que a FEMA se
preocupa, para já.
Naquele momento, o produtor tinha passado por eles e admoestara-os a
ambos — como se Lyla estivesse a fazer algo mais do que ouvir.
— Trabalhamos com notícias, não rumores.
A cabina da produção passa a emissão de novo para o estúdio depois do
relato de Silverlake, e Lyla traz rapidamente os seus pensamentos de volta ao
aqui e agora.
— Obrigada, Donovan. No meio do caos, ao início do dia, eis o que o
governador tinha a dizer.
Passam a gravação que a estação tem vindo a repetir uma e outra vez
durante o dia, e Lyla ouve-a pela enésima vez, continuando a tentar perceber
se existiria algo na voz do governador que traísse uma verdade mais profunda
que não tivesse partilhado com a imprensa.
— A Federal Emergency Management está consciente da situação — diz o
governador — e dizem-nos que vêm a caminho camiões-cisterna com água
potável, oriundos de regiões tão distantes quanto o Wyoming, para satisfazer
as necessidades críticas imediatas do Sul da Califórnia.
Wyoming?, pensa Lyla. Quanto tempo demorarão os camiões carregados
de água a chegar aqui, vindos do Wyoming?
— Quero garantir aos habitantes do Sul da Califórnia — prossegue o
governador — que a ajuda está a caminho. Fábricas de dessalinização móveis
serão instaladas ao longo da costa, para transformar a água do mar em água
potável. Estamos a fazer todos os possíveis para aliviar a situação. Obrigado.
Depois parte, como sempre, evitando a torrente de perguntas.
A luz vermelha da câmara pisca, apanhando Lyla ligeiramente
desprevenida. Mas ela é uma profissional. Em vez de tropeçar, faz uma
pausa, levando o movimento a parecer intencional.
— Neste momento — lê —, todos são aconselhados a ficar em casa para
evitar insolações e a manterem a televisão ligada para mais informações.
— É isso mesmo, Lyla — diz Chase. — E devem evitar a realização de
atividades vigorosas.
— Exatamente. A melhor maneira de conservarmos água, neste momento,
é agarrarmo-nos àquela que o nosso corpo já tem.
Havia dois jarros cheios de água gelada no camarim de Lyla quando ela
chegara de manhã. Pensar neles, agora, era o suficiente para que quisesse
beber um copo cheio.
— Voltaremos logo depois do intervalo.
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Lyla relaxa, olhando para os resumos das próximas histórias. Como está o
jardim zoológico a lidar com o Fechar da Torneira. Um homem que foi
baleado quando estava a tentar roubar água de um camião-cisterna com
destino a um hospital e — acabadinha de chegar — a notícia da primeira
morte oficial por desidratação em San Bernardino. Porque seria sempre San
Bernardino?
Chase vira-se para ela, erguendo uma sobrancelha.
— Isto é mau — diz, com a mesma inflexão vocálica com que poderia ter
dito «Isto é fresco», no tempo em que dobrava os anúncios de fast-food
(embora corressem rumores de que tinha feito outro tipo de atuações). Mas,
como dissera o produtor, trabalhavam com notícias, não com rumores.
— E, no entanto, tudo o que dizemos às pessoas é que devem ficar calmas
e continuar a olhar para a televisão.
— O que deveríamos dizer-lhes? Que se lançassem a correr nuas pelas ruas
e a gritar?
— Se isso as ajudasse a ultrapassar isto, então, sim.
— Bem — disse Chase com um sorriso de esguelha —, isso daria uma
notícia e tanto.

Quando o noticiário da tarde chega ao fim, Lyla vai para o seu camarim,
descobrindo que ambos os jarros estão vazios. Alguém — talvez várias
pessoas — lhe roubou a água.
— Há mais a caminho — promete um estagiário nervoso. — Dez minutos,
no máximo.
Mas, dez minutos depois, continua a ser impossível localizar tanto a água
como o estagiário.
No corredor, Chase está ao telefone com o seu agente, o sistema de alta-
voz do telemóvel a partilhar os seus assuntos pessoais com todos os que neles
estejam interessados. O agente diz-lhe que, se souber lidar com aquilo da
melhor maneira, a crise poderá lançá-lo para o palco nacional. Talvez até para
um lugar na CNN.
— Odeio o facto de estares a usar isto como uma vara de salto — diz-lhe
Lyla.
Chase limita-se a encolher os ombros e prossegue com a sua conversa.
Ainda que Lyla também tenha as suas ambições no que diz respeito à
carreira, não é um chacal como Chase, em busca de um futuro entre os
escombros do presente. Olha por uma janela, tentando obter uma imagem real
da crise a partir do quadragésimo terceiro piso. Lá em baixo, a multidão
enche a rua. Será uma manifestação? Estará a decorrer uma distribuição de
água? Daquela altura, não consegue perceber. De súbito sente-se
claustrofóbica naquela torre. Isolada.
Depois, à medida que a tarde avança, começam a chegar mais relatos de
mortes por desidratação. Chegam a uma velocidade furiosa, e ela sabe que
terá de os noticiar, e não pode fazer mais do que imaginar como será estar do
outro lado, preso num bairro, a perguntar-se se a próxima fatalidade será
alguém da sua rua.
E, durante todo este tempo, não é trazida água ao seu camarim. O de Chase
também não tem. Parece não haver água para ninguém, e já ninguém faz
promessas.
É então que lhe ocorre. É um tiro no escuro, mas é a única ideia que lhe
ocorre.
— Põe-me no helicóptero Sky-Three — diz ao produtor.
— Como? — Ele olha para Lyla como se ela estivesse a delirar. — Lyla,
és uma pivô, já não fazes um relato a partir do ar desde os tempos em que
apresentavas o trânsito.
— Motins, incêndios e engarrafamentos: as histórias não estão aqui, estão
lá fora. As pessoas reagirão a isso — diz, fingindo que, tal como no caso de
Chase, é tudo uma questão de ambição. — Um pivô no céu irá fixar a sua
atenção. Mantê-los-á connosco em vez de mudarem de canal.
— Não — diz-lhe ele. — Preciso que permaneças no teu posto.
Mas, quando ele se afasta, ela sobe ao telhado.
O helicóptero Sky-Three está no heliporto, porque está a decorrer a
mudança de turno dos repórteres do trânsito. Por um momento, pensa no
Vietname, onde ocorreram alguns dos melhores relatos jornalísticos de
sempre. Claro que isso foi muito antes de ela ter nascido, mas não consegue
deixar de olhar para o helicóptero e imaginar como se terão sentido aqueles
repórteres que esperavam desesperadamente pela evacuação aérea enquanto
Saigão caía.
Kurt, o mesmo piloto que a costumava transportar nos seus primeiros
tempos na estação, está encostado ao poço das escadas, a fumar — algo que
não é permitido tão perto do helicóptero, mas ele não quer saber. A esperança
de Lyla é que essa não seja a única regra que não lhe interessa.
— Kurt, qual é o alcance do teu helicóptero?
— Cerca de quatrocentos quilómetros com o tanque cheio — diz-lhe. —
Neste momento provavelmente mais perto dos trezentos e vinte, porquê?
Lyla inspira fundo.
— Preciso de um favor.

Cinco minutos depois, estão a voar para longe da baixa de Los Angeles,
seguindo para leste. E quando ela sente que já colocou uma distância
suficiente entre eles e a redação, envia uma mensagem de texto ao produtor.
Vou levar o Sky-Three até Arrowhead. Relatarei a situação dos refugiados.
Envia-a. Pensa por um momento, depois escreve: Apoia-me ou despede-
me.
Pronto, está feito. Independentemente do que venha a acontecer, estará
num dos poucos locais onde ainda existe água. Os grandes lagos podem ter
níveis abaixo do habitual, mas continuam a ser lagos. Inspira fundo, aliviada,
sentindo que há uma ligação entre ela e os seus colegas jornalistas de há
tantos anos, à medida que eles subiam a bordo de helicópteros, a meio mundo
de distância, para escapar aos vietcongues.
DIA TRÊS

SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JUNHO

4) KELTON

Hoje não há aulas. Nem notícias acerca de quando recomeçarão. Com apenas
duas semanas até ao fim do ano escolar, pergunto-me se iremos regressar de
todo.
Tento manter-me ocupado a ler livros aos quadradinhos, mas, por alguma
razão, hoje não me conseguem cativar. Procuro material de caça online, para
juntar à minha lista de presentes que desejo para o Natal — continua a não
me prender a atenção. Por isso vou ver vídeos de chessboxing — um desporto
de combate híbrido em que os lutadores alternam entre uma ronda de xadrez
e outra de boxe. É o único desporto em que não se utiliza uma arma em que
sou bom. Também foi a única coisa que me atirou para as aulas disciplinares
de sábado em toda a minha carreira escolar — porque, depois de ter feito uma
exposição oral sobre o assunto em Inglês, no ano passado, fui encurralado por
um trio de não-crentes e forçado a demonstrar a parte do boxe no nariz de um
deles. Também lhes teria dado uma tareia no xadrez, mas fui arrastado até ao
gabinete do diretor.
Vejo alguns vídeos, mas hoje nem o chessboxing me consegue interessar.
No entanto, é mais do que isso. Sinto-me perturbado quanto ao estado do
mundo lá fora, mesmo tendo em consideração o quão preparados estamos.
Tudo começou quando Mr. Burnside apareceu à nossa porta com um
presente. Claro que adoro a ideia dos arqui-inimigos da nossa família se
transformarem em lambe-botas sicofânticos, mas quando o estranho se
transforma, de facto, em realidade, deixa-nos, sem dúvida, com a cabeça à
roda. À semelhança daquele sentimento de «então e agora?», quando
olhamos para os olhos escuros do primeiro veado que derrubámos, ou o
desespero triunfante de abater um pato em pleno voo apenas para o ver cair
num penhasco, não voltando a ser recuperado por toda a eternidade. E quanto
mais penso nisso… mais me apercebo de que tudo pode estar, de facto,
relacionado com a caça. Quer dizer, consta que todas as nossas ações e
inações estão relacionadas com uma programação primordial dos nossos
cérebros para combater ou fugir… Por exemplo, conquistar o afeto de uma
rapariga é muito semelhante a caçar um veado. É importante que a
abordagem seja lenta e cautelosa — e de preferência realizada a partir de um
ângulo traseiro, sobre o qual tenham pouca ou nenhuma visão. As mulheres,
como os veados, podem assustar-se com um odor forte, razão pela qual é
importante usar sempre desodorizante. Vestir roupas camufladas também não
é mau, porque, pela minha experiência, as miúdas acham os camuflados
muito fixes. Mas, para além de tudo isso, acho que o aspeto mais importante
na obtenção de uma rapariga é saber quando puxar o gatilho.
Metaforicamente, claro está. Temos de avançar quando o momento nos
parecer certo, caso contrário poderão achar-nos assustadores. Também isto
aprendi com a experiência.
Mas, no que diz respeito à minha vizinha do lado, Alyssa Morrow, sinto-
me como se ela fosse o veado que nunca consegui abater. Fico perto de dar o
último passo, ou pelo menos de lhe dizer o que sinto, mas, por alguma razão,
o momento nunca parece acertado. Sempre achei que, se estivesse no sítio
certo, o momento certo se apresentaria, por isso este ano pirateei o
computador da escola e consegui que cinco das minhas seis disciplinas
fossem com ela… teria preferido as seis, mas isso seria demasiado óbvio.
Nesta manhã, em particular, Alyssa está a terminar o trabalho no jardim da
frente. Parece estar a tentar retirar água do seu sistema de irrigação, mas isso
não vai funcionar. Tendo em conta a relva castanha, os aspersores já estão
secos há meses, tal como os de quase toda a gente. No que diz respeito ao
momento certo, começo a achar que agora é melhor do que nunca, por isso
envergo um colete tático camuflado com as cores do deserto e dirijo-me à
casa do lado.
Saio e localizo Alyssa a dirigir-se para a garagem, a tentar transportar, com
dificuldade, uma mala de ferramentas. Tenho vantagem posicional, por isso
flanqueio-a pela esquerda. À medida que me aproximo, engulo em seco, os
nervos a apertarem a minha garganta.
— Precisas de ajuda? — lá consigo dizer. Apercebo-me de que foi
exatamente a mesma coisa que disse no outro dia, quando estavam a
descarregar o gelo. Espero que ela aprecie a consistência.
— Não é preciso, acho que dou conta do recado. — Embora, claramente,
não dê. Talvez esteja a tentar não parecer fraca à minha frente. Por isso
insisto.
— Bem, pelo menos deixa-me levar isto — digo, enquanto pego em
algumas chaves inglesas e as guardo no meu bolso. Os calções com bolsos
são fundamentais. As raparigas adoram um tipo com bolsos.
— Obrigada — diz, enquanto guardamos as ferramentas nos seus
respetivos lugares, na garagem. É então que capto o cheiro de algo terrível
que vem de dentro de casa. Sou obrigado a torcer o nariz, porque ela repara e
afasta o olhar, como se eu pudesse pensar que o cheiro vem dela.
— Problemas sépticos?
— Acho que o gás dos esgotos está a invadir a nossa casa, devido à falta de
água — diz-me. — O meu pai está a trabalhar em algumas modificações na
canalização, para tentar impedi-lo.
Isto, eu já sabia, era inevitável. Provavelmente todas as casas do bairro,
com exceção da nossa, devem ter o mesmo cheiro, por esta altura. Mas nem
todos parecem tão diligentes quanto a tentar resolver o problema como
Alyssa e a família. Claro que estão a lidar com a situação da maneira errada.
— Aquilo de que precisas é de líquido de selagem de evaporação zero.
Basta despejar cerca de uma caneca em cada cano e os gases dos esgotos não
poderão entrar. — E depois acrescento: — É o que usam nos urinóis sem
água.
Ela faz uma careta de nojo, e apercebo-me de que foi demasiada
informação.
— De qualquer maneira — digo, tropeçando um pouco nas palavras e
afastando o olhar involuntariamente —, posso dar-te uma garrafa. Temos
bastantes. — O que é verdade, mas, quando o meu pai descobrir que a dei,
vai dar-me cabo do canastro.
Mas vale a pena, porque Alyssa sorri.
— Obrigada, Kelton… isso é mesmo generoso da tua parte.
E, depois de a ter visto sorrir assim para mim, algo me impele a atirar-me
de cabeça. Estendo-lhe o cantil.
— Toma, bebe um pouco — digo. — Pareces ter sede.
Alyssa pega no cantil, cautelosamente.
— Tens a certeza? — pergunta.
Encolho os ombros, como se não fosse nada.
— Para que servem os amigos?
Dá alguns goles e devolve-mo. Depois eu bebo um gole. Alyssa e eu
acabámos de partilhar um cantil. Tendo em conta a troca de saliva envolvida,
é quase como um beijo. Reprimo um pequeno arrepio perante tal pensamento.
— Obrigada, Kelton — diz. Depois ficamos ali de pé, em silêncio, mas,
pela primeira vez, o silêncio entre nós parece um pouco mais natural. Sabe
bem.
Sem aviso, Garrett surge, aparentemente do éter, e arranca o cantil das
minhas mãos.
— Obrigado, Kelton! — diz, em tom trocista.
— Não sejas mal-educado — diz-lhe Alyssa. — Isso não é teu!
Nesse preciso instante, o pai deles entra com uma caixa de trapos sujos e a
mãe logo depois. Ela sorri, quase não se conseguindo conter.
— Disseram nas notícias que vão colocar máquinas de dessalinização ao
longo da costa. Vão ter algumas em funcionamento em Laguna Beach, esta
tarde.
— O que é uma máquina de dessalinização? — pergunta Garrett.
— É uma máquina que converte água salgada em água doce — digo-lhe.
— Têm uma grande fábrica em San Diego, mas não nos vai ajudar. —
Verdade seja dita, também não vai ajudar muito San Diego. Foi bem pensado
da parte deles construí-la há alguns anos, por isso, ao menos desta vez não é
um típico caso de fazer pouco, tarde de mais. É antes fazer pouco, mesmo a
tempo. Porque, a funcionar em pleno, consegue produzir água suficiente para
oito por cento da população de San Diego. Menos de uma em cada dez
pessoas. Não foi propriamente a solução que esperavam.
O pai de Alyssa limpa o suor da testa.
— Pagamos impostos elevados para financiar organizações como a FEMA.
É tempo de avançarem e fazerem alguma coisa.
— Bem, não nos podem simplesmente deixar morrer à sede — acrescenta
a mãe dela, como se a ideia fosse estapafúrdia, mas depois espera que alguém
valide a sua afirmação.
O pai de Alyssa abana a cabeça.
— É uma questão de números — diz. — Afinal de contas, a Califórnia
sozinha é uma das maiores economias laborais. Precisam de nós e não acho
que sejam tolos a ponto de nos negligenciarem.
As palavras do pai dela ficam gravadas na minha memória… e, embora
tenham mérito, não consigo deixar de ouvir a voz do meu pai a ecoar na
minha cabeça, queixando-se dos milhares de erros acumulativos que nos
conduziram a este ponto — as diminuições de consumo falhadas, as
comissões de conservação e as tentativas radicais de poupar água, como os
milhões de bolas de plástico pretas que Los Angeles lançou para os seus
reservatórios para impedir a evaporação da água, há vários anos, e que de
nada serviram. E agora não consigo decidir se estamos a avançar para uma
solução real ou se estamos a lançar, desesperadamente, garrafas de água para
o problema…
Abro a boca para levantar essas questões, mas depois interrompo-me,
subitamente, lembrando-me do que o meu pai me disse acerca das ovelhas.
Do seu comportamento. De como o seu principal instinto é seguir os
membros da manada diretamente à sua frente, e como o facto de serem
desviadas, ainda que ligeiramente, do seu caminho, desperta nelas uma
avassaladora sensação primordial de pânico que pode ser mortal. Certa vez,
apresentei um trabalho oral sobre a atualidade, acerca de um rebanho com
quinhentas ovelhas, algures na Turquia, que mergulhou para a morte, tendo-
se as ovelhas lançado, uma a uma, para uma ravina, porque todas seguiam a
que se encontrava diretamente à sua frente, sem nunca compreenderem o
panorama geral. O que será pior, pergunto-me: ver todos os que conhecemos
a cair nessa ravina, ou ver a nossa realidade alterada com tal violência que
perdemos a vontade de viver?

5) ALYSSA
Hoje, a sanita está verdadeiramente a vingar-se de nós por todos os anos de
trabalho cruel e insalubre. Tem vindo a emitir estranhos sons gorgolejantes e
a expelir um cheiro digno de ovos podres com seis meses. Por isso, a nossa
missão atual é limpar as sanitas tão bem quanto possível e despejarmos nelas
dois copos do líquido selante de Kelton, para que a nossa casa possa voltar a
cheirar mais como uma casa e menos como uma fossa séptica rancorosa.
Sendo o governante supremo da casa, o meu pai encarregou-me, a mim e a
Garrett, de tratarmos das sanitas.
Esta manhã, o pai tomou a liberdade de delegar tarefas através de post-its
com mensagens passivas-agressivas, escondidos como ovos da Páscoa por
toda a casa. Num deles, no frigorífico, pode ler-se: «Seis copos de água por
dia!» Noutro, no chuveiro, consta: «Só banho seco!», que consiste em gel de
banho e papel de cozinha. Mas acho que o pior de todos é «Limpem-me, por
favor!», logo por cima da sanita. O meu pai instalou habilmente sacos por
baixo de cada assento, que devemos deitar fora depois de os usarmos, como
um gigantesco pesadelo de campismo. Aquilo do saco ainda se aguenta, mas
ter de limpar a sanita, no seu estado atual, é um castigo cruel.
Garrett e eu começamos pela casa de banho do piso térreo, dado que a
nossa água está guardada na banheira adjacente à sanita. Olho para a banheira
e apercebo-me de que o nível da água já desceu desde sábado. Esta manhã, a
minha mãe deu, discretamente, alguns litros a uns amigos que vivem ao virar
da esquina. Com as unidades de dessalinização a serem instaladas ao longo
da costa, ela calcula que em breve haverá água suficiente para todos, logo,
porque não há de ser generosa? Se a decisão fosse minha, provavelmente
faria o mesmo.
— Como querem que limpemos a sanita se não podemos usar água? —
pergunta Garrett, enquanto enfia as mãos naquelas luvas de limpeza amarelas
que chiam quando esfregamos os dedos uns nos outros.
— O pai disse que os produtos de limpeza estão debaixo do lavatório.
Tenho a certeza de que consegues descobrir uma maneira.
Aperto o nariz com os dedos e atrevo-me a olhar para o fundo da sanita.
Um líquido negro borbulha até à superfície.
— Porque tenho de ser eu a fazer isto? — choraminga.
— Porque o vamos fazer à vez — recordo-lhe, depois apelo ao seu ego
masculino. — Além disso, és rapaz, vais ser naturalmente melhor do que eu
no que diz respeito a canalização.
Ele acena em concordância, claramente satisfeito por me ouvir dizer que é
melhor do que eu em alguma coisa. Depois vai à procura dos produtos de
limpeza por baixo do lavatório.
— Pode ser lixívia — digo-lhe.
Garrett acaba por se decidir por uma lata verde de Comet em pó, um
produto de limpeza multiusos à base de lixívia, e prepara-se para pousá-lo na
beira da banheira. No entanto, mal o fundo da lata toca na beira da banheira,
já consigo ver o pior cenário possível a desenrolar-se na minha cabeça, mas
não é senão quando ele larga o Comet que o meu pior receio se torna
realidade. A lata, precariamente pousada na beira irregular, começa a
deslizar…
O meu coração acelera.
— Garrett! — grito, e é tudo o que consigo dizer.
Ele vira-se e, antes que seja sequer capaz de se aperceber da situação, a lata
de lixívia em pó já deslizou pelo lado da banheira e caiu com um chape na
água.
Garrett olha para mim, o rosto branco como lixívia, completamente
privado de cor. E depois segue-se o mais torturante dos silêncios.
O meu irmão lança-se sobre o Comet, mas este escorrega-lhe das mãos e
flutua ainda para mais longe. A água começa já a ficar turva, com uma névoa
rodopiante de pó de limpeza multiusos venenoso. E depois a realidade abate-
se sobre mim.
Garrett acaba de contaminar a única água que temos…
— Talvez consigamos salvar uma parte — diz, quando por fim agarra a
lata e a retira da água, de pernas para o ar, largando ainda mais pó, que se
dissolve na banheira.
— Já está contaminada, idiota — digo-lhe, em tom cortante.
— A culpa é tua — grita-me. — Tu é que me disseste para usar lixívia!
— Sempre foste um trapalhão! Tens ideia do que acabas de fazer?
Mas, em vez de apresentar nova defesa, o seu rosto contrai-se, o seu olhar
fica enviesado e brilhante, e as lágrimas começam a correr, o corpo cedendo
ao desespero.
A minha consciência de irmã entra em ação e, subitamente, desejo ser
capaz de apagar aquilo que disse.
— Desculpa — diz, por entre fungadelas, enterrando o rosto nas mãos.
— Não faz mal — digo-lhe, e dou-lhe um abraço, algo que me apercebo
que já não faço há muito tempo. — Temos as máquinas de dessalinização na
praia. A mãe e o pai vão abastecer-se, lembras-te?
Garrett acena com a cabeça, recompondo-se.
— De qualquer maneira, beber água da banheira era um nojo — digo, e ele
ri, interrompendo as lágrimas durante tempo suficiente para emergir do
desespero.

Concordo em ser eu a contar à mãe e ao pai o que aconteceu, porque Garrett


argumentou que soaria melhor se saísse da minha boca. Claro que a
verdadeira razão é que tem demasiado medo de ser ele a dar a notícia. Por
alguma razão, acha que os nossos pais são muito mais assustadores do que
realmente são… por outro lado, não foi um simples jantar estragado, uma
bombinha de mau cheiro ou uma janela partida.
— Eu conto-lhes, mas não vou ficar com as culpas — digo a Garrett. —
Sei que foi um acidente, mas ainda assim tens de assumir o que fizeste. —
Que tipo de irmã seria eu, se não lhe ensinasse a importância de assumir a
responsabilidade?
Desço para dizer à mãe e ao pai, preparando-me para o pior — mas eles
não se zangam. O que, segundo em breve me apercebo, é pior do que se se
tivessem zangado.
— Toda? — pergunta o meu pai, como se houvesse maneira de separar a
água com Comet da água potável.
— A culpa não foi do Garrett — digo-lhes, embora tenha sido. — Ele só
estava a tentar limpar a sanita, como vocês lhe disseram que fizesse.
Estou à espera que a minha mãe diga algo do género: Não atires as culpas
para cima de nós! Mas ela nem sequer responde ao meu comentário débil.
Apercebo-me de que aquilo não foi apenas uma asneira. É um Evento. E os
eventos contornam a raiva, seguindo diretamente para o controlo de danos.
— Ainda temos o jarro no frigorífico — diz a mãe, olhando para o meu
pai.
O pai acena com a cabeça.
— As plataformas de dessalinização devem ficar prontas hoje. Iremos até
lá assim que pudermos.
— Talvez possamos ferver a água da banheira, uma panela de cada vez —
sugiro —, e recolher o vapor. — Tínhamos feito uma destilaria assim no
sétimo ano, como parte de um laboratório de ciências. Tanto quanto me
lembro, quase não consegui encher um tubo de ensaio com a água assim
recolhida, mas aposto que Kelton era capaz de construir uma que
funcionasse.
Será que acabei de pensar em pedir ajuda a Kelton?
— Isso é um projeto para outro dia — diz o meu pai, já assoberbado pelo
peso da notícia que acabo de lhe dar.
— Desculpem — digo-lhes. — É uma treta, e lamento.
— Querida, não chores sobre o leite derramado — diz a minha mãe.
— Ou a água envenenada — acrescenta o meu pai, o que me faz sorrir,
mas aperto os lábios com força para que eles não o consigam ver.
Subo para informar Garrett de que não será entregue para adoção, enviado
para um campo de trabalhos forçados ou transformado em empadas de carne
— mas não o consigo encontrar. Procuro na casa de banho, no jardim das
traseiras e até na garagem… e é então que vejo que a sua bicicleta
desapareceu. Foi-se embora sem dizer nada a ninguém, com demasiado medo
do que a mãe e o pai lhe pudessem fazer.

A mãe e o pai largam tudo para procurar Garrett. Querem que nos separemos
e procuremos de maneira sistemática todos os lugares para onde possa ter ido.
Estão um bocadinho mais preocupados do que pensei que ficariam. Eles
reagem sempre de forma exagerada no que diz respeito a Garrett. O meu
irmão nasceu um mês antes de tempo, e isso atirou os meus pais para um
modo de proteção hipersensível eterno; ainda hoje, se ele tiver sequer um
arranhão, o mais provável é que recorram ao número do hospital memorizado
numa das teclas de marcação rápida, para um enxerto de pele. Tento dizer a
mim mesma que são apenas os meus pais a serem pais, mas hoje não consigo
deixar de me preocupar um bocado, tendo em conta as circunstâncias.
Eu tinha concordado em verificar os parques onde ele e os amigos gostam
de passar o tempo, e o trilho para bicicletas que corre paralelamente à
autoestrada. Vou buscar a minha bicicleta, mas os dois pneus estão em baixo,
porque há anos que não a uso, e os pneus agora não mantêm o ar no seu
interior, por muito que eu dê à bomba. Tudo o que tenho disponível é o
GoPed de Garrett, que não faço ideia como se usa, e um pogo stick — um
objeto claramente inventado por Satanás, logo depois de ter inventado o
monociclo. Por isso, esgotadas todas as opções, apercebo-me de que vou ter
de pedir ajuda a Kelton. Talvez ele me empreste uma bicicleta — ou crie uma
alternativa com pastilha elástica e cera dos ouvidos.
Toco à campainha e ele vem à porta, quase depressa de mais.
Não tenho tempo para conversas. Vou direta ao assunto.
— Tenho um favor a pedir-te. O Garrett desapareceu, e eu preciso de uma
bicicleta.
Em vez de ser esquisito, Kelton responde como um ser humano normal.
— Podes usar a do meu pai — diz. — Vou buscá-la.
Volta a entrar e depois encontra-se comigo no portão lateral. É uma bela
bicicleta. Depois apercebo-me de que também traz a sua própria bicicleta.
— Duas cabeças pensam melhor do que uma — diz. — Além disso, não é
boa ideia andares por aí sozinha, neste momento. Pode parecer que está tudo
calmo, mas é sempre assim antes de uma tempestade.
Esqueçam a parte do ser humano normal.
— Não é preciso, Kelton. Não tens de vir.
— O preço de levares emprestada a bicicleta do meu pai é deixares que vá
contigo.
Kelton, tal como eu, não está com rodeios — e, claramente, não está a
negociar.
— Como queiras — digo-lhe. Na verdade, não me importo, tendo em conta
que foi oficialmente despromovido de laranja para amarelo na escala de
ameaças à minha sanidade.
Começamos pelos trilhos mais secundários, que acabam por nos levar de
volta à estrada principal perto da escola de Garrett — sendo a minha logo do
outro lado da rua. O que me leva a pensar que talvez esteja escondido no
último lugar que esperaríamos, o lugar que ele odeia mais do que couve-flor
ou lições de piano, tudo junto — Meadow Creek Elementary School.
Inclino-me para a esquerda, redirecionando a trajetória da minha bicicleta,
mas, antes sequer de conseguir virar, um camião passa por mim a acelerar,
quase nos atropelando. Primeiro dou por mim irritada com o facto de alguém
poder conduzir de maneira tão inconsciente, mas, assim que me apercebo de
que tipo de camião se trata, as minhas costas ficam rígidas e, sem sequer
pensar, as minhas pernas param de pedalar.
Trata-se de um camião militar com camuflagem verde, sem tejadilho,
repleto de soldados armados. O meu primeiro pensamento é parvo. O tipo de
coisas que pensamos antes de a nossa mente ter tempo de passar a questão
pelo cérebro.
— Que raio? Os meus pais chamaram o raio da guarda nacional?
— Calma antes da tempestade — diz Kelton.
O meu cérebro já entrou em ação e apercebo-me de que isto é muito mais
do que o simples desaparecimento do meu irmão. É bastante perturbador ver
máquinas de guerra a atravessar o bairro em que crescemos — e, como se
isso não fosse suficientemente perturbador, o camião vira à esquerda, para o
parque de estacionamento da minha escola.
— O que achas que se está a passar? — pergunto-lhe, na esperança de que
o seu extenso conhecimento de factos militares inúteis possa servir para
alguma coisa.
— Não sei — diz. — É demasiado cedo para a lei marcial…
— Em língua de gente, por favor.
— É quando o exército assume o controlo — diz. — Significa que os tipos
importantes do governo acham que a polícia local não é capaz de lidar
sozinha com a situação.
— Bem, isso devia ser uma coisa boa, certo? — digo, querendo convencer-
me. Chego-me para trás, no selim da bicicleta. — Significa que ficaremos
mais seguros…
Kelton tenta sorrir.
— Pode ser — diz, embora eu tenha a sensação de que ele não acredita que
possa ser, de todo, uma coisa boa. — Talvez.
Talvez. Estou tão farta de talvez!
Talvez seja a lei marcial. Talvez a FEMA mande camiões-cisterna com
água. Talvez tudo esteja bem amanhã. Viver neste mundo de absoluta
incerteza é cada vez mais frustrante. Por isso continuo a pedalar e sigo o
camião de transporte. Não é apenas uma questão de estar zangada, preciso de
saber. Preciso de matar o «talvez». Kelton está no mesmo comprimento de
onda que eu, porque vem a pedalar atrás de mim.
Pedalamos para lá da parte baixa do campus, do estádio de futebol e depois
dos campos de ténis, só para vermos onde irá parar o camião. Mas só quando
passamos pelo centro aquático é que temos a nossa resposta.
Não é apenas um camião, mas um monte de veículos militares. Têm a
piscina completamente cercada… porque as piscinas escolares foram as
únicas excluídas da Frivolous Use Initiative. Eram as únicas piscinas que
ainda tinham água.
O perímetro do centro aquático está agora guardado por soldados com
espingardas automáticas. E, desembocando na piscina, estão uma dúzia de
grossas mangueiras de incêndio — que parecem estar a sugar a água e a
depositá-la numa série de camiões-cisterna. Depois, um dos guardas militares
vê-me e fixa os olhos em mim. Eu não afasto o olhar, mas também não me
aproximo mais. É como se, de alguma maneira, eu fosse o inimigo.
— Já devia ter calculado — diz Kelton, irritado consigo mesmo por não
saber tudo na história de tudo.
— Aqueles idiotas acham que vamos beber aquilo? — rio-me. — Tenho
amigos na equipa de polo aquático. Já ouvi as histórias. Teriam de me pagar
para beber aquela água.
— Se conseguem filtrar o sal e as entranhas dos peixes e as poias das
baleias da água dos oceanos, tenho a certeza de que conseguem lidar com o
que quer que os idiotas da equipa de polo deixaram para trás — diz Kelton.
E, por alguma razão, aquilo fez-me pensar, ativando uma recordação. Algo
que Garrett tinha dito quando estávamos a empurrar aquele carrinho de
compras estragado na Costco…
Arquejo e Kelton olha para mim, perguntando-se porquê.
— O amigo do Garrett, o Jason, tem um aquário enorme! Aposto que foi a
casa dele pedir-lhe um bocado dessa água!
Embora Garrett sempre tenha sido duro consigo mesmo, nunca foi muito
de amuar, por isso faz todo o sentido que tente corrigir a situação em vez de
fugir dela. Levo a mão ao telemóvel e apercebo-me de que não o tenho.
Deixei-o na minha mesa de cabeceira. Parva.
— Emprestas-me o teu telemóvel? Tenho de dizer aos meus pais. Eles
conseguem lá chegar mais depressa.
Kelton passa-me o telemóvel, mas, depois de olhar fixamente para o ecrã
por alguns momentos, apercebo-me de que nem sequer sei o número dos
meus pais. De facto, não conheço de cor o número de ninguém, a não ser o do
meu namorado idiota do oitavo ano, que é a última pessoa neste ou em
qualquer outro planeta a quem ligaria.
Não quero admitir a Kelton a minha atual inutilidade, por isso limito-me a
dizer:
— Não estamos assim tão longe, vamos nós.

Pedalamos duas vezes à volta do quarteirão onde vive Jason.


— Não sabes onde é que ele vive, pois não?
— Cala-te, está bem? — digo, irritada, porque só sei, mais ou menos, onde
vive Jason. — Há uma árvore enorme no jardim da frente — digo-lhe. — Do
tipo ridiculamente grande.
Mas não há árvores assim tão grandes em lado nenhum.
— Tenho a certeza de que é nesta rua — digo, depois de uma terceira
passagem.
Kelton pensa na questão.
— Então vamos fazer um bocadinho de trabalho de detetive — diz. — Se a
árvore era assim tão grande, provavelmente representava uma enorme
violação das regras da associação… e, acredita em mim, a minha família sabe
do assunto, porque tudo o que fazemos é uma violação.
— Ou seja?
— Ou seja, nem todos repetem as violações…
Por fim percebo.
— Um cepo! Estamos à procura de um cepo!
E cinco casas mais acima lá está ele!
Kelton sorri, satisfeito consigo mesmo. Em quaisquer outras circunstâncias
poderia ter sido irritante, mas ele merece o seu momento. Outra pessoa
poderia ter pensado simplesmente que eu estava a mentir, ou que não me
lembrava — mas ele aceitou que eu estava a dizer a verdade e partiu daí.
— Foi bastante inteligente — admito, enquanto nos dirigimos até à casa.
Kelton encolhe os ombros com uma falsa modéstia.
— Não passa de uma simples dedução.
É então que a minha própria dedução é confirmada — porque a bicicleta de
Garrett está ali, tombada de lado, junto à porta da frente.
Saltamos das nossas bicicletas e aproximamo-nos da casa. As portas estão
entreabertas. Parece estranho bater a uma porta que já está parcialmente
aberta, mas faço-o. Não há resposta, por isso abro a porta toda.
Entro e Kelton segue-me. Há um cheiro no ar. Terrível. Podre.
— Pode ser um cadáver — sussurra Kelton. Ignoro-o.
A sala de estar parece bastante normal. Com exceção da berrante estátua
romana com os genitais cobertos por uma folha. Gostos não se discutem.
— Acho que não está ninguém em casa…
Que se lixe. Atravesso a sala de estar e penetro ainda mais fundo na casa.
— Garrett…? — chamo… sem resposta. — Está alguém em casa?
Kelton hesita.
— Sabes, é perfeitamente legal disparar contra alguém por forçar a entrada
numa casa particular.
— Está bem… quando eu estiver morta podes dizer-me: «Eu bem te
avisei.»
A princípio, Kelton segue atrás de mim, mas depois passa para a frente,
como se se lembrasse de que um escuteiro, provavelmente, não se deve
esconder atrás de raparigas.
Continuamos pelo corredor. Quanto mais avançamos, mais estranho se
torna o tapete por baixo dos meus pés — mais esponjoso fica. Está molhado
— e o cheiro é pior do que antes.
É então que algo capta o meu olhar…
Um peixe tropical… não, dezenas deles. Todos mortos, espalhados pelo
chão da sala. Ergo os olhos e percebo porquê… O aquário gigante está
partido. O aquário enorme chega ao teto, as coleções de rochas e corais que
outrora fizeram parte do ecossistema aquático ainda estão intactas. Este é,
sem dúvida, o aquário de que Garrett tinha falado. Avanço para mais perto,
para ver melhor. Uma parte considerável do tanque foi partida, violentamente
esvaziada de toda a sua água, com exceção de uma fina camada no fundo,
talvez uns dois centímetros e meio, onde um pequeno peixe-palhaço tenta
sugar a água, desesperadamente, o seu corpo em parte exposto ao ar. Pego
nele e mudo-o para uma outra parte do tanque, onde tem melhores hipóteses
de sobrevivência…
— Estava assim quando aqui cheguei — diz uma voz atrás de nós. Viro-
me, e ali está Garrett, junto à porta da cozinha. — E, além disso, é água
salgada.
Fico feliz por o ter encontrado… mas mil pensamentos não tardam a
lançar-se numa torrente pela minha cabeça, fazendo rebentar os diques da
minha paciência.
— Então o que estás ainda aqui a fazer? — digo, asperamente,
apercebendo-me de que estou irritada por nos ter enviado numa caça aos
gambozinos.
— O pai disse que precisava de mais molho para a massa, por isso pensei
que podia levar uma ou duas garrafas emprestadas — explica, evitando as
questões importantes, como sempre faz. Baixa os olhos e pontapeia uma
rocha invisível. — Não podemos sair de mãos a abanar, sabes?
— Deixaste a mãe e o pai preocupadíssimos. Deixaste-nos a todos
preocupadíssimos — digo-lhe, embora tenha a certeza de que ele já sabe
disso. Exalo para libertar a irritação, e olho à volta da sala, observando a cena
bizarra. — Então o que aconteceu aqui?
Garrett encolhe os ombros.
— Acho que eles deixaram a cidade e alguém deve ter forçado a entrada.
— Bem — diz Kelton, olhando à sua volta para os peixes mortos —, de
certeza que não vieram pelo sushi. — Talvez tivesse sido quase engraçado,
numa situação diferente.
Nesse momento, Kelton baixa-se e pega num estilhaço de vidro. Segura-o
como se o quisesse inspecionar, o estilhaço cintila num raio de luz… e é
então que reparo no que ele já viu. Há sangue no vidro…
— Vamos embora — diz Garrett.
Kelton e eu não precisamos de um segundo convite. Nem nos
preocupamos em levar o molho para a massa.

Uma vez regressados, a mãe e o pai não põem Garrett de castigo, o que me
deixa algo preocupada. Em vez disso, estão a virar a casa de pernas para o ar,
em busca de garrafões vazios que possam levar até às máquinas de
dessalinização.
— Achas que nos deixam trazer mais de sete litros e meio? — pergunta a
minha mãe, para quem quer que a esteja a ouvir, com a cabeça enfiada na
despensa.
— Podemos sempre voltar para ir buscar mais! — grita o meu pai,
provavelmente a partir de um qualquer armário.
Garrett emerge da porta para a garagem com um grande recipiente
reservado para as viagens de campismo.
— Isto serve?
— Sem dúvida — diz a minha mãe. Garrett, dado que não foi castigado,
está agora a fazer os possíveis por ser o filho perfeito. Dou-lhe cinco minutos,
no máximo.
— Toma conta do teu irmão — diz-me a minha mãe. — E tem cuidado
com os McCrackens. Lembra-te que nessas pessoas nem com um dedo se
deve tocar.
O meu pai passa pela cozinha e pega nas chaves do automóvel que estão na
tigela em cima da bancada.
— Ouve a tua mãe — afirma, sem sequer fazer ideia do que ela acaba de
dizer.
— O Kelton não é assim tããão mau — digo, apercebendo-me de súbito de
como isso soa estranho vindo da minha boca.
A minha mãe e o meu pai, com os recipientes vazios debaixo dos braços,
dirigem-se para a porta.
— Bem, o irmão mais velho dele pôs-se a andar daqui mal pôde. Os
sapatos até deixaram marcas de derrapagem nos degraus — diz o meu pai.
Garrett segura a porta, educadamente, e a minha mãe dá-lhe um beijo na
cabeça.
— Vemo-nos daqui a pouco — digo, com um sorriso.
Eles levam o Prius da minha mãe, porque o automóvel do meu pai ainda
está a convalescer na garagem. É em momentos como estes, vendo-os juntos,
que dou valor à família que tenho. Quando somos adolescentes passamos
muito tempo a queixar-nos de como os nossos pais são chatos, e depois
encontram sempre uma maneira de nos recordarem que, na verdade, não são
assim tão pouco fixes quanto queremos acreditar. E agora que os dois saíram,
por uma qualquer razão infantil, dou por mim a desejar poder ter-lhes dado
um abraço de despedida.

6) KELTON

Decido não contar ao meu pai acerca dos camiões militares que vimos na
nossa escola. Não que considere que não se trata de um desenvolvimento
significativo, mas, tendo em consideração que ainda não conseguimos entrar
em contacto com o meu irmão mais velho, Brady, não vale a pena levantar as
proverbiais ondas, se, de qualquer maneira, vamos ficar à espera dele, em vez
de nos pormos a andar para o nosso refúgio nas montanhas. Com o meu pai,
as achas do Armagedão depressa se transformam num inferno apocalíptico,
na sua cabeça. Já ficou com aquela expressão louca nos olhos quando ouviu
dizer que havia tantas escolas fechadas — o que, já agora, para mim, não é
tragédia nenhuma. Não que odeie a escola, é que, bem vistas as coisas,
consigo aprender mais se ficar em casa. Provavelmente, teria continuado a
estudar em casa se os meus pais tivessem paciência para isso.
Para tirar essas coisas da cabeça, carrego a minha arma de paintball e
pratico tiro ao alvo nas traseiras. Estou a acertar em todos os alvos, mesmo
no centro, e tento dizer a mim mesmo que isso é um bom presságio. As
plataformas de dessalinização na praia vão fazer o seu trabalho. Ninguém vai
passar sede. Tudo ficará bem.
O meu pai entra no pátio.
— Não te esqueças de expirar quando disparas — diz. Ele sabe do que
fala, afinal de contas passou doze anos nos Marines. A minha mãe gosta de
gozar com a sua carreira como jarhead, as suas «missões de extração»,
porque tecnicamente trabalhava como dentista militar e nunca chegou a
deixar a base.
Depois de mais alguns tiros, o meu cartucho de CO2 fica vazio. Entro em
casa para o ir trocar e, logo depois de carregar o novo cartucho, batem à porta
da frente. O meu pai abre — é Roger Malecki, um dos nossos vizinhos. Os
Maleckis tiveram um bebé há pouco, por isso quase nunca os vemos. Na
verdade, também pouco os víamos antes do bebé. A nossa família não é das
mais sociais.
— Como vão as coisas, Roger? — pergunta o meu pai, num tom
agradável.
— Uh, nem perguntes — diz Malecki. — O automóvel está
constantemente a sobreaquecer. Além disso, estamos com problemas com os
esgotos. Toda a casa fede.
— Percebo-te — diz o meu pai. — Sabes, os Morrows, aqui ao lado,
tiveram o mesmíssimo problema. — Contudo, não oferece líquido selante a
Malecki.
Então, Malecki começa a evitar o contacto visual. O meu pai não tem
paciência para rodeios.
— O que posso fazer por ti, Roger?
Malecki solta um suspiro.
— É a bebé. A Hannah ainda consegue amamentá-la, mas está a ficar
desidratada. Tenho medo de que não seja capaz de amamentar durante muito
mais tempo. Temos algum leite em pó, mas é inútil sem água…
— Lamento ouvir isso — diz o meu pai, genuinamente. — Como posso
ajudar?
— Bem… sabemos que têm mantimentos de sobrevivência. Raios, toda a
gente sabe que tens aí encafuado o suficiente para sobreviver ao apocalipse.
— Depois ri, apercebendo-se de que o meu pai franziu ligeiramente o
sobrolho perante a palavra «encafuado». Como se preparar-se para o pior
fosse, de algum modo, motivo de escárnio. E, nesse momento, percebo que as
mãos de Malecki estão a tremer ansiosamente, como se tivesse repisado
aquele diálogo na sua cabeça mil vezes, e mesmo assim tivesse conseguido
estragá-lo.
Conheço o meu pai suficientemente bem para saber que não dá «esmolas».
Além disso, quando começamos a dar coisas de graça entramos num terreno
escorregadio. E se há coisa que o meu pai odeia são terrenos escorregadios.
O meu pai coloca estrategicamente a mão na porta, num gesto casual. Não
para a fechar, mas para ter apoio caso precise de o fazer.
— A palavra-chave aqui, Roger, é «sobreviver». Temos apenas o
suficiente para sobreviver.
Malecki demora um instante a reorganizar os seus pensamentos e volta a
tentar.
— Muito bem, eu percebo — diz. — Tens princípios e não os queres
comprometer, mas estou a implorar-te, Richard. Tem de haver alguma coisas
que possas fazer… quer dizer… a bebé…
O meu pai pesa as possibilidades.
— Tenho a certeza de que te posso dar algumas dicas — diz.
— Dicas?
O meu pai aponta para o jardim de Malecki.
— Tens um maravilhoso jardim de plantas suculentas. Podes esmagar
algumas e espremer pelo menos dois litros e meio de água do seu interior.
Até te posso mostrar como fazer um condensador para extrair a água.
— Dos catuses? — Malecki ri, incrédulo.
O meu pai sorri, educadamente.
— Catos — corrige, gentilmente. — Podes ter água potável já amanhã.
O sorriso de Malecki desaparece, apercebendo-se de que o meu pai não
está a brincar.
— Tenho uma família para cuidar. Não tenho esse tipo de tempo!
— Bem, se queres água, vais ter de arranjar tempo.
Mas, em vez de formular uma resposta, os seus olhos semicerram-se e os
lábios curvam-se de raiva. Avança, ficando cara a cara com o meu pai.
— Quem é que tu pensas que és?
Mas o meu pai permanece calmo. Composto.
— Roger, estou a oferecer-te um presente muito mais valioso do que uma
garrafa de água. Autonomia.
A expressão de Malecki escurece, e ele fica com um brilho estranho,
selvagem, nos olhos.
— Vais ficar aí e deixar que o leite da minha esposa seque?
— Como te atreves a ficar zangado comigo, como se a tua falta de
previdência fosse culpa minha?!
— És um filho da mãe, sabias disso?
E o meu pai farta-se. Não atura facilmente idiotas — e, para ele, qualquer
pessoa que esteja à espera de que os outros lhe resolvam os problemas é um
idiota.
— Porque não voltas quando estiveres pronto para te comportar como um
membro útil da sociedade? — Tenta fechar a porta, mas Malecki lança-se
através do limiar, impedindo que isso aconteça.
— Devia apagar esse sorriso da tua cara — diz Malecki, embora o meu pai
não esteja a sorrir de todo. O meu pai tenta empurrá-lo para fora, mas
Malecki tem a adrenalina de um homem desesperado e empurra ainda mais
para dentro. Faz desequilibrar o meu pai, e a porta abre-se.
É então que ergo a arma, exalo e puxo o gatilho. Três vezes. Acerto no
peito de Malecki. Mesmo no alvo. A força das bolas a explodir impele-o
contra a ombreira da porta. Toda a sua coragem desaparece. Geme, pensando
que está a morrer. Depois leva a mão ao peito e examina a tinta azul
fosforescente que lhe ensopa a camisa. Provavelmente o meu coração bate
tanto quanto o dele. Ergue para mim o seu olhar perdido, desorientado, como
se eu lhe tivesse aberto mesmo um buraco no peito. Depois levo a mão à
minha mochila, pendurada no cabide perto da porta. Enfio o braço lá dentro,
vasculho e retiro uma garrafa de água que comprei na escola, quando era algo
que tomava como certo. Empurro-a para as suas mãos azuis, a pingar.
— Pegue nela e vá-se embora — digo-lhe.
Malecki olha para a garrafa de água e fica vermelho, envergonhado, como
se não fosse demasiado tarde para a sua humanidade surgir, subitamente, de
rompante. Ele vira-se e, sem mais, desaparece.
Num instante, o meu pai olha para mim, o lábio ensanguentado devido à
escaramuça, mostrando agora uma expressão violentamente carregada; e não
percebo se está só exaltado ou se desaprova realmente o que eu fiz — não
que o tenha sujado com a tinta, mas que lhe tenha dado a água.
— Não tinhas nada a ver com isto — diz o meu pai, num tom firme. —
Não devias ter interferido.
— Sim, senhor — digo-lhe. — Eu sei, senhor. — Chamo-lhe sempre
senhor quando ele está zangado comigo.
Depois fecha a porta e afasta-se.
Acontece que estou feliz por ter feito o que fiz. Não só porque sempre foi
uma fantasia minha disparar a arma de paintball contra os vizinhos, mas
também porque, quer o meu pai saiba ou não, vi o que se seguiria. O que teria
acontecido, se eu não tivesse puxado o gatilho. Porque, no auge da
escaramuça, a mão do meu pai viajara instintivamente para a cintura… onde
a sua arma se encontrava aninhada no coldre.
PARTE DOIS

TRÊS DIAS PARA ANIMAL


INSTANTÂNEO 1 DE 3: ATIVISTA

Camille Cohen sempre tivera um problema com a burocracia insensível e as


figuras de autoridade. Já no secundário era muitíssimo eloquente a apontar as
hipocrisias do currículo, ou as desigualdades do seu sistema disciplinar — e
nada mudou, agora que se tornou aluna de ecologia social, na UC Irvine. A
única diferença é que agora vê um caminho para, de facto, mudar o mundo.
Não era, na verdade, necessário ser-se um génio para se perceber que
tínhamos ficado sem água. Bastava ler os relatórios públicos trimestrais sobre
a água, como ela fazia — os números estavam lá. Mas conseguir, com
sucesso, ignorar estes relatórios e levar as pessoas a pensar que o problema
estava sob controlo? Isso requeria o domínio de um conjunto de capacidades
muito especiais. Eram estes supervilões que Camille desejava derrubar um
dia. Com alguma sorte, o quanto antes.
Semanas antes do Fechar da Torneira, Camille conduzira um protesto em
frente ao edifício do governo em Santa Ana, apoiada por um número recorde
de participantes — todos eles elementos do corpo estudantil da sua faculdade.
Mas ela sabia que seria necessário mais do que um protesto. Se havia alguma
coisa que os seus esforços passados lhe haviam ensinado, é que a verdadeira
mudança exige uma pressão prolongada e uma ação inspirada.
Uma ação crua. Tangível.
A ação de hoje será inspirada por aquele que entende ser o caminho à sua
frente.
Primeiro sente um choque, seguido de raiva — porque, avançando à sua
frente, está um camião de fornecimento de água detido por uma das diversas
empresas municipais de gestão de água que têm prestado tão mau serviço. Os
contentores de trinta e cinco litros empilhados na caixa aberta do camião são
claramente visíveis e funcionam como uma espécie de estalada no rosto de
uma população cada vez mais sequiosa. Este camião vai entregar água que
supostamente não existe num qualquer local privilegiado. Representa todas as
mentiras que tanto se tem esforçado por expor.
Por isso, em vez de continuar para oeste, em direção ao centro de
dessalinização na praia, decide guinar o volante para a direita e seguir o
camião.
INSTANTÂNEO 2 DE 3: TRANSPORTE DO OCWD

David Chen é empregado do Orange County Water District há quase um ano


— e, recentemente, têm-lhe vindo a conceder tarefas cada vez mais
stressantes. Hoje, está a conduzir um camião repleto de água potável e leva
ao lado um tipo com uma espingarda. E um colete à prova de bala. De facto,
também deram um colete à prova de bala a David.
— Só por precaução — disseram-lhe. — Nada com que te devas
preocupar.
Como se ele fosse parvo. O colete é pesado e quente, e não há ar
condicionado no camião capaz de o refrescar. Está a suar, em mais do que um
sentido.
Com todas as condutas do condado encerradas de emergência e falhas
constantes nos computadores que tentam redirecionar a água que resta, tem
vindo a transportar a água para as instalações prioritárias. Ainda no dia
anterior tinha conduzido um de uma dúzia de camiões-cisterna que foram
entregar o conteúdo de uma piscina escolar na base dos Marines, em Camp
Pendleton. Mas tempos desesperados exigiam medidas desesperadas, e os
responsáveis pela água estão a esforçar-se para impedir que o céu caia por
completo.
A tarde está a chegar ao fim e David ainda está no seu terceiro
carregamento do dia. O trânsito está a ficar cada vez pior e as aplicações GPS
estão sempre a dar a toda a gente as mesmas estradas alternativas, o que
apenas serve para piorar o problema. O protocolo atual exige que toda a água
dos municípios seja entregue nos hospitais e nas instituições governamentais
primeiro. A Federal Emergency Management fornecerá ajuda aos cidadãos
privados.
David já escondeu um dos recipientes azuis do tamanho de um dispensador
de água para si e para a sua família. Um mísero recipiente no grande esquema
das coisas não será notado. Considera-o um subsídio de risco não oficial.
Trata-se de água tratada. É a isso que se veem reduzidos. Toda a que se
encontrava ainda no sistema de esgotos quando a água foi fechada. Toda a
água que estava a deixar as casas imediatamente antes do Fechar da Torneira
e que regressava ao Orange County Water District.
Não se trata de água simplesmente largada no oceano. É purificada.
Microfiltragem, osmose invertida, radiação ultravioleta — e abracadabra!—
transformam o último dia dos esgotos do condado em quase cento e noventa
mil litros de água potável. Claro que não é suposto que alguém a beba. O
plano é que só deverá ser usada para a irrigação pública — porque servir a
um público litigante e difícil água tratada, por muito limpa que seja,
representaria um pesadelo de relações públicas.
Mas agora ninguém quer saber de onde vem, desde que venha.
A entrega desta tarde é crítica. Está a levar água para os trabalhadores
presos por detrás da vedação fechada da central elétrica de Huntington Beach.
Tanto quanto sabe, a central, na qual trabalham apenas quarenta trabalhadores
de cada vez, transformou-se num refúgio da Applied Energy Services e dos
funcionários da Southern California Edison. Encontram-se, agora, mais de
trezentas pessoas no interior destes portões. Uma espécie de campo de
refugiados espontâneo — daí a entrega de hoje.
Quando sai da Pacific Coast Highway, a central oscila à sua frente como
uma feia miragem industrial, o calor do asfalto fazendo-a tremeluzir. Mas
tem de parar antes de chegar ao portão de segurança, porque alguém se ergue
no seu caminho, impedindo-o de prosseguir. Não se trata de um funcionário
mas de uma rapariga, não deve ter mais de 20 anos. Pela maneira como
plantou os pés e pela expressão furiosa e sedenta nos seus olhos, tem a
sensação de que não o irá deixar passar.
Entretanto, do outro lado da Pacific Coast Highway, na longa faixa de
Huntington Beach, uma multidão frustrada que aguarda pelas máquinas de
dessalinização começa a reparar na presença do seu camião.
INSTANTÂNEO 3 DE 3: GERENTE DA CENTRAL

Quando Pete Flores era criança, queria ser mágico. Em adulto, descobriu a
sua magia na manipulação das correntes elétricas. Quanto a si, não teria
conseguido nada mais próximo do seu sonho original, porque agora,
enquanto gerente de uma central elétrica, pode criar eletricidade a partir do ar
— literalmente —, utilizando gás natural. A sua central de Huntington Beach
produz 450 megawatts de energia, o suficiente para quase meio milhão de
casas. Mas, pela primeira vez em todos os anos que ali passou, a central
enfrenta uma situação sem precedentes.
Deveria ter recusado quando outras agências de eletricidade pediram
abrigo para os seus trabalhadores? Deveria ter recusado quando lhe pediram
para levar as famílias?
O Ministério do Interior teria recusado. Não por serem mais empedernidos,
mas por estarem tão afastados. Não viam os rostos humanos daquela crise.
Poderia receber uma reprimenda pelo que tinha feito — podia até perder o
emprego, mas estava determinado a não se arrepender. Aceitou que os dias
que o aguardam serão cada vez mais difíceis, mas o trabalho enche-o de
orgulho e honra.
Isto não é nada, pensa ele, recordando a central nuclear de Fukushima, no
Japão, que colapsou depois de um terramoto e do tsunami que se seguiu. Os
geradores ficaram inundados e pararam, e os reatores sobreaqueceram, dali
resultando uma fusão nuclear total. E o que fez o gerente da central? Em vez
de fugir do local, decidiu ficar com os seus trabalhadores, apesar do perigo,
recorrendo a água do mar para arrefecer a central. Isso expô-los a níveis fatais
de radiação, mas reduziu a contaminação nuclear do Japão em dez vezes. É
assim que se mantêm posições, quando se tem nas mãos o destino de milhões
de vidas. Por vezes, ser o herói significa afundar com o barco.
Enquanto a central for considerada uma prioridade crítica no fornecimento
de água, os pedidos de alimentos e água de Pete serão honrados. E é
precisamente por isso que todas as famílias que se encontram, agora, sob os
seus cuidados, para ali se dirigiram. Ele não é apenas o gerente de uma
central, considera-se um pouco como um presidente da câmara. É
simultaneamente aterrorizante e entusiasmante. Fá-lo perguntar-se se não
poderá haver um cargo público no seu futuro, depois de ser despedido por ter
ajudado todas aquelas pessoas.
Hoje, as suas turbinas estão a trabalhar a todo o gás, porque as centrais
elétricas de Redondo e Palomar foram desligadas. O que consta, não
oficialmente, é que tal se deveu a problemas com funcionários. Os
trabalhadores simplesmente deixaram de aparecer. Na escolha entre cuidar
das centrais ou cuidar das suas famílias durante o Fechar da Torneira,
optaram pelas famílias. Tal serve apenas para reforçar a ideia de Pete de que
ter recebido as famílias dos seus próprios trabalhadores foi a decisão certa.
Ainda assim, o encerramento das duas centrais perturbou-o. Caso haja mais
encerramentos, isso poderá provocar uma cascata de falhas na rede — e, com
tantos trabalhadores das centrais elétricas desaparecidos, não há como saber
quando uma coisa assim ficaria resolvida.
Ao final da tarde, o seu supervisor da sala de controlo alerta-o para a
presença, junto ao portão, do camião de água pelo qual têm esperado todo o
dia.
— Mas há um problema — diz ele.
Pete está apreensivo. Ainda que o seu trabalho consista em resolver
problemas, as questões que tem enfrentado ultimamente ficam algo fora da
sua especialidade.
— Que tipo de problema?
— Talvez seja melhor veres por ti.
A maior parte das câmaras de segurança mostra a atividade que seria de
esperar na propriedade. Técnicos e maquinaria em áreas restritas e, nas áreas
não restritas, os seus numerosos convidados a tratar dos seus assuntos.
Mas as câmaras do portão principal mostram algo completamente
diferente. Algo que atinge Pete como um choque de mil volts.
Há dezenas de pessoas junto ao portão, aglomeradas à entrada. A princípio
pensa que se trata de algum tipo de protesto, ou de uma estranha
manifestação — tem havido muitas neste clima de seca. Mas porquê aqui? E
depois compreende qual o objeto da sua atenção…
É o camião de água que se aproxima. E está completamente cercado.
Aquilo não é um simples protesto, é algo muito mais perigoso — muito
mais desesperado.
— Quantos guardas temos de serviço? — pergunta Pete ao supervisor da
sala de controlo.
— Três — responde ele —, incluindo o que está ao portão.
— Chama-os todos para aqui!
— Devo informar o Ministério do Interior do que se está a passar?
— Estás a brincar comigo? Liga para o cento e doze!
E depois, no ecrã, a multidão parece entrar, súbita e freneticamente, em
ação. Todos eles, todos ao mesmo tempo. Estão a arrancar os garrafões do
camião, a partir os vidros. A puxar o motorista para o exterior. Meu Deus!
Tudo acontece num piscar de olhos!
Do lugar do passageiro emerge o que parece ser um segurança.
— Aquilo é uma caçadeira?
O homem ergue-a, dispara silenciosamente para o ar e, um segundo depois,
Pete ouve o som atrasado do disparo, abafado e distante. Mas o homem que
disparou a arma não consegue fazer mais do que dar um tiro de aviso, porque
a multidão lhe arranca a caçadeira das mãos e o puxa para o chão, numa
confusão de mãos furiosas.
O supervisor envia os outros guardas e começa a telefonar freneticamente
para o 112, mas é demasiado tarde — porque aquela multidão, na sua raiva
justa, derrubou os portões e inunda a central de Pete. E são mais do que
dezenas de pessoas. Podem ser centenas.
Impotente, o gerente da central, Pete Flores, observa o ecrã das câmaras de
segurança e apercebe-se de que, tal como a eletricidade em si, aquela
multidão é uma força tão perigosa quanto o tsunami japonês… e pode muito
bem ser a sua vez de se afundar com o navio.
7) KELTON

À medida que as horas vão passando, começo a ter a sensação de que a minha
mãe não está muito satisfeita com a maneira como o meu pai lidou com o
confronto com Malecki, porque esta noite está a fazer o jantar uma hora mais
cedo — um hábito nervoso que desenvolveu quando as coisas ficam tensas
em nossa casa. Jantar cedo significa que pode ir cedo para a cama e pôr fim a
um dia indesejável. A minha mãe também é uma «congeladora» compulsiva
— e como estamos a tentar conservar a comida que temos, acabamos, não sei
bem como, a comer o fiambre assado com mel da Páscoa e meia caçarola de
feijão-verde que pode muito bem ter sido feita no último Natal, mas não me
citem.
A minha mãe enche os nossos copos de água. É mais do que deveríamos
beber, tendo em conta as nossas rações, mas não é só isso — ela enche os
copos até à borda, de tal maneira que seria impossível erguê-los sem entornar
um pouco. Mais um sinal de que está zangada com o meu pai.
O meu pai senta-se no seu lugar à cabeceira da mesa, de momento
ignorando os sinais de irritação da minha mãe, e começa a cortar o fiambre. O
som dos talheres a raspar. O tique-taque do relógio. Ninguém fala, a tensão
no ar é tão espessa que seria preciso um machete só para ir ao frigorífico e
voltar. Por fim, o meu pai repara. Ergue os olhos para a minha mãe, olha para
mim, depois continua a cortar.
Tento aligeirar os espíritos com algo positivo.
— O Brady vem? — pergunto a quem quer que esteja disposto a
responder.
O meu pai responde.
— Ainda não conseguimos contactá-lo.
Lá se vai a minha tentativa de aligeirar as coisas. Apercebo-me de que a
falta de resposta de Brady é mais um despoletador de stresse. Brady nunca foi
grande coisa com os telefones; ou os e-mails; ou qualquer tipo de
comunicação. Nos dias que correm só conseguimos contactar com ele quando
lhe apetece, e ele só responde quando tem de o fazer. Pensei que com o
Fechar da Torneira isso pudesse mudar, mas aparentemente não.
— Vamos esperar por ele, certo? — pergunto. — Quer dizer, antes de
fugirmos para o refúgio?
O meu pai mastiga com intensidade.
— Não devemos ficar aqui muito mais tempo — diz ele. — Já viste como
as coisas começam a desmoronar.
A minha mãe volta a encher o meu copo meio bebido, elevando de novo o
nível do líquido até à borda.
— Marybeth, é suposto esta água durar — diz ele por fim, apontando com
o garfo.
— O teu filho tem sede. — Embora não tenha, na verdade.
— Ótimo. Ter um bocadinho de sede irá recordar-nos do porquê de ser
necessário racionar — riposta, a sua raiva começando a subir quase até
transbordar.
— Temos bastante — recorda-lhe a mãe. — E já que não a vamos
partilhar, mais vale que a bebamos toda nós mesmos, até rebentarmos. —
Desde criança, sempre me apercebi de que os meus pais estavam a ter as suas
discussões crípticas à minha frente porque começavam a enfatizar em excesso
determinadas palavras.
— Partilhámos algo todos os dias — diz o meu pai. — Ensinei aos Clarks
como fazer uma estufa portátil e depois dei-lhes parte dos materiais. Mostrei
aos teus amigos do fundo da rua como montar uma casa de banho no exterior.
A minha mãe levanta-se e deita fora o seu prato de papel, embora quase
não tenha tocado na refeição.
— Bem, não vejo qual é o problema de partilhar alguns bens essenciais
como a água, se de qualquer maneira a iremos deixar para trás, depois de
sairmos para o refúgio.
O meu pai inspira fundo, sinal de que se prepara para um discurso. Mais ou
menos como o oceano que recua antes de um tsunami.
— Já sabes como as coisas funcionam, Marybeth. Se começarmos a dar
água de graça, as pessoas vão começar a exigir que lhes dêmos mais. E,
quando as coisas se tornarem violentas, virão tirá-la. E como podes ver
claramente — faz um aceno na direção da casa dos Maleckis —, neste
momento, até a partilha de informação é perigosa.
— São os nossos vizinhos!
— Mas, quando se trata de sobrevivência, não temos vizinhos!
— Vamos ter de viver com estas pessoas quando tudo isto terminar.
— Viver é a palavra-chave! Se isto for tão mau quanto eu acho que é, nem
todos irão sobreviver, e, se queremos permanecer entre os vivos, precisamos
de seguir à risca o nosso plano de sobrevivência e manter um forte controlo
sobre as nossas provisões. Queres dar as coisas? Ótimo. Deixa a porta aberta
quando partirmos para o refúgio, e os saqueadores que destruam esta casa
sem deixarem sequer as paredes.
A minha mãe cede. O meu pai tocou no botão certo. Aquele que se
encontra entre os comandos para «gritar» e «chorar» — o mesmo que usa
sempre, o botão do poder. A minha mãe encerra-se por completo em si
mesma, fecha-se sobre si própria e silencia-se. O mais certo é que fique assim
a noite toda, e talvez até o dia de amanhã.
Assumo a sua defesa, embora fale de uma maneira que o meu pai possa
compreender.
— Enquanto pastores, deveríamos ser uma fonte de orientação, mas não
estamos a fazer nada para ajudar as ovelhas — digo eu.
— Antes de podermos ajudar mais alguém, precisamos de garantir a nossa
segurança.
— E quando será isso?
— Dir-te-ei nessa altura. — E, dito aquilo, dobra o guardanapo, bebe a
água em goles sonoros até o copo ficar vazio e depois sai da cozinha,
deixando-me a sós com a minha devastada mãe e o bizarro jantar infernal de
restos das festas.

Discussões como aquela que os meus pais tiveram ao jantar tinham-se


tornado uma ocorrência regular na minha casa desde que me lembro. É uma
das razões pelas quais Brady partiu depois de ter terminado o secundário.
Isso, e o facto de ter sido admitido em Stanford e se ter recusado a ir. Só isso
foi o suficiente para que, aos olhos do nosso pai, se transformasse num
inimigo do povo. Durante os meses que antecederam o final dos estudos, o
meu pai recusou-se a deixá-lo em paz em relação à questão. Tens noção da
oportunidade que estás a ter? dizia o meu pai. Estás a deitar fora a tua vida
por causa de uma rapariga! Porque foi essa a razão que Brady apresentou
para não ir. A namorada dele ia para Saddleback, a nossa faculdade — a
nossa faculdade pública local —, e ele queria ficar onde ela estava.
Contudo, essa não era a verdadeira razão. Conheço Brady melhor do que
os meus pais. A verdadeira razão para não seguir para Stanford era estar
assustado. Não sei ao certo o que o teria assustado. Ficar sozinho? Não estar
à altura? Viver com estranhos? Talvez uma combinação de todas estas coisas.
De qualquer maneira, saiu de casa, arranjou um emprego na GameStop e
agora só cá vem nos feriados. Deixou de vir com a namorada, o que significa
que, ou ela não consegue suportar a nossa família, ou ele acabou tudo com
ela. Brady não disse qual das hipóteses está certa.
O meu pai pode não estar de acordo com ele, mas sei o quanto ainda o ama
— porque, embora estejamos constantemente a mudar a fechadura das portas,
o meu pai deixa sempre uma chave escondida no pátio para Brady, não vá ele
regressar a casa.
É a única pessoa no universo a quem é permitido contornar toda a nossa
segurança.
No dia do Fechar da Torneira, enviei uma mensagem de texto a Brady e
telefonei-lhe, tal como os meus pais, dizendo-lhe que ele precisava de vir ter
connosco, para irmos para o refúgio, mas, como eu disse, ele não é a pessoa
mais rápida a responder. A nossa forma de comunicação principal são os
jogos de RPG on-line. Ele é um cavaleiro, um mercenário ou um assassino,
dependendo do jogo. Eu sou sempre o seu companheiro. Tenho ido muitas
vezes para a Internet, na esperança de o apanhar a jogar, mas até aqui nada.
A disputa parental de hoje deixou a minha mãe sentada no sofá, de rosto
vazio, drogada com Xanax, e a assistir às notícias enquanto despeja, num
gesto de desafio, quase quatro litros de água. O meu pai refugiou-se de novo
na garagem, soldando e serrando com uma intensidade absoluta, pelo que
presumo que ainda não fizeram as pazes.
— Estás bem? — pergunto à minha mãe.
— Estou ótima, Kelton — diz ela. — Só cansada. — E sei que a sua
definição de «cansada» poderia encher vários volumes.
Calculo que o meu pai esteja a trabalhar numa das armadilhas que
planeámos há alguns sábados atrás — e que estou certo que se revelarão
espantosas. O meu pai faz sempre as melhores armas quando está zangado.
Ainda assim, é a minha deixa para sair de casa. Decido ir ver como está
Alyssa.
Encontro Alyssa e Garrett no pátio das traseiras. Estamos perto do final do
crepúsculo, e estão a lutar com um saco do lixo preto, um balde e o fogareiro.
Parecem estar a trabalhar numa armadilha de condensação para purificar
alguma água, e, embora eu fique francamente impressionado pelo facto de
saberem o que é uma armadilha de condensação, estão a fazer tudo mal.
— Olá — digo relaxadamente.
— Olá — responde Alyssa de detrás do saco do lixo.
— Não acham que era melhor fazerem isso durante o dia, tendo em
consideração que o Sol já quase se pôs? A evaporação e tudo o mais…
Alyssa atira o saco, num gesto de frustração.
— Começámos isto durante o dia — riposta. — De dia ou de noite não
importa, porque não está a funcionar.
Ela apoia-se na parede da casa e prepara-se para beber um gole de uma
garrafa de água que está reduzida a quase nada.
— Poupa a que tens e bebe um pouco da minha. — Estendo-lhe o meu
cantil. Alyssa aceita-o sem hesitação e bebe.
— Quanto é que vais cobrar por esse golinho? — pergunta ela. — Dez
dólares? Vinte?
Limito-me a sorrir.
— Não te preocupes com isso, tenho um tanque de cento e trinta litros,
lembras-te?
Alyssa devolve-me o cantil.
— Desculpa — diz. — Estou apenas nervosa. Os nossos pais foram até à
praia esta tarde e ainda não regressaram.
— Já se passaram seis horas e meia — acrescenta Garrett, acompanhando a
preocupação de Alyssa.
Apercebo-me de que a minha função é ser o otimista — um papel a que
não estou muito habituado, mas, em tempos difíceis, temos de ser flexíveis.
— Tenho a certeza de que estão bem — digo-lhe. — As filas devem ser
verdadeiramente gigantescas e regressar poderá demorar muito mais tempo
do que ir.
— Não estão a atender os telemóveis — diz Garrett.
— Eu disse-te, é provável que os telemóveis tenham ficado sem bateria —
explica Alyssa ao irmão. — O telemóvel da mãe nunca consegue manter a
carga durante muito tempo, e sabes bem como o pai está sempre a esquecer-
se de carregar o dele.
— Além disso — sugiro —, pode ser apenas uma sobrecarga no sistema.
As frequências dos telemóveis ficam entupidas em locais densamente
povoados.
— Como num concerto! — diz Alyssa, incapaz de refrear uma onda de
alívio.
— Exatamente.
— Logo, neste momento, não podemos fazer mais do que ficarmos aqui
sentados e esperar pelo melhor — afirma Alyssa para si mesma. Fico feliz
por poder, pelo menos, inspirar a ideia de esperança.
O cão deles, Kingston, que apresenta um aspeto molengão, aproxima-se de
Alyssa e toca-lhe na mão com o focinho. O focinho está muito mais seco do
que devia estar o focinho de um cão. Despejo um bocadinho de água no pátio
para que ele a lamba, o que faz.
— Hei… tenho estado a pensar e descobri uma nova maneira de arranjares
água — digo, num tom misterioso, como um mágico que apresenta o seu
número seguinte.
— Como? — pergunta Garrett.
— Eu mostro-vos! — Em seguida, faço-lhes sinal para que entrem em casa
e paro junto à cozinha. — O congelador. Já retiraram o gelo das paredes?
— Tentámos isso no primeiro dia — responde Alyssa, cruzando os braços.
— Trata-se de um frigorífico no frost. Sem gelo.
Abro ligeiramente o congelador.
— Só se mantém sem gelo se o deixares fechado. Se o deixares
entreaberto, a água acabará por condensar e congelar de novo contra as
paredes. Depois podem raspá-lo e derretê-lo.
— Ena, isso é bastante inteligente — diz Garrett com sinceridade.
Apoio-me de forma descontraída no frigorífico, fechando o congelador
completamente, por acidente.
— Eu estou na segunda posição do ranking da nossa escola.
— Não és o primeiro? — brinca Garrett.
É Alyssa quem sorri.
— Não me digas — diz ela. — Zeik Srinivasar-Smith.
Suspiro ao ouvir a referência à minha némesis.
— Zeik Srinivasar-Smith. — Um aluno de Erasmus vindo sabe Deus de
onde e que, provavelmente, não passa de uma mutação genética.
Devemos estar prestes a estabelecer uma ligação, porque ela parece pronta
a contar a sua própria história sobre Zeik — e na escola todos têm uma ou
outra história acerca de Zeik —, mas a sua atenção é desviada por algo na
televisão da sala de estar. Uma reportagem noticiosa. Há imagens de fogos
violentos e de polícias de choque na baixa de Los Angeles. E o pivô —
apenas um em vez dos dois habituais — diz:
— Por precaução, os residentes estão a ser instruídos a permanecer nas
suas casas e a manterem-se calmos.
Mas, em oposição direta à tentativa do pivô de acalmar os telespectadores,
no rodapé da imagem pode ler-se: «Sul da Califórnia oficialmente declarado
zona de desastre pela FEMA.»
Depois, a televisão desliga-se de súbito. Foi Garrett — desligou-a. Mantém
o controlo fora do meu alcance, não se vá dar o caso de a irmã ou eu
querermos voltar a ligar a televisão.
— Não quero ver aquilo… só estão a tentar assustar-nos!
— Estão a dizer que devemos manter a calma — realça Alyssa.
— Sim, foi o mesmo que disseram às pessoas do Titanic quando já sabiam
que este se ia afundar.
E tem razão. No que às autoridades diz respeito, é preferível ter pessoas
calmas que vão morrendo em silêncio; é muito mais fácil do que pessoas
furiosas que combatem pelas suas vidas.
Permanecemos ali, num silêncio desconfortável, até Alyssa se ajoelhar
junto de Garrett.
— Vai ficar tudo bem — diz ela, não tão segura como tenta soar. — Agora
está demasiado escuro para fazer o que quer que seja. Se a mãe e o pai não
tiverem regressado ao nascer do Sol, iremos à procura deles.
E depois de ter ouvido aquelas palavras e visto a expressão no seu rosto,
algo se apodera subitamente de mim — uma força estranha, inata. Uma
sensação parecida com a que tive quando dei um tiro no peito de Mr. Malecki
para o salvar — uma sensação de saber o que fazer, e de o fazer
independentemente das consequências.
— Iremos juntos — digo-lhe. — E esta noite fico aqui, para que não
estejas preocupada e sozinha.
Alyssa abana a cabeça, sorrindo.
— Hum… obrigada, mas não. Tenho a certeza de que precisas disso para
uma qualquer medalha de mérito, mas não sou uma donzela em apuros.
Dou por mim a ficar furioso. Será que é disso que ela pensa que se trata? A
semana passada talvez. Mas, hoje, é a última coisa que me vem à mente.
— Olha — digo-lhe com absoluta sinceridade. — Eu sei que não sou a tua
primeira escolha como amigo, mas, como disse, há segurança nos números.
Há por aí muitas pessoas sedentas, e as coisas podem ficar complicadas
bastante depressa. Podem sofrer uma invasão, ou pior. Se eu ficar, podemos
fazer turnos para nos mantermos vigilantes, e talvez consigas dormir um
pouco.
— Achas mesmo que vamos dormir esta noite?
— É melhor que o façam — digo-lhe —, se amanhã planeiam ir atrás dos
vossos pais.
Ela pensa naquilo, e está claramente a mudar de opinião — irritada com o
facto de saber que eu tenho razão.
… E, nesse preciso momento, as luzes começam a tremeluzir.
Todos nos preparamos — como se faz quando achamos que estamos a
sentir um tremor de terra. Depois, as luzes apagam-se.
— Oh, raios! — diz Garrett. — Oh, raios, oh, raios, oh, raios!
— Está tudo bem — diz Alyssa. — Isto também aconteceu no outro dia.
Vão voltar a acender-se. Vais ver.
Mas não voltam — e o silêncio é agora um verdadeiro silêncio. O zumbido
do frigorífico e o sopro do ar condicionado desapareceram. E o carácter
definitivo do silêncio é de tal modo sobrenatural que se torna aterrorizante.
Sinto que me apertam o braço com força. É Garrett. Estava mais próximo de
mim do que de Alyssa. Sou o porto mais próximo nesta tempestade.
Agora começamos a ouvir vozes. Vizinhos que se perguntam o que raio se
estará a passar e o que diabo devem fazer.
O que parecera tão surreal torna-se, agora, sinistramente real.
Os nossos olhos começam a adaptar-se ao brilho fraco do crepúsculo que
entra pelas janelas viradas a ocidente.
Sei o que tenho de fazer.
— Preciso de…
Mas, antes que consiga terminar, Garrett interrompe-me.
— Não! Tu disseste que ficavas!
E, embora ela nada tenha dito, sei que Alyssa está tão assustada com o
apagão como Garrett. Como eu.
— Tenho de ir — digo —, mas apenas por um minuto. Preciso de ver
como estão os meus pais, mas volto de imediato. — E depois dou um passo
para mais perto de Alyssa. Não consigo distinguir bem o seu rosto na sala
mal iluminada, e ainda bem que assim é, tendo em consideração o que estou
prestes a dizer. — Sei que és capaz de cuidar de ti. Sei que não precisas de
mim aqui. Mas, ainda assim, tornará a noite um bocadinho mais fácil.
— Está bem — diz Alyssa —, só quero assegurar-me… quer dizer, não
quero que penses…
Sei para onde está a ir com aquela conversa e poupo-lhe o trabalho.
— Alyssa, lá porque me estou a oferecer para ficar, durante a noite, em tua
casa, não tenhas ideias acerca de eu ter ideias.
Ela suspira, aliviada.
— Obrigada, Kelton — diz, e depois acrescenta: — Não sei se valerá de
alguma coisa, mas foste oficialmente retirado do estatuto de «rapaz sinistro
da porta ao lado».
— Achavas que eu era sinistro?
Alyssa encolhe os ombros.
— Mais ou menos.
Reflito naquilo.
— Sim — digo —, se calhar até sou. — Depois vou-me embora, não me
esquecendo de fechar a porta atrás de mim.

A minha casa é um farol de luz na escuridão. Desligada da rede.


Completamente autossustentável. No interior, a minha mãe dorme no sofá e o
meu pai continua a soldar na garagem. Não fazem ideia de que o resto do
bairro ficou sem eletricidade. Não falo com eles, porque não há nada a dizer.
Deixo um bilhete no meu quarto, indicando que irei passar a noite com
Alyssa, para a ajudar até os pais regressarem a casa. A minha mãe vai gostar,
porque se trata de algo social que não envolve jogos de vídeo e rapazes que
acreditam que o desodorizante é opcional. O meu pai não vai gostar, mas
também não nos envergonhará a ambos indo-me buscar. Vou levar um
sermão logo pela manhã, mas nessa altura lidarei com ele.
Pouso o bilhete sobre o meu edredão, depois ajoelho-me, estendo a mão
por baixo da cama e vasculho até ter encontrado aquilo que procuro. Faço
deslizar uma caixa de metal preto e abro-a, revelando, em toda a sua glória, a
minha pistola Ruger LCP prateada de calibre .45. Tiro-a e carrego o clipe,
tentando não parecer demasiado impressionado pela sua beleza e poder — a
maneira como o seu cano estreito reflete a luz, contrastando com um punho
mate de tal modo dominante que absorve toda e qualquer luz que o atinja. É
perfeita na sua natureza dualista. Luz e escuridão. Hoje, sinto que sou algo
entre os dois. E não faz mal. É o que preciso de ser neste momento, se vou
ser a primeira linha de defesa para Alyssa e Garrett. Prendo a pistola no cinto
e apresso-me a descer as escadas e a sair pela porta da frente, para voltar para
junto de Alyssa… mas o que vejo, quando saio pela porta da frente da nossa
casa, leva quase todas as minhas articulações a gelar…
Embora todas as outras casas estejam agora enegrecidas pelo cair da noite,
juro que sou capaz de distinguir as figuras na rua, fracamente iluminadas pela
Lua num quarto crescente bem pequenino. A maioria dos habitantes do bairro
deixou a sua casa para se maravilhar com a nossa luz — como traças
enfeitiçadas pelo lamber das chamas de uma fogueira quente. Dado que
produzimos a nossa própria eletricidade, a minha família suscitou a inveja
inesperada do bairro. E transformou-se num alvo. Por isso levanto-me, o meu
corpo encurralado à saída, preso entre o limiar do que a minha vida foi
outrora e aquilo em que se irá transformar em breve, fitando, na escuridão,
cem olhos a brilharem para mim na noite.
E estou assustado até aos ossos, porque, neste preciso momento, não
consigo perceber se estarei a olhar para os olhos de ovelhas ou de lobos.
DIA QUATRO

TERÇA-FEIRA, 7 DE JUNHO

8) ALYSSA

Na manhã seguinte acordei ao som de uma sinfonia digital horrenda — o


alarme do meu telemóvel, que, por milagre, manteve a carga durante a noite.
São 5h45 da manhã. Nascer do Sol. A princípio não conseguia dormir de todo
— todos os sons eram os meus pais a regressar a casa, ou alguém a forçar a
entrada. Mas nenhuma dessas coisas aconteceu. Por duas vezes desci as
escadas e descobri Kelton a fazer a sua cena de escuteiro — a ler um livro
com uma lanterna enquanto se mantinha atento a mauzões inexistentes que
tinha a certeza que iriam forçar a entrada, partindo as nossas janelas, para
sugarem água das nossas veias. Tudo parece agora tão tolo, à luz do dia.
Com exceção do facto de os meus pais ainda não estarem em casa. Não há
alegre luz do sol que possa mudar esse facto.
Garrett, que insistiu em que não se importava de dormir no seu quarto,
tinha, a certa altura, desistido de todo esse fingimento machista e fora-se
enfiar na cama comigo. Agora dormia, e estava nesse local abençoado onde a
sua única preocupação era alimentar o Homem-Aranha e os diversos
Pokémons que tinham chegado para jantar — ou o que quer que seja que
sonham os miúdos de 10 anos. Não o acordo enquanto saio da cama e desço
as escadas.
Tinha a esperança de que os meus pais tivessem regressado enquanto
estávamos a dormir e não nos tivessem querido acordar, mas não tenho tal
sorte. Na sala de estar está Kelton, a ressonar no sofá. Isso é que é manter a
vigilância… Era suposto ele ter ido chamar-me há algumas horas, para o
render, mas tentou aguentar-se a noite toda sozinho.
Foi então que vi a arma. Está pousada na mesinha de apoio ao lado dele,
como se fizesse parte da decoração: candeeiro, fotografia de família, pistola.
Deve tê-la escondido de mim quando regressou de casa, sabendo que eu não
aprovaria — e não aprovo. Dá-me vontade de o despromover de novo para
«tipo sinistro», mas pior, porque agora é «tipo sinistro com uma pistola».
Pego nela e descubro de imediato que é muito mais pesada do que estava à
espera — e depois fico um bocado nervosa quando me recordo de que nunca
tinha segurado numa arma. Esta coisa põe fim a vidas. Pouso a pistola, mas
deslizo-a para longe do alcance imediato de Kelton, e abano-o para o acordar.
Mal fica consciente, levanta-se de um salto.
— O quê? O que aconteceu? Está tudo bem? Adormeci?
— Está, e adormeceste — digo-lhe. — E agora vais tirar as balas da
porcaria dessa arma.
Ele olha para mim, depois afasta os olhos.
— Não tem balas — diz ele. — O clipe está no meu bolso… não sou
nenhum idiota.
— O júri ainda não decidiu por completo em relação a isso — digo-lhe,
depois entendo-lhe a mão. — Dá-me.
Relutantemente, ele entrega-me o clipe de balas — e, embora não o queira
no bolso, prefiro que esteja no meu do que no dele. Depois volto a olhar para
a arma, furiosa só pelo facto de aqui estar.
— Marchei contra estas coisas! — informo-o. — Como pudeste trazer uma
para minha casa?
— Marchaste contra armas de assalto — diz ele, muito mais calmo em
relação a isto do que eu. — E posso respeitar isso. Mas não é esse o caso.
Trata-se de uma arma defensiva. Podemos precisar de nos proteger.
Kelton não estende a mão para a arma numa tentativa de ultrapassar as
minhas objeções com fanfarronice. Em vez disso, espera que lhe dê
autorização. O facto de procurar o meu assentimento faz-me sentir melhor em
relação à presença da arma. Mas só um bocadinho. Estendo a mão e empurro
a pistola alguns centímetros na sua direção.
— Se queres ficar com isto pelas aparências, está bem. Mas hoje não
vamos disparar contra ninguém.
— Compreendido. Mas uma arma é inútil se não estivermos preparados
para a usar — diz ele, provavelmente algo que o pai lhe enfiou na cabeça.
Olho pela janela. A rua está vazia, mas não são sequer seis da manhã. Não
estou à espera de encontrar lá alguém. Tudo aquilo em que consigo pensar
agora é nos meus pais e em todos os piores cenários possíveis que,
provavelmente, não aconteceram, mas que ainda assim não deixam de me
assombrar. Volto a tentar os seus telemóveis. O da minha mãe vai
diretamente para o voice-mail, mas o do meu pai ainda toca algumas vezes, o
que me faz saber que, pelo menos, está ligado.
Kelton faz uma rápida viagem a casa em busca do selante de pneus, para
que possamos levar as três bicicletas, e, quando regressa, está equipado com
o que parece ser um fato de caça aos patos, artilhado com uma corda de
sobrevivência e um milhão de bolsos. Não tenho energia para gozar com ele
agora e acabei por acreditar que há uma razão para tudo o que faz. É bem
possível que precisemos da corda e do que quer que ele enfiou nos bolsos.
A verdade é que precisamos dele — além disso, tratando-se de água, ele é
a pessoa que devemos conhecer; sem ele, não tenho a certeza que tivéssemos
as rações necessárias para realizarmos, em segurança, a viagem até Laguna
Beach e regressarmos.
A noite passada preparei uma mochila para nos fazermos à estrada. Carne
seca, o resto da nossa água, uma faca de cozinha, embora tenha a certeza de
que Kelton tem alguma coisa muito pior do que isso escondida nos bolsos.
Não lhe pergunto. Seja como for, é preferível ter com que me proteger, para
não sentir que tenho de depender do krav maga de Kelton ou de qualquer
outra arte marcial que ele possa conhecer. Faço uma festa a Kingston e dou-
lhe uma ração de água, que sei não ser suficiente, mas que é toda aquela que
posso dispensar. Depois, imediatamente antes de sair de casa, carrego no
interruptor da luz para verificar se a corrente já voltou, como se eu tivesse um
toque mágico. Não tenho sorte. Pergunto-me quantos outros vizinhos estarão
sem eletricidade. Por outro lado, talvez não queira saber.
Com as bicicletas agora plenamente operacionais, levamo-las pela mão até
ao exterior, baixamos manualmente as portas da garagem e fazemo-nos à
estrada. Olhando em redor, para o bairro, quase espero encontrá-lo em ruínas,
mas tudo parece igual ao que sempre foi, e apercebo-me de que a destruição é
muito mais interna. Como a da radiação.
Avançamos rua abaixo, mantendo o Sol nascente nas nossas costas.
— Há um caminho que passa por Aliso Creek Canyon e que segue até à
praia — digo a Kelton. — Embora nunca tenha seguido até ao fim, pelo que
não sei se será muito fácil.
— Isso é uma má ideia — diz Kelton. — Seguiríamos pelo bosque e
estaríamos isolados. Seríamos alvos fáceis para qualquer pessoa que nos
quisesse atacar para roubar a nossa água.
Quero dizer-lhe que está a ser paranoico, mas sei que é possível que tenha
razão e isso irrita-me.
— Quanto mais próximos nos mantivermos da civilização, mais provável
será que as pessoas sejam civilizadas — diz ele. Depois acrescenta: — Pelo
menos para já.
Viro-me para Garrett, quando deixamos o nosso bairro e tomamos a
ciclovia de uma rua mais larga.
— Como estás? — pergunto-lhe.
— Melhor do que tu — gaba-se. — Eu estou sempre a andar de bicicleta, e
tu não, por isso tenta acompanhar-nos. — O facto de estar a ser um fedelho
responde à minha pergunta: está de bom humor.
Não tardamos a chegar ao viaduto da autoestrada número cinco. Quando
baixo os olhos, vejo um típico caos de automóveis, mas este é um pouco
diferente. Trata-se de um trânsito compacto como nunca antes tinha visto. A
hora de ponta da manhã é normalmente virada para norte, em direção a Los
Angeles, mas hoje o trânsito está completamente parado em ambos os
sentidos, até onde a vista alcança — acabando por desaparecer eventualmente
numa espessa neblina carmesim, engolida pelo Sol que se ergue sobre
Saddleback Mountain.
Não é problema nosso, digo a mim mesma, um bocado assustada. Tento
concentrar-me no caminho em frente enquanto pedalamos sobre o viaduto,
mas não consigo afastar-me por completo da realidade à minha volta.
— Para onde está a ir toda a gente? — pergunta Garrett.
— Para qualquer lado que não seja aqui — responde Kelton.
— Sim — diz Garret. — Bem, parece que não vão lá chegar.
Acho que ele não se apercebe do quão profunda essa verdade soa — a
todos os níveis. Mas Kelton percebe.
— Quando é hora de escapar, existem caminhos não tradicionais que a
maior parte das pessoas desconhece. Não estarão tão engarrafados como as
autoestradas.
O facto de ele ter dito «quando» em vez de «se» prende a minha atenção
durante muito mais tempo do que o desejado.
Cerca de cinco minutos depois, Garrett realiza a sua preferida — e
absolutamente frustrante — manobra de viagem.
— Tenho de ir à casa de banho — diz ele. Digo-lhe que vá fazer xixi atrás
de um arbusto qualquer, mas, claro, não é desse tipo de casa de banho que
está a falar. Imagino, tendo em conta o estado terrível da nossa casa de
banho, mesmo com o produto com o qual não é preciso usar água de Kelton,
que Garrett se tenha estado a tentar aguentar em vez de lidar com o problema.
Mas há um momento em que a natureza assume o controlo. E é sempre na
pior altura.
Há uma bomba de gasolina familiar, com uma loja de conveniência,
mesmo em frente. E embora tenha a certeza de que a sua casa de banho está
pior do que a nossa, não o digo a Garrett. Pedalamos na sua direção.
Aproximamo-nos os três da loja e entramos, olhando à nossa volta. Como
o resto do mundo, a loja é uma ligeira aberração do normal. Despida e
poeirenta, o ar está tão pesado que nos cobre a garganta. O ar condicionado
está desligado, algo que já sabíamos, dado que não tínhamos passado por um
único semáforo em funcionamento entre a nossa casa e a loja. Os frigoríficos
onde, normalmente, estão guardados os refrigerantes, as bebidas energéticas e
a água estão vazios, como esperado. Mas do que não estava à espera é do ar
deserto do local, vazio não só de produtos, mas também da esperança de os
ter. Só um em cada dez artigos permanece ainda nas prateleiras — um tipo de
batatas, uma marca de pastilha elástica. Faz-me pensar nas fotografias que vi,
uma vez, na escola, de um supermercado vazio num país dilacerado pela
guerra, onde as únicas opções eram feijão enlatado e pão, e, se hesitássemos,
não levávamos nenhuma delas. Entretanto, o seu aspeto sinistro é
ridicularizado pelo doo-wop dos anos 50 que ecoa de um velho rádio a pilhas
pousado algures.
No lado mais distante da loja, o empregado está sentado atrás da caixa
registadora. Alguém que eu não conheço. Acontece que eu conheço esta loja.
A minha mãe e eu parávamos sempre aqui a caminho de casa, depois do
treino de futebol, para comprar um PowerAde e um saquinho de corn nuts.
Como um ritual só nosso. Eu achava que conhecia todos os funcionários que
trabalhavam aqui — mas este não conheço. Parece aquele tipo sobre quem os
nossos pais nos avisam. Aquele com a carrinha branca sem janelas que passa
lentamente pelo parque. Parece o Pai Natal depois de duas passagens pelo
Vietname. Os olhos fugidios estão presos em nós, e tem uma mão escondida
por baixo do balcão.
Garrett dirige-se para a casa de banho e o empregado grita:
— Tens de comprar qualquer coisa para usar a cagadeira! — E, por isso,
enquanto Garrett fecha a porta da casa de banho atrás dele, eu e Kelton
percorremos o corredor em busca de qualquer coisa — e também para sair da
linha de visão do tipo.
Decido-me por um saco de amendoins. Enquanto me aproximo da caixa,
olho mais atentamente para o empregado — parece cansado, a pele em redor
dos olhos espessa e pesada. Observa-nos pelo canto do olho enquanto calcula
o preço total dos nossos artigos.
— Nunca o vi aqui antes — digo eu, enquanto ele faz a conta dos meus
artigos.
O homem olha-me friamente.
— Sou novo.
— Há quanto tempo é que os automóveis estão assim na autoestrada? —
pergunto, mudando de assunto.
O homem coça o pescoço.
— Desde meio da noite, suponho. Trouxe muitos clientes até aqui. Alguns
eram fixes, outros achavam que podiam levar aquilo que queriam.
— Porque não chamou a polícia? — pergunto.
O homem ri, mas o seu riso é como um silvo.
— Ainda não ouviste? Não se consegue fazer a chamada. Desde ontem que
as linhas do cento e doze estão entupidas. — Ele sorri, como se isso fosse
divertido, e acaba de registar os artigos. — São quarenta dólares — diz.
A princípio, penso que está a gozar. Mas depois percebo que não, está a
falar muito a sério.
— Economia de mercado livre — diz ele. — Oferta e procura. E neste
momento há muito mais procura do que oferta. — Inclina-se mais para a
frente. — Por isso, como disse, são quarenta dólares.
Kelton aproxima-se de mim por trás, com uma Clif Bar, não tendo ouvido
a minha troca de palavras com o funcionário. É então que reparo bem na
caixa registadora. Foi aberta à força. E apercebo-me de que este tipo não está
a usar a feia camisa azul e amarela utilizada sempre pelos trabalhadores desta
loja. Quanto mais tento compreender o que aconteceu aqui, menos quero
saber.
Garrett sai da casa de banho, e eu tiro a Clif Bar das mãos de Kelton, atiro-
a para cima do balcão, e, antes que ele tenha a oportunidade para levantar
qualquer objeção, agarro na mão de Garrett, sabendo que isso o irá
sobressaltar e fazê-lo seguir-me, e saímos os três apressadamente dali.
— Têm de pagar pela porcaria da casa de banho! — gritou o homem lá de
dentro, mas nós já desaparecemos.
Salto para a minha bicicleta e aceleramos para longe, mas mantenho-me à
frente, definindo o ritmo, e o ritmo é rápido. A alguns quarteirões de
distância, abrando o suficiente para que Garrett e Kelton me alcancem. Paro e
olho para trás, para ter a certeza de que o tipo da loja de conveniência não
vem atrás de nós.
— O que foi aquilo? — pergunta Kelton.
Não lhe digo. Não porque não queira, mas porque os pormenores já não
interessam.
— Aquela tua arma… está na mochila, certo?
— Sim…
— E tu sabes usá-la?
— Podes crer.
Levo a mão ao bolso lateral da minha mochila e retiro dela o carregador
compacto. O clipe, como Kelton lhe chamara. Olho para ele. Penso bem
naquilo. Representa tudo aquilo que odeio em relação ao mundo. Mas este já
não é o mesmo mundo de ontem. Por fim entrego-lhe o clipe e depois
recomeço a pedalar, porque não o quero ver a colocá-lo na pistola.
INSTANTÂNEO: AUTOESTRADA INTERESTADUAL, EM
DIREÇÃO A NORTE, 6H30 DA MANHÃ

Quando Charity aprendeu a conduzir, na década de 1960, foi-lhe ensinado


que deveria deixar a distância de um automóvel entre ela e o veículo que
seguia à sua frente por cada quinze quilómetros por hora de velocidade de
viagem. Assim teria tempo mais do que suficiente para travar.
Mas quando ninguém vai a lado nenhum, os para-choques até poderiam
estar encostados uns aos outros.
Engarrafamento.
Ou talvez fosse algo pior, se é que isso era possível.
A princípio parecia o para-arranca normal da hora de ponta, mas nesta
terça-feira em particular as coisas depressa começam a parecer diferentes. O
ar está carregado com algo que se assemelha a claustrofobia; é evidente na
posição dos automóveis, mais apertados do que no trânsito normal, e em
breve existe até uma sexta faixa, quando os veículos começam a utilizar
aquilo que foi, até há pouco, uma berma. E a parar.
Charity tinha deixado o apartamento pouco antes das cinco da manhã, na
esperança de escapar à hora de ponta no seu caminho para Henderson,
Nevada — onde planeava passar o pior da crise, juntamente com a filha e as
netas —, mas parece que não foi a única com planos para sair da zona.
Olha para o outro lado da autoestrada, apercebendo-se de que os
condutores que seguem na direção oposta parecem estar com os mesmos
problemas, talvez até piores, dado que alguns automóveis estão bloqueados e
virados no sentido contrário — algo que ela nunca vira antes. Claramente, o
trânsito ficara tão mau que as pessoas tinham feito inversão de marcha na
estrada, tentando seguir em direção oposta, na esperança de que voltarem
atrás lhes permitisse sair daquela situação. Por outro lado, aquele fora,
provavelmente, o tipo de lógica obscura que levara ao engarrafamento na
autoestrada.
Charity olha à sua volta. Um homem impaciente, numa Harley, tenta
passar por entre o trânsito, mas é como passar pelo buraco de uma agulha.
Uma família num monovolume. Uma carrinha da assistência de um
fornecedor de serviços por cabo. Ocupa o tempo a pensar acerca de quem
poderão ser aquelas pessoas, e quais serão as suas histórias. De onde virão e
para onde irão. Decerto que a crise da água é má, mas nem todas aquelas
pessoas certamente pensarão que é tão má que têm de partir para campos
mais verdejantes.
Charity olha para uma antiga fotografia a preto e branco dela com o
falecido marido, presa no tablier. Se ainda fosse vivo, pensa para si própria, o
mais certo é que nesta altura estivesse a dar pontapés e a gritar. Durante anos,
tinham sido proprietários de uma loja de penhores, onde Charity lidava com
os clientes — fora sempre a mais calma. Os pais tinham-lhe chamado
Charity, uma das sete virtudes, e ela sempre tentara fazer jus ao nome,
entregando-se de coração a tudo o que fazia — uma raridade, no negócio dos
penhores, mas era mesmo assim. Acrescentava um raio de esperança nas
circunstâncias mais infelizes. No entanto, agora, fitando as filas intermináveis
de automóveis, começava a desejar que lhe tivessem chamado Patience.
Passa mais meia hora e continua a não haver qualquer movimento. Nem
um centímetro. As pessoas começam a ficar impacientes, erguendo-se nos
tejadilhos como bandos de suricatas, todas elas tentando ver melhor a estrada
que se estende à sua frente. Um homem com o seu filho pequeno percorre a
fila, passando por Charity. Ela baixa o vidro.
— Vão esticar as pernas? — pergunta.
O pai sorri ligeiramente.
— Vamos ver o que se passa lá à frente… tentar ver se alguém sabe porque
não anda. — O facto de as pessoas estarem a ser ativas, para ajudar à
situação, fá-la sentir-se um pouco melhor. E as coisas podiam ser piores.
Entre as filas de trânsito há, agora, crianças a brincar à apanhada, entrando e
saindo dos veículos encalhados, enquanto os pais jogam às cartas sobre os
capôs. Fá-la pensar na própria filha. Como ela fica sempre tão preocupada
quando Charity faz a longa viagem até ao Nevada. A esta velocidade é
possível que não chegue lá antes de escurecer.
Mais quarenta e cinco minutos. O Sol brilha forte — as buzinadelas
impacientes cessaram. Os motores dos veículos estão, na sua maioria,
desligados. Há pessoas nos automóveis à sua volta que parecem ter desistido
de todo, mas mantêm-se dentro dos seus veículos. Algumas reuniram-se à
beira da estrada, ou deitaram-se à sombra dos veículos, como se adormecer e
depois acordar fizesse desaparecer a situação por artes mágicas. Charity bate
com a mão no tablier, sentindo a sua ansiedade a crescer. O homem e o seu
filho não regressaram ao automóvel. Terá de ser rebocado e irá dificultar
ainda mais todo o processo. Ela experienciara os motins de Los Angeles há
vinte anos — e lembra-se de como o trânsito era mau. Charity tranca a porta e
recosta-se, descansando os olhos por um breve momento…
Trinta minutos mais tarde, abre repentinamente os olhos quando é
acordada pelo som de gritos que fazem ricochete entre os automóveis,
provenientes só Deus sabe de onde — e depois alguém passa a correr pela
janela dela. E depois mais alguém, e, antes que se aperceba do que se está a
passar, a cena é de caos absoluto. Todos abandonam os seus veículos e
correm para sul, na direção oposta à do trânsito. O que os poderia levar, a
todos, a correr na direção oposta àquela para onde se dirigiam?
Charity sai do veículo para ver melhor, avançando para norte, contra a
debandada… e, por fim, vê aquilo de que todos fogem.
Um incêndio.
O fumo negro ergue-se e redemoinha no céu da manhã, e, por baixo dele,
talvez uns quarenta e cinco metros mais à frente, está um automóvel solitário
que se incendiou. É uma razão válida para fugir, porque, se aquele veículo
explodir, e se a explosão for suficientemente grande, poderá desencadear uma
reação em cadeia de automóveis a explodir ao longo da autoestrada. Mas se
Charity aprendeu alguma coisa em toda a sua vida, é que deve manter a
cabeça fria — em especial perante o caos absoluto. Ela é filha dos anos 60 —
seguir cegamente a manada nunca fez parte do seu vocabulário. Em vez
disso, Charity decide colocar a si própria as perguntas invulgares, porque as
questões únicas geram sempre respostas únicas.
Segue em frente, contra a corrente, enquanto a multidão aumenta, numa
avalancha de pânico que apanha todos no seu caminho — incluindo aqueles
que nem sequer sabem do que estão a fugir. Charity avança em direção ao
fogo, a histeria cresce. As pessoas são espezinhadas. Feridas.
Ensanguentadas.
Mas onde todos os outros veem desastre, Charity encontra uma
oportunidade. Quando ela e o marido tinham a loja de penhores, Charity
aprendeu uma ou duas coisas em relação à tralha. Deve-se sempre olhar mais
de perto. Procurar o tesouro no lixo. Identificar os verdadeiros diamantes que
valem mais do que o falso anel de ouro a que estavam presos.
Procura em dezenas de veículos alguma coisa que a possa ajudar a apagar
o incêndio. Que tipo de automóvel teria um extintor?, pensa para si própria.
Dirige-se à carrinha do serviço por cabo e abre as portas duplas traseiras, mas
sem sorte. Nada, para além de caixas de fios e tralha. E, depois, a situação
agrava-se ainda mais com o som de uma explosão. O veículo a arder, mais à
frente, explodiu, lançando pelo ar o capô e incendiando um sofá que se
encontrava na caixa aberta de uma carrinha próxima. Aquilo está rapidamente
a ir de mal a pior.
Charity percorre, com os olhos, a fila de automóveis uma última vez e vê a
carrinha de um eletricista, há muito desaparecido. Abre rapidamente as portas
traseiras — e bingo! Um extintor, ali mesmo, preso à porta. Por isso, Charity
avança em direção às chamas, de extintor na mão, um fogo nos olhos mais
quente do que qualquer inferno terrestre.
9) ALYSSA

Percorremos Laguna Canyon Road, uma rua principal que sempre tomámos
para chegar à praia. Tento levar-me de volta para uma das vezes em que
apreciei a viagem, mas já não é a mesma coisa. O vento árido bate-me no
rosto. O ardor nas minhas pernas parece-se menos com exercício e mais com
um castigo pavoroso.
Passar por alguns bairros, numa estrada principal, permite-me espreitar a
partir de uma distância segura e apercebo-me de que algumas zonas ainda
têm eletricidade, o que representa para mim algum conforto. Faz-me pensar
que estão a trabalhar para resolver estes problemas. Talvez as torres de
telecomunicações estejam em baixo por falta de energia. Tento convencer-me
de que é por isso que não consigo qualquer resposta sempre que ligo para os
meus pais.
— Devias parar de ligar — diz-me Kelton. — Estás a esgotar a bateria e
poderás precisar do telemóvel, mais tarde.
— Talvez esteja lá muita gente — diz Garrett, tecendo as suas próprias
considerações. — Como quando as pessoas foram acampar, durante dias,
antes da estreia do último filme da Guerra das Estrelas.
Mas ficariam, a minha mãe e o meu pai, acampados na praia à espera de
receberem água, sabendo que eu e Garrett estávamos em casa sozinhos? Por
muito que queira que a resposta seja algo simples de que nos iremos rir mais
tarde, quanto mais tempo passo sem ter notícias deles, mais difícil me é
imaginar um final cor-de-rosa.
Chegamos a meio da manhã a Laguna Beach, onde a brisa marítima ainda
gera uma espécie de neblina, mantendo a linha da costa misericordiosamente
fresca. Consigo sentir o cheiro do oceano e o sal no ar, a colar-me as roupas à
pele. As ondas trovejam ao longe, e, embora a cadência do oceano sempre
tenha sido reconfortante para mim, o silêncio que se estende entre cada onda
parece-me agora estranho. Ainda assim, avanço na bicicleta, voando ao longo
da última parte da estrada, que termina na Pacific Coast Highway, e na praia
logo a seguir. Já não sinto as bolhas nas mãos ou a dor nas pernas. Tenho de
ver a praia! Tenho de saber que os meus pais estão ali, e que estão bem.
Mas, depois de atravessar a PCH, no final do passadiço, travo com força e
estaco repentinamente — porque à minha frente não está uma praia repleta de
famílias a recolher as suas rações de água, mas um vasto deserto de areia.
Está praticamente deserta, com apenas algumas pessoas que parecem
percorrê-la sem destino. Mais além, perto da beira da água, estão máquinas
empoleiradas nas traseiras de camiões — talvez meia dúzia delas espalhadas
ao longo da praia —, mas não estão a produzir água. Não estão a fazer nada.
De facto, uma delas está a cuspir fumo negro e outra está tombada de lado.
Largo a minha bicicleta e desço do passadiço para a areia, com Garrett e
Kelton logo atrás. Os meus olhos dardejam de um lado para o outro, em
busca dos meus pais, desesperada pelo mais pequeno sinal deles.
E depois Garrett diz:
— Alyssa, ouves isto?
— Ouço. — É um som quase musical, e fantasmagoricamente eletrónico,
que se ouve logo abaixo do ruído das ondas. Percorro a areia, e o som torna-
se mais alto, até me aperceber de que não é apenas um som, mas muitos,
fundindo-se num só. E de imediato me apercebo do que se trata.
Telemóveis. São toques de telemóveis.
Há dezenas deles espalhados na areia à nossa volta, criando uma
fantasmagórica sinfonia em oito bits. São as chamadas perdidas de milhares
de almas.

Nenhum de nós sabe como reagir. Limitamo-nos a olhar para os telemóveis


enquanto estes vibram e tocam, tentando superar o choque. E, de repente,
apercebo-me de que, há pouco, estava do outro lado de uma dessas linhas, a
telefonar sem parar, na esperança desesperada de que alguém atendesse. Vejo
um a vibrar, meio enterrado na areia, e atrevo-me a agarrar nele… seguro-o
nas minhas mãos e, depois de mais um toque, atendo, encostando o iPhone
cheio de areia ao ouvido.
— Estou? — ouve-se a voz de uma criança do outro lado da linha. —
Mãe?
Não deve ser mais velho do que Garrett. Tento escolher as minhas palavras
com cuidado.
— Não sou a tua mãe — digo-lhe.
— Onde está a minha mãe? — pergunta a criança. — Quem fala? Porque
tens o telemóvel dela?
Faço uma pausa, sem saber ao certo o que poderei dizer para o acalmar.
— Estou na praia — digo-lhe. — A tua mãe deixou cair o telemóvel na
praia.
— Ela foi buscar água…
— Acho que não há água aqui — digo-lhe. — Consegues dizer isso a um
adulto? Por favor, diz isso a um adulto.
— Onde está a minha mãe? — pergunta a criança, a chorar.
Tento formular a melhor resposta possível, mas é como se tivesse perdido
a capacidade para formar pensamentos coerentes. Não tenho qualquer
resposta para ele, tal como não tenho qualquer resposta para mim mesma.
— Lamento — digo-lhe. Depois desligo e deixo cair o telemóvel na areia,
e, quando este volta a tocar, enterro-o. Enterro-o suficientemente fundo para
que, pelo menos, haja um telemóvel que eu não consiga ouvir.
— O que aconteceu aqui? — pergunta Kelton. E, pouco a pouco, as pistas
vão emergindo. Estão claramente visíveis à nossa volta, ali mesmo na areia. É
como se um tornado tivesse passado por ali, depositando escombros por todo
o lado — escombros que parecem a sombra de eventos terríveis que nem
sequer consigo começar a imaginar. Há mesas de plástico e cadeiras
derrubadas, lixo por todo o lado, que as gaivotas vão apanhando. Um sapato
solitário e abandonado, que parece, de alguma maneira, o mais assustador de
tudo. E a areia está polvilhada de latas de alumínio pretas — dezenas delas.
Sou atingida por uma onda do mais horrível fedor, algo que se assemelha a
lixívia misturada com ranho. Faz arder o interior das minhas narinas, por isso
aperto o nariz, mas o gesto não ajuda. Kelton baixa-se e pega numa das latas,
mantendo-a a uma distância segura.
— São latas de gás lacrimogéneo — diz Kelton. — Deve ter passado por
aqui um esquadrão antimotim…
E depois há as máquinas. Acercamo-nos da que está mais próxima; vejo
que foi completamente destruída. Foram todas. Uma delas tem a sua fachada
de aço inoxidável aberta, expondo as suas entranhas, como se se tivesse
decomposto de dentro para fora. Tubos e fios emergem da abertura, todos
eles conduzindo a uma série de botões e instrumentos de medição, ligados a
três recipientes abertos e, por trás deles, uma série de pistões imóveis.
Teriam as pessoas feito aquilo? Teriam elas lutado por se apoderar
daquelas máquinas capazes de lhes salvar a vida, reduzindo-as a sucata?
Estariam elas tão desesperadas por água potável que estivessem dispostas a
destruir as máquinas que a poderiam criar, só para alcançarem aquele
primeiro gole?… E, se assim foi, estariam a minha mãe e o meu pai entre
elas?
Agora consigo ver que, em cada máquina de dessalinização em ruínas, está
um agente da polícia, envergando equipamento antimotim e com uma
espingarda automática, a dizer às pessoas que mantenham a distância —
como se houvesse ali algo para proteger.
— Que aconteceu aqui? — pergunto ao que está mais perto de nós,
mantendo uma distância segura.
— Tem de deixar a praia, menina. Vá para casa. Espere lá por novas
instruções.
— O que aconteceu às pessoas que estavam aqui? — pergunto. — Foram
levadas para outro lado? Uma praia diferente?
— Não é seguro estar aqui — diz-me. — Tem de ir para casa.
Recuo, chocando com Garrett, cujos olhos se encheram de lágrimas, e nada
tem a ver com o gás lacrimogénio.
— Obriga-o a dizer-te para onde foram! — diz Garrett, como se me
pudesse ordenar que fizesse exigências a um agente da polícia armado.
— Hã… malta?
Olho para Kelton, que se ergue mais perto da água. Sigo o seu olhar sobre
o do oceano agitado e dirijo a este todo o meu ódio. Não suporto a maneira
como cada onda de água não potável troça de nós.
— O que é aquilo? — pergunta Kelton. Aponta para algo que flutua,
movendo-se para trás e para a frente ao sabor das ondas… um contorno
escuro na água revolta, visível apenas por alguns momentos entre as ondas.
— Aquilo é… — Kelton semicerra os olhos. — Aquilo é um corpo?
E eu sei que, seja o que for, já vi o suficiente. É mais do que não querer
saber. Eu nem sequer quero saber até que ponto não quero saber. Agarro em
Garrett, puxo-o para longe, e chamo Kelton.
— Kelton! Vamos embora! — Porque talvez eu não possa dar ordens a um
agente de controlo de multidões, mas posso, sem dúvida, dar ordens a Kelton.
Em especial quando é para o seu próprio bem.
Não vou pensar agora nos meus pais, porque, se o fizer, desabarei.
Regressar a casa será uma viagem monte acima em mais do que um aspeto, e
essa tem de ser a única coisa em que concentro toda a minha energia mental
neste momento. Regressarmos a casa.
Chegamos ao pé das nossas bicicletas, que ficaram no passadiço.
— Temos de FAZER alguma coisa! — insiste Garrett. — Não podemos ir
simplesmente embora!
Viro-me para Garrett com uma fúria que nem sequer sabia que possuía.
— Garrett, se não te calas de imediato, serei eu a calar-te!
E aquilo não faz mais do que suscitar nele um dilúvio de lágrimas. Mas eu
não posso chorar. Tenho de me manter forte, e lamento, lamento muito ter
descarregado nele a minha frustração. Tomo-o nos braços e seguro-o. Deixo-
o soluçar. Não digo nada. Deixo-o simplesmente soluçar, porque sei que é
disso que precisa. E ele sabe que eu não estava a falar a sério. Sabe, porque o
abraço com muita força. E não o largo enquanto ele não está pronto para que
eu o faça.
— Alyssa, devíamos ir — diz Kelton, parecendo ainda mais assustado pelo
objeto flutuante não identificado do que eu.
Garrett afasta-se de mim suavemente.
— Vamos então — diz ele, cansado, derrotado.
O plano consiste em fazer exatamente o mesmo caminho por onde viemos,
mas, ainda antes de arrancarmos, algo do outro lado da estrada atrai a minha
atenção… o som de vozes a gritar. É um trio de miúdos da nossa idade, talvez
um ou dois anos mais velhos. Estão à frente do cine-teatro Laguna Beach —
que está abandonado, como todos os outros negócios ao longo da praia.
Formaram um círculo, dedicando-se a um qualquer jogo — como se esta
fosse a melhor altura para divertimentos. Viro-me na sua direção, na
esperança de que talvez nos possam dar alguma informação quanto ao que
aconteceu ali, mas, assim que contorno um automóvel estacionado, apercebo-
me da realidade da situação. Não estão a brincar. Estão a empurrar um
homem mais velho, que deve estar na casa dos 60. São três contra um, e ele é
incapaz de se defender. Sem pensar na questão, salto da minha bicicleta, as
mãos fechadas em punhos, e avanço na direção deles.
— Alyssa, espera! — grita Kelton, mas eu já estou decidida.
— Hei! — grito. — O que acham que estão a fazer?
O mais alto dos miúdos vira-se para mim. Tem o cabelo louro oxigenado
despenteado e olhos azuis gelados. Tem a estrutura rija de um desportista,
mas os seus múltiplos piercings dizem-me que não o é.
— Mete-te na tua vida! — diz ele.
O homem que estava a empurrar cai para o chão. E o miúdo dá-lhe um
pontapé. Dá-lhe mesmo um pontapé!
— Deixa-o em paz — grito — ou vou chamar aqueles agentes que estão na
praia!
— Eles não vão querer saber — diz um dos outros miúdos. — Não vão
abandonar os seus postos.
— Vocês são monstros! — grito, e o miúdo de olhos pálidos vira-se para
mim, furioso.
— Monstros? Nós somos monstros? Tu não me conheces!
— Sei tudo o que preciso de saber! Estão a espancar um pobre homem
indefeso!
— Não sabes o que fez este sacana? — grita o miúdo de olhos azuis. —
Vimo-lo esconder uma garrafa de água no automóvel! E recusa-se a partilhar
uma gota que seja!
— E depois? — riposto. — A água é dele! Vocês não têm o direito!
— Temos todo o direito!
Só agora vejo como os seus lábios estão secos. Não apenas secos, mas
ressequidos e estalados a ponto de sangrarem. Nenhum destes miúdos parece
bem. A sua pele está fina e de um cinzento quase leproso. Os cantos das suas
bocas estão brancos de cuspo seco. E a expressão dos seus olhos é quase
raivosa.
O miúdo alto vira-se e pontapeia de novo o homem.
— Dá-nos a porcaria das chaves!
— Por favor — implora o homem. — Preciso dessa água! Preciso dela
para a minha família!
— Também eu, sacana! Achas que só porque conduzes um raio de um
BMW a tua vida vale mais?
Antes que ele possa pontapear de novo o homem, atiro-me para o meio
deles. O seu pé bate na minha canela. Vou ficar com uma bela nódoa negra,
mas pelo menos terei poupado ao tipo uma costela partida.
— Não tem de lhe dar nada — digo ao homem, mas ele está demasiado
assustado para continuar a lutar. Vasculha no bolso e estende as chaves ao
miúdo de olhos azuis. Mas, antes que o miúdo lhas consiga arrancar das
mãos, faço-o eu e seguro-as no punho fechado.
— Não vão receber isto — digo ao miúdo.
O homem, já não sendo alvo da sua raiva, afasta-se, sem querer saber do
BMW ou da água, só desejando sair dali vivo. E, de repente, apercebo-me de
que talvez seja eu a não sair. O rapaz louro agarra em mim e levanta-me. Tem
uma tatuagem no pescoço que quase parece latejar com a sua raiva. É o
símbolo da ameaça biológica.
— Dá-lhe uma tareia, Dalton — diz um dos outros rapazes.
— Hei… talvez ela também tenha água! — diz o terceiro.
O rapaz louro — Dalton — tenta arrancar as chaves da minha mão, mas eu
não as largo. Recuso-me a permitir que aquele ser humano miserável se
apodere delas. Os seus olhos azuis nervosos dardejam para um lado e para o
outro do meu rosto, e os seus lábios estalados abrem-se num sorriso
verdadeiramente terrível. Louco e perigoso.
— Estás a suar — diz ele. — O que significa que estiveste a beber água…
— E depois o sorriso desaparece. — Onde está ela?
— Afasta-te da minha irmã! — ouço Garrett gritar. Ele corre na nossa
direção, mas um dos outros miúdos agarra nele. Tento libertar-me das mãos
de Dalton, mas não consigo fazê-lo, por muito que tente.
— Onde está a vossa água? — pergunta ele.
E, depois, algo se apodera de mim. A minha própria natureza animal.
— Aqui mesmo — digo-lhe. E cuspo-lhe no rosto.
Não parece fazer-lhe nada. E, de repente, sou atingida por uma estranha
sensação, como se houvesse um alarme de emergência a soar algures na
minha cabeça e o meu cérebro fosse incapaz de identificar a sua origem. Mas,
quando o rapaz limpa o cuspo do rosto com a mão livre, a sensação terrível
torna-se identificável. É um horror que me deixa absolutamente maldisposta.
Sei o que está prestes a fazer antes que ele o faça.
Ele olha para os dedos, a brilhar com o meu cuspo… e lambe-o. Tento
libertar-me, mas Dalton empurra-me contra a parede e fixa o seu olhar no
meu.
— Faz isso outra vez! — exige, e, quando não o faço, ele pressiona o seu
corpo contra o meu. Não consigo mover-me.
— Fá-lo, ou juro que o chupo de ti! — E move a sua boca terrivelmente
seca em direção à minha.
Depois, a alguns metros de distância, ouve-se a voz da salvação.
— Larga-a, ou desfaço-te a cabeça!
10) KELTON

Não queria ter de sacar da arma, mas, assim que aquele canalha se aproximou
demasiado de Alyssa, foi como se tivesse entrado em ação um qualquer
instinto protetor dentro de mim. Agora, a minha Ruger está apontada mesmo
à sua cabeça. É suposto apontar ao peito, mas neste ângulo tudo o que tenho
são as suas costas, e uma bala nas costas atravessá-lo-ia diretamente e
atingiria Alyssa. Mas ele é alto. Um tiro na cabeça não acertaria em Alyssa.
Mal os outros dois sacanas veem a minha arma, largam Garrett e fogem a
correr. Mas o louro alto continua a agarrar Alyssa.
— Eu disse para a largares! — A minha mão treme. Ergo a outra mão,
agarrando a arma com as duas, mas isso não ajuda.
Agora ele vira-se e vê a arma, e Alyssa usa o momento para se libertar,
distanciando-se imediatamente e correndo para Garrett, para o proteger.
O sacana alto fica ali parado, a olhar para mim como se não quisesse saber
se eu puxo ou não o gatilho. Como se já se tivesse resignado com o facto de
que iria morrer.
Olho diretamente para aqueles olhos azuis gelados e depois concentro-me
de novo na mira. Agora as minhas mãos não estão apenas a tremer. Agitam-
se. Violentamente. Tento impedi-las, mas é como se o meu cérebro não
conseguisse enviar o sinal até à ponta dos braços, como se eu tivesse
desligado o meu próprio corpo. E agora sou atingido por uma onda de pânico
castradora que começa no peito e exerce a sua força com um nível de
gravidade letal, fazendo colapsar os meus pulmões até eu ter implodido para
o interior de mim mesmo e não ser capaz de respirar. Quase não consigo
arquejar.
— Ele vai fazê-lo! — grita Alyssa. O som reverbera e ecoa. — É melhor
fugires com os teus amigos.
— Não — diz ele. Apenas «não». E depois dá um passo na minha direção.
Ou será que não dá? Quase não consigo perceber, porque a minha visão está a
ficar turva, à medida que o meu cérebro começa a falhar, pistão após pistão.
— Fá-lo, Kelton! Fá-lo! — grita Garrett.
Mas não consigo. Com todo o treino, com tudo aquilo que ensinei a mim
mesmo acerca de autodefesa e do empunhar de armas, algo dentro de mim
rebenta um fusível crítico. Não consigo obrigar-me a puxar aquele gatilho.
E o miúdo sabe disso.
Atira-se para a frente, fazendo-me recuar, e a arma voa das minhas mãos.
Não posso deixar que ele a apanhe! Ele matar-nos-ia a todos! É assim tão
maluco… sei que é!
A arma cai na valeta repleta de lixo. Ambos corremos na sua direção. Não
sei qual de nós está mais desesperado por alcançá-la. E, quando chego ao
local onde acho que a vi aterrar, não está lá. Em vez disso, está lá uma
rapariga de pé, como se tivesse aparecido do nada. Uma rapariga que nunca
vi antes — e está a segurar a minha arma. Apontando-a diretamente para
mim.
Ela puxa o cão, carregando uma bala na câmara com a precisão de um
especialista, e eu apercebo-me de que, mesmo que tivesse puxado o gatilho,
nada teria acontecido, porque nunca chegara sequer a desativar a patilha de
segurança. Ela sorri, quase sedutoramente — e é nesse momento que me
apercebo de que a arma não está apontada para mim de todo. Está apontada
para o sacana de olhar gelado mesmo atrás de mim.
Ela afasta-me do caminho com um tipo de confiança meio louca e encosta
a boca da arma à testa do rapaz.
Olho para Alyssa, que, tal como eu, está em choque perante o surgimento
desta rapariga misteriosa, e aterrorizada sem saber quais serão as suas
intenções. Esforço-me por afastar o meu ataque de ansiedade.
O miúdo encolhe-se quando ela lhe pressiona ainda mais a arma contra a
testa, muito mais aterrorizado em relação a ela do que em relação a mim.
Gagueja pedidos de desculpa — qualquer coisa para ganhar tempo.
— São eles, não eu… Eles têm água. Porquê eu?
— Porquê tu? — diz ela, estranhamente pensativa. — Acho que não gosto
da tua cara. Mas aposto que já foi bonita, um dia. Um belo rapaz da praia.
Levei com os pés de demasiados rapazes desses. — Embora não compreenda
por que razão alguém lhe daria com os pés. Ela não é apenas dura, é
espantosa de um modo algo selvagem. Morena e misteriosa. Por outro lado,
talvez lhe tenham dado com os pés porque ela é completamente psicótica.
Sopra uma longa madeixa de cabelo preto para longe do rosto, revelando
os imperscrutáveis olhos negros.
Depois estende a mão livre para Alyssa, mantendo a arma contra a cabeça
do miúdo.
— As chaves, por favor — diz ela, e, quando Alyssa não se mexe,
acrescenta: — As chaves ou mato-o.
Começo a somar um mais um. Se esta rapariga sabe acerca das chaves, não
estava apenas a passar por aqui quando isto aconteceu. Significa que viu
tudo. Que estava a observar, à espera para fazer a sua jogada. Mas, se viu,
então porque é que acha que Alyssa salvaria aquele miúdo?
E, de súbito, apercebo-me porquê.
Porque Alyssa o fará. Esta rapariga «leu» a Alyssa em poucos segundos
depois de a ter visto.
— Por favor — choraminga o rapaz. Provavelmente teria feito xixi pelas
pernas abaixo se tivesse alguma água para expelir. — Por favor… a minha
mãe e a minha irmã… estão a contar comigo para levar água. Se me matares,
também as matas a elas!
— Uau, que treta — disse a rapariga, e pressiona a minha arma ainda com
mais força contra a sua cabeça. — As chaves, por favor — diz de novo a
Alyssa.
— Está bem — diz Alyssa, tentando acalmá-la. — Ninguém tem de morrer
aqui.
— Não! — queixa-se Garrett. — Deixa que ela lhe dê um tiro!
Mas Alyssa ignora-o e coloca as chaves na mão da rapariga.
Esta afasta de imediato a arma da testa do rapaz louro, encosta o pé ao
peito dele e empurra-o para trás. Quem é esta rapariga? Age de um modo
alegremente impulsivo; na realidade, não creio que haja nada de impulsivo
nela. Acho que é calculista e inteligente.
Quanto ao miúdo de olhos azuis, deixa-se ficar no chão, enroscado em
posição fetal, quebrado e soluçante, que é como imagino que passará o resto
da eternidade.
11) ALYSSA

Fui a primeira a vê-la. A maneira como voou do seu esconderijo na ombreira


de uma porta, mal Kelton largou a arma. Aquele sorriso no rosto quando a
apanhou. Aconteceu tudo demasiado depressa para reagir, e tudo o que eu
queria fazer era proteger Garrett — que parece ser o único dos três a querer
ver o cérebro de um estranho espalhado pelo passeio. Não vou pensar nisso.
A nossa nova ameaça é esta rapariga.
Está vestida de preto, tem o cabelo comprido e escuro. Uma tez quase
azeitona. É difícil perceber a sua etnicidade — um pouco como eu e Garrett.
Nunca ninguém sabe o que somos, também, o que tem as suas vantagens e
desvantagens. Ela está em boa forma, musculada. Também tem algumas
nódoas negras e um corte no braço. Só Deus sabe qual terá sido a sua origem.
Tem um estranho rubor nas bochechas — um calor que é diferente da sede.
Também não tenho a certeza do que se tratará. Tudo o que sei é que é
suficientemente maluca para encostar a arma à cabeça daquele miúdo como
se não fosse nada. Salvou-nos de facto. Mas porquê? Seria apenas para deitar
a mão às chaves? E continua a ter a arma de Kelton. Portanto, quão seguros
estaremos realmente?
— Aquilo foi espantoso — diz Garrett, os olhos cintilantes como se tivesse
acabado de ser salvo pela Mulher Maravilha.
Ela afasta-se a passos largos, mas vou atrás dela. Garrett e Kelton seguem-
nos.
— Hei… essa arma é nossa — digo-lhe. Ela nem sequer abranda.
— Não me parece. Salvei os vossos traseiros do zombie da água, por isso
fico com a arma. É uma troca justa.
— Zombie da água… — diz Kelton, pensando naquilo. — Era
precisamente isso que ele era.
— O corpo humano é composto por sessenta por cento de água — diz a
rapariga. — Mas eu diria que ele já tinha descido para cerca de quarenta e
cinco por cento. Não tenho a certeza da percentagem que nos faz patinar, mas
ele vai bem lançado.
Paro um momento, para olhar para o rapaz que continua tombado em
frente ao cinema. Como pode ter parecido tão aterrorizante há um instante
atrás e tão indefeso agora? E quantos mais desses zombies da água vamos
encontrar entre o local onde nos encontramos e a nossa casa? E sem qualquer
maneira de nos defendermos. De repente, o mundo seguro e são que eu
julgava conhecer está repleto de incógnitas aterrorizantes. Então o que será
pior, estas incógnitas ou a rapariga estranha que acaba de nos salvar?
— Hei… se vais levar o automóvel — digo eu —, o mínimo que podias
fazer era dar-nos uma boleia.
A rapariga vira-se para mim, o seu temperamento subitamente irado.
— Tu tens o quê, dezasseis? Uma miúda convencida do tipo cheerleader
de uma família perfeita? Achas que toda a gente no mundo te deve um favor?
— Qual é o teu problema? — Agora começo a ficar um bocado chateada.
Ela dá mais um passo na minha direção, aproximando-se perigosamente.
Vejo, pelo canto do olho, que a sua mão segura com força a arma. Tento não
mostrar qualquer receio.
— Diz-nos apenas o que aconteceu aqui. Viemos à procura dos meus pais
e não conseguimos encontrá-los.
Ouvir aquilo parece ter acalmado a sua atitude um bocadinho. Afinal,
talvez sempre tenha uma alma.
— Não posso ajudar-vos — disse ela. — Não foi bonito. É tudo o que sei.
Mais vale regressares para debaixo da tua pedra, esconderes-te bem e
esperares que isto passe.
E depois Kelton, que tem estado bastante esmorecido desde que perdeu a
arma, diz:
— Esse corte no teu braço está infetado, não está?
Ela vira-se para ele.
— Não passa de um corte.
— Conheço uma ferida infetada quando a vejo. É mau.
Ela fita-o, subitamente não tão corajosa.
— E depois? — diz ela.
— E depois, se a infeção chegar à corrente sanguínea, vais desejar que só
estivesses a morrer de sede… mas tenho antibióticos em casa. Leva-nos até lá
e dar-te-ei tudo aquilo de que precisas.
A rapariga enrola o cabelo no dedo, pensando na questão. Tento calcular a
sua idade. Dezanove, talvez. A chegar aos 30. Será isto realmente uma boa
ideia? Não. Mas de momento as boas ideias têm-nos vindo a ocorrer em
várias graduações de mau.
— Vocês têm nome? — pergunta ela.
— Sou a Alyssa. Este é o meu irmão Garrett. Aquele é o Kelton.
— Kelton — troça ela. — Quem é que chama a um filho Kelton?
Kelton suspira.
— Faço constantemente essa pergunta a mim mesmo.
Ela sorri. Assim, só parece meia psicótica.
— Sou a Jacqui. É melhor que não estejam a mentir em relação a esses
antibióticos. Agora vamos pôr-nos a andar daqui para fora.
Pego nas nossas bicicletas que estavam caídas na rua e apercebo-me de
que, se forem as únicas fatalidades desta manhã, por mim tudo bem.
12) JACQUI

É uma sensação poderosa — desafiar o universo para que nos ponha fim.
Todos conhecemos essa sensação. É aquela sensação que temos quando
pensamos, nem que seja por uma fração de segundo, em guinar na direção do
trânsito que segue em sentido contrário; ou em saltar de uma varanda; ou em
jogar à roleta russa com o revólver que o vosso pai pensa que desconhecem.
Não se trata de fazer realmente qualquer uma destas coisas, mas a sensação
está lá, como o vento nas nossas costas, à beira de um penhasco, incitando-
nos suavemente. E se… E se…
É aquilo a que o meu psiquiatra, mais conhecido como Doutor Charlatão,
chama o Apelo do Vazio. É uma coisa real — definida em revistas
psiquiátricas e tudo.
Conheço essa sensação intimamente. É onde vivo. Eu como, durmo e
sonho com o vazio, e, sempre que este chama o meu nome, estou lá, na fila
da frente, pronta para responder.
Imagino que o surfista palerma de cabelo louro oxigenado teve um
vislumbre disso mesmo quando encostei a arma entre os seus olhos. Não que
eu fosse realmente puxar o gatilho, mas e se…
Ameaçá-lo nem sequer tinha sido o meu plano original. Nada daquilo o
era. Não sou nem salvadora, nem mártir, nem heroína, sob qualquer aspeto.
Isso gera demasiada atenção desnecessária. Estava a pensar simplesmente em
esperar que o confronto chegasse ao fim, que os três miúdos espancassem o
velhote e lhe tirassem as chaves, e me conduzissem ao automóvel e à água
que ele tinha escondido. Mas a rapariga e o seu pequeno grupo apareceram,
complicando as coisas. Mal vi o cromo com a arma, soube que isto não ia
acabar bem se eu não intercedesse. Por isso, agora tenho um automóvel e
uma arma e talvez alguma água. Bom trabalho para uma terça de manhã.
Se Alyssa e companhia tivessem bom senso, teriam fugido mal afastei dela
os holofotes, tal como tinham feito os «amigos» do rapaz louro; ou, pelo
menos, era isso que eu esperava que eles fizessem. Por outro lado, o Fechar
da Torneira tornou as pessoas espantosamente imprevisíveis.
Há uma razão para não lhe contar o que aconteceu na praia ontem. Nada do
que eu lhe possa dizer a ajudará a enfrentar a realidade. Chamem ao meu
silêncio compaixão, se quiserem.
Eu estava lá, ontem. Não cedo o suficiente para conseguir água, mas cedo
o suficiente para ver as coisas a correrem mal. Sabem, eu já estava há cerca
de uma semana numa casa da praia, num penhasco sobranceiro às baías mais
pequenas de Laguna Beach. Um grande «D» de ferro na chaminé. Acho que
pertenceu um dia à Bette Davis — a minha atriz dos velhos tempos preferida,
porque não era bonita, mas era francamente sensual! Não sei quem é agora o
seu proprietário, mas este verão não anda por aqui. Sabem, as pessoas
horrendamente ricas fazem esta coisa horrendamente rica em que compram
propriedades só para poderem estacionar o seu dinheiro algures. E, se forem
suficientemente ricas, nem sequer se dão ao trabalho de arrendar as
propriedades, pelo que, em qualquer altura, talvez uma em cada cinco casas
do penhasco de Laguna Beach estejam vazias. E os sinais de aviso da
presença de alarme contra intrusos só cerca de metade das vezes querem dizer
que existe, de facto, um alarme. Junte-se a isto competências de serralheiro e
uma apurada capacidade para manter a discrição, e faço viagens para o colo
do luxo de um modo regular. Normalmente fico durante cerca de uma
semana. Depois limpo tudo, como se fosse um Airbnb, e desapareço, sem que
os donos se cheguem a aperceber de que lá estive. Mas a verdade é que se
apercebem — porque eu deixo sempre um bilhete num cartão da Hello Kitty,
a agradecer-lhes a sua hospitalidade e a dizer-lhes que abasteci o frigorífico
com Dr Pepper para o próximo hóspede não convidado. De que serve a vida
se não nos pudermos meter com as pessoas?
Cortei o braço a forçar a entrada da casa onde me encontro atualmente,
pela janela da casa de banho do piso superior. O golpe não era nada de
verdadeiramente preocupante — isto é, até ao Fechar da Torneira. Fui
apanhada desprevenida, tal como toda a gente, o que foi parvo da minha
parte, porque normalmente estou mais atenta. Depois, quando anunciaram
que iam fazer água potável a partir da zurrapa repleta de algas das praias do
Sul da Califórnia — e que o local mais próximo era logo ao cimo da estrada
—, peguei em cerca de uma dezena de garrafas vazias e enfiei-as na mochila
— também ela da Hello Kitty, porque, está bem, tenho uma cena com a Hello
Kitty. É um prazer secreto, um pouco como o motoqueiro machão que usa,
em segredo, roupa interior de mulher.
Cheguei cerca de uma hora antes daquela em que diziam que teria início a
operação, mas já havia filas que subiam e desciam pela praia e pelo
passadiço, que ultrapassavam o cinema, percorrendo todas as ruas
secundárias. Centenas, senão mesmo milhares de pessoas. Por uma questão
de princípio, não espero nas filas. Opto antes por me fundir. Normalmente
perto da frente da fila, e faço-o com a perícia do David Copperfield a fazer
desaparecer a Estátua da Liberdade. Preciso apenas de encontrar a abertura
certa, por isso deixo-me ficar pela praia e observo.
As máquinas de dessalinização eram mais pequenas do que eu estava à
espera. Os técnicos que estavam a trabalhar com elas pareciam pessoal da
FEMA — mas não envergavam as suas roupas azul-cobalto oficiais. Estas
eram azul-céu. Ficámos mais tarde a saber que tinham enviado o corpo de
voluntários da FEMA. O que me irritou bastante. Terão calculado tão mal
esta crise da água que não tiveram em consideração o quão extrema era e a
deixaram nas mãos de voluntários? Sei que tinham de acudir a muitos fogos,
mas não se pode deixar todo um esforço de auxílio nas mãos de um bando de
aspirantes a agentes federais. Não se trata só de uma receita para o desastre,
trata-se de uma receita à qual falta metade dos ingredientes.
As máquinas funcionaram a princípio, e os voluntários pareciam saber o
que estavam a fazer… isto, até a primeira máquina começar a deitar fumo.
Foi então que se tornou claro que todo o conjunto de capacidades dos
assistentes se limitava a abrir as torneiras e a voltar a fechá-las.
— São as algas — ouço dizer um sabichão gordo. — Estes idiotas não
tiveram em conta as algas.
Aparentemente, as máquinas tinham sido concebidas para processar água
do mar filtrada. E, embora tenham tentado criar filtros improvisados, as
máquinas estavam a falhar e a sobreaquecer uma após outra.
— Tenham calma — disseram os voluntários desconcertados à multidão
furiosa. — Os técnicos vêm a caminho para resolver o problema. Haverá
água que chegue para todos. — Mas claro que não veio ninguém, e em breve
apenas duas das seis máquinas continuavam a funcionar.
Depois, o tipo à frente da operação cometeu o erro seguinte de uma longa
série de erros. Disse às pessoas que se encontravam à frente das máquinas
estragadas que se colocassem nas filas atrás das pessoas que aguardavam nas
máquinas que ainda estavam a funcionar.
Se palavrões explosivos fossem como bombas nucleares, teríamos
aniquilado o planeta.
Estão a brincar comigo? Estamos à espera sob o sol escaldante há três
horas!
Tal como dizem no Antigo Testamento, houve grande consternação e
ranger de dentes.
As pessoas tentaram desafiar as ordens e fundir-se nas filas das máquinas
em funcionamento, mas sem um mínimo da delicadeza que eu teria trazido ao
esforço. E as pessoas que já ali estavam foram empurradas para trás e aqueles
que iam abrindo passagem empurraram com mais força ainda.
Põe-te a andar! Passámos o dia todo à espera nesta fila!
Pois, e nós estivemos à espera NAQUELA fila o dia todo!
Então voltem para lá e esperem que venham arranjar a vossa maldita
máquina!
E num instante as filas desapareceram. Tudo não passava de uma
amálgama de pessoas a tentar avançar.
Não vi a primeira luta, mas senti-a — porque toda a multidão avançou e eu
quase fui atirada ao chão. A multidão empurrava agora com tanta força que
uma das duas máquinas que continuavam em funcionamento foi atirada ao
chão — e mesmo assim as pessoas continuaram a tentar aproximar-se, encher
os seus recipientes, mas tudo aquilo que conseguiam encontrar era um visco
negro.
Nessa altura tive o bom senso de me afastar em direção à linha de
rebentação, mas fiquei ali presa, obrigada a assistir enquanto tudo se
desenrolava. Um confronto deu lugar a outro, e a outro, e de súbito os
cérebros de todos pareceram desligar-se ao mesmo tempo.
Há uma coisa que acontece com uma multidão. Chama-se
«desindividualização». É o tipo de coisa que acontece quando um polícia
veste a sua farda, ou quando usamos um par de óculos de sol para que as
pessoas não consigam ver os nossos olhos. É como se deixássemos o nosso
eu normal — e isso faz-nos sentir diferentes. Comportar de maneira diferente.
Então, o que acontece quando não somos senão mais uma alma sedenta num
mar de zombies da água? Transformamo-nos num.
Vi um velho a ser espezinhado até à morte. Vi uma mãe a roubar a água do
filho de outra pessoa. Até vi um homem a sacar de uma faca e a assassinar
um estranho a sangue-frio. A multidão assaltou as máquinas, atacou os
voluntários, alguns dos quais tinham armas e começaram a disparar para a
multidão.
Em breve, a polícia antimotim entrou em cena, empurrando a multidão
com os seus escudos antimotim, como se fossem impelir toda a gente para o
mar, onde os afogariam. E a algumas pessoas foi isso mesmo que aconteceu.
Algumas pessoas não tinham outro lugar para onde ir senão para as ondas. E
os mais fracos, ou aqueles que não sabiam nadar, afogaram-se. A polícia
antimotim disparou balas de borracha, lançou gás lacrimogénio, bateu nas
pessoas com os seus bastões.
Consegui escapulir-me dali, e trepei a uma rocha, ao fundo da praia, eu e a
minha mochila da Hello Kitty, que continuava cheia de garrafas vazias. Nesta
altura, sentia já que a febre começava a subir e sabia que era do maldito corte
infetado. Mantive-me afastada, observando todas aquelas pessoas cederem ao
Apelo do Vazio.
Depois de quase uma hora de caos absoluto, e de centenas de detenções, a
multidão começou a diminuir, o que finalmente permitiu que os paramédicos
entrassem em ação, ajudassem os feridos e levassem os mortos. Chegado o
pôr do Sol, a praia estava praticamente deserta, e os agentes da polícia
antimotim que haviam sido deixados para trás disparavam tiros de aviso a
qualquer pessoa que se atrevesse a aproximar das máquinas deterioradas.
Acho que um ou dois dos tiros não foram só de aviso.
Decidi não regressar à casa da praia. Não havia lá nada para mim. Não
havia água. Não havia mantimentos. Apercebi-me de que a minha melhor
hipótese de sobrevivência não seria escondendo-me das pessoas, mas
permanecendo entre elas. Porque seria ali que encontraria uma oportunidade.
As pessoas podem ser manipuladas, comovidas e sacrificadas. Por isso, nesse
sentido, acho que se pode dizer que gosto muito das pessoas. Moral da
história: por vezes é melhor não anunciar as más notícias. Pelo menos não ser
eu a anunciá-las. Porque, quando se trata dos pais de Alyssa e de Garrett, a
verdade é que, entre todo o sangue e toda a água derramados, podem estar em
qualquer lado, neste momento. Até na morgue.

Procurámos o BMW nas ruas próximas, ao mesmo tempo que a febre me vai
fazendo sentir cada vez pior. Passamos por montras vazias e pequenos
parques de estacionamento, e eu vou pressionando o botão de pânico do
comando, mas sem qualquer sorte.
Alyssa e o irmão não param de olhar à sua volta, e eu sei que não é do
BMW que estão à procura.
— Que tipo de automóvel conduzem os teus pais? — pergunto.
— Um Prius azul — diz Garrett.
Eu rio-me.
— Boa sorte. Isso é, tipo, metade dos automóveis de Laguna. — Ergo as
chaves no ar e volto a carregar no botão do comando.
— Se encostares as chaves ao queixo terás um maior alcance — diz
Kelton. — A corrente elétrica viaja através dos fluidos no cérebro,
transformando a tua cabeça numa antena.
Não funciona, mas ainda assim ele sorri, claramente orgulhoso da sua
capacidade para oferecer informação inútil. Os conhecimentos dos livros são
bons, como os sapatos de salto são bons: só nos levam até um determinado
ponto, até ao momento em que temos de usar a porcaria dos pés. Em
situações em que é necessário combater ou fugir, é o saber das ruas que nos
mantém vivos. Tenho uma sorte excecional, porque tenho ambos. Já há
alguns anos que estou sozinha e consegui fazê-lo sem um endereço
permanente ou um ordenado regular. Seja ficando com o namorado do mês,
ou numa casa cuja hipoteca foi executada pelo banco, ou descansando no
luxo de uma casa da praia a cheirar a naftalina, tenho-me saído bem. A vida
no limite adequa-se à minha personalidade. Mesmo nos tempos em que
andava na escola era igual. Não tinha o egoísmo melodramático necessário
para ser gótica, nem aparecia nas aulas vezes suficientes para ser considerada
um cromo. Não tinha o QI suficientemente baixo para tolerar a malta mais
popular… e tenho quase a certeza que preferia ser empalada no poste da
bandeira da escola a ser uma daquelas raparigas que seguem a última moda.
Os meus pais — que têm tantos problemas próprios que estavam
determinados a levar-me a ter os meus próprios problemas — não paravam
de me levar a terapeutas e psicofarmacologistas, que lhes respondiam que os
meus problemas tinham a sua origem mais numa disfunção ambiental do que
num desequilíbrio químico. O que sempre os deixava irados. O que poderia
haver de disfuncional numa mãe tão rancorosa que deixa propositadamente
malcozinhado o frango do marido e num pai tão narcisista que faz um facelift
aos 40? Contudo, acabaram por encontrar o único tipo capaz de lhes dar o
diagnóstico que eles queriam: Distúrbio Psico-dissociativo com Tendências
Niilistas. O que basicamente significa que não sou uma paz de alma. E
medicaram-me por isso. Muito obrigada, Doutor Charlatão.
Foi ótimo. Para eles. Eu não tinha motivação suficiente para ter opiniões
ou energia suficiente para me preocupar. A questão da medicação é que esta
pode, realmente, salvar vidas quando precisamos dela. Mas quando não
precisamos é apenas uma chatice.
Quando a minha mãe finalmente ganhou coragem e anunciou que queria o
divórcio, pus-me a andar. Aquele era um espetáculo que eu não precisava de
testemunhar, por muito bons que fossem os lugares. De vez em quando
telefono, apenas para me assegurar de que ainda não se comeram um ao
outro, nem se juntaram a um culto Kool-Aid. Fora isso, mantemo-nos cada
um do seu lado da zona desmilitarizada.
Estar sozinha durante os últimos dois anos trouxe-me perto de me tornar
uma vítima do tráfico humano e mais perto de morrer — isto mesmo antes do
Fechar da Torneira. Excelente material para as memórias que nunca chegarei
a escrever.
Por isso, agora sou motorista de três miúdos irritantes. O que
provavelmente se revelará a situação mais perigosa em que me encontrei até
hoje.

Acabamos por encontrar o BMW num parque de estacionamento abandonado.


É prateado, esguio e parece incrivelmente dispendioso, o que significa que
existe uma boa hipótese de estar carregado de água, tal como o miúdo louro
disse. Só de pensar nisso as minhas glândulas suprarrenais começam a
bombar. Mas, quando olho para o interior, o automóvel é um caos. Montes de
tralha inútil. Resmas de papel, lixo, DVD que provavelmente nunca voltarão
a ser visionados… não pode ser isto. Que raio de acumulador de segunda
categoria junta lixo em vez de mantimentos? Procuro debaixo dos bancos,
entre os bancos… até a bagageira está a deitar por fora de tralha. Só quando
abro o porta-luvas é que encontro a salvação — bem, pelo menos meio litro
dela. Começo a emborcar a água, sem qualquer intenção de a partilhar,
porque sei que estes miúdos têm a sua própria água. Tenho de obrigar os
meus lábios a afastarem-se da garrafa para respirar.
Inspiro fundo e vasculho através da tralha. Dezenas de fotografias do tipo a
quem pertence o automóvel: um retrato de família cheio de brilho, todos os
membros envergando camisolas de gola alta desinteressantes que combinam
umas com as outras. Raios, as fotografias até podiam vir com as molduras.
Mas por alguma razão, quanto mais olho para os retratos, mais estes me
começam a afetar, o que é esquisito e estúpido porque eu nunca conheci este
tipo. São mais os objetos que me afetam. O facto de estas terem sido as
últimas coisas que o homem embalou. De estas serem as coisas que ele
escolheu manter consigo antes de deixar a sua casa, talvez para sempre. É um
sentimento de desespero que compreendo e com o qual me consigo
identificar. E, com todas estas emoções, a gravidade da nossa situação abate-
se sobre mim. Sinto-me tonta. É a febre. Tento recompor-me para a viagem.
Não é a hora de ser sentimental nem de ficar doente; é hora de me pôr em
movimento. Bebo mais um gole de água e vejo Alyssa a olhar fixamente para
mim.
— Devias poupar — diz ela. Como se estivesse a recitar algo que ouviu
num anúncio de serviço público, enquanto estava a ver os desenhos animados
com o idiota do irmão.
Fito-a, de olhos muito abertos.
— O Kelton vai à frente — declaro —, porque, pelo menos quando é
irritante, é informativo. — A verdadeira razão, claro, é que aquele que se
sentar ao meu lado representará, para mim, uma maior ameaça; e, neste
momento, o ruivo pateta que não é capaz sequer de disparar uma pistola
representa o risco mais baixo. De facto, parece determinado a ser útil.
— Serei o navegador — diz ele. — É possível que tenhamos de sair da
estrada.
Alyssa fita-me com um ar cético e depois volta a abrir a sua grande boca.
— Quem é que te pôs no comando?
— Eu — digo-lhe, ao mesmo tempo que ligo o automóvel. — Se não
gostas, podem voltar para as vossas bicicletas e pedalar até casa.
Alyssa acaba por entrar no veículo, recuando como eu sabia que faria.
Porque ela acaba por precisar mais de mim do que eu dela. Eu não preciso
dela de todo. A única razão pela qual ela e o irmão estão neste automóvel é
porque Kelton, provavelmente, não viria sem eles. E Kelton é o homem dos
antibióticos — ou seja, isso, a menos que esteja a mentir. Mas não creio que
esteja. É absolutamente sincero. É absolutamente honesto. O tipo de
honestidade capaz de o matar.
Quanto a Alyssa, confio tanto nela como ela confia em mim. O que não
representa um problema, desde que eu me mantenha no controlo. A
sobrevivência significa não deixar nenhum fator à discrição dos outros. Mas
agora, olhando melhor para Alyssa pelo espelho retrovisor, pressinto algo que
não tinha visto antes. Quando primeiro a vi, achei que ela ladrava muito, mas
mordia pouco — contudo, agora, no automóvel, enquanto a luz do sol brilha
no seu rosto, iluminando aquilo que eu não consegui ver antes, apercebo-me
de que os seus olhos não são tão baços e desenxabidos quanto me pareciam à
primeira vista. Ela é astuta. O que significa que poderá ser um problema.
13) ALYSSA

Não posso deixar de reparar na maneira como os olhos de Jacqui olham


constantemente para mim no espelho retrovisor. Não gosto dela e ela sabe.
Não confio nela e ela também já se apercebeu. Faz-me pensar em algo que
aprendi em Biologia. Como os animais de matilha que optam por ficar
sozinhos são sempre mais esfomeados e piores, porque é mais difícil caçar
sem uma matilha — e, pensando bem, não fazemos ideia do que terão feito
para serem excluídos da matilha. Jacqui é uma quantidade desconhecida
numa garrafa sem qualquer marca, e estamos neste momento à sua mercê.
Tanto quanto sei, acabámos de ser raptados.
À frente, Kelton liga o rádio. Está sintonizado numa estação de country por
satélite, o que de alguma maneira parece obsceno. Luke Brian a cantar acerca
de chuva, whisky e os atrevimentos da sua namorada.
Jacqui olha para ele e diz:
— Se não mudas isso dou-te um tiro e, depois, dou um tiro a mim mesma.
Ele obedece rapidamente.
— Que raio de pessoa põe a tocar uma música sobre a chuva logo hoje? —
diz Kelton, mudando para uma estação noticiosa na banda AM.
— … à medida que o Fechar da Torneira continua a assolar a região sul, o
governador e as entidades públicas locais garantiram aos residentes que…
Jacqui estende o braço e desliga o rádio.
— Hei! Aquilo podia ser importante! — recordo-lhe.
— Não param de passar a mesma transmissão… tenho estado a ouvi-la
toda a manhã — diz Jacqui. — Não existem quaisquer «centros de
evacuação». Pelo menos não ainda.
— Deixa-o desligado — diz Garrett. — Não quero ouvir mais nada.
Na verdade, nem eu. Só não quero estar presa com os meus próprios
pensamentos. A única coisa pior que os meus pensamentos, contudo, são os
de Kelton.
— As coisas vão-se desmoronar bastante depressa agora — diz ele. — O
encerramento de serviços críticos, a dificuldade nas comunicações… a
qualquer momento tudo dará lugar ao darwinismo urbano. Sabem, há uma
teoria chamada «Três Dias para Animal», que diz…
— Não quero saber o que diz, Kelton — digo-lhe. — Por isso cala-te de
uma vez.
— Como queiras — diz ele. Mas depois não se cala. — É que estamos no
quarto dia… por isso acho que a teoria só falha por um dia.
Odeio o facto de, provavelmente, ele estar certo. Um desastre é uma coisa,
e um motim é outra, mas a total desintegração da sociedade? Será isso que
estamos a testemunhar? A minha cabeça entra numa espiral de visões de
realidade pós-apocalíptica que nunca imaginei que pudessem surgir mais
depressa do que a data de fim de prazo do nosso leite.
— Vocês dão cabo de mim — diz Jacqui. — Tudo o que fazem é queixar-
se, queixar-se, queixar-se uns dos outros. Não tarda estarão a perguntar: «Já
chegámos?»
Ao que Garrett responde:
— Já chegámos?
Dou-lhe uma palmada um pouco mais forte do que tencionava, mas ele não
reage. Não faz mais do que curvar-se sobre si próprio e olhar pela janela,
provavelmente tentando também evitar os seus próprios pensamentos.
— Estás sempre a chamar-nos miúdos — digo a Jacqui —, mas não
pareces ter mais de dezoito anos.
— Dezanove.
Quando passamos por cima da autoestrada, os mesmos veículos continuam
no mesmo sítio, e agora existem claras evidências de que foram abandonados.
Obrigo os meus pensamentos a afastarem-se daquilo.
— Então, onde é que estudaste? — pergunto a Jacqui, interessada apenas
na medida em que a sua resposta me irá distrair de pensamentos mais
sombrios.
— Mission — diz ela, o que me surpreende porque é onde ando. Significa
que o tempo que lá passámos se deve ter sobreposto. No entanto, não me
lembro dela… Por outro lado, Mission Viejo High é uma escola bastante
grande.
— Então também és um Diablo? — diz Kelton, igualmente surpreendido.
— Era — diz Jacqui. — Até ter desistido.
E depois Kelton arqueja.
— Jacqui… por acaso não és a Jacqui Costa, és?
Ela vira-se para olhar para ele.
— Como raio é que sabes o meu nome?
— Estás a brincar comigo? És, tipo, uma lenda. — Depois, Kelton vira-se
para mim. — Ela está numa placa no gabinete, é o recorde da escola nos
testes SAT, um resultado quase perfeito! — Kelton vira-se de novo para ela.
— Tenho passado o ano todo a odiar-te!
— Bem, agora tens um rosto que também podes odiar.
— Então porque desististe? — pergunto-lhe, agora genuinamente curiosa.
Mas claro que ela não responde à pergunta diretamente, limitando-se a dizer:
— Tinha coisas melhores para fazer.
— Hum — digo. — Parece-me que o teu Fechar da Torneira começou há
bastante tempo.
Volto a ver os olhos dela no espelho retrovisor. Um olhar rápido, frio.
Tenho de recordar a mim mesma que não a devo antagonizar. Ela é que tem a
arma, e a sua consciência é uma passa mirrada, se é que tem de todo uma
consciência. Imagino que ela já seja animal, sem necessitar dos três dias para
lá chegar.

Quando viramos para o nosso bairro, parte de mim começa a relaxar,


enquanto outra parte fica mais tensa. Regressar a casa significa uma dose de
segurança, mas também significa um falhanço. A menos que a minha mãe e o
meu pai tenham regressado enquanto estávamos ausentes. Agarro-me a essa
esperança como se esta fosse a ponta esfarrapada de uma linha salva-vidas,
porque me continuo a recusar a enfrentar quaisquer alternativas.
Filas de casas cozem ao sol, os seus ocupantes em parte incerta —
basicamente como deixámos o bairro. Estico o pescoço, encostando-me à
janela de vidro escurecido, para conseguir ver melhor a nossa casa. Estamos a
meio quarteirão de distância, mas já consigo ver o acesso. O automóvel da
minha mãe continua ausente. A porta da garagem continua descida. O portão
lateral continua fechado.
Mas a porta da frente está aberta!
Antes que Jacqui puxe o travão do veículo, já Garrett e eu saltámos para o
exterior e corremos para a porta da frente.
— Estão em casa! — grita Garrett. — Eu sabia que devíamos ter esperado!
Eu sabia.
Mas, se estão em casa, porque teriam deixado a porta da frente
escancarada?
À medida que corremos para a porta, apercebo-me de que está um bilhete
preso à mesma. Por um breve instante, penso que poderá ser dos nossos pais,
mas é apenas um panfleto a apelar a uma reunião de urgência da comunidade,
mais tarde, no dia de hoje. É então que me apercebo dos fragmentos de
madeira caídos no degrau da frente e por todo o hall de entrada. A porta não
foi meramente aberta — foi forçada.
— Pai? — grita Garrett. — Mãe?
Garrett quer tanto acreditar, está em completa negação. Olha para a
ombreira da porta destruída.
— Talvez tenham perdido as chaves. Ou o tio Manjericão tenha regressado
e não conseguisse entrar.
Mas está a tentar agarrar-se a qualquer coisa. Foi uma invasão. E depois
apercebo-me…
— Kingston!
A ideia de o nosso cão ter tido de enfrentar intrusos leva-nos a entrar.
A casa não foi propriamente pilhada, mas as coisas não estão certas. Há
uma fina tira de aço no chão, pedaços de tubagens de cobre, pegadas
gordurosas no tapete, e, quando viramos, vemos a caldeira tombada como um
navio naufragado na sala de jantar. Foi arrancada, aberta e jaz morta sobre a
mesa da sala de jantar como um paciente que não sobreviveu à operação.
— Kingston? — chama Garrett. — Kingston! Onde estás?
E, para meu alívio, Kingston aparece na porta entre a cozinha e a sala de
jantar.
— Anda cá, rapaz! — chamo. — Afugentaste-os?
Estendo a mão para lhe fazer uma festa, mas ele não vem. Em vez disso
gane e hesita, não necessariamente num gesto de desafio, mas de algo mais…
— Kingston? — digo, continuando a processar a sua reação. Apercebo-me
de que deve ter fome, depois de uma manhã sem comer, por isso levo a mão
ao bolso e tiro o pedaço de carne seca que tinha levado para a viagem.
Mal o faço, um outro cão emerge da cozinha, tendo cheirado a carne.
É o rottweiler que pertence a uma família do outro lado da rua. Estranho.
Porque está aqui este cão? Deve ter entrado pela porta aberta, em busca de
água. Lembrava-me de que sempre fora amigável, mas neste momento não
parece muito amigável.
Mantendo a calma, ergo-me, parto a carne ao meio e lanço um pedaço para
cada cão — mas eles limitam-se a cheirá-lo. Não é isso que querem. Eu sei o
que eles querem, mas neste momento o meu cantil está vazio.
… E é então que surge um terceiro cão. Um que eu não reconheço. É um
dobermann, e fita-me como se eu fosse uma proposta muito mais atraente do
que a carne seca.
Assusto-me de tal maneira que quase me ponho em fuga.
— Garrett, fica onde estás — digo.
Depois, o dobermann começa a rosnar.
— Kingston? — chamo. Mas o Kingston fica com os outros dois cães e
recusa-se a vir. É como se já não fosse o nosso cão. Porque o traímos não lhe
dando água suficiente. Esta é a sua nova matilha.
Os músculos do dobermann ficam tensos, como se estivesse prestes a
atacar, por isso agarro em Garrett e corro porta fora.
— Não! — grita Garrett. — Não o podemos deixar! Não podemos deixar o
Kingston!
Mas atrás de nós os cães começaram a ladrar e eu não consigo perceber se
nos estão a perseguir até à rua ou se se limitaram a afugentar-nos do seu
território. Por isso puxo Garrett, sabendo que não tenho tempo para lhe
explicar que Kingston, um cão que em quaisquer outras circunstâncias se
teria mantido leal até ao fim, fez uma escolha instintiva a favor da sua própria
sobrevivência.
14) KELTON

Alyssa e Garrett saem a correr de casa e quase se atiram de novo para dentro
do automóvel, batendo com a porta — e basta-me um instante para perceber
porquê. Um dobermann pinscher de aspeto bastante letal sai pela porta da
frente, seguido por Kingston e por um outro cão grande. Seguem o
dobermann, enquanto este anda em círculos em redor do veículo. Alyssa
explica o que aconteceu, e Jacqui saca da arma.
— Não! — digo-lhe. — Vamos ver o que eles fazem.
Kingston pousa a pata na porta de trás, olha tristemente para a janela, para
Garrett, cujos olhos estão a ficar marejados de lágrimas. Depois, Kingston
segue os outros dois cães para o interior da casa. Alyssa expira de alívio.
— Então vão abdicar da vossa casa e entregá-la a uma matilha de cães? —
diz Jacqui.
Alyssa não responde. Nem sequer ergue os olhos. É como se o processador
do seu cérebro tivesse congelado com esta última gota de água.
— Não importa — digo a Jacqui. — Vamos para minha casa. De qualquer
maneira estaremos lá mais seguros.
Claro que convencer o meu pai a aceitá-los será do mais divertido que há.
Tendo em consideração a maneira como as coisas pioraram rapidamente hoje,
o mais certo é que tenha entrado em modo comando — as armas prontas e
carregadas, a carrinha repleta para a nossa peregrinação até ao refúgio, e
absolutamente irritado por eu ter saído esta manhã sem ter deixado um bilhete
sequer. Mas mantenho-me firme na minha crença de que ir com Alyssa foi a
coisa certa.
E Jacqui? Bem, é um risco necessário. É como uma jogada de xadrez. É
como sacrificar uma peça importante no início do jogo, com ganhos possíveis
a longo prazo. Mas, por vezes, é isso que é preciso fazer para ganhar. Correr
riscos. Sei que trazer a Jacqui até aqui foi um grande risco. Mas apesar da
óbvia desconfiança que Alyssa sente em relação a ela, Jacqui é a única razão
por que ainda estamos vivos, quer gostemos disso ou não. Fico apenas
satisfeito por ter reparado na infeção dela — porque eu sabia que ela não ia
abdicar de um antibiótico. Não posso deixar de pensar que a sua decisão de se
juntar a nós foi, também ela, um risco calculado. E agora basta-me alimentar
a esperança de que Jacqui não se vire contra nós mal obtenha aquilo que quer.
Estacionamos no acesso, e eu conduzo-os em direção à minha casa. Já
consigo perceber que o meu pai andou atarefado. Os buracos de aranha do
nosso pátio estão tapados e preparados para receberem os seus ocupantes, as
armadilhas prontas e os estores de segurança descidos. O meu pai até cobriu
o perímetro com câmaras de vigilância adicionais.
Jacqui olha à sua volta absolutamente espantada, saindo do carreiro de
cimento e passando para a relva, e, quando o seu pé toca no chão, a terra
cede. Agarro-lhe o braço e puxo-a, para que não caia no fosso, que não chega
a ter um metro de fundo, mas está forrado com tábuas de pregos, como algo
saído de um filme do Indiana Jones.
— Armadilhas — digo. — Tenham cuidado onde põem os pés.
Jacqui abana a cabeça, demasiado fixe para se sentir horrorizada.
— E há quanto tempo é que se estão a preparar para o apocalipse?
— Há algum tempo — digo eu. — O fim do mundo é o hobby da nossa
família.
Jacqui olha à sua volta de relance, cativada pela espetacularidade sombria
do nosso pátio.
— Sempre é melhor que o crochet — diz.
Agora, a parte mais difícil. Aproximo-me da porta da frente, inspiro fundo,
muito fundo, procurando pela chave certa, mas, antes que consiga introduzir
a chave na fechadura, estaco, lembrando-me de que Jacqui ainda tem a minha
arma. Se o meu pai a vir, o caos que já está gerado aumentará de forma
exponencial. O facto de se encontrar agora na sua posse, não me torna apenas
loucamente irresponsável, mas cem por cento culpado por o que quer que ela
acabe por fazer com ela.
E, depois, a porta abre-se sem que eu use a chave — é o meu pai. É como
se estivesse à nossa espera.
— Bem-vindo a casa — diz ele, com uma frieza distante. — Tens-te
andado a divertir por aí?
— De todo — digo-lhe. — É tal como tinhas previsto.
— E as autoestradas?
— Engarrafadas — relato.
É então que a minha mãe sai a correr, envolvendo-me num abraço
terrivelmente embaraçoso.
— Kelton! Estás bem? Nunca mais nos voltes a assustar assim! — Nem
sequer tenho de olhar para ver o sorriso de Jacqui.
O meu pai gesticula para que a minha mãe volte a entrar em casa e o deixe
lidar com a situação. Depois vira-se para os restantes.
— Pelo que vejo, trouxeste amigos. Olá, Alyssa. Garrett.
Eles retribuem o cumprimento com saudações desajeitadas.
Depois olha para Jacqui de cima a baixo.
— E quem é esta?
— Chamo-me Jacqui. Fui eu quem salvou o couro do seu filho lá fora —
responde ela, avançando sem medo. — Estou aqui pelos antibióticos que ele
me prometeu.
O rosto do meu pai incha de raiva. Mas, em vez de gritar, inspira fundo,
engolindo tudo. Acena com a cabeça, mantendo a compostura, guardando a
sua raiva para outro momento.
— Isto é verdade, Kelton?
— Sim — digo eu. — Ela salvou-nos a vida e trouxe-nos para casa em
segurança.
— Obrigado por isso, Jacqui — diz o meu pai. — Mas, infelizmente, os
nossos antibióticos não pertencem ao meu filho, para que ele os possa dar.
Jacqui olha-o fixamente, quase rosnando como o dobermann em casa de
Alyssa e a minha mente já disparou, sabendo que isto não irá acabar bem. Ela
dá um passo ameaçador na direção dele.
— Pois, isso não vai funcionar para mim — diz Jacqui.
Penso na arma escondida na sua cintura. O que o meu pai faria se a visse.
Em como nunca poderá descobrir. Antes que a situação piore, dou um passo,
colocando-me entre os dois.
— Como a Jacqui disse, ela salvou-me a vida! — recordo ao meu pai,
fingindo-me indignado e depois apercebendo-me de que não tenho que fingir,
porque estou. — Estás a dizer que a minha vida não vale uns míseros
antibióticos?
— Kelton, não estás a perceber…
— E a seguir, provavelmente, vais-me dizer que não podemos acolher a
Alyssa e o Garrett!
— Eles têm a sua própria casa!
— Que foi assaltada e não é segura! E agora os pais desapareceram!
Então ele aproxima-se de mim, falando baixinho. Não é bem um sussurro,
mas não é suficientemente alto para que qualquer pessoa, além de mim, oiça.
— Não vamos ter esta conversa. Sabes como funcionam as coisas.
E eu expludo, gritando, para que a minha mãe consiga ouvir lá dentro, e
provavelmente qualquer outra pessoa a curta distância.
— Pois, eu sei exatamente como é! Tu tens razão, não vamos ter esta
conversa. Porque eu vou-me pôr a andar daqui.
Viro-me e avanço a passos largos em direção ao BMW.
— Kelton! — grita o meu pai.
Não consigo combater o impulso para parar mal ele chama o meu nome
daquela maneira — mas uso-o em meu benefício. Viro-me para ele.
— Agora percebo porque o Brady se pôs a andar daqui mal pôde. Nem
sequer vou esperar por chegar aos dezoito anos. — Depois olho para os
outros. — Venham, vamos embora. Jacqui, havemos de arranjar antibióticos
para ti junto de alguém que se preocupe minimamente.
A minha esperança é que Jacqui perceba o que estou a fazer e vá na onda
— porque, numa situação real, esta rapariga jamais aceitaria uma ordem
minha.
Mas ela percebe — porque olha para o meu pai com um sorriso e um
encolher de ombros e diz:
— Até mais, totó. — E, por um momento, pergunto-me como é que
conhece a alcunha do meu pai. Mas depois apercebo-me de que não é esse o
caso.
Chegamos a meio caminho do veículo — depois, a minha mãe sai a correr
de casa.
— Kelton! — diz ela, num tom ainda mais autoritário do que o do meu pai.
— Não te atrevas a entrar nesse automóvel!
Viro-me para ela, esperando que a situação se desenrole.
— Alyssa, Garrett: claro que podem ficar connosco — diz ela. — Tu
também, Jacqui. Temos toda a água e comida de que precisam. — Depois
vira-se para o meu pai e diz-lhe, num tom de apaixonante desafio: — E
antibióticos.
Ela empurra Alyssa e Garrett para dentro de casa, para lá do meu pai, que
nada pode fazer para a impedir.
— Marybeth, podemos falar sobre isto?
— Não.
E passa por ele, sobrepondo a sua autoridade à dele.
Sinto-me triunfante e preocupado ao mesmo tempo, porque o meu pai
contabiliza as ofensas. Sei que, um dia, isto me sairá caro. Mas não será hoje.
Jacqui passa pelo meu pai saltitando, cobrindo-o de sarcasmo.
— Obrigada pela sua hospitalidade! — Felizmente não acrescenta «totó»
desta vez, mas agarra no panfleto cor-de-rosa do encontro da comunidade
preso à porta e entrega-lho, como se lhe estivesse a fazer um favor.
Quanto a mim, mantenho uma expressão inescrutável e não olho para o
meu pai quando passo por ele. Mas por dentro estou a sorrir — porque, pela
primeira vez na minha vida, fiz do medo um vento a favor em vez de um
vento contra.
O meu círculo de amigos está, normalmente, limitado aos escuteiros,
preppers e um ou outro filho de um dentista — por isso, ter Alyssa, Garrett e
Jacqui aqui é algo até bastante significativo para mim. Mostro-lhes a casa,
começando pela minha divisão preferida: a nossa sala segura. É onde
guardamos todos os artigos em que normalmente não nos é permitido tocar.
Kits de primeiros socorros, garrafões de água, armas, munições e alimentos
enlatados não perecíveis. Fica por detrás de uma estante com dobradiças.
Puxo um livro que funciona como um manípulo, e toda a unidade de
prateleiras se abre.
— O meu pai tirou o modelo de um antigo filme do James Bond — digo-
lhes, na esperança de o poder redimir um pouco. Ficam convenientemente
impressionados. Também foi aqui que o meu pai enfiou os antibióticos:
diversos frascos de líquidos e de comprimidos, fechados em sacos com
fechos zip e reutilizáveis.
— Tens alguma alergia a antibióticos? — pergunto a Jacqui.
— Não.
Entrego-lhe dois frasquinhos de comprimidos cor de laranja de Keflex.
— Um frasco deve chegar, mas, se não for suficiente, um segundo bastará
sem dúvida. — Estendo-lhe as duas embalagens, e ela olha para elas como se
pudesse ser um truque. Depois arranca-mas da mão, abre uma delas e toma
dois comprimidos a seco.
— Finalmente. — Exala, enfiando os frascos no bolso. Depois sorri para
mim, e pela primeira vez não parece completamente louca. — Obrigada,
Kelton — diz ela, e acho que está realmente a ser sincera.
Alyssa olha à sua volta.
— A porta tem tranca? — pergunta ela.
— Só pelo lado de dentro — digo eu. — É uma sala segura, lembra-te
disso. Porquê?
— Porque — diz Jacqui — ela acha que eu a vou assaltar a meio da noite e
fugir com todas as vossas coisas.
— Nem tudo é por causa de ti — diz Alyssa, mas a maneira como evita o
olhar de Jacqui diz-me que, desta vez, até é. E talvez com alguma razão.
— Não se preocupem — digo eu. — Há um alarme com sensor de
movimento no interior, por isso, se alguém entrar durante a noite, saberemos.
— O que não é exatamente verdade, porque todos os sensores de movimento
estão no perímetro da nossa propriedade, mas Jacqui não precisa de saber
disso.
Conduzo-os às traseiras, mostrando-lhes a zona onde pratico tiro ao alvo. E
aponto para a casa de banho portátil.
— Não vamos desperdiçar água nas casas de banho interiores, por isso é
ali que tratamos das coisas. — Embora ninguém goste de uma casa de banho
portátil, nenhum deles se queixa.
Na cozinha mostro-lhes o bidão de aço inoxidável onde se encontra o
nosso fornecimento de água principal. Abro a rolha de segurança de borracha
e preparo a torneira.
— O meu pai irá racionar a água — digo eu, olhando à minha volta para
me assegurar de que não está por perto. Está de volta à garagem, a ser
diligente. — Mas, por ora, podem atestar.
Jacqui está quase a salivar, os olhos grandes como pires. Percebo que ela
começa a gostar desta casa.
Alyssa e Garrett enchem os cantis que lhes dei. Jacqui enche a sua garrafa
de água. Apercebo-me, contudo, que Alyssa não está a beber. Está apenas a
olhar para o buraco escuro da boca do cantil.
— O que se passa? — pergunto-lhe, logo depois de o irmão e Jacqui
saírem da cozinha.
— Nada. — Ela tenta afastar a questão, levando o cantil aos lábios, mas,
mal o faz, os seus olhos começam a encher-se de lágrimas, e sinto a pressão a
acumular-se no seu interior até, de súbito, as comportas rebentarem. Ela lança
os seus braços à minha volta, abraçando-me com força. Eu abraço-a também,
não com o tipo de paixão pela rapariga da porta ao lado, como poderia ter
feito no passado, mas com uma sinceridade que nunca antes senti. Apanha-
me de surpresa e, ao mesmo tempo, faz todo o sentido. Ela afasta-se
rapidamente e limpa os olhos, envergonhada. — Desculpa. Estou a ser parva.
— O quê? Não… — digo eu. Não sei propriamente o que fazer numa
situação como esta.
Ela limpa os olhos molhados.
— Que desperdício de água. — E ri.
— Todos precisamos de desperdiçar um pouco de água, por vezes — digo-
lhe. — Sempre é melhor do que fazer xixi na cama. — O que poderá ser a
coisa mais parva que alguma vez disse a outro ser humano, mas que a faz rir
um pouco mais. Não de mim, mas comigo; ou pelo menos ao meu lado.
— A semana passada teria dito que a tua casa era bizarra — admite ela —,
mas agora acho que é bastante incrível. — Os seus olhos fixam-se nos meus.
— Obrigada. Por tudo. Por te teres arriscado para que pudéssemos ficar.
Dirijo-lhe um sorriso de esguelha.
— Sou escuteiro, lembras-te? — digo, tentando arrancar-lhe um sorriso.
Funciona. — E, de qualquer maneira, tinha de fazer alguma coisa para
compensar o facto de ter sido tão inútil na praia.
— Não foste inútil — diz-me ela.
— Tivemos de ser salvos pela Rainha da Escuridão — recordo-lhe.
— Teria sido melhor se tivesses, de facto, puxado o gatilho e morto aquele
rapaz?
Aquilo leva-me a pensar. O meu pai sempre me disse que nunca
deveríamos sacar de uma arma a menos que estivéssemos plenamente
preparados para a usar. Eu não estava preparado. E talvez isso seja uma coisa
boa.
Vamos ter com Jacqui e Garrett, que já subiram e estão a ver a nossa sala
de jogos. Jacqui está a meio de um jogo numa máquina clássica da Twilight
Zone.
— A minha vida, numa conveniente forma de pinball — diz Jacqui,
fazendo agitar os flippers e mantendo a bola metálica a saltar. Garrett
examina uma consola com o Pac-Man e declara-a fatela.
— Perdoa-o, Senhor, pois não sabe o que diz — afirmo, olhando para o
teto. Alyssa desafia-o para um jogo. Ele joga uma vez e fica viciado.
Apercebo-me de que Jacqui, contudo, desistiu da sua própria máquina,
ainda com uma bola na câmara. Está estendida num puff, parecendo ainda
mais febril do que antes.
— Estás bem?
— Estou ótima — diz ela. — Deixa-me em paz.
Vou à casa de banho e regresso com uma dose de Advil para ela.
— Os antibióticos vão demorar cerca de um dia a fazer efeito. Isto ajudará
a fazer descer a febre.
Ela pega no frasco e toma três comprimidos com um gole de água. Desta
vez não me agradece. Talvez racione a gratidão como nós racionamos a água.
Desço as escadas para ver televisão com a minha mãe durante um bocado.
Ela não está a ver as notícias; em vez disso está a ver Regresso ao Futuro, um
filme que é impossível não ver quando nos deparamos com ele na televisão.
Doc Brown está a falar acerca dos 1,21 gigawatts necessários para realizar a
viagem no tempo, mas pronuncia mal «gigawatts», o que sempre me
incomodou.
Não me surpreende que ela não esteja a ver as notícias, que realçam
sempre o pior e a desgraça. Isso é algo que já ouvimos ao meu pai vezes
suficientes. A minha mão subscreve, em geral, uma escola de pensamento
mais positiva e otimista, e o meu pai acredita que os catastrofistas estão a ser
contidos na sua apresentação da verdade. Suponho que se possa dizer que se
equilibram um ao outro.
A minha mãe baixa o volume e vira-se para mim.
— Precisas de fazer as pazes com o teu pai — diz ela.
— Agora?
— Mais tarde será mais difícil.
E sei que ela tem razão.
Encontro-o a soldar algo novo na garagem. Uma espécie de pá híbrida com
um machado na ponta oposta. Não tenho a certeza se será uma ferramenta ou
uma arma. Não parece muito prática para nenhuma das situações. Fito as suas
costas durante algum tempo, pensando, sem saber ao certo como começar.
— … Pai — acabo por dizer.
Ele desliga o aparelho de soldar sem se virar.
— Sim, Kelton? — diz, num tom gelado.
— Preciso de falar contigo acerca do que aconteceu na praia.
— Deixa-me adivinhar: as máquinas de dessalinização falharam e as
pessoas amotinaram-se.
— Deu nas notícias?
Ele ergue o visor e abana a cabeça.
— Há demasiado a reportar para que as notícias consigam apanhar tudo.
Mas, se se olhar para a história de má gestão das crises, era fácil de prever.
— Sim, bem, não o vimos a acontecer, mas, ao que parece, foi bastante
mau. — Limpo a garganta e, por fim, chego àquilo que queria realmente
dizer. — Desculpa ter-te posto em xeque há pouco. Mas, na verdade, não me
deste grande escolha.
— Vamos partir amanhã de manhã — diz ele baixinho, sem aceitar nem
rejeitar o meu pedido de desculpa.
— Para o refúgio? — pergunto.
Ele acena com a cabeça.
— É hora.
— Então e o Brady?
— Não podemos continuar à espera dele, Kelton. — Percebo que não se
trata de uma decisão fácil para ele. — Tenho de acreditar que ele aprendeu
pelo menos algumas das lições que lhe ensinei — diz o meu pai — e que
manteve o seu próprio stock de emergências; talvez até tenha o seu próprio
refúgio.
— Então e a Alyssa e o Garrett? — digo, menos preocupado com Jacqui
do que com eles. Mas sabia a resposta ainda antes de ter perguntado.
— Não os podemos levar — diz o meu pai em tom firme. E desta vez sei
que não há como contorná-lo. O que significa que vamos ter de nos separar.
— Então deixa que fiquem aqui — sugiro. — Haverá água e comida… e
podemos ensiná-los a usar o sistema de segurança.
O meu pai pensa naquilo. Não mo recusa de imediato, o que é um bom
sinal. Insisto um pouco mais.
— Não podemos simplesmente deixá-los na rua…
Nesse momento, o seu olhar fixa-se no meu, mas, em vez de ter a sua
normal expressão gelada até aos ossos, os seus olhos estão diferentes.
Tremeluzentes e vidrados. Vulneráveis. Uma exibição de emoção sincera que
eu nunca antes vira. E, com esse olhar, sinto que lhe abri o seu ficheiro .zip
pessoal; subitamente, anos de informações emocionais comprimidas
explodem para o exterior, e sou atingido por uma verdade esmagadora. É isto
que se encontra por detrás da sua indignação. Todos os brinquedos do dia do
juízo final que eu adorava quando era miúdo, a raiva e a manipulação que
afastaram Brady, e que ameaçam afastar a minha mãe, não são mais do que
fios de um véu tecido para esconder o seu próprio terror interior.
Quando somos miúdos idolatramos os nossos pais. Achamos que são
perfeitos, porque são o termo de comparação pelo qual medimos o resto do
mundo e nós próprios. Depois, na adolescência, irritam-nos simplesmente,
porque nos apercebemos de que não só não são perfeitos, como também
podem ser um bocadinho mais passados do que nós. Mas há aquele momento
em que nos apercebemos de que não são nem super-heróis nem vilões. São
dolorosamente, imperdoavelmente, humanos. A questão é: conseguimos
perdoá-los por serem humanos?
Como um nervo exposto, ele fica ali, segurando aquela bizarra ferramenta
aterrorizante e híbrida, e apercebo-me de que aquela coisa é a manifestação
física de todos os seus medos. E não sei o que dizer, a não ser:
— As armadilhas funcionam.
Ele é apanhado desprevenido por aquela informação.
— Funcionam?
— Sim, a Jacqui quase caiu numa. Nem desconfiou da sua presença.
Ele sai daquele seu estado de ficheiro .zip e sorri, como eu esperava que
acontecesse.
— Excelente! — diz ele, como um miúdo. — Quer dizer, é reconfortante
que tenha funcionado.
— Ela achou que era muito fixe — digo-lhe. — Embora quase a tenha
mutilado.
Ele olha para aquela ferramenta bizarra.
— Deixa-me acabar isto — diz, a tensão entre nós desaparecida. — Saio
num instante e posso mostrar aos teus amigos todas as características da casa.
Decido não lhe dizer que já o fiz.
15) ALYSSA

— Todas as linhas estão ocupadas. Por favor, tente mais tarde.


A voz parece um cruzamento entre a Siri e o Google Maps. Alegre, segura
e absolutamente desprovida de alma. Estou a tentar ligar para os hospitais
perto de Laguna Beach, na esperança de conseguir localizar os meus pais,
mas isso exigiria conseguir falar com os hospitais. Desligo e tento outra vez.
— Todas as linhas estão ocupadas. Por favor, tente mais tarde.
Estará a Verizon tão morta quanto a maior parte dos telefones das pessoas?
Como podem as linhas estar ocupadas se a maior parte dos telemóveis do Sul
da Califórnia não tem bateria? Desligo e envio uma mensagem de texto a
Garrett.
Ignora, estou só a testar o sistema.
A mensagem segue. Ele responde «K», porque «OK» é demasiado
comprido para o nosso mundo moderno. Convencida de que as torres de
comunicações ainda estão operacionais, tento mais uma chamada. Marco o
112.
— Todas as linhas estão ocupadas. Por favor, tente mais tarde.
Luto contra o desejo de destruir o meu telemóvel, sabendo que essa
satisfação momentânea não compensará a perda.
No entanto, há um lado positivo em tudo isto, que é algo reconfortante. O
facto de estar a tentar com tanto afinco encontrar os meus pais significa que é
provável que eles também estejam a tentar, com igual afinco, contactar-nos.
Seria muito pior se o serviço telefónico estivesse a funcionar na perfeição e
nós continuássemos sem ter notícias deles.
Tento afastar a minha mente de tudo aquilo, verificando o que os outros
estão a fazer. Jacqui continua a dormir no puff. O pai de Kelton está na
garagem, imerso em ruídos metálicos masculinos, e Kelton parece estar em
todo o lado ao mesmo tempo, como um cão de guarda a verificar
obsessivamente se tudo no seu mundo está em segurança.
— Estás bem? — pergunta-me, ao que me parece, pela terceira vez numa
hora, quando passo por ele nas escadas.
— Sim — digo-lhe. — Continuo bem.
É fofo que ele se preocupe comigo, mas já chega. Kelton McCracken,
fofo? Acabei de tombar num universo muito estranho.
Vejo Mrs. McCracken na estufa, atarefada com os seus tomates e o que
mais ali estejam a cultivar. Enquanto a minha mãe limpa para lidar com o
stresse, parece que a mãe de Kelton faz jardinagem. Depois vejo Garrett na
sala de jantar, a olhar inexpressivamente pela janela. Observo-o enquanto ele
pega numa tijela decorativa que se encontra sobre a mesa da sala de jantar e
avança em direção à porta da frente. Não faço ideia do que esteja a fazer.
Passa pela porta, e, por muito que os meus instintos de irmã mais velha o
queiram impedir, ele avança com uma tal determinação que me limito a ver o
que estará a fazer, seguindo-o em silêncio.
Ele passa pelo portão de segurança e sobe o acesso à nossa casa, onde
pousa a tigela, tira o cantil que levava pendurado ao ombro e despeja todo o
seu conteúdo na tigela. E agora percebo.
É água para Kingston.
Garrett fica ali, não querendo subir até à nossa porta. Esta continua
escancarada, e, embora eu não veja nem ouça nenhum dos cães, é possível
que estejam em qualquer parte. Podem ter saído em busca de comida, e dói-
me pensar que poderemos nunca mais voltar a ver Kingston.
Garrett, virando-se, vê-me finalmente. As suas bochechas ficam rosadas,
está envergonhado.
— Sempre fez parte das minhas funções assegurar-me de que o Kingston
tinha água — diz ele, incapaz de me olhar nos olhos. — Mas eu esquecia-me
sempre, por isso a mãe fazia-o por mim. Mas agora não pode fazê-lo.
Percebo que ele precisava de fazer isto por todo um conjunto de razões. E
embora a água não seja nossa para dar, por vezes, fazer a coisa certa significa
fazer primeiro a coisa errada. Com isso em mente, apercebo-me de que há
algo que também eu tenho de fazer. Algo em que o certo ultrapassa em muito
o errado. Mas apercebo-me de que necessitarei de um cúmplice.
— Garrett, tenho uma missão para ti.
— Uma missão? — Garrett fica imediatamente interessado.
— Preciso que perguntes ao Kelton o que é o chessboxing.
Ele olha para mim, confuso.
— Eu não quero saber o que é o chessboxing.
— Não importa. Preciso que o Kelton te mostre.
Conhecendo Kelton, isto deve garantir-me pelo menos uma hora longe do
seu escrutínio. E com Mrs. McCracken ocupada no jardim e o marido a
brincar com objetos afiados na garagem, tenho a janela de oportunidade de
que preciso.
Garrett concorda, não percebendo, mas confiando em mim.

Deslizamos de novo para casa e localizo de imediato o pequeno caixote do


lixo perto do hall de entrada. Vasculho por entre lenços de papel, embalagens
e pedaços de papel até encontrar o panfleto cor-de-rosa — aquele que estava
preso à porta e que inclui os pormenores da reunião da comunidade.
Leio-o, desta vez com mais atenção. Será realizada em casa dos Burnsides.
Começou há meia hora atrás.
Agarro na mochila de Kelton, tiro todas as coisas da escola do seu interior
e, depois, assegurando-me de que a costa está livre, dirijo-me à estante perto
das escadas: a entrada para a sala segura.
Não me consigo lembrar que livro abre a porta, por isso tenho de tentar
todo um conjunto deles até o descobrir. Por fim, a tranca abre, e eu abro a
porta, revelando um tesouro composto por equipamento de sobrevivência.
Armas, ferramentas, alimentos enlatados e, o que é mais importante, packs de
água engarrafada.
Começo a enfiar garrafas de meio litro na mochila. Só lá consigo enfiar
dez. Depois estaco, apercebendo-me subitamente de que não estou sozinha.
A mãe de Kelton ergue-se à porta.
Apanhada em flagrante, gaguejo, tentando arranjar uma qualquer
explicação, porque sei como isto deverá parecer mal — mas o rosto de Mrs.
McCracken suaviza-se. Ela dirige-me um sorriso ligeiro, encorajador.
— Consegues enfiar mais duas nos bolsos laterais — diz-me ela, e passa-
me as garrafas. — A reunião já começou, por isso terás de te apressar.
Fui apanhada tão desprevenida que nem consigo responder. Depois, sem
outra palavra, Mrs. McCracken afasta-se da porta e desaparece
silenciosamente numa outra sala, como se nunca me tivesse visto.
Percorrer a minha própria rua depois dos eventos desta manhã na praia deixa-
me nervosa. Tenho esta sensação vulnerável, como se, ficando demasiado
tempo no exterior, algo me pudesse engolir. É a mesma coisa que sinto
quando estou no oceano, com a água até à cintura, e me parece ver os
contornos de um tubarão. Sei que está tudo na minha cabeça, mas a sensação
não me abandona na mesma. Por isso lido com ela e avanço ao longo da rua.
Não quero que me vejam a sair da casa dos McCrackens, porque qualquer
pessoa que me veja saberá que não tenho tanta sede quanto ela. Mas, embora
não me vejam a sair da casa, talvez se apercebam de que estou hidratada só
de olharem para mim. Há um miúdo a descer a rua. Da minha idade.
Conheço-o, mas não muito bem — chama-se Jacob qualquer coisa. Temo o
momento em que ele passará por mim. Nunca me senti tão completamente
antissocial.
Ele está a arrastar algo pelo chão. Um pau de algum tipo. Este silva no
betão enquanto o miúdo o arrasta. Não me olha nos olhos. Parece tão
desconfortável a passar por mim como eu a passar por ele. E depois
apercebo-me de que não é um pau que vai a arrastar, mas um taco de golfe.
Um driver de madeira.
— Hei — diz ele quando nos cruzamos.
— Hei — respondo.
Ele segue o seu caminho, eu sigo o meu. Não olho para trás. Não faço ideia
do que planeará fazer com aquele taco de golfe, mas sei que nada terá a ver
com golfe.
A reunião é em casa dos Burnsides, logo ao virar da esquina. Mrs.
Burnside costumava ter um jardim premiado. Rosas, azáleas e buganvílias,
que subiam pelos troncos de altas palmeiras. Tudo o que sobra são as
palmeiras, que ainda não morreram, mas o resto desapareceu. O que era
outrora um relvado é agora um mosaico tricolorido de pedras de rio, criando
a imagem de Kokopelli, o flautista corcunda da mitologia ameríndia — uma
ideia que Mrs. Burnside provavelmente retirou de uma visita a Santa Fé, Taos
ou a qualquer outro lugar do género. Estou certa de que a sua paisagem de
pedras também ganhará prémios.
A porta está fechada, mas não está trancada. Ao entrar, vejo que a sua
grande sala de estar está repleta de pessoas. Parece encontrar-se ali um
representante de todas as famílias do bairro que ainda não partiram.
Estão a tomar nota dos recursos reunidos, tanto físicos quanto intelectuais.
Mrs. Jarvis alega que a irmã é uma vedora legítima e que pode encontrar água
por um «valor simbólico». Roger Malecki diz que passou todo o seu jardim
de catos pela liquidificadora e que retirou dele quase quatro litros de água.
Mrs. Burnside vê-me junto da porta e avança na minha direção, dando-me
o braço.
— Allison, fico muito contente por teres vindo. — Percebo que ela está
genuinamente agradada por me ver, por isso não a corrijo. — Como estão os
teus pais? Esperava vê-los aqui.
Inspiro fundo e digo:
— Não estão em casa neste momento. — O que é verdade e não despoleta
perguntas ou preocupações: duas coisas com que não seria capaz de lidar de
momento. — Bem, por favor, dá-lhes os nossos cumprimentos e diz-lhes que
se mantenham em segurança! As coisas estão a ficar muito estranhas por aí.
Tiro a mochila das costas e dou alguns passos em frente. Numa pausa na
conversa, tento chamar a atenção de Mr. Burnside.
— Desculpe — digo, mas não o faço suficientemente alto, porque ninguém
parece ouvir-me. Continuam a falar sobre o calor, e alguém sugere o efeito
refrescante que evaporar álcool tem sobre a pele — embora eu desconfie que
o álcool esteja a ser utilizado de outras maneiras.
— Desculpem — digo, um pouco mais alto. — Tenho alguma água.
Nunca na minha vida tinha visto toda uma sala virar-se na minha direção.
Nunca eu suscitara uma tão absoluta atenção.
— Tu tens água? — diz alguém.
Viro a mochila, abro ligeiramente o fecho e retiro uma das garrafas.
— Quer dizer… não chega para todos, mas é melhor do que nada.
Eles olham-me fixamente. Depois olham fixamente uns para os outros.
— Quanta tens? — pergunta Stu Leeson, com desconfiança e expectativa
ao mesmo tempo.
Depois, Mr. Burnside assume de novo o controlo.
— Bem, isso são boas notícias — diz ele, e oferece aquilo que acredito ser
uma citação da Bíblia, ou pelo menos uma paráfrase da mesma: — «E uma
criança os conduzirá.» — Em seguida conta quantas cabeças há na sala. —
Temos dezassete lares aqui representados. Quanta água tens, Alyssa?
— Doze garrafas. De meio litro cada.
Faz-se silêncio por um momento.
Depois alguém realça o óbvio.
— Isso significa que cinco de nós não receberão garrafas.
— Calma — diz Mr. Burnside. — Isso não é necessariamente o caso.
E agora todos têm uma opinião.
— A matemática determina que todos receberão setenta por cento de uma
garrafa.
— Isso é ridículo!
— As famílias com crianças pequenas deviam receber uma garrafa inteira!
— Isso é discriminatório!
— A minha esposa está grávida.
Mr. Burnside ergue as mãos.
— Muito bem, acalmem-se todos!
Mas o génio já foi libertado da lâmpada. Começam todos a falar entre si.
Vejo as alianças que se formam. As linhas que vão sendo traçadas na areia —
tudo em segundos, e tudo porque anunciei que tinha um fornecimento
limitado de algo de que todos eles necessitam desesperadamente.
— Deitamos tudo para um recipiente e cada família recebe a sua medida.
— Como é que isso é justo? Há cinco pessoas na minha família.
— Então contamos toda a gente e dividimos dessa maneira.
— Então e os animais domésticos?
— Animais domésticos? Estão a falar a sério?
— Deixem que a rapariga decida!
Todos consideram essa hipótese.
— Sim — concorda alguém. — A água é dela, ela que decida quem a
receberá.
E, pela segunda vez em cinco minutos, todos se viram para mim.
Não sou o tipo de pessoa que facilmente se sente intimidada. Consigo
erguer-me em frente da turma e apresentar um trabalho oral destemidamente.
Consigo debater com qualquer pessoa sobre qualquer tema em relação ao
qual me sinta apaixonada. Mas nunca antes tive o destino de outro ser
humano nas mãos. Subitamente, sinto-me tímida. Eu nunca sou tímida.
— Bem… eu acho… talvez devêssemos… quer dizer…
E depois Stu Leeson grita:
— Estão mesmo a pensar deixar isto nas mãos de uma adolescente?
E nesse instante, antes que me consiga impedir, digo de repente:
— Bem, pelos vistos já só tenho de decidir entre dezasseis pessoas e não
dezassete, não é?
Não o digo com intenção. Ou talvez diga. Não sei. Mas agora tenho de dar
uma garrafa aos Leesons por ter dito aquilo. Mas, se der, estarei a negá-la a
outra pessoa. E isso é justo?
— Alyssa, querida — diz Vicky Morales, que praticamente não conheço
—, confiamos na tua decisão, querida. Sabemos que és uma rapariga
inteligente, honesta.
— Bem, agora estás só a dar-lhe graxa, Victoria! — diz Miss Bouman. —
Achas mesmo que ela te irá fazer um favor só porque lhe estás a lamber as
botas?
— Está bem, estamos todos no mesmo barco — diz alguém. E é verdade.
Mas o barco é o Titanic. Só resta um salva-vidas, e eu estou nele. Não gosto
disto. Não gosto nada disto e, embora saiba que é terrível, começo a desejar
não ter aparecido ali com a água.
Aquelas pessoas parecem o miúdo na praia. Têm os lábios brancos e secos.
Estão ansiosas, irritadas e a sua irritação começa a incidir sobre mim como
um holofote.
— Bem, como vai ser? — diz um homem que eu não conheço, no limite da
sua paciência. — Não temos o dia todo!
Mas eu não respondo, porque, por uma fração de segundo, os seus olhos
movem-se rapidamente, e vejo neles aquela expressão louca — uma
expressão que começo a aprender a identificar — e penso saber o que virá a
seguir.
Então, Mr. Burnside faz um sinal à esposa, e aparentemente eles
comunicam daquela maneira telepática através da qual os casais por vezes o
fazem, porque ela aproxima-se de mim e agarra com delicadeza na mochila.
— Porque não te vais embora, Alyssa? — diz ela, desta vez acertando no
meu nome. — Nós havemos de decidir. Obrigada pela água… e lamento ter-
te posto nesta posição. O problema é nosso, não teu.
Não discuto. Nem sequer peço a mochila de volta. Não quero saber. Só
quero sair dali.
Só depois de partir é que me lembro que é a mochila de Kelton, com o seu
nome nela inscrito. Se não sabiam já que os McCrackens têm água, agora
sabem-no com toda a certeza.

O Sol põe-se e reunimo-nos para aquilo que antecipo ser o jantar mais bizarro
da minha vida. Até a comida é surreal: carne de conserva e couve e, para
sobremesa, tarte de abóbora, que ainda está congelada no meio.
— Nem perguntes — sussurra Kelton, inclinando-se para mim. O que não
representa para mim qualquer problema.
Apesar do sistema elétrico independente de que Kelton tanto se gaba, as
luzes da casa estão apagadas e Mrs. Cracken acendeu as velas na mesa de
jantar.
À cabeceira está sentado Mr. McCracken, que fita todos os presentes como
um senhor medieval que preside ao seu feudo. Imagino que seja um daqueles
pais autoritários que nos obrigam a pedir para sair da mesa, e só depois de
termos acabado as ervilhas e as cenouras. Embora neste momento o seu olhar
esteja mais concentrado em Jacqui, que já se serviu de três doses de carne
enlatada. Ela devora a comida, alegremente irreverente, e acaba por apontar
com o garfo.
— Para que são as velas?
— Boa pergunta — murmura Mr. McCraken para a carne enlatada, mas
com um tom que me diz que está a falar com a esposa. — Também já me
tinha perguntado para que seriam.
— Não queremos exibir a nossa eletricidade perante os vizinhos mais do
que o necessário — diz a mãe de Kelton, com demasiada calma.
— Foram precisos seis meses para instalar o nosso sistema elétrico.
Gostaria de o usar — diz Mr. McCracken. — Além disso, serão precisas mais
do que algumas velas perfumadas para afastar os vizinhos.
— Não teríamos de nos preocupar com os vizinhos se mostrássemos um
pouco mais de compaixão — responde a esposa.
— Talvez os devêssemos convidar para jantar — diz ele.
— Talvez devêssemos — diz ela, desafiando-o.
Ele olha à sua volta, para as restantes pessoas, como um procurador que
apresenta a sua argumentação ao júri.
— Ou não se partilha nada ou partilha-se tudo. Não existe meio-termo.
— Obrigada, Mestre Yoda — diz Jacqui.
Não creio que seja a primeira vez que os pais de Kelton têm esta discussão,
pelo que Kelton reage rapidamente.
— Chama-se psicologia da escassez e pensamento de privação — diz
Kelton, sentindo necessidade de defender o pai, embora mais pareça estar a
pedir desculpas por ele. — Junte-se a isso a dinâmica das multidões e aquilo
que obtemos é uma turba que não parará de tirar até estarmos tão desprovidos
quanto eles.
— Desprovidos — diz Jacqui —, boa palavra. Vais bater o meu resultado
dos SAT em três tempos. — Depois serve-se de mais carne enlatada.
— Bem, é uma maneira de pensar imoral, egoísta — diz Mrs. McCracken.
— Mas ele tem razão — ouço-me dizer, o que é uma surpresa para todos,
até para mim. Penso na maneira como os nossos vizinhos se comportaram
aquando da divisão daquelas garrafas de água e como tantos deles estavam
prontos para se virarem contra mim, aquela que as tinha trazido. Por muito
que odeie admitir, percebo o argumento de Mr. McCracken. A culpa não é
das pessoas, mas percebo que, quando sentem as suas vidas verdadeiramente
ameaçadas, recorrerão a qualquer opção que lhes esteja disponível. Se não
queremos que seja às nossas custas, temos de nos retirar da equação. — Ou
escancaramos as portas, ou as trancamos — digo, com pesar. — As pessoas
são demasiado complicadas para que lhes confiemos qualquer coisa
intermédia.
Mrs. McCracken estuda-me, sentindo-se, talvez, algo traída. Mr.
McCracken olha para mim com surpresa — quase orgulho —, o que gera em
mim uma sensação desconfortável, pouco à-vontade, como se a minha
viagem para o lado negro estivesse agora completa.
Ele limpa a garganta.
— De qualquer maneira não importa — diz ele. — Vamos partir para o
refúgio ao raiar do dia.
— Qual refúgio? — pergunta Garrett.
— Trata-se de um abrigo de emergência — explica Kelton. — Um local
secreto para onde nos dirigimos em caso de grande desastre.
— Então quando é que partimos? — pergunta Jacqui com a boca cheia de
comida.
Kelton não responde, e só pelo seu silêncio apercebo-me de que não
fazemos parte da equação McCracken.
— Só há espaço para nós — diz o pai de Kelton. — Lamento. — E acho
que até está a falar a sério. Para ser sincera, ainda não pensei sequer no
mundo para lá deste jantar. Não tem havido tempo para projetar qualquer tipo
de futuro, mesmo a curto prazo. Depois, Mr. McCracken surpreende-me.
— Vou deixar as chaves da casa contigo, Alyssa.
— Como? — deixo escapar por acidente.
— Vou mostrar-te como utilizar o sistema de segurança e assegurar-me de
que conheces o paradeiro de todas as armadilhas. Ficarás com toda a casa à
tua disposição enquanto isto durar — diz ele. Olha de relance para Jacqui e
acrescenta relutantemente: — Todos vocês.
Pergunto-me qual será o raciocínio que ele seguiu para me entregar, a mim,
as chaves do seu castelo. Faz-me pensar no facto de a minha mãe costumar
deixar sempre a televisão ligada quando íamos de férias, para que os supostos
ladrões julgassem que estava alguém em casa. Talvez se trate de uma versão
elaborada disso. Teria sido Kelton a convencê-lo?, pergunto-me; ou terá sido
por eu ter corroborado a sua visão catastrófica da humanidade?
Penso nos dias que nos esperam. Isto tem de acabar, não é? «Enquanto isto
durar», dissera Mr. McCracken — não pode estender-se por mais de uma ou
duas semanas, quando muito. Depois, precisamente quando me inclino para a
esperança de dias melhores, as coisas ficam muitíssimo piores.
Todos os telemóveis vibram e tocam em uníssono, uma cacofonia estranha
e perturbadora. Erguemos os nossos telemóveis e vemos uma mensagem
idêntica, onde se pode ler:

ALERTA DE EMERGÊNCIA: DECLARADA LEI MARCIAL NOS CONDADOS DE


LOS ANGELES, ORANGE, VENTURA,
RIVERSIDE, SAN BERNARDINO E SAN DIEGO.
AGUARDEM NOVAS INDICAÇÕES.
16) KELTON

Está tudo a acontecer como os livros sobre sobrevivencialismo previam. Isso


não me conforta de forma alguma. Nem um pouco. Os cenários de fim do
mundo só são divertidos quando o fim do mundo é meramente hipotético.
Agora gostava que estivessem todos errados.
A lei marcial é o último passo antes de tudo se desmoronar.
Agora, as coisas podem correr de uma de duas maneiras: 1) A lei marcial
será eficaz; o número de militares será suficiente para se opor ao caos; os
motins serão ocasionais e não disseminados; as coisas fragmentar-se-ão
devagar e a recuperação será relativamente fácil; 2) A lei marcial falhará; os
militares irão subestimar as necessidades, ou serão incapazes de acorrer
suficientemente depressa; os motins serão sistemáticos e graves; o Sul da
Califórnia fragmentar-se-á fortemente e a recuperação irá demorar anos, se é
que alguma vez será possível.
— O que acontece agora? — pergunta Alyssa, antes de nos irmos deitar
naquela noite.
Não partilho com ela as duas possibilidades.
— Teremos de ver — digo-lhe.
Sei que Alyssa é capaz, e não me preocupo com o facto de ela conseguir
manter tudo organizado aqui em casa, depois de os meus pais e eu partirmos,
mas estou preocupado com Jacqui. Ela vai querer assumir o controlo, e não
vejo que isso seja uma coisa boa.
São estes os pensamentos que levo comigo para a cama, nessa noite. Acho
que me irão manter acordado, mas por vezes o nosso corpo faz-nos um muito
necessário favor. Estou tão cansado que apago poucos minutos depois de
encostar a cabeça na almofada.

Sou acordado pelo zumbido do nosso alarme de deteção de movimento.


Temos detetores de movimento de segunda geração; só são ativados pelo
movimento de seres suficientemente grandes para corresponderem a uma
forma humana — o que significa que alguém saltou a nossa vedação. Olho
para o relógio. Passa um pouco das cinco da manhã. Dirijo-me à sala de
jogos, onde Alyssa, Garrett e Jacqui já estão despertos e alerta.
— O que raio se passa? — pergunta Jacqui.
— Alerta de intruso — digo, apercebendo-me de que isso soa muito mais
digno de um filme de ficção científica do que tencionava. — Onde está o meu
pai?
Ninguém responde, mas ouço o meu pai a chamar-me, no rés do chão. É
então que Jacqui se dirige à janela e o que quer que vê lá fora fá-la virar-se
para mim, de olhos esbugalhados de preocupação — algo que eu nem sequer
sabia que fazia parte do seu repertório emocional.
— Isto não pode ser bom… — diz ela.
Olho pela janela e vejo luzes — dezenas delas na escuridão que antecede a
madrugada, como uma constelação de estrelas. Esfrego os olhos, permitindo-
lhes adaptarem-se… e agora consigo distinguir formas. Pessoas que seguram
lanternas — e todas avançam em direção à nossa casa.
— O que se está a passar? — pergunta Alyssa.
É então que ouço bater.
Bang, bang, bang! Está alguém à porta da frente.
— Fiquem longe das janelas — digo-lhes, e quase me lanço escada abaixo.
O meu pai está na sala de jantar, um passo à frente de todos nós, com um
conjunto de armas já espalhadas sobre a mesa. Armas, munições, facas e toda
uma variedade de ferramentas táticas, algumas das quais nem sequer
reconheço.
Vejo a minha mãe na sala segura, movendo freneticamente as coisas de um
lado para o outro, para arranjar espaço para nós.
Bang, bang, bang!
Os lobos chegaram finalmente. Sinto o estômago às voltas. Recordo-me
que a porta da frente é reforçada, e que as janelas são à prova de bala. A
nossa casa é impenetrável e ninguém irá entrar. Mas, se todas essas coisas são
reais, por que raios tenho tanto medo?
— Kelton! — grita o meu pai, enquanto Alyssa, Garrett e Jacqui descem as
escadas atrás de mim. — Leva os teus amigos para a sala segura. Depois vai
buscar a tua arma.
Mas a ordem não tem qualquer efeito em mim.
Ele lê a expressão no meu rosto.
— Onde está a tua pistola?
— Está aqui mesmo — diz Jacqui, mostrando o cabo da arma, que emerge
do seu cinto.
O meu pai olha da arma para Jacqui e para mim, calculando como é que
esta coisa impensável poderá ter acontecido — e talvez avaliando o nível de
ameaça de Jacqui. Em última análise, decide que a ameaça no exterior da
nossa casa é mais iminente do que a representada por Jacqui, que claramente
não se desfará da minha arma — por isso, o meu pai nem sequer pergunta
como é que ela a conseguiu. De certeza que irei levar nas orelhas por causa
disso, mais tarde.
O meu pai abre o painel elétrico no corredor do piso térreo e desliga o
botão principal, apagando as luzes no exterior e todas as luzes no interior
também, com exceção da sua própria lanterna. Em seguida prende as miras de
infravermelhos a todas as armas que as podem receber, para conseguir ver os
intrusos sem que estes o vejam a ele.
O bater, que parara durante alguns instantes, muda de timbre e de direção.
Agora vem da porta das traseiras e não da porta da frente, e é ainda mais
insistente do que antes. A nossa porta das traseiras tem um ferrolho de alpaca
com um cilindro duplo cativo, mas o meu pai queixa-se de que a ombreira
não é suficientemente espessa. Os ferrolhos são tão fortes quanto a moldura
que os segura.
A minha mãe tenta levar os outros para a sala segura, mas Jacqui não vai,
nem Alyssa — e Garrett não irá sem a irmã.
O meu pai carrega as armas e destranca as seguranças.
— Richard, o que estás a fazer? — diz ela, horrorizada. Uma coisa é ver as
armas expostas, outra é vê-las a serem carregadas.
— Estou a proteger a minha família.
O bater na porta de trás é mais frenético do que nunca.
— Não vamos pôr a carroça à frente dos bois — diz a minha mãe, a sua
voz a tremer.
Mas o meu pai está determinado. Veste o seu colete de Kevlar.
— Leva-os a todos para a sala segura.
A minha mãe está agora frenética.
— Vem connosco para a sala segura! Não precisas de fazer isto!
— O diabo é que não preciso!
O meu pai continua a carregar as armas, e vejo agora que as suas mãos
estão a tremer. A única coisa que o impede de implodir, neste momento, é a
sua coleção de brinquedos mortais.
— Pelo menos vê o que eles querem! — grita a minha mãe desesperada.
— Tu sabes o que eles querem!
O seu olhar prende-se finalmente no da minha mãe, deixando que ela o
veja, verdadeiramente, pela primeira vez em muito tempo. A pessoa que eu vi
na garagem há pouco. Não o monstro indignado, em busca de violência —
mas um ser humano, sincero e exposto, encurralado na sua casa connosco e
assustado até aos ossos.
Ele escolhe a caçadeira e dirige-se à cozinha, assumindo a posição em
frente à porta das traseiras. Ninguém entra na sala segura. Todos querem estar
ali. Ver o que acontece. Ver como é que isto irá correr — como se o facto de
alguém aqui estar o fosse impedir de acontecer.
Continuam a bater na porta das traseiras. A maçaneta chocalha
violentamente, mas não vira.
Entretanto, as vozes que se erguem das ruas tornam-se mais sonoras. Ouço
o portão de segurança a ser derrubado. Ouço alguém gritar ao cair numa
armadilha no jardim, mas não há armadilhas suficientes para impedir aquele
ataque.
O bater na porta das traseiras para.
O meu pai inspira fundo e entrincheira-se. Ergue a arma, apontada à porta,
preparando-se para o que quer que aconteça a seguir. Não consigo afastar o
olhar da porta — como quando era miúdo e estava convencido de que vivia
um monstro no meu roupeiro. Ficava a olhar fixamente, sem me mover, sem
pestanejar, para ter a certeza de que o veria ao sair, antes que ele me
conseguisse ver a mim. A porta está trancada, digo a mim mesmo. Está
trancada. Ninguém vai entrar.
Depois ouço um som que é familiar e terrível. Um ferrolho a destrancar. A
maçaneta gira. A porta abre-se. Fomos invadidos.
E agora tudo acontece em imagens rápidas, dissociadas, como se a
realidade latejasse violentamente à minha volta.
A porta abre-se por completo.
Uma figura avança.
O meu pai grita e puxa o gatilho.
O mundo estoura com a explosão da caçadeira.
O intruso é lançado para trás contra a ombreira da porta.
O sangue espalha-se por todo o lado.
Sobre mim.
Um dos meus olhos arde por causa dele.
O intruso choca contra a ombreira da porta.
Cai no chão da cozinha, de rosto para baixo, em frente à porta aberta.
E nessa porta…
Está uma chave na fechadura.
Uma chave solitária.
O meu pai recupera o fôlego, continuando em choque por ter puxado o
gatilho.
Mas depois a minha mãe avança, numa espécie de transe…
O meu pai larga a arma…
E cai de joelhos…
E agora começo finalmente a juntar as peças todas.
Apercebo-me de que o corpo que jaz tombado no chão não é um intruso
assassino e enlouquecido pela sede.
É o meu irmão, Brady.
O meu pai, uivando de agonia, fá-lo rolar, confirmando a verdade
inevitável. Atinge-me com força, mas de um modo estranho, oco. Perco o
controlo dos meus sentidos. Estou neste momento fora de mim, a observar
tudo o que se desenrola à minha volta, como se estivesse preso na pele de
outra pessoa.
A minha mãe lança-se sobre o corpo mole de Brady, a sua camisa de
dormir branca absorvendo o sangue. O meu pai bate no rosto de Brady
repetidamente, em negação, como se quisesse acordá-lo de um pesadelo.
— Não, não, não, não, não, não, não…
Estou de tal modo concentrado na cena que não me apercebo do que se
passa na casa. As pessoas começaram a entrar pela porta das traseiras. Os
vizinhos. Os intrusos. Passam como sombras, pilhando toda a casa. Os seus
olhos estão loucos e raivosos. Vêm armados de pás, atiçadores de lareira e
tacos de basebol.
Mas a minha mãe e o meu pai ignoram-nos por completo. De que importa?
De que importa tudo aquilo? O meu irmão mais velho está morto.
Brady recebeu as nossas mensagens. Sabia que íamos partir esta manhã
para o refúgio e, como habitualmente, apareceu no último minuto. E, quando
viu a multidão que se aproximava, tentou avisar-nos, batendo freneticamente
à porta, tentando entrar.
Devíamos ter percebido que era ele quando a maçaneta da porta rodou.
Todos nos devíamos ter apercebido — por causa da chave que o meu pai
deixava sempre para ele, escondida no mesmo sítio desde o tempo em que
éramos pequenos: num espaço vazio, no corrimão do alpendre das traseiras.
A falha intencional nas nossas medidas de segurança.
Alyssa grita atrás de mim, mas demoro alguns segundos a conseguir
registar as suas palavras.
— Precisamos de nos ir embora! Kelton, temos de sair daqui!
Mas eu não me vou embora. Não vou abandonar o meu irmão, tal como os
meus pais não o vão fazer. As minhas pernas põem-se em movimento e passo
por ela em direção ao centro da divisão. A minha mão estende-se para algo, e
agarro-o. A caçadeira que o meu pai tinha deixado cair.
Carrego mais uma munição na câmara.
Olho para os muitos olhos brilhantes dos lobos.
Vão morrer hoje. Todos eles.
Aponto para a cabeça de uma figura que transporta um pack de água.
Aperto o gatilho.
E, subitamente, tudo fica negro.
17) JACQUI

Nunca tinha visto ninguém ficar inconsciente depois de levar com a moldura
de uma fotografia, muito menos com a moldura de uma fotografia de si
próprio. Por outro lado, há uma primeira vez para tudo. A moldura metálica
era suficientemente pesada e Alyssa fê-la desabar sobre a cabeça de Kelton
com a força certa. E mesmo a tempo, porque Kelton ia realmente fazê-lo. Ia
mesmo começar a disparar sobre as pessoas.
Tudo o que consigo ver é uma agitação ofuscante de lanternas viradas em
todas as direções. Mantenho as mãos leves, os dedos na arma, mas não vou
desperdiçar uma bala a menos que seja absolutamente necessário.
Alyssa vira-se para mim e apresenta-me um par de chaves. As chaves do
BMW. Deve ter agarrado nelas durante o caos. Enquanto éramos tomados
pelo choque, Alyssa estava a planear a nossa fuga.
— Temos de sair daqui agora. — Aponta para o corpo flácido de Kelton.
— Leva-o.
Aperta as chaves com força e apercebo-me de que se tornaram objeto de
um jogo de poder.
— Quem te pôs no comando? — desafio-a, mas, com a casa a ser atacada à
nossa volta, ficar já não é grande opção; e, se o refúgio estiver disponível,
vamos precisar de Kelton para nos mostrar como lá chegar. Em suma, ela está
certa, e eu odeio isso.
Alyssa corre de novo para a cozinha; faz os possíveis por conseguir que os
pais de Kelton venham connosco, mas eles recusam mexer-se. Tudo o que
querem fazer — tudo o que são capazes de fazer agora — é reconfortar
inutilmente aquilo que me apercebo agora ser o seu filho morto.
— Vão — dizem a Alyssa por entre a sua dor. — Partam…
Enquanto à nossa volta os saqueadores pilham como chacais.
O que aconteceu aqui era inevitável. Eles tinham de exibir o seu sistema
elétrico e os seus recursos. O pai de Kelton tinha de ser o herói da família.
Era como se estivesse de tal modo obcecado com a proteção da sua casa que
tivesse esquecido que o seu principal objetivo, na realidade, era proteger
todos os que se encontravam no interior.
Agarro em Kelton por baixo dos braços e ergo-o. Lanço um olhar a
Garrett, que tem estado escondido, agachado junto a um sofá. Arrastamos
Kelton pelo corredor em direção à porta da frente, Alyssa abrindo caminho.
Enquanto saímos dali, tento perceber o que se passa, realmente, à nossa volta,
mas está demasiado escuro — tudo são formas e contornos. Mas consigo
ouvir tudo: os gemidos derrotados dos pais de Kelton, realçados por dezenas
de pés que correm de um lado para o outro, que chiam, clicam e raspam no
piso de madeira. Algures, uma porta é aberta ao pontapé — ouço a madeira
fragmentar-se. Frascos tilintam e partem-se na cozinha, derrubados das
prateleiras da despensa, ou caídos de braços demasiado carregados. Um
garrafão de água que anteriormente tínhamos levado para o piso superior
tomba pelas escadas abaixo e rebenta no chão. A casa será pilhada e destruída
até restar apenas a sua carcaça.
Alyssa abre a porta da frente e entram mais pessoas. Uma verdadeira
corrente de ar de zombies da água.
Precisamente quando passamos pela porta, um homem ergue o bastão de
basebol, ameaçando atingir Alyssa com ele. Mantém-no ali por um momento
e depois baixa a arma, reconhecendo-a.
— Eles não nos deixaram escolha! — diz ele, como se isso pudesse
desculpar as suas ações.
Mas Alyssa não diz nada. De facto, não lhe dá sequer a mais pequena
satisfação de um momento humano. Passa por ele, dirigindo-se ao BMW
parado no acesso.
Garrett e eu enfiamos o corpo flácido de Kelton no interior do automóvel
— parece que o estamos a raptar, e depois lembro-me de que, tecnicamente,
até estamos. Alyssa sobe a seguir, para cuidar dele no banco traseiro, pelo
que Garrett sobe para a frente, seguindo ao meu lado, no lugar do morto.
Hoje desejava que o lugar do passageiro não recebesse esse nome.
Coloco-me atrás do volante, fecho a porta e carrego no fecho, ouvindo o
agradável som das trancas a descer — embora os saqueadores estejam
demasiado enlouquecidos para se aperceberem da nossa saída.
Estendo a mão para Alyssa.
— Se queres que conduza, terás de me dar as chaves.
Ainda assim, ela recusa-se a entregar-me as chaves. Segura-as com força
no punho fechado.
— É uma ignição sem chave: carrega no botão.
Malditos BMW. Enquanto a chave estiver no automóvel, arrancará,
independentemente da mãozinha gordurosa que a segure. Uma vez mais,
parece que não tenho grande escolha. Ligo o motor e saio de marcha-atrás,
passando pelos zombies da água que pairam à nossa volta, em seguida acelero
para a escuridão, quase me esquecendo de ligar os faróis.

Esquerda. Depois à direita. Depois à direita outra vez. Depois à esquerda.


Estou a conduzir demasiado depressa e sei disso, mas pareço não conseguir
abrandar. A adrenalina transformou o meu pé em chumbo. Passo por cima de
um pedaço de escombros na estrada. Ouço o raspar contra a parte de baixo do
automóvel. E rezo a Deus para não ter furado o tanque do combustível.
— Vou vomitar — diz Garrett. — Acho que vou vomitar.
— Engole e faz-te homem! — digo-lhe.
— Não fales assim com o meu irmão!
Viro à direita. Não sei porquê; atingi uma intersecção na estrada e tenho de
escolher. Acendo os máximos, porque quero ver tudo à minha frente. Não
quero saber se estou a ofuscar o trânsito que segue em sentido contrário. Não
há trânsito em sentido contrário. Todos aqueles que queriam ir a algum lado
já foram, ou então desistiram.
Censuro-me por me ter sequer metido numa situação daquelas. Devia ter
arranjado uma maneira de recuperar as chaves durante a noite, tirando-as ao
pai de Kelton, mas cedi ao conforto e à segurança de uma casa bem
abastecida. Falsa segurança. Não havia nada de seguro naquela casa; todos
aqueles mantimentos, todos aqueles vizinhos irritados e sequiosos. A casa era
como um para-raios numa tempestade de merda, e eles nem se tinham
apercebido. Bem, o que seria de esperar quando ficamos com uma família de
totós furiosos? Porque é isso que a família de Kelton é. Cromos que trocaram
os seus passes da Comic-Con por bilhetes para exposições de armas. Em vez
de perguntas sobre o Star Trek, provavelmente falar-me-iam de todas as
aplicações de uma arma e, no entanto, nem sequer conseguiam imaginar a
sensação de pôr fim a uma vida humana. Bem, agora o pai de Kelton
consegue. Cromos com armas. Agora já vi de tudo.
— Para onde vamos? — pergunta Garrett, conseguindo com sucesso não
vomitar.
— Para longe daquela maldita casa — é a única resposta que lhe posso dar.
Conduzo por outra rua suburbana idêntica, para lá de filas infindáveis de
moradias de três quartos, apertadas umas contra as outras, e outrora cheias de
vida. Mas, agora, as suas fachadas parecem rostos mortos com olhos
descaídos a fervilhar de desespero. Este local parece-se com os bairros
suburbanos fantasmagóricos e abandonados que rodeiam as centrais
nucleares onde ocorreram fugas. Parece ermo. O sítio onde a esperança vem
para morrer.
Viro à esquerda. Não passa de mais um beco residencial sem saída.
Maldição! Quase faço um pião no fim e volto a sair.
— Não podemos continuar a conduzir em círculos! — diz Alyssa a partir
do banco traseiro.
— Ótimo! — vocifero. — Então orienta-me.
— Para onde?
— Para qualquer lado!
Alyssa inclina-se para a frente e olha à nossa volta. Quase não
conseguimos ver nada, mas ela parece saber onde estamos.
— Muito bem. Vira à direita. Não é nesta, mas na próxima.
Mais duas curvas e estamos, por fim, fora do bairro e numa rua principal
— embora não tenha a certeza do que nos serve.
Olho de relance pelo espelho retrovisor. Kelton está encostado à porta,
atrás de Garrett. Está mole e sem vida.
— Acorda-o — digo.
— Quero deixá-lo dormir — responde Alyssa.
— Como é que sabes que ele não está morto? Bateste-lhe com bastante
força.
— Está a respirar — diz Alyssa, irritada com a minha sugestão. — As
pessoas mortas não respiram.
Garrett vira-se para olhar para ele.
— Talvez tenham as duas razão. Pode estar em morte cerebral — diz, o
que irrita francamente Alyssa.
— Pode ter um traumatismo. Não saberemos com toda a certeza enquanto
não acordar.
— Então acorda-o — digo outra vez. Desta feita, Alyssa estende o braço e
abana-o. Ele acorda e acho que me sinto tão aliviada quanto Alyssa.
Kelton tosse, esfrega a parte de trás da cabeça e pestaneja algumas vezes,
ainda sonolento.
Pergunto-me se saberá que o deixámos inconsciente e o arrastámos até ao
automóvel. Se se lembrará do que aconteceu na sua casa. Por vezes, quando
sofremos um trauma cerebral, este limpa a nossa memória de curto prazo.
Perdemos aqueles últimos minutos, como a porcaria de um documento Word
que nos esquecemos de salvar.
Kelton demora um instante a desanuviar a mente, mas lembra-se,
claramente, porque fica completamente louco.
— Não!!! O que estão a fazer? Temos de voltar para trás!
Alyssa agarra nele com as duas mãos, mas ele consegue libertar-se.
— Temos de os impedir!
— É demasiado tarde para isso, Kelton! — diz Alyssa.
Kelton agarra o puxador da porta, plenamente preparado para saltar do
veículo em movimento. É por pura sorte que as trancas de segurança para
crianças estão ligadas e a porta recusa abrir-se.
Uiva de fúria e pontapeia o puxador da porta até este se partir. Lá se vai a
engenharia alemã. Mas a porta continua a não se abrir.
Mudo abruptamente de faixas, para o obrigar a ficar longe da porta.
Funciona. Ele é atirado para trás, contra Alyssa, que o agarra com mais força
do que julguei que ela tivesse, enquanto Kelton se agita.
— Mas os meus pais!
— Tentei que eles viessem… recusaram-se.
— Aquelas pessoas poderão matá-los!
E depois Garrett diz algo que parece bastante sábio.
— Provavelmente não. Quer dizer, eles não estavam a ripostar. Os zombies
da água só querem uma coisa, certo? Se não nos atravessarmos no seu
caminho, aposto que nos deixarão em paz.
Aquilo parece acalmar um pouco Kelton. Pelo menos o suficiente para que
Alyssa acredite que pode largá-lo. Deixa-se cair de novo no assento,
abanando a cabeça.
— Não, não, não, não. Não podemos… não podemos… — Mas já não se
sente a mesma convicção nas suas palavras. Fica em silêncio durante um
instante, enquanto a fúria o abandona e a verdadeira emoção por trás dela o
invade. — O meu irmão está morto…
Não digo nada. O que posso dizer? Não pode ser desfeito, e tudo o que
podemos fazer é morrer ou lidar com a situação. Provavelmente, neste
momento, Kelton gostaria de escolher a primeira. Deixo a compaixão para
Alyssa. Tenho a certeza de que é muito melhor nisso. Só consigo imaginar as
coisas escuras, confusas, que estarão a passar pela mente de Kelton neste
momento. Não paro de rever os eventos dos últimos quinze minutos na minha
cabeça, uma e outra vez, e quanto mais permito que o carrossel mental gire,
mais me apercebo de que Garrett estava certo. Também me apetece vomitar.
O que aconteceu naquela casa… nunca tinha passado por nada de tão
selvagem, de tão desumano.
— Lamento, Kelton — diz Alyssa. — É uma gaita.
E é precisamente isso que o deixa louco.
— Uma gaita? É uma gaita? Não, Alyssa. Chumbar num teste é uma gaita.
Deixar cair o telemóvel na água é uma gaita. O meu pai acaba de dar um tiro
no peito do meu irmão e eu vi-o morrer! Por isso não me insultes dizendo que
é uma gaita!
E depois dá um pontapé com tanta força nas costas do assento que eu
quase perco o controlo do volante.
— E nunca te perdoarei por me teres deixado inconsciente!
— A mim? — digo eu. — Por muito que gostasse de te ter deixado
inconsciente, não fui eu quem te bateu.
— Fui eu quem te bateu, Kelton — diz Alyssa. — Tive de o fazer, estavas
prestes a matar o Stu Leeson.
— E depois? — diz Kelton. — Quem me dera tê-lo feito! Ele merecia
morrer! Todos eles mereciam!
— Acredita em mim, Kelton: ficarás satisfeito por eu te ter impedido, mais
tarde.
Kelton cerra os maxilares e vira-lhe as costas. Os seus olhos estão
vermelhos e turvos das lágrimas. Apanha-me a olhar para ele pelo espelho
retrovisor.
— Não olhes para mim, cabra!
Normalmente, tais palavras receberiam um sério castigo, mas Kelton não
está em si. A dor consegue dar a volta às pessoas de maneiras que não é
suposto. Por isso vou deixar passar esta.
A estrada à nossa frente descreve uma curva. Escuras lojas de fast-food de
cada um dos lados. Em seguida, passando um grande cruzamento, vejo
dezenas de automóveis e tendas em redor de uma Target. Trata-se,
provavelmente, de algum centro de apoio que ainda não recebeu apoio
nenhum.
— Achas que há ali água? — pergunta Alyssa.
Abano a cabeça.
— Nem pensar. Mas estão todos à espera dela como se fosse a segunda
vinda. — São tantos. Quem se sente infeliz, gosta de saber que há outros que
também se sentem assim, penso; por outro lado, talvez se possa dizer o
mesmo da esperança. Se assim não fosse, eu não estaria com estes idiotas.
Quando passamos pela cidade de tendas na Target, tenho de avaliar a
situação. Este é o mesmo planeta onde estava a semana passada e, no entanto,
como poderá ser? Jamais teria imaginado que o «perfeito» Orange County
pudesse enlouquecer de forma tão absoluta. É engraçado como o meu desdém
por este lugar me deixou, a certa altura, a desejar que Deus Todo-Poderoso
lhe lançasse uma praga de gafanhotos e implantes mamários com fugas. Mas
agora que todo o Sul da Califórnia está, de facto, sujeito a uma praga, sinto-
me algo dececionada. Não que eu queira passar por mais do que aquilo que já
passei, mas estou dececionada com as pessoas — como são fracas, como
devem ser fracas as suas mentes para permitir que a falta de água as
transforme em multidões assassinas. Se há uma coisa que sei com toda a
certeza, é que não quero jogar na mesma liga que elas — raios, não quero
sequer estar no mesmo estádio.
Não quero com isto dizer que eu seja uma santa. Já parti a minha quota-
parte de janelas. Ataquei inúmeros frigoríficos e despensas. Fiz do entrar em
casa alheia um hobby, vivendo à grande e seguindo viagem. A diferença é
que o fazia por escolha e não às custas dos outros. Quer dizer, sim, os meus
crimes não eram completamente sem vítimas, mas as vítimas não se
apercebiam daquilo que lhes faltava e, quando se apercebiam, tinham bons
seguros. Faço esta cena de criminosa com um piscar de olhos e um sorriso.
Não me parece que pudesse, alguma vez, fazer parte de uma multidão
irracional que ataca uma casa. Em vez disso, seria aquela que rouba o camião
onde a multidão acaba de esconder todas as coisas que furtou, deixando para
trás um bilhete da Hello Kitty a dizer: «A gente vê-se, idiotas.» Para mim,
esse seria o golpe da Bette Davis.
— Olha para aquilo! — diz Garrett. Está a apontar em frente, onde uma
igreja se encontra iluminada por centenas de velas. A porta está
completamente aberta, o santuário está repleto, enchendo também a rua.
Dezenas de famílias, apertando-se umas contra as outras, rezando para serem
salvas da sede. A minha avó acreditava no poder da oração. Há um velho
ditado entre os fiéis que é o seguinte: «Deus responde a todas as orações. E
por vezes a sua resposta é não.» A minha avó odiava-o. «Deus nunca diz
não», dizia-me. «Diz apenas: “Hoje não.”» Que é precisamente a resposta que
dá, neste momento, à vigília iluminada pelas velas.
Atrás de mim, Kelton caiu num silêncio absoluto. Neste momento, o seu
cérebro está para lá do curto-circuito, e apercebo-me de que irá necessitar de
reiniciar o sistema por completo, se pretender sair desta situação com vida.
Garrett, vendo o estado de choque em que se encontra Kelton, oferece-lhe
o seu cantil.
— Toma, bebe um pouco — diz Garrett. — Vais sentir-te melhor. — É
engraçado como, no meio de todo o caos, Garrett foi o único que se lembrou
de agarrar na coisa mais importante.
Kelton parece nem sequer se aperceber da oferta, como se a água fosse o
inimigo que matou o seu irmão. E suponho que, de certa forma, tenha sido.
Quando Kelton não aceita o cantil, eu tomo-o para mim — mas, em vez de
agir como um zombie da água, dou um gole breve, comedido, e volto a
entregá-lo a Garrett. Alyssa fita-me, de olhos arregalados, e cerra os lábios —
provavelmente para se impedir de dizer algo parvo. Em seguida pede o cantil
a Garrett e dá o seu próprio gole comedido.
Todo este tempo e continuamos sem um destino. Já não estou a conduzir
em círculos, mas isso não muda o facto de não termos para onde ir.
— Kelton, onde fica o refúgio? — pergunto.
— No teu cu — diz ele.
— Oh, vejam quem, de repente, se tornou num mal-educado — digo,
brincando. Ele responde com uma expressão que um escuteiro simplesmente
não devia conhecer.
— Deixa-o em paz — diz Alyssa.
— Dá-me mais uma ordem — digo-lhe — e atiro-te para a estrada com um
papel a dizer «Bebe-me» preso às costas.
O que, na verdade, suscita uma pequena fungadela de Kelton. Ótimo.
Progressos.
Agora, à nossa direita, estão dezenas de famílias, que migram em rebanhos
— como se estivessem todos a participar numa qualquer peregrinação divina.
Pelo menos estas pessoas estão a agir, em vez de ficarem sentadas à espera
que alguém as salve. É como se estivessem todos divididos em campos, cada
um com as suas teorias sobre o melhor curso de ação a seguir.
— Para onde achas que vão? — pergunta Garrett.
— Não estou certa de que saibam — respondo.
— Tal como nós? — realça Alyssa.
E depois Kelton aponta em frente, para onde a luz da madrugada desenha o
distante topo da montanha.
— Vão para o lago Arrowhead — diz ele. — Mas não chegarão lá. Há
duas cordilheiras montanhosas e dois condados entre este local e o lago.
Parece que a peregrinação o trouxe de volta para o planeta Terra.
Aproveito a oportunidade para lhe arrancar um pouco mais de informação.
— É lá que está situado o teu refúgio?
Ele abana a cabeça.
— Não… fica em Angeles National Forest. Muito mais perto. Para norte e
não para leste. — Ele vira o olhar. — Mas não seremos capazes de lá chegar
neste automóvel. Vamos precisar de algo com o chassis elevado. Com tração
às quatro rodas.
— Estás a falar de uma pickup? — sugere Garrett. — Como a do tio
Manjericão?
— Tal como a do tio Manjericão — responde Kelton.
— Ele foi para casa da sua suposta ex-namorada — diz Alyssa. — Em
Dove Canyon.
E, por fim, sabemos para onde vamos.
PARTE TRÊS

O FOSSO INTERMÉDIO
DIA CINCO

QUARTA-FEIRA, 8 DE JUNHO

18) HENRY

Há uma maneira muito específica segundo a qual devemos pensar se


desejamos alcançar o verdadeiro sucesso. Podemos gerir a melhor empresa
têxtil do mundo, desenhar um novo modelo de propulsão para a NASA, até
pintar a Mona Lisa — e nesse momento poderemos ser ricos, mas ainda
estaremos a um importante conjunto de capacidades de distância de sermos
prósperos.
Isso porque a prosperidade é uma forma de pensar.
Ou, como o meu mentor, o vice-diretor Metzer, sempre disse: «Rico é um
adjetivo, próspero é um verbo.» — Na verdade é um nome, mas isso não
importa.
A verdadeira prosperidade é aquela que estabelecemos depois de nos
termos disciplinado de modo a investir em ativos que geram um rendimento
suficiente para cobrir as nossas despesas. Neste momento, as minhas
despesas são mínimas, e o meu novo negócio de hidratação descolou,
disparando até ao teto e seguindo rumo à estratosfera.
Eu e os meus pais vivemos num condomínio fechado chamado Dove
Canyon. E, quando vivemos no meio da classe média-alta de Orange County
— especialmente num desfiladeiro —, a elevação é tudo. Foi por isso que a
minha mãe e o meu pai investiram numa casa perto do topo do monte. É uma
das maiores na comunidade, com uma vista panorâmica, sobranceira ao
campo de golfe e a quase todas as outras casas que partilham o nosso código
postal. E como os meus pais saíram de férias, na semana passada, tenho
estado a tomar conta da casa sozinho, mesmo durante estes tempos difíceis.
O Fechar da Torneira não só contribuiu para o meu crescimento enquanto
pessoa, como já se revelou uma fantástica experiência de aprendizagem em
termos de negócio e comércio. Há algum tempo, o meu pai encorajou a
minha mãe a iniciar um negócio próprio; em vez disso, ela deixou que as
amigas a convencessem a comprar sessenta caixas de ÁguaViva, um esquema
em pirâmide em que se gasta uma soma ridícula de dinheiro para comprar
setecentas e vinte garrafas de água mineral alcalina com infusão de bagas goji
— que ficaram a encher o quarto de hóspedes durante seis meses, porque
ninguém quer comprar água mineral alcalina com infusão de bagas. No
entanto, agora que o valor da água subiu exponencialmente, temos estado a
fazer um lucro substancial com a ÁguaViva.
E, se aprendi alguma coisa com os meus estudos, é que os maiores
investidores capitalizam em tempos de crise. E embora, a princípio, isso
possa parecer frio, é o dever dos gigantes continuarem a manter-se firmes e a
gerar lucro, o que levará a que se gaste dinheiro e, em última análise,
estimulará a economia a favor de todos.

Estou a comer alcaçuz vermelho e as bolachas que sobraram da mais recente


festa da empresa do meu pai, quando tocam à campainha. Mais um cliente!
Vou à porta e, para minha surpresa, é Spencer, um miúdo que vive poucas
casas mais acima. Nunca gostei particularmente de Spencer. A sua casa fica
mesmo no cimo do monte — num ponto mais alto e maior do que a nossa,
embora tecnicamente a nossa seja mais alta. Quando andávamos na primária,
abríamos bancas de venda de limonada um em frente ao outro. Quando
ficámos um pouco mais velhos, competíamos silenciosamente nas vendas de
revistas para angariação de fundos para a escola — e, se parecesse que ele
não ia ganhar, os pais compravam revistas do Reader’s Digest para todos os
amigos na lista de contactos, algo que os meus pais se recusavam a fazer e,
consequentemente, eu ficava sempre em segundo. Costumava incomodar-me;
agora vejo-o apenas como uma lição inicial acerca do valor inerente da
competição saudável. Mas continuo sem gostar dele.
— Olá, Henry.
— Hei, o que se passa, Spencer? Entra.
Recebo-o na minha casa e conduzo-o à sala de estar. Reparo nos seus
movimentos lentos, hesitantes, enquanto anda.
— Posso arranjar-te alguma coisa? — digo, como formalidade, como
maneira de abrir as negociações.
Ele senta-se no sofá de pele. Parece fraco. Febril. A maior parte das
pessoas tem estado assim. Acho que é um pouco mais do que mera
desidratação.
— Estás bem? — pergunto, sabendo que não está, mas interrogandodo-me
se ele o irá admitir.
— A água do velho tanque no monte — diz ele. — Não sei, acho que está
estragada ou assim.
Enquanto todos no Sul da Califórnia estavam à procura de água, Dove
Canyon achava que estava safo. Embora o nosso tanque de água principal
estivesse reduzido a quase nada antes do Fechar da Torneira, havia um mais
antigo, no cimo do monte, que tinha sido colocado fora de serviço. Alguém
tivera a excelente ideia de o voltar a ligar, para retirar o que restava da sua
água… e bingo! Tivemos água durante mais dois dias do que todas as outras
pessoas. O problema é que todos estavam agora a ficar doentes. Todos menos
eu, claro está, porque nunca confiei na água da torneira — mesmo quando era
suposto ser boa. E, além disso, nas vendas não nos podemos limitar a
acreditar no nosso produto, temos de dar a nossa vida por ele, se necessário.
Spencer respira fundo e dolorosamente, rola o pescoço e diz:
— Ouvi dizer que tens água.
— Tenho — digo-lhe, enquanto me afundo mais no sofá adjacente,
deixando que o momento se torne intencionalmente desconfortável.
— Dou-te a bola autografada pelo Peyton Manning — diz ele, fazendo a
primeira oferta, o que o coloca desde logo em desvantagem. Mesmo que ele
ache que aquela era a sua melhor oferta, esta acaba de se tornar a base da
negociação. O seu corte de cabelo elegante trai a sua estupidez.
— Quase não vale meia garrafa — explico-lhe. — E tu sabes que eu não
gosto de futebol. — Além disso, já verifiquei: essa bola vale apenas duzentos
e cinquenta dólares.
Ele pensa rapidamente.
— A bola e uma garrafa de Johnny Walker, edição King George —
acrescenta —, para o teu pai.
Um gesto simpático, mas tenho de recusar. O problema da maior parte das
pessoas numa economia de trocas diretas é que se limita a trocar um
consumível por outro. Mas, se desejamos realmente promover a
prosperidade, precisamos de trocar o nosso produto por ativos que valorizem.
O meu pai sempre realçou a importância da diversificação, e eu gosto de
pensar que adquiri um portefólio diversificado graças ao meu negócio da
hidratação — um portefólio que planeio vender com lucro no eBay. Até aqui
obtive um sistema de som surround, uma coleção de discos vinil vintage, um
quadro de Thomas Kinkaid, uma primeira edição autografada de Relíquia
Macabra e uma pitão-real de escamas amarelas.
O que terá então Spencer que valha a pena juntar à minha coleção?
— Então e a minha Xbox? — pergunta.
Abano a cabeça.
— Todos me oferecem consolas Xbox.
Ele sabe o que eu quero e a sua dança leva-nos apenas para mais perto.
Porque no seu quarto extra está pendurada uma camisola autografada pelo
Michael Jordan — a azul bebé, de quando ele estava na faculdade; muito
rara, avaliada em quase dois mil dólares.
Ele recusa-se a dizê-lo. Recusa-se a oferecê-la. Vai fazer-me pedi-la. É
justo.
— A camisola do Jordan — digo. — Um pack de águas: doze garrafas de
litro, pela camisola do Jordan.
— Não posso! O meu pai mata-me!
— Essa é a minha oferta — digo-lhe, com um encolher de ombros.
Ele cerra os dentes e semicerra os olhos, como se estivesse com grandes
dores de barriga, depois diz:
— Dois packs. — E sei que ganhei.
Levanto-me, fingindo terminar as negociações.
— Se não estás a levar isto a sério, vou pedir-te que saias.
— Um pack e meio? — diz ele.
Suspiro.
— Está bem — digo. — Mas só porque já nos conhecemos há muito. —
Eu teria feito o negócio por dois packs, mas, como disse, não gosto de
Spencer.
Levo a mão para baixo do sofá e retiro uma garrafa de água que
normalmente reservo para amostras. Já só resta um terço, por isso atiro-lha.
— O primeiro gole é de graça — digo-lhe. — Considera-o um bónus.
E ele bebe de imediato.
— A ÁguaViva é bombeada de uma nascente artesiana em Portugal, quase
um quilómetro e meio abaixo da superfície da Terra — informo-o enquanto
ele bebe. — É depois ionizada, para alcançar o equilíbrio de pH perfeito para
aumentar a oxigenação no sangue e, desta forma, as pessoas poderem manter
a energia durante todo o dia. E, imediatamente antes de ser engarrafada, é
infundida com bagas goji ricas em antioxidantes, que não só desintoxicam o
fígado, como melhoram a função imunitária.
Spencer termina a garrafa e olha para mim como se estivesse apaixonado.
Talvez esteja. Ouvi dizer isso acerca dele, mas neste momento acho que é o
tipo de agape que sentimos pelo nosso salvador pessoal.
— Façamos assim — digo eu. — Dou-te uma caixa e meia pela camisola,
a bola e a garrafa de whisky.
Ele acena, cedendo por completo.
— Sim. Sim, está bem. Obrigado, Henry!
Sorri cordialmente.
— Não tens de quê, Spencer. — E estou a falar a sério. Se querem saber,
não há nada melhor do que uma situação em que todos saem a ganhar.

19) ALYSSA

Logo à saída do portão de Dove Canyon há uma fonte. Quando a seca era
apenas uma seca normal, antes das intensas restrições à água, a fonte atraía
pumas. Desciam dos montes, como gatos domésticos em busca de uma tijela
de água. Isso deveria ter alertado todos aqueles que estivessem a prestar
atenção.
Depois, as pessoas começaram a abandonar as comunidades agrícolas de
Central Valley, na Califórnia, quando aquele se transformou na Pacific Dust
Bowl, enchendo as cidades já sobrelotadas, como os grandes gatos que
abandonavam os montes secos. Por muito que tal devesse ter servido de
aviso, continuava a não o fazer com a veemência suficiente — porque as
respostas oficiais foram, bem, literalmente, uma gota no oceano. Multas para
pessoas que regavam os relvados, a Frivolous Use Initiative. Anúncios de
serviço público que recordavam às pessoas que deviam poupar água. Nada
disso importava. A água, ainda assim, acabou. Agora, a fonte de Dove
Canyon estava vazia. Os pumas ou morreram ou migraram, e os humanos
enfrentavam as mesmas duas alternativas.
Só há uma maneira de entrar ou sair de Dove Canyon: um único portão
protegido por seguranças. Alguns são amigáveis, outros agem como se
fossem membros do serviço secreto guardando a Casa Branca. Hoje não está
lá nenhum, e o portão em si foi arrancado das dobradiças.
— Isso é que é uma falsa sensação de segurança — diz Jacqui. — O mais
certo é que o portão tenha sido derrubado logo no primeiro dia.
— Alyssa, olha — diz Garrett, apontando.
Para lá do portão partido foi erguida uma bizarra barricada improvisada.
Paramos na berma da estrada, deixando o automóvel e seguindo a pé até à
entrada abandonada, confusos com a barreira que deve ter sido colocada
depois da queda do portão.
— Parece ter sido feita à pressa — nota Kelton.
A barricada foi feita com todo o tipo de tralha retirada de todas as garagens
do bairro. Escadas e móveis velhos, estantes do IKEA que já viram melhores
dias. Cadeiras de jardim e bicicletas enferrujadas. Basicamente, toda a tralha
que teria sido vendida numa venda de garagem, se a associação de moradores
permitisse vendas de garagem.
— O nosso tio disse que Dove Canyon ainda tinha água, depois do Fechar
da Torneira — digo aos outros.
— Sim — diz Garrett. — O mais provável é que as pessoas tenham tido de
afastar os saqueadores.
A ideia de mães e frequentadores de country clubs de Dove Canyon a
repelirem os saqueadores quase me faz rir… até me lembrar de que os nossos
próprios vizinhos atacaram a casa dos McCrackens.
Dado que a barricada foi concebida para impedir a passagem de veículos,
não de peões, somos capazes de a contornar. E, durante todo este tempo, não
vimos qualquer outra alma. É enervante.
— Seria de esperar — diz Jacqui — que, se ergueram a barricada, pelo
menos tivessem alguém a cuidar dela.
— Seria de esperar — ecoou Kelton. Nenhum deles quer seguir o
raciocínio até à sua conclusão lógica.
De súbito, o meu irmão começa a passar-se.
— Alyssa, não gosto disto. Vamos embora.
— Não podemos — recordo-lhe. — Precisamos da pickup do tio
Manjericão.
— Não, não precisamos! — insiste Garrett. — Passámos por diversas
carrinhas com tração às quatro rodas no caminho até aqui. Podemos fazer
uma ligação direta ao motor de uma delas. Aposto que a Jacqui sabe como
fazer isso, certo?
Jacqui fita-o de olhos arregalados.
— Sinto-me insultada por presumires que sei como cometer atos
criminosos.
— E sabes? — pergunto.
— Sim — responde. — Mas não deixo de me sentir insultada.
Olho em frente, para a rua orlada de árvores. A relva da zona ajardinada
ainda está bastante verde. O tio Manjericão disse-nos que, ali, era usada água
reciclada para irrigação. Como a casa dos McCrackens, que brilhou,
luminosa, quando a eletricidade de todas as outras se apagou, as zonas ainda
verdes de Dove Canyon fizeram da área um alvo.
— A casa do nosso tio não fica muito longe do portão — digo aos outros.
— Basta virar à direita no primeiro sinal de «Stop» e seguir cerca de meio
quilómetro a partir daí. — Depois acrescento: — Fazer uma ligação direta a
um veículo será o nosso plano B.
Jacqui ergue a ponta da blusa para mostrar que ainda tem a pistola de
Kelton ali escondida.
— Para o caso de nos depararmos com problemas — diz ela.
Aquilo irrita-me.
— Se nos depararmos com problemas, comportar-nos-emos como pessoas
civilizadas.
— Ela não está a dizer que a irá usar — diz Kelton. — O simples facto de
a mostrar fará a maior parte das pessoas recuar.
Inspiro fundo e decido não discutir. Fico surpreendida pelo facto de ele não
tomar o meu partido — especialmente contra Jacqui, e especialmente em
relação ao tema da violência. Por outro lado, foi ele quem trouxe a arma para
a equação. Talvez seja menos surpresa do que preocupação. Depois de ter
visto aquela expressão no seu olhar quando agarrou na caçadeira, não sei
quem será agora o mais perigoso, se ele, se Jacqui.
Daphne — a ocasional namorada do nosso tio — tem uma casa grande
aqui, que lhe foi deixada pela mãe. Antes de ter vindo para cá, era uma agente
imobiliária em Modesto, a mesma cidade onde o tio Manjericão tinha a sua
quinta de amêndoas. Mas as amendoeiras usam mais água do que quase tudo
o resto — e, com o racionamento definido em valores tão baixos, as quintas
de amêndoas foram as primeiras a falhar. Declarou falência, deixou que o
banco ficasse com a quinta e foi viver com Daphne — que, durante cerca de
cinco minutos, achou que estava no céu, porque tinha uma quantidade
ridícula de propriedades na sua lista. Mas, como ninguém no seu perfeito
juízo ali queria comprar casa, não conseguiu realizar uma única venda. O
valor das propriedades caiu a pique. Depois, começaram a chamar a Central
Valley a Pacific Dust Bowl, e esse foi o último prego no caixão da região.
Imagino que Modesto seja agora, acima de tudo, uma cidade fantasma,
juntamente com Bakersfield, Fresno e Merced. Seja como for, os dois
tiveram o bom senso de partir antes do Grande Resgate e escaparam à
enchente. Fizeram as malas, carregaram tudo num camião de mudanças e
transferiram-se para casa da mãe de Daphne, que estava convenientemente
moribunda e deixou à filha a casa em Dove Canyon.
Depois ela correu com o tio Manjericão, e ele foi viver connosco. Duas
vezes.
Mas eu percebo. Quer dizer, não a culpo. Sabem, não se tratou apenas de o
tio Manjericão não conseguir encontrar emprego — o problema é que ele não
estava realmente à procura. Acho que estava dilacerado com a perda da
quinta. Ela gostava o suficiente dele para lhe dar uma segunda oportunidade,
mas calculo que tenha sido mais do mesmo, porque ele voltou para nossa
casa — e, da segunda vez, estávamos certos de que seria para sempre.
«É só até me levantar», dizia ele. Mas como é que alguém se pode levantar
quando a vida nos cortou as pernas pelos joelhos?
Chegamos à rua de Daphne. Até aqui ainda não vimos vivalma.
Ainda que as zonas ajardinadas da comunidade se mantenham verdes, os
relvados particulares parecem os do nosso bairro. Alguns estão simplesmente
mortos. Erva castanha e árvores sem folhas. Outros foram substituídos por
paisagens do deserto — catos, plantas suculentas e pedras de rio. Cerca de
um terço das casas tem uma turfa artificial ridiculamente verde. Um
fingimento suburbano de que nada está errado. A casa de Daphne é deste
último tipo. É fácil de localizar, porque também tem uma figueira falsa,
levando a ficção um passo para lá do absurdo. É a única coisa com folhas
verdes na rua, o que a torna algo embaraçosa.
A pickup do tio Manjericão não está no acesso. Pressuponho que esteja na
garagem.
— E se tiverem partido? — diz Garrett. — E se tiverem abandonado esta
casa, como abandonaram a quinta dele no Norte?
É algo em que devia ter pensado, mas não pensei. Não lhe respondo. Em
vez disso dirijo-me à porta da frente, toco à campainha, que, claro, não toca.
Duh! Depois bato à porta. Sonoramente.
Nada durante alguns minutos. Começo a perguntar-me se Garrett não terá
razão, mas depois a porta abre-se ligeiramente e vejo o tio Manjericão.
— Alyssa? Garrett? — Está simultaneamente surpreendido e agradado por
nos ver, mas a sua reação é contida. — O que estão a fazer aqui? Onde estão
a vossa mãe e o vosso pai?
É uma pergunta sobre a qual não quero pensar. Compartimentei-a num
canto da minha mente, de modo a manter-me funcional. Não consigo sequer
dizer «Não sabemos» em voz alta, sem que os meus olhos se encham de
lágrimas, por isso não respondo.
— Podemos entrar?
— Sim, sim, claro. — Afasta-se e nós entramos em fila. A casa está
quente. Desconfortavelmente quente. A casa de Daphne tem exposição a sul
com imensas janelas, e não tem estores suficientes para as cobrir. Foram
pendurados lençóis para impedir a entrada da luz e do calor, mas não estão a
fazer um muito bom trabalho. E a casa tem um certo cheiro. Almiscarado e
fétido, com o uma enfermaria que não foi arejada o suficiente. Essa deveria
ter sido a minha primeira pista de que há algo errado, mas é apenas mais uma
coisa na longa lista de «esta-não-é-a-minha-realidade», que se tornou
demasiado numerosa para contar, quanto mais processar.
O nosso tio parece desidratado. Pior do que desidratado. Está pálido, e o
seu rosto parece pendurado, como se a sua pele estivesse cansada de se
agarrar aos ossos. Os olhos estão escuros e algo encovados. Parece um
drogado, mas sei que não é. Com exceção do charro ocasional, o tio
Manjericão não é desses. Não, isto é outra coisa qualquer.
— Querem água? — pergunta-nos. — Temos bastante.
— Têm? — diz Garrett, tão surpreendido por ouvi-lo quanto eu.
— Raios, sim, vou beber um pouco — diz Jacqui, sem hesitar. Ele conduz-
nos até à cozinha, onde se encontra uma caixa de água engarrafada. Restam
seis garrafas. Ele vai buscar copos de plástico e serve-nos a todos uma
pequena dose. Mas depois de nos servir hesita, agarrando-se à bancada e
fechando os olhos, encolhendo-se um pouco. Parece fraco e instável sobre os
pés.
— Tio Herb? — pergunto, usando o seu nome verdadeiro em vez da nossa
alcunha. — Estás bem?
— Vou ficar bem — diz ele. O que significa que neste momento não está.
— Não pareces bem — diz Jacqui, irritantemente direta. — Estás com
péssimo aspeto.
— Não é nada — insiste ele. — Estou com diarreia, mais nada.
Diarreia. Talvez tenha comido alguma coisa do frigorífico que se tenha
estragado depois de desligada a eletricidade. O tio estava sempre a vasculhar
o nosso frigorífico em busca de restos que a minha mãe teria deitado fora se
lhes houvesse chegado primeiro.
— Onde está a Daphne? — pergunto.
— A descansar — diz-me ele. — Também não se está a sentir bem.
Kelton dirige-me um olhar preocupado. Não tenho a certeza do que será,
mas, quando levo a água à boca, ele impede-me. Depois olha para o próprio
copo, cheirando-o e bebendo um pequeno gole.
— Está boa — diz ele.
— Porque não haveria de estar? — Olho para a garrafa de onde o nosso tio
nos servira. É ÁguaViva, que, tanto quanto me lembro, é ridiculamente cara.
É possível comprar garrafas de vinho por menos dinheiro.
— Têm fome? — pergunta o nosso tio. — Ainda tenho algumas coisas
enlatadas. Não há grande variedade, mas o que se há de fazer?
Olho para a despensa só para ver se estão bem abastecidos. Trata-se, acima
de tudo, de frascos de condimentos — uma dezena de molhos diferentes. Há
misturas para bolos da Sara Lee e o tipo de alimentos enlatados que ficam
durante anos na despensa até que precisemos deles. Coisas como fatias de
ananás, castanhas-d’água e azeitonas fatiadas. Muitas daquelas coisas, mas
nenhuma uma boa escolha para uma refeição.
— Não, obrigada — digo-lhe. — Estamos bem.
E quando os outros veem o que lá está, ninguém discorda. Todos temos
fome, mas comemos bem na casa de Kelton no dia anterior. E isto é tudo o
que têm para eles, não quero levar nada.
Depois, Kelton faz algo estranho. Dirige-se à torneira e abre-a. Claro que
nada sai, mas ele cheira a torneira. Vira-se para o nosso tio.
— Ouvi dizer que ainda houve água aqui depois do Fechar da Torneira.
— Sim, durante algum tempo — diz-lhe o tio Manjericão. —
Restabeleceram a ligação com o velho tanque de água. Manteve a água a
correr durante mais alguns dias. Era pouco mais do que um pingar. Não era o
suficiente para tomar banho, mas dava para beber.
Kelton acena, depois vira-se para mim de novo.
— Alyssa, posso falar contigo por um minuto?
Em seguida pega no meu braço e conduz-me à sala de jantar.
Afasto a mão dele de mim mal lá chegamos. Não gosto de ser puxada de
uma divisão para outra.
— O que era tão importante que não pudemos falar ali?
— Alyssa, temos de sair daqui — diz ele, num sussurro intenso.
— Estou a tratar disso — digo-lhe. — Não posso aparecer aqui, agarrar na
pickup e ir-me embora.
— Não compreendes! — diz ele, nesse mesmo sussurro que é quase
maníaco. — Não achas estranho que as ruas estejam tão silenciosas?
E agora que penso nisso, acho de facto estranho. Por onde quer que
tenhamos passado, por muito silêncio que houvesse, continuava a existir vida,
mas este local não mostra o mais pequeno traço dela.
Ele aproxima-se mais. Não fala tão alto, mas fala com igual intensidade.
— Estou certo de que a água da torneira estava estragada. Pior do que
estragada. Acho que o teu tio tem disenteria. Talvez toda a zona de Dove
Canyon tenha.
Não sei muito acerca da disenteria, para além de que é um caso sério de
diarreia que as pessoas de países do terceiro mundo contraem.
— Então… o que fazemos?
Kelton abana a cabeça.
— Não há nada que nós possamos fazer. Não sem um monte de
medicamentos que não temos. — Tira um momento para olhar para mim,
assegurando-se de que o estou a ouvir. Estou, mas isso não significa que
goste da mensagem. — Não deves tocar em nada — diz ele. — E não deves
realmente comer nada.
— Está tudo enlatado! — argumento, embora não faça tenções de comer.
— Sim, mas tudo o que ele toque pode ficar contaminado!
Não posso discutir. Por muito paranoico que soe, é provavelmente verdade.
Quando regressamos à cozinha, o tio Manjericão está a servir a Garrett
uma tijela de pedaços de ananás.
— Não fui eu! — diz Garrett. — O tio Manjericão insistiu.
O nosso tio coloca uma colher à sua frente.
— Precisas da tua energia. Sei que não é muito, mas não vou deixar que
passem fome se puder fazer alguma coisa!
Resignado, Garrett leva a mão à colher.
— Não! — digo abruptamente. Quase lhe atiro a colher para longe. Viro-
me para o nosso tio doente. As minhas ações falaram com bastante clareza,
por isso não escondo os meus motivos. — Foi a água da torneira que vos
deixou doentes, tio Herb — digo-lhe, para interromper qualquer negação em
que ele se possa encontrar. — É disenteria: pode ser contagiosa, por isso não
devíamos comer nada em que tu tocaste. Desculpa.
Ele suspira, compreendendo que tenho razão, e talvez um pouco chateado
consigo próprio por não ter já pensado nessa possibilidade.
— Então abram uma lata nova. Tenho desinfetante para as mãos.
Mas Garrett afasta-se da mesa, sem apetite para comer.
— Não faz mal, também não tenho muita fome.
Começo a aperceber-me de que o nosso tio não faz ideia de quão doentes
ele e Daphne podem estar. E depois Jacqui diz:
— Eu aceito o desinfetante. — Quando olho para ela apercebo-me de que
está com um pouco de febre. Aponta para a ferida, que está húmida e,
claramente, necessita de um penso novo. — E gaze também, se tiver.
— Claro — diz o meu tio. Agarra no desinfetante, mas primeiro limpa as
suas próprias mãos e a garrafa, antes de lha entregar com um sorriso triste. —
Em cima, segunda porta à esquerda. Deve haver um kit de primeiros socorros
por baixo do lavatório.
Vejo-a a subir as escadas, e depois apercebo-me de algo. Jacqui tem
antibióticos. Não tenho a certeza de onde se encontrarão agora. No bolso?
Ainda no BMW? Ou será que, no meio do caos, ficaram em casa de Kelton?
Tirar-lhos-ia para dar ao meu tio? Não, digo a mim mesma. Posso não gostar
muito de Jacqui, mas não lhos roubarei. Jamais magoaria uma pessoa pela
possibilidade de ajudar outra — mesmo que essa outra pessoa fosse alguém
de quem eu gostasse. Se o fizesse, não seria melhor do que os saqueadores.
— Deviam ir-se embora — digo ao meu tio. — Tanto tu quanto a Daphne.
Estão a montar abrigos. Podem ainda não ter água, mas terão medicamentos;
tenho a certeza de que terão.
Mas ele enxota a ideia com um aceno.
— Não creio que a Daphne esteja em condições de viajar. Por outro lado,
já passámos pelo pior.
Não sei se ele se estará a referir ao pior da doença, ou ao pior da crise. Seja
como for, a minha resposta é a mesma.
— Acho que o pior ainda está para vir…
Ainda assim, nada do que digo o irá persuadir.
— Vamos ficar bem.
Mais do que tudo, quero acreditar nele. Mas os meus dias de ficar à espera
que o melhor aconteça terminaram. Agora, a esperança é algo em constante
movimento, como um tubarão.

20) JACQUI

Descubro a casa de banho, fecho a porta atrás de mim e levo a mão ao bolso,
retirando um dos dois frascos cor de laranja com antibióticos. Não me lembro
por qual deles comecei, mas de que importa? Examino as pequenas cápsulas
em dois tons de verde. É espantoso pensar que estas cápsulas minúsculas que
rolam na palma da minha mão significam a diferença entre a vida e a morte.
Aposto que devem valer o seu peso cem vezes em ouro, neste preciso
momento. Por outro lado, não se pode atribuir um preço à vida humana —
por isso é bota abaixo.
Segue-se o penso. Encontro o kit de primeiros socorros precisamente onde
o Manjericão, ou Herb, ou Funcho, ou como raio se chama, disse que estava.
O penso está colado ao meu braço quando o puxo, a ferida sarando agarrada à
gaze. Bem, pelo menos está a sarar. Limpo-a cuidadosa e dolorosamente,
com panos ensopados em álcool, tendo o cuidado de não tocar em nada que
me possa infetar, e depois volto a aplicar um penso na ferida. Tão bom como
novo.
Vagueio um pouco pelo piso de cima, vendo a casa. É uma casa e tanto. O
tipo onde eu não me importaria de ficar noutras circunstâncias — embora a
decoração seja um bocado feminina de mais para o meu gosto. A namorada
do Manjericão deve ser daquelas que gostam muito de rendas e lacinhos.
Como é que ela se chama mesmo? Devia ser Rosmaninho, penso, o que me
faz rir.
Regresso às escadas, passando pelas portas duplas do quarto principal, e
apercebo-me de que uma está ligeiramente entreaberta. Pela frincha, distingo
a silhueta de uma mulher deitada, imóvel, numa cama toda branca. Há um
cheiro ácido que se ergue do quarto. Escuro e decrépito. Quando todos seriam
repelidos, eu sou atraída, puxada para a cena por um tipo de atração a que
tenho dificuldade em resistir. O Apelo do Vazio. Abro um pouco mais a porta
e dou um único passo para lá dela. É como inclinar-me ao vento na beira de
um penhasco.
Sobre a cama agita-se uma daquelas redes mosquiteiras decorativas
adequadas a uma rainha, mas, aqui, parece estar a manter a doença lá dentro
em vez de cá fora. Daphne — era esse o nome. A imperatriz doente deve ser
a Daphne.
O silêncio é esmagador. E depois apercebo-me porquê.
A mulher não está a respirar.
Agora é mais do que o vazio aquilo que me atrai. É a cena de um acidente
de viação. São os escombros depois de um tornado. Tenho de me aproximar
mais. Não lhe vou tocar. Não vou atravessar a barreira da rede, mas tenho de
ver. Tenho de olhar para o peito dela, para ver se sobe e desce. Preciso de
saber. E o cheiro agora é terrível. Bílis e enxofre e todos os fétidos fedores
orgânicos que lutamos para manter ao longe, durante toda a nossa vida.
Depois, antes que me aproxime o suficiente para ver bem, ela mexe-se,
agitando-se ligeiramente sob os lençóis. O meu coração bate com força no
peito, tão ruidosamente que acho que ela é capaz de o ouvir, porque vira
lentamente a cabeça na minha direção, e, quando olha para mim, os seus
olhos estão escuros e vidrados. Está demasiado fraca para falar ou mesmo
para se perguntar o que estará uma estranha a fazer na sua casa.
Não está morta, mas o seu corpo não sabe disso, porque acho que já se
começou a decompor — e, embora ela continue a olhar para mim, os nossos
olhares não conseguem de alguma forma relacionar-se. É então que percebo
que ela não me vê de todo.
Vê o vazio.

Alguns momentos mais tarde, estou de volta ao piso térreo com os outros,
mas mantenho o silêncio. Mantenho a distância. Porque, por cima de tudo,
tenho a imagem de Daphne impressa na minha retina. Alyssa está a tentar
convencer o tio a ir com Daphne para um centro de evacuação. Mas, claro,
ele recusa-se. E, quanto mais ela tenta convencê-lo, mais ele a afasta.
Pergunto-me se ele se aperceberá de quão mal Daphne está. Deve aperceber-
se, a um certo nível. E, embora se esteja a manter calmo por causa da
sobrinha e do sobrinho, não creio que esteja assim tão distante de se enfiar
naquela cama com ela e deixar que o fim chegue. Depois apercebo-me, com
um estremecimento, de que a cena no piso superior se está provavelmente a
desenrolar em muitas outras casas à nossa volta. Este condomínio privado
transformou-se numa morgue de luxo.
Alyssa ainda não pediu a chave ao tio. Esta sua veia educada vai acabar
por matá-la, e a nós com ela. Aparentemente, a paciência de Kelton também
chegou ao fim, porque é ele que vai direto ao assunto.
— Se não vai partir, então deixe-nos levar a sua pickup. Precisamos de
tração às quatro rodas para chegarmos ao nosso destino.
— Emprestaria, se pudesse — diz ele, envergonhado, o que chega mesmo
a devolver um pouco de cor ao seu rosto. — Mas troquei-a.
— Fizeste o quê? — digo.
— Por aquela ÁguaViva que têm estado a beber. Recuperá-la-ei mal tudo
isto passe — diz ele, baixando os olhos. — Quer dizer, estou certo de que
uma coisa como esta não pode ser legalmente vinculativa.
— Com quem a trocaste? — pergunta Alyssa.
Uma vez mais, ele baixa os olhos, envergonhado.
— Com um miúdo que mora mais acima.

A casa é vergonhosamente grande, como o resto das casas à sua volta,


construída tão perto do limite da propriedade quanto é permitido por lei. Está
pintada de fresco, de uma cor acastanhada, como se alguém tivesse tentado
deixá-la com um bronzeado falso. É aquilo a que, normalmente, nos
referimos como McMansion. Uma casa ostensiva feita numa linha de
montagem enquanto aguardamos.
A porta da garagem está ligeiramente aberta, cerca de dez centímetros do
chão, e do seu interior saem fumos. Consigo ouvir um gerador a trabalhar no
interior. Aparentemente, deixar o gerador no exterior, onde pertence, deixa-o
suscetível a roubos. Este miúdo não é um idiota. Sobre o som do gerador
consigo ouvir música de dança eletrónica a tocar no interior da casa. Está
bem, talvez seja.
Alyssa ignora o grande batente de latão e bate diretamente na porta. Nada
— consigo perceber que ela está a ficar irritada, porque começa a bater e não
para até a porta se abrir, por fim, revelando um miúdo de bom aspeto, bem
cuidado, envergando um blusão azul-escuro da escola secundária católica de
Santa Margarita, e um polo por baixo. Um blusão neste calor. Sim, o gerador
está a manter o ar condicionado a funcionar, mas o blusão não deixa de
parecer estranho. Guardo a observação na minha mente, juntamente com as
outras coisas estranhas com as quais não me preocupo o suficiente para
questionar. O tio Manjericão disse-nos que os pais do miúdo estavam fora. O
puto que nasceu em berço de ouro deixado em casa sozinho. Deus nos ajude a
todos.
Ele sorri alegremente.
— Em que posso ajudar-vos? — diz, como se estivéssemos prestes a
encomendar um cheeseburger e batatas fritas na sua McMansion.
— Viemos buscar a pickup do meu tio — exige Alyssa.
Ele exerce o seu direito de recusar serviço a quem quer que seja.
— Lamento, mas não posso ajudar. — Depois tenta fechar rapidamente a
porta. É nesse momento que a paro com o pé. Ele apoia-se na porta,
mantendo a pressão. — Se entrarem na minha casa, isso significa uma
invasão! — berra, tentando soar muito mais intimidatório do que na realidade
é.
Talvez o batente tipo Oz seja adequado.
— Há várias ramificações legais se não tirarem o pé da minha porta.
Encosto a ela o meu ombro.
— Abre a porta, idiota. — Alyssa e Kelton juntam-se a mim, aplicando
pressão.
— O meu pai é advogado: vai processá-los de tal maneira…
Antes que ele consiga sequer terminar a sua fraca ameaça, dou um pontapé
na porta, e o puto sai disparado a voar. Consegue levantar-se, os seus pés
pisando o tapete persa.
Depois vira-se subitamente, leva a mão à gaveta do móvel da entrada e
retira uma arma.
Maldição.
Nada de movimentos súbitos, penso, à medida que a minha mão desliza
muito lentamente em direção à arma que tenho escondida na cintura.
— Isso mesmo, fiquem aí atrás. As mãos onde eu as consiga ver — diz,
citando algo que estou certa que ouviu na televisão.
Todos estacamos — com exceção de Kelton, que opta antes por avançar a
passos largos em direção ao miúdo. Ele perdeu mesmo a cabeça!
O puto aperta com mais força a arma e grita, quase maníaco:
— Tenho todo o direito de disparar! Juro que o farei!
Mas Kelton não tem medo. Lança-se subitamente para a frente, agarra o
pulso do rapaz, e, num só movimento, torce-lhe o braço por trás das costas.
O puto grita, mas Kelton ainda não acabou. Puxa o braço do miúdo por trás
das costas e torce-o de tal modo que o seu próprio movimento funciona
contra ele. O braço está agora dobrado num ângulo obsceno, e todos nós
ouvimos um «POP!».
O puto cai ao chão gritando freneticamente, e Kelton segura a arma. Por
um momento limita-se a parecer tão surpreendido quanto nós. Como se
estivesse a dizer para si próprio: Caraças, funcionou. Enquanto o miúdo se
continua a contorcer no chão, Kelton examina a arma.
— Kelton, estás louco? — diz Alyssa. — Ele podia ter-te morto.
— Não — diz Kelton. — Isto é uma WG Panther. É uma arma de pressão
de ar, o que significa que não passa de um brinquedo. Vê, a ponta cor de
laranja foi pintada de preto com uma caneta.
Fico tão furiosa por ter sido enganada por uma porcaria de uma arma de
brincar que sinto o impulso súbito de dar um pontapé no estômago do puto. E
depois lembro-me que o braço foi completamente deslocado. É bem feito.
Kelton baixa-se sobre um joelho para o ajudar, mas o miúdo recua
atabalhoadamente e aponta com o braço que ainda funciona.
— Não! Mantenham esse psicopata longe de mim! — grita. Por uma vez, é
refrescante ouvir outra pessoa a ser chamada de psicopata. Ironicamente, este
tipo devia estar a agradecer a Kelton pelo que fez. Porque, se ele não o
tivesse desarmado, eu tê-lo-ia feito. E as armas a sério não disparam balas de
plástico.
— Deixa que ele te ajude — diz Alyssa ao miúdo. — Ele sabe o que está a
fazer. — Por alguma razão, o miúdo dá-lhe ouvidos. As pessoas parecem
confiar em Alyssa, no melhor e no pior. Confio nela como confio num resto
de frango kung pao no minifrigorífico de um estudante universitário. O
suficiente para não vomitar.
Kelton deitou o miúdo de costas e segura-lhe com firmeza no braço.
— Inspira fundo e sustém a respiração — diz Kelton, agarrando-o com
força. — Pronto? Um… dois… — E, no três, Kelton volta a pôr-lhe o braço
no sítio. O puto grita, mas não tão alto como quando foi deslocado.
Em seguida senta-se e encosta-se à parede a suar.
— Gelo. Deem-me gelo, pode ser? — pede, a ninguém em especial.
As palavras quase não fazem sentido. Gelo? Este miúdo tem gelo? Agora
que penso nisso, tem muitas coisas que as outras pessoas não têm.
— Na cozinha — diz ele, confundindo o meu choque com estupidez.
— Claro, Roycroft — digo, com um sorriso, e aceno a Garrett, que vai
buscá-lo.
O miúdo olha para mim, agora tão confuso quanto zangado.
— Não fiques tão surpreendido — digo. — Tens o nome gravado no
casaco.
— Oh. Certo.
— Agora já conhecemos os apelidos uns dos outros.
— Eu continuo a não saber o vosso nome.
— Não, não sabes. É engraçado como são as coisas.
Olho à minha volta, tentando avaliar a nossa atual situação, mas as coisas
não fazem sentido. Trata-se de um acumular embaraçoso de riquezas. Uma
pilha de portáteis, múltiplas consolas Xbox — quem é que tem múltiplas
consolas Xbox? Há um monte de recordações de desporto assinadas — e, na
extremidade mais distante do corredor, uma espécie de aquário com uma
gigantesca…
Giro sobre mim mesma, quase incapaz de olhar para ela.
COBRA!
Recomponho-me, inspiro fundo para me acalmar, recordando-me da única
coisa que tenho em comum com o Indiana Jones para além da proficiência na
utilização do chicote. Mas isso é outra conversa.
Viro-me para ele. Mudou-se para um sofá de pele, continuando agarrado
ao ombro.
— Então para que é esta tralha toda? — pergunto.
Ele consegue, de alguma maneira, mostrar-me um sorriso calmo, mesmo
no seu estado mais frágil.
— Ativos que fui adquirindo, de modo justo.
Alyssa dá um passo em frente.
— Foi justo quando ficaste com a pickup do meu tio?
— Claro — responde ele, ficando chocado com a mera sugestão de
impropriedade. — Tenho toda a papelada.
— Aproveitaste-te dele!
— O preço da água subiu — diz ele, assumindo uma posição defensiva. —
Não digas que a culpa foi minha.
Alyssa fecha a mão num punho, pronta para deslocar mais partes do corpo
do rapaz. Algo que eu estou disposta a pagar para ver.
— Foi ele que veio ter comigo — diz o miúdo, continuando ofendido pela
acusação em relação ao seu carácter.
Kelton já está a ficar impaciente.
— A água estava estragada. De que serve teres todas estas coisas se vais
ficar doente como os outros?
— Não a bebi; tenho os meus próprios meios de hidratação.
— Ainda não saíste daqui, pois não? — Apercebe-se Kelton. — Ainda não
viste como estão as coisas lá fora.
E aquilo parece fazê-lo pensar. Deve ser verdade; aquele principezinho tem
estado a viver no seu planeta pessoal desde o Fechar da Torneira.
— E, já agora, porque estás aqui sozinho? — pergunto.
— Os meus pais partiram num cruzeiro. Deixaram-me a tomar conta da
casa. Tenho a certeza de que viriam para casa, se não estivessem no meio do
oceano Atlântico.
— Sorte a deles — digo eu.
Garrett entrega-lhe um saquinho de gelo e o miúdo encosta-o ao ombro.
— Já viste sequer algumas notícias? — pergunta Alyssa.
Ele abana a cabeça.
— A televisão tira demasiada energia ao gerador.
Ele conduz-nos a uma sala de estar que mais parece um cinema caseiro,
com uma televisão de sessenta polegadas, que, como ele diz, consome tanta
energia ao gerador que as luzes se esbatem quando ele a liga. Kelton agarra
no comando e procura o canal das notícias local — mas este não passa de
barras coloridas.
Kelton tenta outro canal local.
Estática.
Quero acreditar que se trata de um problema com o fornecedor, e não com
as estações em si. Kelton passa para uma transmissão nacional — CNN — e,
por fim, descobrimos uma notícia. Mas quase desejava não a ter descoberto.
Embora mostre aquilo que já sabemos, vê-lo em imagens coloridas de alta
definição torna-o pior.
Há um mapa do Sul da Califórnia com um círculo à sua volta, como se
estivesse a assinalar o caminho de um furacão. «Cobertura do Fechar da
Torneira no Sul da Califórnia» — é o que se pode ler em rodapé, como se não
passasse de uma espécie de evento para o entretenimento de todos. Já estive
do outro lado de transmissões como esta, oriundas de outros locais — mas
esta é a primeira vez, desde que me lembro, que me encontro no epicentro de
uma zona de desastre.
Viro-me para os outros e percebo que estão igualmente afetados — até o
miúdo.
— Aconteceu finalmente — diz Alyssa. — O resto do mundo apercebeu-
se, e está a levar a sério o Fechar da Torneira.
— O resto do mundo chegou demasiado tarde — diz Kelton. E tem razão.
Não se espera quase uma semana para mobilizar recursos sérios para um
desastre desta magnitude. As notícias brilham no ecrã e fundem-se, o meu
cérebro quase incapaz de as registar a todas:
Uma jornalista, de helicóptero, sobrevoa a baixa de Los Angeles,
mostrando motins que fazem os da década de 1990 parecer uma festa. Um
jornalista faz os seus relatos nos limites de Riverside, a uma distância segura,
espreitando para o aquário do caos, temendo viajar para demasiado perto. Um
grupo de miúdos de uma escola primária, na Florida, faz uma coleta de
garrafas de água — como se a sua água pudesse chegar a tempo de fazer a
diferença. Há uma imagem de funcionários da FEMA — funcionários a sério,
não os seus voluntários da reserva — a distribuírem água num centro de
evacuação, mas uma imagem mais afastada revela uma multidão maior do
que aquela com que poderão lidar. Estrelas rock planeiam concertos para
reunir fundos de apoio. Celebridades promovem ações de caridade. As
normais ações de autopromoção. A única diferença é que, agora, somos nós
as vítimas, não estamos sentados confortavelmente nas nossas casas a enviar
cinco dólares através de uma app de solidariedade e a dar palmadinhas nas
costas uns dos outros por sermos tão terrivelmente generosos.
— Se estiver a ouvir estas notícias e se se encontrar neste momento a sul, a
evacuação é obrigatória — diz Anderson Cooper. A sua imagem é
acompanhada por outras, de pessoal militar a ajudar famílias, que estão a ser
evacuadas, a subirem para camiões enormes, e a distribuir água a longas filas
de pessoas. — Estão a ser montados centros de evacuação por todo o Sul da
Califórnia, em ginásios, igrejas e centros comerciais, mas parece haver um
número espantoso de pessoas que opta por não cooperar com estes emissários
do governo.
— Vejam as coisas pelo lado positivo — digo eu. — Pelo menos os
centros comerciais voltaram a ter um objetivo.
A imagem seguinte mostra uma multidão que flui, como um rio humano,
ao longo de uma serpenteante estrada de montanha e desaparece sob as copas
das árvores de uma floresta.
— Estas famílias estão a dirigir-se para o lago Arrowhead e para o lago
Big Bear, mas os relatórios no terreno dizem-nos que as pessoas que têm
estado a entrar nestas áreas de floresta não estão a sair do outro lado…
Todos observam em silêncio, e depois viro-me para Kelton.
— Hei, rapaz do refúgio, se não estão a conseguir atravessar a floresta, o
que te faz pensar que nós vamos conseguir?
— Já te disse, não vamos para onde eles estão a ir.
E isso é bom — porque, se todas aquelas pessoas não estão a conseguir
chegar aos vales, só há um de dois lugares para onde se dirigem. E de
nenhum deles se regressa.

21) HENRY
Lidar com pessoas irracionais exige concentração, inteligência e uma
disciplina extrema — é necessário manter uma sensação de verdadeira estase
emocional, tal como é delineado num dos meus livros preferidos, Poder
Transformativo, de Pearce Tidwell. Temos de aprender a lidar com o estado
emocional para operar de um modo consistente a partir de uma posição em
que se consegue lidar com qualquer situação, assim produzindo os resultados
desejados. Temos de agir em vez de reagir.
É por essa razão que, em vez de ceder ao horrendo latejar de dor no meu
ombro direito, o canalizo, usando a dor como uma ferramenta para aumentar
a minha concentração. (Mas dói mesmo, Deus do Céu como dói.) Não
permitirei que isso me controle. A minha atual agonia não me definirá. Em
vez disso, o meu profundo desconforto será uma prancha que me lançará para
uma realidade melhor.
Até este momento consegui evitar ver as notícias — são sempre tão
manipuladoras… Mas agora não consigo deixar de reconhecer que o Fechar
da Torneira é uma tragédia, e que os esforços de auxílio são uma palhaçada.
As cidades foram claramente atingidas com mais gravidade — as zonas
empobrecidas, em desintegração, repletas de pessoas marginalizadas, mal
equipadas para lidar com o desastre social.
Mas existe sempre uma oportunidade na desgraça. Por isso, a questão é:
Como posso virar isto a meu favor? Porque, afinal de contas, não podemos
trabalhar para o bem maior se não estivermos bem preparados primeiro.
Considerando todos os aspetos, talvez seja do meu interesse partir, em vez
de permanecer no meu atual ninho. Por outro lado, se o estado das coisas se
deteriorou de facto a um tal grau, a minha água deve valer mais do que
nunca. Tudo aquilo que troquei até aqui de pouco valerá quando comparado
com o que as minhas próximas transações renderão. Estou a rebentar por
dentro! Mas mantenho a calma… Nunca devemos reagir com exagero
perante os despojos que representam a nossa sorte. Decido que o melhor é
fazer o inventário dos meus «ativos líquidos» atuais, por isso levanto-me e
dirijo-me ao gabinete do meu pai, onde se encontra o resto da minha
ÁguaViva.
— Onde vais, Roycroft? — pergunta a rapariga um tanto dura com o
sorriso perpétuo. Digo «um tanto dura», porque duvido que seja tão dura
como quer que todos pensem. Mas não nego que possa haver um ou dois
parafusos soltos.
— Buscar mais gelo — respondo.
Acreditam em mim, porque não me seguem. Continuam colados ao ecrã da
televisão. Suponho que, com o braço assim, não me encarem como uma
grande ameaça. O que é um grande erro. Enquanto me subestimarem,
manterei a vantagem.
Fecho a porta do escritório, garantindo a minha privacidade, e puxo a
última caixa de ÁguaViva. É uma caixa bastante grande, contendo dois
packs; vinte e quatro garrafas. Abro a caixa e revela-se uma nova e
inesperada falha na minha atual situação.
A vida está repleta de muitos momentos de azar, que devemos aprender a
encarar como oportunidades. Azares como, digamos, abrir uma caixa que
acreditamos conter quarenta e oito garrafas de água, apenas para descobrir
que se encontra repleta de suportes, com vários níveis, para brochuras de
ÁguaViva.
Nestas situações, há que manter a cabeça fria.
Cabeça. Muito. Fria.
Agarro-me ao lado positivo deste desaire pessoal: pelo menos agora não
terei de me debater com uma decisão quanto a ficar ou partir. Não me resta
grande escolha; vou ter de sair daqui. De qualquer maneira, o meu gerador
em breve ficará sem combustível — e posso esconder os ativos que adquiri
no sótão, atrás das caixas com ornamentos natalícios. Exceto, claro, a pitão
— mas aquela coisa é capaz de passar semanas sem comer, e, além disso,
suponho que esteja habituada a climas quentes. Em última análise, um local
mais seguro poderá não ser uma má ideia — e se Dove Canyon é, na
realidade, a placa de Petri bacteriana que os meus hóspedes indesejados
dizem ser, imagino que qualquer lugar será melhor do que este.
Seja como for, a chegada deles é de facto uma sorte.
Mas eu teria passado bem sem o ombro deslocado.
Fecho a enorme caixa de cartão tão bem quanto consigo, com fita-cola. E
depois sobreponho a fita-cola uma e outra vez, para que seja praticamente
impossível de abrir. É então que um deles entra. É a mais razoável, a menos
desagradável das duas raparigas. Aquela que reclama a antiga carrinha do tio.
— Pensei que ias buscar gelo.
— Acabou — digo, em tom convincente. — O que me fez pensar em
verificar o meu fornecimento de água. — Bato na caixa e aponto para o
gigantesco logótipo da ÁguaViva, no flanco.
Há uma breve pausa na conversa. E sei exatamente qual a direção que isto
vai tomar. Só pode seguir para um lado. A pickup. Eles não vão sair daqui
enquanto não conseguirem aquilo que querem. Eles são quatro e eu sou só
um. Claramente, não serei capaz de os subjugar — em especial com aquele
pitbull ruivo psicótico por perto. Tenho de considerar a pickup como uma
perda de curto prazo porque, bem vistas as coisas, já não estou em posição de
negociar. Mas ela ainda não se apercebeu disso e, neste momento, somos
apenas nós os dois. Por isso, antecipo-me.
— Ainda não fomos oficialmente apresentados — digo, acionando o meu
charme. — Sou o Henry. — Estendo o meu braço esquerdo para lhe apertar a
mão, dado que quase não consigo mexer o direito.
Ela hesita, um pouco cética. É compreensível.
— Chamo-me Alyssa.
— É um prazer conhecer-te, Alyssa. — Sorrio e limpo a garganta. —
Façamos assim. Aprecio a paixão que tens pelos teus amigos e pelo bem-estar
da tua família, e percebo porque poderás sentir que tens direito àquela pickup.
Ela cruza os braços, mas continua a ouvir.
— Por isso, estou preparado para ta devolver. — Faço uma pausa para a
impressionar. — Mas apenas sob uma condição.
Ela ergue uma sobrancelha.
— Que me levem convosco.
Ela pensa na questão, mas já consigo sentir as coisas a tombarem a meu
favor. Li, certa vez, no Executivo Próspero, de R.J. Sherman, que a principal
maneira de manter um emprego, nos dias de hoje, é garantir que somos
indispensáveis; ou pelo menos fazer as pessoas pensarem que somos
indispensáveis. Ela delibera — e, precisamente quando sinto que se atingiu
aquele ponto de viragem em que as suas emoções e o seu bom senso vacilam
precariamente, dou-lhe aquele toque suave que garante para que lado tomba.
— Levarei esta caixa de ÁguaViva — digo, com um sorriso cativante.
— Podíamos simplesmente tirar-te a ÁguaViva — realça ela.
— É verdade… mas não és esse tipo de pessoa. Os outros talvez sejam,
mas tu não és.
E vejo, pela expressão no seu olhar, que ela começa a cair na direção de
uma decisão unilateral. Se me levarem, obterão aquilo que querem e eu
poderei garantir a minha própria sobrevivência. Mais uma situação em que
todos saem a ganhar.

A rapariga algo dura, cujo nome descubro ser Jacqui, insiste em conduzir. É
justo. Por agora. Enquanto conduzimos pela minha rua, começo a pensar que
poderei ter subestimado o efeito da falta de água na comunidade. Uma coisa é
ver os motins na televisão, nas densas zonas urbanas que são mais dadas a
conflagrações sociais, mas outra, bem diferente, é ver casas com janelas
partidas numa comunidade fina como Dove Canyon. Não que os ricos sejam
melhores — quer dizer, a natureza humana é a natureza humana. No entanto,
onde existe pouco espaço pessoal, as tensões tendem a subir muito mais
depressa do que num local onde os gritos de batalha de uma pessoa chegam
apenas aos ouvidos de dez vizinhos em vez de cem. O que significa que, nos
subúrbios e arredores, é difícil gerar a massa crítica necessária para
desencadear comportamentos realmente maus.
Ou talvez não.
Porque, à medida que vamos avançando, aumentam as evidências de maus
comportamentos que vão muito para lá de meros vidros partidos. Há caixas
do correio estilhaçadas, veículos que subiram os passeios e chocaram contra
as sebes e o tipo de destroços aleatórios que normalmente não encontramos
num condomínio «chave na mão» como este. Não porque as pessoas não
sejam odiosas — estou certo de que muitas delas são —, mas porque estão de
tal modo obsessivamente preocupadas com o valor das suas propriedades,
que preferem morrer a permitir que os detritos da civilização conspurquem a
atratividade da sua envolvência.
— Estou preocupada por deixar o meu tio — diz Alyssa, que se senta ao
meu lado, no banco de trás. Ela funciona como um tampão entre mim e o
ruivo psicótico do outro lado dela. Eu preferia ter ido à frente, mas o irmão de
Alyssa correu mais rápido do que eu, e, se não seguirmos a convenção que
dita que o primeiro a reclamar o lugar do morto é aquele que o utiliza, que
tipo de leis nos restará?
— O tio Salsa vai ficar bem — diz Jacqui. — E, mesmo que não fique, não
há nada que possas fazer. Pediste-lhe que viesse e ele recusou-se. Fim da
história.
Alyssa aceita a pérola de sabedoria, mas não parece reconfortada.
— Bem, ele tem bastante ÁguaViva — realço. — Mesmo que o atravesse
sem parar, continua a ter os benefícios dos eletrólitos. De facto, foi provado
que a sua fórmula patenteada melhora a qualidade de vida.
— Ótimo, é mesmo do que precisamos — diz Jacqui. — Um anúncio
televisivo com bom cabelo.
Isto é aquilo a que chamamos um insulto disfarçado de cumprimento. Eu
opto por ver o lado positivo, porque é assim que funciono.
— Essa informação pode salvar vidas — digo-lhe. — Tal como um bom
cabelo na situação certa.
A pickup ainda está quente. O ar condicionado tem estado a soprar desde
que entrámos, mas não está mais fresco. Jacqui também se apercebe, porque
começa a verificar os controlos.
— Que há de errado com esta coisa? — pergunta.
— É verdade, esqueci-me: o ar condicionado não funciona — informa
Alyssa. — O nosso tio estava sempre a dizer que ia mandar arranjá-lo, mas
nunca chegou a fazê-lo.
Jacqui fita-a de olhos arregalados.
— Já nos podias ter dito isso antes.
Todos abrimos as janelas, mas está tão quente fora do veículo como dentro
dele. O termómetro digital no painel de instrumentos regista trinta e seis
graus. A temperatura corporal parece muito mais quente quando se regista
fora do nosso corpo. O tio devia ter revelado que o ar condicionado não
estava a funcionar quando fez o acordo comigo. Legalmente, é obrigatório
revelar coisas como essa.
Depois, o irmão de Alyssa vira-se e pergunta-me:
— Por que desportos é que recebeste os emblemas?
Aponto para os emblemas no meu casaco, que se revela cada vez mais
errado para este tipo de tempo, mas recuso-me a tirá-lo.
— Este é pelo futebol — digo, o que parece prender a atenção de Alyssa,
embora perceba que ela está a tentar não o mostrar. — E este é de lacross.
— Lacross — diz Jacqui. — Não me surpreende que sejas bom com um
pau.
Opto por não comentar. Alyssa olha para outro emblema.
— Capitão da equipa de debate?
Encolho os ombros como se não fosse nada.
— Apresento bons argumentos.
— Então e as tatuagens no teu braço? — pergunta o irmão de Alyssa. — O
que são?
— Não são tatuagens — digo-lhe. — É tinta normal.
— Então o que dizem?
Puxo um pouco as mangas do blusão da escola, e tento erguer o braço para
lhe mostrar o local no meu pulso onde foram escritas, mas o meu ombro
lateja quando tento fazê-lo. Este ombro deslocado não para de me trazer
coisas boas. Consigo levantá-lo o suficiente para que ele veja as palavras. Lê-
as hesitantemente.
— Con-fla-gra-ção. De-tri-to.
— As minhas palavras do dia.
Alyssa olha para mim, algo divertida.
— Escreves o teu vocabulário no braço?
— «O vocabulário de uma pessoa necessita de ser constantemente
fertilizado ou perecerá» — digo, citando Evelyn Waugh. Não que saiba quem
é Evelyn Waugh, mas conhecer a fonte de uma citação é o que conta. —
Quando se desvanece, a palavra está já permanentemente impressa na minha
memória.
— Eu tenho algumas palavras que gostaria de escrever no teu braço — diz
Jacqui.
Quando chegamos ao portão do meu condomínio, vejo que este está
bloqueado por uma espécie de barricada; mais um sinal do quão
profundamente a crise o afetou. Deve ter sido concebido por um comité,
porque é uma barreira bastante patética. Como algo que os castores poderiam
ter erigido se tivessem polegares oponíveis e imensa força na parte superior
do corpo.
— Já me tinha esquecido disto — diz Jacqui.
— Talvez possamos passar-lhe por cima — sugere o ruivo psicótico. —
Esta pickup tem o chassis bastante alto.
— Porque havemos de arriscar danificar a pickup do tio dela? — pergunto.
— Saímos e desmontamos a barricada.
É, na verdade, o único curso de ação razoável, mas, ao dizê-lo primeiro,
fico alguns centímetros mais perto de uma posição de liderança.
Todos saímos para desimpedir o caminho até ao portão. Não sou tão eficaz
como gostaria de ser, contudo, e Jacqui repara.
— O que se passa, Roycroft? Levantar pesos é indigno de ti?
— Deixa-o em paz — diz Garrett. — Tem o ombro marado.
Sorrio e dirijo-lhe um encolher de ombros unilateral.
Tendo aberto um caminho suficientemente largo, regressamos à pickup.
Penso em reclamar para mim o lugar do morto, mas decido manter o statu
quo, e volto a entrar para a parte de trás, sentando-me ao lado de Alyssa. É
um bocadinho apertado atrás, mas, para ser sincero, não me importo.
— Olhem para aquilo — digo, quando passamos pelo portão. — Alguém
abandonou um BMW na beira da estrada.
— Sim — diz Jacqui. — Que idiotas.
À medida que nos afastamos de Dove Canyon, aproveito o momento para
realizar uma avaliação mais aprofundada dos meus companheiros de viagem.
Parece ser Alyssa quem toma as decisões, embora Jacqui queira ser ela a
tomá-las. Depois há o irmãozinho de Alyssa, que me defendeu no portão, por
isso acho que já o conquistei. E há o miúdo maluco. Ele é a parte desta
equação que eu gostaria de ver cancelada. Conheço o tipo. Furioso, sádico.
Sociopata. Provavelmente desistiu da escola e está a caminho de se tornar um
criminoso de carreira. Do tipo traficante de drogas. Sim. O tipo de rapaz que
espanca escuteiros só para se divertir.
Não vou sequer tentar ganhar a sua confiança. Por ora, preciso de me
concentrar em Jacqui. Tento decifrá-la. Muitas pessoas, provavelmente,
acham que é hispânica, devido à sua tez, mas não é. A sua entoação e
linguagem corporal apontam noutra direção. Os olhos, a forma da sua testa
parecem mais europeus. Ela apercebe-se de que é observada pelo retrovisor,
por isso não recuo.
— Italiana? — pergunto, num palpite aleatório.
— Grega — responde ela. — Mas não percebo o que isso tem a ver
contigo.
— Greco-romana, então — digo. — Não estava completamente errado. —
Depois acrescento: — Tens um lado clássico. Se a Vénus de Milo tivesse
braços, parecer-se-ia contigo.
— Se a Vénus de Milo tivesse braços, dava-te umas palmadas — responde
ela.
— Então e nós? — pergunta o irmão de Alyssa.
— Garrett, nem penses nisso — diz Alyssa. — Nunca ninguém acerta.
Ainda assim, Garrett espera que eu tente. Estou num terreno incerto,
porque, tendo em consideração a natureza volátil da nossa sociedade, se errar,
é provável que ofenda alguém.
— Calculo que seja, acima de tudo, europeu, com um toque de algo um
pouco mais exótico…
Alyssa fica impressionada.
— Isso… não está completamente errado.
Então, Garrett intervém:
— Somos um quarto holandeses, um quarto canadianos, do lado francês,
um quarto jamaicanos e um quarto ucranianos!
— Um excelente cadinho! — digo. — Aquilo a que o meu pai chamaria
«um estufado cheio de sabor». — Na verdade, o meu pai chamar-lhes-ia
«rafeiros», mas ele consegue ser um idiota. É alguém em relação ao qual
gostaria cada vez mais de degenerar. — Seja como for — digo —, sempre é
uma genealogia melhor do que a do vosso amigo viking.
— Não somos escandinavos — riposta Kelton. — Somos escoceses e
ingleses. Um dos meus antepassados veio para a América no Mayflower.
— A sério? — pergunto. — Ratazana ou barata?
É algo que me sinto em segurança para dizer, porque Alyssa está entre nós
— embora ele me possa fazer pagar por isso mais tarde, quando ninguém
estiver a olhar. Mas faz Garrett rir, e o riso de Garrett faz Alyssa sorrir, por
isso vale a pena o risco. Com exceção de Mr. Mayflower, começo a sentir-me
em casa com este pequeno grupo. Dizem que as experiências comunais
intensas são capazes de criar amizades duradouras. Acho que há aqui uma
verdadeira oportunidade.
— Então e tu? — pergunta Alyssa.
— Não faço ideia — digo-lhe. — Sou adotado.

Enquanto conduzimos, a desolação à nossa volta faz com que seja difícil
mantermo-nos animados. Por todo o lado, as coisas parecem tão desesperadas
quanto no meu bairro. Pelo menos as pessoas aqui não têm disenteria, penso
— mas se «não ter disenteria» é onde colocamos a fasquia, então esta está
bastante baixa.
O moral é tudo em tempos difíceis — é a única coisa que pode impedir o
stresse de se tornar tóxico —, mas o moral não acontece simplesmente.
Começa com a gestão e vai escorrendo até às bases. Vejo que é
responsabilidade minha ignorar o vazio das ruas, os semáforos que não
funcionam e o ocasional conjunto de mortos-vivos. Não podemos ficar presos
a esse tipo de coisas. Se as minhas decisões refletirem esta realidade atroz,
como poderão as coisas melhorar? Apercebo-me de que este grupo precisa de
mais do que um líder competente. Precisam de um herói. Decido fazer os
possíveis para me mostrar à altura das circunstâncias.
INSTANTÂNEO 1 DE 2: CH-47D CHINOOK

Alyce Marasco não é nova nos céus, mas nunca antes voou no seu
helicóptero como parte de uma equipa de emergência. No entanto, agora que
a lei marcial foi declarada e a guarda nacional ativada, Alyce foi chamada
para levar água potável aos centros de evacuação.
Como toda a gente, só tarde se apercebeu de que a crise, de um ponto de
vista humano, é tão grave quanto qualquer desastre natural, devido ao número
de pessoas afetadas e à posição desesperada em que todas elas se encontram.
Sim, houve avisos — anos deles, de facto —, mas a maior parte dos anúncios
de serviço público sobre poupar água era muito diferente de um fechar
absoluto da torneira. Não houve nenhum aviso de que a água simplesmente
seria fechada.
Alyce visita frequentemente um tio com demência que vive num lar em
Tustin, uma comunidade localizada mesmo no centro da área afetada. E,
como Alyce não foi capaz de confirmar que este terá sido evacuado em
segurança, dá por si a desviar-se ligeiramente da sua rota e a voar na direção
do lar. Embora não seja capaz de perceber grande coisa a partir daquela
altitude, precisa de ter uma ideia das coisas; uma imagem panorâmica que
possa, pelo menos, conceder-lhe algum conforto. Analisa as ruas em baixo,
sem saber ao certo o que procura. Lembra-se dos relatos de como, durante os
desastres, os lares estão entre os mais afetados. Não atraem os recursos nem
as atenções dos hospitais e, muitas vezes, têm graves problemas de falta de
pessoal, deixando tais espaços mal equipados para lidar com um dia normal,
quanto mais com uma crise.
Há páginas de Facebook de dezenas de bairros, onde as pessoas
começaram a indicar que foram evacuadas em segurança, e que têm acesso a
água — porque essas duas coisas não ocorrem necessariamente em
simultâneo. Essas páginas tornaram-se, na verdade, o registo mais correto dos
evacuados. Ela tem estado à procura de pessoas que conhece, mas ainda não
encontrou nenhuma — muito menos o tio, para quem as redes sociais
significam estar sentado numa sala repleta de gente, a ler o jornal.
O bairro do tio parece-se com todos os outros. Sem vida, com exceção dos
centros de evacuação sobrelotados, a transbordar, que parecem formigueiros
separados por intervalos de oito quilómetros. Os locais sem vida parecem
falsos a partir da sua posição aérea, como se fossem uma miniatura com
árvores de plástico ou um modelo arquitetónico em feltro. Não pode dar-se ao
luxo de procurar o edifício específico, e, mesmo que pudesse, o que faria?
Quando o copiloto realça que estão ligeiramente fora da rota, ela ajusta a
direção e esquece o assunto.
Mais à frente está uma daquelas fervilhantes bolsas de vida. Milhares de
pessoas reunidas no parque de estacionamento de um centro comercial. A
partir daquela altitude, assemelha-se ao aspeto que poderia ter Coachella, ou
um qualquer outro festival de grandes dimensões — o que é perturbador,
porque o divertimento é a última coisa de que estas pessoas precisam, neste
momento.
Abriram um círculo enorme no parque de estacionamento. A multidão
afastou-se para criar uma pista de aterragem. Um heliporto improvisado para
o seu fornecimento vital de água.
Mas não há nada que Alyce possa fazer por estas pessoas.
Este não é o seu destino.
Não se trata sequer de um centro de evacuação oficial.
E, depois, é atingida por uma torrente de emoções, uma turbulência interna
que a abana até ao seu âmago. Começa a fazer contas: por aquela altura
existem cerca de duzentos abrigos de evacuação. Mesmo que só metade da
população tenha recorrido aos abrigos, isso significa que quase dois milhões
de pessoas estarão presentes, à espera de água. São sessenta mil pessoas em
cada abrigo. E, no entanto, os helicópteros de serviço só conseguem fornecer
água a cerca de seis mil pessoas por abrigo, por dia.
O que significa que nove em cada dez pessoas não receberá a sua água
hoje.
E isso são apenas os centros oficiais.
As lágrimas começam a turvar a sua visão, mas ela limpa-as. Talvez a água
no seu helicóptero seja apenas uma gota no oceano, mas vai ajudar alguém,
algures. E, quanto aos outros, não há nada que possa fazer.
E, por isso, passa por cima do parque de estacionamento apinhado, mas
não antes de rezar uma oração silenciosa pelas almas lá em baixo.
INSTANTÂNEO 2 DE 2: TARGET

Seis.
Foi o número de helicópteros que voaram bem alto por cima da cabeça de
Hali desde que chegou ao parque de estacionamento da Target, ontem. Todos
dizem que os helicópteros militares estão a transportar água. Vão aterrar ali e
salvar toda a gente. É por isso que os «organizadores» estão constantemente a
abrir espaço para que os helicópteros possam aterrar. É por isso que todas as
famílias têm alguém à espera, numa longa e serpenteante fila — só para o
caso de haver algo para o qual seja preciso formar uma fila.
Ouve-se o som de outro helicóptero, vindo de norte. Todos erguem os
olhos, em antecipação. O som cresce. A sua sombra cruza o parque de
estacionamento. É o mais próximo que chega. O som do seu motor
desvanece-se quando desaparece para sul. E vão sete.
— Não vamos receber as entregas militares — diz uma mulher ao lado
dela, para quem queira ouvir, ou talvez só para si mesma. — Mas os outros
helicópteros… estão a acorrer a pontos não oficiais. — Ela acende um cigarro
para se consolar. — De qualquer maneira, há por aí mais helicópteros não
militares.
Onde?, quer Hali perguntar-lhe. De que helicópteros está ela a falar?
Decerto nenhum que seja suficientemente grande para transportar água. A
maior parte dos helicópteros pequenos mal consegue transportar uma mão-
cheia de passageiros, e a água é pesada. Será que esta mulher acredita mesmo
que uma qualquer empresa de passeios turísticos lhes vai enviar água?
Ela volta para junto da mãe, que assumiu uma posição na fila, apenas cerca
de trinta pessoas a contar da frente, com direito a cadeira dobrável e tudo.
Não conseguiu aquele lugar por terem ido mais cedo, mas por ter visto uma
amiga na fila, quando chegaram, e se ter oferecido para lhe guardar o lugar
quando ela foi à casa de banho. A amiga abandonou, entretanto, o parque de
estacionamento, na esperança de encontrar uma situação melhor, deixando à
mãe de Hali o seu lugar. Foi sempre assim com a mãe. Ela arranja sempre
maneira de conseguir o que quer.
— Sacanas — murmura a mãe de Hali num sussurro, enquanto esta se
senta no chão ao lado dela. Não há qualquer explicação quanto a que sacanas
se refere. É óbvio. Os sacanas nos helicópteros que voam por ali e todos os
que ignoram aquele parque de estacionamento; os deuses da água, que
lançam os dados para decidir para onde ela irá.
— O próximo será para nós — diz-lhe Hali.
Oferece a Hali um ligeiro sorriso. Ambas sabem que não passa de uma
esperança ilusória que se aproxima do delírio, mas naquele momento é tudo o
que têm. Não têm qualquer voto na matéria. A água TEM de vir até elas,
porque elas não irão a parte nenhuma. A mãe NÃO abandonará o seu lugar na
fila.
Nos primeiros dias depois do Fechar da Torneira, elas tinham água. A mãe
arrancara um pack das mãos de uma das colegas da equipa de futebol de Hali,
na Costco.
— Quem vai ao ar perde o lugar — dissera a mãe, quando chegaram à
linha de caixa. — Que sirva de lição de vida.
Mas havia, claramente, lições de vida que a mãe não recebera. Por
exemplo: «Não laves o cabelo quando não tens mais do que água
engarrafada» e «Evita o jogging matinal quando o suor é o teu inimigo»; e,
talvez, o mais óbvio de todos: «Deixa que as plantas morram.» O pack de
águas durou apenas dois dias.
Na rua, do outro lado do parque de estacionamento, encosta um pequeno
Volkswagen vermelho. O tipo de viatura que talvez tivesse sido visto em
Woodstock. Um monovolume construído antes de existirem monovolumes.
Ainda ontem ali esteve. Duas vezes. Hoje, três raparigas, mais ou menos da
sua idade, talvez um pouco mais velhas, saem. Ela não consegue ver o
condutor, mas sabe que é um homem. Sabe-o instintivamente.
— Hali, querida — diz a mãe, tentando proteger os olhos do sol —, porque
não vais para a sombra, onde está mais fresco junto à parte lateral do
edifício? Talvez possas ouvir o que as pessoas estão a dizer, talvez consigas
obter informação.
— O que as pessoas dizem é inútil — realça Hali.
— Em grande medida, sim, mas, de quando em vez, poderá aparecer
alguém a quem valha a pena dar ouvidos.
Ela odeia deixar ali a mãe, a suar, mas foi-lhe atribuída uma missão, por
isso vai, não deixando de pensar nas coisas que as duas tiveram de fazer, nos
últimos dias, para chegar até ali.
Quando ainda estavam em casa, a mãe de Hali namoriscou com Mr.
Weidner, um vizinho que se divorciara no ano anterior. A verdade é que a
mãe de Hali sempre namoriscara com ele. Mas, quando se apercebeu de que
ele tinha água, namoriscou ainda um pouco mais. Ele foi educado e, embora
não tivesse correspondido aos seus avanços, ofereceu-lhes uma garrafa de
água.
— Missão cumprida — dissera a mãe quando chegaram a casa, embora
tivesse dificuldade em olhar Hali nos olhos ao dizê-lo.
Na manhã seguinte, Hali seguiu o exemplo de sobrevivência da mãe e
ensinou algumas fintas ao miúdo irritante que morava na rua em frente, e que
não conseguia suportar, mas cuja família se dizia ter água. No final, a mãe do
miúdo deu a Hali um pequeno copo com água. Hali tinha suado mais do que
aquilo, só a brincar com o fedelho, mas era melhor do que nada. Levou
metade do copo à mãe, que o recusou, e insistiu que Hali o bebesse todo.
Agora, enquanto esperavam impotentemente por ajuda, ocorre-lhe sem
parar uma fatela citação inspiracional:
Tens de fazer algo que nunca fizeste, para ter algo que nunca tiveste.
Foi algo que um treinador de futebol lhe disse a certa altura da sua vida.
Embora pirosa, nunca a esqueceu. Presume que se aplique não apenas a
coisas que nunca teve, mas a coisas que teve e perdeu. A coisas de que
continua a necessitar desesperadamente.
No lado da Target imerso nas sombras, Hali depara-se com uma amiga,
Sydney, que é famosa por falar imenso mas não dizer absolutamente nada.
— Isto é de loucos ou quê? — diz Sydney. — É, tipo, mas que raio, certo?
Poupa-me ou algo assim! Mas suponho que seja o que é.
— A quem o dizes. — Normalmente, é a melhor maneira de lhe responder.
Depois, Sydney inclina-se na sua direção e diz:
— Queres ver uma coisa?
Ela abre sub-repticiamente uma bolsa da sua mochila e revela uma
pequena garrafa de água. Vê-la deixa Hali sem fôlego. De súbito, Sydney é a
sua melhor amiga para sempre.
— Anda, deixo que bebas um gole — sussurra-lhe.
Afastam-se na direção de uns arbustos, e Sydney tira a garrafa da mochila,
protegendo-a para que ninguém a possa ver, como se fosse algo ilegal, e
deixa que Hali beba um gole. O pequeno gole transforma-se numa enorme
golada antes de Sydney afastar a garrafa. Ela não é louca nem nada. Deve
saber como é difícil parar de beber quando começamos.
— Onde é que arranjaste isso? — pergunta Hali. — Não a tinhas contigo
ontem.
Sydney aponta para o lado, e Hali vira-se, vendo que está a apontar para o
pequeno monovolume vermelho da Volkswagen. O condutor está agora
encostado a ele, a fumar. Tem 20 e muitos ou 30 e poucos anos. Rabo de
cavalo. Fartas patilhas. Calças de ganga rasgadas que não parecem uma
afirmação de moda.
— Ele está a dar água — diz Sydney. — Mas é algo esquisito em relação a
quem a entrega. Quer dizer, não pode dar a toda a gente, sabes? — Depois,
Sydney dá uma gargalhada nervosa que revela a realidade nua e crua de que
não existe água gratuita, e Hali apercebe-se porque não viu Sydney até agora.
É uma das três raparigas que acaba de ver sair do monovolume vermelho.
— Ele não é mau nem nada — diz Sydney. — Até me deu uma garrafa
para levar para a minha família…
Hali observa enquanto uma rapariga bonita que não conhece entra no
monovolume. O tipo do rabo de cavalo segura a porta aberta para ela,
fingindo ser um cavalheiro e não um tipo nojento. Depois é abordado por um
rapaz que Hali conhece da escola. Um nadador. O homem do rabo de cavalo
pensa na questão, depois deixa-o entrar também, porque, afinal, porque não?
Hali vira-se para Sydney.
— Obrigada, mas não obrigada — diz ela, e tenta afastar-se com
indignação suficiente, mas Sydney agarra-lhe o braço.
— Não sejas parva, Hali. Ainda não percebeste? Não virá ninguém para
ajudar as pessoas aqui! Provavelmente vão morrer todas de sede. Não queres
ser uma delas!
Mas Hali continua sem poder acreditar nisso. Aquelas coisas não vão
acontecer ali. Mas Sydney não a larga. Parece desesperada.
— De que te interessa o que faço? — diz Hali, de repente. — Tens a tua
água, porque não me deixas em paz?
E Sydney revela, por fim, o seu verdadeiro motivo.
— Ele disse que me dava outra garrafa se eu lhe levasse alguém. Alguém
como tu…
Hali liberta o braço e corre, sem olhar para trás.
Mas, antes que chegue junto da mãe, ouve-se um som lá em cima. Um
helicóptero! E este é mais ruidoso — mais próximo do que qualquer outro!
Todos se levantam, olhando para o céu como uma multidão ingénua que
aguarda pelo êxtase.
O helicóptero surge sobre as copas das árvores. Não é grande. É um dos
helicópteros não militares de que a mulher estava a falar. Traça círculos sobre
a multidão. Continua a sobrevoá-la. À terceira passagem, Hali apercebe-se de
que não passa de um helicóptero noticioso. Apareceu para mostrar ao mundo
o drama da crise e o verdadeiro significado do desespero. Hali pergunta-se se
a equipa noticiosa lá em cima se apercebe, sequer, da esperança que estão a
estilhaçar com a sua mera presença.
O helicóptero passa mais uma vez e, depois, parte. As pessoas continuam
de pé, recusando-se a acreditar que partiu. Enquanto ficarem de pé, ele
poderá voltar. Poderá. Poderá.
— Sacanas! — diz a mãe.
Hali olha para ela. Olha para o passeio. Olha de novo para a mãe.
Tens de fazer algo que nunca fizeste, para ter algo que nunca tiveste,
pensa Hali. Ou algo que poderás nunca mais voltar a ter.
— Eu volto — diz à mãe. — Prometo.
Depois, dirige-se ao pequeno monovolume vermelho da Volkswagen, onde
o homem com o rabo de cavalo lhe abre a porta. Como um cavalheiro.
22) HENRY

O segredo para uma colaboração em grupo de sucesso é um líder dinâmico e


recetivo, e a chave para se ser um bom líder é a observação atenta e a
manipulação subtil — tão subtil que ninguém saiba que está a ser
manipulado. Agora que penso nisso, essa também é a chave para um governo
de sucesso.
Enquanto conduzimos mantenho o silêncio, algo que é contra a minha
natureza, mas que é necessário de momento. Observo. Escuto. Tomo notas
mentais.
— Portanto, já temos a nossa tração às quatro — diz Jaqui, e vira-se para o
ruivo psicótico ao lado dela. — Para onde queres que conduza?
— Já te disse — diz Kelton — Angeles National Forest.
— Então, como. É. Que. Vamos. Para. Lá? — pergunta Jacqui com uma
vaga, mas persistente, ameaça no seu tom condescendente.
— Não tenho a certeza, só fui duas vezes ao refúgio, mas sei exatamente
onde fica no mapa.
Alyssa pega instintivamente no telemóvel, mas recebe uma mensagem de
erro quando tenta abrir a aplicação.
— Raios — diz ela. — O Maps não está a funcionar.
— Então usa o Waze — sugere Garrett.
Embora eu tenha vontade de rir daquilo, como faz Jacqui, digo num tom
simpático:
— Acho que aquilo que a tua irmã quer dizer é que não há serviço. Mas
talvez seja possível encontrar aqui um mapa de papel. Ainda há pessoas que o
usam, acreditem ou não.
— Certo — diz Alyssa —, e o nosso tio talvez seja uma dessas pessoas.
Sorrio. Um ponto para mim.
Não há nada no porta-luvas senão o livrete, papéis de pastilhas elásticas e
um rolo para apanhar pelos. Os compartimentos nas portas não nos oferecem
mais do que uma lata de Red Bull vazia, uma caneta que está a largar tinta e
mais papéis de pastilha elástica. E depois Kelton verifica o compartimento
central entre os dois bancos da frente. Não há nenhum mapa, mas retira um
saco para sandes com um fecho zip, e um conteúdo questionável.
— Mas que…? — Atira-o para Alyssa como se fosse uma batata quente.
Alyssa examina-o. Não restam dúvidas: é um saco de erva. Ela vira-se para
o irmão e dizem ao mesmo tempo:
— Tio Canábis.
— Bem — diz Jacqui —, podemos morrer de sede, mas agora não vamos
querer saber.
Ouvir falar em sede leva Garrett a abrir o cantil, apenas para descobrir que
está completamente seco.
— A floresta fica para norte de Pasadena, certo? — pergunto. — Podemos
apanhar a A-Duzentos e Quarenta e Um até à A-Noventa e Um e a A-
Cinquenta e Sete até à A-Duzentos e Dez. Isso leva-nos para mais perto.
— Isso não irá acontecer — diz Jacqui. — As autoestradas estão mortas.
Em ambos os sentidos. Todas elas.
— Há outras maneiras de lá chegar — diz Kelton. — Caminhos não
tradicionais… mas precisamos de um mapa, para começar.
Subitamente, lá em cima, um helicóptero militar passa por nós,
ruidosamente e a baixa altitude. Passamos por um camião militar que segue
em sentido contrário ao nosso, mas, para além disso, existem poucos veículos
na estrada. Em seguida, mais à frente, deparamo-nos com um bloqueio —
também ele militar. Soldados que envergam camuflados apontam para a
esquerda e gritam para nós:
— Esta estrada serve apenas para assuntos oficiais! Virem à esquerda! Os
sinais conduzir-vos-ão ao centro de evacuação!
— Não lhe dês ouvidos — diz Kelton. — O último sítio onde queremos
estar, neste momento, é o centro de evacuação.
— O que sugeres que faça? — pergunta Jacqui. — Que abra caminho
através do bloqueio? Já te apercebeste, sequer, do tamanho das armas que
empunham?
— Vira à esquerda — digo, antes que Alyssa o consiga dizer. — Faz o que
ele diz, por agora, até encontrarmos uma maneira de contornar os bloqueios.
— E embora Jacqui, claramente, não queira receber ordens minhas, tem de o
fazer. Não existe outra escolha viável a não ser seguir e reforçar a minha
liderança benevolente.
— Concordo — diz Alyssa. Um ponto para mim.
Viramos à esquerda, seguindo pela El Toro Road. Há agora mais alguns
veículos na estrada connosco e mais bloqueios. Parece que todo o tráfego
civil está a ser redirecionado para esta estrada.
— Devíamos estar a seguir na direção oposta — diz Kelton.
— Não te preocupes — digo-lhe, forçando um tom de irmão mais velho.
— Para darmos dois passos em frente, por vezes é necessário dar um passo
atrás.
— Onde é que foste buscar isso, ao cartaz motivacional no gabinete do teu
orientador, Roycroft? — diz Jacqui. — Então e este? Por vezes na vida
estamos simplesmente lixados.
— Muito bem, podemos parar com essa atitude? — diz Alyssa. — Não
está a ajudar nada.
É o pano de fundo perfeito para o que vou dizer a seguir.
— Não faz mal, Alyssa — digo, com uma infinitude de compreensão. — A
Jacqui está apenas stressada e assustada. É assim que ela lida com a situação.
— Não te atrevas a analisar-me! — vocifera ela, o que simplesmente prova
que tenho razão.
Alyssa olha de relance para mim, e ofereço-lhe um pequeno sorriso e um
encolher de ombros. Em troca, ela oferece-me um olhar de comiseração, de
sobrancelhas erguidas — que fica a um passo de um sorriso amigável. Uma
excelente reviravolta nos acontecimentos! Admito que ela continua na
liderança, mas começa a ver-nos a ambos como uma equipa. Trata-se de um
progresso excelente em direção a uma dinâmica sustentável. A partir do
momento em que começar a transferir para mim o comando, sei que acabarei
no proverbial lugar do condutor, independentemente de quem esteja, de facto,
a conduzir.
Agora há mais veículos na estrada à nossa volta, e todo o trânsito está a ser
desviado para a direita. Começo a aperceber-me de que entramos num funil.
Um funil que conduz diretamente à secundária El Toro, onde estabeleceram
um centro de evacuação oficial. Acho que nunca vi tantas pessoas num só
sítio. Multidões nos parques de estacionamento, multidões nos courts de ténis
e nos campos de futebol e de basquetebol — com exceção de um dos campos,
que está a ser usado como heliporto. O helicóptero militar que vimos antes
está ali parado, a descarregar água, por detrás de uma barreira de soldados
armados.
À nossa frente, um soldado aponta para que encostemos à beira da estrada,
juntamente com os outros veículos.
— Não podemos permitir que nos arrebanhem e encurralem como ovelhas
— diz Kelton. — É assim que tudo começa. Este é o início do fim.
— Uau, isso é sombrio — comenta Jacqui, o que quer dizer muito, vindo
dela.
Mas Kelton mantém-se firme.
— Temos de lhes dizer que nos perdemos. Depois viramos para trás antes
que seja demasiado tarde.
Um soldado bate na janela de Jacqui, e ela não tem outra escolha senão
abri-la.
— Estaciona aqui — diz ele. — Depois segue a multidão.
— Estamos aqui por engano — diz Jacqui, atenta ao aviso de Kelton.
— Sim — acrescenta Kelton. — Temos para onde ir.
O soldado não acredita.
— Então porque não estão já lá?
E depois Garrett, dirigindo-lhe os seus melhores olhos de cachorrinho, diz:
— A minha avó! Por favor, temos de ir ter com a minha avó! Ela está à
nossa espera!
O miúdo é esperto, tenho de reconhecer.
E depois acrescenta:
— Ela recusou-se a deixar os cães — o que é a cereja perfeita no topo da
sua história. Este miúdo devia candidatar-se a um lugar público. Raios, até eu
lhe daria o meu voto não informado.
Depois, o soldado diz:
— Dá-nos a morada dela. Mandaremos alguém para a ir buscar.
Aquilo deixa Garrett completamente mudo, e, antes que qualquer um de
nós consiga impedir que o pequeno balão de ficção rebente, o soldado
inclina-se para o interior, olha para Garrett e diz:
— Importas-te de me dizer o que é isso?
Olhamos todos para o saco de erva no colo de Garrett. Este diz:
— Oh, merda! — E mais uma promissora carreira política rebenta em
chamas.
Os outros falam agora, mas tudo o que dizem só piora as coisas.
— Não é o que está a pensar! — diz Alyssa.
— Vinha com o automóvel! — diz Kelton.
— São só orégãos — diz Jacqui.
As covas raramente são tão profundas.
— Muito bem, saiam da carrinha! — diz o soldado, usando a sua voz de
campo de treino que não aceita um «não» como resposta.
— EU DISSE SAIAM! AGORA!
E por isso apressamo-nos a fazer o que ele diz, porque ser apanhado com a
mão na massa é ser apanhado com a mão na massa, e isto é a lei marcial, e o
cartaz motivacional de Jacqui é mais verdadeiro do que qualquer outra coisa
neste momento. Estamos lixados, e não consigo ver uma saída.
Ele tira as chaves a Jacqui, deixando-nos sem rodas.
— Virem-se! — exige, acenando com a arma. — Mãos contra o veículo.
Eu tento, mas faço uma careta.
— EU DISSE LEVANTEM AS MÃOS!
— Não posso — digo-lhe. — Desloquei o ombro.
— É verdade — diz Kelton. — Fui eu quem lho deslocou.
— Mantenham as mãos onde as consiga ver — diz ele, felizmente sem
forçar o meu braço, de maneira a fazê-lo saltar de novo. Mas agora estou
assustado. Verdadeira e sinceramente assustado, porque vejo que há outros
elementos algemados e sentados no passeio. Arruaceiros ou desordeiros, ou
qualquer outro tipo de personagens desagradáveis que exigiam
encarceramento, e Deus sabe para onde é que eles vão sob a lei marcial.
Tento manter a calma, porque a liderança exige, pelo menos, o fingimento da
graciosidade sob pressão.
E depois Alyssa abre a boca — e aquilo que dela sai é absolutamente
mágico.
— Então vão prender um bando de miúdos por terem erva? Agora é legal,
sabe?
— Não num veículo em movimento — diz o soldado, ao mesmo tempo
que nos começa a revistar. — E vocês são todos menores.
Mas Alyssa não se deixa demover.
— A sério? É essa a vossa maior prioridade no meio desta crise?
— Silêncio! — ordena o soldado. Apalpa Kelton, e está na hora de passar
para Alyssa.
— Isto é intimidação física e psicológica de menores: nem mesmo a lei
marcial o permite! — grita ela. — Tenho a certeza de que a minha prima do
LA Times vai adorar esta história!
E, milagrosamente, ele recua. Mas não antes de levar o saco da erva.
— Vou confiscar isto! — diz ele. — Agora ponham-se a andar! Juntem-se
à fila como todos os outros!
E assim, sem mais, ficamos livres. Com tantas pessoas para processar,
suponho que prender-nos não valia a pena o trabalho. Apressamo-nos para
longe do soldado, deixando para trás todas aquelas pessoas desamparadas,
algemadas, junto ao passeio, e juntamo-nos à multidão que avança em
direção à escola, partilhando entre nós um suspiro de alívio.
— Aquilo — digo a Alyssa — foi de mestre. — E nem sequer estou a dar-
lhe graxa. Estou a falar a sério. — Salvaste-nos o couro, ali atrás… e nem
tiveste de mentir!
— Na verdade — diz Alyssa —, não tenho nenhuma prima que trabalhe
para o LA Times.
E, de súbito, penso que talvez esteja apaixonado.
23) ALYSSA

Talvez, penso, talvez isto não seja mau. Agora que o Fechar da Torneira está
a ser levado a sério — agora que todos estes recursos estão a ser mobilizados
—, ficará tudo bem. Não teremos de realizar a viagem para aquele misterioso
refúgio, que sempre me soou bastante esquisito.
Mas Kelton é como um animal apanhado numa armadilha e está preparado
para roer o próprio pé para escapar. Estaca, recusando-se a continuar a andar,
erguendo-se no meio do caminho. Nós os quatro temos de lutar contra a
corrente de pessoas, para não sermos simplesmente arrastados por ela.
— Não podemos ficar aqui! — insiste ele.
— Mas já cá estamos — diz-lhe Jacqui, ripostando. — Lida com isso.
Tendo em consideração tudo aquilo por que Kelton passou, acho que ele
precisa de mais do que uma abordagem de «amor duro», da parte de alguém
que não o ame de verdade, pelo que tento ser um pouco mais gentil.
— Talvez isto seja uma coisa boa — digo-lhe. — Nós não somos
propriamente prisioneiros… não nos estão a obrigar a ficar se não quisermos.
E, quem sabe, talvez nós queiramos ficar.
Mas, agora que aqui nos erguemos como pedregulhos contra o fluxo
implacável das pessoas que entram no centro de evacuação, não parece ser
uma grande escolha.
— Talvez a mãe e o pai estejam aqui — grita Garrett sobre o ruído das
hélices do helicóptero. — Embora eu ache que, se aqui estivessem, já teriam
saído para nos irem buscar; ou talvez, como o soldado ia fazer pela nossa avó
imaginária, tivessem enviado alguém à nossa procura, mas já tivéssemos
partido.
— É possível — digo a Garrett, porque não quero destruir-lhe as
esperanças.
E depois Jacqui grita:
— Onde raio está o Roycroft?
Olho para trás de nós e ele não está lá. Desapareceu por completo.
— Esqueçam-no — rosna Kelton. Alguém choca contra ele e Kelton quase
perde o equilíbrio. — Se ele quiser ficar aqui deixem-no, mas nós não
podemos!
— Para! — grita Jacqui. — Já é suficientemente stressante quando tu não
te estás a passar.
Kelton cerra os dentes, a raiva a crescer.
— Vocês não fazem ideia, pois não? — Ele aponta para o campo de
futebol que se ergue no cimo de um pequeno monte. — Acham que aqui não
há prisioneiros? Olhem bem para aquela vedação! Cheguem-se ali e
perguntem às pessoas do outro lado há quanto tempo estão ali à espera. Vão!
E, só para o acalmar, é o que faço.
— Volto já — digo. — Fiquem juntos. — E abro caminho através da
multidão, dirigindo-me até à elevação relvada. Quando a subo, fico chocada
com o quão apinhado está o espaço para lá dela. As bancadas, as pistas, o
campo. Nem sequer se consegue ver a relva: tudo são pessoas. Há chapéus de
chuva e toldos montados para as manter à sombra, mas não são suficientes.
A vedação é bastante alta. Todos os campos de futebol das escolas
secundárias têm vedações. Existem para impedir que os fãs de equipas
opostas se envolvam em confrontos uns com os outros, e para tentar manter
ao longe as pessoas que não pagaram bilhete. Hoje, a cada portão encontram-
se diversos soldados armados. Por muito que odeie admiti-lo, Kelton tem
razão. No presente, aquelas vedações têm por único objetivo manter as
pessoas no seu interior. Colocaram de quarentena os zombies da água.
Milhares deles.
— Desculpem — chamo, através da vedação, tentando obter a atenção de
alguém.
Uma mulher ossuda, de cabelo castanho comprido e desgrenhado,
aproxima-se de mim.
— Viste? — pergunta. — Viste para onde a levaram?
Mas eu não tenho a certeza do que está a perguntar.
Ela fica impaciente.
— A água! Viste para onde a levaram? Todos vimos o helicóptero, mas
para onde levaram a água?
Eu vi-os a descarregarem-na, mas não sei para onde a levaram. Há tantas
áreas vedadas em redor desta escola que pode ter ido para qualquer lado.
— Não — respondo-lhe —, lamento, mas não.
Ela bate com a mão contra a vedação de elos e esta chocalha. Morde o
lábio. Semicerra os olhos e começa a pestanejar, e apercebo-me do que está a
fazer. Está a chorar. Está a chorar, mas já não lhe restam lágrimas.
Por fim, coloco-lhe a pergunta que me levou ali:
— Há quanto tempo estão aqui?
— Chegámos ontem à tarde — diz-me ela. — Este é apenas o terceiro
helicóptero a chegar desde então, e a fila nunca se move! Ainda não vimos
água nenhuma. Tens de descobrir para onde é que está a ir!
E depois ouço Jacqui atrás de mim.
— Ginásio — grita ela por cima da multidão —, estão a levá-la para o
ginásio! Também lá estão muitas pessoas.
A mulher agarra desesperadamente a vedação com tanta força que as
pontas dos dedos ficam brancas.
— Têm de nos arranjar alguma! Vão fazer isso, não vão? Vão até ao
ginásio e vão-nos trazer alguma daquela água?
Não há nada que eu lhe possa dizer.
— Por favor, promete-me que o farás. Por favor!
— Alyssa, vamos.
— Lamento… — digo. — Eu… eu…
Então, Jacqui coloca-se à minha frente, impedindo-me de continuar a ver a
mulher, e faz-me recuar, descendo o monte.
— Não te envolvas — diz-me ela. — Não irá ajudar ninguém, e ainda
menos a ti.
Penso na caixa de ÁguaViva na parte de trás da pickup, escondida por
baixo de um cobertor. Será que ainda lá está? Terá sido levada? Deveria abri-
la e começar a lançar garrafas por cima da vedação? Mas depois lembro-me
do que aconteceu ontem, em casa de Mr. Burnside. E estas pessoas têm ainda
mais sede.
Não te envolvas.
Como é que nos podemos limitar a virar costas? E, no entanto, faço-o.
Tenho de o fazer.
— Então, o que descobriste? — pergunta Kelton, quando voltamos para
junto dele. Já sabe a resposta, tendo em consideração a expressão estampada
no meu rosto.
24) HENRY

Eu não tinha planeado deixar os outros — estava simplesmente demasiado


atarefado a observar, a assimilar a situação à minha volta e, quando a fila
divergiu, segui no sentido oposto. Mas não faz mal. Sei onde estão os outros,
e, embora sob quaisquer outras circunstâncias estivesse melhor sozinho,
começo a pensar que vale a pena manter a nossa estranha irmandade; ou, pelo
menos, a parte dela que envolve Alyssa. Veremos.
Concentro-me na situação à minha frente. Existem oportunidades em todas
as circunstâncias — até numa circunstância tão complexa e perturbadora
quanto a que me rodeia… mas, à medida que assimilo tudo, vou tendo
dificuldade em ver qualquer oportunidade. Milhares de pessoas com sede.
Barris de água a serem transportados para o ginásio, com uma escolta
fortemente armada, e pessoas que tentam abrir caminho até esses barris, com
a angústia de uma pintura barroca.
O meu coração continua acelerado devido ao encontro com o soldado na
carrinha, mas tudo o que vejo o deixa pior. A fila em que estou impele as
pessoas em direção ao campo de basebol, mas vejo que para antes da entrada.
Também aquele campo está cheio. Que raio vão eles fazer com todas estas
pessoas?
À medida que a fila dá lugar a uma grande multidão que se move em
círculos, escapo-me. Há soldados por todo o lado, mas vários locais
permanecem sem guarda, e até agora não ouvi tiros, pelo que presumo que
não estão a disparar contra as pessoas que ficam fora das filas. Dirijo-me a
uma zona menos apinhada, mantendo o olhar fixo na entrada do ginásio e
naqueles barris de água. O meu pai sempre disse que, quando queremos ir a
algum lado onde não é suposto estarmos, devemos avançar como se
pertencêssemos àquele local e, nove em cada dez vezes, conseguimos entrar.
Mas tenho a certeza de que esta seria aquela décima vez. E então se conseguir
entrar? O que acontece depois? Serei apenas um entre milhares de pessoas à
espera de um gole daquela água. Isso não é uma oportunidade, é um negócio
que não leva a lado nenhum.
Ao dobrar a esquina, vejo de relance a piscina. Vazia. Levaram toda a água
das piscinas das escolas secundárias para usar noutros locais, antes de se
terem apercebido de que iam transformar algumas dessas escolas em centros
de evacuação. Não há limites para a falta de visão existente neste mundo.
Mas não é a falta de água na piscina que me perturba. É o que vejo à sua
volta.
São sacos de cadáveres. Não apenas um ou dois, mas pelo menos uma
dezena. E algo me diz que o seu número irá aumentar.
Muito bem. Muito bem. Isto já não tem graça. Muito bem. Muito bem.
Talvez nunca tenha tido. Muito bem. Muito bem. Há pessoas mortas.
Enfiadas em sacos. E o helicóptero parte, e não faço ideia de quando irá
regressar com água que possa impedir outras pessoas de acabarem naqueles
sacos. E nunca fiz xixi nas calças, e nunca farei, mas juro que fiquei muito,
muito perto.
— Hei! Tu! Não é suposto estares aqui!
Não preciso que mo digam duas vezes. Dou meia-volta, regressando ao
local onde as pessoas continuam a andar e a respirar. Kelton tinha razão. Não
podemos ficar aqui. E agora sei exatamente o que tenho de fazer. Esta vai ser
difícil — mas, se há alguém capaz de realizar um negócio que porá fim a
todos os negócios, sou eu.
25) ALYSSA

A fila para subitamente de avançar. Mais pessoas continuam a chegar atrás de


nós, e somos empurrados contra aquelas que estão à nossa frente. Todos
apertados como gado. Mantenho-me de mão dada com Garrett, só para ter a
certeza de que não seremos separados. São os soldados atrás de nós —
começaram a empurrar a multidão para abrir caminho na estrada, e depois os
autocarros escolares vão parando ali, como se fosse um dia de escola normal.
— A vossa atenção, por favor! — grita uma voz sobre uma buzina
sibilante. — Este centro de evacuação está completo. — O que é um
verdadeiro eufemismo. Não creio que estivesse equipado para lidar sequer
com uma fração das pessoas que aqui se encontram. — Estes autocarros irão
levar-vos para uma instalação suplementar.
— Onde? — grita alguém. — Para onde raio é que nos vão levar? — Mas
ninguém responde.
À medida que a parada de autocarros escolares continua a chegar, os
soldados abrem caminho para eles no parque de estacionamento. Estamos
todos desconfortavelmente próximos uns dos outros, e consigo cheirar o
hálito de toda a gente, o que não é particularmente bom. Kelton não precisa
sequer de se inclinar na minha direção para sussurrar ao meu ouvido:
— Não respondem porque não sabem — diz ele. — O mais provável é que
ainda estejam a tentar descobrir para onde hão de enviar os autocarros, mas,
seja para onde for, não será um centro de evacuação. Não têm tempo nem
homens suficientes para montar mais nenhum. Tudo o que podem fazer é
largar as pessoas em «instalações suplementares».
Jacqui tem os cotovelos espetados, tentando que ninguém invada o seu
espaço pessoal.
— Por que raio é que tens todas as respostas?
Ele não se dá ao trabalho de lhe responder. Em vez disso diz:
— Conheces o conceito de triagem social? Não? Porque eu conheço.
Numa emergência de massas, ajudas quem podes e levas aqueles que não
podes ajudar para fora do caminho. — Depois olha para o primeiro autocarro,
para onde as pessoas já sobem obedientemente. — Garanto-te que metade das
pessoas que sobem para aqueles autocarros irá morrer, porque, para onde
quer que sejam levadas, será para longe da água.
Ergo-me em bicos de pés e olho por cima da cabeça das pessoas, para
todos aqueles soldados que fazem avançar as manadas gigantescas. Um deles
ajuda gentilmente uma senhora idosa a subir para o autocarro. Não será
propriamente sua intenção matar alguém, mas, depois de dias sem água, a
morte não precisará de convite.
— Não há vedações em redor deste parque de estacionamento — realço.
— Ainda não estamos encurralados.
Mas, antes que eu consiga formular um plano, Henry aparece no nosso
campo de visão, saltando sabe-se lá de onde, sem fôlego e de olhos
tresloucados.
— Vejam o que consegui — diz ele, e ergue o porta-chaves do tio
Manjericão, com a pata de coelho e tudo. Aquilo muda tudo.
— Como é que fizeste isso? — pergunto, quase sem acreditar no que estou
a ver.
— Fiz um acordo — diz ele. — Mas temos de nos apressar. Venham!
Corremos atrás dele, lutando contra a corrente de pessoas que se dirigem
para os autocarros.
— Espera… fizeste uma troca com o tipo que nos levou as chaves? —
Apercebe-se Garrett, profundamente impressionado. — Ele ia prender-nos,
como é que conseguiste fazer uma troca com ele?
— Porque é aquilo que faço! — diz Henry. — Venham, não temos muito
tempo.
Chegamos à pickup e vejo de imediato que o cobertor que estava no banco
de trás foi virado e que a caixa que ali estava escondida desapareceu.
— A água!
Ao ouvir a referência à água, uma dezena de olhos viram-se na minha
direção.
— Esqueçam-na! — insiste Henry. — Foi por ela que troquei as chaves.
Jacqui olhou para ele, incrédula.
— Trocaste o que nos restava de água pelas chaves? Já te ocorreu que
podíamos fazer uma ligação direta… ou fugir daqui a correr e encontrar outra
pickup? Uma que tivesse ar condicionado?
Mas, antes que ele pudesse responder, uma outra voz intromete-se na
conversa.
— Hei! Roycroft! Espera!
Esta leva Henry a correr ainda mais depressa.
Um tipo muito musculado, com um ar estúpido, abre caminho através da
multidão. Tem os lábios gretados, os olhos vidrados, mas ainda não é bem
um zombie da água. Agarra em Henry pelo ombro e fá-lo virar… Depois, o
miúdo olha para Henry com uma expressão engraçada.
— Hei, espera um segundo… tu não és o Trent Roycroft…
Henry ignora-o e vira-se para os restantes.
— Entrem na carrinha!
Mas o desportista não será ignorado.
— Quem diabo és tu? Porque estás a usar o casaco do Roycroft? Onde está
o Roycroft?
Henry atrapalha-se com as chaves e deixa-as cair. Elas deslizam para
debaixo da carrinha.
— Hei! — diz o brutamontes. — Estou a falar contigo.
Depois, Henry mergulha por baixo da pickup, não como se estivesse a
tentar agarrar nas chaves, mas como se estivesse a tentar fugir. E agora
apercebo-me de que Jacqui desapareceu.
— Alyssa! — diz Garrett. — Ele disse para entrarmos.
A porta não está fechada e Garrett sobe para banco de trás com Kelton.
Procuro Jacqui, mas não a conseguimos ver em parte nenhuma. Maldita seja!
Henry emerge de debaixo da carrinha, do lado oposto ao do brutamontes, mas
logo junto à porta do condutor, e tem de novo as chaves.
— Hei, fiz-te uma pergunta! — grita-lhe o brutamontes. E agora, com o
veículo entre eles, Henry dá-lhe uma resposta.
— Vai-te lixar.
Depois Henry entra, batendo a porta com força.
O brutamontes está mais espantado do que furioso.
— Sabes, acho que nem sequer frequentas a secundária de Santa
Margarida!
Henry liga a pickup e eu salto no lugar do passageiro.
— Temos de esperar pela Jacqui! — insisto.
— Não temos tempo!
É como se algo tivesse rebentado em Henry. Se é que o seu nome é Henry.
Já não sei nada. Ele engata a marcha-atrás, e batemos contra o Toyota atrás de
nós, que nos bloqueia a saída. Ele engata a primeira e faz o mesmo com o
Audi à nossa frente. Em seguida, faz marcha-atrás contra o Toyota, forçando
os veículos a afastarem-se, até termos espaço suficiente para sair. E então
vejo finalmente Jacqui. Está a correr na nossa direção. E traz consigo a caixa
de ÁguaViva!
— Nãããããão! — grita Henry quando a vê. Gerou finalmente danos
suficientes e abriu caminho suficiente para afastar a carrinha do passeio.
Lança-se em frente, obrigando as pessoas que avançam na direção dos
autocarros a afastarem-se. Por esta altura, os soldados já se aperceberam, e
aquele que fez o acordo está a perseguir Jacqui, mas ela é demasiado rápida.
Henry faz uma violenta inversão de marcha, derrubando uma pequena
árvore na ilha entre as faixas, e ali ficamos encalhados, com as rodas a girar,
fazendo levantar folhas e flores cor-de-rosa.
Aquilo dá tempo suficiente a Jacqui para chegar junto de nós. Atira a caixa
para a parte de trás e, apercebendo-se de que Henry não tem qualquer
intenção de esperar que ela salte para a cabina, trepa pelo para-choques e
salta para a parte de trás, juntamente com a caixa e toda a outra tralha que o
tio Manjericão ali tem.
Henry carrega no acelerador, praguejando, e, em vez de lhe dizer o que
fazer, estendo a mão e ligo a tração às quatro rodas.
Agora, quando ele carrega no acelerador, saltamos para a frente,
transformando em serradura a pequena árvore, e aceleramos para longe da
escola, deixando para trás pessoas de boca aberta e soldados frustrados que
não parecem estar a seguir-nos. Estão simplesmente satisfeitos por já não
sermos um problema deles.
— Estás louco? — grito a Henry. — Quase nos mataste lá atrás!
Ele olha para mim com aqueles olhos loucos, descontrolados.
— Matar-vos? Matar-vos? Acabo de salvar as vossas vidas! Pelo menos
podiam mostrar alguma gratidão!
— Abranda! — exijo. Ele está de tal modo frenético que nem consegue
manter-se numa só faixa. Se estivessem mais veículos na estrada, já teríamos
dado cabo da carrinha.
Ele agarra com força o volante, olhando sempre em frente.
— Está bem. Está bem — diz ele, respirando fundo. Estabiliza a carrinha e
levanta um pouco o pé do acelerador. — Muito bem, muito bem. Está tudo
sob controlo. Está tudo bem. — Vira-se para mim. — Havia sacos de
cadáveres, Alyssa. Alguns deles já estavam cheios, mas havia pilhas e pilhas
e pilhas de sacos vazios.
— Havia? — diz Garrett de olhos muito abertos, como se alguém acabasse
de lhe provar que o papão era real.
— Compreendes porque tinha de nos tirar de lá, Alyssa? Compreendes?
Tinha de nos salvar, porque, se não o fizesse, mais ninguém o teria feito.
Compreendes?
Aceno com a cabeça.
— Mantém os olhos fixos na estrada.
Ele vira-se para a frente.
— Muito bem. Muito bem — diz ele uma vez mais, controlando o seu
pânico. Fingindo que não era de todo pânico. Não está a conduzir muito bem,
mas quem o faria nestas circunstâncias?
E, depois, Kelton diz:
— Não há nada de assustador num saco para cadáveres. Servem para
transportar e para impedir que se espalhem doenças. Eu tenho um no meu
quarto; uso-o para guardar a roupa suja.
Batem na pequena janela da parte de trás da cabina. O cabelo de Jacqui é
agitado pelo vento e ela não parece nada satisfeita.
— Para o carro! — digo a Henry. — Deixa a Jacqui entrar.
— Terei todo o gosto em deixá-la entrar a partir do momento em que
estejamos suficientemente longe daquele local.
E, aparentemente, outros dezoito metros são suficientemente longe, porque
ele puxa o travão e encosta à berma da estrada. Jacqui salta da parte de trás da
carrinha e avança para a janela de Henry.
— Põe-te a andar, quem conduz sou eu!
— Lá para trás ou não virás de todo — diz-lhe Henry.
— Isso não vai acontecer — diz Jacqui.
— Então não virás. — E engata a mudança, arrancando, deixando-a para
trás, no meio de uma nuvem de pó.
— MALDIÇÃO! — grita Jacqui correndo atrás de nós.
— Não a podes deixar aqui! — grito.
— Não vou deixar! — diz-me ele, agora tão calmo quanto possível. — Isto
é uma negociação, e eu estou a mostrar-me inflexível. — Para a carrinha,
para deixar que Jacqui nos alcance. — Se queres prender um rebelde
descontrolado não lhe podes dar muita corda, percebes?
Jacqui alcança-nos, cuspindo combinações francamente originais de
obscenidades. Henry não se deixa afetar.
— No banco de trás — diz ele. — Ou arranco e separamo-nos de vez.
Ressentida, Jacqui salta para a parte de trás, empurrando Garrett para o
meio e fechando a porta com estrondo.
— Lembra-me de te matar enquanto dormes, Roycroft.
E depois lembro-me de que ela não estava lá quando o desportista arruinou
o disfarce de Henry. Este, tendo reencontrado a sua zona de conforto,
mantém-se impávido.
— Então, quem é o Roycroft? — pergunto.
Henry nem sequer hesita.
— Um idiota qualquer que trocou o blusão por duas garrafas de ÁguaViva.
— Espera, o quê? — diz Jacqui. — Quer dizer que nos tens mentido
durante todo este tempo?
— Eu nunca disse que me chamava Roycroft, vocês é que presumiram. E
eu simplesmente fui na onda.
— Então qual é o teu nome? — pergunto.
— Já sabem o meu nome.
— Não o teu último nome.
— Tratamo-nos pelo primeiro nome, por isso, que importa? — Depois
vira-se para trás, para olhar de relance para Kelton. — E então, como é que
chegamos ao refúgio?
INSTANTÂNEO: RIDGECREST, N.º 12, DOVE CANYON

Herb sentiu-se aliviado por ver a sobrinha e o sobrinho naquela manhã, e


feliz por estarem bem — mas está preocupado com a irmã e com o cunhado.
Jamais teriam enviado Alyssa e Garrett até ali sozinhos. Claramente, havia
qualquer coisa que a sobrinha não lhe estava a dizer — e quem era aquela
rapariga? Não era uma das amigas de Alyssa. Com Kelton sabia com o que
estava a lidar. Todos tinham um vizinho esquisito, mas acima de tudo
inofensivo, com que lidar. Mas aquela Jacqui preocupava-o.
Fecha os olhos e agarra-se ao corrimão no fundo das escadas. A dor da
febre e o peso do próprio corpo dizem ao cérebro que a escada bem podia ser
o monte Evereste. Inspira fundo, trémulo, e suspira. Uma crise de cada vez.
Não se pode preocupar agora com a irmã, ou com a escolha de companheiros
de viagem da sobrinha. Além disso, o facto de Alyssa e os outros não terem
regressado é um bom sinal. Ouvira o som inconfundível da sua carrinha a
descer a rua. Estava disposto a apostar que se encontravam no interior do
veículo quando este partiu.
Enfrenta as escadas, um degrau de cada vez, parando para respirar entre
cada um, sem nunca deixar de se censurar por ter confiado na água da
torneira depois de terem feito a ligação ao velho tanque do monte. Todos no
bairro estavam muito convencidos da sua própria esperteza por terem
engendrado uma solução para o Fechar da Torneira. E por isso beberam. E
Herb bebeu. E Daphne bebeu. Saciaram-se com águas estagnadas que tinham
ficado por tratar, num tanque escuro, sabe-se lá durante quanto tempo.
Não sabia mal. Não os fizera cuspir ao mesmo tempo que faziam caretas.
Sim, sabia um bocadinho a terra, mas era tudo. Perguntou-se se alguém tivera
o bom senso de a ferver primeiro, antes de a beber. Provavelmente não. Há
uma falsa sensação de segurança quando abrimos uma brilhante torneira
cromada na nossa própria cozinha. Sim, esperamos que não saiba tão bem
como a água filtrada, com todo o fluoreto e cloro e o que raio mais usam para
tratar a água, mas não esperamos que nos mate. Como poderia alguém ter
sabido?
Agora, a comunidade está inusitadamente silenciosa. Demorou algum
tempo a compreender que aquela aparência de paz era o maior indicador de
quão más as coisas se tinham tornado. Ninguém estava a sair de casa, porque,
como ele e Daphne, estavam demasiado doentes e fracos. Já está a meio
caminho do cimo das escadas.
Segura uma garrafa de ÁguaViva numa mão e agarra o corrimão com a
outra. A única razão por que é capaz de se manter de pé reside no facto de ter
conseguido beber a ÁguaViva. Sim, passa por ele a correr, mas, enquanto
percorre os seus intestinos perturbados, parte dela deve ser absorvida. Deu-
lhe força suficiente para se manter mais ou menos composto para Alyssa e
Garrett. Eles não se aperceberam do quanto se debatia só para ficar de pé.
Além disso, vê-los provocara nele uma descarga de adrenalina. Agora estava
a pagar por isso, à medida que onda após onda de fraqueza o atingia.
O último degrau. Fica ali de pé, para recuperar o fôlego, e tenta ignorar o
latejar nas articulações. Acha que é capaz de ser a última vez que enfrenta as
escadas. Durante algum tempo. Só durante algum tempo.
Entra no quarto principal, onde o fedor se tornou ainda pior. Já mudou os
lençóis duas vezes naquele dia. Não sabe se terá coragem para os mudar outra
vez, mas sabe que o fará.
Não anuncia a sua chegada.
Parou de falar com Daphne ontem. Tornou-se simplesmente demasiado
doloroso fazê-lo a partir do momento em que ela deixou de lhe responder.
Por isso, agora cuida dela em silêncio, alimentando-a com pequenos pedaços
de alimentos macios, na esperança de que ela acabe por reter qualquer coisa,
e deixando pingar ÁguaViva para a sua boca, o que a faz tossir e engasgar-se,
vomitando tudo para os lençóis brancos.
Senta-se na beira da cama, tocando na pele pálida dela, tão fina que é
possível ver as veias por baixo. Os seus olhos são como berlindes baços que
olham através dele. Nem sequer pestanejam.
Escuta, mas não consegue ouvi-la a respirar, por isso encosta a cabeça ao
peito dela, tentando ouvir o bater do coração. Está lá. Fraco. Esforçado. Ela
está a subir o seu próprio Evereste, sem sequer se mexer. Pergunta-se o que
fará quando encostar a cabeça ao peito de Daphne e nada ouvir. Então,
quando se prepara para ir mudar os lençóis, algo junto à cabeceira lhe chama
a atenção. Está ali um pequeno frasquinho de comprimidos cor de laranja que
não estava lá antes. Será que alguém o deixou lá? Quem poderá ter feito tal
coisa?
Herb nunca foi de acreditar em milagres. Certamente nenhum milagre veio
salvar a sua quinta, nem, já agora, qualquer outra coisa que tenha perdido ao
longo da sua vida. Mas, quando vê aquele frasquinho de comprimidos — e o
rótulo, onde se lê «Keflex» —, sente-se obrigado a reavaliar todo o seu
conceito de realidade.
26) KELTON

Estranhos. Estou na carrinha com estranhos. Jacqui, misteriosa e louca.


Depois há Henry, que não é quem diz ser. Mesmo Alyssa e Garrett são
pontos de interrogação. Porque é como se eu já não conhecesse ninguém.
Mas o maior estranho sou eu. Claro, sei o meu nome. Sei onde vivo — ou
vivia, porque não sei sequer se ainda lá vivo. As minhas memórias são todas
as mesmas, mas as novas memórias, AQUELA memória que não para de se
repetir na minha cabeça juntamente com o som daquele tiro de caçadeira,
tornou tudo aquilo que veio antes desse momento absolutamente irrelevante.
Imediatamente antes da madrugada desta manhã, quando se tratou de lutar
ou fugir, o meu corpo por fim escolheu lutar. Quando se trata de fugir, somos
arrastados por uma força, mas, quando é para lutar, cedemos a outra ainda
mais poderosa. Eu teria provocado alguns danos consideráveis se Alyssa não
me tivesse deixado inconsciente. Pelo menos agora sinto-me cheio de
confiança de que a função de lutar existe dentro de mim. E talvez agora, que
sei que lá está, e qual é a sensação de a ter, seja capaz de começar a controlar
esse poder.
Consequentemente, dou por mim a ceder perante pensamentos mais
violentos e destrutivos. Como, por exemplo, quando aquele soldado me
apontou a sua arma, parte de mim queria que ele me rebentasse o cérebro.
Queria que Henry atropelasse as pessoas enquanto fugíamos. Quero que as
coisas expludam e quero que todos sintam os estilhaços tão profundamente
quanto eu. Sei que é errado. Mas os sentimentos viajam através de mim;
quem sou eu para tentar impedi-los?
Mas depois recordo-me da voz da minha mãe. A minha mãe, que pode
muito bem estar morta, tanto quanto sei. E ela diz: As coisas passam. Até as
coisas grandes. E quando estão bem para trás de nós, já não parecem tão
grandes.
E a voz do meu pai também. Mais austera, mas ainda assim com a
autoridade da experiência: Tudo é uma lição de vida, Kelton. Aprende com
isso. Melhora. Torna-te mais forte.
A melhor maneira de os honrar é dar-lhes ouvidos. Acreditar neles. Mas é
difícil, tão, tão difícil.
— Então, como é que chegamos a esse refúgio? — ouço Henry perguntar.
E apercebo-me de que tenho uma missão. Aparar o golpe. Ser
suficientemente forte para impedir que os estilhaços atinjam os outros. Sim,
uma parte de mim quer que todos sintam dor, mas sou melhor do que isso.
Mais forte do que o tiro de uma caçadeira. O meu irmão está morto. Mas eu
não estou. E hoje farei o que é preciso fazer.
— Precisamos de encontrar Santiago Creek — digo-lhe. — Não será longe
de lá.
— Um riacho? — pergunta Jacqui, sentindo-se agora subitamente
interessada pela noção de água.
— Já secou — informo-a. — E, além disso, é um riacho urbano —
explico-lhe. — Por isso veremos muito betão e grafítis.
— Pensei que tinhas dito que precisavas de um mapa.
— Ajudaria, mas estou bastante certo de que consegui memorizar os
aquíferos. Há um mapa com os aquedutos e canais de drenagem assinalados
na nossa garagem.
Henry olha para mim como se eu fosse de outra galáxia, e começo a sentir-
me na defensiva.
— Temo-nos vindo a preparar — explico.
— Se ainda não reparaste por esta altura — explica-lhe Jacqui —, o Fechar
da Torneira é como o Natal para o Kelton.
O que me irrita, porque talvez, a certa altura, ela tenha tido razão — mas
agora é simplesmente um pesadelo. E ela sabe disso. Dirijo-lhe um olhar fatal
que, se houvesse justiça, lhe teria feito explodir a cabeça. E, pela primeira
vez, acho que ela percebe, e cala-se.
Enquanto continuamos para norte, vai-se tornando cada vez mais claro
para todos aquilo que eu já sei: não há como escapar à invasão militar.
Passamos por uma carrinha de caixa aberta repleta de soldados. Há Humvees
aleatoriamente estacionados nas esquinas. Os helicópteros rasgam o céu por
cima de nós. Depois chegamos a um beco sem saída, numa estrada entupida
de veículos. Há um outro bloqueio mais à frente, e os soldados estão a
redirecionar as pessoas para mais um funil suburbano que as conduz de
regresso à escola secundária, ou a uma «instalação suplementar» que será o
último local a ver água. Já não há estradas em todo o Sul da Califórnia que
sigam para onde queremos ir.
Alyssa vira-se para Henry, alarmada.
— Não podemos deixar que nos apanhem outra vez.
— Pensei que o vosso cão do juízo final nos estivesse a guiar.
Não sei se me devo sentir irritado ou lisonjeado com o facto de Henry
Não-Roycroft estar a gastar toda a sua energia mental a procurar alcunhas
para mim.
— Não disseste que tinhas memorizado o mapa? — pergunta-me Jacqui.
— Memorizei o mapa dos aquedutos, não o das estradas. E no papel,
tecnicamente, devias ser mais esperta do que eu, certo? Então, porque não
nos dizes como sair daqui?
— Não é propriamente o meu bairro. — Jacqui encolhe os ombros. — Mas
fico feliz por termos determinado que eu sou mais inteligente do que tu.
— Querem encontrar os aquedutos — interpõe Alyssa —, ou vão-se
limitar a discutir uns com os outros até nos enfiarem no autocarro da morte
para parte nenhuma?
— Espera — diz Garrett. — Isso é tipo uma vala de betão onde os miúdos
andam de skate?
E agora todos olhamos para ele.
— Sim!
— Então sei onde é! Virem aqui à direita e depois à esquerda, na vaca feia.
Em seguida procurem um Jack in the Box. Fica nas traseiras, atrás do parque
de estacionamento.
Seguimos as indicações de Garrett e chegamos a uma esquina onde se
encontra uma loja de gelados que deve ser um negócio de família. No telhado
está a vaca de plástico de ar mais lamentável que alguma vez vi.
— Devo virar à esquerda — diz Henry —, ou haverá mais à frente uma
vaca ainda mais feia?
Vira sem esperar pela resposta de Garrett, e vemos o Jack in the Box
algumas dezenas de metros mais à frente.
Entramos no parque de estacionamento vazio e seguimos até à vedação das
traseiras, onde um aqueduto de betão se estende até onde a vista alcança, em
ambas as direções. É impressionante como é possível que existam aqui locais
como este, a intercetar o nosso bairro, mas que, para a maior parte das
pessoas, se mantenham completamente fora do seu radar. A menos que se
seja um prepper. Ou um skateboarder. O betão está sarapintado de preto e
branco, manchado dos sedimentos de antigas tempestades, mas Santiago
Creek já há muitos anos que não tem água.
Paramos, e vejo que não há nenhuma entrada à vista — está bloqueada por
uma alta vedação de metal e encimada por arame farpado. O meu pai decerto
saberia onde está localizada a entrada, mas isso de nada nos serve agora.
— Eu costumava passar por aquele buraco ali — diz Garrett.
— Não é suficientemente grande para a carrinha — diz Alyssa, realçando o
óbvio. Basta olhar para a natureza fortificada da vedação, para concluir que,
mesmo que tivéssemos o luxo do tempo, duvido que fôssemos capazes de
encontrar uma abertura suficientemente grande, e duvido ainda mais que o tio
de Alyssa e de Garrett transporte alicates de corte na parte de trás da carrinha.
— Já lá vi miúdos com bicicletas… — diz Garrett. — Têm de lá chegar de
alguma maneira.
Outro helicóptero voa por cima de nós, o implacável bater das suas pás
deixando-me ansioso. Procurar um ponto de acesso suficientemente grande
para nós poderá demorar horas.
— Vamos ter de passar através dela — diz Jacqui, sem sequer tentar
esconder a excitação na sua voz. Questiono as suas intenções, como sempre,
mas a verdade é que, neste momento, não temos melhores opções.
Agora todos os olhos estão fixos em Henry, sentado no lugar do condutor.
Ele olha para nós, a pressão começando a afetá-lo.
— Mesmo que conseguíssemos atravessar a vedação, é bastante íngreme.
O que é, sem dúvida, um eufemismo. Baixo os olhos para a fenda e sinto
logo o estômago às voltas, como naquele momento terrível, imediatamente
antes de me lançar num half-pipe, em que me arrependo e desisto.
Infelizmente, tenho uma relação íntima com esse momento.
O aqueduto tem a forma de um trapezoide invertido, com uma curva
descendente íngreme, cuja inclinação se suaviza durante cerca de dezoito
metros, para depois voltar a subir. A parte plana ao meio sempre me fez
lembrar a cena das corridas no Grease. Só que tenho a certeza de que o John
Travolta é muito melhor condutor do que Henry. Raios, o automóvel dele
voa, no fim.
Henry põe a carrinha em marcha-atrás e começa a recuar, como um touro
antes de carregar sobre o toureiro.
— Tens a certeza de que queres que o Henry faça isto? — pergunta Alyssa.
— Então e o braço dele?
— Já está bom — diz Henry.
O que é mentira — tenho a certeza de que ainda lhe dói, mas
provavelmente não irá afetar a sua condução. Ainda assim, estou tão receoso
quanto Alyssa.
— Acho que a Jacqui poderá ter mais experiência a conduzir — sugiro.
— Não, sou eu quem tem — insiste ele.
— Tens o quê? Dezassete? — realça Jacqui. — Quanta experiência podes
tu ter?
— Já conduzo desde os treze anos — diz ele. — Não perguntem. — Por
isso não perguntamos. Afinal de contas, ele conseguiu tirar-nos da escola
secundária. É certo que danificou uma série de veículos e matou uma árvore
indefesa enquanto o fazia. Em circunstâncias normais, isso não seria
considerado uma boa capacidade de condução. Mas estas não são
circunstâncias normais.
Faço alguns cálculos mentais.
— Deves bater na vedação com velocidade suficiente para a abrir, mas não
tão veloz que percamos o controlo e caiamos no canal.
— Então qual é a velocidade? — Ele tosse, tentando esconder o pequeno
estremecimento de medo na sua voz.
Calculo as variáveis e ofereço um palpite que parece muito mais informado
do que na verdade é.
— Cinquenta quilómetros por hora. E, dado que não temos grande pista de
aceleração, precisarás de acelerar rapidamente. Quando chegarmos ali a
baixo, queres virar à esquerda.
Henry inspira fundo e tenta transportar a mente para a coisa mais próxima
de um lugar feliz.
— Muito bem, estão prontos?
— SIM, fá-lo de uma vez! — grita-lhe Jacqui a partir do banco de trás.
— Muito bem. Muito bem.
E, com aquilo, arrancamos.
Henry aumenta a pressão no acelerador. Consigo ouvir os pneus a chiar por
baixo de nós. Aceleramos em frente. O meu corpo cola-se ao encosto com a
aceleração. Estamos a diminuir a distância entre nós e a vedação,
rapidamente — mas, imediatamente antes de o fazermos, Henry carrega de
súbito no travão, recuando, tal como eu recuo quando estou perante half-
pipes.
Mas é demasiado tarde. Seguimos demasiado depressa.
Colidimos com a vedação, mas, em vez de a atravessarmos, esta mantém-
se firme… e depois apercebo-me de que a estamos a fazer curvar, lentamente,
para a frente. Consigo ouvir as braçadeiras metálicas que mantêm a vedação
presa aos postes de apoio começarem a saltar. A vedação ressoa e chocalha
como se fosse um estranho instrumento musical, e o nariz da carrinha começa
a mergulhar para a frente, revelando um desfiladeiro que se assemelha à
queda de uma montanha-russa.
A encosta é muito mais íngreme do que parecia. Vamos morrer, é tudo
aquilo em que consigo pensar. Suspensa sobre o precipício, a pickup agarra-
se à vedação como alguém que se deita numa cama de rede. Depois a
vedação cede finalmente. Voamos pela encosta abaixo, e os nervos no meu
estômago sobem-me à garganta, como se estivesse prestes a vomitar.
Preparo-me, e, quando atingimos o betão, os amortecedores absorvem
praticamente todo o impacto. Ainda assim, somos atirados para trás nos
nossos assentos e tudo saltita.
Henry guina o volante para a esquerda, como foi instruído, e damos de
rabo, até ele conseguir recuperar o controlo, endireitando o veículo, e
carregando em seguida no acelerador.
E estamos a deslizar pelo riacho de betão.
Olho pela janela. Seguimos o aqueduto como se estivéssemos a surfar.
Depois daquela descida abrupta, tudo parece tão macio! Dou por mim a rir de
incredulidade e Jacqui grita de entusiasmo. Os restantes estão apenas
aliviados.
— Aquilo foi espantoso! — diz repentinamente Garrett, olhando para
Henry, encantado. Mas, por muito fixe que Garrett ache que Henry é, isso
não muda o facto de tudo isto ter sido loucamente perigoso. Se ele tivesse
endireitado o veículo com mais velocidade ou num ângulo mais íngreme,
teríamos batido ou, até, capotado.
Henry sorri, agradado consigo próprio.
— Eu sabia que cinquenta quilómetros por hora era demasiado depressa —
diz ele, como se o facto de ter carregado no travão fosse resultado do cálculo
e não do medo. Mas sinto-me tão grato por estar vivo neste momento, que ele
até podia assumir o crédito pelas falsas alunagens, que eu não quereria saber.
Mas depois recordo-me: a ÁguaViva! Rodo no assento, para olhar melhor
para a caixa da carrinha através da janela de trás.
— Ainda lá está — garante-nos Jacqui.
— Algumas das garrafas podem estar danificadas… — nota Garrett,
timidamente. — Talvez devêssemos abrir a caixa para vermos… — Mas eu
sei exatamente para onde aquela conversa nos conduz. Acho que todos
sabemos. Henry põe um travão a tudo.
— As garrafas de ÁguaViva são feitas de polietileno de baixa densidade
durável e não têm BPA — informa-nos Henry. — Garanto-vos que nada
naquela caixa verterá.
E, embora concorde com Henry a um nível que me faz estremecer, digo:
— Além disso não queremos abrir a caixa senão quando não tivermos
outra alternativa. — A tentação não é nossa amiga, neste momento. Teremos
água mais do que suficiente no refúgio. Precisamos de poupar a nossa reserva
para emergências. Continuo, surpreendido por termos conseguido recuperar a
caixa de ÁguaViva. Dou por mim a abanar a cabeça e a sorrir a Jacqui.
— Foste completamente louca por teres ido atrás daquela caixa, sabes?
E ela sorri, sabendo que o digo como um elogio — algo que não estou
certo de que ela esteja habituada a receber.
— Tu também és — responde. Opto por encará-lo igualmente como um
elogio.
Pergunto-me como teria sido se o meu caminho se tivesse cruzado com o
de Jacqui noutras circunstâncias — por outro lado, duvido muito que isso
algum vez tivesse acontecido. Esta rapariga vive num plano dimensional
completamente diferente dos restantes. Se o Fechar da Torneira nunca tivesse
acontecido, ela não passaria de um nome na tabela dos resultados dos testes
SAT que eu não conseguia vencer.
Apercebendo-me de que os meus pensamentos já não giram em torno de
irritantes ansiedades, inspiro por um momento. Todos o fazemos.
Jacqui inclina-se para a frente e liga o rádio. Nada, a não ser transmissões
de emergência, a dizer às pessoas para onde ir, para onde não ir e para se
manterem calmas. Um esforço de auxílio demasiado generalista e que já não
se adequa a nada.
— O nosso tio tem rádio por satélite — realça Alyssa, e muda para as
estações por satélite. Subitamente, a música «Smooth Criminal» assalta os
nossos tímpanos, que, neste local, neste momento, parece a melhor canção do
mundo. Impulsiva como sempre, Jacqui estica o braço e abre o tejadilho,
depois põe-se de pé, todo o seu tronco emergindo deste perigosamente,
gozando o pico de mais uma explosão de adrenalina.
Passado um bocado, Alyssa puxa Jacqui pela blusa.
— Já chega. — E depois, mal Jacqui desce, Alyssa, toda sorrisos, levanta-
se e espreita também. Jacqui empurra-a, como faria a uma irmã
malcomportada. Depois Garrett, claro, exige a sua vez. Partilha. Que
conceito. Se somos uma família caótica e disfuncional, suponho que este
possa ser o nosso único momento funcional.
Baixo o vidro e estendo a mão para o exterior. Fecho os olhos e abro os
dedos, deixando que a minha mão corte o vento. Olho através da janela e
maravilho-me com o mundo lá fora. A luz do sol da tarde desce, enublada,
dos céus. A luz cintila no caminho de betão como fitas de ouro… e apercebo-
me de que esta é a primeira vez que me sinto relativamente livre em muito
tempo. Como se não estivéssemos a escapar do lugar que antigamente
chamávamos casa. Como se isto não fosse um apocalipse suburbano. Não me
consigo esquecer dos eventos das últimas vinte e quatro horas, mas aqui, a
acelerar ao longo de um depósito de betão, consigo deixá-las para trás, ainda
que seja apenas por alguns momentos. É uma pequeníssima sugestão de que,
independentemente do que aconteceu, ou aconteça, a vida poderá continuar.
É Henry que nos traz de volta à realidade.
— Aproxima-se um cruzamento — grita, sobre o vento chicoteante.
— Mantém-te à esquerda — digo-lhe.
É Alyssa que realça que nos estamos a dirigir para sudoeste, em direção à
costa, não às montanhas.
— Não faz mal — digo-lhe —, estamos a viajar por um sistema de rios.
Temos de descer por este afluente até atingirmos o rio principal.
Henry vira à esquerda no cruzamento.
— Quando chegarmos ao rio principal viraremos à direita e seguiremos por
esse rio até às montanhas — digo a todos.
Costumava gabar-me a toda a gente que tinha uma memória fotográfica,
mas este é o verdadeiro teste. O canal em que nos encontramos perde a sua
inclinação brutal e torna-se natural durante algum tempo. Selvagem, como o
verdadeiro leito de um rio. Depois regressamos ao betão, numa área mais
industrial do que antes.
Mais um cruzamento — Henry vira tudo à direita e a bússola no painel de
instrumentos mostra que agora nos dirigimos para norte. Estamos agora num
canal muito mais largo: Santa Ana River, embora se trate apenas da memória
de um rio. Todas as vias aquáticas do Sul da Califórnia se tornaram numa
espécie de membros-fantasma. Podemos sentir que ainda cá estão, mas não
passam de uma ilusão sob a forma de betão.
Tenho uma ideia mais concreta de onde estamos no mapa. Existem alguns
marcos ao longo do caminho que nos ajudam a orientarmo-nos: o Angel
Stadium, o Honda Center — o que me recorda que não estamos muito longe
da Disneylândia. Nem sequer consigo imaginar que tipo de loucura se estará
a passar por lá neste momento. O ano passado, numa demonstração de apoio
à comunidade, e numa operação de marketing astuta, secaram os seus rios
artificiais. O cruzeiro pela selva transformou-se numa viagem de realidade
virtual. Os Piratas e o Mundo Pequeno foram convertidos num espaço de
levitação magnética, e abriram a Grand Canyon Land no fosso seco em redor
da ilha de Tom Sawyer. Por isso, alguém que ache que pode saltar a vedação
e engolir as águas tingidas de azul e sujas de caganitas de morcegos terá um
rude despertar.
Enquanto viajamos por este canal de cimento expansivo, parece-me que o
mundo foi dividido em dois, estando nós a viajar pela beira desse rasgão. O
fosso entre o que foi e aquilo que será. Já não fazemos parte de um mundo.
Pelo menos eu não faço. Tudo aquilo que costumava significar alguma coisa
para mim está lá fora, desesperadamente longe do meu alcance. Penso no
meu irmão. Penso nos meus pais. Sinto-me entorpecido; como nos sentimos
depois de uma queimadura mesmo má, após o desaparecimento da dor,
quando perdemos a sensação naquele ponto. Isso acontece porque as
terminações nervosas estão mortas. E acho que, neste momento, o melhor
sítio onde podia estar é no fosso entre os limites esfarrapados da vida tal
como a conhecíamos.
O fosso assume muitas formas enquanto viajamos. Em alguns pontos
temos de abrandar, porque há rochas, ramos e outros obstáculos que,
imagino, terão sido varridos pela corrente quando ainda aqui passava água.
Noutras partes temos de avançar a um ritmo dolorosamente lento, por causa
das rochas que foram empurradas por máquinas, de forma a formarem
bermas com metro e meio de altura, e intencionalmente dispostas sob a forma
de um labirinto, concebido para direcionar o fluxo da água. É como se o
próprio fosso representasse uma pista de obstáculos criada para nos derrotar.
Não seremos derrotados.
Mais uma hora e deparamo-nos com uma barragem.
— Isto estava no teu mapa mental? — pergunta Jacqui.
Não respondo. Em vez disso, digo:
— As barragens têm sempre um caminho de acesso para a maquinaria
pesada poder chegar à margem do rio. — Conduzimos ao longo da barragem,
depois voltamos para trás cerca de noventa metros e encontramos o acesso.
Tem um portão, mas este está bastante enferrujado.
Derrubamo-lo acelerando a cerca de oitenta quilómetros por hora, o que,
provavelmente, foi um exagero, porque o portão voa das dobradiças.
Jacqui grita de excitação, revigorada. Alyssa aguenta-se, Garrett é só
sorrisos e Henry permanece sério, continuando a apertar o volante com as
mãos na posição «dez para as duas». Eu, continuo atordoado. O embate
contra o portão quase não fez subir o meu ritmo cardíaco.
O portão do outro lado da barragem está aberto, pelo que Henry não tem de
repetir o desempenho quando descemos pelo acesso. Descobrimo-nos numa
bacia extensa, o que significa que passámos de Orange para Riverside
County.
Agora, as minhas pálpebras começam a ficar pesadas. Deve ser a dívida de
sono que tenho para com o meu corpo — as horas acumuladas de descanso
perdido durante os últimos quatro dias. Depois, imagino a dívida de água que
já contraímos por esta altura. Ontem estávamos hidratados, mas este calor
também nos tem feito suar bastante. A última água que bebemos foi aquele
bocado que o tio de Alyssa nos deu, ao início da manhã. Agora, a tarde já vai
longa — é quase de noite. A privação de água a uma temperatura de trinta e
sete graus duplica — talvez até triplique — a velocidade do relógio da
desidratação. Ficarei satisfeito quando o Sol se puser. Só posso esperar que,
por essa altura, já tenhamos chegado ao refúgio.
A bacia cheira a fumo. É ténue mas constante. Provavelmente deve-se aos
diversos fogos rasteiros que foram sendo noticiados. O mau ar tende a
instalar-se nas bacias.
— É isto? — pergunta Henry. — O refúgio não fica algures por aqui?
— Nem de perto — digo-lhe. — Estamos na bacia de controlo de
inundações de Prado. Correm para aqui três rios… ou pelo menos
costumavam correr. Segue pelo que está mais à esquerda.
— Ótimo — diz a Jacqui. — Vamos descobrir o que está por detrás da
primeira porta.
Saltamos e chocalhamos no terreno poeirento repleto de ervas, até
depararmos com mais um canal de betão na nossa frente, não tão largo como
o de Santa Ana River. Este tem os lados direitos, sem inclinações. Há as
coisas normais que seriam de esperar numa vala de drenagem: pneus antigos,
carrinhos das compras ferrugentos, sofás partidos que parecem ter caído do
espaço — uma novíssima pista de obstáculos. Não há tralha suficiente para
nos deter, apenas para nos manter atentos enquanto traçamos um caminho
serpenteante à sua volta.
— É como a tralha que fica presa por trás das almofadas dos sofás —
comenta Jacqui —, mas a uma escala cósmica.
Também aqui há mais grafítis nas paredes. Tags coloridos, como «Rong»,
«OrGie» e «Stoops», e outros tão estilizados que parecem escritos numa
língua alienígena, aumentando a sensação de que estamos num mundo
completamente diferente.
Depois de cerca de uma hora ao longo deste canal, deparamos com pessoas
que montaram uma espécie de acampamento de ambos os lados do aqueduto,
e não parece ser uma ocorrência nova. Há dezenas de tendas feitas com lonas,
cobertores e apoios improvisados, como se fosse um bairro de lata. Penso no
que Jacqui disse e apercebo-me de que não são apenas coisas que se perdem
por trás das almofadas do mundo. As pessoas também.
Com o Sol a afundar-se e as sombras a tornarem-se mais longas, o espaço
parece ainda mais fantasmagórico do que seria sob a luz brilhante deste dia
quente. Quanto mais nos aproximamos, mais claro se torna que se trata de um
acampamento permanente de sem-abrigos. Se assim for, eles não leram, sem
dúvida, A Arte da Guerra, que realça que estabelecer um acampamento numa
vala é um desejo de morte. Terrenos elevados oferecem visibilidade, terrenos
mais baixos deixam-nos suscetíveis de sermos emboscados. Ainda assim,
tenho a sensação de que uma emboscada não faz parte das suas principais
preocupações.
Alyssa mantém o olhar sempre em frente.
— Não abrandes — diz ela.
— Não tencionava fazê-lo — diz Henry.
Ela mantém os olhos fixos em frente, recusando-se sequer a olhar para as
pessoas do acampamento. Não parece próprio dela, e faz-me pensar no facto
de ela ter concordado com o meu pai ontem: ou se dá tudo ou não se dá nada
— apercebo-me porque está a recusar-se a olhar. Para uma rapariga como ela,
cujo primeiro instinto é, sempre, resolver a situação, a escolha do «nada» não
é fácil. É dolorosa. Mas, depois de tudo o que aconteceu, ela apercebe-se de
que a sobrevivência dela e de Garrett exige o tipo de dureza agressiva que
normalmente reserva para o campo de futebol. Hoje não se irá ajoelhar pelos
jogadores tombados.
Enquanto conduzimos lentamente através do acampamento, algumas
daquelas almas perdidas emergem das suas tendas e veem-nos passar. Não
nos fazem parar, não se importam connosco, limitam-se a observar. Acho que
estão apenas a ser vigilantes — a assegurar-se de que não paramos para as
perturbar. Olho para os seus rostos curtidos pelo sol, para as suas roupas
gastas e pergunto-me quais serão as suas histórias e como ali foram parar. Se
haverá alguém a pensar nelas ou a desejar que estejam bem. Depois
apercebo-me de que, pela maneira como nos fitam, estão a pensar a mesma
coisa.
Depressa passamos, e ouço Alyssa a suspirar de alívio.
— Ainda falta muito? — pergunta Henry, cerca de quarenta e cinco
minutos depois de termos passado o acampamento dos sem-abrigo.
Ainda que o dia não tenha chegado completamente ao fim, todo o canal
está, agora, submerso nas sombras. Semicerro os olhos. Não existem
quaisquer sinais nestes aquedutos, isto para não falar do facto de quase não
conseguir ver, agora que o Sol já desceu praticamente por completo.
— Continua a avançar — digo-lhe. — Acabaremos por chegar à Foothill
Freeway. A Angeles National Forest fica logo a seguir.
A bússola diz agora que estamos a seguir para noroeste e tudo parece estar
certo, até passarmos por um túnel que a princípio acredito ser apenas um
viaduto — mas não existe outro lado. De súbito, ficamos na absoluta
escuridão. Henry carrega no travão, e paramos.
— Acende os faróis! — diz Alyssa.
— Não consigo encontrá-los!
Consigo ouvir Henry a procurar freneticamente os botões até por fim
descobrir os faróis. Ele acende-os, e, por um instante breve e louco, espero
ver algo semelhante a um T-Rex a olhar-nos através do vidro da frente. Não
sei onde é que o meu cérebro foi desencantar essa imagem, mas, quando as
luzes se acendem, dou um pulo. Claro que não está lá nada. Nada a não ser
uma passagem de escoamento. E tudo o que vemos são as paredes à nossa
volta, de onde se solta musgo seco, e o túnel à nossa frente, iluminado pelos
faróis. Correção: farol. Apenas um está a funcionar. Ótimo. Lá se vai a nossa
visibilidade noturna.
— Então — diz-me Jacqui —, isto é parte da experiência de rio urbano, ou
estamos perdidos?
— Silêncio, estou a pensar.
Como eu disse, só tinha ido ao refúgio algumas vezes — mas seguimos por
estradas normais. O pai conduziu-nos certa vez por este caminho, de forma
virtual, num irritantemente pormenorizado PowerPoint, mas acho que me
teria recordado da interminável parte de túneis negros da apresentação.
— Devemos ter falhado uma saída — sou obrigado a admitir. E o que
acontece é que não faço ideia de onde seria essa saída. Sei que tomámos o
caminho certo quando deixámos a bacia de inundação. Mas isso foi há horas.
Se passámos por um cruzamento escondido, este poderia encontrar-se em
qualquer parte entre aqui e esse local.
Depois começo a perguntar-me se as paredes, mais ao fundo do túnel,
poderão estar húmidas. E se houver água aqui em baixo? O que me faz pensar
acerca das muitas espécies de animais que, de modo muito provável, infestam
estas zonas, independentemente do quão contaminada esteja a água. E depois
penso em quantos seres humanos poderão ter vagueado por aqui com as
mesmas intenções e apercebo-me de que o meu cérebro teve um curto-
circuito e me lançou a imagem errada. Não é com os dinossauros que
devemos preocupar-nos… é com as pessoas.
— Dá a volta — digo a Henry. — Tira-nos daqui.
Mas fazer inversão de marcha é uma impossibilidade. Henry engata a
marcha-atrás e recuamos até sairmos do túnel. Já é crepúsculo. É mais difícil
ver qualquer coisa, e o canal continua a ser demasiado estreito para nos
virarmos, por isso, seguimos de marcha-atrás por onde viemos. Lentamente.
Cuidadosamente, sem nada para nos guiar a não ser as nossas ténues luzes
vermelhas traseiras. Meia hora mais tarde, ainda não encontrámos qualquer
outra bifurcação.
— Tens a certeza de que não é suposto seguirmos em frente? — pergunta
Alyssa. — Através do túnel?
— Sim — digo-lhe. — Não — digo. — Não sei — acabo por admitir.
— Talvez possamos recuar até chegarmos àquele acampamento de sem-
abrigos — diz Jacqui, libertando sarcasmo. — Tenho a certeza de que eles
terão todo o gosto em ajudar-nos.
Continuamos a fazer marcha-atrás durante mais alguns minutos, depois
Alyssa grita:
— Ali! Estás a vê-lo?
E ali está: uma bifurcação no canal que segue para a direita, para norte. A
abertura está repleta de ervas e existem alguns grafítis à esquerda — que nos
chamaram a atenção da primeira vez que por ali passámos. Sinto-me
incrivelmente aliviado. Se não o conseguíssemos encontrar não saberia o que
fazer.
Henry desengata a marcha-atrás e conduz-nos pelo caminho certo, mas,
não muito depois de avançarmos, o canal bifurca de novo. E agora pergunto-
me se estaremos no aqueduto certo. É como dizem: Uma desgraça nunca vem
só. No entanto, à medida que estas se vão acumulando, começo a perceber
que os poderes superiores estão simplesmente à procura da melhor maneira
de nos lixar. Porque a luz da reserva acende-se. Claro. Durante todo o tempo
que passámos a conduzir nem por uma vez pensámos na necessidade de
combustível. Eu posso ter sido culpado pelas direções erradas, mas por isto
culpo Henry.
— Como é que podes não ter verificado o nível do combustível? — digo
eu.
— Desculpa, mas tenho estado um bocadinho ocupado!
— Qual é o problema? — diz Jacqui. — Não havia um acesso que
conduzia às ruas, um pouco mais atrás?
— De que nos serve isso? — diz Alyssa. — As bombas de gasolina não
estão a funcionar e voltaremos a deparar-nos com os desvios militares.
— Dito como um verdadeiro prisioneiro do comportamento legal — diz
ela.
Alyssa não compreende, mas eu sim.
— Por isso, retiramos combustível a um automóvel abandonado.
Jacqui acena com a cabeça.
— E estou certa de que há bastantes na autoestrada sob a qual acabámos de
passar.
27) ALYSSA

Toda a nossa dinâmica se alterou, sem dúvida, desde que Henry se juntou a
nós. Não sei se isso será bom ou mau. Ele não é o melhor dos condutores,
mas é competente e mantém os olhos fixos na estrada. Conseguiu recuperar
as nossas chaves, para que pudéssemos escapar do centro de evacuação — e
parece querer ajudar-nos verdadeiramente. Por outro lado, estava a
aproveitar-se das pessoas no seu bairro — incluindo o meu tio — e fingiu,
mais ou menos, ser alguém que não era. Não sei o que pensar dele, e é
irritante que ele não seja de todo desagradável de se ver, porque isso pode
toldar o meu julgamento.
Temos de recuar um pouco mais do que gostaríamos, para descobrir o
acesso à estrada, e sinto-me feliz por a carrinha ainda não ter ficado sem
combustível. Quase não conseguimos subir o caminho de betão, que é tão
estreito que, olhando pela janela, já não consigo ver o chão por baixo de nós,
e a inclinação abrupta até ao fundo não para de aumentar. Se o nosso pneu
direito derrapar, daremos várias cambalhotas antes de atingirmos o fundo.
Por fim, chegamos ao nível da estrada. Não faço ideia de onde nos
encontramos, e o facto de tantas zonas do Sul da Califórnia se assemelharem
é desconcertante. Sei que não estou em casa, mas a sua não familiaridade é-
me familiar. O bairro é mais antigo do que o nosso, com casas envelhecidas
com uma arquitetura ao estilo rancho, mas o centro comercial na esquina não
é diferente do do meu bairro. O ar tem um gosto acre e a queimado, e é
pesado. É o fumo dos incêndios. Chamam a esta parte da Califórnia o
Império Interior, e há sempre smog, porque todas as coisas más que existem
no ar são sopradas para aqui e ficam presas junto às montanhas. Acho que já
joguei um torneio de futebol nesta cidade; ou talvez tenha sido noutra, a
centenas de quilómetros, que tinha exatamente o mesmo aspeto.
Aproximamo-nos de uma rampa de acesso à autoestrada e Jacqui sugere
que subamos de marcha-atrás, para aproximar o tanque de combustível tanto
quanto possível do veículo escolhido. É engraçado como Kelton sabe tudo
acerca deste mundo anárquico, mas Jacqui parece que já viveu nele.
Afinal, não é necessário fazer marcha-atrás, porque, surpreendentemente, a
rampa não está repleta de veículos abandonados — por outro lado, suponho
que isso não seja de surpreender. Qualquer pessoa que se tenha apercebido de
que o trânsito se encontrava num impasse permanente, teria acabado por sair
de marcha-atrás. Era preciso estar-se nas profundezas de um coágulo
automóvel gigantesco para sentir que abandonar o automóvel é a única opção
existente. Como tal, a autoestrada está basicamente vazia durante cerca de
quarenta e cinco metros, até chegarmos ao primeiro veículo abandonado e,
por fim, ao coágulo através do qual é impossível passar e de onde é
impossível sair.
Alguns veículos estão virados em ângulos bizarros. Outros estão
completamente virados na direção errada. Há janelas partidas, portas
escancaradas, um assento vazio num tejadilho. Mais à frente vejo um
autocarro escolar amarelo abandonado. A cena não é bem como a da praia,
onde existiam provas de pânico e de violência que desenhavam uma história
arrepiante — e, no entanto, a natureza abjeta deste abandono é igualmente
perturbadora. As pessoas partiram sem levar mais nada a não ser as roupas
que traziam vestidas e os filhos pendurados nos braços. O vandalismo deve
ter ocorrido depois da sua partida — e isso implica que ainda poderão existir
saqueadores a partir janelas e zombies da água a vaguear por entre o labirinto.
— Primeiro precisamos de encontrar uma mangueira — diz Jacqui,
estacando. Dispersamos, em busca de uma carrinha de jardinagem ou de algo
que possa transportar uma mangueira, mas não temos sorte. Depois, seguindo
um palpite, dirijo-me à parte de trás da carrinha do tio Manjericão. Há imensa
tralha lá atrás. Coisas com que o nosso tio não teve forças para se preocupar
quando fez o acordo com Henry e, por isso, seguiram com a carrinha.
Tombado por entre as tralhas que tinham sido agitadas durante a nossa rude
viagem, encontro o seu hookah. A minha mãe obrigava-o sempre a mantê-lo
no jardim das traseiras, porque não queria aquela coisa dentro de casa, e
lembro-me de ele ter referido, certa vez, que Daphne se recusava a permitir
que ele o colocasse onde ela o pudesse ver. Por isso ficou na parte de trás da
carrinha, a sua mangueira de metro e vinte escondida à vista de todos. Com
alguma sorte, será suficientemente comprida para cumprir as funções
necessárias.
Henry recuou em direção a um dos automóveis no limite do coágulo, e só
depois de termos saído para procurarmos a tampa do depósito de combustível
é que nos apercebemos de que não vai encontrar nenhum. É um Tesla. É
Jacqui quem primeiro repara. Ela toca no meu braço e chama a minha atenção
para esse facto, mas não diz nada a Henry, que continua à procura de um sítio
para enfiar a mangueira. Os restantes já perceberam, mas esperamos para ver
quanto tempo demora Henry a aperceber-se do que se passa.
Dou por mim a sorrir perante tamanha ironia. Não só por causa do Tesla,
mas por causa de Henry, em todos os aspetos. O mundo seca, no entanto,
encontramos Henry totalmente à nora, a viver no seu próprio oásis. Ele
deixou que pensássemos que era outra pessoa, sem qualquer razão aparente.
É claramente esperto, mas carece de senso comum básico da forma mais
estranha. Não parece ser completamente fiável, mas, quando o olhamos nos
olhos, queremos realmente confiar nele. É como se ele quisesse ser confiável
— como se o facto de confiarmos nele fosse, subitamente, fazer com que ele
o merecesse. Eu quero que ele seja merecedor da nossa confiança. Isso
significa que tenho de confiar nele primeiro? Não consigo deixar de me sentir
um pouco intrigada pelo seu quociente desconhecido.
— Ninguém me vai ajudar? — acaba Henry por perguntar, exasperado.
— Não — diz Jacqui. — Continua à procura.
Talvez seja o sorriso no rosto dela que leva Henry a reavaliar a situação e a
olhar de relance para o logótipo da Tesla no automóvel.
— Certo — diz ele. — Duh.
Garrett ri e eu não consigo deixar de sorrir.
— Fico satisfeito por vos ter divertido esta noite — diz Henry. — É apenas
um dos muitos serviços que ofereço.
Apercebo-me de que, embora Henry tenha deixado a chave na ignição,
confiando em nós, esta se encontra agora nas mãos de Kelton. Ele devolve-as
a Henry para que possamos ligar o motor da carrinha e avançar para um
veículo que, de facto, ande a gasolina, mas há uma mensagem clara, embora
silenciosa. Não sei se é uma questão de desconfiança da parte de Kelton, ou
de poder, ou ambas.
Conduzimos por entre o emaranhado de veículos até nos depararmos com
um monovolume de elevado consumo. Jacqui sai para nos guiar. Desta feita,
quando Henry desliga a pickup tenta levar as chaves, mas Kelton impede-o de
abrir a porta do lado do condutor o suficiente para conseguir sair.
— As chaves, por favor — diz Kelton.
Mesmo assim, Henry força a porta, mas Kelton ergue-se no seu caminho.
Sinto-me irritada pelo facto de Kelton estar a forçar um confronto neste
momento, quando tudo o que procuramos é combustível.
— O que vou eu fazer? — pergunta Henry. — Fugir e acelerar em direção
aos montes? a) Não temos combustível e b) És o único que sabe para onde
nos dirigimos.
Mas Kelton não está disposto a negociar.
Henry lança um olhar rápido na minha direção e diz:
— Está bem. — Depois atira as chaves para mim em vez de as entregar a
Kelton.
Kelton irrita-se com o facto de ter sido tão flagrantemente menosprezado.
Olha para mim como se eu lhe fosse dar a chave, mas não o faço. Porque,
neste momento, ele é que está a ser um idiota. Em vez disso, enfio-as no
bolso. Se Henry me vê como a voz da razão entre nós, assim seja. Se confiar
em mim, talvez isso faça de mim uma pessoa fiável.
Felizmente, a pequena porta que protege o tampão de combustível abre do
lado de fora, em vez de ter de ser aberta a partir do interior do monovolume.
— Muito bem, então e agora? —pergunto a Jacqui.
Mas ela recorre a Kelton.
— Não sei… não és capaz de te armar em MacGyver e inventar qualquer
coisa?
Ele encolhe os ombros.
— Tu é que tens a mente criminosa — diz Kelton.
— O que é um MacGyver? — pergunta Garrett.
Jacqui suspira.
— Um tipo da televisão dos anos oitenta, com uma mullet e capaz de fazer
cenas fixes a partir do nada.
Mas nenhum de nós tem uma mullet ou os conhecimentos necessários para
tratar do asssunto. Tudo o que temos é a mangueira de um hookah. Apercebo-
me de que estamos, todos nós, fora do nosso elemento, até Jacqui. Apesar de
tudo o que ela aprendeu nas ruas, roubar combustível é algo que claramente
nunca fez, e, apesar de todos os conhecimentos de sobrevivência de Kelton,
ele é inútil neste apuro em particular.
— Tudo o que sei — digo — é que enfiamos a mangueira no tanque de
combustível e depois chupamos. — Isto é verdadeiramente o caso do cego a
guiar os cegos.
Depois de quatro tentativas falhadas e de uma boca cheia de gasolina,
Jacqui deita a mangueira ao chão, abdicando da sua coroa de rainha da
ladroagem. Pergunto-me indolentemente se terá sentido o impulso de engolir
a gasolina que lhe foi ter à boca, e isso recorda-me da minha própria sede,
mas afasto esse pensamento.
Entretanto, todos têm uma opinião sobre o porquê de não estarmos a
conseguir roubar o combustível — mas o nosso conhecimento desta arte
perdida está limitado ao laboratório de ciências do quinto ano e aos filmes.
Com todos a darem o seu contributo, apercebo-me de que ainda não ouvimos
pitada de Garrett. De facto, não o vejo desde as nossas primeiras tentativas.
— Garrett? — grito.
Grilos. Vento. Silêncio.
Verifico na pickup. Em redor da pickup. Corro de regresso ao Tesla. Nada.
— Garrett!
Kelton manda-me parar, e sei porquê — a voz nervosa de uma rapariga é
como uma ferida ensanguentada num mar de tubarões —, mas não tenho
tempo para formular outro tipo de procedimento que seja melhor. Tenho de
encontrar o meu irmão.
Sem que o faça conscientemente, os meus pés lançam-se a correr, e afasto-
me rapidamente, mergulhando no mar de automóveis. Corro por entre eles,
gritando o nome dele, mas num sussurro, o que é tão inútil quanto parece.
Tenho a cabeça a andar à roda. As autoestradas são armadilhas de morte, eu
sei, Kelton enfiou-nos isso na cabeça. E, mesmo que eu não esteja sozinha, se
alguém tiver Garrett neste momento, o seu bem-estar é a minha prioridade, e
tenho de ser destemida.
Depois vejo fumo a erguer-se no ar, em espiral, mais à frente. Um
incêndio. Fica algures mais ao fundo da autoestrada. Sei que têm existido
fogos rasteiros por todo o lado, mas na autoestrada? Avanço, trepando,
deslizando por cima dos automóveis — tropeço e caio, mas não deixo que
isso me abrande. E agora consigo ver melhor.
É uma fogueira numa lata de lixo. E à sua volta está, pelo menos, uma
dúzia de pessoas.
E têm Garrett com elas.

Quando Garrett tinha 5 anos, vagueou para longe do jipe do safári no jardim
zoológico. Tive de o salvar de ser pontapeado na cabeça por uma girafa.
Quando tinha 6, quase foi para casa com outra família, no centro comercial,
porque os filhos deles tinham brinquedos mais fixes. Quando tinha 9 anos,
vagueou pela sala de exposições do IKEA e decidiu dormir uma sesta numa
cama com a forma de um automóvel de corrida, numa tentativa de se tornar
um residente permanente da loja — e eu tive de o localizar antes de a mãe e o
pai descobrirem e chamarem a guarda nacional. Desaparecer é aquilo que
Garrett normalmente faz, e fá-lo sempre no pior momento possível, e por
alguma razão sinto-me sempre responsável. Mas, desta vez, estou mais
assustada do que furiosa, porque já vi os monstros que por aí andam — e
desconfio que ainda vou ver piores, antes de tudo isto estar terminado.
Ele ergue-se no meio de estranhos que podem ser tão hostis quanto os
salteadores que atacaram a casa de Kelton. Analiso os seus rostos para tentar
fazer uma leitura da situação. Pessoas de todas as idades. Depois, Garrett vê-
me e sorri.
— Ali está ela… aquela é a minha irmã.
O meu coração continua a bater ao ritmo do meu alarme. A minha cabeça
lateja e sinto-me tonta devido ao esforço. É a falta de fluidos. Aproximo-me
cautelosamente. Depois, uma mulher avança. Cabelo prateado ondulado, uma
tez suave. Os seus dedos parecem brilhar, mas é apenas o reflexo do fogo.
— Bem-vinda — diz ela.
— Garrett, vamos — ordeno-lhe.
— Está tudo bem — diz ele, aproximando-se. — Fui à procura de um
balde… sabes, para despejarmos para lá a gasolina, mas perdi-me. Eles
encontraram-me.
Baixo um pouco a guarda.
— Deves ser a Alyssa — diz a mulher mais velha, calorosamente.
— Quem és tu? — pergunto, ainda apreensiva.
Uma menina pequena, que segura algumas toalhas dobradas, para quando
vai a passar.
— Chamamos-lhe o Anjo da Água.
A mulher mais velha sorri docemente.
— Oh, para com isso. Chamo-me Charity, que é um nome muito mais
caridoso do que aquele que mereço, mas é o que tenho.
Tendo-me agora acalmado um pouco, olho melhor para ela. É tão velha
quanto a minha avó, talvez esteja na casa dos 70, embora também tenha algo
de jovem. A maneira como se comporta. O seu olhar apurado, radiante.
Jacqui, Kelton e Henry alcançam-me, mas mantêm a sua distância,
continuando a analisar a situação.
— Poderá dizer-se que acampámos por aqui — diz Charity, dirigindo-se a
todos nós. — Pelo menos para já.
Olho à minha volta e apercebo-me de que não se trata apenas de uma
fogueira, mas de várias, uma constelação que se estende ao longo da
autoestrada repleta de automóveis, em várias clareiras. Isto não é nada que se
pareça com o acampamento de sem-abrigos que vimos antes; são pessoas de
diversos estratos sociais, que decidiram que ficar aqui, no meio da crise, é
melhor do que estar em qualquer outra parte.
Kelton abana a cabeça.
— Mas estão completamente expostos, aqui. Não é perigoso?
— Por vezes — diz Charity —, mas arranjamos maneira de manter todos
em segurança e hidratados.
A última palavra atrai-nos a todos.
Jacqui avança um passo.
— Têm água?
— Há água por todo o lado — diz Charity com um ténue sorriso. — Basta
que procuremos nos sítios certos. — Ela examina as nossas roupas sujas e
provavelmente apercebe-se de como estamos exaustos, tanto emocional como
fisicamente. — Porque não ficam connosco? — E, quando hesitamos,
acrescenta: — O teu irmão parece gostar.
— Este lugar parece-me bem — diz Garrett. — Mais ou menos seguro.
E, embora «mais ou menos seguro» seja, provavelmente, o melhor que
vamos conseguir, Kelton está cético.
— Temos de ir para um sítio.
— Bem, pelo menos fiquem durante a noite. Está a fazer-se tarde. Podem
partir de manhã. — Depois regressa para a fogueira, deixando que
conversemos.
Henry abre a discussão.
— Eu digo que fiquemos. Descansamos. Hidratamo-nos.
— Temos uma caixa inteira de ÁguaViva na pickup — realço. E apercebo-
me, para meu horror, de que a abandonámos na caixa aberta da carrinha. —
Porque não trancamos a água dentro da pickup, aceitamos a sua
hospitalidade, e talvez estas pessoas nos ajudem a recolher combustível?
Depois podemos partir.
— E vamos para onde? — pergunta Henry. — Regressamos àqueles
terríveis aquedutos, só para nos perdermos outra vez?
— Já não estamos perdidos — diz-lhe Kelton. — E já não nos falta muito.
E depois Jacqui faz pender os pratos da balança.
— Os aquedutos serão mais fáceis de navegar durante o dia, certo? Por
isso, aceitemos o convite do Anjo da Água e passemos aqui a noite. Não
temos propriamente que nos juntar ao seu pequeno culto.
Todos concordam que se trata da melhor solução. Até Kelton, por relutante
que se mostre em confiar em tudo e em todos.
Deixo-os e vou à procura de Charity. Ela está de volta de uma panela. Está
a ferver água, para a purificar.
— Muito bem, ficaremos durante a noite — digo-lhe. — Mas acha que há
aqui alguém que nos possa ajudar a retirar combustível de outro automóvel?
— Claro — diz Charity, com um piscar de olho. — Como é que achas que
eu começo estas fogueiras?
— E talvez um pouco dessa água, quando arrefecer? — diz Jacqui,
aproximando-se por trás de mim.
Mas, em vez de responder, Charity avança e examina de perto o rosto de
Jacqui. Depois, pega na mão dela e belisca-a com o polegar e o indicador.
— Au! Para que raio foi isso?
— Lamento, mas não vos posso dar água já — diz Charity. — A tua pele
ainda está elástica, o que significa que a tua desidratação não é crítica.
— Ela tem razão — diz Kelton, e Jacqui lança-lhe um sorriso escarninho,
sussurrando «traidor» por entre os dentes.
Olha para Garrett, que continua sentado com outro miúdo que encontrou, e
depois para os restantes.
— Sei como é difícil não beber água quando se tem sede, mas não ficaria
com a consciência tranquila se vos desse água, havendo outros aqui que
precisam mais dela. Mas podemos alimentar-vos.
Comida! Já me tinha esquecido da comida. E agora sinto o meu estômago
às voltas, a devorar-se a si próprio. Tenho fome — mas, mesmo que me deem
algo para comer, será difícil mastigar, porque a minha boca está seca e em
carne viva. Até engolir água, neste momento, me magoaria como se estivesse
a engolir agulhas. E, depois, há esta crescente pressão na minha cabeça. Se
não sou merecedora de água neste estado, então nem consigo imaginar como
será estar pior.
— Ajudar-vos-emos com os vossos problemas com o automóvel, dar-vos-
emos abrigo e algo para comer — diz o Anjo da Água. — Isso terá de chegar
por ora. — Depois vira-se para alguns homens de aspeto rude, que jogam às
cartas perto da fogueira.
— Max? Achas que os podes ajudar? Precisam de gasolina.
— Claro. — Um deles levanta-se. É grande e pesadão, está vestido de
cabedal como se fosse o líder de um gangue de motards. A princípio sinto-me
apreensiva, mas, como já fiquei a saber, o aspeto pode ser enganador, porque,
no fim de contas, independentemente do exterior de uma pessoa, só há uma
coisa que define o seu comportamento, e isso é a água. Na minha outra vida,
poderia não ter confiado neste tipo. Mas, aqui e agora, confio. Porque sei que
não é um zombie da água. Ainda não se transformou num.
Sinto-me subitamente culpada por ter duvidado das suas intenções.
— Em troca, contudo, pedir-vos-ei que contribuam para o nosso pequeno
esforço — diz Charity. — Em breve iremos recolher mantimentos nas faixas
a norte. Enquanto o Max aqui está a tratar dos vossos problemas com o
veículo, talvez alguns de vocês se pudessem juntar a nós.
— Eu vou — diz Henry, avançando.
Garrett olha para ele e segue o seu exemplo.
— Eu também — diz rapidamente.
A minha reação instintiva é voluntariar-me para tomar conta de Garrett.
Para me assegurar de que ele não se afasta outra vez, nem se mete em
problemas. Mas paro. Ultimamente, o meu irmão não nos meteu em
problemas nenhuns. Talvez lhe deva conceder um pouco mais de espaço. Um
pouco mais de confiança. E, se ele está a tentar contribuir para algo maior do
que ele próprio, não deveria permitir-lhe tal dignidade? Por isso, baixo a
minha guarda de irmã mais velha, digo a Garrett para obedecer a Charity e
junto-me a Jacqui, Kelton e ao alegre motard gigante para atestar a pickup.

Seguimos Max até uma carrinha pequena e branca de uma empresa


paisagística, de onde ele retira uma lata vermelha de combustível vazia e uma
mangueira de jardim — do tipo que não conseguimos encontrar quando
estivemos à procura, anteriormente.
— É muito difícil retirar o combustível diretamente de um tanque para
outro. Precisamos de uma lata como esta, de modo a podermos posicionar
esta ponta da mangueira mais baixa. Sabem, a gravidade.
— Gravidade… — murmura Kelton, claramente irritado por não ter
conseguido perceber isso por si próprio. Garrett tinha percebido
instintivamente essa parte, porque fora à procura de um balde. Hoje todos
tivemos uma oportunidade para nos sentirmos estúpidos.
Avançamos em ziguezague em direção à pickup. O meu corpo ficou
pesado, o que torna cada passo mais difícil do que o anterior. E parece que a
nossa exaustão é um pouco mais óbvia do que eu gostaria de acreditar,
porque Max se apercebe dela.
— Toma. — Leva a mão ao bolso e retira do seu interior um bolo
pequenino envolto em plástico. — É uma MoonPie. Neste momento, o nosso
alimento base.
— Obrigada — diz Jacqui, abrindo o invólucro e mordendo o esponjoso
marshmallow de chocolate. Mastiga-o secamente. Apercebe-se de que há
apenas um e divide relutantemente o resto ao meio, para que eu e Kelton o
partilhemos.
— Bon appétit. Encontrámos uma carrinha cheia deles, há dois dias —diz
Max. Depois acrescenta: — Lembro-me de ter ouvido, há alguns anos, a
história de um navio cruzeiro encalhado. Lançaram-lhes Spam e Pop-Tarts.
Não sei quanto a vocês, mas eu preferia ter MoonPies.
— Já aqui estão assim há tanto tempo? — pergunto. — Há dois dias?
— Há três — diz ele. — Eu vagueei até à autoestrada, dois dias depois do
Fechar da Torneira. Estava pior do que a maior parte das pessoas, porque os
meus medicamentos para a pressão sanguínea me fazem suar como um
cavalo de corrida. Desidratei realmente rápido e não conseguia arranjar uma
gota de água, por muito que procurasse. Vagueei até à autoestrada,
determinado a encontrar água ou cair para o lado. Caí para o lado. Mas o
Anjo da Água encontrou-me. A Charity deu-me água e, quando fiquei forte o
suficiente, pôs-me a trabalhar. Em breve éramos dezenas, todos a trabalhar e
a cuidar uns dos outros.
— À semelhança de uma comuna— diz Kelton.
— Sim, suponho que tenha evoluído para isso. Todos nós temos o nosso
conjunto de aptidões. Eu, por exemplo, sou bastante habilidoso — diz ele
com orgulho.
— Bem, salvaste-nos a vida — digo-lhe.
— Obrigado, mas para isso temos um médico. — Ri-se. — Outros reúnem
mantimentos. Ainda ontem encontraram um semirreboque carregado de
lençóis e almofadas novos.
O simples facto de pensar nisso faz-me ansiar por uma cama confortável.
— Temos pessoas que guardam o perímetro durante vinte e quatro horas
por dia — diz Max. — Foram essas que encontraram o teu irmão.
Chegamos à pickup, e, por sorte, a caixa de ÁguaViva ainda está na parte
de trás. Max instala-se junto a um Hyundai próximo, para retirar o
combustível, e, enquanto o mantenho ocupado, Kelton e Jacqui movem a
ÁguaViva para o assento traseiro da pickup, trancando-a no seu interior.
Dado que a água não é minha, e por isso não tenho o direito de a dar,
contorno a crise de consciência que o facto de esconder a ÁguaViva do Anjo
da Água de outro modo geraria. Ainda assim sinto-me culpada, mas
conseguirei viver com a culpa. Se isso faz de mim uma pessoa má,
preocupar-me-ei com o facto noutro dia.
Jacqui e Kelton, provavelmente, sentem um desejo imenso de abrir a caixa
— eu sei que sinto —, mas como Charity disse, temos sede mas não estamos
desesperados. E Kelton enfiou-nos na cabeça que os mantimentos de
emergência são para emergências. Embora eu não consiga deixar de
pressentir que o desespero está mesmo ao virar da esquina.
28) HENRY

Descobri que os idosos podem ser loucos ou sagazes. Trata-se de uma


equação complexa composta pelas suas experiências de vida, a natureza
avançada dos seus anos, a boa e velha genética e o quão chateados a vida os
deixou. O Anjo da Água é do tipo sagaz — mais sábia do que os anos
vividos, o que é dizer muito, tendo em consideração o quão velha já é.
Descobriu uma maneira simples e brilhante de recolher água — água que tem
estado debaixo dos nossos narizes durante todo este tempo —, mas que é tão
mirabolante que a maior parte das pessoas seria capaz de morrer de sede a
poucos centímetros da fonte e nunca pensar nela.
Líquido de para-brisas.
Não o líquido em si, mas os contentores que o guardam, e que existem em
todos os veículos. A maior parte das vezes, as pessoas enchem-nos com
aquela coisa azul, tipo Windex, que é absolutamente tóxica, mas, de quando
em vez, não se dão a esse trabalho e usam água. Quem diria que seria esse
substrato preguiçoso da sociedade que nos salvaria? Ainda que o Anjo da
Água não esteja disposto a partilhá-la connosco, deter esse conhecimento é
suficiente. Uma espécie de teoria de ensinar o homem a pescar.
Somos enviados em equipas de dois, para procurarmos água nos veículos
que se dirigiam para norte na autoestrada, talvez a uns quatrocentos metros de
distância, porque todos os automóveis mais próximos já foram inspecionados.
Somos acompanhados por um par barrigudo de gémeos idênticos, na casa dos
20: o Tweedle-dumb e o Tweedle-dumber. Há uma mãe irritante e a sua
criança aparentemente muda, bem como um casal mais velho, que já está
casado há tanto tempo que os dois se transformaram numa versão andrógena
e quase idêntica um do outro. Cada equipa recebe uma mochila, uma
lanterna, um cabide e um pé de cabra. Muitos dos veículos estão trancados, o
que significa que é impossível abrir os capôs, pelo que usamos os cabides
para tentar abrir as fechaduras, e, se tudo o resto falhar, utilizamos o pé de
cabra para partir a janela.
— Não estamos propriamente a destruir propriedade que ainda seja
importante — diz Charity, antes de partirmos. — O mais certo é que estes
veículos sejam todos arrastados por um buldózer, para limpar a autoestrada,
quando tudo isto terminar.
Embora tenha recebido instruções para me manter atento a objetos que
possam beneficiar o coletivo, tenho estado mais interessado num tipo de
coisas diferente.
Sabem, no calor do momento, quando as pessoas estavam a fugir destas
autoestradas, aconteceu algo verdadeiramente interessante. Houve uma
alteração de valores cataclísmica. Semelhante ao crash dos mercados. Os
eventos externos misturaram-se com a psicologia das multidões e geraram
um loop de feedback positivo. Bem, positivo, mas não para elas. O seu único
objetivo era sobreviver — o que significa que as pessoas rapidamente se
esqueceram de artigos de elevado valor que não aumentavam as suas
oportunidades imediatas de sobrevivência. Relógios, joias, dinheiro…
ficariam espantados com as coisas que podemos encontrar nos suportes para
copos e nos porta-luvas. Não que tais coisas tenham sido deixadas de
propósito, foram simplesmente esquecidas, porque já não constavam da lista
dos bens críticos. Claro que muitos automóveis não continham nada a não ser
tralha, mas consigo adquirir alguns ativos inesperados que, de outro modo, se
desperdiçariam.
— Olha o que eu encontrei — diz Garrett, espreitando pelo vidro retrovisor
de um veículo com porta traseira de elevação. Garrett aponta para um saco de
fraldas no banco de trás — lembro-me de ver uma mulher com um bebé,
sentada junto ao fogo.
— Bem pensado — digo-lhe, porque o valor assume muitas formas. — Ela
vai gostar disso. — E, percebo, também os restantes.
A porta, claro, está trancada e as múltiplas tentativas para a destrancar com
o cabide são menos eficazes aqui do que noutras viaturas.
— Suponho que teremos de partir o vidro — digo.
Àquelas palavras, Garrett responde, quase involuntariamente, com um
sorriso matreiro. Aquele sorriso diz imenso. Diz que ele quer partir coisas,
mas nunca teve autorização para o fazer. Quer ser selvagem, mas nunca lhe
deram trela para isso. Conheço a sensação — e apercebo-me de que o posso
poupar a anos de terapia, no futuro, com uma simples ação.
Entrego-lhe o pé de cabra.
— Fá-lo tu — digo.
Ele parece um bocadinho assustado.
— Tens a certeza?
Encolho os ombros.
— A Charity disse que podíamos fazer, se fosse a única maneira de entrar,
certo? Vamos, tenta.
Garrett ergue o pé de cabra, oferece-me de novo aquele sorriso
involuntário e atinge a janela. Esta estilhaça-se ao primeiro golpe — não com
um som explosivo, mais como o estalar de uma lâmpada, seguido pelo
matraquear dos pequenos pedaços do vidro de segurança. Fico, na realidade,
surpreendido pela quantidade de força que aplicou. Pensei que o seu primeiro
golpe fosse tímido.
— Muito bem! — digo-lhe. — Tenta outro.
Sem hesitar, ele vira-se para o veículo atrás de nós e volta a bater com o pé
de cabra, partindo a janela mais próxima.
— É a minha vez — digo-lhe. Vejo um Mercedes com um ornamento no
capô. O automóvel parece-se com o do idiota do meu vizinho, que nos
processou por termos erigido um muro de sustentação que entrava cinco
centímetros na sua propriedade. Atinjo o ornamento, plenamente preparado
para o ver a voar como uma bola de golfe, mas, em vez disso, ele dobra-se e
volta de novo ao sítio. Maldição. Esqueci-me que os ornamentos da Mercedes
fazem isso, para não serem arrancados durante as lavagens. Atinjo-o segunda
vez e ele ergue-se de novo, o que faz Garrett rir.
— Pregou-te uma partida! — diz ele.
— Oh, sim? Toma disto. — E parto um vidro lateral.
De súbito, um dos Tweedles aproxima-se de nós com o seu passo pesado.
— Hei! — grita. — É suposto estarem à procura de água!
— Não conseguíamos entrar — informo-o. — Tivemos de partir a janela.
Ele olha para o espelho retrovisor pendurado.
— Isso não é uma janela.
— Acho que falhei.
Garrett ri à socapa, e o Tweedle fita-me, de olhos muito abertos.
— Não te desvies da tua tarefa! — Depois volta a afastar-se, com o seu
andar pesado, para junto do irmão, que desde há cinco minutos tem estado a
tentar entrar, com muito cuidado, num Buick.
Viro-me e vejo Garrett a sorrir-me — e apercebo-me de que está a olhar
para mim de uma maneira que não olha para a irmã. Claramente, nunca teve
na sua vida a figura de um irmão mais velho. Isso deixa-me numa posição
única.
Encosto-me ao automóvel e falo casualmente.
— A tua irmã matava-me agora, se visse o que estamos a fazer.
— E depois? — Ele leva a mão ao pé de cabra, mas, cumprindo o papel de
irmão mais velho emprestado, mantenho-o fora do seu alcance, indicando-lhe
que já chega. Por agora.
— É engraçado como ela te trata como se fosses apenas um miúdo —
digo-lhe —, embora sejas aquele que tem apresentado as melhores ideias.
Ele olha para mim, com os olhos só um bocadinho abertos de mais.
— Achas mesmo?
— Estás a brincar? Se não fosses tu não tínhamos encontrado o aqueduto.
E não foste tu que encontraste estas boas pessoas? Graças a ti temos um lugar
seguro para passar a noite.
— Sim, acho que sim.
— Todos temos as nossas aptidões. A tua é ver coisas que nós não vemos.
É verdade, e percebo que ele fica satisfeito com o facto de eu reparar em
coisas que os outros ignoram — tal como ele. É um momento de união. Um
momento que serve um propósito…
— Então, diz-me — começo —, que outras coisas vês que os outros não
veem?
Ele pensa na questão, depois diz:
— Bem, não acho que a Jacqui seja tão horrível quanto a Alyssa pensa que
é.
— A sério, o que te faz pensar isso?
— Bem, é como as raparigas da equipa de futebol. A Alyssa fala sempre
mal daquelas que vê mais ou menos como uma ameaça. Aposto que a Jacqui
e a minha irmã poderiam ser amigas, se não estivessem tão determinadas em
odiarem-se.
Uma observação atenta. Útil também. Se conseguir mantê-las viradas uma
contra a outra, não se virarão contra mim; ou, pelo menos, Alyssa não se
virará. Depois de quase ter deixado Jacqui apeada no centro de evacuação,
duvido que alguma vez a consiga reconquistar, mas posso não ter de o fazer.
— Então e o Kelton? — pergunto-lhe.
Ele ri.
— Esse está apenas satisfeito por estar no mesmo automóvel que a minha
irmã. O Kelton tem uma paixão louca pela Alyssa desde, tipo, sempre!
Finjo choque.
— Não me digas!
— Não, a sério. Quando estavam na primária, ele atirava bolas para o
nosso pátio de propósito, e, quando passaram para o oitavo ano, apanhei-o a
espiá-la com um dos seus helicópteros drones com câmara. Ele pagou-me dez
dólares para não lhe contar!
Não era bem a informação de que eu estava à procura, mas quando
pescamos uma bota nunca sabemos o que mais poderá estar a espreitar do seu
interior.
— A espiar como? — pergunto.
Ele senta-se em cima do grande pacote de fraldas para me contar uma bela
historieta.

Regressamos ao acampamento para nos juntarmos aos outros cerca de uma


hora mais tarde — embora Garrett e eu não tenhamos conseguido encontrar
reservatórios de limpa-para-brisas que contivessem água, alguns dos outros
conseguiram. Mas contribuímos de outra maneira. Encontrámos alguns
analgésicos, uma coluna Bluetooth plenamente carregada, binóculos e, claro,
as fraldas.
Charity anda de um lado para o outro, a analisar e a escolher quem é que
precisa mais da água que têm, enquanto o nosso pequeno grupo é conduzido
a cinco automóveis perto do perímetro protegido, cujos assentos traseiros
foram cobertos por lençóis de linho. Alguém deixou uma MoonPie em cada
almofada. Um verdadeiro serviço de quarto.
— Aqui está, Garrett — diz Alyssa —, sempre quiseste um carro-cama,
não é?
Garrett não se sente divertido.
Jacqui olha para a sua MoonPie. Sabor a banana.
— Como é que eu posso sequer digerir isto sem água? — diz ela. — E
como é que sei que não morrerei de sede enquanto durmo?
— Não morrerás — diz Kelton. — Terias de estar muito pior para isso.
Sentir-te-ás cada vez mais cansada, mas depois, imediatamente antes do final,
terás uma súbita explosão de energia. É o confronto final do corpo. Depois
disso, tudo estará terminado.
— Demasiada informação, Kelton — diz ela, não querendo pensar naquilo.
— Demasiada informação.
Devíamos todos deitar-nos, mas estamos naquele estado em que nos
sentimos demasiado exaustos para dormir e nenhum de nós está com vontade
de dormir com este calor — que parece apenas alguns graus menos quente do
que durante o dia. Tiro o blusão que havia adquirido anteriormente e pouso-o
no meu colo, desejando que os seus fabricantes tivessem tido o bom senso de
utilizar um tecido que respirasse.
Passamos algum tempo numa pequena clareira entre os automóveis, para
nos refrescarmos. Os fogos que ardiam nas latas de lixo foram apagados e a
Lua pinta-nos a todos com as suas sombras azuis.
— Não percebo mesmo — diz Jacqui. — Como é que estas pessoas não se
estão a destruir umas às outras, como em todos os sítios por onde passámos?
— Criaram um sistema — diz Alyssa. — Nem todos conseguem isso.
Sinto a necessidade de os esclarecer.
— O comunismo só funciona na teoria, e é contra a natureza humana. Este
lugar não irá durar muito.
— Não tem de durar muito — realça Alyssa. — Apenas até a crise
terminar.
— Acabarão por se virar uns contra os outros — diz Jacqui. — Todos
acabam por o fazer.
Alyssa lança-lhe um olhar irado.
— Talvez todos os que sejam como tu.
— Oh, vais-me dizer que os teus vizinhos não eram como estas pessoas?
Bons cidadãos honrados, até terem começado a comer as crias?
Olho para Garrett, que se limita a abanar a cabeça com ar cúmplice. Jacqui
e Alyssa jamais concordarão com o que quer que seja.
— As pessoas são uma treta — diz Kelton, acrescentando a sua própria
opinião. — Sempre foram, sempre serão.
— Não vejo as coisas assim — diz Alyssa. — As pessoas podem fazer o
que for preciso, para sobreviverem, mas, quando não têm de se preocupar
com isso, são diferentes.
— Por vezes — argumenta Kelton. — Mas nem sempre. Algumas pessoas
são sempre assim e só fingem serem civilizadas.
Ele diz isso a olhar para mim. Não tenho a certeza de que tenha sido
intencional, mas ainda assim irrita-me.
Jacqui abana os joelhos, divertida.
— Ooooh, parece que estamos perante um dilema filosófico clássico, de
Hobbes versus Rousseau.
Ouvir Jacqui a tecer uma tal referência apanha-me desprevenido. Em
especial porque não sei exatamente quem são Hobbes e Rousseau — mas não
saber e admitir que não sei são duas coisas completamente diferentes.
— Sim, é uma maneira de ver a questão — digo-lhes. — Mas acho que
estão ambos errados. As pessoas são nomes, as ações são verbos. Maçãs e
laranjas.
— Ding! Ding! Ding! E encontrámos o nosso Maquiavelli! — anuncia
Jacqui, como se fosse um apresentador. E depois, de súbito, tão absurda e
inesperadamente quanto os filósofos que sacou do traseiro, tira uma arma só
Deus sabe de onde. Uma arma. Uma. Maldita. Arma. A. Sério.
Todos saltamos de susto, mas talvez eu mais do que os outros. Será que ela
sempre a tivera? E agora começo a pensar nas dezenas de vezes em que ela
me poderia ter dado um tiro, hoje — como quando lhe apontei aquela pressão
de ar. Não foi a minha melhor jogada.
— Raios, guarda a minha arma! — diz Kelton, acrescentando mais uma
camada a este bolo louco. Ele disse que a arma era dele?
Ela limita-se a ignorá-lo, fitando, maravilhada, a arma, excitada.
Revigorada.
— Diz-me, Henry, se eu metesse uma destas balas na tua cabeça e
espalhasse o teu cérebro por cima do Kelton e da sua MoonPie, eu seria um
nome ou um verbo?
— Jacqui, guarda isso antes que mais alguém veja! — rosna Alyssa.
Mas isso só dá ainda mais energia a Jacqui. Ela recusa-se a ser controlada,
e agora percebo porque é que Alyssa a vê como uma ameaça. Porque ela o é.
— Vamos, Henry — provoca Jacqui. — Pensei que eras o capitão da
equipa de debate… ou pelo menos fingiste sê-lo. — Depois aponta a arma
para mim. — Convence-me de que eu não sou as minhas ações. Que fazer
algo mau não faz de mim má.
Falo rapidamente, tentando fingir que não estou a um pequeno passo de
cair no esquecimento. Não sei se a arma ainda tem a patilha de segurança
ativada. Raios, nem sequer sei realmente o que é uma patilha de segurança.
— Não serias nem boa nem má, nem estarias certa nem errada, porque os
conceitos são fluidos e subjetivos, e mudam, dependendo de matar-me ser ou
não a coisa certa a fazer, mas não faz… sem sombra de dúvida que não faz!
Jacqui mantém-se firme. Todos os outros estão imóveis. Ninguém quer
saltar para o meio de nós e fazer disparar a arma, talvez acidentalmente. Por
fim, ela baixa o braço e guarda a arma, subitamente desinteressada.
— Não tens piada — diz ela. Jacqui volta a comer o seu bolo, falando com
a boca cheia. — De qualquer maneira, vocês não passam de um monte de
gatos assustados: não havia nenhuma bala na câmara — diz ela. — Ou será
que havia…?
Nota mental: existem agora dois psicopatas confirmados no nosso grupo de
cinco pessoas. Kelton e Jacqui terão de ser derrubados se quero assumir o
lugar que é meu por direito, à frente do grupo, e proteger Alyssa e o seu
irmão.
29) ALYSSA

Estou deitada na minha cama improvisada, os olhos bem abertos. Pelo menos
acho que estão. Não tenho energia para dormir ou para ficar acordada. Por
isso, dou voltas, mergulhando e emergindo da inconsciência, num delírio de
ansiedades que assombram ambos os estados. Penso em Jacqui. Na arma.
Nos meus pais. Tudo misturado com pesadelos de saqueadores que pilham a
autoestrada como os que assaltaram a casa de Kelton — liderados por Hali,
da minha equipa de futebol, e pela mãe dela, que tem quatro metros e meio de
altura e rouba a água de toda a gente. Depois começa a chover sangue e
Kingston está lá, a lamber tudo. A chuva dá lugar ao som de batidas… Os
meus olhos abrem-se de repente. É o Henry, e está de pé, do lado de fora do
automóvel, a bater na janela meio aberta. Ainda está escuro. Não sei se será
perto da meia-noite ou mais próximo da madrugada.
— Estavas a falar enquanto dormias — diz. — Conseguia ouvir-te do meu
automóvel.
— Oh. Desculpa. — Para ser sincera, fico satisfeita por ele me ter
acordado. Mesmo cansada como estou. Prefiro-o às outras alucinações, por
isso abro a porta e saio, espreguiçando-me.
— Já reparaste que está a nevar?
— Como?
De facto, flocos de neve caem suavemente à nossa volta. Mas devem estar
mais de trinta graus. Agora sei que o mundo enlouqueceu.
— Mas não os apanhes com a língua — diz Henry. — Não me parece que
saibam muito bem.
Apanho um na mão e esfrego-o entre os dedos. É cinza.
— Os fogos rasteiros aumentaram de dimensões — diz-me. — Neste
momento, são já fogos florestais por direito próprio. É bastante para leste,
mas os ventos de Santa Ana estão a trazer a cinza na nossa direção.
Enquanto olho à nossa volta, os veículos começam a ficar com uma fina
camada de pó cinzento.
Apoiamo-nos ao lado do meu Cadillac, vendo a «neve» a cair.
— Está tudo tão calmo agora — digo. — Quase nos faz esquecer do que
anda por aí.
— Não há nada por aí a não ser pessoas — realça Henry.
— As pessoas podem ser monstros. Quer seja apenas pelas suas ações,
quer seja por realmente o serem, não importa. O resultado é o mesmo.
Henry encolhe os ombros, como se isso não o incomodasse. Pergunto-me
se será realmente tão despreocupado em relação a isto, ou se estará apenas a
montar uma encenação para mim.
— Por vezes, temos de ser monstros para sobreviver — diz.
Abano a cabeça perante tal ideia, depois faço uma careta devido à dor que
o movimento da cabeça me provoca.
— Nunca conseguiria ser esse tipo de monstro — digo-lhe. —
Independentemente do que pudesse acontecer.
Em vez de comentar, Henry permite que um «floco de neve» aterre na
palma da sua mão, estudando-o por alguns instantes.
— Queria pedir-te desculpas — acaba por dizer —, por não te ter dito a
verdade acerca de não ser o tipo que o meu casaco diz que sou, mas, com
tudo o que estava a acontecer, não me pareceu ser o momento certo.
Nenhum pedido de desculpas está completo sem o seu «mas». Bem, pelo
menos está a tentar. Por isso, decido deixá-lo em paz. Sei que é parvo da
minha parte confiar nele, mas decido fazê-lo mesmo assim.
— Eu percebo. A boa educação seguiu o mesmo caminho que a água
corrente — digo-lhe. — Ninguém está a agir como agiria normalmente.
Ele sorri.
— És uma pessoa muito indulgente. — O seu sorriso parece verdadeiro, e
afasto o meu olhar do dele. Pergunto-me se será possível ver alguém corar
sob a luz do luar cor de cinza.
— Na verdade, não — digo. — Simplesmente não guardo rancor. — O que
não é completamente verdade; tenho muitos rancores. Mas, neste momento,
mantê-los seria um desperdício de energia valiosa.
— Mas tu és clemente — insiste. — Deixaste-me vir convosco, mesmo
depois de ter adquirido a carrinha do teu tio. E parece que começas a perdoar
à Jacqui por… bem, simplesmente por ser a Jacqui. Até perdoaste ao Kelton
depois de toda aquela cena com o drone.
Concentro-me naquela última parte.
— Desculpa?
— Tu sabes. O facto de ele olhar pela tua janela com o seu drone?
Mas não sei. Não faço ideia do que estará ele a falar. O meu estômago
começa a encher-se com uma sensação esquisita, gordurosa.
— Quem te disse isso?
— É possível que o Garrett o tenha referido de passagem. Mas não o metas
em problemas. Só falo nisso para acrescentar provas ao meu argumento
acerca da tua natureza clemente. — Depois sorri. — Eu fingi ser o capitão da
equipa de debate, sabes.
Mas, neste momento, não me sinto indulgente de todo. Sinto-me parva. E
envergonhada. E violada. O meu rosto deve estar a assumir uma tonalidade
vermelha muito mais visível, porque Henry diz:
— Espera… quer dizer que não sabias?
Porque devo eu sentir-me envergonhada? Kelton é que foi sinistro! E, sem
pensar duas vezes, abandono Henry e avanço intempestivamente para Kelton,
no seu pequeno e estúpido automóvel, batendo-lhe à porta, pontapeando-a,
até ele levantar a pavorosa cabecinha ruiva e a abrir.
— O que é? O que foi? O que se passa?
— Soube-te bem, Kelton? — rosno. — Soube? Foi divertido? Foi tudo o
que estavas à espera que fosse? — Sei que, no meio de tudo o que se está a
passar, esta não é a nossa principal prioridade, mas sinto-me como se fosse.
Parece-me importantíssimo.
— O quê? De que estás a falar? — gagueja.
— Usaste ou não o teu drone para me espiar?
Ele hesita. É toda a resposta de que preciso. Empurro-o de novo contra o
automóvel.
— És um sacana! Miserável! Fedorento!
— Alyssa, isso foi no oitavo ano!
— NÃO existe um prazo legal para se ser um verdadeiro IDIOTA!
— Só o fiz uma vez!
— Não interessa quantas vezes o fizeste! O facto é que fizeste!
— Alyssa…
— Não digas o meu nome! — grito-lhe. — Nem sequer o penses. Nunca!
Afasto-me dele intempestivamente, porque sei que, se ficar, vou continuar
a gritar, e isso irá acordar metade das pessoas que ali estão e fará com que
venham a correr, e não quero fazer disto um caso maior do que já é. Neste
momento, tenho uma batalha a desenrolar-se dentro da minha cabeça. Parte
de mim quer arquivar isto e lidar com a questão quando não estivermos em
crise. O irmão dele está morto. Há mais desafios de vida ou de morte que
ainda temos de enfrentar. No entanto, há uma outra parte de mim que se
recusa a ser silenciada ou ignorada. A parte normal, que não deixa passar um
ato tão inaceitável só porque temos preocupações maiores.
Independentemente de tudo o mais que se esteja a passar, tenho todo o direito
de sentir o que estou a sentir!
Regresso ao meu veículo. Tenho sede e estou furiosa, e acho que afinal
talvez seja preferível enfrentar os pesadelos a isto.
Henry surge à janela.
— Alyssa, desculpa, não queria perturbar-te…
— Bem, fizeste-o! — riposto. Depois sinto-me culpada. Por isso falo num
tom um pouco mais gentil. — Sei que não devia culpar o mensageiro, mas é
difícil não o fazer.
— Compreendo. — Depois pousa a mão no puxador da porta. — Posso
entrar?
Considero a questão. Mas, neste momento, quero manter toda a
humanidade ao largo.
— Vemo-nos de manhã — digo-lhe.
— Está bem — diz ele. — Dorme bem.
Mas ambos sabemos que há zero hipóteses de que isso aconteça.
PARTE QUATRO

REFÚGIO
DIA SEIS

QUINTA-FEIRA, 9 DE JUNHO

30) KELTON

Alyssa não fala comigo, Garrett não olha para mim, e Jacqui parece achar
tudo isto divertido.
— Somos apenas uma família feliz e disfuncional — diz ela.
Henry não diz nada, mantendo um sorriso arrogante por trás do volante.
Garrett confessou-me aquilo que contou a Henry, e Henry não perdeu
tempo a transformar a informação numa arma para usar contra mim. Ocupo a
minha mente a pensar em todos os golpes dolorosos que posso infligir a
Henry quando chegarmos ao refúgio. Deslocar-lhe o outro ombro, partir-lhe o
braço, dar-lhe um pontapé na rótula. Conheço os golpes e estou bastante
confiante de que seria capaz de os executar. Basta apenas que ele me dê uma
razão. Expor perante Alyssa os meus disparates de miúdo do segundo ciclo
devia ser razão suficiente, mas isso foi apenas o meu karma a virar-se contra
mim. Por muito que queira, não posso aplicar um golpe desses a Henry
enquanto ele não revelar ser o perigo, claro e iminente, que desconfio que
seja. Mas não posso agir com base num pressentimento. Em especial, quando
Alyssa confia muito mais nele do que em mim.
Já passou meia hora desde que deixámos a pequena comuna de Charity, na
autoestrada. Limpámos o nosso pequeno acampamento de madrugada,
dobrámos os lençóis de linho e devolvemo-los. Soube bem dobrar aqueles
lençóis. Senti-me decente. É engraçado que essa já tenha sido a tarefa de que
menos gostava. Despedimo-nos de alguns dos amigos que fizemos durante a
nossa breve estadia, como Max, o motard habilidoso. O Anjo da Água
despediu-se de nós com mais alguns daqueles pães de ló de marshmallow e
depois distribuiu abraços. Apertado nos seus braços senti, de uma maneira
esquisita e infantil, que não queria largá-la.
Sei que Alyssa não queria partir. Na verdade, fiquei surpreendido por ela
não ter decidido ficar, só para se ver livre de mim. Quer dizer, teria recebido
água, ali; ou pelo menos recebê-la-ia quando estivesse suficientemente
desidratada. Talvez não suportasse a ideia de eu chegar ao refúgio e receber
água antes dela; ou talvez não quisesse separar-se de Henry. Porquê dar-me
ao trabalho de lhe partir um membro? Podia bater com a palma da mão no
nariz dele e enfiar-lhe o osso nasal para dentro do cérebro.
Tivemos de voltar a colocar a caixa de ÁguaViva nas traseiras da carrinha,
para termos espaço para todos no interior da cabina — algo difícil de fazer
sem levantar suspeitas. Houve uma discussão sussurrada quanto a devermos
ou não retirar algumas garrafas para bebermos de imediato — e, desta vez,
até eu estava disposto a fazê-lo… mas não tínhamos forma de abrir a caixa
sem revelar a Charity e aos seus companheiros da autoestrada que tínhamos
água.
— Se descobrirem que a temos, já sabem o que irá acontecer — disse
Jacqui. — Vai declará-la propriedade da comunidade, dividi-la pelos seus
seguidores e lá se vai o nosso fornecimento de emergência.
Estava à espera de que Alyssa objetasse, porque ela é a única, entre nós,
suficientemente altruísta para concordar com isso. Mas não o fez. Talvez a
sua raiva em relação a mim se tenha espalhado ao resto do mundo.
Concordámos que devíamos encostar e abrir a caixa quando estivéssemos
suficientemente longe, mas, agora que estamos em movimento, Henry
recusa-se, de todo, a parar.
— Estamos quase lá. Porquê parar agora? Podemos aguentar mais uma
hora, certo?
— Sim, podemos esperar — diz Garrett, que, de súbito, quando ninguém
estava a ver, se transformou no cãozinho de Henry.
E, como ninguém quer mostrar menos autocontrolo do que um miúdo de
10 anos, todos aceitamos.
— Mas, se demorar mais de uma hora, dar-te-ei pontapés na cabeça até
parares a carrinha e nos dares água — anuncia Jacqui. Eu ficaria feliz se ela
começasse já a dar-lhe pontapés na cabeça, mas guardo esses pensamentos
para mim.
Olho pela janela do veículo. Há uma neblina que paira no ar, espessa e
cáustica. Todo o Sul da Califórnia está coberto pelo fumo dos incêndios
descontrolados. A madrugada é de um carmesim furioso e o Sol — que
entretanto se ergueu o suficiente para espreitar por detrás das montanhas — é
quase bordeaux, parecendo-se mais com uma lua de sangue do que com o
Sol.
Esta manhã, não pusemos música a tocar no rádio. Em vez disso, saltámos
das estações por satélite para as normais. A maior parte das estações de rádio
ou estão desligadas ou ativaram a rede de transmissões de emergência, pelo
que dá a mesma coisa em quase todo o lado. A maioria das coisas já nós
sabíamos. Os centros de evacuação estão cheios — as pessoas estão a ser
levadas diretamente para as instalações suplementares, blá, blá, blá.
Continuamos a ouvir a transmissão, porque preciso de saber o que se passa
com os incêndios. Três lavram longe, a leste — um deles está a bloquear por
completo a estrada para o lago Big Bear. Dois ardem em Castaic, mais de
oitenta quilómetros a oeste da nossa posição atual, ameaçando o acesso ao
lago Castaic — para onde se dirigem milhões de habitantes de Los Angeles.
Um relato fala sobre a chegada de ajuda às praias, uma vez mais, durante o
dia de hoje, mas não há como saber qual será o sucesso desta segunda vaga.
Imagino a Segunda Guerra Mundial e as forças americanas a tomar de assalto
as praias da Normandia, mas com água em vez de armas. Uma operação
assim demoraria meses a ser organizada. O que quer que estejam a planear
para hoje, está condenado a ficar aquém das necessidades.
— Se há água potável na praia, talvez devêssemos ir antes para lá — diz
Henry, não fazendo ideia daquilo por que nós já passámos.
— Limita-te a conduzir — diz Alyssa, sem querer explicar.
Após percorrermos o aqueduto durante cerca de meia hora, saímos dele e
seguimos a estrada na base do monte, suficientemente longe da civilização
para deixarmos para trás a maior parte dos bloqueios. Finalmente chegamos a
um sinal que diz «ESTÁ A ENTRAR NA ANGELES NATIONAL FOREST», com um cartaz
vermelho que afirma: «RISCO DE INCÊNDIO: ELEVADO». Que grande «duh».
Parece que já houve aqui um bloqueio — cones e barreiras plásticas —,
mas foi afastado e o local está deserto. Aparentemente, o pessoal foi preciso
noutro local. Continuamos a conduzir e a estrada começa a serpentear.
— Já não falta muito — digo a toda a gente. — Cerca de quinze
quilómetros mais acima mantenham-se atentos a uma estrada de terra à nossa
esquerda. Conduz devagar, porque é fácil não a vermos.
— Dói-me a cabeça — anuncia Garrett. Como se não tivéssemos todos
dores de cabeça.
— É do fumo — diz-lhe Alyssa, embora, provavelmente, se deva mais à
desidratação. — Tenho a certeza de que haverá Advil no refúgio.
— Há — digo-lhe, mas ela nem sequer dá sinais de me ter ouvido. Sente
nojo por estar no mesmo veículo que eu. Suponho que eu também sentiria.
Claro que se fosse ao contrário, se ela tivesse um drone e olhasse pela minha
janela, me sentiria lisonjeado. A menos que estivesse a rir. Não, acho que me
sentiria igualmente horrorizado. Provavelmente devia deixar que ela me desse
uma tareia e ultrapassasse a questão. Mas suponho que, na nossa atual
situação, as tareias não sejam uma prioridade. E agora sinto-me estúpido por
me preocupar com isso. Como se a minha humilhação significasse alguma
coisa no panorama geral daquilo que estamos a enfrentar. E, no entanto, na
minha cabeça idiota significa. Parvo.
— É aquela a estrada que procuramos? — diz Jacqui, uns quinze minutos
depois.
— Sim — digo, embora, para ser sincero, não esteja cem por cento seguro.
Mas ficaremos a saber em breve. — Vira aqui.
Henry sai da estrada pavimentada e passa para o estreito trilho de terra. A
pickup quase não cabe entre as árvores, e a estrada é irregular. A suspensão
da pickup absorve o pior dos solavancos, mas tem os seus limites. O meu
cérebro chocalha contra as paredes do crânio. Garrett geme, dizendo a Henry
para não ir tão depressa, mas ele não vai nada depressa.
— O que devemos procurar? — pergunta Henry.
— Vamos passar por cima de um cume, voltando a descer para um vale —
digo-lhe. — Acabaremos por chegar a um riacho rochoso, seco. Uma vez lá
chegados, vira à direita e segue o riacho durante cerca de três cliques.
— E o que é exatamente um clique?
— Um quilómetro.
— E depois vemo-lo?
— Não o veremos — digo-lhe. — Essa é a ideia do refúgio.
Dez minutos depois chegamos ao riacho e suspiro de alívio em segredo,
porque significa que aquela sempre era a estrada de terra batida certa. Henry
vira à direita e seguimos o caminho rochoso, evitando os pedregulhos e as
valas ao longo do caminho. Por fim, chegamos a um tronco de árvore de
pernas para o ar, com uma fita vermelha presa nas suas raízes mortas,
nodosas. Só que não foi apanhada por elas, foi ali atada. É o nosso marcador.
— Para — digo a Henry. — Chegámos.
Saímos da carrinha e conduzo toda a gente pelo talude do riacho, e de volta
à floresta. Cerca de noventa metros mais à frente, paro.
— Aqui estamos — digo a toda a gente.
— Aqui, onde? — pergunta Jacqui. — Não vejo nada senão um monte de
árvores.
— É subterrâneo? — pergunta Garrett.
— Não — digo, e fico ali, à espera, perguntando-me quem será o primeiro
a vê-lo.
Alyssa é a primeira. Estava disposto a apostar que seria ela. Arqueja e
aponta.
— Ali! — diz. — É espelhado! — Corre uma dezena de metros em frente,
e os restantes seguem-na. À medida que nos aproximamos, a ilusão
enfraquece, mas só porque o vidro foi ficando sujo.
O nosso refúgio é uma pequena estrutura de forma triangular — as paredes
laterais espelhadas são inclinadas, para poderem refletir as secções mais altas
das árvores em vez de refletirem as pessoas que possam estar a aproximar-se.
É uma camuflagem muitíssimo bem-sucedida.
— Sinto um amor súbito pela tua família gravemente perturbada — diz
Jacqui.
Tal como em casa, há uma chave escondida. Está num buraco de uma
árvore, embora demore alguns minutos a descobrir a árvore certa, depois
mais alguns minutos a vasculhar o buraco, desalojando uma aranha e diversas
outras criaturas desagradáveis que dele fizeram a sua residência. Por fim,
consigo enfiar a mão e tirar a chave.
Avanço em triunfo até à porta — que também é espelhada — e deslizo a
chave para a fechadura de ferrolho.
— Bem-vindos — digo — ao Castelo McCracken!

31) JACQUI

Quantas vidas terei eu gasto até ao fim desde o motim na praia? Estou
habituada a que a vida mude num abrir e fechar de olhos, mas o Fechar da
Torneira fez de cada momento uma ameaça. A forma como vivo agora não se
assemelha a nenhum dos meus dias passados, e aquele vazio que sempre me
provocou é agora um alvo em movimento, fazendo-me perder todo o sentido
de direção.
Mas neste momento não quero saber de nada disso. Tudo o que quero é
poder beber, calma e demoradamente. Não tem de ser nada fresco. Basta que
seja líquido.
O nosso improvável grupo de sobreviventes acidentais ergue-se agora no
exterior do refúgio da família de Kelton, enquanto este faz um grande
espetáculo com a abertura da porta.
— Bem-vindos ao Castelo McCracken!
— Deixa-nos entrar de uma vez — diz Garrett.
Por fim, Kelton roda a chave e abre a porta toda.
Castelo McCracken, o tanas! O refúgio refugiou-se noutras paragens. O
espaço está um caos. Há latas no chão, roupas atiradas por todo o lado.
Caixas de cereais vazias tombadas de lado. O espaço é pequeno, mas parece
ainda mais pequeno com toda a tralha por ali espalhada. É como se um urso
tivesse entrado pelo buraco da fechadura.
— Isto não está certo… — diz Kelton. — Não deixámos isto assim…
— Quando foi a última vez que aqui estiveram? — pergunta Henry,
examinando uma colher coberta de manteiga de amendoim.
— Talvez há um ano? — diz Kelton, como se fosse uma pergunta, mais do
que uma resposta.
Parece-me que sou a única com coragem para declarar o óbvio.
— Houve um arrombamento.
Mas Kelton abana a cabeça.
— Não há qualquer sinal disso. A fechadura estava intacta, e a casa não foi
pilhada.
— A mim parece-me pilhada — diz Garrett.
— Sim — concorda Kelton —, mas não como um ladrão faria.
Explorando mais a fundo, Kelton abre uma porta para um quarto. Duas
camas. Uma está feita, a outra desmanchada. Há livros de banda desenhada
no chão.
Kelton parece ter apanhado um susto de morte.
— Não! — diz. — Não, não, não, não, não!
Volta para trás, afastando-nos do caminho e entrando na cozinha, onde
abre as portas dos armários. Estes estão praticamente vazios.
— Não, não, não, não, NÃÃÃO!
Ajoelha-se, abrindo um alçapão e deixa-se cair lá para dentro. Não
conseguimos fazer mais nada senão assistir ao seu pânico, não querendo
torná-lo nosso. Ele anda de um lado para o outro, lá em baixo. Conseguimos
ouvir o bater de garrafões — e atira dois deles violentamente. Quando baixo
os olhos, vejo lá em baixo um monte de garrafões de plástico. Vazios. Todos
vazios.
— Se não foi um arrombamento, o que raio aconteceu aqui? — pergunto.
— O meu irmão aconteceu aqui! — diz, com tanta angústia nos olhos que
tenho de afastar os meus. — Devia ser aqui que o Brady estava a viver!
Sabíamos que ele tinha perdido o trabalho e deixado os colegas de quarto.
Pensámos que estivesse a viver com a namorada. Nunca nos ocorreu que
pudesse vir para aqui. Onde sabia que havia comida e água suficientes para se
aguentar durante vários meses…
E apercebo-me de que a palavra mais importante aqui é «havia». «Havia» é
a diferença entre a salvação e a condenação.

32) ALYSSA

Isto não é o fim do mundo, digo a mim mesma. É apenas uma falha. E agora
sinto-me grata por Henry ter sido tão teimoso em relação a não abrirmos a
caixa de ÁguaViva. Apesar de todas as forças que foram mobilizadas para
trazer ajuda, ainda tardará até que a cadeia de abastecimento possa fazer face
à procura — e a ÁguaViva ajudar-nos-á a aguentar durante esse tempo.
Haverá pessoas — imensas pessoas — que não serão capazes de aguentar
assim tanto tempo, mas não estaremos entre elas. Graças a Henry. Ele queria
tanto ser o herói. Agora é.
Kelton não para de vasculhar no espaço de armazenamento lá em baixo,
agarrando em todos os garrafões de água de plástico, tentando retirar deles
nem que seja a mais ínfima gota, mas todas as garrafas estão abertas e
qualquer humidade que nelas possa ter restado já há muito secou.
— Não acredito que o Brady fez isto! — chora. — Como pode ter feito
isto? Ele sabe que não pode!
— Sabia que não podia — corrige Jacqui, e eu bato-lhe com força
suficiente para gerar um olhar de aviso, que devolvo com igual ferocidade.
Será que já se esqueceu de como foi terrível a morte de Brady, ou será tão
insensível que nem quer saber?
Jacqui vira-se para a despensa e começa a retirar copos de esferovite de
noodles.
— Bem, pelo menos temos bastante Top Ramen com sabor a frango — diz.
— Basta juntar água quente — resmunga Kelton.
Viro-me para Henry, que tem estado inusitadamente silencioso durante
todo este tempo. Ele dirige-me um sorriso amarelo, fraco e triste, e eu tento
oferecer-lhe um que não seja tão forçado.
— Um pouco de água mineral alcalina com infusão de bagas goji parece-
me bem, nesta altura — digo-lhe.
— Parece, não parece? — diz ele, com uma pequena gargalhada.
— Kelton, desiste — diz Jacqui. — O refúgio é um fiasco. De volta à
pickup.
Kelton está relutante. Continua a vasculhar por entre as mesmas garrafas
vazias, como se fosse descobrir algo diferente. Por fim, desiste. Emerge do
buraco e pontapeia as garrafas, frustrado. Estas emitem um som triste, como
sinos de igreja abafados. Quando partimos, nem sequer fecha a porta — de
que serviria?
Descemos até à pickup, que continua à nossa espera junto ao cepo virado
de pernas para o ar. E Jacqui salta para a parte de trás, afastando as coisas do
caminho, até chegar à caixa. Iça-a e trá-la consigo, pousando-a no chão. Os
cantos estão um pouco amolgados, mas de resto está intacta. Ataca a fita-cola
com as unhas, mas é fita-cola de embalar, espessa, e há múltiplas camadas.
— Alguém tem um canivete suíço? — Vira-se para Kelton. — Então e tu,
Miúdo Sobrevivencialista?
— Sim, há bastantes facas no refúgio — diz, mas nenhum de nós, muito
menos Jacqui, quer esperar assim tanto tempo.
— Eu vou buscar uma — oferece-se Henry, mas a sua oferta é rejeitada.
— Esquece — diz Jacqui, e estende a mão para ele. — Chaves, por favor.
Henry dá um passo atrás, como se na mão vazia dela estivesse uma arma,
mas Jacqui abana os dedos num gesto insistente. Tenho a certeza de que sei
porque não as quer entregar. Mal se apodere das chaves, Jacqui nunca mais
lhas devolverá. No final, ele cede e entrega-lhe as chaves. Pergunto-me
porque não terá assumido a tarefa de abrir, ele mesmo, a caixa — afinal de
contas, a caixa é dele —, mas o pensamento desaparece da minha mente,
antes que tenha tempo de lhe prestar atenção.
Jacqui procura a chave mais afiada e começa a cortar a fita-cola, depois a
serrá-la, por fim a apunhalá-la.
— Vá lá! — diz Garrett. — Despacha-te!
Jacqui resmunga de frustração.
— Que idiota é que fecha uma caixa desta maneira?
Por fim, consegue abrir um buraco suficientemente grande na fita e começa
a trabalhar para o tornar maior, até conseguir enfiar a mão e arrancar uma aba
inteira do cimo da caixa. Depois, com a caixa finalmente aberta, fica parada.
Em vez de enfiar a mão no seu interior e tirar as garrafas de água, limita-se a
olhar para a caixa.
— Oh, só podes estar a brincar! — diz. — Nem pensar!
— O que foi? — pergunto. — O que se passa?
Em vez de responder, ela derruba a caixa e eis que do seu interior tombam
centenas de brochuras brilhantes.
— ÁguaViva! Hidrate-se com Elegância!
Imagens de pessoas magras, felizes, a fazer jogging e de uma cintilante
nascente nas montanhas que suscita, na minha alma, o desejo profundo de
estar naquela fotografia.
A imagem dos panfletos atinge-me como se fosse radiação; ou seja, sinto
uma explosão súbita desta terrível verdade, no entanto sei que nem todas as
suas ramificações são já visíveis. Mas serão. Penso nos garrafões abertos no
refúgio. Depois penso nas pessoas por detrás da vedação do campo de futebol
americano, tão desesperadas que estavam dispostas a vender a alma por um
dedal de líquido. E depois recordo a pressa com que Henry estava quando
trocou a caixa para ter de volta as chaves da pickup. Como queria sair dali tão
depressa quanto possível. Antes que o soldado abrisse a caixa. E percebo que
não se trata apenas de um erro trágico. Henry sabia. Sempre soube. E é por
isso que não fico surpreendida quando Garrett diz:
— O Henry desapareceu!

33) HENRY

Na vida, devemos ter sempre uma estratégia de saída para todas as situações.
Sempre soube isto — vivi de acordo com esta ideia, até —, mas, neste caso
em particular, fui apanhado terrivelmente desprevenido. Nunca me ocorreu
que o refúgio fosse um fiasco. Porque, por muito que não goste do Ruivo
Psicótico, acreditei que ele ia cuidar de nós. É bem feita, por ter baixado a
guarda.
Num mundo perfeito, nunca seria preciso abrir aquela caixa. Seria como o
infame gato de Schrödinger. Enquanto a caixa continuasse fechada, poderia
existir água no seu interior. Pelo menos no que aos outros dizia respeito. E
quem poderia dizer que a sua realidade era menos real do que a minha?
Mas, quando a caixa foi aberta, tudo se tornou irrelevante. Se estivesse
suficientemente calmo, teria escapado e levado a pickup mal me apercebi de
que não havia água no refúgio. Devia ter abandonado toda e qualquer
esperança de ser o glorioso salvador deste grupo desgraçado, impedir que a
minha situação piorasse e pôr-me a andar. Mas hesitei. E essa hesitação
custou-me tudo.
Por isso, agora só me resta avançar aos tropeções pelo bosque, sem
veículo, com uma sede inimaginável. Lembro-me do caminho que tomámos.
Sei o quão distante é da civilização, se é que ainda se lhe pode chamar isso. O
meu plano é simples. Regressarei para junto de Charity e da sua comuna na
autoestrada. Tornar-me-ei uma parte indispensável do seu pequeno coletivo e
receberei água suficiente para sobreviver. Será uma viagem longa e difícil, e,
embora tenha dúvidas sobre se serei ou não capaz de a realizar, tenho de
tentar. É tudo uma questão de tolerância ao risco, e, neste mundo volátil, que
alternativa me resta?
Mas, antes que consiga sequer regressar à estrada, sou lançado ao chão. A
minha primeira ideia é que se trata de um urso — mas depois percebo que é
muito pior.

34) KELTON

As pessoas que tentam fugir não agem da maneira mais inteligente. Por
exemplo: Henry Não-Roycroft. Ele optou por um caminho a direito, para
longe da carrinha — diretamente para o talude do riacho. Mas para regressar
à estrada, teria de virar à direita no pequeno cume — por isso, tal como numa
expedição de caça a quadrúpedes de cérebro pequeno, triangulei o seu
caminho e calculei a hipotenusa.
Raspo os nós dos dedos com força numa rocha, quando o atiro ao chão,
mas a dor que sinto é um tipo de dor boa. Ajuda-me a concentrar a raiva em
quem a merece.
Agora tenho-o preso, com o meu joelho no seu xifoide, tornando-lhe difícil
respirar, quanto mais mexer-se. Rapidamente, agarro-lhe a traqueia com o
polegar e o indicador da mão direita. Já vi fazerem isto em vídeos de
demonstração, por isso conheço a teoria, mas na prática é diferente do que eu
tinha imaginado. A traqueia não fica quieta. Muda de posição e desliza de um
lado para o outro. Demoro um bocado até ter a certeza de que a agarrei. Sei
disso porque não o consigo ouvir a respirar. Com o ar expelido pela força do
meu joelho, bastarão dez segundos para o deixar inconsciente. Vinte
segundos para lhe provocar danos cerebrais. Trinta segundos para o matar. A
minha função de combate está agora ativada. Isso, combinado com a raiva e a
sede, não permite que tenha a certeza de qual dos três resultados prefiro.
— Kelton, basta!
Desperto ao ouvir o som da voz de Alyssa e largo a garganta de Henry,
grato por ela estar ali para tomar a decisão certa por mim, porque sei que
poderia não o ter feito. Henry arqueja e tosse e arqueja outra vez. Mas já não
tem mais vontade de lutar ou fugir. É pouco mais do que uma boneca de
trapos caída no chão, tal como quando lhe desloquei o ombro.
— Chama o teu maldito pit bull! — diz, com a voz roufenha.
— Está tudo bem, Kelton — diz Alyssa. — Ele não vai a lado nenhum.
E por isso largo-o. Não porque queira, mas porque as ordens que Alyssa
me está a dar agora são as primeiras palavras que me dirigiu o dia todo.
Por esta altura, Garrett e Jacqui já chegaram. E parece que não sou o único
com intenções homicidas, porque Jacqui saca da minha arma e aponta-a, à
queima-roupa, à testa de Henry.
— Irei resolver tantos problemas, se puxar este gatilho — rosna.
— Para! — exige Alyssa. — Matá-lo não vai resolver nada!
— Está bem, talvez não, mas vai saber mesmo bem.
— Afasta isso! — grita Alyssa, mas Jacqui não vai seguir as ordens de
ninguém, muito menos dela.
E depois Henry começa a suplicar pela vida.
— Por favor — choraminga. — Lamento. Lamento muito por tudo…
— A única coisa que lamentas é teres sido apanhado… — diz Jacqui, e
provavelmente é verdade.
E depois Garrett, sentindo a sua traição mais profundamente do que todos
os outros diz:
— Fá-lo! Fá-lo, Jacqui!
Alyssa fica em choque, horrorizada.
— Garrett!
— Fá-lo! Ele merece! Ele mentiu-nos! Ele enganou-nos! Ele fingiu ser
nosso amigo!
Se bem me lembro, Garrett também queria que eu puxasse o gatilho,
disparando sobre o zombie da água louro na praia.
Agora uma mancha espalha-se pelo entrepernas de Henry. Fez xixi nas
calças. Não é lá grande mancha — o seu corpo não tem muita água. Não sinto
qualquer pena. Talvez venha a sentir, se Jacqui lhe der um tiro. Neste
momento, nem por isso.
Jacqui olha para Garrett, quase tão surpreendida por aquela explosão
quanto Alyssa. Depois liberta o clipe e dispara a bala que já estava na câmara
para o céu. O tiro ecoa para trás e para a frente entre as montanhas à nossa
volta.
— O que se passa contigo? — grita Alyssa.
— Se não a tivesse disparado para o céu, estaria agora no crânio dele —
diz Jacqui.
— O mais provável é que estivesse no chão, mesmo atrás do crânio dele —
realço, por ser tão à queima-roupa.
Jacqui sai disparada, e Alyssa lança um olhar furioso a Garrett.
— Vai com ela. Assegura-te de que não faz nada de idiota.
— Como se eu a pudesse impedir.
Alyssa sustém o olhar do irmão, e sei o que ela está a pensar. Estás
danificado, Garrett? Será que tudo isto te danificou, mais do que a nós? E se
a arma estivesse nas tuas mãos, o Henry ainda estaria vivo?
— Vai de uma vez — diz ela.
Agora sou só eu, Alyssa e Henry. Ele recuperou o suficiente para poder
fugir, mas nem sequer tenta, porque sabe que o derrubarei de novo e ele tem
um medo de morte de mim. É engraçado, mas nunca ninguém pensou
realmente em mim como uma ameaça legítima. Nunca ninguém me chamou
de pit bull. Na sua maioria, os miúdos como Henry ou me ignoravam ou me
viam como uma piada. Mas agora sou Kelton, o Intimidador. Se sobreviver a
isto, vou mandar fazer uma t-shirt.
— Só quero saber porquê — diz Alyssa.
Henry não consegue olhar para ela. Ótimo. Não merece continuar a olhar
para ela.
— Se eu não tivesse nada para oferecer, vocês ter-me-iam deixado em
Dove Canyon, para morrer com os outros todos!
— Mentiste!
— Eu nunca disse que havia água naquela caixa. Vocês é que presumiram
isso.
Alyssa parece capaz de lhe dar um pontapé. Ver aquela expressão no rosto
dela é a mais doce vingança. Quase tão bom como se ela lhe tivesse, de facto,
dado um pontapé. Mas, como não o faz, decido atormentá-lo eu um pouco.
— Se mudarmos de ideias, há uma pá no refúgio — digo. — E o solo, aqui
no cume, é suficientemente macio para escavarmos uma campa…
— Eu compenso-vos! — suplica Henry. — A todos. Prometo.
— Cala-te de uma vez, Henry — diz Alyssa. — Ou juro que sou eu quem
vai buscar a pá.

35) ALYSSA

Henry pode muito bem ter-nos morto a todos.


Não quero esse pensamento na minha cabeça. Quero concentrar-me na
solução, não no problema. Mas a ideia não para de voltar, minando qualquer
tentativa de a desenraizar. Acho que as coisas poderiam ter corrido de
maneira diferente se soubéssemos que não havia água na caixa — incluindo
deixarmos Henry na sua casa elegante, com ar condicionado. Mas quem
quero eu enganar? Se soubesse que já não havia água, e ele quisesse vir
connosco, teria batalhado para o trazermos.
Mas, se tivéssemos sabido, talvez tivéssemos arquitetado um verdadeiro
plano B. Assim não temos nada. Nada para além de desespero e daquele
pensamento irritante: Henry pode ter-nos morto a todos.
Levamo-lo para o refúgio connosco — porque, se o deixarmos ir, o mais
certo é que morra ainda antes de abandonar o bosque, e não quero isso na
minha consciência. Jacqui insiste em atar-lhe as mãos para que ele não possa
fazer grande coisa — e para que não se esqueça que está em prisão
domiciliária. Não discuto com ela, porque talvez seja a coisa certa. Confiei
em Henry e vejam onde isso nos levou. Até Kelton concorda que é melhor
mantê-lo debaixo de olho, para que possamos ver o que anda a tramar. A
partir daqui, a melhor política é a da desconfiança em todas as frentes.
No refúgio delineamos a estratégia para o próximo passo. Garrett está
abatido, tendo-se deixado cair num canto.
— Estou a conservar a energia — diz. — Não é isso que devemos fazer?
Conservar a energia?
— Temos combustível suficiente para regressar à autoestrada — digo a
todos. — Procuramos a Charity, contamos-lhe o que aconteceu. Ela ajuda-
nos.
— Se não tiver sido já apanhada por saqueadores — diz Jacqui, um raio de
sol como sempre.
— Tenho uma ideia melhor — diz Kelton. Depois vasculha algumas
gavetas, até encontrar um mapa. Abre-o sobre a pequena mesa da cozinha. —
Nós estamos aqui — diz, apontando. — E a Charity está aqui… a quase
cinquenta quilómetros de distância. Mas olhem para isto. — Desliza o dedo
até um lago comprido, em forma de «Y», a oeste da nossa posição. — O
reservatório de San Gabriel.
Jacqui funga.
— Não ouviste? Os reservatórios estão todos secos. É o que acontece
quando se olha para um velho mapa em papel.
— Sim — diz Kelton. — Os reservatórios de Cogswell e Morris
desapareceram, mas o lago por trás da barragem de San Gabriel é mantido
com água, para abastecimento dos aviões de combate a incêndios. Tenho a
certeza.
— Como podes ter a certeza do que quer que seja? — pergunta Jacqui,
fungando.
— Porque foi por isso que o meu pai escolheu este local para o refúgio.
Estará muito abaixo do seu nível habitual, mas ainda haverá água.
Confirmando as distâncias no mapa, percebo que fica a uns meros quinze
quilómetros da nossa posição — muito mais perto do que regressar para junto
de Charity.
— Teremos de sair completamente da estrada durante um bocado,
podemos atravessar este cume aqui — diz Kelton, arrastando o dedo pelo
papel — e apanhar a East Fork Road, aqui. Esta conduzir-nos-á ao lago.
— Parece-me um plano — diz Henry a partir do seu lugar no canto. Jacqui
dá-lhe um pontapé, não com força suficiente para o magoar, mas com força
suficiente para deixar bem claro que a sua opinião já não é bem-vinda.
— Estamos todos prontos para isto? — pergunta Kelton.
A resposta é não, mas ninguém o admitirá. Porque, se queremos viver, esta
é a melhor opção que nos resta.
Há algumas mochilas e sacos de cordão espalhados pelo refúgio. Reúno-os
e distribuo-os.
— Vamos dar uma vista de olhos e agarrar naquilo de que poderemos
precisar, mas não se sobrecarreguem com peso a mais.
Estou prestes a dar um a Henry, mas ele ergue as mãos atadas e encolhe os
ombros. Se quero que ele participe, terei de o libertar. Por isso, não lhe dou
saco nenhum.
Depois, Jacqui faz algo que nunca esperei que fizesse. Devolve a arma a
Kelton.
— Toma, fica com ela — diz. — Já não a quero no meu cinto, está a
provocar-me uma irritação de pele. — Depois, olha de relance para Henry. —
Além disso, não confio em mim o suficiente para ficar com ela, tendo em
conta a nossa companhia atual.
Kelton recebe a arma de volta, surpreendido com a oferta.
— Então já confias em mim?
— Nem pensar — diz Jacqui. — Mas pelo menos se tu fizeres algo parvo,
será um problema teu, não meu.
Jacqui é, só por si, uma arma carregada de gatilho leve — e o facto de,
neste momento, ser capaz de o reconhecer, faz dela uma pessoa ligeiramente
menos louca. Talvez até fiável.
Abro a despensa, tentando ver se há mais alguma coisa para além de copos
de ramen seco. Nada, mas isso não significa que não encontremos qualquer
coisa por ali espalhada.
— Provavelmente devíamos comer qualquer coisa que encontremos e que
seja, de facto, comestível — digo aos outros. — Vamos precisar de energia.
— Pego na colher com manteiga de amendoim seca, estendo-a a Garrett e ele
dirige-me um olhar de profundo nojo. — A cavalo dado não se olha o dente
— digo-lhe.
— Claramente, não tens distribuído muitos cavalos, nem que seja entre os
pedintes de Laguna Beach — diz Jacqui. — Eu, por acaso, conheço vários.
— E depois começa a imitá-los usando várias vozes diferentes: — «Então,
minha senhora, já deram uma dentada nesta sandes!» «Desculpe, mas este
pão tem glúten?» «Só um dólar, meu? Talvez me pudesses mandar um
bocadinho mais pelo Venmo.»
Aquilo faz-me rir, o que faz todos rirem. E ocorre-me que, até nestes
momentos de tudo ou nada, há espaço para nos rirmos. Acho que isso
significa que ainda nos resta alguma garra.

36) KELTON

Não há razão absolutamente nenhuma para levar comigo os livros de banda


desenhada. Irão ocupar espaço, e não vou lê-los de todo. Mas estão no chão
do segundo quarto. O quarto que deveria ser para mim e para Brady, se a
nossa família alguma vez chegasse a usar o refúgio. Quando me inclino para
pegar neles, sinto o cheiro dos lençóis. Desagradável. Não há ar condicionado
no refúgio — só uma ventoinha, alimentada pela mesma rede solar em
miniatura que alimenta as luzes. O mais certo é que a ventoinha consuma
metade da bateria durante a noite.
O cheiro é o mesmo de quando ele vivia em casa, um ténue odor
avinagrado que levava a mãe a sacar do Febreze a intervalos regulares.
Depois do dia de hoje, nunca mais voltarei a sentir este cheiro.
Vou levar os livros de banda desenhada. Não preciso deles, mas não quero
saber. Vou levá-los na mesma.
Depois, quando ergo os olhos, Alyssa está de pé, à porta. Não sei há
quanto tempo me está a observar.
Pego nos livros de banda desenhada e pouso-os na cama. Não deixarei que
me veja guardá-los. Isto é entre mim e Brady.
— O meu irmão era um verdadeiro falhado — digo-lhe. — Quer dizer, usa
tudo o que há no refúgio, não responde às nossas chamadas e depois aparece
em casa mesmo a tempo de ser morto. Se isso não é a definição de falhado,
não sei o que será.
— Lamento, Kelton.
E, depois, começam a sair coisas da minha boca que não quero dizer em
voz alta, mas não sou capaz de parar.
— Já não tenho irmão. Posso não ter pais. Não sei sequer o que acontecerá
se sobreviver a isto. Quer dizer, se os meus pais também tiverem partido, o
que acontece? Vou para Boise viver com o raio da tia Eunice e os seus gatos?
Em que medida é que isso é melhor do que morrer de sede?
— O amanhã terá de ficar por sua conta durante algum tempo — diz
Alyssa. Depois acrescenta: — O ontem também.
Sei de que ontem está a falar. Obrigo-me a olhar para ela, por tolo e
estupidamente nu que me sinta à sua frente — e não se enganem, esta é a
verdadeira definição de nudez. Se eu não tivesse a roupa vestida, isso nada
seria comparado com o tipo de nudez que lhe foi exposta neste momento.
— Pedir desculpas por aquela cena que fiz no oitavo ano parece parvo…
porque pedir desculpa não basta. Pedir desculpa é quase um insulto.
— Tens razão, não basta — diz ela. — As pessoas vão presas por coisas
daquelas.
— É verdade. Mas sou menor — realço. — Por isso passaria pelo tribunal
de menores e mandar-me-iam para um psicólogo; mas, sim, percebo o que
dizes.
Baixo os olhos para o livro de banda desenhada que tenho nas mãos, que
consegui enrolar sem que me tivesse apercebido. Estico-o e aliso-o.
— Nem sequer vou dizer: «Parecia uma boa ideia na altura», porque,
mesmo na altura, eu sabia que era uma ideia muito má.
— Mas ainda assim fizeste-o.
— Tu nunca fizeste nada realmente estúpido, algo que sabias que era
estúpido, mas mesmo assim fizeste?
Ela indigna-se com a sugestão. Talvez porque nunca fez nada de tão
absolutamente estúpido e insensato em toda a sua vida. Apercebo-me de que
nem por uma vez me perguntou o porquê de ter feito aquilo. Talvez porque
saiba. A verdade é que a solidão e as hormonas e pais que nos prendem como
um peixe num aquário fazem coisas estranhas a uma pessoa. A vida vista
através do vidro do aquário está apenas a um passo de distância da vida por
trás da lente da câmara de um drone.
— Foi a coisa mais pavorosa que alguma fiz e fiquei tão desagradado
comigo mesmo que nunca mais repeti. — Espero que ela acredite em mim,
porque é verdade.
Depois, Alyssa pergunta-me a última coisa que estou à espera que
pergunte.
— Então, o que viste?
— Hã? — digo, não que não a tenha ouvido, mas porque ainda não estou
pronto para entrar por ali.
— Olhaste, viste. Quero saber o que roubaste de mim nessa noite.
Pergunto-me o que estará à espera que eu diga. Pergunto-me o que quererá
que eu diga. Mas não importa, porque me limito a dizer a verdade.
— Foi na semana daquele concurso de bandas de instrumentos
imaginários, na escola… lembras-te disso?
Ela geme.
— Tento não me lembrar.
— Seja como for, tu e as tuas amigas tinham estado a praticar um número,
cantando em playback uma qualquer canção pop ridícula, mas suponho que
não tenhas conseguido acertar nos movimentos corretos, porque, nessa noite,
estavas no teu quarto, sozinha. Puseste a música a tocar e começaste a
praticar ao espelho.
— A sério? — pergunta ela, num tom inexpressivo. — Foi nisso que
desperdiçaste o teu drone?
— Estavas a usar a escova do Kingston como microfone, mas os pelos do
cão estavam sempre a voar para a tua cara e a desconcentrar-te. Lembro-me
de ter pensado: Aqui está ela, a olhar para o espelho, a ver-se a fazer algo
tão tolo e parvo, mas não se sente nada parva. E eu? Nem sequer consigo
olhar-me no espelho e fazer o que quer que seja sem me sentir um idiota.
— É aí que te enganas, Kelton — diz ela. — Eu senti-me como uma idiota.
Mas fi-lo na mesma.
Depois pede-me que me levante por um segundo, por isso faço-o. Estou
virado para ela, sem saber ao certo o que se estará a passar… até ela, de
repente, puxar o braço atrás e me dar um estalo. Mas não é um estalo normal.
É como um movimento da Major League de basebol, com remate e
continuação plena. A minha cabeça quase fica virada para trás com a força do
golpe. Fico em choque. Nem sequer consigo falar e sei que vou ficar com a
marca inchada e vermelha da sua mão na minha bochecha esquerda, durante
bastante tempo.
Por fim, encontro as palavras, algures no canto mais distante do meu
cérebro agitado.
— Acho que foi merecido — digo-lhe.
— Sim, foi — diz ela.
— Estamos quites?
— Não, não estamos.
Suspiro.
— Bem me parecia que não.
— Parte do teu castigo é o facto de nunca ficarmos quites.
E eu percebo isso. O pior em relação a fazer qualquer coisa indesculpável é
que nunca o podemos retirar. É como partir um vidro. Este nunca deixará de
estar partido. O melhor que podemos fazer é varrer os cacos e rezar para não
pisarmos alguma lasca que tenha ficado para trás.
Mas depois inclina-se para mim e deposita um beijo suave no meu rosto
fervilhante, como uma mãe que beija o dói-dói de um filho. Ela parte, sem
uma palavra de explicação — e eu apercebo-me de que, a partir deste
momento e até ao final do universo, ainda que viva cem mil vidas, jamais
compreenderei as raparigas. E, por alguma razão, não faz mal. Acho eu.
PARTE CINCO

CONTRA VENTOS E MARÉS


37) JACQUI

Tenho a boca seca e sabe-me como se tivesse estado a mastigar as solas de


Nikes velhos. Sabe-me como se tivesse estado a beber lama. Lama húmida e
cintilante. Na verdade, é aliciante. Isso para não falar numa lata gelada de Dr
Pepper a cintilar com gotas de condensação — neste momento, até me
contentava com lama. É engraçado como as necessidades do nosso corpo
redefinem os parâmetros daquilo que nos satisfaria.
Volto a subir para trás do volante. Quer Alyssa goste ou não, sou eu quem
vai conduzir, porque Henry não vai, com toda a certeza. Nem Kelton nem
Alyssa estão sequer perto de tirar a carta, pelo que não têm outra escolha. É
isso ou andar.
— O meu pai achou que eu tinha de merecer o privilégio de conduzir —
diz Kelton quando entramos. — Mas acho que tem medo de me dar
demasiada liberdade.
Os motivos de Alyssa são mais autoimpostos.
— Adiei a carta por causa dos treinos de futebol, dos trabalhos de casa e
do facto de os meus pais não me poderem comprar um automóvel; por isso,
de que serviria?
— Para pessoas que querem sobreviver — digo-lhes a ambos —, fizeram
umas escolhas de vida bastante inúteis.
— Oh — irrita-se Alyssa —, e as tuas escolhas foram boas?
— Calem-se de uma vez! — grita Garrett. — Calem-se todos!
E é o que fazemos. Porque ralharmos uns com os outros não está a ajudar
nada. E, além disso, as nossas vozes já começam a soar roucas. Fazer passar
o ar pelas cordas vocais dói-me cada vez mais, e sei que não posso ser só eu.
— Quando isto terminar — diz Henry quando ligo o motor —, espero que
possamos deixar o passado no passado.
— Quando isto terminar — digo-lhe —, será verdadeiramente um prazer
nunca mais ver nenhum de vocês. Mas em especial tu.
Engato a mudança e ligo a ventoinha inútil. Não sei ao certo as horas, mas
está muito mais calor do que quando chegámos. Dez da manhã, talvez?
Onze? Kelton realça o facto de o ar condicionado, que não funciona,
consumir combustível mais depressa, e eu digo-lhe onde pode enfiar a
informação inútil. O combustível já não é um problema — temos mais do que
suficiente para ir até onde vamos. O problema é que estamos perante um
exemplo clássico de «Por aqui não chegam lá.» O mapa mostra que a estrada
que apanhámos na floresta vira para leste, para longe de onde queremos ir,
pelo que a única maneira de chegar a East Fork Road é andando trinta
quilómetros para trás, ou atravessando o bosque, o que, de acordo com
Kelton, é um percurso de apenas seis quilómetros.
Um dos mapas que Kelton trouxe mostra a elevação e a inclinação do
terreno, pelo que sabemos como lá chegar sem cair num penhasco.
Infelizmente, não mostra árvores e pedregulhos. Por isso temos de seguir
como uma sonda marciana, a abrir caminho através do bosque, traçando um
carreiro lento e imprevisível.
— Nem sequer sei se estamos virados para o lado certo — digo, só me
apercebendo, depois de as palavras terem saído da minha boca, que falei em
voz alta.
— Estamos — diz Kelton, embora não soe muito confiante.
Depois, a meio caminho da encosta seguinte, um avião amarelo-vivo
acelera por cima das nossas cabeças. O meu primeiro instinto é saltar da
carrinha para gritar e acenar como uma náufraga louca presa numa ilha, mas,
antes que tenha tempo para ceder ao impulso, o avião já partiu.
— Era um avião de combate aos incêndios — diz Kelton, entusiasmado.
— Veem, não vos disse? Vai para o mesmo lugar que nós, o que significa que
vamos na direção certa!
É a primeira notícia encorajadora que ouvimos há muito.
Continuamos a ziguezaguear, monte acima, monte abaixo. Todos os saltos
provocam dor. Não só na minha cabeça, mas também nos meus ossos. O que
quer que lubrifique as articulações deve estar a faltar, porque todas as partes
móveis me doem. A febre desapareceu, por isso sei que não é por causa dela.
É a sede. Só pode ser.
— Cuidado! — grita Alyssa.
Carrego no travão e viro à esquerda, para evitar bater numa árvore que
parece ter saltado, suicida, para o nosso caminho. Sim, eu sei que devia estar
mesmo à minha frente, mas não estou a ver bem as coisas. Não se trata de ter
a visão turva, o meu cérebro é que não está a fazer um bom trabalho a montar
a imagem geral. Por devagar que vá, vou ter de abrandar ainda mais. De
súbito, parece-me que voltar para junto de Charity teria sido uma ideia
melhor. Mas agora é demasiado tarde. A esta velocidade podemos não chegar
à estrada antes do anoitecer — e pensar nisso enche-me de tamanha
infelicidade que tenho de lutar contra ela com fúria. Como se atreve a floresta
a ser tão difícil de navegar? Penso nas partes dela que estão a arder, e,
embora o fogo posto não faça parte dos meus muitos problemas, não sinto
pena nenhuma. Neste momento, as árvores e a natureza são os inimigos.
38) HENRY

Doem-me os pulsos, por causa dos atilhos de plástico que me cortam a pele.
O que pensam eles que farei, se me libertarem as mãos? Que estrangularei
alguém? Bem, podia fazê-lo. Agora.
Estou encostado ao lado direito da porta. Podia tentar abrir a tranca,
quando ninguém estivesse a olhar, abrir a porta e lançar-me para o exterior,
mas de que serviria isso? Além disso, tenho quase a certeza de que a
segurança para crianças está ativada. Não, o meu destino está ligado a todos
os outros elementos desta pickup. Até ao momento em que não esteja. Tenho
de manter a calma, porque existirão sempre oportunidades. Mesmo quando
todas as opções parecem perdidas, a sorte pode mudar a qualquer momento.
Tenho de estar pronto para aproveitar o momento quando isso acontecer.
39) KELTON

Dor de cabeça, batimentos cardíacos rápidos, exaustão, olhos a arder, tontura.


Conheço os sintomas da desidratação severa. Podemos passar, talvez, mais
umas seis ou sete horas sem água. Depois cairemos em coma. Depois
morreremos. Tão simples quanto isso. Quanta água será necessária para nos
salvar? Mais do que um dedal, menos do que um copo. Não servirá para nos
hidratar, mas impedirá que morramos. Dar-nos-á tempo. Mas não creio que
encontremos sequer um copo de água entre este local e o nosso destino.
Temos de lá chegar. Ponto final.
Neste momento, as nossas vidas dependem da minha capacidade de
orientação e da capacidade de Jacqui para conduzir. Mas e se eu estiver
errado e o reservatório de San Gabriel estiver tão seco quanto os restantes?
Limitamo-nos a deitar-nos na lama seca e estalada do leito do lago e a
desistir?
Dou por mim a pensar em todas as fitas e troféus de segundo e terceiro
lugares que tenho no quarto. Tudo, desde a robótica ao tiro ao alvo e ao
chessboxing. O meu pai disse que não havia mal em expor alguns, mas não
queria que exibisse os outros. Sentia que todos aqueles prémios de não-
vitórias seriam um «altar à mediocridade», e uma tal coisa ficava abaixo de
mim. Mas a minha mãe passou por cima da decisão dele, por isso a parede foi
transformada em altar. Nos dias bons podia olhar para ela e ver os meus
feitos. Nos dias maus era uma recordação de todas as minhas deficiências.
Por isso, suponho que ambos tivessem razão.
Mas no que diz respeito à sobrevivência, tudo o que sei é que não há
troféus para o segundo e o terceiro lugares. Só há o ouro ou o chão. E acho
que os outros não se aperceberam ainda do quão perto estamos do fim da
linha.
40) GARRETT

Onde estão, mãe e pai? Têm tanta sede quanto nós? Acho que vou morrer.
Mas se já estiverem mortos, não tenho tanto medo. Só que tenho medo —
mas não terei tanto se estiverem lá e se estiverem à minha espera. E se houver
água.
Ou será que a sede nos segue até aí? E se este anseio parvo por algo fresco
e molhado não desaparecer, mesmo depois de morrermos? Era capaz de
engolir um rio, neste momento. Podia beber as cataratas do Niágara.
Tenho os olhos abertos e doem-me quando os fecho, e doem-me quando os
volto a abrir. Os cantos por onde as lágrimas saem parecem ter sido espetados
por alfinetes, de tão secos. Por isso semicerro os olhos, tentando não os abrir
demasiado. Vejo o para-brisas e penso, por um momento, que é um ecrã de
televisão e que estou apenas a ver televisão. Tudo isto não passa da vida a
fingir de outra pessoa. É como se tivesse adormecido à frente da televisão
com os olhos abertos. E é uma boa sensação. E, por isso, deixo que a
sensação se estenda até parecer um bocadinho mais verdadeira e eu me sentir
um bocadinho melhor.
Há pessoas a falar, mas não acho que alguém esteja a dizer alguma coisa, e
é por isso que sei que comecei a sonhar — mas também continuo acordado.
Não sei o que isso significa, mas depois penso que talvez, só talvez, seja
assim que nos sentimos quando nos começamos a transformar em zombies da
água.
41) ALYSSA

Não penses nisso. Obriga-te a não pensar nisso. Lembro-me de ter ouvido
algures que a mente humana só é capaz de manter três coisas no seu
pensamento consciente a cada momento. E, se preencher esses três espaços,
não pensarei na sede que sinto.
Penso no reservatório. Não, porque isso me irá fazer pensar na água que
não tenho. Penso na escola e naquele último trabalho de casa que nunca
cheguei a fazer. Em Biologia. Mitose. Meiose. Síntese proteica. Tudo isso
exige água. Sem sucesso.
Tema 1: Futebol. Estou a correr em direção à baliza. Passo para trás e para
a frente. E, maravilha das maravilhas, Hali passa-me de facto a bola em vez
de ficar com ela. Bom. Bom.
Tema 2: Geografia. Penso nos estados. Nos países. O meu pai comprou-me
um livro de pintar, de geografia, quando descobriu que o idiota do sistema
escolar californiano tinha decidido que não precisavam de nos ensinar
geografia. Um livro de colorir? A sério? E, no entanto, foi espantoso. Eu
achava que estava a procrastinar quando, na realidade, estava a memorizar a
geografia do mundo. A França é verde e parece um homem com uma
barbicha e de nariz no ar. O Egito é um trapezoide amarelo com um ângulo
direito, e parece a pedra basilar de uma pirâmide. A Gronelândia é azul, só
para ser irónica. Portanto, futebol e geografia. Ótimo.
Tema 3: Qual é o tema 3? Espanhol. Si, Español. Pedro tiene la bolsa de
Maria. ¿Donde está el baño? ¡Quiero agua! ¡Por favor, agua, agua, agua!
Isto não está a funcionar.
Viro-me e apercebo-me de que Henry está a olhar para mim. Pergunto-me
em que estará a pensar e depois percebo que não quero saber. Futebol.
Geografia. Espanhol. É tudo aquilo que me importa neste momento.
— Não sou a pessoa terrível que pensam que sou — diz-me Henry. — Se
me tivessem conhecido no mundo real, sei que teriam gostado de mim.
— Mas nunca nos teríamos conhecido, por isso de que importa? — realço.
— Tu vives numa mansão, numa comunidade encerrada atrás de portões e
frequentas uma dispendiosa escola privada. Quais são as hipóteses de que
alguma vez nos viéssemos a conhecer?
— Não é uma mansão — diz ele. — É apenas uma casa. E poderíamos ter-
nos conhecido quando viesses visitar o teu tio. — Olha para o espaço, como
se estivesse a imaginar essa realidade alternativa. — Se nos tivéssemos
conhecido, eu ter-te-ia convidado para um jantar elegante, e teria sido doce e
atencioso, e ouvido tudo o que dizes. E quando não estivesse a ouvir, estaria a
encantar-te com a minha borbulhante inteligência.
— Borbulhante… — ecoa Garrett, carregado de desejo, e sei que está a
pensar em algo fresco com bolhinhas.
— Terias gostado de mim — diz Henry outra vez.
— Eu gostava de ti — recordo-lhe.
Henry suspira.
— No passado. Talvez possa voltar a torná-lo presente.
Não lhe respondo. Neste momento não tenho qualquer interesse em
estabelecer uma ligação com quem quer que seja. A única coisa com que me
quero ligar é com um líquido que deslize pelos meus lábios. Neste momento
era muito mais capaz de me apaixonar por um copo de água do que por um
ser humano.
De súbito, Jacqui para o veículo.
— Já chegámos? — pergunta ingenuamente Garrett. — Por favor, diz-nos
que já chegámos.
— Silêncio! — diz Jacqui, — Estão a ouvir isto? — Baixa o resto do vidro.
O fedor a fumo é mais forte do que antes. Pergunto-me se os ventos terão
mudado na nossa direção. Agora, com as janelas descidas, todos conseguimos
ouvir o que ela ouviu. É música. Alguém está a tocar música!
42) KELTON

Isto pode ser uma coisa muito boa, mas há uma voz dentro de mim — muito
provavelmente a voz paranoica do meu pai — que me diz que tenha cuidado.
Que as coisas que parecem demasiado boas para serem verdade são sempre,
sem exceção, demasiado boas para serem verdade.
— Devíamos ir ver o que se passa — diz Alyssa.
— Eu vou — digo a todos, antes que mais alguém se voluntarie.
— Sempre um escuteiro — diz Jacqui com ar trocista, e, embora esteja à
espera de que ela discuta comigo, acaba por dizer: — Como queiras. Os
restantes ficarão aqui e apreciarão o ar condicionado inexistente.
É uma indicação do quanto a sede a está a afetar, se está disposta a deixar-
me tomar conta da situação. Mas voluntariar-me para isto nada teve a ver
com o facto de ter sido escuteiro. Tem a ver com pôr a cautela à frente da
curiosidade — cautela que, neste momento, tenho muito mais do que
qualquer outro. Sou suficientemente paranoico para manter sob controlo a
minha esperança, e isso pode ser a nossa salvação.
É uma tortura chegar ao cimo do monte, pese embora não seja assim tão
íngreme e fique a uns míseros dez metros do local onde nos encontramos. As
minhas pernas estão fracas e estou tonto, mas consigo lutar contra isso. Por
agora. Mal chego ao cimo, escondo-me atrás de uma árvore e espreito. A
música está mais alta e agora reconheço a canção. É «Cashmere», dos Led
Zeppelin. Aquela batida familiar, implacável e exótica, e, no entanto, um riff
nefasto enche o ar. A voz de Robert Plant uiva por cima de tudo numa
espécie de canto religioso.
Há uma pequena caravana lá em baixo. Velha. Enferrujada. Já lá deve estar
há muito tempo. Isto é um refúgio — reconheço-o de imediato. Não tão
elaborado quanto o nosso, mas ainda assim um refúgio. À sua frente estão
sentados dois homens, em cadeiras desdobráveis. Têm armas — das mais
perigosas —, o que não é de surpreender. Estão a assar coelhos numa
fogueira, ao ar livre. Como é que se pode ser tão estúpido ao ponto de fazer
uma fogueira quando tudo está tão seco? Mas pressinto que as consequências
não são de elevada prioridade para estes homens.
E depois um deles leva uma garrafa de água aos lábios.
O poder do meu desejo é como uma corrente elétrica. É quase impossível
de resistir. Quero lançar-me lá para baixo e agarrar naquela água — embora
saiba que levaria um tiro se tentasse, mas, de alguma forma, isso não
interessa tanto ao meu cérebro de macaco-zombie quanto agarrar naquela
água. Tenho de utilizar cada grama de autocontrolo que tenho para me
impedir de o fazer e contrariar o meu imperativo biológico.
Há aqui algo de errado, diz-me uma voz na cabeça. Procuro algo de
incongruente na cena para confirmar a análise e encontro-o. Porque há uma
carteira no chão, artigos caídos. Não há sinal do seu dono. Sinto que os pelos
da parte de trás do meu pescoço se erguem. Isto não é apenas um refúgio, é
um covil, e temos de nos manter muito, muito distantes. Sabem, já frequentei
bastantes convenções de sobrevivencialismo. No fundo, há dois tipos de
preppers. Primeiro, aqueles como a minha família. Armamo-nos e reunimos
comida e outros bens essenciais, mas apenas para nos protegermos do caos.
Depois, há aqueles que trazem o caos. Esperam que as coisas se desmoronem.
Anseiam pela ausência de lei. Alimentam-se dela. Porque não há nada de
mais entusiasmante para eles do que o momento em que o mundo se
transforma no seu jogo de vida pessoal.
Esses são do tipo que toca música alta no meio do bosque para ser ouvida
por vários quilómetros, só para ver quem atrai. Esses são os lobos que
esperam para ver que tipo de presa aparecerá. Mas, tal como a sua fogueira a
céu aberto, não consideraram as consequências. Porque se outro predador
aparecer, em vez da presa, estes dois podem ser apanhados com um par de
tiros bem disparados.
Um ramo estala, viro-me e vejo Alyssa, que se aproxima por trás de mim.
— Eles têm água! — sussurra. Ela também viu.
— Chiu! — digo-lhe, porque a música está a diminuir. Mantemos o
silêncio, sustemos a respiração até ao início da música seguinte. Não nos
ouviram. Deus do céu, espero que não nos tenham ouvido. À medida que o
som de uma outra música dos Zep começa a tocar, afasto Alyssa para mais
longe.
— Não queremos ter nada a ver com aquela água — digo-lhe.
— Mas…
Não tenho tempo para explicar. Agarro nela pelos ombros. Olho para os
seus olhos raiados de sangue.
— Tens de confiar em mim — digo-lhe.
E ela assim faz. Relutantemente, mas faz. E regressamos juntos para a
pickup.
Jacqui manteve o motor ligado, para que a ventoinha continuasse a
funcionar, embora só esteja a soprar ar quente.
— Temos de sair daqui — digo-lhe, ao subir. — Não faças demasiado
barulho com o motor. Segue tão silenciosamente quanto possível.
— Porquê?
— Digo-te mais tarde — respondo —, mas temos de ir AGORA.
Por um momento, penso que Jacqui poderá ceder e aceitar a minha
avaliação da situação, mas Alyssa sente que há necessidade de explicar. Não
é disso que precisamos neste momento. Aquilo de que precisamos é de
velocidade e ocultação.
— Estão uns tipos lá em baixo. O Kelton acha que podem ser perigosos.
— Têm água? — pergunta Jacqui.
Alyssa hesita, e isso diz aos outros tudo aquilo de que precisam de saber.
Jacqui abre a porta e sai da carrinha. Ainda que eu seja capaz de resistir ao
meu impulso zombie, Jacqui é toda ela impulsos, e consigo vê-la a
transformar-se. Ponho-me à frente dela antes que possa cometer o erro que a
irá matar.
— Estamos talvez a uma hora do reservatório — recordo-lhe. — Teremos
toda a água de que precisamos.
— Parece-me que estes tipos são um pássaro na mão — diz Jacqui. — Por
isso obriguemo-los a partilhar.
— Não compreendes? — silvo. — Não são do tipo que partilha e têm
armas maiores e piores do que a minha Ruger!
E, de súbito, uma voz entra na conversa. Uma que tem estado muitíssimo
silenciosa.
— Alyssa… não me sinto bem. — Garrett ergue-se fora da pickup. Oscila,
por um momento, como se estivesse no convés de um navio agitado pela
tempestade. Depois revira os olhos, os seus joelhos cedem e ele cai.
Alyssa corre para ele. Ajudo-a a pegar-lhe e volto a colocá-lo dentro do
veículo. Henry desvia-se do caminho para que possamos deitar Garrett no
banco de trás.
— Acho que está bem — digo a Alyssa, que se esqueceu de tudo com
exceção do irmão. — A sua pressão sanguínea deve estar baixa e ele
levantou-se demasiado depressa, só isso. Só tem de se voltar a deitar durante
um bocado. — Espero ter razão.
É então que me apercebo de que algo mudou. Demoro um instante a
perceber o que se passa. A pickup já não faz barulho. O motor foi desligado.
Não é só isso: as chaves desapareceram. E com elas Henry.
43) HENRY

Não há volta a dar, e agora não há margem para erro. A oportunidade


apresentou-se e eu agarrei-a, tão simples quanto isso. Agora tenho de ir até ao
fim. A teoria dos jogos sugere que o sucesso favorece os resolutos. Agir é
sempre melhor do que não fazer nada. Por isso, enquanto os outros discutiam
e lidavam com Garrett, fiz o que tinha de fazer. Alyssa não me perdoará, eu
sei, mas concluo que isso me incomoda menos do que pensava.
Sigo a música, subo o monte e vejo os dois homens no seu acampamento.
Lanço-me para eles, caindo ao chão e arranhando as palmas das mãos. Estou
de quatro e sem fôlego. Levanto-me e olho para eles, divertidos por eu ter
caído na sua presença.
— Parece que temos um convidado para o almoço — diz um deles, mas
não estou interessado no seu almoço e eles sabem. Porque os meus olhos
estão fixos na garrafa de água que um deles segura na sua mão grande,
peluda.
Quando se trata de sobrevivência, há regras duras que se contrapõem às
delicadezas da vida elegante. Como num avião, quando a máscara de
oxigénio cai e tudo fica descontrolado e nos dizem que devemos pôr a
máscara primeiro, antes de ajudar os outros. Mas… e se só houver uma
máscara e for o primeiro a chegar a ela? Bem, suponho que irá ter pena dos
outros, mas, o que quer que faça, não desistirá da máscara. Respira e inspira
fundo.
— O que podemos fazer por ti? — pergunta o que tem a água na mão.
— Hoje… — digo, demasiado sem fôlego para terminar o pensamento, por
isso volto a tentar. — Hoje é o vosso dia de sorte.
Depois levanto-me, obrigo as minhas pernas a serem fortes e inicio as
negociações.
44) ALYSSA

Fico com Garrett, não querendo deixá-lo nem por um segundo. Kelton sai a
correr para localizar Henry, enquanto Jacqui tenta, desesperadamente, fazer
uma ligação direta na pickup — mas não está a funcionar.
— Os veículos velhos são fáceis — diz. — Mas os mais recentes têm um
maldito chip de verificação digital, e acho que não há como contorná-lo!
Sei que é algo terrível de se dizer, até de pensar, mas, neste momento,
gostava que Jacqui tivesse disparado sobre Henry quando teve oportunidade
para isso. Porque haveria ele de levar as chaves? Em que estaria a pensar?
Depois, os dois homens do refúgio ferrugento saem do bosque à nossa
frente — e sei onde Henry foi… e o que estava a pensar quando lá foi.
— Olá! — diz o mais alto dos dois. — Estão a ter problemas com o
automóvel?
Apesar da saudação amigável, não há neles mais nada de amigável. De
perto, estes homens são intimidantes, e são-no intencionalmente. São
musculosos. Parecem estar, talvez, na casa dos 30, embora tenham a pele
estragada de uma maneira que torna difícil dizê-lo com toda a certeza. O mais
baixo tem os braços completamente tatuados. E não são tatuagens artísticas,
são feias. Palavras escrevinhadas e símbolos, e todos na mesma tinta preta
azulada. O mais alto tem a cabeça rapada e uma cicatriz que lhe corta, na
diagonal, parte do couro cabeludo. Dizem-nos sempre que não devemos
julgar as pessoas pelas aparências, mas não há nada de enganador nestes dois.
Algumas pessoas não têm imaginação suficiente para fazer outra coisa que
não seja abraçar o estereótipo e deixar que este as defina. Estes homens têm
vidas violentas e têm todo o gosto em revelá-lo ao mundo.
— É fácil perderem-se quando saem da estrada — diz o da cabeça rapada.
— É isso que estão? Perdidos?
Olho rapidamente à minha volta. Kelton ainda não regressou da sua busca
por Henry. Sou apenas eu, Jacqui e Garrett, que continua inconsciente no
banco de trás.
— Não queremos problemas… — digo, embora, pelo canto do olho, veja
Jacqui pronta para todo o tipo de problemas.
— Isso é bom, isso é bom — diz o tatuado. — Também não queremos
problemas. Mas tenho de vos pedir que abandonem a nossa propriedade.
— Desculpem? — diz Jacqui.
O tipo das tatuagens ergue o porta-chaves do meu tio.
— Acabámos de o comprar — diz. — O vosso amigo vendeu-no-lo por um
bom gole de água.
O careca ri, quando vê a expressão no rosto de Jacqui e no meu.
— Sim, despejámo-la nas mãos dele e ele bebeu-a toda. Parte pingou-lhe
para o sapato, por isso descalçou-se e lambeu a borracha até ficar seca. A
coisa mais estranha. Depois partiu, montanha abaixo, com um sapato calçado
e outro descalço. Miúdo engraçado.
E penso como é injusto que, dos cinco, Henry tenha sido o único a beber
água. Provavelmente o suficiente para sair vivo desta floresta.
— Vou-vos pedir mais uma vez — diz o das tatuagens. — Afastem-se da
nossa propriedade. — E saca de uma arma que não é para brincadeiras.
Ele não vai usá-la, digo a mim mesma. É para fazer valer a sua vontade.
Como tudo em relação a estes dois, tem por objetivo ser intimidante. Mas não
cederei a intimidações.
— Vamos até ao reservatório de San Gabriel — digo-lhe, sem me afastar
da porta. — Deixem que lá cheguemos e depois podem ficar com a pickup.
O das tatuagens abana a cabeça.
— O negócio já está feito. Não há mais nada para conversar.
— Espera — diz o da cabeça rapada. — Não sejamos apressados. — E
desliza os olhos por mim, observando-me de alto a baixo como se eu fosse
um objeto a leilão.
É então que Jacqui avança. Atira-se ao das tatuagens, tentando agarrar a
arma, mas ele é rápido. Usa nela golpes como os que Kelton usou em Henry
— mas este tipo é mais forte, mais rápido. Os golpes são-lhe intrínsecos,
fazem parte da sua natureza. Jacqui não tem qualquer hipótese. Ele usa o
próprio impulso de Jacqui contra ela, fá-la girar como se a estivesse a
conduzir num swing, e força-a para o chão, puxando-lhe o braço num ângulo
que não é natural, deixando-a de joelhos, fazendo caretas e resfolegando de
dor.
— Sê simpática — diz ele, e não lhe larga o braço, o que a mantém
incapacitada.
Entretanto, o da cabeça rapada não tira os olhos de mim. Aproxima-se.
— É uma pena, para ti, que o teu namorado te tenha vendido para se
salvar.
— Ele não é meu namorado — digo, por reflexo, mas preferia nada ter
dito.
Porque o careca diz:
— Melhor ainda. — E continua a aproximar-se.
Tento dar-lhe uma joelhada na virilha, e ele reage avançando, encostando-
se a mim, empurrando-me contra o lado da carrinha, e não deixando qualquer
espaço para o meu joelho.
— Podíamos partilhar a água convosco, se agissem de um modo um pouco
mais civilizado…
Mas, tendo em conta a maneira como se encosta a mim, sei que a sua ideia
de civilizado não é a mesma que a minha. Sinto o cheiro da sua respiração.
Cigarros e Doritos. Acho que não vou voltar a comer Doritos até ao resto da
minha vida. Tento lutar, mas estou agora tão fraca, devido à desidratação, que
é inútil. Nunca me senti tão indefesa, e é uma sensação pavorosa, pavorosa.
Porque me apercebo de que ele pode fazer o que quiser comigo e não serei
capaz de o deter.
— Não preocupes a tua cabecinha linda — diz-me baixinho. — Vamos
voltar para o nosso acampamento e vai ficar tudo bem.
Depois, de repente, está ali Garrett, a saltar da carrinha e a agarrá-lo.
— Afasta-te da minha irmã!
Garrett morde o braço do homem que me está a agarrar — e esta explosão
de energia deve ter-lhe concedido uma força sobre-humana, porque a sua
dentada é como a de um tubarão, deixando uma ferida ensanguentada, aberta.
O da cabeça rapada grita de dor e empurra Garrett para o chão. Tento
aproveitar o momento para me libertar, mas ele prendeu-me de tal maneira
que continuo sem me conseguir mexer.
— Meu merdinhas, o que fizeste?
Depois, o das tatuagens olha para o sangue que jorra do braço do amigo e
vira-se, apontando a arma a Garrett.
— Nããão! — grito…
E o mundo termina com um disparo.
45) JACQUI

Vejo o que está a acontecer. Vejo tudo e não o posso impedir. Nem sequer
me consigo levantar, porque o maldito sacana das tatuagens me torce o braço
sempre que me tento mexer. Tudo o que posso fazer é chamar-lhe nomes e
ameaçá-lo com as coisas que lhe farei quando me libertar.
Vejo o outro a avançar sobre Alyssa. Vejo-a a tentar impedi-lo. Não ouço o
que ele lhe sussurra, mas não pode ser coisa boa. Depois, Garrett senta-se no
veículo, finalmente consciente, sem fazer ideia do que se está a passar — e,
ao ver a irmã encurralada pelo tipo da cabeça rapada, salta diretamente para o
meio de uma situação que só pode ficar pior.
O da cabeça rapada está a gritar por causa de uma dentada dos diabos e o
idiota tatuado, quase como se fosse um reflexo, aponta a arma a Garrett,
como se estivesse prestes a disparar sobre uma ratazana que vagueou até ao
seu acampamento. E, apesar da dor, viro o corpo, gritando, porque, se
conseguir desequilibrar o tipo, o tiro perder-se-á.
Ouve-se um disparo e, de súbito, os seus joelhos cedem e há sangue no seu
rosto — e também há sangue no rosto de Garrett, mas Garrett não está morto.
E apercebo-me de que o sangue no rosto de Garrett, que lhe pinga da boca, é
da dentada que deu ao tipo da cabeça rapada. Mas o sangue do idiota tatuado
é dele mesmo. Está no chão, com um buraco provocado por uma bala na
testa, logo acima do olho esquerdo. Estremece uma vez, depois fica mole.
E Kelton ergue-se a três metros, de braço esticado, a arma na mão.
O outro homem para, em choque.
— Jesus Cris…
Mas nunca chega a terminar a invocação do seu Senhor e Salvador, porque
Kelton move o braço e volta a disparar, e a bala atinge o tipo no espaço logo
abaixo do nariz. A ferida de saída lança sangue para o rosto de Alyssa. Ela já
estava a gritar, por isso continua. Acho que não faz ideia do que se está a
passar. Provavelmente, tudo o que vê na sua mente é o irmão morto no chão,
porque essa realidade parecia tão grande há um mero instante que persiste,
mesmo depois de se ter alterado. Se ela sobreviver a isto, provavelmente terá
pesadelos com o momento que nunca aconteceu para o resto da vida.
O tipo da cabeça rapada tomba. Levanto-me e Alyssa consegue, por fim,
regressar ao mundo real. Passa por cima do tipo morto e corre diretamente
para Garrett.
— Estás bem? Estás bem? — Limpa o sangue da boca dele, voltando a
confirmar que não lhe pertence.
Garrett faz que sim com a cabeça. E ela abraça-o como as irmãs nunca
abraçam os irmãos, a menos que estes tenham estado perto de serem mortos
com um tiro na cabeça.
Aproximo-me de Kelton, que continua a segurar a arma, os olhos fixos nos
dois homens como se ainda pudessem estar vivos, talvez por terem os
cérebros nos traseiros. Por fim, baixa a arma. Acho que é capaz de começar a
tremer ou ter um qualquer colapso, mas isso não acontece. De todo. Odeio
que ele tenha tido de nos salvar — mas a situação podia muito bem ter sido a
oposta, comigo a salvar o dia. E, por muito que odeie admiti-lo, Kelton —
que teve treino com armas — tem, provavelmente, muito melhor pontaria do
que eu.
Kelton inspira fundo uma vez, depois outra.
— Apanhem as chaves da carrinha, e as armas deles — diz calmamente. —
Depois vamos ao acampamento deles e trazemos a água.
— Bem pensado — digo, apercebendo-me de como este miúdo é diferente
do Kelton que conheci na praia. Não sei ao certo de qual desgosto menos: se
do falhado trapalhão que não consegue disparar uma arma, se do miúdo capaz
de matar dois homens a sangue-frio sem sequer suar.
Bem, já nenhum de nós sua. E também não andamos a duvidar das
decisões uns dos outros. Estamos finalmente naquele ponto de determinação
em que fazemos o que tem de ser feito, seja o que for.
Pelos vistos, apenas o tatuado estava armado. Kelton tira-lhe a arma e
observa-a.
— Desert Eagle com um freio de boca — diz. — Muito melhor do que a
minha. — Reclama-a para si e oferece-me a sua arma. Eu hesito, porque já
não a quero.
— Eu fico com ela — diz Alyssa. Ainda tem o rosto salpicado de sangue.
Decido não lho dizer.
— Tens a certeza? — pergunta Kelton.
Ela acena com a cabeça.
— Ninguém me voltará a colocar numa posição como esta.
— Então e o Henry? — pergunto.
Kelton olha para a sua grande e brilhante arma nova e encolhe os ombros.
— Vou guardar uma bala para ele — diz.
E, por muito que tente, não consigo perceber se está a falar a sério ou não.
46) ALYSSA

Se pensar demasiado, neste momento, enlouquecerei. Há dois cadáveres à


minha frente. Não posso pensar nisso. O meu irmão quase foi assassinado.
Não posso pensar nisso. Os meus pais podem estar a flutuar de barriga para
baixo no oceano Pacífico. Não posso pensar nisso.
Aquilo em que posso pensar é na água que sei que está do outro lado do
monte, junto a uma velha caravana enferrujada.
— Alyssa… — diz Garrett. Tal como dissera antes de ter perdido a
consciência há pouco —, não me sinto muito bem.
— Vamos buscar água — digo-lhe. — Vais ficar bem.
— Mas… mas não me consigo levantar. Não me consigo mexer.
A sua voz está ainda mais fraca do que antes, e penso no que Kelton disse
na noite anterior. Mesmo antes de morrermos, o nosso corpo irá lutar.
Teremos uma explosão de energia — a derradeira tentativa do corpo para se
salvar.
E ocorre-me que Garrett acaba de ter essa explosão de energia. O que
significa que pode estar a poucos minutos de fechar os olhos para sempre.
— Temos de nos apressar! — digo aos outros, não dedicando mais um
pensamento que seja aos homens mortos. Tomo Garrett nos meus braços, e,
embora quase não tenha forças para aguentar o meu próprio peso, carrego
também o dele, enquanto avançamos para o acampamento.
47) KELTON

Foi diferente do que pensava que seria. Estava à espera de uma sensação
monumental. Como se se abrisse um buraco no universo. Mas não.
Pop! Pop!
Tão simples quanto isso. Agora os dois homens estão mortos e nós estamos
vivos. Eu não estava zangado, como em casa, quando quase virei a caçadeira
contra os nossos vizinhos saqueadores. Não estava assustado, como quando o
miúdo zombie da água, na praia, estava a tentar sugar a água diretamente da
boca de Alyssa. Pop! Pop! Feito. Segue em frente.
Como eu disse, estes tipos estavam a alimentar-se do caos, a viver de
acordo com as regras dos jogos de vídeo. E, num jogo, quando derrotamos
um inimigo, o que fazemos? Ficamos com as armas dele. Que foi
precisamente o que eu fiz. Será por isso que não sinto nada? Porque também
eu, agora, estou a viver segundo essas regras?
Chegamos ao cimo do monte e baixamos os olhos para o acampamento,
descobrindo que a fogueira, sem ninguém que cuidasse dela, ficou
descontrolada. Os arbustos estão a arder. As duas espreguiçadeiras estão a
arder.
E o fogo chegou à arca ao lado deles.
Está a arder, emitindo um cheiro químico e rançoso. A tampa está aberta e
consigo ver pingos de água quando as garrafas de água no seu interior
começam a arder.
— Oh, não! — Alyssa pousa Garrett. — Não te mexas! Volto já!
Eu, Alyssa e Jacqui corremos, tentando chegar à água, mas o fogo é
demasiado quente.
— Maldição! — Jacqui tenta chegar-lhe através das chamas, mas grita,
contorcendo as mãos. Queimou-se. Ainda assim tenta outra vez. A segunda
vez deve ser tão dolorosa que ela se afasta, uivando de dor. — Não! — grita.
— Não é justo! Não é justo!
— Procurem alguma coisa que possamos usar para puxar a arca do meio
das chamas! — digo.
Mas Alyssa está a olhar para a caravana.
— Pode não ser toda a água que têm — diz. — Vou ver lá dentro.
Contorna a correr o fogo que cresce em direção à caravana. O vento está a
soprar nessa direção. É apenas uma questão de tempo até também ela se
incendiar.
— Está bem, mas despacha-te! — grito-lhe. E começo a procurar um ramo
suficientemente grande para o estender sobre as chamas e puxar para o
exterior a arca em brasa.
48) ALYSSA

Abro a porta da caravana. Não cheira nada bem aqui. Não estava à espera que
cheirasse. Não parece muito diferente do refúgio de Kelton, por dentro.
Caixas de comida e roupa suja. E algo de que não estava à espera, de todo.
— Benji, és tu?
Sigo a voz até ao quarto da caravana. Está lá uma mulher. Velha. Doente.
Com um vestido de trazer por casa, florido. Chinelos de quarto cor-de-rosa.
Fita-me com desconfiança, puxando as mantas para cima de si.
— Quem és tu? Onde está o Benji? Onde está o Kyle?
— Eles… mandaram-me cá dentro — digo-lhe. — Mandaram-me vir
buscar a água.
A sua desconfiança aumenta.
— Eles já têm a água toda na arca! Quem és tu? — volta a perguntar.
Olho em redor do quarto, recusando-me a acreditar que já não há água
nenhuma ali. Ela vê o que eu estou a fazer e apercebe-se de que as suas
desconfianças são justificadas. Começa a parecer um bocadinho assustada.
— Eles não te mandaram! Sai daqui! Estás a invadir a minha propriedade!
Sai já daqui!
Sei que ela não está armada, porque, se estivesse, já tinha empunhado a
arma. Eu, contudo, tenho uma. Mas não vou ameaçar uma velha com uma
arma. Eu não sou assim.
Os meus olhos viajam por todo o lado, e vejo coisas que não quero ver.
Porque, numa mesinha junto da cama, montou uma versão em miniatura do
que deve ser a prateleira da sua lareira, em casa, onde quer que esta seja.
Estão ali fotografias. Dois rapazes. Idades diferentes. Uma chama-me a
atenção. Uma fotografia esbatida dos mesmos dois rapazes com chapéus do
Rato Mickey, a fazerem caretas para a câmara. E percebo. Benji e Kyle. São
irmãos. Não quero saber isto. Não quero saber que usaram chapéus do Rato
Mickey. Não quero saber que alguém tem fotografias deles na mesinha de
cabeceira. Um daqueles rapazinhos ia disparar sobre Garrett. O outro ia
violar-me. Não ia? Não ia?
— Aquilo é fumo? — pergunta a mulher idosa. — O que se passa lá fora?
— Não pode ficar aqui — digo. — Pode vir connosco. — Mal o digo,
apercebo-me de que, se ela o fizer, vai ver os dois filhos mortos à frente da
pickup.
— Não vou a lado nenhum! — diz ela, sem se aperceber do panorama
geral. — Pareço-te alguém capaz de dar um passeio? — Aperta os lábios e
abana a cabeça. — É melhor que saias daqui, antes que eles voltem. Não há
nada que odeiem mais do que ladrões.
E depois vejo-o! Um copo de plástico com água no parapeito de uma
janela, quase ao alcance da mulher. Ela vê que eu o vejo. Fita-me, é um
impasse… e lança-se para ele.
Eu lanço-me também, mas ela chega-lhe primeiro. Aperta-o contra o peito
e agarro-o.
— É meu! — diz. — Esta água é minha, não é tua!
A água chocalha no copo quando lho tento tirar, entornando-se um pouco.
Não posso lutar por ele, porque, se o fizer, perder-se-á toda.
— Benji! Kyle! Socorro!
Agarro-lhe a mão, tentando impedir que a água se entorne. Ela tira uma das
mãos do copo e tenta empurrar-me. Depois leva o copo aos lábios. Sei que é
toda a água que tem. Toda a água que resta. Se eu a levar, a mulher vai
morrer. Se não a levar, o meu irmão vai morrer.
Por isso, faço algo terrível.
Esbofeteio-a. Esbofeteio-a com força. Isso fá-la perder a concentração, e
consigo deslizar o copo das mãos dela. Entorna-se mais água. Já não resta
muita — vinte mililitros, talvez cinquenta —, não chega para matar a sede de
ninguém, mas talvez seja o suficiente para manter o meu irmão vivo.
Afasto-me dela, recuando.
— O fogo está quase à porta — digo-lhe. — Tem de sair daqui.
Mas, ainda que o faça, de que lhe servirá? Está no meio do nada, sozinha.
Se o fogo não a apanhar, morrerá de sede. Ainda assim, viro-lhe as costas e
parto. Porque fiz a minha escolha. Se ela tiver de morrer para que o meu
irmão viva, levarei a água dela e deixá-la-ei a morrer. Henry tinha razão. Por
vezes, são os monstros quem sobrevive. E agora eu sou o monstro.
49) JACQUI

As minhas mãos! As minhas mãos! Como pude ser tão estúpida! As minhas
mãos! E, ainda assim, quero enfiar os braços através das chamas, para aquela
arca que arde no meio do inferno. Os meus dedos e as palmas, das minhas
mãos já estão inchados, com bolhas, a dor dando lugar a um latejar
entorpecido.
Kelton regressa com um ramo e tenta chegar com ele à arca. Prende a
ponta na beira. As minhas mãos! As minhas mãos! Puxa o pau e a arca move-
se um centímetro. Volta a puxar. Desliza mais um centímetro. Ele puxa com
mais força, e o lado da caixa, meio derretido, abre-se, entornando a água
sobre o fogo.
— Não!
A água fumega e o vapor desaparece. Consigo ver as poucas garrafas que
restam no fundo da arca rasgada a derreter, entornando o seu conteúdo para
nada. Inutilmente. A água nada faz para diminuir o fogo, porque as chamas
voltam a aproximar-se da arca e os lados que restam colapsam. Desapareceu.
Desapareceu toda. E, quando ergo os olhos, vejo até onde o fogo se espalhou.
Os ventos estão a atiçá-lo. Mais um incêndio para juntar aos que já grassam
nas montanhas à nossa volta.
Alyssa sai de repente da roulotte, saltando sobre as chamas que estão
prestes a consumi-la. Traz qualquer coisa nas mãos. O que é aquilo? É um
copo? Segura-o como se fosse algo precioso. E é.
Podia tirar-lho. Podia alcançá-la e tirar-lho. E bebê-lo. Matar esta sede que
arde ainda mais do que as minhas mãos.
Mas não o farei.
Porque sei que a água não é para ela.
Não lha tirarei. Porque, embora tenha visto toda a gente à minha volta a
perder a sua humanidade hoje, apercebo-me de que, neste momento,
finalmente, encontrei a minha.
50) ALYSSA

Garrett está exatamente onde o deixei — no cume acima do acampamento em


chamas, encostado a uma árvore. A cabeça está pendurada para o lado. Os
olhos são meras frinchas. Pode já estar morto. Não o consigo ver respirar.
Pode já estar morto!
— Garrett! Garrett, estou aqui.
Ajoelho-me ao lado dele. Levo o copo aos seus lábios. Deito neles um
pouco. E se ele não engolir? E se não conseguir engolir? Porque já está
morto?
A água escorre pelo lado da boca dele. Fui demasiado lenta! Devia ter
sacado da arma e disparado sobre aquela mulher mal vi o copo de água. Era
isso que devia ter feito! Ter-me-ia poupado dez segundos. Dez segundos que
teriam salvado a vida do meu irmão. Engole, Garrett! Maldito, engole!
Depois ele tosse. Ele tosse! Os olhos abrem-se ligeiramente.
— É água, Garrett! — digo-lhe. — Engole-a!
— Estou a tentar — diz, com a voz rouca. — É difícil.
Ele fecha os olhos. Obriga-se a engolir. Deito-lhe um pouco mais na boca.
Ele volta a engolir. Deito o resto. É-lhe mais fácil engolir à terceira. Não
parece estar melhor. Não parece estar mais forte. Mas sei que a água está lá
dentro. A água é absorvida pelo corpo mais depressa do que qualquer outra
coisa. Desaparecerá do seu estômago numa questão de minutos — será ainda
mais rápido por estar assim tão desidratado. O corpo irá sugá-la como uma
esponja.
— É tudo o que tens? — pergunta, e eu rio-me.
— Haverá mais — digo-lhe.
Só agora olho para o acampamento. Jacqui e Kelton trepam para longe
dele, na minha direção. O fogo espalhou-se até às árvores a um ritmo
alarmante.
— A velhota conseguiu sair da caravana? — pergunto-lhes, agora que a
minha apertada esfera de preocupação se pode estender para lá do meu irmão.
Kelton olha para Jacqui, depois para mim.
— Havia uma velhota na caravana?
Olho de novo para o acampamento. A roulotte e os arbustos à sua volta
foram completamente engolidos pelas chamas. A porta ainda está aberta,
como eu a deixei. Não ouço gritos. Mas o que poderia fazer em relação a
eles, mesmo que os ouvisse? O caminho para a caravana está completamente
bloqueado pelo fogo.
— Temos de ir — diz Kelton.
Por isso, dobro-me, pego em Garrett e regresso à pickup, tentando esquecer
que alguma vez vi este local. Mas isso não será fácil.
51) KELTON

Jacqui não consegue conduzir. As mãos dela estão inchadas como balões.
Tenta tocar no volante e uiva de angústia. Entre mim e Alyssa, sou o menor
de dois males atrás do volante. Ela ainda não tem a sua autorização de
aprendizagem, mas eu tenho. Apesar da insistência do meu pai de que tenho
de conquistar o direito a conduzir, já me levou a parques de estacionamento
vazios. De acordo com ele, destruí cerca de vinte automóveis imaginários
enquanto tentava navegar por aqueles terrenos. Ainda bem que agora só
tenho de me preocupar com as árvores.
Engato a mudança, com Alyssa ao meu lado — ela fica encarregue do
sistema de tração às quatro rodas, enquanto eu dedico toda a minha atenção à
parte da condução normal.
Avançamos aos solavancos e arranhamos as mudanças. Raspamos nas
árvores. Saltamos violentamente por cima das pedras. Jacqui pragueja de
cada vez que, por reflexo, usa as mãos para se equilibrar. Vejo Garrett pelo
espelho retrovisor. Não parece tão mal como estava antes. Só parece mal.
Como nós.
Estou cansado, agora. Os meus pulmões ardem devido ao fumo que inalei
no acampamento. Monóxido de carbono. Une-se aos glóbulos vermelhos
como se fosse oxigénio, mas, ao contrário do oxigénio, não os abandona.
Estes tornam-se inúteis. É por isso que as pessoas morrem por inalação de
fumo. Ficam sem glóbulos vermelhos disponíveis em número suficiente para
transportar oxigénio até ao cérebro. Ainda estou consciente, por isso sei que,
por muito que tenha inalado, não é suficiente para me matar. Mas há muito
mais coisas prontas para me matar, neste momento. Incluindo a minha
própria condução. É tão difícil manter os olhos abertos! Mas tenho de o fazer.
Ultrapassamos mais um cume e descemos uma encosta. Mas esta encosta é
mais íngreme do que as outras. Eu devia ter olhado para o mapa da
topografia! Eu devia saber isto.
— Cuidado, Kelton! — diz Alyssa.
Carrego no travão e começamos a derrapar. Avançamos por uma
inclinação descendente de grau elevado. Talvez com uns trinta graus. As
rodas quase não têm tração. Os travões são inúteis. Nada vai abrandar a nossa
descida. Tenho apenas de garantir que não batemos nas árvores e nos
pedregulhos.
— Kelton — grita Jacqui —, estás a perder o controlo!
Como se eu não soubesse já. Guino o volante para a direita. Raspamos com
o lado da carrinha numa árvore. Uma curva abrupta para a esquerda.
Saltamos sobre um pedregulho tão grande que ouço algo a raspar por baixo
do chassis. E, por muito inclinada que achasse que era a descida até agora,
esta torna-se ainda mais íngreme. Não há nada que eu possa fazer. A
gravidade apoderou-se de mim. Agarro no volante, preparo-me.
Um bang sonoro. Um flash branco.
Uma dor na minha barriga e no meu peito, como se tivesse levado um
pontapé no estômago.
Arquejo, não consigo inspirar ar suficiente. Talvez o monóxido de carbono
sempre me tenha afetado.
Não, fiquei sem fôlego, mais nada. E os airbags foram acionados. E já não
estamos em movimento.
— Estão todos bem? — ouço Alyssa dizer.
— Não — diz Jacqui, que é a sua maneira de dizer que sim. Garrett limita-
se a gemer e diz-me que sou uma nódoa a conduzir.
Abro a porta ao pontapé. De imediato, sinto o cheiro da gasolina.
— Cuidado — digo a toda a gente. — Acho que rebentámos o tanque do
combustível.
Estamos agora numa estrada. Estreita, mal conservada, mas uma estrada!
— Deve ser a East Fork Road!
Pelo menos é alguma coisa. Contorno a pickup, mas mal se pode chamar
àquilo andar. Estou a arrastar os pés. Dói-me tudo. A minha cabeça parece
prestes a partir-se ao meio como um ovo. Quero tanto deitar-me… Tanto. Só
por um minuto. Mas não o faço. Porque conheço essa sensação. Sei o que
essa sensação quer dizer.
A pickup está acabada. Parece que passou por um demolition derby. Um
pneu rebentou, o outro está completamente de lado.
— O reservatório fica a cerca de quilómetro e meio naquela direção —
digo, apontando para oeste. — Teremos de fazer o resto do caminho a pé.
— Acho que consigo — diz Garrett, o único de nós que bebeu alguma
água em dois dias, mas Alyssa e Jacqui olham para mim como se eu tivesse
acabado de declarar uma sentença de morte.
Jacqui abana a cabeça.
— Não sei se ainda me resta um quilómetro e meio, Kelton.
— Não penses nisso — diz Alyssa. — Limitamo-nos a andar e
continuamos a andar. Mesmo depois de sentirmos que não somos capazes,
continuamos a andar.
Por isso, paramos de falar e começamos a andar. Para oeste. E eu dou por
mim a assumir a dianteira.
Porque tenho uma súbita explosão de energia.
52) ALYSSA

Andar. Andar. Um pé. Depois o outro. Depois o outro.


Não estou viva. Não estou morta. Estou algo no meio. Arrasta. Arrasta.
Passo. Passo. Quanto é um quilómetro e meio? Quantos passos? Não importa.
Não consigo contar. As minhas funções cerebrais superiores foram, na sua
maioria, desligadas. Não consigo pensar em mais nada para além da água que
nos espera. Permito que me puxe os pés. Passo. Passo. Arrasta. Arrasta.
E os outros fazem o mesmo. Kelton segue alguns metros mais à frente, mas
percebo, pelo movimento dos seus pés, que não é um andar normal. É o
mesmo arrastar dos restantes. Durante alguns minutos, parecia que ganhara
uma segunda vida, mas agora está a abrandar.
Acho que somos zombies da água, agora.
O fumo passa por entre as árvores, criando uma neblina à nossa frente.
Começo a tossir.
— Ainda falta muito? — pergunto. Mal se ouve. Nem parece a minha voz.
Ninguém me responde. Calculo que talvez faltem apenas uns quatrocentos
metros…
… mas o fumo fica mais denso. Menos de um minuto depois, vejo chamas
à nossa frente.
Será o incêndio do acampamento ou tratar-se-á de um outro incêndio? Não
sei porque será importante, mas é. Como se as chamas estivessem a ser
impelidas pelos espíritos furiosos de Benji e Kyle e da sua mãe inválida.
O incêndio já saltou para o outro lado da estrada. Agora esta estrada
estreita parece a língua negra de uma grande besta de fogo prestes a engolir-
nos. O que é pior, pergunto-me, a morte pelo fogo ou a morte pela sede?
Como se poderá escolher o menor de dois males, quando os dois males são
demasiado grandes para serem medidos?
— Não conseguimos passar — diz Kelton. — Iremos para norte,
regressaremos à floresta, à nossa direita.
— Isso é para longe da água — diz Jacqui.
— E do fogo — responde Kelton. — Contorná-lo-emos, e chegaremos ao
reservatório pelo norte.
Mas contornar o incêndio significa juntar pelo menos mais oitocentos
metros à viagem.
— Estamos quase lá! — diz Jacqui. — Consigo ver a água!
Acho que só pode estar a alucinar, porque, quando olho para a fornalha que
é a estrada à nossa frente, tudo o que vejo é fumo e chamas.
— Acho que consigo — diz Jacqui.
— Não podes — digo-lhe. Sei que não é o que ela quer ouvir, mas não se
pode combater um fogo descontrolado com o poder da vontade. Não se
podem intimidar as chamas.
Depois, atrás de nós, ouço uma explosão. Uma nuvem de fumo negro com
a forma de um cogumelo ergue-se no céu.
— A pickup… — diz Kelton. Havia gasolina a jorrar dela quando saímos.
Se o incêndio se aproximou de nós por trás e ateou o combustível, então
estamos encurralados. Não temos por onde ir, senão pela encosta à direita.
Para norte, rodeando as chamas.
— Há água já à frente — insiste Jacqui. — Sei que há. Eu vi-a. — Ela olha
para as chamas que saltam de árvore em árvore. — Não conseguirão ser mais
rápidos do que isto. O único caminho para a água é em frente. — Depois olha
para as mãos inchadas, vermelhas. — Afinal de contas, o que é um pequeno
incêndio?
Olha-me nos olhos por um momento… e sei que vai sair a correr. Ou
chegará à água, ou as chamas consumi-la-ão. Seja como for, pode muito bem
ser a última vez que a vemos. Quero dizer alguma coisa, mas não sei o que
dizer. «Boa sorte» parece tão trivial e inútil, perante tudo isto. Suponho que
ela sente o mesmo, porque se limita a acenar — uma aceitação de todas as
coisas não ditas —, depois vira-se e arrasta-se pela estrada. Mais uns passos e
ergue os pés em vez de os arrastar. Depois corre. Está de facto a correr! E a
última coisa que vemos dela são as suas costas, quando desaparece no meio
do fumo.
— Alyssa, vamos — diz Garrett.
— Devíamos tê-la impedido…
— Não conseguíamos — diz Kelton. E sei que ele tem razão. Tudo o que
nos resta são más escolhas. Jacqui fez a sua má escolha. Agora temos de
fazer a nossa. Olho para norte. A colina é íngreme. Não tenho forças para a
subir. Mas subi-la-ei. De alguma maneira, subi-la-ei.
53) JACQUI

O calor brinca com o meu rosto. Tem o poder de chamuscar, crestar,


incinerar, mas controla-se. Agora só provoca. Faz cócegas. Brinca comigo.
A encosta muda. A estrada desce agora e eu mantenho as pernas em
movimento, porque sei que há água na base. Os outros foram demasiado
limitados para o ver; estavam a olhar para o fogo, mas não através dele.
Cegou-os. E agora serei eu a beber o primeiro gole. Raios, eles terão sorte se
eu não engolir todo o reservatório antes de cá chegarem. Se cá chegarem.
Posso ser a única, porque fui a única disposta a desafiar o fogo.
Não vou olhar para trás: tudo o que lá se encontra é floresta morta e fumo.
O calor pulsa, agora, à minha volta; ou será apenas o bater do meu coração,
mas parece o bater implacável de uma fornalha viva. Um deus do fogo que
tem de ser alimentado.
Tropeço num ramo e dou uma queda feia. O ramo está a arder. Caiu de
uma árvore que arde por cima de mim. As copas das árvores à minha volta
estão todas a arder e, através do fumo, à esquerda e à direita, vejo paredes de
chamas que avançam, incendiando a casca de todos os troncos. O ar é mais
fresco mais abaixo, mas só ligeiramente. O fumo queima-me um pouco
menos os pulmões. Levanto-me e corro, mas mantenho-me tão agachada
quanto possível, pelo que metade de mim está no ar mais fresco.
Agora, todo o meu corpo lateja. O calor parou de brincar comigo, e,
embora as chamas ainda estejam em cima de mim, isso não importa. Posso
cozer tão depressa quanto posso assar. Por isso movo-me mais depressa, para
vencer a dor.
O vento chicoteia em todas as direções, as fagulhas voam à minha volta e é
então que ouço…
… Jacqui… Jacqui…
É o vento nas minhas costas a sussurrar o meu nome, a brisa que arde nas
minhas bochechas. O mesmo vento que senti toda a minha vida — o Apelo
do Vazio —, mas agora ergue-se, não apenas à minha frente, mas a toda a
volta, numa omnipotência satisfeita.
E, pela primeira vez, assusta-me de facto.
Deixei que o vazio me provocasse e tentasse durante toda a minha vida.
Não deixarei que me leve. Por fim, com tudo o que me resta, luto contra ele.
As chamas erguem-se agora através da estrada, bloqueando por completo o
meu caminho. Todas as árvores estão em chamas — mas, logo a seguir ao
lençol de chamas, vejo algo a brilhar, a cintilar, à luz do incêndio.
O reservatório!
Salvação do outro lado de um véu infernal.
Chamam a isso purgatório. Posso aceitar o purgatório, se o céu estiver para
lá dele.
… Jacqui…
A dor é agora inimaginável, mas continuo a correr. Não consigo manter os
olhos abertos — por isso fecho-os com força e, ao fazê-lo, dou por mim a
olhar diretamente para o vazio. Avanço através das chamas brancas e da
escuridão absoluta, o elo entre a vida e a morte. O vazio começa a apoderar-
se do meu corpo e sei exatamente o que vem a seguir. Quer a minha alma.
Mas não conseguirá apoderar-se dela sem luta.
Não abrando. Não aceito a dor. Avanço por entre o vazio ardente na
direção das águas do céu.
54) ALYSSA

O fogo persegue-nos monte acima. Sempre que olhamos para trás, por muito
que tenhamos subido, o fogo não está mais longe. Mas também não está mais
perto. Está a avançar ao nosso ritmo — o que significa que não podemos
abrandar, nem por um instante, porque, se o fizermos, alcançar-nos-á.
Há agora vento, mas não sopra nas nossas costas. Sopra contra nós, vindo
do cimo do monte.
O fogo está a puxar o ar para baixo, penso. A sugá-lo, a alimentar-se dele.
Tenho, de imediato, uma visão da praia. De como as ondas que chegam
criam uma corrente submersa, puxando para trás a água da costa. Somos
apanhados nesse recuo com uma onda gigante atrás de nós a avançar com
mais força, e a imagem é tão poderosa, e a minha mente está tão
enfraquecida, que fico desnorteada. Os estalos da seiva a ferver e a respiração
rouca das chamas fundem-se num rugido profundo que parece tão assustador
quanto um mar agitado por uma tempestade, e penso, por um momento, que
estou junto à costa, a fugir de um tsunami que tudo consome. Só quando olho
para o meu irmão, que trepa dois passos à minha frente, é que me lembro do
que estamos a fazer e de onde estamos. Mas quem me dera que fosse água
atrás de nós. Mesmo água salgada. Se eu estivesse na costa, beberia até
morrer. Como qualquer outro zombie da água.
Quando começámos a subir o monte, íamos os três lado a lado, mas
Garrett, o último a beber água, ganhou alguns metros de avanço, e agora
Kelton está a ficar para trás.
— Quando chegarmos… quando chegarmos ao… quando chegarmos ao
topo — silva Kelton, respirando laboriosamente e tossindo —, vamos…
vamos virar à esquerda… cortar para o… para o… — Não consegue
encontrar a palavra. — … para o…
— Reservatório — termino por ele.
— Vamos! — grita Garrett. Está ainda mais à frente do que nós, frustrado
por não o conseguirmos acompanhar. — Estamos quase lá.
Mas o cimo do monte parece estar a quilómetros e quilómetros de
distância. Viro-me e vejo que Kelton ficou ainda mais para trás. Apoia-se
num cepo, tentando recuperar o fôlego, enquanto as brasas lançadas pelo
incêndio caem à sua volta como confetes em chamas.
— Kelton!
— Só um… só um…
Volto para trás, para junto dele, cortando para metade a distância entre
mim e o fogo.
— Só um… só um… segundo.
Está tão quente aqui, que sinto que as minhas roupas vão pegar fogo.
Parece que a minha pele seca vai entrar em combustão espontânea.
— Descansar um bocadinho… — diz Kelton. — Só um… só um…
— Não! — grito. A referência à palavra «descanso» leva os meus joelhos a
quererem ceder. Soa tão, tão bem. O rugido das ondas. Descansar. Os dedos
dos pés na areia fresca, fresca. — Não!
Agarro em Kelton, quase o lanço por cima do cepo.
— Tenho de… tenho de… — murmura.
— Tens de te MEXER! — Ajudo-o a levantar-se do chão e inicio o seu
movimento. Não veio até aqui, não viu acontecer as coisas que aconteceram à
sua família, só para hesitar nestes últimos momentos e morrer.
E, de alguma maneira, o facto de pôr Kelton no centro dos meus esforços,
ajuda-me a ultrapassar o meu próprio desejo de me deixar cair.
Continuamos a subir, e apercebo-me de que esta é a minha explosão de
energia. A última que terei antes de não me restar mais nada para dar. Espero
que Kelton aprecie o facto de a ter usado com ele.
Já não consigo ver Garrett, está muito acima de nós, mas ouço-o a chamar
pelo meu nome e concentro-me nisso… até as pernas de Kelton voltarem a
ceder por baixo dele. Desta vez, não está apenas inclinado e a arquejar para
tentar recuperar o fôlego. Está no chão, deitado. Nem sequer se consegue
levantar.
— S… sala segura — diz. — Vão para… vão para a sala segura.
Está a delirar, e não há nada que eu possa fazer quanto a isso. A sede
começou a desligar-lhe o cérebro. Só há uma coisa que me ocorre fazer. Uma
coisa que poderá pôr as suas pernas sem vida de novo em movimento.
— Não te vou deixar ficar aqui! — grito-lhe. — O que significa que, se
não te puseres a andar monte acima, eu também morro. É isso que queres?
Queres que morra por causa de TI?
Os seus olhos remelosos encontram-se com os meus. Uma fagulha cai ao
lado dele, pegando fogo à relva seca. Ele ergue-se sobre as mãos e os joelhos.
Esforça-se por se levantar. Funcionou! Colocar-me no primeiro plano dos
seus pensamentos permitiu-lhe aceder à pouca energia que lhe resta, tal como
quando me concentrei em ajudá-lo — e apercebo-me de que este é o
verdadeiro núcleo da natureza humana: quando perdemos a força para nos
salvarmos a nós mesmos, encontramos, de algum modo, a força para nos
salvarmos uns aos outros.
Finalmente, finalmente chegamos ao cimo do monte. Tenho dificuldade
em acreditar que ainda estou viva. Não me sinto viva. Sinto que morri quase
cem metros mais abaixo e que agora o meu espírito está aqui encurralado,
condenado a assombrar este local, a reviver a subida e a sede e as chamas por
toda a eternidade.
Garrett ergue-se num pedregulho plano, continua sem fôlego a olhar para
oeste. Junto-me a ele. A partir deste ponto alto, conseguimos ver o
reservatório! Está talvez uns quatrocentos metros abaixo de nós! Kelton tinha
razão! Ele tinha razão!
… Mas o fogo intrometeu-se, insidioso, determinado. E agora arde com
toda a sua força entre nós e o reservatório. Como pode a água estar tão perto
e, ainda assim, não sermos capazes de lá chegar?
— Para norte! — digo. — À sua volta! — As palavras quase não se
ouvem. A minha língua é um pedaço de pele curtida na minha boca, as cordas
vocais são papel quebradiço. Ainda podemos subir para norte e ultrapassar o
fogo. Trepar o monte foi a parte mais difícil, descê-lo será mais fácil, não
será? Ainda podemos contornar o incêndio e depois voltar para trás, para o
reservatório.
Mas então olho para Kelton. Está caído de rosto no chão.
— Não!
Avanço na direção dele. Rolo-o. Não consigo ouvir a sua respiração, tal o
rugido das chamas que se aproximam. Por isso, forço os seus olhos a
abrirem-se, como se ver os seus olhos pudesse significar que ele via os meus.
— Kelton! Acorda!
Por fim, ele começa a balbuciar, mas não são palavras, são apenas sons
guturais, estalos e silvos ténues. Os olhos reviram-se e sei que está a poucos
minutos de morrer. E sei que não o posso impedir. E sei que eu e Garrett não
o conseguimos transportar por muito que queiramos.
— Alyssa…?
Viro-me para Garrett, que deu alguns passos para o outro lado do monte.
Para norte. A direção que devemos seguir se queremos viver. Mas quando me
junto a ele, vejo o que ele vê, e tudo fica tão claro quanto a água a que não
conseguimos chegar.
Não há nenhuma encosta daquele lado do monte.
Há um precipício.
Uma queda abrupta — pelo menos quinze metros. Não há outra descida
senão o caminho que tomámos. O que significa que estamos encurralados.
Garrett olha para mim com um tal desespero, que é quase avassalador.
Vejo-o começar a oscilar e a ceder. Os seus ombros ficam um pouco flácidos.
A energia que lhe restava foi-lhe roubada por aquela revelação. Agarro
rapidamente nele e afasto-o da beira, antes que possa cair do penhasco, e
abraço-o com força.
— Vai ficar tudo bem — digo-lhe.
— Não, não vai — diz, debilmente. — Sabes que não vai.
Sei. Mas não o confessarei. Não a ele. Em vez disso, conduzo-o de novo ao
pedregulho plano. Parece um altar. O lugar onde a nossa esperança foi
sacrificada. Garrett vira-se para longe de mim, puxa os joelhos contra o peito,
enrolando-se numa bola. Olha na direção do reservatório e da água que quase
conseguimos alcançar. É a imagem que quer guardar na sua mente. Não a sua
vida, não a nossa família. A memória da água.
O som do fogo que se aproxima é agora ensurdecedor. O céu sobre nós
escurece com o fumo, como se a noite caísse mais cedo.
De súbito, sei o que tenho de fazer.
Ouvi dizer que a pior maneira de morrer é pelo fogo. Não irei dessa
maneira, se o puder impedir. E não deixarei que o meu irmão seja queimado
vivo.
Por isso, agarro na pistola que tem estado desconfortavelmente presa à
minha cintura desde que Kelton ma deu. Quase quis deixá-la na pickup.
Quase a deitei fora quando começámos a subir o monte, por ser tão
desconfortável. Mas algo me disse que não o fizesse. Nunca na minha vida
me senti tão horrorizada e ao mesmo tempo tão feliz por ter nas mãos uma
arma carregada. Escondo-a, para que Garrett não a veja, e ele deixa que eu o
envolva com um braço. Encosta-se a mim. Soluça, mas não correm lágrimas.
— Quero ir para casa — diz Garrett. — Quero que seja a semana passada.
— Também eu — digo-lhe. Foi só há uma semana?
Mais abaixo no monte, uma árvore cai numa explosão de fagulhas que
voam pelo céu, por cima das nossas cabeças. Sementes que irão espalhar o
fogo noutras partes. Levo a arma à cabeça de Garrett, mas não
suficientemente perto para lhe tocar, porque não quero que ele saiba.
— Amo-te, Garrett — digo-lhe, e ele diz-me o mesmo. É algo que os
irmãos e as irmãs nunca dizem uns aos outros até se encontrarem num
momento em que mais nada poderia ser dito. Depois levo o dedo ao gatilho,
sentindo o peso da arma. Mas hesito… e hesito um pouco mais… e depois
Garrett diz, no mais ténue dos sussurros:
— Fá-lo, Alyssa.
Não olha para mim. Não quer ver a arma, nem me quer ver a mim. Por
isso, encosto a boca da arma ao espaço entre o ouvido e o olho, onde o cabelo
é curto e macio.
— Fá-lo. Por favor…
Serei forte, se não por mim, então pelo Garrett. Salvá-lo-ei das chamas. E
depois salvarei Kelton. E depois salvar-me-ei a mim.
INSTANTÂNEO: BOMBARDIER 415 DO CORPO DE BOMBEIROS
DE LOS ANGELES

O avião de combate a incêndios desliza poucos metros acima do lago. Como


um pelicano, desce suavemente, cortando as pontas das ondas pequenas até o
seu bico aberto estar completamente submerso, engolindo quase quatro mil
litros de água — tudo em segundos. O piloto e a sua ave marinha já
realizaram esta viagem inúmeras vezes nos últimos dias. Recebeu ordens
diretas do seu supervisor tático para encher o depósito no reservatório de San
Gabriel e largar a água sobre os incêndios que lavram entre aquele local e o
lago Arrowhead, pouco mais de trinta quilómetros para leste. As chamas que
bloqueiam a passagem para o lago Big Bear já reclamaram inúmeras vidas.
Não há nada que possa fazer quanto a isso, mas, pelo menos no caso dos
incêndios que ameaçam a estrada para Arrowhead, pode fazer a diferença.
O piloto levanta o nariz da sua ave marinha da bacia do reservatório e
juntos erguem-se no ar. Fica pasmado perante os incêndios que rodeiam o
reservatório, surpreendido por terem chegado tão longe. Por vezes, quando
um fogo rasteiro se começa a descontrolar, as autoridades preparam um
contrafogo — um incêndio controlado —, que diminui a destruição que um
fogo descontrolado poderia causar. Mas aquele incêndio não parece ser um
desses, nota, aproximando-se mais. Aquele é a sério. Mas ele só está ali pela
água. Irão enviar outro batalhão para trabalhar ali. Naquele momento é de
prioridade mais baixa. O seu ponto de largada é muito mais a leste.
Apagar estes incêndios começa a parecer-se com um infindável jogo de
«Caça à Toupeira»; ou, pelo menos, é assim que o tenta ver — é mais fácil
dessa maneira.
Sempre que faz a viagem para atestar no reservatório, tem de voar sobre o
centro de evacuação apinhado. Sempre que vê todas aquelas pessoas,
encurraladas e indefesas, apetece-lhe largar toda a sua carga de água sobre
elas. Mas isso seria uma utilização ineficaz dos recursos. Pode salvar mais
vidas lançando a água sobre os fogos. Por isso, tem tentado voar um
bocadinho mais alto sobre o centro de evacuação. Suficientemente alto para
que as pessoas se pareçam com formigas. É uma tentativa de criar um
contrafogo para a sua própria empatia — o que quer que seja preciso para
impedir que a sua consciência o queime vivo.
Mas agora, quando deixa o reservatório, vê algo estranho. Parece que vai
alguém a correr através do fogo!
O avião tinha acabado de subir a pique a partir da bacia do reservatório —
talvez seja a sua imaginação ou uma tontura provocada pela subida. Mas, só
para ter a certeza, o piloto vira à esquerda, voltando para trás, para ver
melhor.
E de facto, alguém corre através das chamas.
Uma rapariga.
O que está a fazer ali? O que a possuiu para desafiar um incêndio florestal?
Depois, os seus olhos são atraídos para o cimo de uma falésia, onde vê
outras pessoas. Estão encurraladas contra a beira de um penhasco, o fogo a
arder na sua direção.
Pesa as suas opções. Procura dentro de si mesmo. Aquela não é a sua zona
de descarga. As suas ordens são muito específicas. No entanto, embora já
tenha iniciado a sua subida, apercebe-se de que não pode ignorar aquilo. Voa
demasiado baixo para ignorar a sua humanidade.
55) ALYSSA

O meu dedo está firmemente enrolado no gatilho, quando o uivo


ensurdecedor das chamas dá lugar a um grito. Não, não é um grito. É algo
diferente.
Conheço aquele som.
Cresce até se transformar numa ressonância mecânica ensurdecedora que
muda de tom quando uma sombra passa por cima de nós.
Depois, subitamente, o fumo que se ergue em vagas é rasgado por algo
fresco e molhado.
Cai sobre nós num dilúvio único e gigantesco que dura apenas alguns
segundos, mas que é suficiente para nos encharcar, para ensopar o chão e
para ferir o fogo.
Atiro a arma ao chão. Esta tornou-se imediatamente minha inimiga. Lambo
as mãos, lambo os braços, agarro no cabelo, puxo-o para a frente e chupo-o.
Água!
Sabe a cinza, mas não quero saber. Engulo. A minha garganta grita de dor,
mas engulo uma e outra vez.
Garret está de joelhos a lamber a pedra, apanhando minúsculos fios que
correm pelo lado — e depois vejo que há covas e entalhes na superfície da
pedra plana. Lugares onde a água se acumulou!
Encosto o rosto a uma das bacias baixas com tanta força que quase parto o
nariz. Chupo a água. Depois apercebo-me de que me esqueci de algo. De
alguém. Afasto-me para olhar para Kelton. Não se mexeu. Os ténis dele ainda
estão a deitar fumo — as chamas tinham chegado mesmo perto dele, mas
agora o fogo afastou-se uma dezena de metros. Um vapor branco ergue-se
agora, fundindo-se com o fumo negro, enquanto o incêndio lambe as suas
feridas.
Mergulho as mãos num dos entalhes da pedra, apanhando a água, mas
quase não consigo retirar nenhuma; a poça não é suficientemente profunda.
Ainda assim, tento levar o que tenho a Kelton, mas vai pingando por entre os
meus dedos e, quando chego junto dele, já desapareceu. Não posso levar-lha
assim. Tenho de encontrar outra maneira.
Quando a resposta me ocorre, quase me rio tal a sua simplicidade — e, no
entanto, há uma semana jamais teria considerado tal coisa. A «caixa» em que
vivia era simplesmente demasiado pequena para que conseguisse pensar tão
fora dela.
Regresso ao pedregulho e, uma vez mais, encosto a cara à poça maior,
chupando a água até encher a boca. Mas, por muito que o meu corpo queira
que eu a engula, não o faço. Seguro-a. E corro para junto de Kelton.
Ponho-me de joelhos, inclino-me sobre ele. Abro-lhe a boca com uma mão
e encosto os meus lábios aos dele. Depois, forço a água para fora da minha
boca, para dentro da dele, oferecendo-lhe um tipo de respiração boca a boca
diferente. Afasto a boca, fecho-lhe o maxilar e espero.
Nada.
E nada.
E depois um gargarejo e uma tosse! A água sai disparada da boca dele,
como uma fonte, mas ponho a minha mão sobre ela e obrigo-a a manter-se
fechada. Ele que se engasgue! Ele que sufoque! Mas que engula!
Contorce-se fracamente, engasgando-se com a água, forçando-a a sair dos
pulmões e, sem outro sítio para onde ir, acumula-se de novo na garganta — e
vejo a sua maçã de Adão a subir e a descer. Engoliu.
Corro de novo para o pedregulho, recolho o resto da água que aí se
acumulou e volto para junto de Kelton. Os seus olhos estão um pouco abertos
— está levemente consciente. Mais uma vez, encosto a minha boca à dele e
forço a água a sair. Desta vez, ele ergue a mão, segurando suavemente o meu
ombro. Sinto-o a chupar ativamente a água de mim, e deixo que o faça, até o
sentir engolir, depois largo-o, e inclino-me para trás, para recuperar o fôlego.
Ele olha para mim, ainda apenas meio consciente. O momento é perfeito
para um qualquer comentário espertalhão, mas já ambos ultrapassámos esse
tipo de coisas.
— Chuva? — pergunta.
— Avião — digo-lhe.
— Hmm. Ainda melhor. — Ele rebola para o lado e tosse, mas não faz
mal. Pode tossir tanto quanto quiser, agora!
Olho para o fogo que ainda lavra, mas por ora está contido. Garrett está
agora deitado de barriga para cima e estendido sobre o pedregulho, a olhar
para o céu azul enevoado. Poderíamos morrer felizes agora, a nossa sede
finalmente saciada. Mas talvez não morramos hoje.
Kelton senta-se. Está a chupar a manga, a retirar dela toda a água que
consegue e eu decido fazer o mesmo à minha.
Entretanto, vejo o avião a regressar ao lago, retirando a água da sua
superfície, atestando para uma segunda passagem.
PARTE SEIS

UM NOVO NORMAL
INSTANTÂNEO: DISNEYLÂNDIA, 8H57, SÁBADO, 25 DE JUNHO

A rua principal foi limpa das cinzas do fogo descontrolado, a Casa


Assombrada foi liberta de vagabundos e os falos verdes, pintados com tinta
de spray no mural das personagens mais amadas, foram apagados.
Já se passaram duas semanas desde o final oficial do Fechar da Torneira, e
foi preciso todo esse tempo para pôr as coisas de novo a funcionar. Com
tantos «elementos do elenco» desaparecidos, há muitos empregados novos —
incluindo um recebedor de bilhetes de 18 anos, no portão da frente, cuja mãe
o obrigara a aceitar um emprego de verão. A recente catástrofe custara uma
fortuna à família em franquias de seguro. Era esperado o contributo de todos.
— Vai ser divertido — disse ela.
Mas não tem sido. Pelo contrário, é como descobrir que a Fada dos Dentes
não existe, ou apanhar o Pai Natal a fumar no parque de estacionamento do
Macy’s. Talvez isso se deva ao facto de o parque parecer, todo ele,
praticamente pós-apocalíptico. Sem personagens mascaradas, sem desfile de
luzes, sem banda de jazz na praça de Nova Orleães. E sem clientes. Este tinha
sido o encerramento mais prolongado desde que o parque fora construído.
Havia, simplesmente, demasiados danos a reparar, demasiadas infraestruturas
a reconstruir. Não só aqui, mas por toda a parte. Ocorreram pilhagens aqui,
mas não tão graves quanto seria de esperar. As pessoas não queriam saber de
roupas ou de tecnologia. Procuravam apenas uma coisa. As máquinas de
vending foram abertas. Os espaços alimentares concessionados foram
destruídos em busca dessa mesma coisa. O único elemento com água que
restava no parque — uma fonte na Terra do Amanhã — tornara-se uma Meca
para as almas perdidas, que beberam a sua água tratada com cloro até esta
desaparecer. Os criativos da sede estão a planear rebatizá-la Fonte da Vida.
A grande notícia que está a ser avançada é que não morreu ninguém no
parque. Isso é dizer muito. É provável que mais nenhuma zona geográfica
possa alegar o mesmo.
Muitíssimas pessoas estão a ser saudadas como heróis por todo o Sul da
Califórnia. Como o gerente da central elétrica que serenou um motim em
Huntington Beach e o misterioso bom samaritano de Tustin que salvou um
monte de pessoas num lar de idosos e depois desapareceu. O rapaz dos
bilhetes também gostaria de dizer que era um herói, mas não fez grande coisa
a não ser sobreviver. Isso já fora suficientemente duro.
8h58 da manhã.
Ergue-se no seu posto junto aos torniquetes, a contar os minutos até à
reabertura da Disneylândia, que marca o primeiro dia oficial da normalidade.
Do outro lado dos Portões Esmeralda, as filas serpenteiam até perder de vista,
e ele percebe o porquê de as pessoas estarem ali. O porquê de precisarem de
estar ali.
Mais de duzentas mil almas pereceram durante o hiato da humanidade. O
mais elevado número de vítimas mortais num evento não relacionado com
uma guerra, na história da nação. No entanto, este número parece
espantosamente baixo, e o facto de não ser mais elevado é um milagre — ou,
pelo menos, é isso que as pessoas têm pensado. O lado positivo. Por que
outra razão precisariam tantas pessoas de rumar ao único local onde a magia
ainda existia? Onde a esperança é eterna? Onde os sonhos nunca morrem?
O relógio bate as nove.
A música ergue-se, mesmo a horas — encantando a multidão —, e depois
os cintilantes Portões Esmeralda abrem-se, acolhendo a humanidade de volta
ao Lugar mais Feliz da Terra.
56) ALYSSA

Esponja com espuma, pano molhado, toalha seca, repetir.


Ouço baterem à porta da casa de banho.
— Alyssa, despacha-te de uma vez! — diz Garrett. — Tenho de ir cagar!
Esponja com espuma, pano molhado, toalha seca, repetir.
— Usa a casa de banho lá de baixo!
— Não posso! Está lá o pai!
A esponja, o pano, a toalha. Um braço, uma perna de cada vez. Vou ficar
limpa. Só exige algum esforço.
Garrett volta a bater.
— O que estás a fazer aí dentro?
— Estou a tomar um duche.
— Não ouço a água a correr.
— Então estás surdo.
Ele não está surdo. O chuveiro não está aberto. Mas há uma esponja para
me ensaboar, um pano para me passar por água e uma toalha para me secar.
Estou de pé, no chuveiro, e inclino-me para o lavatório, que está meio cheio
de água morna, como um lavatório dos tempos em que as casas não tinham
água corrente. Com o termoacumulador finalmente substituído, já não temos
de ferver a água para a aquecer. E como a água do nosso bairro é aberta dois
dias por semana, podemos tomar banho. Sei disso. Mas não o consigo fazer.
Não consigo obrigar-me a molhar o corpo e ver a água a correr pelo ralo.
Talvez num outro dia. Mas não hoje. Hoje é uma esponja, um pano e uma
toalha. Fico feliz com isso. Mais do que feliz, fico satisfeita.
— Vamos sair não tarda — digo a Garrett. — Já estás pronto?
— Estou pronto para usar a casa de banho!
A crise terminou oficialmente há duas semanas — apenas um dia depois de
eu, Kelton e Garrett termos sido erguidos da floresta e deixados no lago
Arrowhead, onde toda a comunidade se transformara num gigantesco centro
de evacuação. Mas apenas para as pessoas que ali conseguiam chegar, o que
não era fácil. Fomos tratados por causa da inalação de fumos. Os meus
pulmões doeram-me durante uma semana. Agora já estão melhor.
Seco o cabelo, visto um roupão e deixo Garrett entrar na casa de banho,
tendo-se ele sentado na sanita ainda antes de eu ter saído da divisão. Típico.
E, no entanto, já nada parece típico. Há um novo «normal», porque as nossas
vidas estão pontuadas por estranhas bolsas de surrealismo.
Como quando regressámos à Costco. As prateleiras tinham sido
reabastecidas, como se nada tivesse acontecido, e havia um cartaz parvo, na
frente da loja, que dizia «SIM, TEMOS ÁGUA!»
Mas ainda que a loja esteja igual, as pessoas não estão. Desde que
regressámos à vida tal como a conhecíamos, descobri que há quatro tipos de
pessoas, todas fáceis de identificar — em especial nos corredores da Costco.
Há os inconscientes, que vivem as suas vidas como se o Fechar da
Torneira fosse um sonho que a vida de vigília fez desaparecer por completo.
Talvez tenham conseguido escapar antes de as coisas terem ficado más, ou
talvez vivam num estado de negação constante. Tenho dificuldade em
relacionar-me com eles. É como falar com extraterrestres que fingem ser
humanos.
Depois há aqueles como nós, que sobreviveram a tudo e ainda estão a
enfrentar o stresse pós-traumático gerado pelos acontecimentos. Demoram-se
nos corredores, maravilhados com a simples magnitude da quantidade de
produtos disponíveis e a organização necessária para os levar até ali, já nada
tomando como garantido e protegendo os carrinhos das compras como se a
sua vida dependesse disso.
Depois há os realizados. As pessoas que descobriram algo nelas que não
sabiam que tinham. Heróis naturais. Agora falam com os estranhos, procuram
oportunidades para ajudar. Descobriram que podem ser realmente úteis e não
querem parar só porque a crise terminou. Admiro-as. O Fechar da Torneira
deixou-lhes de herança uma vocação que não tinham antes.
E, por fim, há as sombras. Estas são aquelas pessoas que se movem pelos
corredores em silêncio, evitando o contacto visual, temendo a cada passo que
alguém os reconheça e os acuse do que quer que tenham feito de horrível e
indescritível para sobreviver. Aqueles que não conseguem olhar para os
outros, porque não conseguem encarar-se a si mesmos.
É o mesmo na escola. Voltámos todos há alguns dias. Embora as aulas já
devessem ter acabado por esta altura, há que terminar o ano. Um
«encerramento saudável», dizem. Porque um apocalipse com zombies da
água não está verdadeiramente terminado enquanto os miúdos não voltarem
para a escola.
Morreram três professores — dois queridos, um terceiro nem por isso, mas
ainda assim todos choraram por ele. Perderam-se trinta e oito alunos —
incluindo a estrela de futebol da escola (um running back) e a rapariga que
fora votada como tendo Maior Probabilidade de Alcançar o Sucesso. Mas
essas não eram as únicas cadeiras vazias. Houve dezenas e dezenas que,
simplesmente, não regressaram e poderão nunca regressar. A minha amiga
Sofia, por exemplo. Quem sabe se alguma vez a voltarei a ver.
E também aqui existem sombras. Miúdos que não passam de espectros dos
seus seres anteriores. Hali Hartling, por exemplo, que tinha um pontapé de
canhão, vivia à grande e parecia estar sempre no topo da pirâmide social.
Agora move-se silenciosamente pelos corredores e desconfio que perdeu por
completo a sua alegria no campo. Suponho que me poderia ter transformado
numa sombra, porque fiz muitas coisas de que não me orgulho, mas optei por
as usar, não como uma marca de vergonha, mas como uma medalha de honra.
Se fiquei marcada, trata-se de feridas de guerra, e não fugirei delas.
Se pensarmos bem, não há nada de «normal» em relação ao nosso novo
ambiente, e pergunto-me se a vida alguma vez voltará a ser a mesma. Alguma
vez seremos capazes de pôr o passado para trás de nós? Aprenderão as
sombras a continuar a viver como se nada tivesse acontecido? Irão os heróis
realizados regressar às suas personalidades menos altruístas? Irão os
emocionalmente feridos sarar um dia? E deixarei, algum dia, de ter pesadelos
em relação aos meus pais?
O facto de a verdade ter sido quase tão pavorosa quanto um terror noturno
não ajuda.
A minha mãe ficou inconsciente durante o motim na praia. Caiu,
inanimada, na areia quente. A multidão estava louca. Foi espezinhada,
partiram-lhe três costelas. O pulmão esquerdo foi perfurado e sofreu um
traumatismo craniano de terceiro grau. Teve sorte por ainda haver
paramédicos por perto, para a levarem para o hospital, caso contrário teria
morrido.
O meu pai foi preso — não por algo que tenha feito, não acredito, mas
simplesmente por estar no sítio errado à hora errada; ou talvez estivesse a
lutar para chegar junto da minha mãe, e as suas ações tenham sido
confundidas com o restante comportamento violento da multidão.
Contudo, ambos acabaram em locais perfeitos. O hospital era considerado
de elevada prioridade, pelo que recebeu as primeiras entregas de água, e a
prisão, sendo uma instalação governamental, nunca ficou sem água, como
aconteceu com as outras instalações distritais. É engraçado que a prisão fosse
um dos lugares mais seguros para se estar. Contudo, foi difícil para o meu pai
— não sabia o que nos tinha acontecido, ou à minha mãe, já para não falar
das loucuras que por lá deverão ter acontecido. Ele não fala disso. Não o
censuro.
Ambos regressaram a casa antes de nós, e passaram pelo seu próprio
inferno, enquanto esperavam para descobrir o que nos teria acontecido. Por
fim, conseguimos entrar em contacto com eles e foram receber-nos ao local
onde os autocarros que traziam as pessoas de Arrowhead deixavam toda a
gente.
É um momento que repito constantemente na minha cabeça, embora a
memória tenha ficado registada de forma mais visceral do que visual. A
sensação da memória. Talvez porque os meus olhos estavam demasiado rasos
de lágrimas para ver grande coisa. A sensação de casa, no cheiro da camisa
da minha mãe, enquanto chorava no seu ombro. A sensação de segurança
trazida pelo toque da mão do meu pai, quando a deslizou pelas minhas costas
para me reconfortar, tal como fazia quando eu era pequena. O cobertor
reconfortante com que nos cobriam as suas vozes, que temi nunca mais voltar
a ouvir. Estávamos todos ali, no parque de estacionamento — já nem me
lembro onde —, abraçados uns aos outros, até quase todos terem partido.
Nem sequer me senti envergonhada. Teria podido ficar ali, a abraçá-los, até
ao final dos tempos.
O tio Manjericão também está a viver connosco outra vez. Vivo e bem, tal
como dissemos a nós mesmos que estaria. Estamos determinados a chamar-
lhe mais vezes tio Herb, embora ele tenha as suas próprias ideias a esse
respeito.
— Chamem-me tio Salva — disse-nos —, porque me sinto muito mais
salvo do que antes.
Lamento dizer que Daphne não sobreviveu. Ele continua a desfazer-se em
lágrimas quando fala nisso. Eles amavam-se realmente um ao outro. Mas o
nosso tio, que, durante tanto tempo, depois de ter perdido a sua quinta no
Norte, se havia abandonado à autocomiseração, já não se lamenta. Encontrou
um segundo fôlego, com a venda, como não podia deixar de ser, de
ÁguaViva. Até vai fazer um anúncio para eles. A ÁguaViva salvou-me a vida.
Isso é que é transformar limões em limonada.
Junto-me à minha mãe na sala de estar, para ver as notícias. É uma
conferência de imprensa. Parece que a cada cinco minutos há uma nova
conferência de imprensa.
— O governador do Arizona acaba de se demitir — diz a minha mãe. Não
é surpresa nenhuma. Todos os que participaram no encerramento do fluxo do
rio Colorado para a Califórnia vão ser presentes à justiça. Os membros dos
governos estaduais estão a ser acusados de tudo, desde negligência criminosa
a conspiração para cometer homicídio.
— E — diz a minha mãe — encontraram finalmente o bom samaritano que
salvou todas aquelas pessoas no lar.
— Houve muitos bons samaritanos — realço, pensando no Anjo da Água,
bem como no piloto que lançou a água sobre o nosso fogo, e naquele rabi e
no padre que conduziram, em conjunto, milhares de pessoas numa
peregrinação à terra prometida do lago Big Bear, imediatamente antes de os
incêndios se fecharem atrás deles, bloqueando o caminho para os outros.
— Sim, bem, os benfeitores nunca serão de mais — diz a minha mãe.
Olho de relance para ela e vejo que tirou o penso da testa. Sete pontos. Não
parecem estar com tão mau aspeto quanto pensei que ficariam.
Ao ouvir o som da água a correr, olho de relance para a cozinha. Garrett já
desceu e está a encher a tigela da água de Kingston. Faz isto todos os dias —
algo que nunca fazia quando Kingston estava de facto aqui. Agora coloca-a
na rua, todos os dias, com uma tigela de comida. Por vezes, sai de bicicleta,
sozinho, pelos montes, em busca do nosso cão.
— Ele vai voltar — diz Garrett. — Quando achar que é seguro, vai voltar.
Quero acreditar nisso. Quero acreditar que, talvez, outra pessoa o tenha
encontrado e lhe tenha dado um novo lar. O pai ofereceu-se para nos arranjar
um novo cão.
— Um resgatado — disse. — Talvez um cão cujo dono tenha perecido
durante o Fechar da Torneira e precise de uma família como a nossa.
Mas Garrett recusa a oferta. Como se acolher um novo cão fosse uma
espécie de admissão de que Kingston desapareceu de vez.
Depois de Garrett encher a tigela, fecha a torneira. Mas depois volta a abri-
la, olhando para ela, vendo a água a fluir pelo ralo. Depois fecha-a. Depois
abre-a. Depois fecha-a, depois abre-a, uma e outra vez. Devia estar furiosa
com ele por estar a desperdiçar água — afinal de contas, temos as mesmas
restrições de sempre. Não se podem regar os relvados. Não se pode usar a
água de forma frívola. Mas não fico zangada com Garrett, porque sei que não
é uma questão de estar intencionalmente a desperdiçar a água. Está
enfeitiçado por ela. Não pela água em si, mas pelo poder de ser capaz de a
fazer fluir e de a fazer parar com o simples movimento do pulso.
Ele vê que o estou a observar e afasta o olhar, um bocadinho corado,
apanhado naquele momento privado, sentindo-se culpado.
— Estás pronto para irmos? — pergunto.
— Pensei nisso — diz Garrett — e decidi que não vou.
— Tens a certeza? — pergunto-lhe. — Podes arrepender-te mais tarde.
— Sim, posso — admite —, mas tenho a certeza.
Vai-se embora para não ter de continuar a falar daquilo. Não vou insistir
com ele. Se não quer ir, não precisa de ir. Portanto, seremos só eu e Kelton.
E, passados alguns minutos, Kelton, entra sem se fazer anunciar, o que se
tornou uma ocorrência bastante normal. Na verdade, tem passado algumas
noites no nosso sofá. Tem as suas razões e são todas boas. Não me importo
de o ter por perto.
— Liga a televisão! — insiste Kelton.
— Já está ligada — realço.
— Tens de ver isto! — Ele agarra no comando e muda os canais até chegar
a uma diferente estação noticiosa… e no ecrã está um rosto que nunca mais
pensei voltar a ver.
Estamos a olhar, imagine-se, para Henry Não-Roycroft, a ser entrevistado
por uma jornalista. Henry, maior do que a vida, na minha televisão. Sempre
pensei que ficar de «queixo caído» era figurativo — mas o meu queixo cai
mesmo.
— Oh, vejam — diz a minha mãe —, era disto que eu estava a falar… este
é o bom samaritano.
Na legenda lê-se «Henry Groyne».
— Groyne? O apelido dele é Groyne?
Henry fala, orgulhosamente.
— Só fiz o que qualquer um faria.
— Nem toda a gente entraria a correr num edifício em chamas sem mais
nada a não ser uma toalha na cabeça para salvar as pessoas — diz a jornalista.
— Isso foi em Tustin! — grito para a televisão. — Ele não esteve sequer
perto de Tustin!
— Chiu! — diz a minha mãe. — Quero ouvir isto.
Henry, no ecrã, encolhe os ombros, como se não tivesse acabado de
assumir o crédito por algo que não poderia ter feito.
— Nesta vida, vemos o que tem de ser feito, pesamos as nossas opções, e
depois abraçamos a oportunidade.
— Mas porque esperaste tanto tempo para avançar?
— O importante não sou eu. São as pessoas que salvei.
— Só podes estar a brincar comigo!
— Ainda fica pior — diz Kelton, que já deve ter visto a peça noutro canal.
Agora, a jornalista leva a transmissão de novo para o estúdio, onde o pivô
sorri para a câmara e diz:
— O Henry é um aluno do oitavo ano da Access Alternative Middle
School, o que prova que nunca se é demasiado novo para se ser um herói.
— O quê? Ele é um QUÊ? Um aluno do oitavo ano?
— Mas parece um bocado mais velho do que isso — diz a minha mãe,
alegremente inconsciente da verdade.
Não há sequer uma palavra para definir o quão sem palavras me sinto.
— Ele disse que já conduzia desde os treze…
— Sim — diz Kelton —, que foi, tipo, há três meses.
A minha mãe olha para nós como se tivéssemos acabado de chegar de
Marte.
— De que estão vocês os dois a falar?
E, como nenhum de nós quer descer pela toca do coelho e reviver aquela
loucura em particular, despedimo-nos e saímos.
Eu e Kelton resmungamos e queixamo-nos, tentando filtrar toda a nossa
experiência com Henry através desta nova lente e concluímos que não vale a
pena. Por isso, acabamos por rir daquilo e optamos por seguir em frente.
E em breve também Kelton vai seguir em frente, de uma maneira ou de
outra. Há um grande cartaz de «VENDE-SE» no relvado da casa de Kelton —
um relvado que se consegue ver agora, porque o portão de segurança foi
derrubado durante o ataque dos vizinhos não muito simpáticos.
— Como vão as coisas? — pergunto-lhe. Sei que é uma pergunta difícil.
— Bem — diz Kelton. — Estou a respirar. É alguma coisa. E é bom. —
Há um silêncio que paira entre nós, mas que agora significa alguma coisa. O
quê, ao certo, não sei.
Os pais de Kelton vão-se separar. Ele diz que é inevitável. Quase parece
aliviado. A mãe já saiu de casa e alugou um apartamento a alguns
quilómetros daqui.
— A minha mãe quer que eu vá viver com ela — diz-me Kelton.
— Tu queres?
— Bem, é isso, ou ir com o meu pai e vivermos com a irmã dele no Idaho.
— A que tem aqueles gatos todos?
— Sim. — Ele olha para a casa. Nem consigo imaginar como será ficar lá
agora. Como se pode cozinhar naquela cozinha com a recordação do que lá
aconteceu? Como se pode sentar alguém àquela mesa? Faz sentido que a
estejam a vender, embora não saiba se terão muita sorte. Há demasiadas casas
com cartazes de «VENDE-SE», agora.
— O meu pai desfez-se das armas todas — diz-me Kelton. — Não as
vendeu: destruiu-as. Todas elas. Suponho que seja parte do seu luto pelo
Brady. Acho que não voltará a tocar numa arma para o resto da vida.
Penso na minha breve história balística, logo depois de aqueles homens
nos terem atacado no bosque — como agarrei na pistola de Kelton e como
estava plenamente preparada para a usar. Como quase a usei para pôr fim às
nossas vidas. Nem sequer sei o que aconteceu à arma depois disso. Espero
que também tenha sido destruída.
— Seja como for, vou ficar com o meu pai até ele partir para o Idaho —
diz-me Kelton. — Ele precisa mais de mim do que a minha mãe, neste
momento. Pode não parecer, mas a minha mãe é a mais forte dos dois.
Faço que sim com a cabeça.
— Percebo-te.
Sentamo-nos no meu relvado, olhando para o outro lado da rua, para os
Kiblers, que estão a «supervisionar» os filhos, enquanto eles brincam ao
«estropiar um irmão» ou um qualquer jogo semelhante na rua. Kelton e eu
vamos partir dentro de uns vinte minutos, quando o meu pai voltar, porque é
ele quem nos vai levar — mas, conhecendo-o, vai chegar atrasado, com
tantos negócios novos. Antes do Fechar da Torneira, estava com dificuldades,
mas agora o negócio dos seguros está a passar por um novo
rejuvenescimento. De repente, todos querem um seguro contra desastres. Vá-
se lá saber porquê.
— Não estamos a fazer dinheiro com a desgraça das pessoas — diz o meu
pai, constantemente, para si e para nós. — Estamos a proteger as pessoas de
desgraças futuras.
Enquanto esperamos no meu relvado — que continua castanho, e jamais
será pintado de verde —, Kelton vira-se para mim e faz-me uma pergunta.
— Então, tipo, o que somos nós? — pergunta.
Encolho os ombros.
— Sobreviventes — respondo.
— Não, o que somos um para o outro?
— Oh, isso.
Sinto que deveria ser uma conversa desconfortável e, no entanto, não o é,
de todo — o que me faz compreender exatamente o que somos um para o
outro.
— Somos velhos amigos que se conhecem há, tipo, cem anos — digo-lhe.
— Só que noventa e cinco deles aconteceram numa semana.
Kelton sorri.
— Gosto disso.
Mas depois o seu sorriso desaparece. Os seus olhos parecem estar a olhar
para longe, para lá dos filhos violentos dos Kiblers. Para lá do nosso bairro.
Os seus olhos ficam húmidos.
— Matei pessoas, Alyssa…
Já estava há algum tempo à espera que ele dissesse alguma coisa acerca
daquilo. Estava à espera há duas semanas. Fico feliz por ter finalmente
abordado a questão, para que lhe possa dizer aquilo que lhe quis dizer durante
todo este tempo.
— Fizeste o que tinhas de fazer, e mais nada. Todos fizemos o que
tínhamos de fazer, e isso é o fim da história. Além disso, a floresta ardeu,
Kelton. Não resta nada, por isso ninguém vai saber.
— Mas eu sei.
— Também eu… e sabes que mais? Perdoo-te. — Depois acrescento: —
Perdoo-te mais por isso, do que te perdoo por causa daquela coisa com o
drone.
Aquilo fá-lo sorrir outra vez.
— As tuas prioridades estão muito baralhadas, Miss Morrow.
Inclino-me para o lado e bato-lhe no ombro. Ele faz-me o mesmo. Depois
olha para mim, por um momento, ponderando. Pensando.
— Daqui a três anos — diz ele —, quando acabares com o teu primeiro
namorado da faculdade, vais telefonar-me e eu vou ficar toda a noite
acordado a falar contigo.
— É possível — admito. E depois digo: — Daqui a sete anos, quando a tua
primeira start-up informática se afundar, vamos sair à noite. Eu far-te-ei rir e
impedir-te-ei de ficares demasiado bêbedo, e convencer-te-ei a deitares mãos
à obra e começares a tua segunda start-up tecnológica.
— É possível — admite. — E, dentro de doze anos, vais telefonar-me
porque queres que eu seja o padrinho do teu primeiro filho.
— É possível — concedo. — E, daqui a vinte anos, iremos passar férias
juntos, e os nossos cônjuges, ou o que seja, vão ficar com ciúmes por
estarmos a passar demasiado tempo a falar um com o outro e vão fugir juntos.
— É possível — conclui. — E, dentro de trinta anos, quando te estiveres a
candidatar para a reeleição, e eu tiver feito a minha terceira fortuna, vou
levar-te a dançar e sairá nos jornais todos. — E depois acrescenta: — Claro
que, por essa altura, serão holográficos.
Tenho de me rir.
— Claro que serão.
Ele sorri-me.
— E, então, talvez possamos voltar a perguntar o que somos um para o
outro?
Estendo-lhe a mão para que a aperte.
— Combinado.
Mas, em vez de a apertar, ele pega nela e beija-a, como se fosse uma
pessoa verdadeiramente encantadora. E eu penso: Sim, um dia destes é capaz
de chegar a ser encantador.
— Uau — diz. — Tenho finalmente um encontro marcado com a Alyssa
Morrow. Posso morrer feliz.
Ambos nos rimos e é uma sensação confortável. Parece real. E faz-me
sentir um bocadinho triste com a possibilidade de só virmos a dançar juntos
dentro de trinta anos.
O meu pai encosta, espantosamente, a horas.
— Já estão os dois prontos para ir? — pergunta.
— Nunca estive mais pronta — digo-lhe.
Sabem, ontem, quando cheguei a casa da escola, a minha mãe olhou para
mim com um ar estranho — algo que tem feito muitas vezes ultimamente,
mas desta vez há um motivo claro.
— Acabei de receber uma chamada estranhíssima — disse a minha mãe.
— Há uma rapariga na unidade de queimados do Foothill Hospital… e o mais
estranho é… que ela deu o teu nome como contacto de emergência. Acho que
se enganaram na Alyssa Morrow.
Sei que existem cinco Alyssas Morrow na Califórnia. Sei que encontraram
a certa. E não me surpreende que Jacqui tenha dado uma tareia ao fogo.
Kelton abre-me a porta do automóvel, mas tropeça no passeio ao fazê-lo —
o que é perfeito. De facto, não gostaria que fosse de outra maneira. Entramos
e partimos pela nossa rua familiar, estranha, dirigindo-nos para um mundo
cujas novas raízes se estão já a embrenhar profundamente nas férteis ruínas
daquilo que costumava ser.
Não foi Jacqui quem nos disse que o corpo humano é composto por
sessenta por cento de água? Bem, agora sei o que compõe o resto. O resto é
pó, o resto é cinza, é tristeza e é dor… Mas, acima de tudo isso, apesar de
tudo isso, unindo-nos… está a esperança. E a alegria. E um manancial de
possibilidades infindáveis.
BIOGRAFIA

NEAL SHUSTERMAN cresceu em Brooklyn e vive na Califórnia. É um


autor premiado de livros para crianças, jovens e adultos e escreve para
cinema e televisão. Pode consultar a página do autor em STORYMAN.COM.
Mais informações em
WWW.SDE.PT

JARROD SHUSTERMAN vive em Los Angeles, escreve para cinema e


televisão e é realizador de anúncios publicitários. Com o pai, Neal
Shusterman, está a adaptar o livro Seca para cinema. Pode consultar o
Instagram do autor em @JARRODSHUSTERMAN.
Mais informações em
WWW.SDE.PT

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