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Nivaldo e Paulo Roberto:

“Ícones” da Aliança
de Misericórdia
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O “Ícone”
Quando Nivaldo e Paulo Roberto, no começo da história da Aliança
de Misericórdia, por caminhos diferentes, deixaram essa terra para voltar
à casa do Pai, tivemos a certeza de que o Senhor tinha nos deixado uma
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grande graça e uma herança preciosa.
Neles vimos, como Dom Gil Antônio Moreira nos disse na época, um
ícone do carisma a que Deus nos chama como Aliança de Misericórdia.
A salvação se faz “história” e através da história Deus revela Sua Palavra, Aliança de misericórdia
Seu Mistério. Da mesma forma, os carismas da Igreja “se fazem história” e
através desses acontecimentos, encontros, vidas... Deus revela “o mistério
da Sua Misericórdia”, que através daquele carisma continua se realizando
no ‘hoje’ da história do homem.
A Aliança nasceu para evangelizar. Nasceu para transformar os pecado-
res em santos e testemunhas da Sua Misericórdia. Nasceu pelas “pedras”,
porque como Jesus disse na entrada messiânica em Jerusalém, “se outros
se calarem, as pedras clamarão” (cf. Lc 19,40). Num tempo em que muitos
profetas calam, em que frequentemente esquecemos que a Igreja vive para
evangelizar, o Senhor, mais uma vez, “suscita das pedras os filhos de Abraão”
(cf. Mt 3,9). Neste grande reavivamento do Espírito Santo situa-se também
nossa pequena Família.
Nivaldo e Paulo Roberto são para nós ícones da escolha de Deus em
restaurar os filhos menorzinhos, feridos, enfermos, dilacerados pelo “não-
amor”, pelo pecado e transformá-los em fonte de cura, de conversão, de
Um Sonho de Deus

vida, para tantos. Deus transformou suas feridas em canais de cura para os
outros. Ele torna o “sedento” fonte de água que jorra para a vida plena do
mundo (cf. Jo 7,37-38).
Ícone, na tradição ortodoxa, não é apenas uma pintura sagrada, é muito
mais, é a própria revelação do mistério de Deus, “escrito”, nas cores e nas
formas, como altíssima teologia ascética, como experiência viva, imediata,
mística, orante, oferecida a quem observa. Ícone é uma verdadeira “janela”
que nos permite vislumbrar no Céu e que permite ao Céu de chegar até
nós.
Apresentando a vida desses dois “santos pequeninos” podemos experi-
mentar concretamente algo do mistério infinito da Divina Misericórdia
que hoje se dá para nós.

78 Nivaldo, filho da Misericórdia


“Eu sou o Senhor e outro não há! Não existe deus fora de mim!
Armei-te guerreiro e tu não me conhecias. Assim se ficará sabendo, do
nascer até o poente, que sem mim nada existe.” (Is 45,5-6)

Nivaldo nasceu na zona sul de São Paulo, no Jardim São Lourenço. Era
o filho caçula de uma família de nove irmãos, alguns deles, filhos de pais
diferentes. Sua família sempre foi muito pobre; eles passavam fome e mo-
ravam todos juntos em um cômodo pequeno. Era uma família desestrutu-
rada. Aos dois anos, seus pais se separaram devido ao alcoolismo do pai e
violência dele em relação à sua mãe. Com a separação, as dificuldades fi-
nanceiras aumentaram ainda mais e sua mãe passou a morar no trabalho e
visitava-os a cada quinze dias. Assim, eles mesmos foram aprendendo a “se
virar”, e aos poucos, a família foi se dividindo, cada um foi tomando o seu
próprio rumo.
Aos dez anos, Nivaldo foi matriculado em uma escola, mas não perma-
neceu lá por muito tempo; não chegou a ser alfabetizado. Naquela época,
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Aliança de misericórdia
moravam no Jardim Ângela, considerado um dos bairros mais violentos
de São Paulo.
O seu envolvimento com as drogas começou aos doze anos e a vida do
Um Sonho de Deus

crime aos quinze. Quase foi assassinado, teve princípio de overdose e com
o passar dos anos, o uso cada vez mais intenso de drogas o deixou depres-
sivo, cheio de medos, angustiado, chegando a pensar em suicídio algumas
vezes. Num dia de grande sofrimento, andando sem perspectivas pela rua,
foi parar em frente a uma igreja sem saber explicar como. Sentou-se na
calçada e começou a chorar.
Naqueles dias ele tinha acabado de perder, assassinados, seus melhores
amigos envolvidos na sua gangue e em especial um deles, o mais querido,
que tinha sido assassinado no lugar dele, porque o haviam confundido
com Nivaldo. Morreu entre os seus braços, no seu lugar.
Duas jovens aproximaram-se naquele momento e lhe diziam: “Cara,
Jesus te ama!”. Nivaldo nunca ouvido falar de Jesus, pensou... “Quem é esse
Jesus?”. As jovens anunciaram para ele o Amor de Deus que em Jesus se
revelou para nós e convidaram-no para entrar na Igreja, até a Capela do
80 Santíssimo. Nivaldo, mais pelo desespero do que pela fé, entrou.
Encontrou-se ajoelhado e na frente do Senhor e pensou: “Senhor, se
você realmente existe, se realmente você me ama, manifesta-me o Teu amor,
mostra-me que você é Deus!”.
Naquele momento sentiu-se impulsionado a pegar a Bíblia nas mãos,
abriu ao acaso. Os olhos caíram sobre Isaías 45,1ss. Qual foi sua maravi-
lhosa surpresa quando percebeu que ele, analfabeto (Nivaldo só sabia ler
os números dos ônibus) começou a soletrar e logo a ler aquela Palavra que
anunciava: “Eu sou o Senhor e outro não há! Não existe deus fora de mim!
Armei-te guerreiro e tu não me conhecias. Assim se ficará sabendo, do nascer
até o poente, que sem mim nada existe” (Is 45,5-6). As palavras e as lágrimas
se misturavam com um fogo que sentia em todo o corpo, como se aquelas
palavras fossem vivas, o enchessem, o abraçassem, o recriassem.
Sentiu-se batizado pelo Espírito Santo, curado e restaurado. Levantou-
-se como nova criatura. A partir daquele momento, não carregou mais
consigo o revólver. Pegou como sua arma um grande crucifixo, que sempre
carregava e que realmente, a partir de então, usava como arma nas batalhas
contra a carne.
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Aliança de misericórdia
Uma vez, contou-nos que tinha sido profundamente tentado a noite
inteira e permaneceu “agarrado” ao crucifixo, para não cair na tentação
da impureza. A certa altura, uma força misteriosa arrancou o crucifixo
Um Sonho de Deus

das suas mãos e lançou-o contra a parede. O seu crucifixo ainda carrega
marcas de descascado, por causa daquela batida violenta.
Foi pela força desta Palavra que Nivaldo venceu o demônio da droga e
nunca mais, depois desta efusão, caiu no vício. Tornou-se um pregador de
fogo, um jovem extremamente generoso, despojado. Sofria fortes enxaque-
cas, consequência dos tantos anos de dependência química, mas apesar dis-
so, era extremamente esforçado no estudo, alegre, sempre sorridente, o pri-
meiro em disponibilidade, puro, prestativo no serviço, pronto na acolhida.
Trabalhou alguns anos numa fazenda de recuperação em Guaratingue-
tá (Boa Esperança) e depois conheceu o padre João Henrique que se tornou
seu orientador espiritual.
Certo dia ele nos expressou o desejo de consagração. Queria dedicar
toda sua vida a Deus como evangelizador e dizia: “Nenhuma congrega-
ção me acolheria, por causa do meu passado. Eu vejo que Deus os chama
82 a começar uma nova Obra.” Ele, juntamente com outros jovens, nos di-
zia: “Vocês são diferentes dos outros missionários, vocês têm um chamado
diferente...”.
Quando perguntávamos qual, eles respondiam: “A Misericórdia... vocês
refletem a Misericórdia de Deus que busca os mais miseráveis, como nós, para
revelar o Seu poder”.
Foi por causa do Nivaldo e dos outros primeiros irmãos que Deus foi es-
clarecendo o Seu chamado em nossa vida e com o nascimento da Aliança,
no ano 2000, Nivaldo foi nosso primeiro “companheiro de caminhada”.
Última evangelização do Nivaldo e dia de sua morte.

“Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” 83


(cf. Lc 23,43)
“Hoje mesmo estarás comigo no paraíso...” dizia Nivaldo referindo-se ao
bom ladrão, enquanto, durante a sua última evangelização, falava, com for-
ça e ternura, para os meninos da FEBEM (atualmente Fundação CASA) Aliança de misericórdia

da Unidade de Internação 22 na Raposo Tavares, São Paulo. Embora não


soubesse, estas palavras se tornariam a profecia da sua própria vida. Poucas
horas mais tarde, na madrugada do dia 16 de setembro de 2001, Nivaldo,
aos 26 anos, ex-assaltante e traficante de drogas ia voltar à casa do Pai como
um santo, como testemunha da Misericórdia de Deus em sua própria vida.
Naquela última pregação, ele havia tocado o coração de todos. Não
apenas os meninos, mas até mesmo os monitores e guardas da FEBEM
estavam profundamente comovidos.
“Perto da Cruz de Jesus – dizia Nivaldo – estava um ladrão, que havia sido
condenado à crucificação devido às suas próprias culpas, mas que diante do
Filho de Deus soube reconhê-l’O e com humildade disse-Lhe: ‘Jesus, lembra-Te
de mim, quando vieres com Teu Reino’ (Lc 23,42). Eu também – continuava
Nivaldo – fui ladrão como vocês talvez foram, assaltei, usei e trafiquei drogas,
fui membro de uma quadrilha e vivi no crime, usei o revólver e me sentia forte
Um Sonho de Deus

com isso... Mas um dia, no auge do desespero, eu também falei para Jesus com
reta intenção e humildade: ‘Senhor, lembra-Te de mim!’ E Ele se lembrou! Ele
me tirou do abismo em que eu havia caído, porque invoquei o Seu santo nome
com sinceridade de coração. Sim, eu quero ir ao paraíso, mas não sozinho...
Começando a apontar os rapazes da FEBEM acrescentou: “E você, vem
ao Paraíso comigo? E você, também vem ao Paraíso comigo? E você?” Assim
repetiu por várias vezes para que aqueles jovens se percebessem amados de
modo pessoal, particular. Ao fim de tudo, concluiu: “Porque ser consagra-
do, significa não ir ao Paraíso sozinho!”.
Nivaldo tinha a responsabilidade de coordenar a primeira e, até então,
única casa de acolhida, da Aliança de Misericórdia para jovens saídos das
ruas. Naquela mesma noite, voltando em casa, percebeu que um dos me-
ninos tinha tido uma queda em relação ao uso de drogas e havia fugido.
Nós pensávamos que não fosse a melhor solução buscar os filhos na
84 rua, caso fugissem, porque achávamos ser este um momento já de escolha
consciente por parte deles. Mas, contrariamente ao costume, Nivaldo se
aproximou de padre João Henrique, como seu formador, e pediu-lhe para
sair e procurar aquele jovem pelas ruas: “Ele é fraco, não terá a coragem de
voltar se não o procurarmos”.
O padre João Henrique, não queria permitir, já que a hora era tardia; a
meia-noite havia passado há dez minutos e estavam todos muito cansados
devido à evangelização na FEBEM, que não tinha sido nada fácil. Foi neste
momento que Nivaldo, numa atitude ativa de amor, de generosidade e de
“loucura evangélica,” respondeu prontamente: “Padre, você me ensinou que
o Bom Pastor dá a vida pelas Suas ovelhas (cf. Jo 10,11).
Deixe-me ir buscar este irmão que está perdido. Amanhã poderá ser
tarde!” Diante disso, não pude mais negar. Apenas enviei mais dois irmãos
junto com ele. Quando regressaram, poucos metros antes da entrada da
nossa casa, num acidente mortal, os anjos do Senhor vieram ceifar a vida
do primeiro missionário consagrado da Aliança de Misericórdia. Nivaldo,
primeiro filho e testemunha da Misericórdia, voltava à casa do Pai.
Só ele veio a falecer no acidente. Foi encontrado no banco da frente, en-
colhido como se estivesse nos braços da Mãe Santíssima, que juntos tínha-
mos acabado de invocar através do Terço. A última oração da vida dele foi
o Magnificat... “Lembrando-me de sua misericórdia – conforme prometera a
nossos pais – em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre!” (cf. Lc
1,54-55). Poucos momentos depois, a vida do Nivaldo se abria ao eterno
canto da Misericórdia do Senhor.
No dia seguinte, durante o velório, regressou a ovelha perdida, o jovem
que tinha fugido num momento de fraqueza da casa de acolhida. Ele se
colocou ao lado do caixão permanecendo assim o tempo todo. O bom
pastor tinha lhe dado a sua vida.
Sua morte não foi apenas consequência de um acidente, foi consequên-
cia de uma vida entregue no dia-a-dia, da escolha contínua de buscar não
o mais fácil, mas o mais difícil; não o que é doce, mas o que é amargo; não
o que gratifica, mas o que custa! Nos últimos meses da sua vida, havia lido
um livro de São João da Cruz que diz “o amor não cansa e nem se cansa”,
que o impressionou e o deixou apaixonado pela vida deste santo em quem
quis se inspirar. Decidiu assumir como lema essa belíssima expressão de
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São João da Cruz que ele, sem querer, modificou levemente, devido à sua
má alfabetização se equivocando na leitura, nestes termos: “O amor não
cansa e nem descansa...” Essas palavras, cada vez mais, tornavam-se vida
na vida dele.
Aliança de misericórdia
Guardamos a cruz do Nivaldo como a lembrança mais preciosa e mais
significativa da sua entrega total a Deus, ao lado da cruz, uma parte das
suas roupas tingidas pelo sangue do acidente, e uma Palavra que expressa
o sentido da sua breve trajetória e da sua missão: “Se o grão de trigo que cai
na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto”
(Jo 12,24).

Paulo Roberto: Rosto de Deus, desfigurado


pela dor, transfigurado pelo Amor
No primeiro ano de vida comunitária fomos chamados, um dia, para
levar a Eucaristia a um doente.

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