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Roteiro do filme Morte e Vida Severina

CENA 1 - O Retirante Severino Explica sua História


(Personagens: Severino, Leitor)

Severino: (Com humildade) O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como
há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de
Maria.

Leitor: (Curioso) Severino de Maria?

Severino: (Explicando) Sim, como há muitos Severinos com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.

Leitor: (Perguntando) Zacarias?

Severino: (Continuando) Sim, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi
o mais antigo senhor desta sesmaria.

CENA 2 - A Identidade de Severino


(Personagens: Severino, Leitor)

Leitor: (Interessado) Então como podemos saber qual Severino você é?

Severino: (Refletindo) Bem, vejamos. Sou o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra


da Costela, limites da Paraíba.

Leitor: (Ainda curioso) Mas e se houver outros Severinos com a mesma história?

Severino: (Sorrindo) Ah, somos muitos Severinos iguais em tudo na vida. Na mesma
cabeça grande, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas...
CENA 3 - A Sina dos Severinos
(Personagens: Severino, Leitor)

Leitor: (Compreendendo) Entendi. Vocês compartilham não apenas nomes, mas também
uma dura sina.

Severino: (Concordando) Sim, somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina. A de


abrandar essas pedras, suando muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais
extinta...

Leitor: (Solidário) E a de querer arrancar alguns roçados da cinza.

CENA 4 - A Emigração de Severino


(Personagens: Severino, Leitor)

Severino: (Concluindo) Agora, para que me conheçam melhor, passo a ser o Severino que
em vossa presença emigra.

Leitor: (Com empatia) Severino, sua história é tocante e reveladora. Vou acompanhá-lo
nessa jornada de emigração.

[O cenário muda, preparando-se para a próxima parte da história de Severino.]


Roteiro com falas dos personagens:

CENA 5 - Encontro com os Irmãos das Almas


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

[Irmão das Almas 1 e Irmão das Almas 2 carregam um defunto em uma rede enquanto
gritam "Ó irmãos das almas! Ó irmãos das almas! Não fui eu quem matei não!"]

Severino: (Curioso) A quem estais carregando, irmãos das almas, embrulhado nessa rede?
Dizei que eu saiba.
Irmão das Almas 1: (Respondendo) A um defunto de nada, irmão das almas, que há
muitas horas viaja à sua morada.

Severino: (Perguntando) E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se
chama ou se chamava?

Irmão das Almas 2: (Revelando) Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador,
mas já não lavra.

CENA 6 - Detalhes da Morte de Severino


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Intrigado) E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que
começou vossa jornada?

Irmão das Almas 1: (Descrevendo) Onde a Caatinga é mais seca, irmão das almas, onde
uma terra que não dá nem planta brava.

Severino: (Indagando) E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida
ou foi matada?

Irmão das Almas 2: (Explicando) Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte
matada, numa emboscada.

CENA 7 - O Mistério da Emboscada


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Interessado) E o que guardava a emboscada, irmão das almas, e com que foi
que o mataram, com faca ou bala?

Irmão das Almas 1: (Revelando) Este foi morto de bala, irmão das almas, mas garantido
é de bala, mais longe vara.
Severino: (Questionando) E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra
ele soltou essa ave-bala?

Irmão das Almas 2: (Misterioso) Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala
voando desocupada.

CENA 8 - O Motivo do Assassinato


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Curioso) E o que havia ele feito, irmãos das almas, e o que havia ele feito
contra a tal pássara?

Irmão das Almas 1: (Revelando) Ter um hectare de terra, irmão das almas, de pedra e
areia lavada que cultivava.

Severino: (Compreendendo) Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas, que podia
ele plantar na pedra avara?

Irmão das Almas 2: (Explicando) Nos magros lábios de areia, irmão das almas, os
intervalos das pedras, plantava palha.

CENA 9 - O Final da História


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Refletindo) E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas
covas, tão cobiçada?

Irmão das Almas 1: (Resumindo) Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos
ombros da serra, nenhuma várzea.

Severino: (Concluindo) Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por
que o mataram com espingarda?
Irmão das Almas 2: (Concluindo) Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar
mais livre essa ave-bala.

[Os Irmãos das Almas continuam a carregar o defunto enquanto conversam.]

CENA 10 - O Destino do Defunto


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Preocupado) E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá
contra a espingarda?

Irmão das Almas 1: (Calmamente) Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem
mais onde fazer voar as filhas-bala.

Severino: (Decidido) E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente do
chumbo que tem guardada?

Irmão das Almas 2: (Informando) Ao cemitério de Torres, irmão das almas, que hoje se
diz Toritama, de madrugada.

CENA 11 - Oferta de Ajuda


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Solidário) Poderei ajudar, irmãos das almas? Vou passar por Toritama, é
minha estrada.

Irmão das Almas 1: (Agradecido) Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das
almas quem ouve nossa chamada.

Severino: (Preparando-se) E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui
mesmo para sua casa.

Irmão das Almas 2: (Decidido) Vou eu que a viagem é longa, irmãos das almas, é muito
longa a viagem e a serra é alta.
[Os Irmãos das Almas e Severino se preparam para seguir caminho com o defunto.]

CENA 12 - Partida na Noite


(Personagens: Severino, Irmão das Almas 1, Irmão das Almas 2)

Severino: (Encerrando) Partamos enquanto é noite, irmãos das almas, que é o melhor
lençol dos mortos, noite fechada.
Roteiro com falas dos personagens:

CENA 13 - Na Casa das Excelências para o Defunto


(Personagens: Cantadores, Homem do Lado de Fora)

[Cantadores estão cantando excelências para o defunto enquanto um homem do lado de


fora parodia as palavras dos cantadores.]

Cantador 1: (Cantando) Finado Severino, quando passares em Jordão...

Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Dize que levas cera, capuz e cordão...

Cantador 2: (Cantando) Finado Severino, etc...

Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Dize que levas somente coisas de não...

Cantador 3: (Cantando) Finado Severino, etc...

Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Dize que coisas de não, ocas, leves...

CENA 14 - A Hora da Despedida


(Personagens: Cantadores, Homem do Lado de Fora)
[Cantadores continuam cantando excelências enquanto o homem do lado de fora parodia.]

Cantador 1: (Cantando) Uma excelência dizendo que a hora é hora.

Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Ajunta os carregadores que o corpo quer ir


embora.

Cantador 2: (Cantando) Duas excelências...

Homem do Lado de Fora: (Parodiando) ...dizendo é a hora da plantação.

Cantador 3: (Cantando) Ajunta os carreadores...

Homem do Lado de Fora: (Parodiando) ...que a terra vai colher a mão.

[Cena encerra com o canto dos cantadores e a paródia do homem do lado de fora.]
Roteiro completo com falas dos personagens:

CENA 15 - O Retirante Pensa em Parar Temporariamente


(Personagem: Retirante)

[O Retirante, cansado de sua viagem, para por uns instantes e começa a ponderar sobre
sua situação.]

Retirante: (Refletindo) Desde que estou retirando, só a morte vejo ativa, só a morte
deparei e às vezes até festiva; só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e
o pouco que não foi morte foi de vida Severina... Penso agora: mas por que parar aqui eu
não podia e como o Capibaribe interromper minha linha? Ao menos até que as águas de
uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina? Na verdade, por uns
tempos, parar aqui eu bem podia e retomar a viagem quando vencesse a fadiga...

[CENA 16 - O Retirante Decide Procurar Trabalho]


(Personagens: Retirante, Mulher na Janela)
[O Retirante avista uma mulher na janela e decide abordá-la para pedir informações sobre
trabalho.]

Retirante: (Determinado) Mas isso depois verei: tempo há para que decida; primeiro é
preciso achar um trabalho de que viva.

[Mulher na Janela observa o Retirante se aproximando.]

Retirante: (Educadamente) Com licença, senhora. Poderia me informar se há trabalho por


aqui?

Mulher na Janela: (Amigável) Trabalho? Bem, depende do que você sabe fazer. Tem
algumas roças que sempre precisam de ajuda, e talvez possamos arranjar algo para você.

Retirante: (Agradecido) Muito obrigado, senhora. Qualquer trabalho será bem-vindo. Sou
bom em muitas coisas, e estou disposto a aprender o que for necessário.

Mulher na Janela: (Sorrindo) Ótimo! Vou falar com alguns vizinhos e ver o que podemos
arranjar para você. Fique à vontade por aqui enquanto esperamos.

[Cena encerra com o Retirante esperando enquanto a Mulher na Janela vai procurar
informações sobre trabalho.]
Roteiro com falas de personagens:

CENA 17 - O retirante chega à Zona da Mata e observa o ambiente com admiração.

Personagem 1: Retirante (pensando em voz alta)


Retirante: (olhando ao redor) Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia
quando mais do litoral a viagem se aproxima. (sorri) Agora afinal cheguei nesta terra que
diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista. Os rios que correm aqui têm
água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina. Vejo agora que é
verdade o que pensei ser mentira. Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina? Não
tenho medo de terra (pausa, refletindo) cavei pedra toda a vida. E para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga será fácil amansar esta aqui, tão feminina.
CENA 18 - O retirante observa a paisagem e nota a ausência de pessoas.

Personagem 1: Retirante (com perplexidade)


Retirante: (franzindo a testa) Mas não avisto ninguém, só folhas de cana fina; somente ali
à distância aquele bueiro de usina; somente naquela várzea um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente que tantas canas cultiva?

CENA 19 - O retirante expressa suas preocupações e dúvidas sobre o trabalho naquela


terra.

Personagem 1: Retirante (com preocupação)


Retirante: (inquieto) Feriando: que nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso
trabalhar todas as horas do dia, os dias todos do mês, os meses todos da vida. Decerto a
gente daqui jamais envelhece aos trinta, nem sabe da morte em vida, vida em morte,
Severina; e aquele cemitério ali, branco de verde colina, decerto pouco funciona e poucas
covas aninha.

Nesta cena, o retirante chega à Zona da Mata, fica impressionado com a beleza da terra e
se questiona sobre as condições de vida e trabalho na região, expressando suas esperanças
e preocupações.
Roteiro com falas dos personagens:

CENA 20 - O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife.

Personagem 1: Retirante (decidido)


Retirante: (com determinação) Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O
que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei foi defender minha vida
de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal
medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda.

Personagem 2: Retirante (refletindo)


Retirante: (pensativo) Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a
Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui
mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que
em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre
com a mesma chama mortiça.

Personagem 3: Retirante (com determinação)


Retirante: (decidido) Agora é que compreendo por que em paragens tão ricas o rio não
corta em poços como ele faz na Caatinga: vive a fugir dos remansos a que a paisagem o
convida, com medo de se deter, grande que seja a fadiga.

Personagem 4: Retirante (decidido)


Retirante: (com firmeza) Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, o fim do rosário
de nomes que a linha do rio enfia; é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do
rosário, derradeira invocação da ladainha, Recife, onde o rio some e esta minha viagem
se fina.
Roteiro com falas dos personagens:

CENA 21 - O retirante chega ao Recife, senta-se para descansar ao pé de um muro alto e


caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros.

Personagem 1: Coveiro 1 (descontente)


Coveiro 1: (insatisfeito) O dia hoje está difícil; não sei onde vamos parar. Deviam dar um
aumento, ao menos aos deste setor de cá. As avenidas do centro são melhores, mas são
para os protegidos: há sempre menos trabalho e gorjetas pelo serviço; e é mais numeroso
o pessoal (toma mais tempo enterrar os ricos).

Personagem 2: Coveiro 2 (comentando)


Coveiro 2:** (comentando) Pois eu me daria por contente se me mandassem para cá. Se
trabalhasses no de Casa Amarela não estarias a reclamar. De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega porque parece que a gente que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se toda para debaixo da terra.

Personagem 3: Coveiro 1 (explicando)


Coveiro 1: (explicando) É que o colega ainda não viu o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento e não tardarão a aparecer os defuntos que ainda hoje vão
chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro, onde se enterram os ricos, são como o
porto do mar; não é muito ali o serviço: no máximo um transatlântico chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia.
Personagem 4: Coveiro 2 (comentando sobre outros bairros)
Coveiro 2:(comentando sobre outros bairros) Mas este setor de cá é como a estação dos
trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém.

Personagem 1: Coveiro 1 (sobre bairros diferentes)


Coveiro 1: (sobre bairros diferentes) Mas se teu setor é comparado à estação central dos
trens, o que dizer de Casa Amarela onde não para o vaivém? Pode ser uma estação mas
não estação de trem: será parada de ônibus, com filas de mais de cem.

Personagem 2: Coveiro 2 (discutindo)


Coveiro 2:(discutindo) Então por que não pedes, já que és de carreira, e antigo, que te
mandem para Santo Amaro se achas mais leve o serviço? Não creio que te mandassem
para as belas avenidas onde estão os endereços e o bairro da gente fina: isto é, para o
bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros, e no tempo antigo, dos bangüezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros); bairro também dos industriais, dos membros das
associações patronais e dos que foram mais horizontais nas profissões liberais. Difícil é
que consigas aquele bairro, logo de saída.

Personagem 3: Coveiro 1 (resposta)


Coveiro 1: (respondendo) Só pedi que me mandasse para as urbanizações discretas, com
seus quarteirões apertados, com suas cômodas de pedra.
Personagem 4: Coveiro 2 (sobre bairros diferentes)
Coveiro 2:(comentando sobre outros bairros) Esse é o bairro dos funcionários, inclusive
extranumerários, contratados e mensalistas (menos os tarefeiros e diaristas). Para lá vão
os jornalistas, os escritores, os artistas; ali vão também os bancários, as altas patentes dos
comerciários, os lojistas, os boticários, os localizados aeroviários e os de profissões
liberais que não se libertaram jamais.
Personagem 1: Coveiro 1 (explicando)
Coveiro 1(explicando) Também um bairro dessa gente temos no de Casa Amarela: cada
um em seu escaninho, cada um em sua gaveta, com o nome aberto na lousa quase sempre
em letras pretas. Raras as letras douradas, raras também as gorjetas.

Personagem 2: Coveiro 2 (comentando sobre bairros diferentes)


Coveiro 2: (comentando sobre outros bairros) Gorjetas aqui, também, só dá mesmo a
gente rica, em cujo bairro não se pode trabalhar em mangas de camisa; onde se exige
quepe e farda engomada e limpa.
Personagem 3: Coveiro 1 (motivo da mudança)
Coveiro 1: (explicando o motivo da mudança) Mas não foi pelas gorjetas, não, que vim
pedir remoção: é porque tem menos trabalho que quero vir para Santo Amaro; aqui ao
menos há mais gente para atender a freguesia, para botar a caixa cheia dentro da caixa
vazia.

Personagem 4: Coveiro 2 (pergunta sobre o Administrador)


Coveiro 2: (perguntando sobre o Administrador) E que disse o Administrador, se é que te
deu ouvido?

Personagem 1: Coveiro 1 (resposta)


Coveiro 1: (respondendo) Que quando apareça a ocasião atenderá meu pedido.

Personagem 2: Coveiro 2 (pergunta sobre mudança)


Coveiro 2: (perguntando sobre a mudança) E do senhor Administrador isso foi tudo que
arrancaste?

Personagem 3: Coveiro 1 (resposta)


Coveiro 1: (respondendo) No de Casa Amarela me deixou mas me mudou de arrabalde.

Personagem 4: Coveiro 2 (pergunta sobre destino)


Coveiro 2: (perguntando sobre o destino) E onde vais trabalhar agora, qual o subúrbio
que te cabe?

Personagem 1: Coveiro 1 (explicando)


Coveiro 1: (explicando) Passo para o dos industriários, que também é o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
Roteiro com falas dos personagens:

CENA 22 - O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe.

Personagem 1: Retirante
Retirante:(refletindo) Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no
rosário de cidade e de vilas, e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida, não seria
diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas, foice de corte e capina, ferros de
cova, estrovengas o meu braço esperariam. Mas que se este não mudasse seu uso de toda
vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da
cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, ao meu aluguel com a vida.

Personagem 2: Retirante (desiludido)


Retirante: (desiludido) E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber
desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns
dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida.

Personagem 3: Retirante (decisão)


Retirante: (decidido) A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que
vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão
macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de anhinga,
e aquele acompanhamento de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não
seca, vai toda a vida).
Roteiro com falas dos personagens:

CENA 23 - O morador de um dos mocambos se aproxima do retirante.

Personagem 1: Severino (o retirante)


Severino: (preocupado) Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabes me dizer
se o rio a esta altura dá vau? Sabes me dizer se é funda esta água grossa e carnal?

Personagem 2: Seu José (mestre carpina)


Seu José: (resposta) Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado.

Severino: (insistindo) Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso
muito água: basta que chega o abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome.

Seu José: (ponderando) Severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo
este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come.
Severino: (perplexo) Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? Quando os vazios
da fome não se tem com que cruzar? Quando esses rios sem água são grandes braços de
mar?

Seu José: (aconselhando) Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria
é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer
esforço.

Severino: (refletindo) Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? Quando a força
que morreu nem tem onde se enterrar, por que ao puxão das águas não é melhor se
entregar?

Seu José: (determinado) Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser
combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga e devasta a terra inteira.

Severino: (indagando) Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença que como
frieira se alastre, ou como rio na cheia, se acabamos naufragados num braço do mar
miséria?

Seu José:(explicando) Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e
abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.

Severino: (questionando) Seu José, mestre carpina, e que diferença faz que esse oceano
vazio cresça ou não seus cabedais se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz?

Seu José: (refletindo) Severino, retirante, que lhe pergunte permita: há muito no lamaçal
apodrece a sua vida? E a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?

Severino: (sincero) Sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram
nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.

Seu José: (resignado) Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere
comprar em grosso tais partidas, mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.

Severino: (finalizando) Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de
continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?
CENA 24 - Os vizinhos, amigos e duas ciganas se aproximam da casa do homem para
dar boas-vindas ao recém-nascido.

Personagem 3: Mulher da porta


Mulher da porta: (entusiasmada) Compadre José, compadre, que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversando em vossa prosa
entretida: não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dentro da
vida ao dar o primeiro grito; e estais aí conversando; pois sabeis que ele é nascido.

Vizinhos, amigos, ciganas e outros: (manifestando alegria) Todo o céu e a terra lhe
cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou.

Ciganas: (entrando em cena) Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos
ciganas do Egito, lemos a sorte futura.

Personagem 3: Mulher da porta


Mulher da porta: (continuando a fala) De sua formosura já venho dizer: é um menino
magro, de muito peso não é, mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher.

Vizinhos, amigos, ciganas e outros: (elogiando a criança) De sua formosura deixai-me


que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.

Personagem 1: Severino (o retirante)


Severino: (silencioso e pensativo)

Personagem 4: Carpina
Carpina: (dirigindo-se a Severino) Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não
sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil defender, só com
palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina. Mas se responder não
pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há
melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama
vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina.

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