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Severino: (Com humildade) O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como
há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de
Maria.
Severino: (Explicando) Sim, como há muitos Severinos com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
Severino: (Continuando) Sim, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi
o mais antigo senhor desta sesmaria.
Leitor: (Ainda curioso) Mas e se houver outros Severinos com a mesma história?
Severino: (Sorrindo) Ah, somos muitos Severinos iguais em tudo na vida. Na mesma
cabeça grande, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas...
CENA 3 - A Sina dos Severinos
(Personagens: Severino, Leitor)
Leitor: (Compreendendo) Entendi. Vocês compartilham não apenas nomes, mas também
uma dura sina.
Severino: (Concluindo) Agora, para que me conheçam melhor, passo a ser o Severino que
em vossa presença emigra.
Leitor: (Com empatia) Severino, sua história é tocante e reveladora. Vou acompanhá-lo
nessa jornada de emigração.
[Irmão das Almas 1 e Irmão das Almas 2 carregam um defunto em uma rede enquanto
gritam "Ó irmãos das almas! Ó irmãos das almas! Não fui eu quem matei não!"]
Severino: (Curioso) A quem estais carregando, irmãos das almas, embrulhado nessa rede?
Dizei que eu saiba.
Irmão das Almas 1: (Respondendo) A um defunto de nada, irmão das almas, que há
muitas horas viaja à sua morada.
Severino: (Perguntando) E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se
chama ou se chamava?
Irmão das Almas 2: (Revelando) Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador,
mas já não lavra.
Severino: (Intrigado) E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que
começou vossa jornada?
Irmão das Almas 1: (Descrevendo) Onde a Caatinga é mais seca, irmão das almas, onde
uma terra que não dá nem planta brava.
Severino: (Indagando) E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida
ou foi matada?
Irmão das Almas 2: (Explicando) Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte
matada, numa emboscada.
Severino: (Interessado) E o que guardava a emboscada, irmão das almas, e com que foi
que o mataram, com faca ou bala?
Irmão das Almas 1: (Revelando) Este foi morto de bala, irmão das almas, mas garantido
é de bala, mais longe vara.
Severino: (Questionando) E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra
ele soltou essa ave-bala?
Irmão das Almas 2: (Misterioso) Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala
voando desocupada.
Severino: (Curioso) E o que havia ele feito, irmãos das almas, e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
Irmão das Almas 1: (Revelando) Ter um hectare de terra, irmão das almas, de pedra e
areia lavada que cultivava.
Severino: (Compreendendo) Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas, que podia
ele plantar na pedra avara?
Irmão das Almas 2: (Explicando) Nos magros lábios de areia, irmão das almas, os
intervalos das pedras, plantava palha.
Severino: (Refletindo) E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas
covas, tão cobiçada?
Irmão das Almas 1: (Resumindo) Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos
ombros da serra, nenhuma várzea.
Severino: (Concluindo) Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por
que o mataram com espingarda?
Irmão das Almas 2: (Concluindo) Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar
mais livre essa ave-bala.
Severino: (Preocupado) E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá
contra a espingarda?
Irmão das Almas 1: (Calmamente) Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem
mais onde fazer voar as filhas-bala.
Severino: (Decidido) E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente do
chumbo que tem guardada?
Irmão das Almas 2: (Informando) Ao cemitério de Torres, irmão das almas, que hoje se
diz Toritama, de madrugada.
Severino: (Solidário) Poderei ajudar, irmãos das almas? Vou passar por Toritama, é
minha estrada.
Irmão das Almas 1: (Agradecido) Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das
almas quem ouve nossa chamada.
Severino: (Preparando-se) E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui
mesmo para sua casa.
Irmão das Almas 2: (Decidido) Vou eu que a viagem é longa, irmãos das almas, é muito
longa a viagem e a serra é alta.
[Os Irmãos das Almas e Severino se preparam para seguir caminho com o defunto.]
Severino: (Encerrando) Partamos enquanto é noite, irmãos das almas, que é o melhor
lençol dos mortos, noite fechada.
Roteiro com falas dos personagens:
Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Dize que levas cera, capuz e cordão...
Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Dize que levas somente coisas de não...
Homem do Lado de Fora: (Parodiando) Dize que coisas de não, ocas, leves...
[Cena encerra com o canto dos cantadores e a paródia do homem do lado de fora.]
Roteiro completo com falas dos personagens:
[O Retirante, cansado de sua viagem, para por uns instantes e começa a ponderar sobre
sua situação.]
Retirante: (Refletindo) Desde que estou retirando, só a morte vejo ativa, só a morte
deparei e às vezes até festiva; só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e
o pouco que não foi morte foi de vida Severina... Penso agora: mas por que parar aqui eu
não podia e como o Capibaribe interromper minha linha? Ao menos até que as águas de
uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina? Na verdade, por uns
tempos, parar aqui eu bem podia e retomar a viagem quando vencesse a fadiga...
Retirante: (Determinado) Mas isso depois verei: tempo há para que decida; primeiro é
preciso achar um trabalho de que viva.
Mulher na Janela: (Amigável) Trabalho? Bem, depende do que você sabe fazer. Tem
algumas roças que sempre precisam de ajuda, e talvez possamos arranjar algo para você.
Retirante: (Agradecido) Muito obrigado, senhora. Qualquer trabalho será bem-vindo. Sou
bom em muitas coisas, e estou disposto a aprender o que for necessário.
Mulher na Janela: (Sorrindo) Ótimo! Vou falar com alguns vizinhos e ver o que podemos
arranjar para você. Fique à vontade por aqui enquanto esperamos.
[Cena encerra com o Retirante esperando enquanto a Mulher na Janela vai procurar
informações sobre trabalho.]
Roteiro com falas de personagens:
Nesta cena, o retirante chega à Zona da Mata, fica impressionado com a beleza da terra e
se questiona sobre as condições de vida e trabalho na região, expressando suas esperanças
e preocupações.
Roteiro com falas dos personagens:
Personagem 1: Retirante
Retirante:(refletindo) Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no
rosário de cidade e de vilas, e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida, não seria
diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas, foice de corte e capina, ferros de
cova, estrovengas o meu braço esperariam. Mas que se este não mudasse seu uso de toda
vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da
cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, ao meu aluguel com a vida.
Severino: (insistindo) Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso
muito água: basta que chega o abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome.
Seu José: (ponderando) Severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo
este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come.
Severino: (perplexo) Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? Quando os vazios
da fome não se tem com que cruzar? Quando esses rios sem água são grandes braços de
mar?
Seu José: (aconselhando) Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria
é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer
esforço.
Severino: (refletindo) Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? Quando a força
que morreu nem tem onde se enterrar, por que ao puxão das águas não é melhor se
entregar?
Seu José: (determinado) Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser
combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga e devasta a terra inteira.
Severino: (indagando) Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença que como
frieira se alastre, ou como rio na cheia, se acabamos naufragados num braço do mar
miséria?
Seu José:(explicando) Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e
abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.
Severino: (questionando) Seu José, mestre carpina, e que diferença faz que esse oceano
vazio cresça ou não seus cabedais se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz?
Seu José: (refletindo) Severino, retirante, que lhe pergunte permita: há muito no lamaçal
apodrece a sua vida? E a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?
Severino: (sincero) Sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram
nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.
Seu José: (resignado) Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere
comprar em grosso tais partidas, mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.
Severino: (finalizando) Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de
continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?
CENA 24 - Os vizinhos, amigos e duas ciganas se aproximam da casa do homem para
dar boas-vindas ao recém-nascido.
Vizinhos, amigos, ciganas e outros: (manifestando alegria) Todo o céu e a terra lhe
cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou.
Ciganas: (entrando em cena) Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos
ciganas do Egito, lemos a sorte futura.
Personagem 4: Carpina
Carpina: (dirigindo-se a Severino) Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não
sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil defender, só com
palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina. Mas se responder não
pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há
melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama
vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina.