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Alberto Pucheu

POEMA

Morreram umas pessoas, viu? Umas muito próximas, outras menos próximas, e mais aquelas
distantes mas nem tão distantes.
Lembro-me de jovem eu, saindo do banho: na televisão ---- tanto tempo, meu Deus -----,
morre Glauce Rocha, anunciam;
era a atriz que entrara em minha alma com seu porte, sua voz, seus pequenos e inchados
olhos.
Acho que chorei, acho que estive uns segundos fora do planeta: minha mãe viu-me parado, viu
meu desconhecer,
e ela, minha mãe, também morreu:
estava pronta para o cinema,
e... o infarto, que como disseram fulminaria minha mãe;
o fulminante infarto diziam (com outra ordem de adjetivo e de substantivo) os poemas
médicos.
Tinha eu um irmão, mais do que filho: a escola, os cursos de línguas, tudo, tudo acompanhei
em ato e escolha:
adoeceu, sumiu, ele sumiu:
não me curo desde lá, não me curo:
a morte de meu irmão é morte de filho,
o buraco não desinflama.
Morrem umas tantas pessoas, e um homem que consertava um telhado na favela viu-se
atingido por bala oficial de fuzil, foi assim,
como foi assim o músico com sua família, indo à festa de algum bebê familiar:
oitenta tiros no músico negro, oitenta: mulher e filhos juntos presentes ao assassínio:
continuam mulher e filhos vendo: oitenta tiros.
Coisas existem que são para sempre, são para sempre como se houvesse imagem viva.
Morrem umas pessoas: o término de algumas pessoas vem com o sinal de aviso, de aviso, viu?
Ontem, os sete dias e a missa de um amigo cheio de louco amor vital!
Sei que o desaparecer de alguém aniquila uma geração completa.
Eu tocaria um jazz mudo em piano rouco tivesse ainda piano eu, e tivesse ainda dedos eu, e
tivesse ainda sentido eu, e um para quem.
Faço, quando Deus permite, esboços de poesia universal, miúda e universal: rabiscos de.
Rilke, Rilke igualmente quis o universal e ele, grande, passa para o alemão linhas de
Dostoievski, fala diretamente com toda aquele monumento rude e sagrado que é a arte russa:
conversou Rilke com Tolstoi, deliriou com Gogol,
viajou com Lou-Salomé, que sendo de Petersburgo segurou a mão de Rilke e disse-lhe:
às vezes o universal impede, às vezes o universal amplia.
Sabiam tudo esses mortos, tudo quanto ao sumo constante do universal:
no universal, o mel do espírito!
Nada quer morrer, nada, e contudo.
Nada quer transmutar a carne em poeira, nada, e contudo.
Não estou triste, parece que estou triste, mas não estou triste: não estou triste, pois estou
sabendo!
Em certos instantes no universo alguém está sabendo:
isso, o estar sabendo, gera conforto, é doce, macio.
Nesse estado do estar sabendo não se morre, juro a você, não se morre.
A morte aproveita o ignorar, o intervalo da distração, da infeliz e necessária distração
ignorante, aquela, a do mosquito voando no quarto vazio do casal, supondo que encontrará,
mesmo em ausência de corpos,
sangue:
pensa o mosquito em sangue onde, para seu fim, apenas, apenas, apenas: paredes

Roberto Cossan
Poema em espera
(XXVII)

Duas pessoas deslumbrantes perderam-se. Perdeu-se uma da outra. Estão por aí perdidas duas
pessoas deslumbrantes.
Não é fácil uma pessoa deslumbrante dar de cara com outra pessoa deslumbrante.
Pessoas deslumbrantes existem, e muitas, mas onde?
Em dada rua, anda neste momento uma daquelas duas referidas pessoas deslumbrantes.
A outra pessoa deslumbrante está quieta agora, no bar, diante de seu café expresso que esfria.
Pessoa deslumbrante quando se depara com outra igualmente pessoa deslumbrante precisa
entender que a guerra compõe os ditames da extrema soberania de estarem juntas, e sem
vaidades, mantendo as almas mais ainda vigorosas: e deslumbrantes.
Sortudas pessoas deslumbrantes são as que se viram e logo compreenderam o 'somos um e
um', na ordem do ato deslumbrante do existir e de se terem sabido ver.
Neste poema não farei aquelas duas pessoas deslumbrantes que se perderam, não as farei se
reencontrarem.
Deixarei, antes, passar um curto tempo de dor e lástima.
E mais à frente, a pessoa deslumbrante ali do café e a pessoa deslumbrante ali da rua, por
estarem sem rumo, farão caminho inverso:
A pessoa deslumbrante da rua, estando em algum outro café vê outra diferida pessoa
deslumbrante, e quer a aproximação:
a aproximação ocorre.
A pessoa deslumbrante do café frio, estando na rua, na rua vê outra diferida pessoa
deslumbrante,e quer a aproximação:
aproximação ocorre.
E se uma força maior e mais lírica, que independe deste poema, fizer com aquelas duas
pessoas deslumbrantes (embora as duas já unidas a distintas pessoas deslumbrantes) terem a
graça de se verem, cada qual com seu par,
nesse manso fim de tarde?
Se assim ocorrer, nada haverá senão o fato de que morrera o drama e eis pois então todos no
imediato (e deslumbrante!) espaço do romanesco:
o "houve"

Roberto Cossan

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