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As mães que assumiram cabelos

cacheados para inspirar filhas

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL/WERUSKA GOEKING E AMANDA VIDAL


Legenda da foto,
Weruska Goeking e sua filha Manuela, (à esquerda), e Amanda Vidal com sua filha,
Laura
Article information

• Author,Giulia Granchi
• Role,Da BBC News Brasil em Londres
• Twitter,@GranchiGiulia
• Há 3 horas

A primeira tentativa de Weruska Goeking para "domar os cachos" aconteceu


quando ela tinha 11 anos. O procedimento escolhido foi o relaxamento capilar,
uma técnica também química, mas considerada menos potente que a famosa
progressiva.
A ideia, apoiada por sua mãe, que também tinha cabelos encaracolados, era
diminuir o volume para que fosse mais fácil pentear e cuidar dos fios — e para
Weruska, se parecer mais com as moças que eram consideradas o "padrão de
beleza" da época.
"Como a maioria das cacheadas que cresceram nas décadas de 80 e 90, eu
não tive referências de modelos, atrizes... Figuras que usassem seus cabelos
naturais com orgulho. Meu desejo de ter os fios lisos começou bem cedo",
lembra ela, que hoje tem 40 anos e trabalha como gerente de marketing e
conteúdo em São Paulo.
Foram 25 anos de sua vida passando por alisamentos - a progressiva, que
deixa os fios realmente lisos e dura entre quatro a seis meses, a depender dos
fios, veio logo depois do relaxamento capilar. Escovas, sessões de chapinha e
produtos diversos também fizeram parte da longa rotina pelo liso perfeito.
A opção de alisar os cabelos foi colocada à prova na medida em que Weruska
era exposta a conteúdos de mais e mais mulheres assumindo seus cabelos
naturais na internet. Em paralelo a isso, crescia a vontade de ser mãe.
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maternidade?
Fim do Matérias recomendadas
"Eu já vinha flertando com a ideia de ver meu cabelo natural de novo, buscando
referências, pesquisando sobre transição capilar… Quando engravidei, veio o
reforço que eu precisava para abraçar minha identidade."
CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL/WERUSKA GOEKING
Legenda da foto,
Weruska em três versões: com os fios alisados, durante a transição capilar e com seus
cachos naturais
Quando recebeu a confirmação de que seria mãe, Weruska conta que
começou a refletir como ensinaria a criança a amar seu corpo, sua identidade e
seu cabelo — especialmente se fosse uma menina, o que se confirmou
algumas semanas mais tarde.
"Não fazia sentido eu não aceitar uma parte de mim mesma, como meu cabelo,
e tentar ensiná-la a se amar. A Manuela desempenhou um papel fundamental
nessa decisão."
Assim como para muitas mulheres que passam pela transição capilar, a fase foi
desafiadora para Weruska. "Eu não estava preparada para cuidar do cabelo
natural, e estar com ele metade cacheado e metade liso era complicado.
Cortei, tirando toda a química, após um ano e alguns meses de transição."
CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL/WERUSKA GOEKING
Legenda da foto,
Os cachos de Manuela, filha de Weruska
A força da identidade
Na avaliação da psicóloga Danielle Braga, o ato de assumir os cachos tem
relação direta com mostrar a essência, personalidade e ancestralidade.
"Acho que está tudo bem querer mudar, mas quando optamos por alisar o
cabelo por uma pressão externa, estamos, de certa forma, representando um
papel social para sermos aceitos e nos encaixarmos minimamente em um
contexto social. Assumir nossos cabelos é uma quebra em relação a essa
violência."

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL/DANIELLE BRAGA


Legenda da foto,
Danielle Braga é psicóloga social e atua em coletivos periféricos da Zona Sul da cidade
de São Paulo
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Fim do Podcast
O impacto da rejeição do cabelo natural — por si próprias ou por outras
pessoas— pode ter um impacto negativo grande na vida de meninas, diz
Braga.
"Como será que a mente dessa menina vai se comportar em outras relações no
futuro se foi uma figura de cuidado dizendo que ela não pode ou não deve
deixar o cabelo como ele é naturalmente? Provavelmente ela constantemente
pensará que não é suficiente"
Quanto às mães e cuidadoras que permitiam ou incentivavam o alisamento dos
cabelos das meninas, a psicóloga avalia que a decisão era tomada por um
conjunto de motivos — e que não seria justo colocá-las como vilãs mal-
intencionadas.
"Muitas dessas mães são negras, e pode ser que tenham enfrentado
preconceito devido ao cabelo e estivessem tentando proteger suas filhas.
Essas decisões também podem estar relacionadas ao contexto da época", diz
Braga.
"A transição é uma ruptura, permitindo deixar para trás um passado de dor,
negligência e silenciamento, e assumir sua verdadeira identidade em um
mundo que ainda não a enxerga com olhos gentis, que às vezes a exotizam, é
um processo complexo e desafiador, mas é fundamental para a nossa
evolução."
Já o movimento que mães como Weruska fazem — de romper com um ciclo de
anos na mudança da aparência — tem, na visão de Braga, um impacto na
autoestima e no amor-próprio.
"Quando as mães podem transmitir essa mensagem, o processo de aceitação
se torna mais positivo. As meninas também são preparadas para enfrentar a
escola e os comentários de forma diferente."
"Ao invés de dizer 'vamos alisar o cabelo para não passar por isso', as mães
podem dizer 'vou conversar com a diretoria, isso não vai ficar assim'. Essa
sensação de proteção, de ter alguém que olha por você, te protege e te cuida,
é valiosa. Essa geração não vai aceitar menos do que merece. "
'Educar pelo exemplo'
Diferentemente de Weruska, a carioca Amanda Vidal, de 40 anos, ainda
alisava o cabelo quando sua filha, Laura, nasceu.
"Quando ela tinha cinco anos, estava tentando deixar os fios naturais, mas eu
não gostava do que via no espelho. Cedi à voltar para o alisamento sem pensar
no impacto que isso teria nela", conta.
Não demorou muito para que Laura começasse a pedir para ter os fios lisos
como o da mãe — ela dizia querer “poder jogar os cabelos de lado”.
Amanda teve um flashback. “Era exatamente o que eu falava quando era mais
nova — meu sonho era ter um cabelo bem lisinho para poder jogar. Foi aí que
eu comecei a me preocupar com isso e tentei convencê-la de que seu cabelo
era lindo do jeito que era, mas não funcionou como eu esperava.”

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL/AMANDA VIDAL


Legenda da foto,
Amanda, 40 anos , e Laura, 7
"Eu percebi que não podia dizer que seu cabelo era lindo enquanto alisava o
meu. Precisava educar pelo exemplo, então, comecei a trabalhar nisso dentro
de mim. Foi um processo longo."
"Agora, ela balança seu cabelo e não se preocupa mais com o volume, porque
ela sabe que é linda do jeito que é. Isso me deixa muito feliz."
"Esse exemplo que eu pude dar não era tão comum no passado. Minha mãe
também tinha cabelo cacheado, mas alisava com progressiva porque
acreditava que era melhor e a fazia sentir-se mais bonita e arrumada. Havia um
estigma de que cabelo cacheado não ficava arrumado, o que não é verdade.:
A tentação da busca pelo 'perfeito'
Amanda acredito que essa mudança — da qual ela e outras mães fazem parte
— pode ajudar as futuras gerações a aceitarem seus cabelos naturais desde
cedo.
"Sem sentir a pressão de alisá-los para se encaixar em padrões de beleza
tradicionais. Isso é maravilhoso, todos devem se sentir bem consigo mesmos
do jeito que são."
Ela diz não aceitar comentários externos sobre os fios de Laura. "Se sugerem
que ela prenda ou passe um creme, por exemplo, eu digo que ela pode usar
como quiser — e que não existe cabelo cacheado sem frizz."
Weruska concorda — e acrescenta que é perigoso reforçar padrões de
perfeição também para as cacheadas.
"É importante não trocar uma prisão estética por outra. Aceitar e amar nosso
cabelo natural envolve também aceitar a diversidade dos outros. Cuido do
cabelo da minha filha com atenção e carinho, mas evito reforçar padrões de
perfeição."
"Não a elogio apenas quando o cabelo está recém lavado ou preso. É
importante que ela saiba que seu cabelo é lindo em qualquer estado, e que não
existe um cacho 'perfeito'".

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