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Filosofia 10

Prof. Paulo Gomes O que é a Filosofia?


[Texto 1]
Esta é, sem dúvida, a pergunta que todos
os jovens se colocam, quando se
deparam com a disciplina de Filosofia.
O que é estranho é o facto de terem
completado o ensino básico sem terem
estudado esse tema. De facto, parece
que a Filosofia é um saber que não tem
rosto na nossa sociedade, ninguém lhe
dá importância no círculo das nossas
relações quotidianas, não aparece nos
jornais ou na televisão…
Onde estão os filósofos e o que fazem?
Mais perguntas que vão ficando sem
resposta… Escher, Galeria de Arte
É muito estranho. É o mínimo que se pode dizer. Mas o mais estranho é que os alunos
do secundário não só têm que frequentar aulas sobre essa-coisa-de-que-ninguém-quer-
saber, como serão avaliados no âmbito dessa disciplina. Estranho? Então esperem pelo
que vem a seguir…
O que vem a seguir:
A filosofia não é mais do que gostarmos da vida e sabermos que gostamos da vida, com
tudo o que esse saber acarreta: a procura da compreensão do porquê e do para quê de
estarmos vivos; a responsabilidade de nos sabermos vivos e, por isso, termos que fazer
algo com a nossa vida, de forma a gostarmos cada vez mais dela e ajudarmos os outros
a gostarem da nossa vida e, por esse meio, da sua própria vida.
O que também significa que o gostarmos de nós próprios é fundamental para gostarmos
da vida. E não estou aqui a apelar ao narcisismo: cada um de nós é o culminar de biliões
de anos de evolução do Universo, o que é que poderia haver de errado connosco? A
resposta é óbvia: o acharmos que há algo de errado.
Simples demais?
Talvez não: é que essa coisa de gostar da vida parece ser (e de facto é) muito subjectiva.
O gostar, e nisso reside a sua beleza, é sempre subjectivo. Mas o viver ainda é mais,
porque a minha vida é o que há de mais irredutivelmente meu, é algo que nunca poderá
ser inteiramente dos outros, embora eu a possa partilhar sem que, com isso, a diminua,
antes pelo contrário: quanto mais a partilho mais ela é minha, mais valor tem, maior e
mais intensa se torna…
Então, por que razão essa disciplina não se chama, simplesmente, Introdução à Vida?
Não será isso que todas as disciplinas são (ou deveriam ser)?
É que a Filosofia não é uma reflexão sobre como viver. Não se esgota nisso, não é um
conjunto de instruções, tipo livro de culinária, para nós aprendermos a viver. Só se
aprende a viver vivendo, não há outra solução.
O que a filosofia ensina é outra coisa: ela ensina o gostar da vida. E gostar é o mesmo
que saborear, é sentir intimamente o valor da vida, a sua crepitação, a sua textura, a sua
frescura e os seus cambiantes.
Mas para que isso aconteça, temos que nos apaixonar pelo nosso objecto de estudo:
temos que nos apaixonar pela vida, a sério.
Temos que a conhecer, temos que nos sentir atraídos por ela e temos que sentir que
somos correspondidos no nosso interesse. É que só se apaixona pela vida quem se
interessa por ela. O amor não nasce do desinteresse.
Por isso é, por vezes, tão difícil aprender Filosofia: muitas pessoas não se interessam
pela vida, ou porque não têm ainda maturidade suficiente, ou porque acham a vida
qualquer coisa de banal e insignificante. Estas últimas estão numa posição mais
desconfortável, a sua imaturidade pode não ter remédio, porque podem já não estar em
crescimento. Há que notar que todas as fases da nossa vida podem e devem ser fases
de crescimento.
Também pode haver pessoas que não sabem bem o que é a vida, embora a esmagadora
maioria pense que sabe. Ponto final. Parágrafo.
Ora o que a filosofia nos mostra é que só conseguimos amar a vida se reconhecermos
que não sabemos o que ela é.
Só ama a vida aquele que, de repente, ou não tão de repente, depende da vida de cada
um, descobre que a vida é espantosa: “Olha, afinal não sei o que é a vida!”
Lorpa! Podemos ser tentados a dizer se ouvirmos alguém dizer tal coisa. Mas será?
Talvez não: penso que só aprendemos a gostar de alguma coisa se nela encontrarmos
algum tipo de mistério, tal é a força que exerce sobre nós o desconhecido quando nos
apercebemos da sua existência. Mas muitos homens não se apercebem da existência do
desconhecido. Vivem presos àquilo que conhecem, fechados na redoma sagrada das
suas crenças. Para esses o mundo não tem mistérios e o mesmo se pode dizer em
relação à vida. E por vezes as nossas desilusões, as nossas crenças fundadas na
experiência quotidiana do mundo, o facto de termos vivido muitos acontecimentos banais,
enfim, a rotina e as frustrações geradas pelos fracassos e pelos problemas que
experienciámos, levam-nos a descrer na possibilidade de a vida poder ser surpreendente.
Mas a vida é, mesmo, surpreendente. Desde que estejamos dispostos a prestar-lhe
atenção. Se projetarmos sobre elas as nossas expectativas, boas ou más, não a
deixamos, digamos, falar. E ela cala-se. E se há uma coisa de que a vida não abdica é de
ter sempre a última palavra... E aí, muitas vezes é tarde demais para respondermos ao
que nos acontece.

A origem etimológica do termo "Filosofia".

Mas é tempo de encararmos de frente esta disciplina com que nos vamos entreter nos
próximos dois anos (se, é claro, tudo correr bem...).
Em primeiro lugar temos que ver o que significa esta palavra, muitas vezes mal utilizada.
O que é que significa originariamente o termo "Filosofia"?
Este termo é formado a partir de duas palavras gregas, philia e sophia. A primeira
significa amor ou amizade e a segunda, sabedoria. Somando os dois significados
ficamos com a expressão, um tanto ou quanto cor-de-rosa, "amor à sabedoria".
Parece que os arcanos da erudição milenar estão em contradição com o que disse
acima quando afirmei, com desassombro próprio dos simples ou dos ignorantes, que a
filosofia não é mais do que gostar da vida... Pois é. Mas alguém pode dizer que a
sabedoria nada tem a ver com a vida? Alguém pode gostar da vida e, ao mesmo tempo,
não procurar a sabedoria? É que quando gostamos de algo (ou de alguém) interessa-nos
saber o que isso seja, como podemos mantê-lo, como podemos aprofundar a nossa
relação com o objecto do nosso amor.
Não há situação mais absurda (que, contudo, acontece) do que alguém, por exemplo,
apaixonar-se por uma pessoa que vê pela primeira vez e acerca da qual não tem
qualquer informação (onde mora, de onde é originária, como pode ser encontrada no
futuro...). Estando nessa situação, se deixamos essa pessoa ir-se embora sem ficarmos a
saber nada sobre ela, a não ser que nos deixou com um ar apatetado, estamos,
verdadeiramente, em maus lençóis. E isso aconteceu, por exemplo, com o poeta Teixeira
de Pascoaes, o poeta e filósofo da Saudade (ora bem!), um dia viu uma jovem inglesa a
passar num elétrico no Porto e ficou extasiado… Procurou saber quem era e descobriu
que era uma jovem londrina que estava de visita a familiares no Porto e acabara de
regressar a Londres. E o nosso poeta foi a Londres, mas não terá encontrado a jovem
que, segundo ele, se transformou no amor da sua vida e que foi a sua grande musa até
ao fim dos seus dias.
Ora, em relação à vida, há muitas pessoas que passam por ela, que se apaixonam por
ela e que a deixam escapar, por assim dizer, por entre os dedos... É que acontece com a
vida mesmo que acontece em relação às pessoas: por vezes confundimos o parecer
com o ser. Uma pessoa pode parecer simpática, quando não está mais do que a tentar
convencer-nos a agir de acordo com os seus interesses. Em relação à vida, podemos
muitas vezes estar convencidos que uma dada situação é propícia a uma determinada
decisão, quando, se a analisássemos melhor, a decisão a tomar deveria ser a sua
oposta...
Também nos podemos enganar em relação a nós próprios. Costumamos valorizar tanto a
"tralha" que a vida foi depositando um pouco por toda a extensão da nossa alma (sim,
digo "alma") que acabamos por desvalorizar o que temos de mais precioso, a nossa
liberdade, a nossa dignidade, a nossa criatividade, a nossa capacidade de amar, a nossa
simplicidade... Tudo coisas leves e que podemos transportar mesmo que tenhamos que
fazer uma grande viagem, enquanto a "tralha", para além de ocupar espaço precioso,
pesa muito, torna-nos menos capazes de encarar a vida como objecto de desejo, pois o
que desejamos não é a vida, mas isto ou aquilo, este ou aquele estatuto, este ou aquele
papel no jogo de interesses que é a vida social.
Quando foi a última vez que falámos com alguém pelo simples prazer de conversar? Ou
quando fizemos um passeio só pelo prazer de passear?
Penso, digo-o com o desassombro próprio dos simples e dos ignorantes, que não
deveríamos permitir-nos dirigir-nos às pessoas a não ser que as consideremos, mesmo,
como pessoas, como valendo mais que o mundo, como participando radicalmente da
mesma dignidade com que estamos investidos. Quantas vezes não somos capazes de
nos colocar no lugar dos outros, não somos capazes de compreender a situação das
outras pessoas, porque estamos demasiado preocupados com os nossos interesses e
com o filme que está a passar na nossa cabeça que, por vezes, pinta a realidade com
cores que só nós vemos, porque usamos a paleta dos nossos interesses e expectativas?
E é triste quando nos deparamos com pessoas que se julgam mais do que nós, quão
pequeninas se mostram...
Ora, a sabedoria tem a ver com tudo isto, pois ela, mais do que um saber, representa
uma atitude perante a vida, assente na atenção constante ao que acontece e na procura
do significado desses acontecimentos. A sabedoria não é um mero saber positivo, uma
soma de conhecimentos, alinhavados num qualquer sistema de pensamento. Talvez por
isso os filósofos gregos, aqueles que inauguraram a via do inquirição filosófica ocidental
(sim, para isso é que foram inventados os dicionários), recusaram assumir-se como
sábios, confessando-se apenas como aqueles que amam a sabedoria. É que a sabedoria
não é algo que se possa adquirir de uma forma definitiva e o amor a ela pode não ser
mais do que um contínuo exercício daquilo que verdadeiramente a sabedoria é: uma
busca permanente da perfeição, uma inquietação permanente pela descoberta do sentido
profundo as coisas... Há aqui uma grande proximidade da filosofia em relação à arte, pois
o filósofo, tal como o artista, procura a expressão mais profunda e genuína do sentido da
vida e do real, mas tem a consciência de que essa expressão não pode ser alcançada
senão por sucessivas e contínuas aproximações...
Sendo assim, amar a sabedoria é um exercício constante de amor à vida. Mas atenção
que com isto não quero dizer que, já que amamos a vida, a devemos "dourar" de forma a
torná-la mais atraente. Não. Quando amamos, se amamos verdadeiramente, de forma
incondicional, não excluímos nenhum aspecto do objecto do nosso amor... E na vida a
formosura e a fealdade andam de mãos dadas. Se olharmos só a um lado estamos
perdidos, pois caímos no optimismo ou no pessimismo que, quando são extremos, são
uma carga de trabalhos...
Ora, só mais uma coisita para terminar (por agora): perante a vida, a atitude mais sábia,
mais amante de vida é a de abrir portas e não a de abrir janelas (Windows, eh, eh...).
Quem abre portas, deixa de estar num espaço circunscrito, fechado. Pode largar-se a
andar rumo ao infinito, mesmo que não o faça sabe que pode fazê-lo, vê, assim, a sua
liberdade alargada. Quem abre janelas continua confinado a um espaço fechado. Pode ir
espreitar, mas só espreitar, porque nunca poderá aventurar-se no desconhecido. Pode
também ir mostrar-se à janela, ora aqui estou eu tão seguro de mim, quem quer casar
com a Carochinha... bem, é melhor ficar por aqui.
Paulo Feitais, https://sites.google.com/site/filosofarliberta/o-que-e-a-filosofia

[Texto 3]
Tales: O Primeiro Filósofo
“Tales de Mileto, (em grego antigo: Θαλῆς ὁ Μιλήσιος) foi um filósofo, matemático, engenheiro,
homem de negócios e astrónomo da Grécia Antiga, o primeiro filósofo ocidental de que se tem notícia.
De ascendência fenícia, nasceu em Mileto, antiga colónia grega, na Ásia Menor, atual Turquia, por volta
de 623 a.C. ou 624 a.C. e faleceu aproximadamente em 546 a.C. ou 548 a.C..
Tales é apontado como um dos sete sábios da Grécia Antiga. Além disso, foi o fundador da Escola
Jónica. Considerava a água como sendo a origem de todas as coisas, e seus seguidores, embora
discordassem quanto à “substância primordial” (que constituía a essência do universo), concordavam
com ele no que dizia respeito à existência de um “princípio único/primeiro princípio" (arquê -
https://pt.wikipedia.org/wiki/Arch%C3%A9) para essa natureza primordial.”
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tales_de_Mileto

[Texto 4]
“[...]Tales, terá conseguido prever um podiam fazer mais do que levantar
eclipse em 585 [, foi considerado o conjeturas sobre as bases desta crença:
primeiro filósofo por Aristóteles]. [...] Era seria porque todos os animais e plantas
um geómetra, apesar de lhe serem precisam de água ou porque todas as
atribuídos teoremas bastante simples, sementes são húmidas?
como o de que o diâmetro de um círculo Por causa da sua teoria sobre o cosmos,
divide este último em duas partes iguais. os autores posteriores chamaram físico ou
[...] Quando descobriu como inscrever um filósofo da natureza a Tales (physis é a
triângulo retângulo num círculo sacrificou palavra grega para natureza). Apesar de
um boi aos deuses. ser um físico, Tales não era materialista,
Mas a sua geometria tinha um lado isto é, não pensava que mais nada
prático: foi capaz de medir a altura das existisse a não ser a matéria física. Um
pirâmides medindo as suas sombras. dos dois adágios que nos chegaram dele
Tales interessava-se também por textualmente é talvez dada pela sua
astronomia, tendo identificado a afirmação de que o íman, porque desloca
constelação da Ursa Menor, sublinhando o ferro, tem alma. Tales não acreditava na
a sua utilidade para a navegação. Foi, diz- doutrina da transmigração de Pitágoras,
se, o primeiro grego a fixar a duração do mas sustentava a imortalidade da alma.
ano em 365 dias e fez estimativas dos Tales não foi apenas um teorizador. Foi
tamanhos do Sol e da Lua. um conselheiro político e militar do rei
Tales foi talvez o primeiro [...] a levantar Creso da Lídia e ajudou-o a passar um rio
questões sobre a estrutura e a natureza a vau desviando um caudal de água.
do cosmos como um todo. Sustentava que Prognosticando uma colheita de azeitona
a Terra repousa sobre a água, como um extraordinariamente boa, arrendou todos
madeiro que flutua num regato. os lagares e enriqueceu.”
(Aristóteles perguntaria, mais tarde: a Anthony Kenny, História Concisa da
água repousa sobre o quê?) Mas a Terra Filosofia Ocidental, Tradução: Desidério
e os seus habitantes não se limitavam a Murcho, Fernando Martinho, Maria José
flutuar na água: Tales pensava que, num Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral,
certo sentido, tudo era feito de água. Porto Editora, p. 21.
Mesmo na antiguidade as pessoas não

O legado de Sócrates

[Texto 5]
Por que razão Sócrates foi condenado?
No Museu Britânico há uma estátua de Sócrates que pode ter sido esculpida em 330 a.
C., apenas sessenta e nove anos após a sua morte. Sócrates é retratado como um
homem baixo, musculado e careca, com barba e um nariz largo e achatado. Estes
detalhes são compatíveis com aquilo que Platão, que era seu discípulo, nos diz sobre a
sua aparência. Sócrates nada escreveu pelo que quase tudo o que sabemos a seu
respeito provém de Platão, que era seu discípulo. Nos diálogos de Platão encontramos
Sócrates nos lugares públicos de Atenas a discutir as grandes questões da Verdade e da
Justiça com os jovens da cidade. Mas vemo-lo também ser acusado de corromper esses
jovens – e depois julgado e condenado à morte. A razão pela qual isso aconteceu é u
pouco misteriosa. Os atenienses eram democratas, orgulhosos dos seus feitos e
liberdade intelectuais. Por que haveriam de condenar um filosofo à morte por causa
daquilo que ele ensinava?
De acordo com Platão, Sócrates foi acusado de «corrromper a juventude›› e de
‹‹impiedade para com os deuses››. A primeira acusação é vaga e não nos são dados
detalhes. O próprio Sócrates sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser
acusado apenas de ensinar os jovens a colocar questões. A segunda acusação também
parece forçada. Sócrates não era anti-religioso, e no seu julgamento alegou ser fiel nas
suas práticas religiosas. Porém, aparentemente tinha opiniões que não eram ortodoxas.
O estudioso clássico Gregory Vlastos sugere que, embora ter ideias não convencionais
sobre os deuses não fosse suficiente para conduzir a problemas com a justiça, «empurrá-
las para as ruas de Atenas››, como Sócrates sem dúvida fizera, poderia levá-lo facilmente
a meter-se em dificuldades.
Ainda assim, a descrição de Platão faz-nos interrogar se esta será a história toda.
Por que razão, então, Sócrates foi condenado? Pode ser útil recordar que Sócrates,
embora tenha sido venerado pelas gerações posteriores, não era uma figura popular na
sua época. (Ele próprio sugere que as acusações resultaram do facto de as pessoas não
gostarem de si.) O Oráculo de Delfos dissera-lhe que ele era o mais sábio dos homens, e
Sócrates aceitou o elogio, mas com uma qualificação peculiar. Disse que era sábio
porque tinha compreendido como era ignorante. A frase “Só sei que nada sei” tornou-se
famosa.
Esta afirmação parece agradavelmente modesta. O problema foi Sócrates ter
considerado que a sua «missão divina›› era mostrar aos outros que também eles eram
ignorantes. Numa típica conversa socrática, Sócrates mostrava aos seus interlocutores,
para manifesto desagrado destes, que todas as suas opiniões eram erradas. Isto pode
ter contribuído para que as pessoas tivessem vontade de o ver em apuros, mesmo que
não justifique a sua condenação à morte.
A política também pode ter contribuído. Os atenienses tinham orgulho das suas
instituições democráticas, mas Sócrates não partilhava esse sentimento. Segundo Platão,
era o crítico mais feroz da democracia. Objetava que a democracia colocava os homens
em posição de autoridade não por causa da sua sabedoria ou do seu talento para
governar, mas devido à sua capacidade de influenciar as massas com retórica vazia.
Numa democracia, aquilo que interessava não era a verdade, mas as relações públicas.
Já existiam especialistas nessa área em Atenas. Os professores mais influentes da altura
eram os sofistas, que ensinavam a arte da persuasão e eram abertamente cépticos
quanto à «verdade». Se tivessem vivido 2400 anos depois, teriam sido spin-doctors,
consultores de media ou especialistas de opinião pública.
Se a democracia ateniense fosse estável, a hostilidade de Sócrates poderia ter sido
ignorada, do mesmo modo que hoje as democracias ocidentais toleram a crítica. Mas
essa democracia não era estável; tinha sofrido uma série de ataques traumáticos. O
último deles ocorrerá apenas cinco anos antes do julgamento de Sócrates, quando um
grupo conhecido por «Trinta Tiranos» - liderado por Crítias, que fora um dos discípulos de
Sócrates - organizou um golpe sangrento.
No seu julgamento, que ocorreu depois de a democracia ter sido restaurada, Sócrates
censurou vivamente os Trinta Tiranos, chamando-lhes «perversos». Ainda assim, é fácil
imaginar que os líderes de Atenas pudessem sentir-se mais confortáveis com Sócrates
fora do horizonte.
Tentar explicar um acontecimento que ocorreu há 2400 anos é uma tarefa frustrante,
sujeita a uma incerteza ainda maior pelo facto de as diversas pessoas envolvidas terem
os seus próprios motivos. Quem sabe por que razão os mais de quinhentos jurados
votaram como votaram? Platão não ajuda: apresenta-nos o discurso de Sócrates, mas
não o dos acusadores. Seja como for, Sócrates foi julgado, considerado culpado e
condenado à morte. A sentença parece excessiva, mas em certa medida Sócrates foi
responsável por ela. Depois de ter sido considerado culpado, permitiram-lhe, em
conformidade com as regras do tribunal, que propusesse o seu próprio castigo. Em vez
de sugerir algo razoável, propôs que lhe dessem uma pensão vitalícia pelos serviços
prestados ao Estado - os «serviços» eram as atividades pelas quais acabara de ser
condenado. Só depois de os seus amigos terem intervindo é que Sócrates se dispôs a
pagar uma pequena multa.
Não é surpreendente que os jurados tenham aceite a proposta alternativa dos seus
acusadores.
No entanto, a sentença não foi assim tão dura, já que ninguém esperava que Sócrates
morresse efectivamente. O exílio era uma alternativa informal. Enquanto aguardava a
execução, deram-lhe meios para fugir.
Várias cidades estavam dispostas a recebê-lo e chegaram emissários com dinheiro.
Platão faz-nos perceber que ninguém teria impedido Sócrates de fugir. Os seus inimigos
queriam forçá-lo a partir e os seus amigos estavam prontos para se despedir de si.
Mas Sócrates não partiu. Em vez disso, começou â examinar as razões para fugir e para
não o fazer. Defendera sempre que a nossa conduta se deve guiar pela razão. Em
qualquer situação, afirmou, devemos fazer aquilo que tem as melhores razões do seu
lado.
Aqui estava, então, o teste decisivo ao seu compromisso com essa ideia. Enquanto a
carruagem aguardava, disse a Críton que partiria se os melhores argumentos fossem
para partir, mas que ficaria se os seus melhores argumentos fossem para ficar. Depois,
tendo examinado a questão de todas as perspetivas, Sócrates concluiu que não poderia
justificar a desobediência à ordem do tribunal. Por isso ficou, bebeu a cicuta – o veneno
prescrito pelo tribunal - e morreu. Talvez pressentisse que o seu ato torna-lo-ia uma
figura memorável para as gerações futuras. Avisou os atenienses de que não era a sua
reputação, mas a deles, que ficaria manchada pela sua morte.[...]
Sócrates não foi «o primeiro filósofo» - tradicionalmente, esse título é reservado para
Tales, que viveu um século antes. (Porquê Tales? Porque Aristóteles o listou em primeiro
lugar.) Ainda assim, os historiadores costumam designar Tales e os outros filósofos
anteriores a Sócrates por «pré-socráticos», sugerindo assim que eles pertencem a uma
espécie de pré-história filosófica e que Sócrates assinala o verdadeiro começo.
Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as suas
doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insistindo que só se descobre a
verdade pelo uso da razão. O seu legado reside sobretudo na sua convicção inabalável
de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma analise racional. O que é a
justiça? Será que a alma e imortal? Poderá alguma vez ser certo maltratar alguém? Será
possível saber o que é certo fazer e, ainda assim, proceder de outro modo? Sócrates
pensava que estes problemas não eram meras questões de opinião. Existem respostas
verdadeiras para eles, que podemos descobrir se pensarmos de forma suficientemente
profunda. Era também isto que incomodava os acusadores de Sócrates, os quais,
segundo o relato de Platão, desconfiavam da razão e preferiam basear-se na opinião
popular, no costume e na autoridade religiosa.
Sócrates acreditava que alguns argumentos eram tão fortes que o compeliam a
permanecer em Atenas e a aceitar a morte.
Poderá isto ser verdade? Que argumentos poderiam ser assim tão poderosos? A questão
essencial, disse a Críton, era a de saber se tinha a obrigação de obedecer às leis de
Atenas. As leis tinham-lhe feito uma exigência. Teria de lhes obedecer? A sua discussão
foi a primeira investigação filosófica sobre a natureza da obrigação política.

James Rachels, Problemas da Filosofia, Trad. de Pedro Galvão, Gradiva, Lisboa, 2010,
pp.13-18.

[Texto 6]
A Filosofia é Grega
A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da
realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e das suas transformações,
da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um facto
tipicamente grego.
Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão antigos
quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os
hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e
possuem. Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o
pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres humanos, pois
desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia é um facto grego, o que se quer dizer é que ela possui
certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos,
estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o pensamento, a ação, as
técnicas, que são completamente diferentes das características desenvolvidas por outros
povos e outras culturas. [...].
A Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente
com os gregos e que, por razões históricas e políticas, se tornou, depois, o modo de
pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura europeia ocidental [...].
Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os
princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética,
política, técnica, arte.
Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia,
anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, génese, genealogia, cirurgia,
ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são palavras gregas, para
percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia, e da cultura, grega sobre
a formação do pensamento e das instituições das sociedades europeias ocidentais.

O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu


Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:

• A ideia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e


universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por
exemplo, [foi pela continuação da indagação iniciada pelos filósofos] gregos [que], no
século XVII da nossa era, o filósofo e cientista inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da
gravitação universal de todos os corpos da Natureza. A lei da gravitação afirma que todo
corpo, quando sofre a ação de um outro, produz uma reação igual e contrária, que pode
ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade
e o tempo com que a ação e a reação se deram.
Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de
outra maneira que não desta; e esta lei é universal, isto é, válida para todos os corpos em
todos os tempos e lugares.
Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme
demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em Tóquio
em 1993, em Copenhaga em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo em 1792, em
Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do triângulo ou do círculo são
necessariamente as mesmas.
• A ideia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser
plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos
misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são
conhecimentos que o pensamento humano, pela própria força e capacidade, pode
alcançar.
• A ideia de que o nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e
normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do
falso. Por outras palavras, a ideia de que o nosso pensamento é lógico ou segue leis
lógicas de funcionamento.
O nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na afirmação,
atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser
humano”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação, retiramos alguma coisa de
outra (quando dizemos “este caderno não é verde”, estamos a ‘retirar’ do caderno a cor
verde).
O nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se alguém
apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira,
porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras.
• A ideia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a política, as técnicas e as
artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa escolha
passional (ou emocional) ou racional, das nossas preferências, segundo certos valores e
padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por imposições
misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas por forças secretas, invisíveis,
sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de serem conhecidas.
• A ideia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque
obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser contingentes
ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos homens, em
condições determinadas.[...]
• A ideia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento
verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem agem
cegamente, mas criam valores pelas quais dão sentido às suas vidas e às suas ações.
A Filosofia surgiu, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a
realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a fazer
perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres
humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as ações
humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de
conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos
humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse de ser revelado por
divindades a alguns escolhidos, mas que, pelo contrário, podia ser conhecida por todos,
através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal conhecimento
depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da verdade poder ser
conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos.
Marilena Chauí, Convite à Filosofia, Ed. Ática, S. Paulo, 2000, pp.20-24.

Atividades:
1. No texto 2 é-nos dito que a filosofia começa com o espanto e que o espanto é o
reconhecimento da ignorância. Interpreta estas ideias com base na alegoria da
caverna.
2. Elabora um mapa conceptual do texto 6.

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