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Anjos, Yuri dos (1996); Cruz, Mateus (1995)

Contra a Ignorância: o que você precisa para entender


a história da Igreja/ escrito por Yuri dos Anjos e
Mateus Cruz; edição de Mateus Cruz. - 1a edição - Sal-
vador, Bahia. 2020
Sumário

Introdrução..........................................................05
Notas preliminares sobre a história.............................08
Fundamentos da fé..................................................................18
Fundação...................................................................61
A razão do homem medieval.......................................86
Quem tem medo da Idade Média................................107
Cruzadas..................................................................159
A mulher medieval e suas circunstâncias...................186
INTRODUÇÃO

O motivo fundamental que esse livro será escrito é a


possibilidade de dar a qualquer pessoa, de forma clara,
simples e objetiva um mínimo conhecimento do que é
verdadeiramente a Igreja Católica. O arcebispo Venerá-
vel Fulton Sheen tem uma frase muito real do porquê
muita gente abandona a fé católica hoje: "Não há sequer
100 pessoas neste país que odeiam a Igreja Católica,
mas há milhões que odeiam o que eles acham que a
Igreja Católica é." Portanto, muito do ódio, repulsa e até
mesmo alguns católicos que vivem com dois pés atrás
com o que é a nossa Igreja (sempre com aquelas ressal-
vas: “Ah, mas no passado era uma coisa, agora é
outra...”) provém de apenas uma única fonte: A ignorân-
cia.
Dito isto, o objetivo será apresentar o que é a fé católi-
ca em sua integralidade desfazendo muitas mentiras a
seu respeito (sejam históricas ou apologéticas) e apre-
sentando o lado belo dela. Pois, como dizia G.K Ches-
terton “A dificuldade em explicar o porquê sou católico
é que há mil razões para isso, mas apenas um motivo:
O catolicismo é verdadeiro”. Acredito que todos estão
cansados de em qualquer roda de conversa ouvir aquele
discurso enfadonho do sujeito cuja única formação foi
ler ou ouvir histórias no ensino médio repetir com ares
de mil autoridades sapienciais: “Mas não dá para ser ca-
tólico porque a Igreja matou milhões na idade média!!”.
Ou aquela prima chata feminista afirmando que a Igreja
apenas “serviu como instrumento de opressão das mu-
lheres!”.
Para quem se aprofunda na história, devorando livros
e autores (que serão citados aqui), tudo isso é um
grande exagero. Sabemos que a história da Igreja é a
história da ordem, mas cremos perfeitamente que a
ordem perfeita só subsistirá no paraíso celeste, lutamos
pela cidade dos homens mas almejamos a cidade celes-
tial. Portanto, sabemos a suprema imperfeição dos
homens, mas cremos também que a Igreja não é um
mero conglomerado de homens pecadores, mas um
edifício sólido e fundado nas bases divinas lançadas por
Jesus Cristo “Sob esta pedra edificarei a minha Igreja”
(Mt 16,18); o que é uma pedra?
A pedra é uma rocha lapidada. Toda pedra possui uma
rocha na sua origem. A pedra de calcário foi retirada da
rocha calcário. Portanto, a pedra lapidada possui
sempre alguma imperfeição e Cristo nos diz que a
Pedra sempre existirá ali como fundação mas o edifício
todo é dele. Portanto, ainda que houvessem erros co-
metidos devemos ter a inteira confiança que possuímos
um engenheiro divino e que sabe colocar pedra por
pedra para manter o equilíbrio do edifício. E este edifí-
cio foi a nossa Igreja, mas também a civilização ociden-
tal.
“A auto-amnésia histórica do Ocidente não pode des-
fazer o passado nem o papel central da Igreja na cons-
trução da civilização ocidental. "Eu não sou católica",
escreveu a filósofa francesa Simone Weil, "mas consi-
dero os princípios cristãos - que têm suas raízes no
pensamento grego e que, no transcorrer dos séculos,
alimentaram todas as nossas civilizações europeias -
como algo a que uma pessoa não pode renunciar sem
se aviltar". Eis a lição que a civilização ocidental, cada
vez mais afastada de seus fundamentos católicos, vem
aprendendo com grande dificuldade.” (WOODS,
Thomas; Como a Igreja católica construiu a civilização
Ocidental)
Portanto, como forma de tentar limpar inicialmente
essa auto-amnésia é que realizamos esse livro. Para que
recuperemos o nosso passado esquecido e saibamos
entendê-lo e tenhamos a capacidade de honrar os ante-
passados. É possível que durante a leitura dele você se
sinta mal, sinta que muito do que você acreditava não
se sustenta, mas lembre-se sempre do conselho de
Nosso Senhor: “E conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará” Jo 8, 32.
Temos sempre a visão de que estamos avançando e
evoluindo. De que todos os ideais da humanidade já
foram testados e aprovados tais quais um self service
de valores da humanidade. Entretanto, Chesterton nos
lembra sempre que os ideais da humanidade, aqueles
grandes valores (o que inclui o cristianismo) foram
abandonados. Justamente porque são difíceis, são cus-
tosos para colocá-los em prática, exigem o sacrifício do
próprio ser. "Mas só tomei isso como um primeiro e
mais evidente caso para ilustrar uma verdade geral: os
grandes ideais do passado fracassaram não porque te-
nhamos sobrevivido a eles, mas porque não foram vivi-
dos o bastante. A humanidade não transpôs a Idade
Média: fugiu dela em debandada. O ideal cristão não foi
julgado e considerado deficiente: foi considerado difícil
e deixado injulgado." -G.K Chesterton, "O que há de
errado com o mundo?"
A noção de um passado obscurantista abre margem
para a criação de um futuro promissor, tal futuro é a
desculpa perfeita para a implantação de tiranias cujo a
legitimação dos seus atos contra o próprio povo é este
mesmo futuro que jamais chega, o que resta é apenas o
inferno da vida presente e a esperança de um paraíso
longínquo onde tudo o mais irá ser restaurado e orde-
nado. Nas palavras de Antônio Gramsci, fundador do
partido Comunista Italiano, “tudo será resolvido num
simples estalo”.
Tal visão sobre a história criou o que Ortega Y Gasset
chama de “Homem massa”, explicado nas palavras de
Flávio Morgenstern:

"O homem-massa é um novo modo de ser homem.


Trata-se de um ser desprovido de qualquer história
própria, de qualquer liberdade interna, de qualquer
destino que seja seu e de mais ninguém. Não é um
homem que enxerga qualquer responsabilidade em si
próprio, mas é o primeiro a apontar milhões de dedos
para responsabilidades que julga que outros possuam.
Sem culpa, sem dúvida, sem dialética interna, sem
conflitos entre prazer e dever — este é o homem que
não vive o drama da existência em um mundo multifa-
cetado, preferindo apenas exigir que outros lhe deem
o que ele quer. É o homem que desconhece que tudo
aquilo de rico que o mundo possui — livros, remédios,
casas, carros — é criação de outros homens, preferin-
do acreditar que um carro, computador ou iPhone é
algo que nasce sozinho em uma árvore, e portanto ele
também tem direito a estas coisas tão somente por
outro tê-lo pego para si — nem que seja tomando à
força o que é dele. É o homem que acredita que toda a
civilização surgiu como surgem as nuvens. O homem-
-massa é o homem das multidões, o homem da mobili-
zação por direitos, o homem da força pelo número, o
homem “politizado” que apenas quer tomar o que é
criação de outrem sem criar ele próprio, atuando como
uma nuvem de gafanhotos sobre plantação alheia."
MORGENSTERN, Flávio; Por trás da Máscara; pg 457

A noção de que tudo o que temos na vida moderna,


todos os luxos, avanços, surgiram como mágica na era
moderna como uma oposição a uma era de trevas cultu-
ral e tecnológica cria um homem sem história própria
(conforme nossos grifos), onde sem história para se
orientar o único meio de obter valores é a primeira
moda que surge no jornal matinal. Com cinco anos de
catequese e escutando relato de outras pessoas na
Igreja o que há de mais comum é um jovem entrar na
catequese, até alguns adultos, ouve o que a Igreja
ensina mas ao chegar numa faculdade, 90% dos casos
na área de humanas, arrefecem a fé, ignoram ensina-
mentos preciosos (como a busca pela castidade, a aber-
tura a vida ou a piedade litúrgica) ou tentam manter o
que aprendem na universidade com o que escutam nas
homilias de domingo.
Tal dialética torna-se impossível de se conciliar numa
síntese em forma de modo de vida, isso porque o ideal
progressista é oposto ao ideal de uma fé tradicional
como a Igreja Católica, o modo de vida que o homem
moderno possui é inteiramente contrário ao modo de
vida que qualquer medieval ou homem antigo possuí-
am, entretanto, no momento da dificuldade ou de
tomar uma decisão a pessoa com o mau conhecimento
da história da Igreja tenderá sempre a viver como os
seus pares vivem, pois tendem a enxergar o homem de
antigamente como um bárbaro desprovido de valores,
noções básicas de humanidade, ética ou estética. Ainda
que inúmeros estudos comprovem que vivemos a gera-
ção mais infeliz, ansiosa e depressiva de todos os
tempos o sentimento de pertencimento a algo novo que
irá fundar um futuro promissor é o que convence a
maioria das pessoas a abandonarem a fé, arrefecerem-
-na ou entrarem numa visão anticatólica ainda que co-
mungue todo domingo ou reconheça a importância de
se confessar.
Modéstia, castidade, estudo com o objetivo de conhe-
cer a sabedoria, seriam valores atrasados que deveriam
ser abandonados em detrimento de uma única máxima:
O amor. Daí, uma virtude tão valorosa e que, nas pala-
vras do Apóstolo, é a base de todo o edifício da fé cristã
(I Cor 13) torna-se vazia e sem a expressão de um senti-
do concreto, um humanismo cristão que nada consegue
construir e não consegue tocar no mais profundo das
almas. Entretanto, a civilização medieval e antiga, fun-
dada nesses valores considerados atrasados foi capaz
de transformar e lançar bases a nossa civilização. Nas
palavras do Historiador Christopher Dawnson, pode-
mos ter um raio-X de como era a civilização de antiga-
mente:
“Vi monarquia sem tirania, aristocracia sem facções,
democracia sem tumulto, riqueza sem luxo (...). Teria
sido seu destino, divino Platão, encontrar uma repúbli-
ca como essa” Erasmo ao avistar uma das últimas guil-
das medievais. Tendemos a achar que o período medie-
val foi o período dos horrores. Que a vida era horrível e
não prestava. Tinha seus defeitos, verdade. Tinha
menos comodidades, verdade. Mas era uma sociedade
pautada na busca comum dos valores e virtudes.”
Trecho retirado do livro: Criação do Ocidente: religião e
Medievo do Christopher Dawnson.
O homem da idade média possui inúmeras desvanta-
gens diante de nossa era, falta de tecnologia, direito
não muito avançado (não sei bem se isso era uma des-
vantagem), pouco avanço na medicina; entretanto, ele
possuía uma unidade espiritual capaz de transformar o
bem em algo a ser almejado por toda a sociedade, isso
não quer dizer que não existiam criminosos ou pecado-
res, não era uma civilização de santos, mas o cidadão
comum mantinha os olhos fixos na cidade divina, era
uma cidade de pecadores guiada pela cidade dos
santos, ele tinha a noção de que seus feitos não esta-
riam presos a este tempo, mas deveriam fazer sentido
para toda a eternidade, seus erros seriam pagos na jus-
tiça divina, seus acertos seriam recompensados pelo
Justo Juiz.

Desde o desenvolvimento litúrgico até a o afiar de


uma espada no ferreiro o cidadão tinha uma breve cons-
ciência de que cada ato ali feito era realizado não em
vista de um bem imediato, um prazer ou a busca desen-
freada pela felicidade, mas se traduziria num legado em
honra e louvor a Deus. Um exemplo é a construção da
Catedral de Notre Dame. Mais ou menos pelo ano 1170,
os responsáveis pelo projeto da Notre Dame plantaram
uma floresta de carvalhos nos arredores de Paris. Cerca
de 1500 árvores. No ano de 1200, derrubaram os carva-
lhos e começaram o longo processo de cura da madeira.
De 1200 a 1225, as toras foram mergulhadas em uma
solução de água e sal (água do Sena, provavelmente).
De 1225 a 1250 foram postas para secar. Somente aí,
50 anos depois de serem derrubadas, as madeiras, ex-
tremamente duras e resistentes, estavam finalmente
prontas para serem transformadas na imensa estrutura
que vemos abaixo, e que suportava o teto da catedral
parisiense. O cheiro do sótão, segundo quem lá entrou
era” um forte aroma de madeira envelhecida e de pi-
nheiros depois que chove”. O mais marcante disso tudo:
aqueles que começaram a construí-la nunca puderam
vê-la acabada.
No livro do Thomas Woods, “Como a Igreja Católica
construiu a civilização Ocidental”, vemos que essa cons-
trução não se traduziu apenas em um benefício próprio,
muitos ao lerem esse capítulo talvez podem pensar:
“Ah, a Igreja fez isso porque beneficiaria a ela mesmo”,
é um grande erro pensar dessa forma. Em muitas ocasi-
ões os homens da Igreja legislaram e agiram em favor
de não católicos. Um exemplo foi a tratativa que os
padres deram aos índios no âmbito do direito e da cul-
tura; os homens europeus estavam acostumados a lidar
com outros europeus, asiáticos, eslavos, etc; mas ao
desbravarem o Oceano Atlântico encontraram com
tribos diferentes, costumes diferentes, modo de se
vestir diferente, uma língua desconhecida. O objetivo
da evangelização era que costumes anti-naturais, como
o canibalismo, fossem evitados e condenados veemen-
temente. Entretanto, para alguns estadistas e homens
das armas, por conta de suas más paixões, era a opor-
tunidade certa para levar vantagens de todo tipo, algo
que é “normal”, pois sabemos que o homem possui in-
clinação ao pecado que é intensificada pelo poder tem-
poral.
A Igreja não se calou e buscou meios para garantir a
proteção a esses povos, em 1638, o Padre Montoya foi
a Madri, onde conseguiu a autorização do rei para que
os índios se defendessem com armas de fogo. E, nas
guerras guaraníticas, os jesuítas pegaram em armas
para defender os índios contra o poder colonial portu-
guês e espanhol, provando com sangue seu amor pelo
povo indígena (duvido que você tenha aprendido isso
na escola). “O Brasil dos jesuítas era um Brasil onde os
indígenas tinham um poder muito grande em compara-
ção com o poder que têm hoje. Onde o idioma dos
índios era falado pelas pessoas no cotidiano" diz Edgar
Leite Castro, professor de história da Uerj. Segundo
José Carlos Coutinho, professor da UNB, nas lendas in-
dígenas já estava registrada a espera por um Salvador,
que viria protegê-los e redimi-los, gerando o bem geral
de todos. Ou seja: o coração dos índios pedia para co-
nhecer Jesus, intuía a Sua existência. Essa “coincidên-
cia” facilitou o relacionamento dos índios com os
padres jesuítas, que eram considerados muitas vezes
como antigos pajés, que haviam voltado da terra dos
espíritos para lhes orientar. Por isso, apesar de muitas
resistências encontradas em diversas tribos, os jesuí-
tas, em geral, foram muito bem aceitos pelos índios. A
evangelização, portanto, não foi imposta a cacetadas,
mas sim acolhida voluntariamente. Como bem obser-
vou a Letícia Bauer, não tem como imaginar que poucos
padres jesuítas dominaram e forçaram 6 mil índios a
permanecer em uma redução. Houve obviamente um
consenso.
Quando São Paulo chegou na Grécia encontrou um
templo dedicado ao "Deus Desconhecido", portanto, é
algo da fé católica que ao homem é possível conhecer
certos aspectos de Deus apenas pela razão. Chesterton
chamava isso de vestígios da verdade divina, algo que
explicaria a existência de outras religiões no mundo.
Deus permitiria essas outras crenças para que, por
meio daquela verdade similar a verdade completa,
aqueles povos alcançassem alguma possibilidade de
Salvação. Os índios americanos possuíam crenças assim
também. E a melhor estratégia de evangelização era fis-
gá-los através dessas verdades. Um bom exemplo era a
crença que algumas tribos tinham na existência de um
futuro salvador que seria feito homem para redimi-los
das suas ofensas. Bastava que o sacerdote afirmasse
que esse salvador já veio e se chamava Jesus Cristo. Por-
tanto, para eles, crer em Cristo, significou conhecer o
salvador que já ansiavam e desejavam sem antes conhe-
cê-Lo.
"Porém, o que significou a aceitação da fé cristã para
os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, sig-
nificou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconheci-
do que os seus antepassados, sem o saber, buscavam
nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salva-
dor que esperavam silenciosamente. Significou
também ter recebido, com as águas do batismo, a vida
divina que fez deles filhos de Deus por adoção; ter re-
cebido, outrossim, o Espírito Santo que veio fecundar
as suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os
numerosos germes e sementes que o Verbo encarnado
tinha lançado nelas, orientando-as assim pelos cami-
nhos do Evangelho." - Papa Bento XVI . Discurso da
abertura do CELAM, 2007
O objetivo de estudarmos a história da Igreja são dois:
I) Reconhecermos o esforço dos nossos antepassados e
valorizarmos tudo o que foi construído, criando uma
estima dos valores, instituições e tradições, mantendo-
-as de pé pelo nosso estilo de vida e pelo nosso apoio;
II) Sermos humildes, pois, quando nos enxergamos
como a civilização evoluída no qual a vocação principal
é demolir os valores e as instituições anteriores esta-
mos atolados na vaidade, óbvio que devemos sempre
reparar erros, consertar problemas, não existe civiliza-
ção perfeita ou instituições perfeitas, entretanto, só há
verdadeiro progresso quando há respeito pelo passado.
III) Já dizia o Cardeal São John Henry Newman: “Aprofun-
dar-se na história é deixar de ser protestante”; isso
acontece pois quando estudamos os maiores exemplos
que a nossa fé nos deixou eles se tornam exemplos de
vida, passamos a admirá-los e a querer imitá-los, o fruto
do amor é a imitação; portanto, estudar a nossa história
é se aprofundar na nossa fé, vivê-la com orgulho, sa-
bendo que somos representantes de uma instituição
divina com a presença de grandes homens corajosos,
valorosos, que são os verdadeiros autores de tudo que
hoje podemos gozar. Essa compreensão nos reconcilia
com a nossa fé e nos faz vive-la corretamente, sem ne-
gociar valores, sem nos envergonhar deles.

A fé deve ser o centro da nossa vida, permear toda a


nossa existência e ser levada para todos os outros que
nos cercam. Não existe fé intimista, não existe fé aco-
vardada. Foi assim que os antigos viveram e consegui-
ram vencer os desafios e construir o mundo que temos
hoje! Carregue um terço enquanto anda na rua, reze-o,
não tenha medo em usar um crucifixo ou uma blusa re-
ligiosa. Só tenha medo que suas atitudes não corres-
pondam a tudo isso.
Bibliografia:

Como a Igreja Católica criou a civilização Ocidental -


Thomas Woods
Por trás da máscara - Flávio Morgenstern
Meditações do Quixote - Ortega Y Gasset
As grandes mentiras sobre a Igreja Católica - Alexandre
e Viviane Varela
O homem eterno - Chesterton
Progresso e religião - Christopher Dawnson
1. As fontes dos fundamentos

A verdade é que a necessidade de hoje todo cidadão


se debruçar sobre a história de nossa civilização, o que
inclui diretamente a história da Santa Igreja, é a de que
as histórias dos grandes exemplos, dos santos, heróis e
mártires estão sendo empurradas para debaixo do
tapete. E estão sendo evidenciados modelos não virtuo-
sos e politicagem pura e barata. O filósofo brasileiro
Mário Ferreira dos Santos fala disso nesse trecho
abaixo:
“Cabe a todos nós buscarmos conhecer e divulgar os
exemplos dignos e sublimes da existência humana e
merecedores da Graça Divina. 'Não há setor onde o
homem se tenha esmerado mais nos golpes sujos que
na política. "A política é coisa suja” é uma frase que se
pronuncia em todo o mundo e a História o confirma. A
que é narrada é a dos políticos e onde não há política
não há História, como se os grandes fatos da humani-
dade estivessem fora daquela. Queremos, naturalmen-
te, nos referir a que se propaga nas escolas. A História
oficializada pelos programas governamentais, que
exalta somente feitos de guerreiros e políticos, brutos
e sujos, e não a dos verdadeiros exemplos de grande-
za e de dignidade humana. Fala-se mais nos livros de
História de um fantoche como Napoleão III, e cita-se
brevemente um Pasteur, que construiu mais fatos im-
portantes para a humanidade que o "herói" de Sedan.
Um Napoleão Bonaparte enche mais páginas que um
Goethe, ou um Bach, como se para a humanidade
fosse ele mais importante. Ainda não se contou bem a
História para os jovens, mas um dia se fará. Será
aquela em que os grandes santos, os grandes constru-
tores de ideias e de novas formas de vida passarão
para a primeira plana e os "heróis" de heroicidade cari-
cata, e os sujos politiqueiros passarão a ter o lugar
que realmente merecem.” - Análise de Temas Sociais,
Vol. I
Vemos que, para o filosofo, a história é feita no exem-
plo dos santos, heróis, os que criaram de fato a nossa
civilização, entretanto, nos é passada apenas a história
de homens baixos, sujos e tiranos; hoje você conhece
mais sobre a vida de Adolf Hitler do que a de um São
Luís IX, ambos são estadistas, mas um causou um dos
maiores genocídios da história enquanto o outro foi um
excelente estadista. Conhecemos mais a história de um
homem que destruiu Igrejas e perseguiu padres, mas
não estamos atentos a história de um Rei que se tornou
santo e uma das suas maiores preocupações era preser-
var o legado histórico do Cristianismo, como no trecho
abaixo podemos ver:

"Em 28 de fevereiro de 1232, o Santo Cravo de


Cristo (um dos pregos que fincaram Nosso Senhor na
cruz), relíquia importantíssima que estava abrigada em
Saint Denis desde o reinado do Rei Carlos II no século
IX, caiu do vaso onde estava guardado quando os pere-
grinos o beijavam e perdeu-se entre a multidão que o
venerava. Quando Luís e sua Mãe Branca foram comu-
nicados da perda da relíquia - logo durante seu reina-
do -, 'sentiram grande dor e disseram que notícia mais
cruel não podia ter sido levada a eles nem que lhes fi-
zesse sofrer mais cruelmente'. Luís, relata-nos o cro-
nista, desesperou-se e pôs-se a gritar pelo palácio que
'preferia que a melhor cidade de meu reino fosse des-
truída e perecesse' a algo como a Santa relíquia desa-
parecer.
“Sabendo que os monges de Saint Denis estavam des-
consolados pela perda do santo cravo, o próprio rei
quis ir pessoalmente reconfortá-los. Mandou então que
se gritasse por toda a Paris que 'se alguém soubesse
alguma coisa da perda do santo cravo e se alguém o
tivesse achado ou guardado, devia devolvê-lo logo e
ganharia cem libras da bolsa do rei'. Por toda a parte,
por toda a França, o povo lamentou e chorou, acorren-
do às Igrejas para pedir a piedade de Deus (pois consi-
deravam que a perda da relíquia significava a ira do
Senhor). Ao final de março de 1232, o 'Santo cravo' foi
milagrosamente achado e levado de volta à Saint-Denis
com grande júbilo no dia primeiro de Abril." (São Luís:
O rei da coroa de espinhos; Lucas Lancaster)
Na história de São Luís conhecemos um rei onde seu
amor por Jesus Cristo era o real motivo do seu reino e,
para quem pense que isso é besteira e não possui ne-
nhuma influência real no curso dos acontecimentos his-
tóricos, o historiador Christopher Dawnson diz-nos que
“A religião é a grande força dinâmica na vida social, e as
mudanças vitais na civilização estão sempre vinculadas
as mudanças nas crenças e nos ideais religiosos” (retira-
do de “Progresso e religião”), portanto, a Europa saía de
uma cultura bárbara, com uma devoção ao paganismo
onde as forças da natureza davam a última palavra na
vida dos homens e entra com reis que tinham por devo-
ção o próprio Jesus Cristo, o verbo encarnado.
Essa devoção sempre levou em consideração o uso da
razão para estabelecer formas, argumentos, obras de
arte que pudessem interpretar diretamente. O próprio
Jesus Se define como “O caminho, a Verdade e a vida”
(Jo 14,6), logo, seus seguidores deveriam buscar essas
três coisas. Ao refletirem sobre o caminho buscavam
meditar no que era correto ao homem; ao refletirem
sobre a vida entendiam como deveria ser a melhor vida
para o homem aqui na Terra e ao refletirem sobre a Ver-
dade imediatamente se deparavam com o que deveria
ser bom e belo. Santo Tomás nos diz que a “Beleza é o
reflexo da verdade” e que “A saúde consiste na devida
dosagem dos humores, e a beleza, na devida proporção
dos membros, também a verdade consiste na devida
medida do intelecto, ou da palavra, para a coisa” (Tre-
chos da Summa Contra os gentios).
Portanto, o medieval reconhecia uma intrínseca rela-
ção entre o bem, a verdade e a beleza. Devido a essa in-
terpretação do cosmos, todo o grau de piedade que era
devido a Deus se transformaria num estilo de vida que
deveria desembocar no cuidado com o próximo e com
tudo o que estaria ao seu redor, pois como nos diz São
João “aquele que ama a Deus mas odeia seu irmão é um
mentiroso!” (I Jo 4,20). São Luís, ao receber as relíquias
de Nosso Senhor Jesus Cristo e perceber a vulnerabili-
dade delas decidiu criar a famosa catedral de Sainte-
-Chapelle, no trecho abaixo vemos um pouco sobre
essa belíssima Igreja:

"No exterior, parece uma miniatura de uma catedral


gótica convencional do século XIII. Surpreende, entre-
tanto, no interior: cada canto é minuciosamente deco-
rado, não existe sequer uma aresta que não foi pinta-
da ou esculpida. Ela é dividida em duas capelas: uma
inferior e uma superior.
“A capela Baixa lembra uma cripta, mas impressiona
a delicadeza de sua decoração, tão elegante quanto
impressionante. No seu portal de entrada, existe uma
lindíssima imagem de Nossa Senhora com o menino
Jesus talhada no pórtico; o teto abobado é colorido de
azul com milhares de flores-de-lis e desce em arco,
através de pilastras douradas no topo e coloridas de
vermelha na base. A superfície vermelha é coberta por
castelos castelhanos, brasão de Branca de Castela. Ao
fim da nave, existem belos vitrais e uma estátua, pos-
teriormente colocada, do próprio São Luís.
“O que mais surpreende na Sainte-Chapelle, porém, é
a Capela Alta. Era privativa da família real e nela se de-
positavam as relíquias da Paixão. É mais alongada que
a inferior e pode ser acessada por duas escadas em ca-
racol que sobem da Capela Baixa, sendo que no tempo
de São Luís havia ainda um corredor que a ligava dire-
tamente aos aposentos reais. Ela impressiona por seus
esplêndidos vitrais - talvez os mais belos do mundo -,
pela belíssima rosácea que coroa sua entrada e pelos
belos lustres que descem do teto abobadado.
“O altar ostenta um baldaquino de ouro no qual eram
guardadas as relíquias e a nave abriga estátuas dos
doze apóstolos. É considerada obra-prima do gótico
em razão da sua estrutura arquitetônica: as paredes da
Capela Alta são essencialmente de vidro, mal havendo
estruturas de pedra ligando a nave ao topo. Para sus-
tentar o teto os arquitetos conceberam discretos arco-
botantes exteriores que mal podem ser percebidos
mesmo por quem a contempla de fora. E quem a
admira por dentro tem a impressão de que o teto azul
repleto de flores-de-lis, como um céu estrelado flutua,
sobre os vitrais.
“Na Capela Alta havia um relicário encomendado pelo
rei, ornamentado de ouro, prata e pedras preciosas
que guardava as relíquias sagradas. Para guardá-lo,
São Luís nomeou um grupo de cônegos responsáveis
pela Sainte-Chapelle para que estes rezassem contínua
e perpetuamente o Ofício Divino ante as relíquias e
obteve permissão canônica para celebrar três solenida-
des anuais em honra dos sagrados objetos da Paixão."
LANCASTER, Lucas; São Luís: o rei da coroa de espi-
nhos; página 42
Para o homem da idade média, portanto, criar uma ca-
tedral bonita não era uma busca por glória própria, mas
era um ato de louvor e adoração a Deus, a beleza das
catedrais europeias que muita gente diz que é algo “eli-
tista” ou que deveria ser “vendido” era motivada apenas
por uma forma de dar a Deus aquilo que é mais digno,
o fato de nós olharmos esses belos projetos e não nos
inspirarmos mas pensarmos inicialmente em questões
meramente materiais apenas é um sinal que nós não
possuímos uma fé tão viva capaz de enxergar nas entre-
linhas de um prédio um ato de louvor ou adoração a
Deus, nós apenas enxergamos pedras mas perdemos a
capacidade de ouvi-las falar.
Uma outra objeção que fazem a esse tipo de projeto é
quanto ao uso de imagens. Por trás do zelo pastoral dos
protestantes há apenas o sintoma descrito anteriormen-
te mas disfarçado por uma doutrina humana, eles afir-
mam que a Igreja se desviou ao utilizar imagens, en-
quanto, nesse trecho do século IV de São João Damasce-
no ele já faz uma amostra da doutrina de sempre contra
um grupo de hereges chamado Iconoclastas. "Creio em
um só Deus, a fonte de todas as coisas, sem começo, in-
criado, imortal, eterno, incompreensível, incorpóreo, in-
visível, incircunscrito, sem forma. Eu acredito em um
ser supersubstancial, uma única divindade em três enti-
dades: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e apenas a Ele
adoro com o culto de latria. Eu adoro um Deus, uma Di-
vindade, mas três pessoas, Deus Pai, Deus Filho que se
fez carne, e Deus Espírito Santo, um só Deus. Eu não
venero a criação mais do que o Criador, mas eu venero
a criatura criada como eu sou, adotando esta criação
livre e espontaneamente para que pudesse elevar nossa
natureza e fazer-nos participantes de Sua natureza
divina. Juntamente com o meu Senhor e Rei eu o adoro
revestido de carne e osso, não como se fosse uma peça
de roupa ou Ele como constituindo uma quarta pessoa
da Trindade -Deus me livre disso. Essa carne é divina, e
perdura após a sua ascensão. A natureza humana não
se perdeu na Divindade, mas assim como o Verbo feito
carne permaneceu o Verbo, então a carne tornou-se o
Verbo permanecendo carne, tornando-se assim uma
com o Verbo através da união (καθ υποστασιν). Por isso
atrevo-me a desenhar uma imagem do Deus invisível,
não como invisível, mas como tendo se tornado visível
a nós através de carne e osso. Eu não desenho uma
imagem da divindade imortal. Eu pinto a carne visível
de Deus, pois é impossível representar um espírito,
quanto mais Deus, que dá fôlego para o espírito." (Apo-
logia contra os que condenam imagens sacras, São João
Damasceno).
Os iconoclastas eram um grupo oriundo do gnosticis-
mo, cuja visão de mundo possibilitava a criação de um
dualismo cósmico, onde existiria o bem e o mal, o bem
estaria demonstrado por tudo aquilo que era espiritual
e o mal estaria demonstrado em tudo aquilo que era
material. O objetivo deles era estabelecer uma revolta
contra os ícones cristãos, pois estes seriam uma grande
ofensa a Deus, afinal o objetivo dos ícones é transfor-
mar aquilo que há de espiritual numa contemplação por
meio de elementos materiais, quando olhamos para a
Pietá de Michelangelo não vemos apenas uma mãe se-
gurando um filho morto, mas vemos a encarnação da
própria piedade numa escultura de pedra. Os protestan-
tes adotaram essa mesma visão, Lutero com a Sola Fidei
criou um dualismo entre razão e fé e esta que era uma
forma de transformação e seiva para a razão humana
acabou ficando sozinha dando brecha para que os
homens destruíssem tudo aquilo que havia sido cons-
truído: o bem, a verdade e o belo. Somente com uma
tradição sólida podemos nos conectar com esse ideal e
buscar reconstruí-lo em nossas Igrejas e a expressão
máxima dessa tradição foi gestada na Didaqué, o cate-
cismo dos doze apóstolos.
A Didaqué é um dos primeiros escritos cristãos, for-
mulados pelas primeiras comunidades cristãs e é aludi-
do na Bíblia em Atos 2, 42. É citado por diversos escrito-
res como Eusébio de Cesaréia na sua história eclesiásti-
ca. É a principal fonte que os católicos tem para com-
preender diversos temas de fundamental importância,
além de fonte doutrinal é também uma fonte histórica
pois nos mostra práticas dos cristãos primitivos.
Veja o que nos diz sobre a missa: "Reunidos no Dia do
Senhor (=domingo), parti o pão e dai graças, depois de
confessardes vossos pecados, a fim de que vosso sacri-
fício seja puro. Quem tiver divergência com seu compa-
nheiro não deve juntar-se a nós antes de se reconciliar,
para que não seja profanado vosso sacrifício, conforme
disse o Senhor; 'Que em todo lugar e tempo me seja
oferecido um sacrifício puro, pois sou um rei poderoso
- diz o Senhor - e meu nome é admirável entre as
nações" (14,1). (Didaqué)
Além da Didaqué outra grande fonte histórica são os
escritos dos Pais da Igreja. Os pais da Igreja são atribuí-
dos na teologia a escritores que teriam aprendido dire-
tamente dos apóstolos ou de discípulos que aprende-
ram diretamente deles, em sua grande maioria estes
homens viveram no século I ou século II, portanto, pos-
suem valor histórico altíssimo para que possamos com-
preender as bases de nossa civilização. Dentre elas, po-
demos ver algumas citações abaixo:

“Enfim, também rezamos pelos santos padres,


bispos, defuntos e por todos em geral que entre nós
viveram, crendo que este será o maior auxílio para
aquelas almas por quem se reza, enquanto jaz diante
de nós a santa e tremenda vítima" (Catequeses Mista-
gógicas 5,9,10). Cirilo de Alexandria, 444 d.C.

“O altar representa o Corpo [de Cristo] e o Corpo de


Cristo está sobre o altar” (Dos Sacramentos 4,7). Santo
Ambrósio, 397 d.C.

"Católica ou universal chama-se a Igreja porque se es-


palhou de um extremo a outro de todo o orbe da terra;
porque ensina universalmente e sem falha todos os ar-
tigos de fé que os homens precisam conhecer, seja
sobre as coisas visíveis ou as invisíveis, seja as celes-
tes ou as terrestres; porque reúne no verdadeiro culto
o gênero humano inteiro, autoridades e súditos,
doutos e ignorantes; enfim, porque cura e sana em
todo o universo qualquer espécie de pecado cometido
pela alma e pelo corpo; porque ela possui tudo, toda a
virtude, seja qual for o nome que se lhe dê, nas ações
e nas palavras, bem como toda a variedade dos dons
espirituais (...) Igreja 'católica' é o nome desta santa
Mãe de todos nós". "Se algum dia peregrinares pelas
cidades, não indagues simplesmente onde está a Casa
do Senhor porque também as seitas (...) e heresias
querem dar o título de 'Casas do Senhor' às suas espe-
luncas. Nem perguntes simplesmente onde está a
Igreja, mas onde está a Igreja Católica; este é o título
próprio desta Santa Mãe de todos nós, que também é a
esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo" (Cirilo de Jerusa-
lém, Da Instrução aos Catecúmenos 18,26)
"Com efeito, é à própria Igreja que foi confiado o
Dom de Deus. É nela que foi depositada a comunhão
com Cristo, isto é, o Espírito Santo, penhor da incor-
ruptibilidade, confirmação da nossa fé e medida da
nossa ascensão para Deus. Pois lá onde está a Igreja,
ali também está o Espírito de Deus; e lá onde está o
Espírito de Deus, ali está a Igreja e toda graça" (Irineu
de Lião, Contra as Heresias 3,24,1).
Com estes trechos podemos ver que a missa e liturgia
eram pontos fundamentais para a vivência inicial do
cristianismo, entrar na liturgia é entrar “no tempo santi-
ficado pelo Deus encarnado” (Mircea Eliade, O sagrado
e o profano, pág. 40), por meio dela que pode-se desen-
volver e construir todo o resto do edifício espiritual do
cristianismo e era comum aos medievais ter uma certe-
za plena de algumas verdades que dariam Luz e orienta-
ção para suas vidas. Óbvio que enxergar a realidade por
meio de dogmas não era a essência da fé cristã, o obje-
tivo era permitir que meia dúzia de verdades fossem de-
finidores da cultura e do modo de vida de cada uma das
pessoas, a pessoa enxergava na sagrada família um
modelo real para viver a sua vida em família. Como a
nossa era menospreza qualquer zelo litúrgico, inaugu-
rando o sincretismo e o indiferentismo religioso, perde-
mos qualquer sentido religioso de orientação para a
vida substituindo-os pelos dogmas da ciência como a
“igualdade de gênero”, “ideologia de gênero”, etc. O
dogma medieval era uma amarra necessária para criar a
liberdade humana, a Igreja sempre soube que o destino
da natureza humana é utilizar a sua liberdade para se
acorrentar; o pecado original deturpa a vontade fazen-
do a inteligência enxergar na sua escravidão a causa
máxima da sua liberdade, portanto, somente a revela-
ção divina orientada pelos seus escolhidos.
Chesterton, o apóstolo do senso Comum, consegue
traduzir em palavras mais belas que as minhas o senti-
do do dogma para a era medieval:
“Algumas pessoas não gostam da palavra ‘dogma’.
Felizmente, elas são livres e têm uma alternativa. Para
a mente humana, há somente duas coisas: dogma e
preconceito. A Idade Média foi uma época racional,
uma era de doutrina. Nossa era é, na melhor das hipó-
teses, uma época poética, uma era de preconceito.
Uma doutrina é um ponto definido; um preconceito é
uma direção. Um boi pode ser comido, mas um
homem não deve sê-lo: isso é uma doutrina. Comer o
mínimo possível do que quer que seja: isso é um pre-
conceito, que às vezes recebe o nome de “ideal”. Ora,
uma direção é sempre muito mais fantástica do que
um plano. Preferiria ter o mais arcaico mapa da estra-
da de Brighton a ter uma recomendação genérica para
virar à esquerda. Duas linhas retas, quando não parale-
las, hão de encontrar-se ao final. Mas duas curvas
podem retorcer-se eternamente sem se tocarem. Um
par de namorados pode caminhar ao longo da frontei-
ra entre a França e a Alemanha, um de um lado, outro
de outro, até que lhes digam, de maneira não vaga,
para se afastarem um do outro. Essa é uma parábola
muito verdadeira sobre a capacidade que tem nossa
moderna vagueza de desorientar e separar os homens
como numa cerração. Não só um credo une homens,
como também uma diferença de credo pode uni-los,
contanto que seja uma diferença clara. As fronteiras
unem. Muitos muçulmanos magnânimos e muitos
nobres cruzados estiveram bem mais próximos uns
dos outros – pois eram ambos dogmatistas – do que
quaisquer dois agnósticos sem lar lado a lado num
banco da capela do sr. Campbell. ‘Digo que Deus é
Uno’ e ‘digo que Deus é Uno, mas também Trino’ é
apenas o começo de uma bela amizade contenciosa e
varonil. Mas nossa época está prestes a transformar
esses credos em tendências. Dirá ao trinitário que con-
tinue adepto da multiplicidade, pois isso faz parte de
seu ‘temperamento’; mais tarde, ele aparecerá com
uma trindade de trezentas e trinta e três pessoas. En-
quanto isso, o muçulmano converter-se-á num monis-
ta, caindo numa tremenda decadência intelectual:
aquele indivíduo anteriormente saudável será forçado
não só a admitir que há um só Deus, mas também que
não há nada além dele." -G.K Chesterton, "O que há de
errado com o mundo
Concluímos que o dogma foi a base fundamental para
criar a ordem na sociedade cristã, bem como em qual-
quer sociedade da época, se hoje vivemos num mundo
de confusão é justamente pela ausência de certezas
para a vida, pois até mesmo as certezas que adotamos
são contraditórias entre si. Não veremos alguém defen-
dendo “vidas negras” ou “vidas femininas” no instante
seguinte veremos pessoas defendo aborto, cujas víti-
mas em sua grande maioria são negros (no caso dos
EUA) e mulheres (no caso da China). Sabendo disso,
iremos ao próximo capítulo conhecendo um pouco da
vida de homens que viveram suas vidas conforme essas
certezas cristãs.

2. Maria e os santos
“Queres saber a verdadeira interpretação da Bíblia?
Estude a vida dos Santos” SJPII
Cedo ou tarde em nossa caminhada na Fé paramos e
nos perguntamos. Seja por um complexo de inferiorida-
de protestante ou por uma dúvida sincera. Por que de-
vemos estudar a vida dos santos? A começar temos a
nossa própria vida. Nela não temos a noção e a idéia de
linearidade (um Início, um meio e um fim). Não temos
um início porque pouco nos lembramos da nossa Infân-
cia, nem de como fomos gerados. Não temos um meio
porque somos desfragmentados: num dia somos como
São Francisco e em outro somos como um stálin. Não
temos um fim porque ainda estamos vivos e a trama da
nossa vida só acaba na nossa morte. Porém, queremos
ser santos. Desejamos alcançar esse grande ideal da hu-
manidade e imitarmos a Jesus cada vez melhor. Mas
como? Se nossos atos perdem a referência justamente
por não conseguirmos ter um bom ideal comparativo?
De início meio e fim? Aí vem a vida dos santos.
O santo é aquele sujeito que conseguiu integrar
nessa confusão não linear da vida a integridade da per-
sonalidade de Jesus nos evangelhos. Nesse sentido São
João Paulo II diz: Quer saber a verdadeira interpretação
da Bíblia? Veja a vida dos santos! É com a vida deles
que conseguimos enxergar um início, um meio e um
fim para toda a trama cristã numa alma devota. Mas há
ainda um certo problema: os períodos históricos que
os santos se inserem são diferentes dos nossos e o de
Jesus mais ainda. E como em cada época as heresias
mudam, os estilos e os pecados tendem a ser outros,
faz-se necessário que cada época possua seu santo. "O
santo é um remédio porque ele é um antídoto. De fato,
é por isso que o santo frequentemente é um mártir;
ele é confundido com um veneno porque ele é um antí-
doto. Em geral, ele será encontrado restaurando a sa-
nidade do mundo ao exagerar o que o mundo negli-
gencia, o que não é, de forma alguma, a mesma coisa
em cada era. Porém, cada geração busca seu santo por
instinto; e ele não é o que as pessoas querem, mas o
que as pessoas precisam" - G.K. Chesterton - 'Santo
Tomás de Aquino'.
Aí vem a segunda importância que é captar na vida de
cada um deles o princípio inicial e guardar cada situa-
ção vivida por eles: quanto mais, melhor. Ver um santo
casado me dará a idéia de ser um bom esposo, um inte-
lectual, a medida de ser um bom estudioso/mestre;
uma esposa, uma boa mãe, uma boa religiosa. Um
santo orando, ensina-me a olhar para a oração dele e a
minha e perceber o quanto eu posso ainda mudar na
minha vida com Deus. Em resumo: eles são modelos
que nos ajudam a inserir Deus em nossa vida e dar a
todos nós uma medida real e proporcional daquilo que
realmente vale para a vida humana e de como devo me
apresentar diante de Deus em cada situação da vida.
Um santo é uma personalidade que integrou na sua
consciência a vida de Cristo de forma perfeita, trocando
em miúdos é como diz São Paulo “Vivo, mas não eu! É
Cristo que vive em mim” Gl 2, 20; se assim é formado o
santo, portanto, o que podemos pensar de Nossa Se-
nhora? A mãe do próprio Cristo que o gerou não espiri-
tualmente mas na própria carne e no sangue? Óbvio que
a mãe de Deus possui um patamar superior a todos os
demais santos e a nossa honra com ela deverá ser
maior.
Para compreendermos melhor a visão da Virgem San-
tíssima precisamos compreender os seus 4 dogmas:
Theotokos (mãe de Deus), virgindade perpétua, imacu-
lada conceição e assunção de Nossa Senhora.

Theotokos

Por razão da reforma protestante, uma mentira histó-


rica que surgiu no meio cristão é a de que os dogmas
marianos foram criações da Igreja Católica, oriundo de
uma grande paganização da fé cristã. Inicialmente, essa
visão é errada pois ela critica o argumento de forma
errada, aliás, ela nem mesmo compreendeu o argumen-
to que visa discutir. Na fé católica, Maria não se consti-
tui como uma deusa, não há nada que corrobore tal ab-
surdo, tal fé possui na sua base a trindade cujo Deus
possui unidade em três pessoas, há inúmeros santos e
até doutores da Igreja que corroboram essa afirmação,
como por exemplo Santo Agostinho de Hipona que
possui um livro para explicar a trindade e esta obra é in-
cluída no cânone da fé por meio da patrística cuja im-
portância está em pé de igualdade com as escrituras e
o magistério.
A posição católica é clara ao definirmos o dogma da
Theotokos, palavra em grego que significa: Mãe de
Deus, também sendo utilizado o latim Deípara ou seja,
aquela que pariu, deu à luz a Deus. Na época dos pri-
meiros séculos cristãos surgiu uma heresia criada pelo
heresiarca Nestoriano que visava negar a divindade de
Cristo afirmando que Maria não havia gerado o filho de
Deus mas apenas um homem com inspiração divina. O
nestorianismo consistia em afirmar que em Jesus have-
riam duas pessoas: uma humana e outra divina e, por-
tanto, Maria teria apenas gerado a pessoa humana e
não a divina. Para um leigo, tal argumento parece fazer
sentido, entretanto, uma palavra com sentido mais pro-
fundo nos faz esclarecer este problema: PESSOA. Uma
pessoa é composta de uma natureza própria que a faz
agir conforme ela, portanto, haveria uma dissociação da
segunda Pessoa divina da trindade com o próprio Jesus
o que ocasionaria na invalidação de qualquer efeito es-
piritual advindo de suas atitudes concernentes a sua
humanidade: tudo que Jesus fizesse relacionado a sua
vida humana não teria valor nenhum diante da pessoa
do Pai, pois seriam meros atos humanos desprovidos
de qualquer valor divino, consequentemente, todo o so-
frimento de Cristo na cruz não teria valor algum, pois
seria o sofrimento de um homem comum e não do pró-
prio Deus em resgate do gênero humano.
Vemos na escritura justamente o oposto, por exem-
plo: quando Cristo ressuscita não é a mera pessoa
divina que aparece enquanto há um corpo humano num
sepulcro, mas pelo contrário: O próprio Jesus aparece
em carne e osso sendo tocado por São Tomé nas suas
chagas. A solução foi compreender que em Jesus encar-
nado haveria apenas uma pessoa, a segunda pessoa
divina da trindade, mas nessa mesma pessoa encarnada
no seio da virgem existiriam duas naturezas: uma
humana e uma divina, onde essas naturezas se manifes-
tam em alguns episódios de forma mais plena mas sem
se opor ou abandonar a pessoa do Cristo. Exemplo:
Quando ocorre a transfiguração no monte Tabor ali
vemos a natureza divina do Cristo se manifestar na sua
pessoa, entretanto, o próprio Jesus não deixa abandona
a sua natureza humana, mas antes continua possuindo-
-a, da mesma forma durante a paixão vemos a natureza
humana da forma mais crua entretanto, a natureza
divina ali ainda está presente.
Um resumo de todo esse parágrafo temos no catecis-
mo:
466. A heresia nestoriana via em Cristo uma pessoa
humana unida à pessoa divina do Filho de Deus. Perante
esta heresia, São Cirilo de Alexandria e o terceiro Conci-
lio ecuménico, reunido em Éfeso em 431, confessaram
que «o Verbo, unindo na sua pessoa uma carne anima-
da por uma alma racional, Se fez homem». A humanida-
de de Cristo não tem outro sujeito senão a pessoa
divina do Filho de Deus, que a assumiu e a fez sua
desde que foi concebida. Por isso, o Concílio de Éfeso
proclamou, em 431, que Maria se tornou, com toda a
verdade. Mãe de Deus, por ter concebido humanamente
o Filho de Deus em seu seio: «Mãe de Deus, não porque
o Verbo de Deus dela tenha recebido a natureza divina,
mas porque dela recebeu o corpo sagrado, dotado
duma alma racional, unido ao qual, na sua pessoa, se
diz que o Verbo nasceu segundo a carne»

Além disso, a Tradição da Igreja na Patrística nos des-


creve diversas vezes como os primeiros cristãos acredi-
tavam na maternidade divina de Maria, na pessoa do
Santo Bispo Irineu de Lyon (130 d.C. – 202 d.C.) vemos
no seu “Contra as heresias” a seguinte citação:

“Assim como Eva, seduzida pela palavra do maligno,


para que se afastasse de Deus, pecou contra a palavra
d’Este, assim Maria, evangelizada pela palavra, mere-
ceu trazer a Deus. E se aquela desobedeceu a Deus,
esta foi obediente a Ele, para que a Virgem Maria se
tornasse advogada de Eva.” (ADVERSUS HAERESES L. 5,
cap. 19).

Sendo assim, para a fé católica Jesus é a segunda


Pessoa da Santíssima Trindade, onde Maria gerou a na-
tureza humana e o Espírito Santo a natureza divina,
porém, a Pessoa é composta pela união indissolúvel e
imiscível dessas duas naturezas tornando assim Maria
Mãe de Deus.

Virgindade de Maria
A concepção da virgindade de Maria está inscrita na
própria escritura quando o profeta Isaías já anunciava
essa verdade de que o Messias nasceria por meio de
uma virgem “Portanto o mesmo Senhor vos dará um
sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho,
e chamará o seu nome Emanuel.” Isaías 7,14; isso é
aceitável por muitos protestantes e até pessoas que não
são cristãs mas possuem um bom coração, entretanto,
a Igreja afirma que Maria é sempre virgem, ou seja,
mesmo após o parto ela se manteve íntegra na sua vir-
gindade. Muitos pensam que tal afirmação e sustenta-
ção dogmática é besteira, que não haveria nenhum pro-
blema em assumir que após Jesus ela teve outros filhos,
pois a escritura trata que Jesus possuía irmãos e
também tido como “primogênito como dentre muitos
irmãos” (Mt 13,55/Rm 8,29).
Entretanto, ao observarmos tudo o que foi designado
para o redentor podemos ver que este foi especial, in-
digno de ser usado por qualquer um. O burrinho que
Ele entra em Jerusalém ( Mt 21, 2), o perfume que O
ungiu (Mt 26,7) ou o sepulcro em que foi sepultado (Mt
27,60), todos foram objetos oferecidos ao Cristo sendo
novos, não utilizados por ninguém e cuja finalidade era
única: servir ao Cristo. Portanto, a virgindade de Maria
sendo perpetua é sinal da Virgem que possuía a fé dire-
cionada unicamente ao Cristo, para O servir. Novamen-
te, recorro a uma citação de Santo Irineu para atestar
que desde as primícias do cristianismo essa verdade era
algo digno de fé:
“Consequentemente a este plano, Maria Virgem nos
aparece obediente, ao dizer: Eis a escrava do Senhor,
faça-se em mim segundo a tua palavra. Eva, porém, foi
desobediente, embora ainda fosse virgem. Do mesmo
modo que Eva, tendo Adão por esposo, desobedeceu e
tornou-se causa de morte para si e para todo o gênero
humano, assim também Maria, tendo um varão predes-
tinado e, contudo, permanecendo virgem, obedeceu e
tornou-se para todo o mundo causa de salvação.” (EN-
CHIRIDION PATRISTICUM, N° 224).
Além disso, Maria possuindo outros filhos carnais tira-
ria todo o protagonismo de Jesus, tornando-o um
homem comum onde sua linhagem é perpetuada de
forma sanguínea e não pela fé que possuímos nEle,
aliás, é este o sentido de Jesus ser primogênito entre
muitos irmãos: Maria é o molde pelo qual os homens de
carne e osso podem receber a Natureza divina assim
como Cristo. O catecismo nos esclarece, ao final, o
motivo de Maria receber o status de Mãe e também de
virgem:
507. Maria é, ao mesmo tempo, virgem e mãe, porque
é a figura e a mais perfeita realização da Igreja: «Por sua
vez, a Igreja, que contempla a sua santidade misteriosa
e imita a sua caridade, cumprindo fielmente a vontade
do Pai, torna-se também, ela própria, mãe, pela fiel re-
cepção da Palavra de Deus: efectivamente, pela prega-
ção e pelo Baptismo, gera, para uma vida nova e imor-
tal, os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e
nascidos de Deus. E também ela é virgem, pois guarda
fidelidade total e pura ao seu esposo».

Imaculada conceição

O dogma da imaculada conceição consiste em afirmar


que Maria foi concebida livre do pecado. Tal afirmação
surgiu após algumas reflexões que considerasse o se-
guinte fato: As escrituras atestam que é impossível o
puro sair do impuro (Jo 14, 4) como então podemos ex-
plicar que Jesus era Deus e impuro se Maria poderia ser
impura? Os pais de Maria, Santa Ana e São Joaquim,
eram homens comuns, possuíam a mancha do pecado
original e transmitiria essa mancha do pecado para sua
filha. Maria, gerou a carne de Cristo, poderia uma carne
pecadora conviver com a natureza divina? Tal dogma foi
fruto de debates longínquos na Idade Média, ocasionan-
do inclusive que muitos bons santos negassem a possi-
bilidade disso ocorre. A dificuldade em compreender
era por conta da aplicação da graça, pois se Maria fosse
imaculada aquela graça teria de ser aplicada antes do
Sacrifício de Cristo, entretanto, a Igreja compreendeu
que: Se Cristo é Deus Ele e Sua graça não estão sujeitas
ao tempo humano, mas a eternidade, podendo ser apli-
cadas quando bem entendesse em previsão dos sacrifí-
cios de Cristo. Abaixo veja o trecho da Bula que procla-
mou a imaculada conceição e dá a explicação de forma
mais clara:
Bula Inefabilus Dei
1.Deus inefável, "cuja conduta toda é bondade e fideli-
dade", cuja vontade é onipotente, e cuja sabedoria "se
estende com poder de um extremo ao outro (do
mundo), e tudo governa com bondade", tendo previsto
desde toda a eternidade a triste ruína de todo o gênero
humano que derivaria do pecado de Adão, com desíg-
nio oculto aos séculos, decretou realizar a obra primiti-
va da sua bondade com um mistério ainda mais profun-
do, mediante a Encarnação do Verbo. Porque, induzido
ao pecado — contra o propósito da divina misericórdia
— pela astúcia e pela malícia do demônio, o homem não
devia mais perecer; antes, a queda da natureza do pri-
meiro Adão devia ser reparada com melhor fortuna no
segundo.
2. Assim Deus, desde o princípio e antes dos séculos,
escolheu e pré-ordenou para seu Filho uma Mãe, na
qual Ele se encarnaria, e da qual, depois, na feliz pleni-
tude dos tempos, nasceria; e, de preferência a qualquer
outra criatura, fê-la alvo de tanto amor, a ponto de se
comprazer nela com singularíssima benevolência. Por
isto cumulou-a admiravelmente, mais do que todos os
Anjos e a todos os Santos, da abundância de todos os
dons celestes, tirados do tesouro da sua Divindade.
Assim, sempre absolutamente livre de toda mancha de
pecado, toda bela e perfeita, ela possui uma tal plenitu-
de de inocência e de santidade, que, depois da de Deus,
não se pode conceber outra maior, e cuja profundeza,
afora de Deus, nenhuma mente pode chegar a compre-
ender.
3. E, certamente, era de todo conveniente que esta
Mãe tão venerável brilhasse sempre adornada dos ful-
gores da santidade mais perfeita, e, imune inteiramente
da mancha do pecado original, alcançasse o mais belo
triunfo sobre a antiga serpente; porquanto a ela Deus
Pai dispusera dar seu Filho Unigênito — gerado do seu
seio, igual a si mesmo e amado como a si mesmo — de
modo tal que Ele fosse, por natureza, Filho único e
comum de Deus Pai e da Virgem; porquanto o próprio
Filho estabelecera torná-la sua Mãe de modo substan-
cial; porquanto o Espírito Santo quisera e fizera de
modo que dela fosse concebido e nascesse Aquele de
quem Ele mesmo procede.
Ainda assim, por mais que o dogma só fosse confirma-
do na idade moderna, desde os primeiros séculos já
havia essa certeza da imaculada conceição em vários
corações cristãos, um exemplo bem contundente é o de
Orígenes no seu comentário ao evangelho de São
Mateus, diz:
“Esta virgem Maria é chamada mãe do Filho único de
Deus. Digna mãe de um digno Filho; mãe imaculada de
um Filho santo e imaculado; mãe única de um Filho
único. Tomai a Maria como um trono celeste que se
vos dá a guardar, diz o anjo a José, como todas as ri-
quezas da divindade, como a plenitude da santidade,
como uma justiça perfeita. Tomai-a e guardai-a, como
residência do Filho único de Deus, como seu templo
honorável, como o dom de Deus, como a morada ima-
culada do rea1 e celeste esposo.” (Apud. A. Nicolas –
LA VIERGE MARIE ET LE PLAN DIVIN, tomo 4° págs.103-
-104).
Portanto, podemos ver que a imaculada conceição não
foi uma novidade mas sempre foi uma reverência que
os cristãos prestaram a mulher que dedicou unicamente
sua vida a trazer a salvação deles ao mundo. Como
curiosidade, trarei esse trecho da legenda áurea sobre a
concepção da virgem Maria:
"Na festa da Dedicação, Joaquim foi com outros de
sua tribo até Jerusalém e ao chegar ao altar quis ofere-
cer sua oblação junto com os demais. Vendo isso cheio
de indignação, o sacerdote agarrou-o, afastou-o e re-
preendeu sua presunção de se aproximar do altar,
porque não era conveniente, sob pena de maldição da
lei, que oferecesse oblações ao Senhor quem não tives-
se feito crescer o povo de Deus, quem era infecundo
entre os fecundos. Confuso e envergonhado, Joaquim
não quis voltar para casa a fim de não ouvir ofensas.
Ele afastou-se, foi para junto de seus pastores e ficou
com eles por algum tempo, até que um dia, estando
sozinho, um anjo apareceu com tão forte luminosidade
que deixou sua visão turva. O anjo avisou para não ter
medo, dizendo:
Eu sou o anjo do Senhor enviado para anunciar que
suas preces foram ouvidas e que suas esmolas subi-
ram até o Senhor. Vi a sua vergonha e o opróbrio de
esterilidade que foi injustamente imputado a você.
Deus vinga o pecado mas não a natureza, por isso se
Ele fecha um útero o faz para abri-lo novamente de
maneira maravilhosa, para que se saiba que o nascido
não é produto libidinoso, mas presente divino. Não é
verdade que Sara, a primeira mãe de seu povo, supor-
tou a injúria da esterilidade até os noventa anos de
idade e ainda assim gerou Isaac, ao qual foi prometida
a bênção de todas as nações? Não é verdade que
Raquel foi estéril por muito tempo, e contudo gerou
José, que teve domínio sobre todo o Egito? Há alguém
mais forte do que Sansão ou mais santo do que
Samuel? Todavia ambos nasceram de mães estéreis.
Creia em minhas considerações e exemplos. As con-
cepções adiadas por muito tempo e os partos de quem
parecia estéril são os mais admiráveis. Também sua
esposa Ana parirá uma filha e você lhe dará o nome de
Maria. De acordo com a promessa que fizeram, ela
será consagrada ao Senhor desde a infância. Desde o
útero de sua mãe será cheia do Espírito Santo. A fim
de que não haja qualquer suspeita que lhe seja desfa-
vorável, não terá contato com o mundo, ficará sempre
morando no templo do Senhor. Ela própria, nascida de
mãe estéril, gerará maravilhosamente um filho altíssi-
mo, cujo nome será Jesus e por meio do qual todos os
povos serão salvos. Dou a você uma prova: quando
chegar à porta dourada de Jerusalém, sua esposa Ana
virá ao seu encontro, e de inquieta com sua demora
ela passará a demonstrar alegria! Dito isso, o anjo reti-
rou-se. Ana chorava amargamente por ignorar aonde
seu marido tinha ido, quando o mesmo anjo lhe apare-
ceu e anunciou a mesma coisa, acrescentando como
prova que fosse à porta dourada de Jerusalém onde
encontraria o marido indo em sua direção. Logo, se-
guindo o preceito do anjo, um foi ao encontro do
outro, felizes com a visão mútua e certos da prole pro-
metida. Voltaram para casa, depois de adorar o
Senhor, esperando alegremente a promessa divina.
Então Ana concebeu e deu à luz uma filha, à qual
chamou Maria. Completados os três anos de amamen-
tação, levaram a Virgem com oferendas ao templo do
Senhor. O templo fora construído em um monte, com
o altar do holocausto sendo externo e só podendo ser
atingido depois de se subir quinze degraus, correspon-
dentes aos quinze salmos graduais. Quando a jovenís-
sima Virgem foi colocada junto com os outros, subiu
sem a ajuda de ninguém, como se já fosse adulta.
Concluído o ofertório, Joaquim e Ana voltaram para
casa deixando sua filha com outras virgens no templo.
A Virgem, por seu lado, progredia cotidianamente em
todo tipo de santidade. Cotidianamente era visitada
por anjos e desfrutava de visões divinas. Jerônimo diz
em uma carta a Cromácio e Heliodoro que a beata
Virgem estabelecera para si esta regra: de matinas até
à terça, oração; da terça até à nona, trabalho manual
de tecelã; da nona até aparecer o anjo que lhe dava ali-
mento, novamente orações.” Legenda Áurea, 764-768.

Assunção da virgem Maria


O dogma da assunção da Virgem Maria é a consequên-
cia final do dogma da imaculada conceição. A escritura
nos diz que o salário do pecado é a morte (Rm 6,23),
portanto, se Maria foi imaculada, livre da mancha do
pecado original, o seu corpo não sofreria a corrupção
da morte. A bula munificentissimus Deus explica como
ocorreu o processo:
1. Deus munificentíssimo, que tudo pode, e cujos
planos de providência são cheios de sabedoria e de
amor, nos seus imperscrutáveis desígnios, entremeia
na vida os povos e dos indivíduos as dores com as ale-
grias, para que por diversos caminhos e de várias ma-
neiras tudo coopere para o bem dos que o amam (cf.
Rm 8,28). 2. o nosso pontificado, assim como os
tempos atuais, tem sido assediado por inúmeros cuida-
dos, preocupações e angústias, devido às grandes cala-
midades e por muitos que andam afastados da verdade
e da virtude. Mas é para nós de grande conforto ver
como, à medida que a fé católica se manifesta publica-
mente cada vez mais ativa, aumenta também cada dia o
amor e a devoção para com a Mãe de Deus, e quase por
toda parte isso é estímulo e auspício de uma vida
melhor e mais santa. E assim sucede que, por um lado,
a santíssima Virgem desempenha amorosamente a sua
missão de mãe para com os que foram remidos pelo
sangue de Cristo, e por outro, as inteligências e os cora-
ções dos filhos são estimulados a uma mais profunda e
diligente contemplação dos seus privilégios. 3. De fato,
Deus, que desde toda a eternidade olhou para a virgem
Maria com particular e pleníssima complacência,
quando chegou a plenitude dos tempos (Gl 4,4) atuou o
plano da sua providência de forma que refulgissem com
perfeitíssima harmonia os privilégios e prerrogativas
que lhe concedera com sua liberalidade. A Igreja
sempre reconheceu esta grande liberalidade e a perfeita
harmonia de graças, e durante o decurso dos séculos
sempre procurou estudá-la melhor. Nestes nossos
tempos refulgiu com luz mais clara o privilégio da as-
sunção corpórea da Mãe de Deus. 4. Esse privilégio bri-
lhou com novo fulgor quando o nosso predecessor de
imortal memória, Pio IX, definiu solenemente o dogma
da Imaculada Conceição. De fato esses dois dogmas
estão estreitamente conexos entre si. Cristo com a pró-
pria morte venceu a morte e o pecado, e todo aquele
que pelo batismo de novo é gerado, sobrenaturalmente,
pela graça, vence também o pecado e a morte. Porém
Deus, por lei ordinária, só concederá aos justos o pleno
efeito desta vitória sobre a morte, quando chegar o fim
dos tempos. Por esse motivo, os corpos dos justos cor-
rompem-se depois da morte, e só no último dia se jun-
tarão com a própria alma gloriosa. 5. Mas Deus quis ex-
cetuar dessa lei geral a bem-aventurada virgem Maria.
Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o
pecado com a sua concepção imaculada; e por esse
motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção
do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo
até ao fim dos tempos. 6. Quando se definiu solene-
mente que a virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune
desde a sua concepção de toda a mancha, logo os cora-
ções dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de
que em breve o supremo magistério da Igreja definiria
também o dogma da assunção corpórea da virgem
Maria ao céu.
Entretanto, o dogma da assunção também era uma
crença comum nos meios cristãos nos primeiros sécu-
los, como exemplo temos São Gregório Magno:
“Convinha que aquela que no parto manteve ilibada
virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo
depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no
seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos ta-
bernáculos. Convinha que morasse no tálamo celestial
aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que
aquela que viu o seu Filho na cruz, com o coração tras-
passado por uma espada de dor de que tinha sido
imune no parto, contemplasse assentada à direita do
Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era
do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas
como Mãe e Serva do mesmo Deus". (Sermão sobre a
Assunção de Maria, 676-749 d.C)
Um outro exemplo é o pseudo-Melito de Sardes (300
d.C):
“Se, portanto, pode vir a passar pelo poder da sua
graça, apareceu direito a nos seus servos, que, como
você, depois de vencer a morte, reinam em glória, por
isso você deve assuntar o corpo de sua mãe e levá-la
com você, regozijando-se, no céu. Então disse o Senhor
[Jesus]: ‘Seja feito segundo a tua vontade’” (A Passagem
da Virgem 16, 2-17).
Além disso, um livro apócrifo atribuído a São João
Evangelista 1 informa sobre as circunstâncias da assun-
ção da bem-aventurada Virgem Maria. Enquanto os
apóstolos percorriam as diferentes partes do mundo
para pregar, a Virgem beata permaneceu, pelo que se
diz, em uma casa perto de monte Sião. Enquanto viveu,
visitou com grande devoção todos os locais que lhe
lembravam seu filho, como os que testemunharam seu
batismo, seu jejum, sua prece, sua Paixão, seu sepulta-
mento, sua Ressurreição e sua Ascensão. Segundo Epi-
fânio, 2 a bem-aventurada Virgem tinha catorze anos
quando concebeu Cristo, quinze quando o pôs no
mundo, viveu com ele 33 anos, sobreviveu 24 anos à
morte e Ascensão de seu filho, estava com 72 quando
morreu. Contudo, o que se lê em outros lugares parece
mais provável: que ela sobreviveu doze anos a seu filho
e era sexagenária quando de sua Assunção, pois os
apóstolos levaram exatamente doze anos pregando na
Judéia e nas regiões vizinhas, segundo a HISTÓRIA
ECLESIÁSTICA. Um dia em que o coração da Virgem
estava fortemente abrasado de saudade de seu filho,
comoveu tanto seu espírito que derramou lágrimas
abundantes, e como ela não podia se consolar facilmen-
te pela perda do filho que lhe fora subtraído por algum
tempo, apareceu um anjo que cercado por intensa luz
saudou-a com reverência como a mãe do Senhor: "Salve,
bendita Maria, receba a bênção daquele que deu a sal-
vação a Jacó. Aqui está um ramo de palmeira que trouxe
do Paraíso para você, minha senhora, e que deve ser
levado diante de seu caixão, pois em três dias sairá do
corpo, já que o filho espera sua reverenda mãe". Maria
respondeu: "Se encontrei graça diante de seus olhos,
peço que se digne a revelar seu nome. Mas o que peço
ainda mais insistentemente é que meus filhos e irmãos,
os apóstolos, estejam reunidos junto de mim para que
possa vê-los com os olhos do corpo antes de morrer, e
que possa ser sepultada por eles depois que tiver entre-
gue meu espírito ao Senhor na presença deles. Há outra
coisa que desejo avidamente: que ao sair do corpo,
minha alma não veja nenhum mal espírito e que nenhu-
ma das potências de Satanás apareça nesse momento"
O anjo: Por que, senhora, deseja saber meu nome, que
é admirável e grande? Quanto aos apóstolos, virão
todos e estarão reunidos junto de você, farão magnífi-
cos funerais quando de seu passamento, que acontece-
rá na presença deles. Aquele que outrora, em um piscar
de olhos, levou pelo cabelo o profeta da Judéia até a Ba-
bilônia, certamente poderá em um instante trazer os
apóstolos para perto de você. Por que você teme ver o
espírito maligno, a quem destruiu inteiramente a
cabeça e despojou de todo o poder? Seja feita contudo
a sua vontade; você não o verá. Dito isso, o anjo subiu
aos Céus no meio de muita luz. A palma, cujo verdor
parecia o de um ramo, resplandecia de forma intensa,
com folhas brilhando como a estrela da manhã.
Além de compreendermos a vida da Virgem Maria e
como a graça agiu na sua alma afim de torna-la quem
ela é, precisamos entender que ela é um modelo de vida
cuja realização é a total oposição aos exemplos que en-
contramos na atualidade. Uma das tendências errôneas
na modernidade consiste na dissociação dos fatos ordi-
nários com os fatos que são supra ordinários. Na idade
média, qualquer acontecimento tendia a ser enxergado
sob a ótica espiritual e os homens davam a sua resposta
também nesse âmbito. Perdeu-se uma cruzada? Reze-
mos e façamos penitências pois isso é fruto de nosso
pecado.

Na idade moderna os fatos históricos são visualizados


a luz de si mesmos e de forma imediatista. Nunca há
uma associação entre os acontecimentos e a ordem
divina e assim a história perde sua razão de ser. Porém,
se olharmos toda a história moderna da Igreja com esse
olhar espiritual podemos perceber que a mensagem de
Nossa Senhora das graças dá início a um chamado di-
verso de conversão que Deus daria a seus filhos, culmi-
nando nas aparições marianas mais modernas.

Quando Santa Catarina de Laboré tem a sua visão en-


contramos uma França pós revolução, devastada moral-
mente e com uma brusca tentativa de se secularizar a
vida pública. Foi o intento dos homens para destronar
Cristo Rei e deu certo. Nossa Senhora vem nos alertar
sobre esses perigos e também nos dar o justo remédio:
Devoção a ela. Todo herege, já dizia São Bernardo,
tende a abandonar a devoção Mariana. Portanto, esta é
o termômetro da fé dos crentes e a saída para a crise es-
piritual que a Igreja se enfiaria.

Apesar dos inúmeros avisos apocalípticos que as men-


sagens marianas possuem, que tendem a tirar nossa
atenção, devemos focar no principal deles: o remédio
para toda a loucura do mundo moderno é um apego
confiado a Nossa Senhora e suas devoções, como a me-
dalha milagrosa Nossa senhora das graças surge em
meio ao pós revolução. Antes dela, Santa Margarida de
Alacoque, recebeu Jesus com o sagrado coração. Ambas
as aparições nos remetem a esse simbolismo anti revo-
lucionário: o amor humano e profundo a Deus.

Toda revolução é um ato contra Deus. Pois na cabeça


do revolucionário há um erro na ordem natural das
coisas e ele, com sua razão iluminada, é capaz de corri-
gir o universo. Seja na França ou na Rússia, todo revolu-
cionário ee julga capaz de corrigir as injustiças estrutu-
rais do mundo através do uso da máquina política. Re-
sultado? Massacre e morte. Nossa Senhora nos alertou
dos erros da Rússia e na França chorou amargamente
pelos pecados dos homens. Nossa Senhora esmaga a
cabeça da serpente e nesse simbolismo nos ensina
como vencer: A cabeça da serpente, o orgulho do revo-
lucionário, somente será debelado pelo calcanhar de
nossa senhora, a humildade dela. O inferior destrói o
superior. Dois corações humanos: O Sagrado Coração e
o Imaculado. O de um homem e o de uma mulher. Um
que é Deus que se faz homem e outro da mais perfeita
criatura. O homem e a mulher que hoje são o foco dos
revolucionários só vão conseguir viver através humilda-
de e do amor a Deus.
Santos
Nossa Senhora nos mostra o modelo pelo qual toda a
humanidade deve se espelhar: Cristo. Muitos de nós du-
rante nossas vidas buscamos firmemente essa imitação
plena, entretanto, não são todos que conseguem alcan-
çar uma imitação mais completa, restando alguns
pontos a serem melhorados, etc. A questão é que a vida
cristã consiste numa longa tentativa de gerar o Cristo
total em nossa alma, tornando-se assim semelhantes
plenos do próprio Deus encarnado tal como São Paulo
diz “Vivo, mas não eu! É Cristo que vive em mim” Gl 2,
20.
Porém, como vemos nesses versículos existem algu-
mas pessoas que conseguem completar a vida de Cristo
já aqui nesta terra, sem depender de nenhum processo
de purificação posterior. A perfeição pode ser vivencia-
da e admirada por nós enquanto ainda caminhamos
nesta longa estrada que é a nossa vida.
Essas pessoas chamamos de santos. O santo é para
nós católicos um sinal da manifestação e presença de
Deus durante toda a história da Igreja. Com sua enorme
variabilidade temos exemplos de pessoas que se santi-
ficaram das diversas formas e em diversas ocasiões. En-
tretanto, muitos protestantes se aproveitam da fé popu-
lar mais humilde e o sincretismo para confundir a
cabeça das pessoas quanto a real posição dos santos no
dogma católico.
O sincretismo é um processo de unificação de duas di-
vindades em que se mescla sua personalidade e
também o culto a ela devidas. No Brasil esse processo
foi muito comum, por ocasião da proibição de culto de
religiões de matriz africana impedindo que os escravos
trazidos da África exercessem plenamente o seu direi-
to. A solução adotada por muito deles foi o sincretismo:
Afirmar que Nossa Senhora é como Iemanjá ou São
Jorge como Ogum era uma forma de adotar o culto ab-
sorvendo a religião dominante da época. Como a forma-
ção do povo em geral sempre foi muito deficitária, tal
movimento passava despercebido pela maioria das pes-
soas impedindo assim que tal cultura fosse impedida de
se disseminar e que um acordo comum para a prática
do culto africano fosse estabelecido. Sendo assim, esse
processo foi adotado pela grande maioria da população
católica do Brasil e muitos sacerdotes não conseguiram
trazer de volta a ortodoxia dos santos para dentro do
seio da comunidade católica.
Com o advento do protestantismo surgiu a acusação
de que o culto devido aos santos era uma idolatria, pois
estaria equiparando a glória de Deus com uma glória in-
ferior prestada aos homens. Na busca por um cristianis-
mo purificado e longe da tendências pagãs ocorreu um
movimento de esquecimento da importância da vida
dos santos e esta cultura foi se afastando do catolicis-
mo brasileiro. Entretanto, diferente das acusações o
culto devido aos santos sempre foi um costume no cris-
tianismo inicial, podemos ver como exemplo a citação
de São Clemente já no século I:

“Os que suportaram com confiança, herdaram glória


e honra; foram exaltados, e Deus os inscreveu no seu
memorial pelos séculos dos séculos. Amém” (Clemente
de Roma, Carta aos Coríntios 45,8; in “Coleção Patrísti-
ca: Padres Apostólicos”. São Paulo: Paulus, 2ª ed.,
1995, p. 56).
Ou então a citação de Orígenes no século 2 (250 d.C.):
“As virtudes nesta vida são definitivamente aperfeiçoa-
das no Além. Ora, a mais valiosa de todas é a caridade;
esta, portanto, na outra vida, é ainda mais ardente do
que na vida presente. Por conseguinte, os Santos exer-
cem seu amor sobre os irmãos na terra, mediante a in-
tercessão dirigida a Deus, em favor das necessidades
destes peregrinos” (CUNHA, E. “Imagens e Santos: um
esclarecimento para o povo”. São Paulo: Ave Maria, 1ª
ed., 1993, p. 56).
Esta última citação além de mostrar que a glória que
os homens recebem de Deus na terra por sua fidelidade
é aperfeiçoada após a morte e a entrada no céu, de-
monstra que estes que estão na glória com Deus podem
interceder, rezar, exercer caridade para com os que fi-
caram aqui na terra. O culto aos santos é exatamente
isto: uma grande comunhão de amor entre os que estão
na terra e os que estão no céu. Os da terra amam por
admirar, reconhecer e louvar as qualidades atingidas
pelo santo como manifestações da glória de Deus e os
do céu intercedem e servem de modelo e orientação
para os que estão na terra.
Sendo assim, trarei abaixo um conjunto de célebres
histórias de alguns Santos para que possamos compre-
ender como Deus agiu na vida deles e refletir como po-
demos tirar lições dessas extraordinárias biografias.
Santo Arsênio
Santo Arsênio foi um dos santos precursores do movi-
mento do “padres do deserto”. Tal movimento se consti-
tuiu por um conjunto de homens e mulheres que aban-
donavam toda a vida na cidade e faziam moradas em
cavernas isoladas no meio do deserto apenas para
rezar, jejuar e meditar. Foram os pais do movimento
monástico por meio da espiritualidade ascética com o
isolamento do mundo e serviram de inspiração para
muitos homens e mulheres em suas conversões. Abaixo
eis um breve trecho da Legenda Áurea sobre a vida de
Santo Arsênio:
“Um dia uma voz disse a Arsênio: "Venha, e mostrarei
o que os homens fazem". E o conduziu a um lugar
onde um etíope cortava lenha e com ela fazia um feixe
tão pesado que não podia carregar. E cortava mais
lenha, que acrescentava à sua carga, e assim conti-
nuou durante longo tempo. A voz mostrou-lhe
também outro homem ocupado em tirar água de um
lago e colocá-la numa cisterna aberta que a deixava
voltar para o lago. Mostrou-lhe ainda um templo e dois
homens a cavalo que transportavam uma viga em posi-
ção transversal e não conseguiam por isso entrar no
templo. A voz explicou: Estas são pessoas que carre-
gam o jugo da justiça com soberba e não com humil-
dade, por isso ficam sempre fora do reino de Deus. O
homem que corta lenha é alguém cheio de pecados e
que não faz penitência, não diminui esses pecados, ao
contrário, acrescenta iniqüidades às suas iniqüidades.
Aquele que tira água é o homem que faz boas obras,
mas como elas são acompanhadas de más ações, ele
perde suas boas obras. Ao cair da tarde de todo
sábado, Arsênio estendia as mãos para o Céu e assim
ficava até que no amanhecer de domingo o sol nascen-
te iluminasse seu rosto. Assim contam as VIDAS DOS
PADRES.” Legenda Áurea, cap. Santo arsênio

São João Crisóstomo


São João Crisóstomo é considerado um dos “pais da
Igreja” que era um grupo de bispos defensores da fé
cristã no começo dos séculos, sucessores diretos dos
apóstolos ou sucessores dessa primeira geração pós
apostólica. Com suas obras e cartas ajudaram a definir
a espiritualidade cristã, a doutrina e a liturgia da Igreja
nos seus primórdios. Abaixo uma breve biografia que
desenvolvemos para que você conheça um pouco sobre
a sua vida.
Nascido em uma família nobre de Antioquia no ano de
348, era muito estudioso, tanto que após a morte de
seu pai sua mãe providenciou os melhores professores
possíveis para o jovem. Desde muito cedo São João Cri-
sóstomo apresentava uma "alma monástica", por várias
vezes passando pelo silêncio do deserto, porém voltava
para Antioquia devido a sua saúde frágil, mas mesmo
assim conseguiu ser ordenado sacerdote.

João era conhecido por seu dom de comunicar a Pala-


vra de Deus, crisóstomo significa “boca de ouro”, abra-
çando a cruz do governo pastoral da diocese de Cons-
tantinopla após inúmeros pedidos do imperador. São
João Crisóstomo era conhecido por suas pregações que
lutavam contra o luxo e a imoralidade da vida social, o
que lhe causaram problemas com a imperatriz Eudóxia
que lhe mandaria para dois exílios, sendo que o último
lhe custou a vida devido a maus tratos. No ano de 407
São João Crisóstomo adentrava aos céus deixando um
testemunho de fé e trabalho, com suas últimas palavras
ficando para sempre marcadas na história: "Glória seja
dada a Deus e tudo!".
Santo Ambrósio
Santo Ambrósio também é considerado um dos pais
da Igreja, porém de uma geração mais tardia que a de
Crisóstomo. Entretanto, junto com seu discípulo recém
convertido, Santo Agostinho, ajudou a fundamentar a
Igreja do século IV em plena queda do império romano.
Abaixo contamos um pouco da vida dele para você.
De nobre e distinta família romana, nasceu provavel-
mente em 339, em Tréviros, onde seu pai exercia o
cargo de prefeito das Gálias. A mãe ficou viúva muito
cedo e voltou a Roma com três filhos: Marcelina, que se
consagrou a Deus e tomou o véu das virgens; Sátiro,
que morreu em 378, depois de exercer altos cargos do
Estado; e Ambrósio, o último, que seguiu a carreira di-
plomática, tradicional na família. Ambrósio desde cedo
aprendeu a alimentar as virtudes cívicas e morais, ao
ponto de ter sido governador da Emília, do Lácio e de
Milão, antes de ser Bispo. Estudou Direito antes de estu-
dar Teologia.

A mãe de Ambrósio devia ser cristã praticante e gene-


rosa. O Papa Libério (352-366) impôs pessoalmente o
véu à filha dela, Marcelina, e parece que visitava a casa
da nobre senhora romana. Todos da família beijavam a
mão de Libério. Ambrósio, ainda criança, depois de se
despedir do Pontífice, tratou de imitá-lo e estendeu a
mão aos criados e à irmã, para que a beijassem. Marce-
lina recusou-a com bons modos mas ele respondia:
“Não sabes que eu também hei-de ser Bispo?” Dizia
então Ambrósio, por brincadeira, mais do que sabia. No
entanto, era para isso que a Divina Providência o desti-
nava. Ambrósio era governador de Milão. Com a morte
do Bispo de Milão, chamado Ariano, Ambrósio foi para
a eleição do novo Bispo, a fim de evitar grandes confli-
tos. Em meio à confusão, de repente uma criança grita:
“Ambrósio, Bispo!”. O Clero e o povo aderiu e todos
aclamaram: “Queremos Ambrósio Bispo!”. O povo teve
que teimar durante uma semana, até que vendo nisto a
voz de Deus, Ambrósio que ocupava alto cargo no Im-
pério Romano e somente era catecúmeno, cedeu a von-
tade do Senhor. O 1° Concílio de Niceia (325) tinha proi-
bido que subisse ao Episcopado qualquer neófito. Mas
o Papa e o Imperador aprovaram a eleição. Depois de
batizado, foi ordenado sacerdote e logo em seguida
Bispo de Milão. Tudo isso no ano de 374.
Providencialmente usou as qualidades de organizador
e administrador para o bem da Igreja, podendo assim
atuar no campo pastoral, político, doutrinal, litúrgico,
ao ponto de merecer o título de grande Doutor e Padre
do Cristianismo no Ocidente. Sua figura política ficou
marcante, principalmente quando aplicou ao Imperador
uma dura penitência pública comum, pois teria Teodó-
sio consentido uma invasão à cidade de Tessalônica,
que resultou na morte de muitos. À Imperatriz Justina,
que desejou restaurar a estátua da deusa Vitória, opôs-
-se valentemente enquanto viveu. Santo Ambrósio,
como homem de Deus, partilhou sua riqueza material e
espiritual com o povo; jejuava sempre; pai carinhoso e
tão grande orador que teve papel importante na conver-
são de Santo Agostinho. Deixou muitos escritos e
morreu com 60 anos no ano de 397, após 23 anos de
serviço ao seu amado Cristo, com estas palavras: “Não
vivi de tal modo que tenha vergonha de continuar viven-
do; mas não tenho medo de morrer, porque temos um
Senhor que é bom”.

Santa Luzia e Santa Catarina de Alexandria


Mas não somente dos grandes bispos a Santa Igreja
sobreviveu nos primeiros séculos, mas também dos tes-
temunhos das mulheres virgens e santas que deram a
sua vida para testemunhar sua fé e amor por Cristo. Um
exemplo é Santa Luzia e Santa Catarina de Alexandria,
irei deixar abaixo, em sequência a vida dessas duas
santas.
Muito confundida com Santa Catarina de Sena, Santa
Catarina de Alexandria nasceu em Alexandria, no Egito,
por volta do ano 287 d.C. Filha do rei Costus, Catarina
era dotada de grande beleza e vasta inteligência: com
apenas treze anos, já era mestra nas artes e aos 17 era
considerada a mais bela e mais sábia mulher do impé-
rio.
Com o falecimento do pai, Catarina e sua mãe se mu-
daram para as montanhas da Cilícia, onde hoje é locali-
zada a Turquia. Lá, ela conheceu o sacerdote Ananias,
que iniciou a jovem na fé cristã. Dotada de grande edu-
cação religiosa, Catarina resolve voltar para Alexandria
após receber o santo batismo. Com o seu vasto conheci-
mento, a jovem era capaz de discutir com desenvoltura
assuntos como política, filosofia e religião, o que fez
com que ganhasse grande respeito dos súditos da
corte.
Como naquele tempo a fé cristã era perseguida pelo
Império Romano, Santa Catarina de Alexandria decidiu
apresentar-se, em nome de Deus, diante do imperador
Maximiano para protestar contra a execução dos cris-
tãos. Conta-se que Maximiano se apaixonou pela jovem
e, para fazê-la abandonar sua fé e casar-se com ele, or-
denou que cinquenta filósofos tentassem convencê-la
de que Jesus Cristo não poderia ser Deus. Porém, utili-
zando seus conhecimentos teológicos e grande capaci-
dade de argumentação, Catarina fez com que os sábios
fossem iluminados pela graça e aderissem ao cristianis-
mo.
Devido à recusa de Catarina em abandonar a sua fé e
se tornar imperatriz, Maximiano resolveu se vingar e,
após ordenar a morte dos filósofos, resolveu submeter
a jovem ao cárcere e à tortura. Condenada ao martírio
da roda, armada de serras e pontas, Catarina elevou
seus olhos ao Senhor, orou e fez o sinal da cruz. A roda,
então, se desmontou antes de tocar o seu corpo. Esse
milagre fortaleceu a fé de Catarina e a do povo cristão,
o que deixou o imperador ainda mais transtornado.
Assim, Maximiano condenou a jovem à morte. Em 25 de
novembro do ano 305 Catarina foi decapitada. Segundo
a lenda, no lugar de sangue, jorrou leite de seu pesco-
ço. Por isso, a santa é considerada como protetora das
mães que amamentam.
O nome de Santa Luzia deriva do latim e significa: Por-
tadora da luz. Ela é invocada pelos fiéis como a proteto-
ra dos olhos, que são a “janela da alma”, canal de luz.
Ela nasceu em Siracusa (Itália) no fim do século III. Con-
ta-se que pertencia a uma família italiana e rica, que lhe
deu ótima formação cristã, a ponto de ter feito um voto
de viver a virgindade perpétua. Com a morte do pai,
Luzia soube que sua mãe, chamada Eutícia, a queria
casada com um jovem de distinta família, porém,
pagão.
Ao pedir um tempo para o discernimento e tendo a
mãe gravemente enferma, Santa Luzia inspiradamente
propôs à mãe que fossem em romaria ao túmulo da
mártir Santa Águeda, em Catânia, e que a cura da grave
doença seria a confirmação do “não” para o casamento.
Milagrosamente, foi o que ocorreu logo com a chegada
das romeiras e, assim, Santa Luzia voltou para Siracusa
com a certeza da vontade de Deus quanto à virgindade
e quanto aos sofrimentos pelos quais passaria, assim
como Santa Águeda.

Santa Luzia vendeu tudo, deu aos pobres, e logo foi


acusada pelo jovem que a queria como esposa. Não
querendo oferecer sacrifício aos falsos deuses nem
quebrar o seu santo voto, ela teve que enfrentar as au-
toridades perseguidoras. Quis o prefeito da cidade, Pas-
cásio, levar à desonra a virgem cristã, mas não houve
força humana que a pudesse arrastar. Firme como um
monte de granito, várias juntas de bois não foram capa-
zes de a levar (Santa Luzia é muitas vezes representada
com os sobreditos bois). As chamas do fogo também se
mostravam impotentes diante dela, até que por fim a
espada acabou com vida tão preciosa. A decapitação de
Santa Luzia se deu no ano de 303.
Conta-se que antes de sua morte teriam arrancado os
seus olhos, fato ou não, Santa Luzia é reconhecida pela
vida que levou Jesus – Luz do Mundo – até as últimas
consequências, pois assim testemunhou diante dos
acusadores: “Adoro a um só Deus verdadeiro, e a Ele
prometi amor e fidelidade”.

São Tarcísio
São Tarcísio é um menino santo. Tarcísio por volta do
ano 260. Ele é o padroeiro dos coroinhas, acólitos e ce-
rimoniários. Isso pelo fato de ele ter sido acólito (coroi-
nha), aquela pessoa que ajuda o sacerdote nas missas e
prestava seus serviços na Igreja de Roma. Com ele po-
demos aprender que desde os primórdios da fé cristã
podemos encontrar no meio de suas almas fiéis o amor
profundo e arrebatador pelo sacramento da Eucaristia.
Durante a perseguição de Valeriano, imperador de
Roma (253-260), muitos cristãos foram presos e marti-
rizados. Enquanto estavam na prisão esperando a
morte, esses cristãos desejavam receber a Santa Euca-
ristia para se fortalecerem com o Corpo de Cristo. Mas
era muito difícil entrar nas cadeias com a Santa Comu-
nhão.
O Papa Sisto II queria, mas não podia levar a Eucaristia
aos presos antes de serem mortos. Então, com apenas
12 anos de idade, Tarcísio se ofereceu para fazer este
serviço. Ele dizia estar disposto a até mesmo dar a sua
vida para que as hóstias sagradas não caíssem nas
mãos dos pagãos. Mas o papa, olhando para ele, disse:
"És jovem ainda, Tarcísio, e não sabes desempenhar
esta santa missão". Tarcísio retrucou: "Tanto melhor,
porque de mim ninguém desconfiará, podendo de tal
maneira me aproximar de nossos irmãos encarcerados.
E também sei guardar as Santas Hóstias e nunca as en-
tregarei aos pagãos." Diante de tal atitude o papa não
teve dúvida e entregou a ele uma caixa de prata com as
Hóstias.
E Tarcísio foi cumprir sua missão. Caminhava firme
pelas ruas, quando outros meninos o chamaram para
brincar, pois faltava um para completar a brincadeira.
Tarcísio se desculpou, dizendo estar com pressa. Um
rapaz pegou-o pelo braço e quis forçá-lo. Tarcísio resis-
tiu. Então, perceberam que ele segurava algo. Curiosos
perguntaram o que era. Não atendendo às suas exigên-
cias, tentaram arrancar o segredo de suas mãos. Uma
pessoa que passava pelo local, vendo a confusão, disse:
"Ele leva o Deus dos cristãos!" Então, os rapazes caíram
sobre o pobre menino para lhe arrancar à força as
Santas Hóstias.
Isso custou-lhe a vida. Pois quando guardas chegaram
ao local para impedir as agressões ele já agonizava. Um
dos guardas o viu e perguntou o porquê daquilo. Ele lhe
disse: sou cristão. O guarda respondeu: também sou. E
o levou para um sacerdote
São Domingos de Gusmão
Saindo da Igreja primitiva e entrando a idade média
encontramos São Domingos de Gusmão. O surgimento
de sua santidade e também do seu apostolado foi es-
sencial para a Igreja num momento em que ela precisa-
va enfrentar muitos opositores que visavam deslegiti-
mar a fé católica e arregimentar pessoas comuns, era
uma época de muita pobreza intelectual em que muitas
vezes até o próprio clero tinha uma formação ruim. São
Domingos usou a arma do ensino, dos votos evangéli-
cos e da devoção a Maria para auxiliar a Igreja nesse pe-
ríodo difícil da história.
São Domingos de Gusmão, um homem de fé e oração
nasceu na Espanha, em Caleruega na Castela Velha no
ano de 1170, em berço nobre, pertencendo à linhagem
dos Gusmão. O pai de São Domingos de Gusmão era
Félix de Gusmão, que tentou fazer com que o jovem fi-
casse entusiasmado pelas armas e pelo combate,
porém sua mãe Joana de Aza, o tornou mais próximo
dos clérigos e monges, despertando a vocação no
garoto.
Porém mesmo antes do nascimento de São Domingos,
sua mãe Joana havia sonhado com um cão que trazia
em sua boca uma tocha que irradiava uma luz sobre o
mundo. Porém não era apenas um sonho, mas uma pro-
fecia, pois o São Domingo de Gusmão era conhecido
por iluminar todo o seu tempo e a igreja com a luz do
Evangelho, despegando de si mesmo chegando ao
ponto de vender suas posses para comprar comida aos
mais necessitados. São Domingos de Gusmão era um
homem de penitência e amor à Palavra de Deus, acolheu
o chamado ao sacerdócio em 1203, sendo nomeado
cônego, e logo no ano seguinte foi para Roma, para
obter a licença do Papa para evangelizar os bárbaros
pagãos da Germânia. Entretanto, o Papa Inocêncio III o
orientou para trabalhar na conversão dos Albigenses
que se espalhavam por todo o Sul da França com inúme-
ras heresias. Sendo assim, São Domingos fez do sul da
França, o seu principal campo de ação.
Durante um exorcismo, São Domingos de Gusmão in-
vocou a Santíssima Virgem. Ela veio. E o Demônio decla-
rou, dizendo: “Ó, vós, que sois nossa inimiga, nossa
ruína e nossa destruição, por que descestes do Céu
para nos torturar tão cruelmente? Ó, advogada dos pe-
cadores, vós que os tirais das presas do inferno, vós
que sois o caminho certeiro para os céus, devemos nós,
para nosso próprio pesar, dizer toda a verdade e con-
fessar diante de todos quem é a causa de nossa vergo-
nha e de nossa ruína? Ó, pobre de nós, príncipes da es-
curidão! Ouvi bem, pois, vós, cristãos: a Mãe de Jesus
Cristo é todo-poderosa junto de Deus e capaz de salvar
seus servos do inferno. Ela é o sol que destrói a escuri-
dão de nossa astúcia e sutileza. É ela que descobre
nossos planos ocultos, quebra nossas armadilhas e
torna nossas tentações inúteis e sem efeito. Mesmo re-
lutando, confessamos que nem sequer uma alma que
realmente perseverou no seu serviço foi condenada co-
nosco; um simples suspiro que ela oferece à Santíssima
Trindade é mais precioso que todas as orações, desejos
e aspirações de todos os santos. Nós a tememos mais
que todos os santos nos céus juntos e não temos
nenhum sucesso com seus servos fiéis. Muitos cristãos
que a invocam na hora da morte e que seriam condena-
dos, de acordo com nossos padrões ordinários, são
salvos por sua intercessão. Ó, se pelo menos essa Maria
(era assim que eles a chamavam na sua fúria) não tives-
se se oposto aos nossos desígnios e esforços, teríamos
conquistado a Igreja e a teríamos destruído há muito
tempo atrás; teríamos feito todas as Ordens da Igreja
caírem no erro e na desordem. Agora, que somos obri-
gados a falar, também vos diremos isto: ninguém que
persevera na oração do Rosário será condenado,
porque a Mãe de Jesus Cristo obtém para seus servos a
graça da verdadeira contrição de seus pecados e, por
meio desse instrumento, eles obtêm o perdão e a mise-
ricórdia de Deus.”
Quando os hereges se depararam com a luz de São
Domingos de Gusmão, muitos aderiram à Verdade, pois
nesta altura já nascia, no ano de 1215 em Tolosa, a pri-
meira casa dos Irmãos Pregadores, também conhecidos
como Dominicanos (cães do Senhor) que na mendicân-
cia, amor e propagação do Rosário da Virgem Maria,
rígida formação teológica e apologética, levavam em
comunidade a Véritas, ou seja, a verdade libertadora.
São Domingos de Gusmão faleceu com 51 anos e foi ca-
nonizado pelo Papa Gregório IX, em 1234.
Santa Teresa de Ávila
Indo mais à frente na história encontramos o período
conturbado da revolta protestante na cristandade.
Depois de muito tempo com hegemonia espiritual e in-
telectual a Igreja via sua unidade ruir, sua fé esmorecer
e mais uma vez o mundo se tornava hostil aos que bus-
cavam a santidade. Entretanto, surge novamente um
movimento de recolhimento interior dessa vez por meio
de uma monja espanhola: Santa Teresa de Ávila. Com
sua reforma no carmelo possibilitou que a Igreja reen-
contrasse novamente o caminho da santidade num
mundo que começava a questionar a possibilidade do
homem em ter comunhão com Deus.
Teresa nasceu em Ávila, na Espanha, em 1515 e foi
educada de modo sólido e cristão, tanto assim que,
quando criança, se encantou tanto com a leitura da vida
dos santos mártires a ponto de ter combinado fugir
com o irmão para uma região onde muitos cristãos
eram martirizados; mas nada disso aconteceu graças à
vigilância dos pais. Aos vinte anos, ingressou no Carme-
lo de Ávila, onde viveu um período no relaxamento,
pois muito se apegou às criaturas, parentes e conversas
destrutivas, assim como conta em seu livro biográfico.
Certo dia, foi tocada pelo olhar da imagem de um Cristo
sofredor, assumiu a partir dessa experiência a sua con-
versão e voltou ao fervor da espiritualidade carmelita, a
ponto de criar uma espiritualidade modelo.
Foi grande amiga do seu conselheiro espiritual São
João da Cruz, também Doutor da Igreja, místico e refor-
mador da parte masculina da Ordem Carmelita. Por
meio de contatos místicos e com a orientação desse
grande amigo, iniciou aos 40 anos de idade, com saúde
abalada, a reforma do Carmelo feminino. Começou pela
fundação do Carmelo de São José, fora dos muros de
Ávila. Daí partiu para todas as direções da Espanha,
criando novos Carmelos e reformando os antigos. Pro-
vocou com isso muitos ressentimentos por parte da-
queles que não aceitavam a vida austera que propunha
para o Carmelo reformado. Chegou a ter temporaria-
mente revogada a licença para reformar outros conven-
tos ou fundar novas casas.
Santa Teresa deixou-nos várias obras grandiosas e
profundas, principalmente escritas para as suas filhas
do Carmelo: “O Caminho da Perfeição”, “Pensamentos
sobre o Amor de Deus”, “Castelo Interior”, “A Vida”.
Morreu em Alba de Tormes na noite de 15 de outubro
de 1582 aos 67 anos, e em 1622 foi proclamada santa.
O seu segredo foi o amor. Conseguiu fundar mais de
trinta e dois mosteiros, além de recuperar o fervor pri-
mitivo de muitas carmelitas, juntamente com São João
da Cruz. Teve sofrimentos físicos e morais antes de
morrer, até que em 1582 disse uma das últimas pala-
vras: “Senhor, sou filha de vossa Igreja. Como filha da
Igreja Católica quero morrer”.

Extra: Santo Afonso e a constância na oração


Como havia dito antes um dos maiores benefícios em
sermos amigos dos santos é podermos aprender com
seus exemplos a importância de perseverar na fé.
Todos os santos anteriores citados possuem inúmeras
histórias riquíssimas que você, caro leitor, pode apro-
fundar conhecendo mais a fundo suas vidas. O objetivo
deste livro é dar um gosto e mostrar como ao longo da
história Deus interviu por meio deles para auxiliar a
Igreja e nos dar lições valiosas no caminhos de nossa
salvação. O santo deste trecho não trarei mais sobre
sua vida, mas uma história de valiosa importância: A ne-
cessidade de perseverar na vida de oração, em especial,
na récita do santo terço. Leiam, reflitam e aproveitem:
Um pequeno episódio do fim da vida dele, quando já
não podia transitar por si próprio, sendo conduzido em
cadeira de rodas por um irmão leigo redentorista. Então
passeavam pelo convento, percorrendo os jardins e os
pátios internos, enquanto faziam suas orações. Mais de
uma vez aconteceu de Santo Afonso perguntar ao seu
companheiro: — Irmão, já rezamos tal Mistério do Rosá-
rio?
O bom discípulo, igualmente alquebrado pela idade,
não se recordava ao certo, e respondia: — Sr. Bispo, não
me lembro muito bem, mas acredito que sim. Em todo
o caso, já rezamos tantos terços, que Nossa Senhora
não se importará se não tivermos contemplado tal ou
tal outro Mistério…
E Santo Afonso replicava: — Oh! Meu caro Irmão, isso
não! Se eu passar um dia sem recitar o Rosário comple-
to, posso perder a minha alma!
Essa é a constância, a coragem, o ânimo perseverante
de um Santo sobre o qual se abateram todas as tempes-
tades.
Bibliografia:

Apologia contra os que condenam imagens sagradas -


São João Damasceno
Didaqué
Dos sacramentos - Santo Ambrósio
Contra as heresias - Santo Irinei de Lião
O Sagrado e o profano - Mircea Eliade
O que há de errado com o mundo? - G.K Chesterton
Santo Tomás de Aquino - G.K Chesterton
Catecismo da Igreja Católica
Legenda Aurea - Jacoppo Di Varazze
Regra pastoral - São Gregório Magno
História Eclesiastica - Eusebio de Cesareia
Carta aos corintios - Clemente de Roma
Livro da vida - Santa Teresa
formação da Cristandade - Christopher Dawnson
Nova ciência da política - Eric Voegelin
A divisão da Cristandade - Christopher Dawnson
O julgamento das nações - Christopher Dawnson
Bom, quando tratamos da fundação da Igreja precisa-
mos ter sempre em vista duas perspectivas: A primeira
perspectiva humana e a segunda perspectiva a divina.
Na perspectiva humana precisamos compreender a ins-
tituição: como ela surgiu, seus valores, o que norteia os
seus valores e sua atuação sobre a sociedade nos mo-
mentos de crise. Os momentos de crise são fundamen-
tais pois é neles que se manifesta o verdadeiro caráter
dos indivíduos humanos e que conseguem dar uma uni-
dade de ação que pode se prolongar por muito tempo.
Na perspectiva divina precisamos observar quais foram
os fundamentos que Deus lançou a essa mesma Igreja,
quais garantias de que Ele realmente a assiste? São
nessas duas perspectivas que estaremos analisando
muito da fundação da Igreja tentando vislumbrar o se-
guinte: é possível dizermos que a fundação da Igreja
também é a fundação do Ocidente? Da civilização? Ou
são coisas inteiramente diferentes?
Inicialmente podemos observar o fundamento da fun-
dação da Igreja bem descrito no Tratado de Tertuliano,
presbítero, «Sobre a prescrição dos hereges» (Cap. 20,
1-9; 21, 3; 22, 8-10: CCL 1, 201-204) Sec. III). Onde ele
irá explicar sobre a pregação Apostólica, vejamos
abaixo o trecho com grifos nossos:
“Cristo Jesus, nosso Senhor, durante a sua vida terre-
na, ensinou quem era ele, quem tinha sido desde
sempre, qual era a vontade do Pai que vinha cumprir e
qual devia ser o comportamento do homem. Ensinava
estas coisas ora em público, diante de todo o povo,
ora em particular, aos seus discípulos. Dentre estes es-
colheu doze para estarem a seu lado, e que destinou
para serem os principais mestres das nações. Quando,
depois da sua ressurreição, estava prestes a voltar
para o Pai, ordenou aos onze – pois um deles se havia
perdido – que fossem ensinar a todos os povos, bati-
zando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo. Imediatamente os apóstolos (palavra que signi-
fica “enviados”) chamaram por sorteio a Matias como
duodécimo para ocupar o lugar de Judas, segundo a
profecia contida num salmo de Davi. Depois de recebe-
rem a força do Espírito Santo com o dom de falar e de
realizar milagres, começaram a dar testemunho da fé
em Jesus Cristo na Judéia, onde fundaram Igrejas; par-
tiram em seguida por todo o mundo, proclamando a
mesma doutrina e a mesma fé entre os povos. Em cada
cidade por onde passaram fundaram Igrejas, nas quais
outras Igrejas que se fundaram e continuam a ser fun-
dadas foram buscar mudas de fé e sementes de doutri-
na. Por esta razão, são também consideradas apostóli-
cas, porque descendem das Igrejas dos apóstolos.
Toda família deve ser necessariamente considerada se-
gundo sua origem. Por isso, apesar de serem tão nu-
merosas e tão importantes, estas Igrejas não formam
senão uma só Igreja: a primeira, que foi fundada pelos
apóstolos e que é origem de todas as outras. Assim,
todas elas são primeiras e apostólicas, porque todas
formam uma só. A comunhão na paz, a mesma lingua-
gem da fraternidade e os laços de hospitalidade mani-
festam a sua unidade. Estes direitos só têm uma razão
de ser: a unidade da mesma tradição sacramental. Se
quisermos saber o conteúdo da pregação dos apósto-
los, e, portanto, aquilo que Jesus Cristo lhes revelou, é
preciso recorrer a estas mesmas Igrejas fundadas
pelos próprios apóstolos.
O Senhor realmente havia dito em certa ocasião:
Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois ca-
pazes de as compreender agora; e acrescentou:
quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos con-
duzirá à plena verdade (Jo 16,12-13). Com estas pala-
vras revelou aos apóstolos que nada ficariam ignoran-
do, porque prometeu-lhes o Espírito da Verdade que os
levaria ao conhecimento da plena verdade. E, sem
dúvida alguma, esta promessa foi cumprida, como
provam os Atos dos Apóstolos ao narrarem a descida
do Espírito Santo.”

Grifei 7 trechos que ao meu ver descrevem com pleni-


tude a missão da Igreja, sua institucionalidade, compro-
va a sua orientação pelo Espírito Santo bem como o
desejo do próprio Deus em cria-la, dentre outros pontos
importantes.

No primeiro grifo, Tertuliano descreve os apóstolos


como “mestres das nações”, vejamos: “Dentre estes es-
colheu doze para estarem a seu lado, e que destinou
para serem os principais mestres das nações.” Portanto,
para os cristãos primitivos, também chamados de cató-
licos, era uma verdade fundamental que a Igreja foi fun-
dada não somente para tratar dos seus próprios interes-
ses religiosos, mas para conquistar os corações de
todas as nações e transformá-las por dentro. Um mestre
não é um ditador, nem um tirano, é alguém que por
meio do exemplo ensina, orienta e educa; traz para o
aprendiz uma perspectiva inteiramente diferente das
quais ele está plenamente acostumado. Dentro das
nações e a respeito de seu governo podemos perceber
então que era fundamental e uma consequência da
missão da Igreja uma modificação do entendimento da
Ordem secular por meio do conhecimento e anúncio de
uma Ordem divina, esta que é legitimidade pelo reinado
de Jesus Cristo, crucificado, morto, sepultado e agora
ressurecto ao reinado celeste. No diálogo com Pilatos,
Jesus diz:
"Respondeu Jesus: “O meu Reino não é deste mundo.
Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos
certamente teriam pelejado para que eu não fosse en-
tregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste
mundo”. 37.Perguntou-lhe então Pilatos: “És, portanto,
rei?” Respondeu Jesus: “Sim, eu sou rei. É para dar tes-
temunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo
o que é da verdade ouve a minha voz”.” São João, 18 -
Bíblia Católica Online
Jesus considera-se Rei e sabe que tem súditos. Diante
de um representante do império do mundo nesta época
ele demonstra que o “seu reino é da verdade” ou seja,
ele é fundamento não em meros propósitos humanos,
mas em valores transcendentes que devem dirigir qual-
quer poder temporal; mas esses valores se fazem pre-
sente não por uma força política mas por conta dos sú-
ditos que pelejam. Pelejar é lutar por um conjunto de
valores, assumi-los, confrontar esses valores com
outros e fazê-los valer sua própria superioridade, pois
esta não deve ser angariada por números ou força
humana mas porque eles já são superiores mas não
foram aceitos de forma definitiva pelos demais.
Foi nesse contexto que Santo Agostinho mudou o oci-
dente. Na sua época existia uma heresia chamada: mile-
narismo. Que mais prendia o homem na terra; pois ela
dizia que os cristãos deveriam buscar formas de apres-
sar a vinda de Jesus, criar uma espécie de paraíso ter-
restre. Na sua obra: cidade de Deus; Santo Agostinho
responde a essa objeção. Mostrando que a história
humana não estaria entrelaçada a história divina justa-
mente por existir a divisão de duas cidades. Uma
movida pelos interesses terrenos e outra movida pelo
Amor Divino. Tal foi o impacto dessas ideias que por
mil anos a Igreja absorveu essa doutrina e também a so-
ciedade e tais foram esses anos que realizaram muitos
prodígios para a humanidade. Em mil anos a Igreja
construiu: hospitais, orfanatos, catedrais, universida-
des, direito, arte, cultura, etc. Construiu a Civilização
Ocidental. Em 1400 e alguns quebrados, vem o "renas-
cimento" e rompe com essa tradição. Coloca o homem
no centro do cosmos e, com isso, cria uma morada dele
lá. O homem agora vive para o mundo, crendo piamente
que a cidade de Deus pode ser a cidade dos homens e
depois que a cidade dos homens será plenamente a
cidade de Deus.
É preciso retornar a essa cosmovisão. Os homens pre-
cisam ter "corações ao alto!" E buscar novamente a
cidade de Deus. Somente assim teremos novamente o
sossego na cidade dos homens. Nesse espírito que
surgem os diversos movimentos na Igreja que buscan-
do inicialmente apenas o reino dos céus transformaram
e influenciaram toda a sociedade civil ao longo dos sé-
culos. Destaco aqui apenas dois: Os padres do deserto
e a tradição monástica de São Bento.
Os Padres do Deserto ou Pais do Deserto foram eremi-
tas, ascetas, monges e freiras que viviam majoritaria-
mente no deserto da Nítria (Escetes), no Egito a partir
do século III. O mais conhecido deles foi Santo Antão
(ou Santo Antônio, o Grande), que mudou-se para o de-
serto em 270-271 e se tornou conhecido tanto como o
pai quanto o fundador do monasticismo no deserto.
Quando Antão morreu em 356, milhares de monges e
freiras tinham sido atraídos para a vida no deserto se-
guindo o exemplo do grande santo. Seu biógrafo, o
doutor da igreja Atanásio de Alexandria, escreveu que
"o deserto tinha se tornado uma cidade". Os Padres do
Deserto tiveram uma enorme influência no desenvolvi-
mento do cristianismo primitivo. As comunidades mo-
násticas do deserto que cresceram destes encontros in-
formais de monges eremitas se tornaram o modelo para
o monasticismo cristão. A tradição monástica oriental,
representada em Monte Atos, e ocidental, sob a Regra
de São Bento, foram ambas fortemente influenciadas
pelas tradições iniciadas no deserto. Todos renascimen-
tos monásticos da Idade Média buscaram no deserto
alguma inspiração e orientação.
Na tradição eremítica percebemos que a fundação das
cidades ocorrem em torno dos esconderijos dos eremi-
tas. As pessoas viam neles exemplos de vivência cristã
autêntica e se ajuntavam ao seu redor para aprender
como viver bem o cristianismo, outros eram motivados
pela curiosidade ao ouvirem falar dos relatos de mila-
gres e eventos sobrenaturais que a vida desses homens
e mulheres sempre carregavam em abundância. Daí que
percebemos que o começo de uma civilização se
fundou nas suas preferências religiosas e na sua prática
como um todo, as primeiras organizações após a queda
do império romano e durante a sua fragilidade se
davam inteiramente por um propósito sobrenatural,
mas não um propósito direto e sim punhados de pesso-
as que decidindo-se viver de formar mais plena diante
de Deus atraíam para si pessoas que absorviam aquilo
que Ele tinha de melhor para ensinar por meio de seus
mais fiéis e honrados discípulos. Mas o movimento não
parou neste primeiro passo, mas deu um passo mais
adiante através da fundação do monasticismo ociden-
tal, onde, São Bento inspirado por essas idéias resolveu
aprimorar o estilo de vida eremítica e criar mosteiros
fortificados nos montes italianos que serviam como ver-
dadeiros faróis de civismo e ordem num período em
que as cidades estavam infestadas pelo caos e pela au-
sência de Deus.
São Bento não somente ajudou a construir a Igreja,
mas também ajudou a construir a Civilização Ocidental.
O trecho abaixo, retirado do livro “Como A Igreja Católi-
ca Construiu a Civilização Ocidental” nos mostra esse
desenvolvimento:

“A regra de são Bento possibilitava aos monges a ca-


pacidade de buscar o trabalho como meio de canal da
graça, ainda que a regra fosse tida como moderada e
tivesse aversão a penitências mais severas. Além disso,
os monges também foram pioneiros na produção do
vinho, que usavam para a celebração da Santa Missa e
para o consumo ordinário conforme mandava a regra
de São Bento. Podemos atribuir aos monges, certo
avanço tecnológico que eles obtiveram a sociedade
medieval; aonde, qualquer avanço tecnológico que se
chegasse a um mosteiro se espalhava rapidamente a
tantos outros na Europa. A comunidade monástica cis-
terciense tinha geralmente as suas próprias fábricas
para a produção de energia hidráulica, moer o trigo,
peneirar a farinha, lavar a roupa e tratar o couro. Por
curiosidade, veja esse relatório de um mosteiro de Cla-
raval, onde se diz como se usava as máquinas hidráuli-
cas: “Entrando por baixo do muro exterior da abadia,
como que um porteiro, lhe dá passagem, inicialmente
o arroio lança-se de modo impetuoso no moinho, con-
torcendo-se, em um movimento revolto, para primeiro
moer o trigo sob o peso das pedras, depois para agitar
a fina peneira que separa a farinha do farelo. Depois
de alcançar a construção seguinte, enche os tanques e
entrega-se às chamas, que o aquecem para preparar a
cerveja e o licor dos monges, quando as vinhas recom-
pensam os duros trabalhos dos vinicultores com uma
colheita pobre. Mas o arroio ainda não concluiu sua
tarefa. Convocam-no os lavadores, postados perto do
moinho. No moinho ocupara-se em preparar alimentos
para a irmandade; agora cuida-lhes da roupa. Nunca se
esquiva, nem se recusa a fazer qualquer coisa que lhe
seja pedida. Levanta e deixa cair um a um os pesados
pilões, os grandes martelos de madeira, poupando
assim aos monges grande fadiga...”
“O legado dos mosteiros não foi apenas uma trans-
formação do mundo, mas uma influência direta no
curso dos acontecimentos históricos e pessoais, pois
numa civilização em que a Igreja tinha muito prestígio
e, portanto, seus homens conseguiam influenciar o
poder temporal, vemos que pelo Levantamento de
Thomas Woods, muitos efeitos da vida comum medie-
val podem ser atribuídos a homens ligados as ordens
monásticas do Ocidente, em especial, a ordem benedi-
tina:

“As simples estatísticas podem fazer justiça às reali-


zações beneditinas, mas a verdade é que, no começo
do século XIV, a ordem já proporcionara a Igreja 24
papas, 200 cardeais, 7000 arcebispos, 1000 bispos e
1500 santos canonizados.
“Um outro legado dos monges é que após a queda do
império romano as áreas cultiváveis na Europa reduzi-
ram drasticamente. Com as invasões bárbaras tudo
ainda se tornou mais difícil, porém era necessário pro-
duzir, pois a comida não cai do céu. Aquelas áreas pre-
cisavam ser restauradas e tornadas produtivas nova-
mente. Quem assumiu esse trabalho? Os monges be-
neditinos. "Diz-nos, no inicio do século XX, Henry Goo-
dell, presidente do que era o então “Massachussets
Agricultural College” em que ele exaltou “O trabalho
daqueles velhos monges ao longo de 1500 anos. Eles
salvaram a agricultura quando ninguém mais poderia
fazê-lo, Praticaram-na num contexto de uma nova
forma de vida e de novas condições, onde ninguém
mais ousava empreendê-la." WOODS, Thomas; Como a
Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental
Além desse primeiro comentário sobre a pregação de
Tertuliano, podemos partir para um segundo comentá-
rio onde uniremos diversos trechos em que ele irá de-
monstrar duas coisas: Como essa Igreja foi fundada e
como ela se desenvolveu. Inicialmente, Tertuliano nos
diz “Imediatamente os apóstolos (palavra que significa
“enviados”) chamaram por sorteio a Matias como duo-
décimo para ocupar o lugar de Judas, segundo a profe-
cia contida num salmo de Davi” percebemos que era im-
plícito na visão dos Apóstolos uma noção de sucessão,
ou seja, a Igreja deveria sobreviver aos tempos históri-
cos. Só pode ser agente histórico aqueles que conse-
guem possibilitar que o efeito de suas ações superem o
decurso de um vida humana, ou seja, é necessário que
suas ações possibilitem uma continuidade que trans-
cenda o período de tempo de uma vida humana. Ainda
assim, a descrição de Tertuliano não para somente na
noção de sucessão, mas também de abrangência total
(catolicidade, universalidade da Igreja) e também pela
sua unidade, relembremos os trechos grafados: “onde
fundaram Igrejas; partiram em seguida por todo o
mundo, proclamando a mesma doutrina e a mesma fé
entre os povos. (...) Por esta razão, são também consi-
deradas apostólicas, porque descendem das Igrejas dos
apóstolos. Por isso, apesar de serem tão numerosas e
tão importantes, estas Igrejas não formam senão uma
só Igreja: a primeira, que foi fundada pelos apóstolos e
que é origem de todas as outras. Assim, todas elas são
primeiras e apostólicas, porque todas formam uma só.”
Aqui vemos que em alguns momentos ele usa o termo
Igrejas para definir aquilo que hoje chamamos de Dio-
ceses, ou seja, territórios em que os sucessores dos
apóstolos (bispos) governariam para o reino de Deus e
em outro momento ele usa Igreja para definir uma uni-
dade, uma união que todos esses micro governos são
enlaçados por meio de uma sucessão única e ao mesmo
tempo múltipla, pois dos doze apóstolos surgiram
essas variadas igrejas que juntas compõem a uma só
Igreja. Abaixo deixo como transcrição uma citação de
Santo Irineu de Lyon trazendo a sucessão apostólica na
sua obra, bem como uma linha sucessória de Papas:
"Depois de ter fundado e edificado a Igreja, os bem-a-
venturados Apóstolos (Pedro e Paulo) transmitiram a
Lino o cargo do episcopado (...) Anacleto o sucedeu.
Depois, em terceiro lugar a partir dos Apóstolos, é a
Clemente que coube o episcopado; ele tinha visto os
próprios Apóstolos, estivera em relação com eles; sua
pregação ressoava lhe aos ouvidos; sua Tradição
estava presente ainda aos seus olhos; aliás, ele não
estava só pois havia em sua época muitos homens ins-
truídos pelos Apóstolos (...) A Clemente sucedeu Eva-
risto; a Evaristo, Alexandre; em seguida (...), Sisto.
Depois Telésforo, também glorioso por seu martírio.
Depois Higino, Pio, Aniceto, Sótero (...) e Eleutério, em
12º lugar a partir dos Apóstolos" (Contra as Heresias).

1. 42-67 – S.PEDRO, de Betsaida (Galileia), morou na


cidade de Antioquia e depois foi a Roma (42), onde
morreu mártir no ano 67.
2. 67-76 – S. LINO, de Volterra, Toscana
3. 77-88 – S. CLETO ou ANACLETO, romano
4. 89-98 – S. CLEMENTE I, romano
5. 98-105 – S. EVARISTO, grego
6. 105-115 – S. ALEXANDRE I, romano
7. 115-125 – S. SISTO I, romano
8. 125-136 – S. TELÉSFORO, grego
9. 137-140 – S. HIGINO, grego
10. 140-155 – S. PIO I, de Aquiléia, Itália
11. 155-166 – S. ANICETO, Sírio
12. 166-175 – S. SOTERO, de Fondi
13. 175-189 – S. ELEUTÉRIO, de Nicópolis, Grécia
14. 189-199 – S. VÍTOR I, africano
15. 199-217 – S. ZEFERINO, romano
16. 217-222 – S.CALISTO I, romano
Antipapa: Hipólito (217-235)
17. 222-230 – S. URBANO I, romano
18. 230-235 – S. PONCIANO, romano
19. 235-236 – S. ANTERO, grego
20. 236-250 – S. FABIANO, romano
21. 251-253 – S. CORNÉLIO, romano
Antipapa: Novaciano (251)
22. 253-254 – S. LÚCIO I, romano
23. 254-257 – S. ESTÊVÃO I, romano
24. 257-258 – S. SISTO II, grego
25. 259-268 – S. DIONÍSIO, grego
26. 269-274 – S. FÉLIX, romano
27. 275-283 – S. EUTIQUIANO, de Luni, Toscana
28. 283-296 – S. CAIO, Dalmácia (hoje, Iugoslávia)
29. 296-304 – S.MARCELINO, romano
30. 307-309 – S. MARCELO I, romano
Os antipapas são aqueles considerados usurpadores
do trono de Pedro, ou seja, pessoas que sem nenhum
tipo de sucessão ou direito se declararam papas. Deixo
essas pessoas na linha sucessória como forma de de-
monstrar que o reinado da Igreja também já foi cobiça-
do por homens de forma indevida mas que mesmo
assim Deus guiou sua Igreja ao longo dos séculos não
permitindo que ela se perdesse, conforme nos diz Orí-
genes que desde a fundação todos os feitos dos apósto-
los nos apontam para uma assistência divina extraordi-
nária:

"Se considerarmos os progressos imensos do Evange-


lho em alguns anos, apesar da perseguição e dos su-
plícios, da morte e do confisco, e a despeito do peque-
no número de pregadores, a Palavra foi anunciada por
toda a terra. Gregos e bárbaros, sábios e insensatos,
todos aderiram à religião de Jesus. Não podemos duvi-
dar de que tal coisa supera as forças do homem, pois
Jesus ensinou com toda a autoridade e com toda a per-
suasão necessárias para que a Palavra se impusesse"
(Orígenes de Alexandria, Dos Princípios 4,1,2)
Dito isto, podemos concluir que “Só há uma Igreja. E é
a Igreja Católica”. (Clemente de Alexandria, 150-215
d.C.)
Um ponto fundamental a ser desmentido é a acusação
grave de que a Igreja Católica foi fundada por Constan-
tino. Muitos apologetas católicos podem entender isso
apenas como um problema que gera ignorância nas
pessoas, mas a situação está muito a frente disso. Um
bom motivo para nos empenharmos em desmascarar-
mos essa acusação vem de que através dela perdemos
a noção de fundação divina e de que a ordem na socie-
dade (como dito anteriormente) pode ser originada por
uma ação transcendente, pois, se as instituições que
lidam diretamente com esse progresso foram fundadas
por meros homens, logo, é impossível crer na existên-
cia de uma ordem superior a ordem cosmológica dos
impérios pagãos e das ideologias modernas pois tudo
seria um mero fruto da vontade humana e de seus inte-
resses escusos.
Sei que nos parágrafos anteriores demos aqui diversos
pontos históricos que desmentem esse fato, mas é
sempre bom esmiuçar esse ponto fundamental.
O primeiro papa a ocupar a cátedra de Pedro após a
conversão de Constantino foi Silvestre. Ele era romano
e foi eleito em 314. Graças a Silvestre, a paz foi mantida
na Igreja e o primeiro concílio foi convocado, para acon-
tecer no cidade de Nicéia. Silvestre já era muito idoso e
foi representado no Concílio por dois representantes.
Como havia harmonia entre Papa e Constantino, a Igreja
conseguiu bons resultados, e recebeu um forte apoio fi-
nanceiro para a construção de valiosos edifícios eclesi-
ásticos, construções que marcaram o pontificado de Sil-
vestre. Também por causa de Silvestre, Constantino pa-
trocinou à Igreja um ato histórico e de muita relevância
para a Humanidade e o Catolicismo: doou seu próprio
palácio para servir de moradia para os Papas, e toda a
cidade de Roma e algumas outras vizinhas para a Igreja.
São Silvestre morreu em 335, depois de ter permaneci-
do no Trono de Pedro durante vinte e um anos, e produ-
zido tantos e bons frutos para o Cristianismo. Pela vida
de São Silvestre reconhecemos em Constantino um co-
laborador exímio do cristianismo entretanto nunca o
seu fundador, além das decisões religiosas estarem ex-
clusivamente na mão do papa e de seus ministros ele
ainda conseguia influenciar o imperador e angariar
obras para os cristãos. Muitos desconhecem, mas é im-
possível que Constantino tenha resolvido fundar uma
Igreja para si, pois ele foi convertido a uma Igreja já
existente. Convertido por sua Mãe: Helena. Nascida no
ano de 255 em Bitínia, de família plebeia, no tempo da
juventude trabalhava numa pensão, até conhecer e ca-
sar-se com o oficial do exército romano, chamado
Constâncio Cloro. Fruto do casamento de Helena foi
Constantino, o futuro Imperador, o qual tornou-se seu
consolo quando Constâncio Cloro deixou-a para casar-
-se com a princesa Teodora e governar o Império
Romano. Diante do falecimento do esposo, o filho que
avançava na carreira militar substituiu o pai na função
imperial, e devido a vitória alcançada nas portas de
Roma, tornou-se Imperador.
Aconteceu que Helena converteu-se ao Cristianismo,
ou ainda tenha sido convertida pelo filho que decidiu
seguir Jesus e proclamar em 313 o Édito de Milão, o
qual deu liberdade à religião cristã, isto depois de
vencer uma terrível batalha a partir de uma visão da
Cruz. Certeza é que no Império Romano a fervorosa e
religiosa Santa Helena foi quem encontrou a Cruz de
Jesus e ajudou a Igreja de Cristo, a qual saindo das cata-
cumbas pôde evangelizar e com o auxílio de Santa
Helena construir basílicas nos lugares santos. Faleceu
em 327 ou 328 em Nicomédia, pouco depois de sua
visita à Terra Santa. Os seus restos foram transportados
para Roma, onde se vê ainda agora, no Vaticano, o sar-
cófago de pórfiro que os inclui.
Mas muito mais do que a liberdade aos cristãos disse-
mos anteriormente que por meio de Silvestre Constanti-
no concedeu aos cristãos um palácio e a cidade de
Roma para que os cristãos fizessem dela sua morada,
pois saibam que isso não foi mero acaso do destino.
Muitos acusam a Igreja de paganização do cristianismo
pois baseou sua sede em Roma, não é muito difícil ouvir
sempre uma frase assim “Mas há inúmeros locais
santos para os cristãos fora de Roma, por que exata-
mente a Igreja Católica tem sua sede lá?” Bem, como eu
disse antes: não foi mero acaso, Deus dirige a história
humana e por meio dos Seus desígnios possibilita o
cumprimento de Suas promessas.
Por volta do ano 64, São Pedro foi crucificado de
cabeça para baixo por Nero na colina do Vaticano. Os
cristãos recuperaram seu corpo e o enterraram em um
cemitério próximo. Por volta do ano 326, o imperador
Constantino nivelou o que restava da arena e da colina
e erigiu uma grande basílica com o altar-mor colocado
sobre o túmulo de São Pedro. Mas, depois de séculos de
restaurações e reconstruções, a localização do túmulo
foi perdida. A tradição continuava insistindo que os
ossos de Pedro estavam debaixo do altar-mor de sua
basílica, mas ninguém o havia visto em séculos.
Em 1939, os trabalhadores cavavam uma sepultura
para o Papa Pio XI nas grutas debaixo de São Pedro,
quando um deles sentiu que sua pá não encontrava
mais terra. Ao passar uma lanterna pelo buraco, a
equipe viu o interior de um mausoléu do século II. A ex-
ploração revelou uma necrópole romana inteira e per-
feitamente preservada que foi coberta a pedido de
Constantino. Diretamente debaixo do altar principal de
São Pedro, os arqueólogos encontraram um túmulo
simples que continha os ossos de um homem robusto e
de idade avançada. Inúmeras orações e petições a São
Pedro foram encontradas na parede do túmulo, assim
como uma inscrição grega que dizia: "Pedro está
dentro". Após anos de estudo, São Paulo VI declarou em
1968 que os ossos daquela sepultura pertenciam a São
Pedro. Portanto, a promessa de Jesus que “Sob esta
pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18) não foram
meras palavras vãs ou palavras com sentidos aleatórios,
mas Jesus quis dizer que a forma de reconhecer a Igreja
que Ele havia fundado para ser mestra das nações teria
na base do seu altar os ossos do Seu estimado apóstolo
que havia sido escolhido líder e modelo para todas as
gerações futuras. Deus não escreve qualquer coisa na
história dos homens, mas aquilo que faz a Sua vontade
se tornar manifesta.
Roma como sede do Cristianismo se tornou de fato a
mestra de todas as nações. Quando ela foi cristianizada
pela Igreja, o mundo passou a ter uma nova visão sobre
a realidade metafísica e de valores. A misericórdia ensi-
nada por Cristo seria a bússola que conduziria inúme-
ras conversões. Os hospitais, como temos hoje, não
havia na civilização grega e romana; a Igreja Católica foi
pioneira em criá-los com médicos, enfermeiros, remé-
dios, e demais procedimentos. No século IV a Igreja co-
meçou a mantê-los nas cidades menores, atendendo
viajantes e doentes, viúvos, órfãos e pobres. Uma
devota católica chamada Fabíola fundou o primeiro hos-
pital público em Roma. São Basílio Magno fundou um
hospital em Cesareia. Santo Agostinho fundou um hos-
pital para cuidar de escravos.
São João Crisóstomo instituiu inúmeros hospitais em
Constantinopla. Os mosteiros serviam de anexo dos
hospitais para atendimentos. A Ordem dos “Irmãos Hos-
pitalares de Santo Antão” foi fundada em 1095 em
Viena. Em 1099 surgiu a “Ordem de São Lázaro”, para
cuidar dos leprosos do Oriente. Em 1178 foi fundada
por Guy de Montpelier a “Ordem do Espírito Santo”, hos-
pital para crianças abandonadas e no final do século XIII
tinha cerca de 800 casas. A Irmandade católica da Santa
Casa de Misericórdia de São Paulo é uma das primeiras
instituições de caridade e de saúde do Brasil. A sua pri-
meira casa aqui foi fundada em 1543. No Brasil, até
1950, quando não existia nenhuma política de saúde
pública eram as casas de caridade da Igreja que cuida-
vam das pessoas que não tinham condições de pagar
um hospital. A Igreja Católica hoje administra 115.352
Institutos sanitários, de assistência e beneficência em
todo o mundo.
Um outro ponto fundamental da carta de Tertuliano é
a respeito da “unidade da mesma tradição sacramental”.
Um ponto importante para compreendermos essa uni-
dade vem por meio da história do papa São Zeferino.
São Zeferino enfrentou um momento difícil e tumultu-
ado, os cristãos sofreram inúmeras perseguições, além
do surgimento de heresias dentro da igreja que chega-
vam a abalar mais que os martírios. Alguns insistiam
em negar a divindade de Jesus Cristo, e outros como a
própria revelação do Espírito Santo pregando o fim do
mundo.
Apesar de não ser teólogo o Santo Papa Zeferino era
sensato, e amparado pelo Espírito Santo se livrou dos
hereges que se encontravam na igreja, unindo os gran-
des sábios de sua época como: Santo Irineu, Hipólito e
Tertuliano, findando o conflito e livrando a Igreja destas
mentiras. O Papa Zeferino tinha um grande aliado, o di-
ácono Calisto, que seria o próximo papa. Ele determi-
nou que Calisto organizasse cemitérios cristãos, onde
os fiéis pudessem sepultar seus mortos e prestar home-
nagens aos mártires. Este trabalho foi a origem das ca-
tacumbas romanas, lugar histórico que testemunha
grande parte da história cristã.
O Papa Santo Zeferino foi martirizado junto com o
bispo Santo Irineu, no ano 217 e foi sepultado numa
capela nas catacumbas que ele mandou construir em
Roma, Itália.
Um dos motivos em que podemos notar se há num
povo algum grau de civilização é a forma que seus
mortos são tratados. Os mortos representam todo o
aprendizado humano acumulado ao longo de décadas e
um respeito devido demonstra a humildade e nobreza
de espírito dos cidadãos para com sua história, seu pas-
sado e um maior respeito pelo seu futuro. Através das
memórias é que possibilitamos que os exemplos dos
mortos se façam presentes e seus esforços não tenham
sido em vão. Quando uma sociedade destrata-os a con-
sequência é devastadora: se cria uma sociedade barba-
rizada, inteiramente voltada a obtenção de prazeres
imediatos e sem nenhuma responsabilidade com o
futuro; a noção de legado é perdida, os mais velhos e as
crianças são menosprezadas, os primeiros porque em
pouco tempo se encontrarão na condição dos mortos e
os segundos pois qual valor a vida teria onde nem
mesmo a morte é respeitada?
Portanto, pode parecer a nós algo trivial o embate de
São Zeferino, entretanto, este é um dos pontos mais
fundamentais de toda a civilização cristã e do funda-
mento que a sustentou durante um milênio. Cremos
que todos os sacramentos são em vista de vida e morte
de Nosso Senhor Jesus Cristo, O batismo é o nascimen-
to de uma vida, o casamento o nascimento de uma fa-
mília, a eucaristia é o ingresso para a vida eterna, a con-
fissão e a unção dos enfermos são viáticos para a próxi-
ma a vida, a ordem é uma consagração em que o sacer-
dote doa a sua vida pela vida de suas ovelhas. Portanto,
jamais poderia entrar na mentalidade do homem oci-
dental a importância destes sacramentos se antes não
houvesse uma veneração pelos mortos que ocasiona
num respeito sagrado pela vida. Que o exemplo de São
Zeferino seja lembrado por nós e que tenhamos consci-
ência da importância dos nossos mortos e os honremos
por meio de um respeito a Tradição e aos ensinamentos
populares.
E então termina a carta de Tertuliano dizendo “Com
estas palavras revelou aos apóstolos que nada ficariam
ignorando, porque prometeu-lhes o Espírito da Verdade
que os levaria ao conhecimento da plena verdade.”
Aqui, o bispo, tende a deixar claro que a Igreja Apostóli-
ca, unida sacramentalmente seria guiada e orientada
pelo Espírito da Verdade para dar-lhe o conhecimento
da plena verdade. E é nesse Espírito que a Igreja Católi-
ca dá o maior presente para todos os cristãos do
mundo: a Bíblia Sagrada.
Uma das acusações mais falsas e torpes que qualquer
protestante pode fazer contra a Igreja Católica é a de
que “A Igreja não dava valor a Bíblia”, “Os católicos não
reconhecem seu valor”, “A Igreja Católica não incentiva
o uso da Bíblia”, “O Catolicismo é uma doutrina anti bí-
blica”. Tudo isso é flatus vocis diante da própria história
da Igreja e da Bíblia. É a Igreja que formula a Bíblia, que
divide-a em versículos, separa os temas de cada capítu-
lo.
O que ocorreu é que Jesus não deixou nada escrito. O
que Ele deixou como herança a todos nós foram Seus
apóstolos que comporiam uma hierarquia capaz de de-
finir os ensinamentos que as suas ovelhas iriam seguir
após a sua subida aos céus.
"Por fim, apareceu aos Onze, quando estavam senta-
dos à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e dureza
de coração, por não acreditarem nos que o tinham
visto ressuscitado. E disse-lhes: “Ide por todo o mundo
e pregai o Evangelho a toda criatura." Mc 16, 14-15
Vemos pela própria Bíblia que Jesus aparece aos Onze,
ao determinar que Ele estava diante dos seus Apóstolos
e dando a Ordem de pregar por todo o mundo, conferiu
a estes Apóstolos e seus sucessores a autoridade do
ensino da boa nova a toda a criatura. Essa autoridade é
confirmada no I Concílio de Jerusalém no capítulo 15 de
Atos dos Apóstolos quando os apóstolos decidem entre
si qual seria a interpretação a ser dada da lei judaica
após os acontecimentos da vida de Jesus e seus ensina-
mentos. Dito isto, podemos ver essa mesma autoridade
na história, pois cada uma daquelas Igrejas escreveram
sobre a vida de Jesus, trouxeram cartas de São Paulo e
descreveram ensinamentos que ele o fazia oralmente (2
Ts 2, 15). Sendo assim, diante da multiplicidade de en-
sinamentos como saber o que realmente foi dito por
Deus ou não? Quais os ensinamentos que Jesus queria
que a Igreja mantivesse ao longo dos séculos? O proble-
ma não poderia ser relativizado para uma interpretação
pessoal pois os primeiros sucessores sabiam dos Após-
tolos que o desejo de Jesus era que todos fossem um (Jo
17, 10-16) como é dito na sua famosa oração sacerdotal
bem como na cruz. Sendo um dos últimos pedidos de
Jesus os seus sucessores sabiam a responsabilidade de
cumpri-lo fielmente e também a importância de conferir
o ensinamento correto a ser dado, pois esta seria uma
das espinhas dorsais de todo o cristianismo ao longo
dos séculos.
Sendo assim, a Bíblia foi formulada com 73 livros e ca-
nonizada pelas autoridades da Igreja, nos concílios de:
Roma (382 d.C.), Hipona I (393 d.C.), Cartago III (397
d.C.), Cartago IV (417 d.C.), Trullo (692 d.C.) (fonte:
Edição alemã do Dezinger 186, 2005), o processo foi
longo e doloroso, pois haviam muitas discordâncias e
muitos problemas teológicos a serem sanados, enquan-
to isso a Igreja permanecia sem uma firmeza na sua
Tradição escrita, porém podemos perceber pelas datas
do concílios que pelo menos durante 350 anos a Igreja
viveu sem uma formulação exata do cânon Bíblico.
Como se sustentou durante esse tempo? Através do
próprio Magistério e das Tradições orais mantidas vivas
no seio da Igreja primitiva. São Tomé, em seu martírio,
ordenou aos seus que respeitassem os sacerdotes,
amar a Igreja e se reunir para ouvir a palavra de Deus
(vulgo: Missa).
“Então o apóstolo instruiu brevemente todos os ou-
vintes sobre três pontos: amar a Igreja, honrar os sa-
cerdotes e reunir-se assiduamente para ouvir a palavra
de Deus.” Legenda Áurea, p. 86
Então pela fé católica e por ser um costume de
sempre, desde os primórdios da fé cristã, a Sagrada Es-
critura adquire pé de igualdade com a autoridade que a
instituiu e com a Tradição que ajudou a formá-la. Sendo
assim, o uso da Tradição e da autoridade do magistério
não eram contrapontos a Bíblia, muito pelo contrário!
Era uma forma de impedir que as falsas histórias (ainda
não discernidas) ganhassem a mesma autoridade que a
Bíblia e não há como negar que se não fossem estes
outros dois pilares o Novo Testamento com 27 livros
usados pelos protestantes atualmente jamais teria ga-
nhado a forma que possui, logo, podemos concluir que
se hoje os protestantes possuem um novo testamento
com todas as indicações possíveis e com a possibilida-
de de uma doutrina reta é graças ao uso inicial da auto-
ridade do magistério e da tradição oral.
Um outro ponto a ser desmentido é a falsa acusação
de que a Igreja dificultava os meios para que os fiéis ti-
vessem acesso a Bíblia. Aqui podemos trabalhar em três
pontos históricos:
1 - São Jerônimo traduziu a Bíblia para o Latim, pois
era a língua mais popular da época como o Inglês é hoje
para toda a sociedade, a versão criada por ele se chama
(pois ainda existe e é usada) vulgata, tal termo em latim
designa algo como “comum”, demonstrando que aquela
tradução foi realizada para uma língua comum a todos
os povos da Época. E sempre incentivava que os fiéis
lessem a Bíblia. "Cristo é o poder de Deus e a sabedoria
de Deus, e quem ignora as Escrituras ignora o poder e a
sabedoria de Deus; Portanto ignorar as Escrituras Sagra-
das é ignorar a Cristo." Já nos diz São Jerônimo em um
de seus sermões.
2- São Cirilo juntamente com São Metódio criaram um
alfabeto para que os orientais tivessem sua leitura faci-
litada da Bíblia! O alfabeto que vemos em países do
leste europeu e Rússia, é chamado de Cirílico por causa
do santo, que o criou com esse propósito. Ele criou um
novo alfabeto eslavo e traduziu a Bíblia, o missal e ritu-
ais. Além da evangelização tal ato tem um valor cultural
incomensurável, pois já demonstra uma disposição da
Igreja em abraçar a cultura dos povos pagãos e cristia-
nizá-las na sua raiz. Começar nesse costume possibili-
tou que a Igreja permanecesse enraizando a sua possi-
bilidade de enxergar elementos fundamentais na litera-
tura pagã e incentivar que seus fiéis e estudantes co-
nhecessem, tal como podemos ver na Carta de São Basí-
lio Magno (Carta aos jovens sobre a importância da lite-
ratura pagã) e também neste trecho do Historiador
Christopher Dawnson:
"Estamos aptos a considerar a cultura medieval como
intolerante a tudo que esteja fora da tradição da cris-
tandade latina, mas isso é um grande equívoco, e não
podemos esquecer que as sagas do norte são criações
da cristandade medieval, tão significativas quanto as
canções de gesta. Aos padres e às escolas da Islândia
Cristã devemos a preservação da rica tradição da mito-
logia do norte, sua poesia e suas sagas." (DAWNSON,
Christopher. A criação do Ocidente - Religião e medie-
vo, pág. 136)
Esses grandes benefícios que os dois irmãos fizeram
aos eslavos são retribuídos com enorme popularidade.
Durante a vida eles tiveram de sofrer muito por causa
das inovações. Ambos nasceram em Tessalônica, filhos
de um empregado do imperador. Constantino, o mais
novo (827), completou os estudos em Constantinopla,
sob Fócio. Foi ordenado sacerdote e iniciou a carreira
de mestre. Miguel, no começo seguiu a carreira política.
Quando foi nomeado governador de uma província de-
sistiu para se fazer monge com o nome de Metódio.
Acusados de cisma e de heresia tiveram de vir a Roma,
onde o papa Adriano II os acolheu muito bem, conce-
dendo-lhes o privilégio de celebrar em língua eslava
diante dele mesmo e de grande comunidade cristã. Era
uma aprovação solene do método dos santos.
Cirilo morreu em Roma a 14 de fevereiro de 869 e foi
sepultado na igreja de são Clemente, perto do Coliseu.
Ele trouxera as relíquias de São Clemente a Roma. Metó-
dio foi nomeado arcebispo da Panônia, com sede em
Sírmio, voltou para os seus eslavos. Lutou com várias
dificuldades até a morte. Voltaram a atacá-lo por causa
do uso da língua eslava nos ritos religiosos. Por fim
usavam o eslavo, o grego e o latim. Morreu em seis de
abril de 885. Podemos ver que os santos não apenas
criaram esses métodos novos, mas também foram per-
seguidos por conta deles e lutaram até o fim para que
fossem implementado. Impossível acusar uma institui-
ção que cria um alfabeto do zero para facilitar a leitura
da bíblia arriscando a sua própria vida por isso.

3- A Bíblia não surgiu formulada como nós conhece-


mos hoje: dividida em versículos, com capítulos bem
definidos, a escrita realizada de forma universal inde-
pendentemente do idioma... A Bíblia foi formulada para
seguir um modelo de Códice (o que hoje nós chamamos
de livro) que foi criado no império romano mas pouco
difundido já que os escritos que circulavam em sua
maioria eram pergaminhos e de difícil manuseio.
Um outro ponto cultural que auxiliou a formação da
Bíblia foi o renascimento carolíngio. Na França haviam
duas dinastias: a merovíngia e a carolíngia. Durante
muitos anos os francos foram governados pelos mero-
víngios, porém, após a ascensão dos carolíngios eles
empreenderam uma grande reforma cultural. Através
da mudança na educação e na necessidade de escrever
as leis o imperador Beato Carlos Magno proporcionou
um desenvolvimento no âmbito cultural através de um
pesado incentivo financeiro e social a estudiosos e
monges para que estes desenvolvessem a minúscula ca-
rolíngia que consistia numa reformulação na escrita tal
qual a conhecemos hoje (diferenciação de maiúsculas e
minúsculas, parágrafos, pontuações, acentos; obvia-
mente cada uma dessas coisas variando conforme a
língua local mas unificadas pelo uso comum do latim),
vejamos o que nos diz Thomas Woods:
“Dizem os estudiosos modernos que passou a haver
‘insuperável graça e clareza, certamente decisivos para
a sobrevivência da literatura clássica, que pôde assim
plasmar-se numa forma que todos podiam ler com fa-
cilidade e prazer’ (Reynolds e Wilson, Scribers and
scholars: A guide to the transmission of greek and
latin Literatura, 3ªed, p.95). ‘Não haveria exagero – es-
creve Philipp Wolf – em relacionar essa inovação com a
invenção da própria imprensa, como dois passos deci-
sivos para o progresso de uma civilização baseado na
palavra escrita’. A minúscula carolíngia – desenvolvida
pelos monges – foi, pois, crucial para a difusão da cul-
tura na civilização”. (WOODS, Thomas; Como a Igreja
Católica Construiu a civilização Ocidental; p.20)
Os organizadores da bíblia foram os monges. Os
monges copistas levavam o ano inteiro para reproduzir
todos os livros da bíblia. A partir disso, dividiram-na em
versículos, capítulos, etc. A maior dificuldade vinha
exatamente daí. Por ser copiada a mão era caríssima e
poucas pessoas conseguiam ter acesso, afinal, não
existia a imprensa ainda. Segundo a regra de mercado
da oferta e demanda, quando temos um produto com
muita demanda mas pouca oferta a tendência é que
aquele produto encareça demasiadamente, pois então o
que podemos esperar de uma civilização cristã em que
a Bíblia tinha grande importância quando ela levava
anos para ser concluída em uma edição completa? Para
você ter noção: São Francisco doou um exemplar do
novo testamento a uma moça que passava fome, ela
vendeu e se sustentou por dois anos apenas com o di-
nheiro da venda! Portanto, existiam dificuldades para o
acesso a Bíblia e a Igreja até colocava uma bíblia a dis-
posição nas paróquias mas sempre com um certo nível
de segurança, pois era comum também o roubo de bí-
blias e a venda devido ao seu alto valor. Mas saibam que
nenhuma delas foi por imposição da Igreja, e sim por
circunstâncias da época, naquilo que foi possível a
Igreja possibilitou o acesso a escritura.

Podemos concluir de tudo o que vimos que a fundação


da Igreja não foi um mero acontecimento histórico em
que apenas vale a pena memorizar alguns acontecimen-
tos importantes, tal como fazemos na escola. Mas a
fundação da Igreja é dotada de um grande mistério: a
presença encarnada de Jesus Cristo ao longo da histó-
ria, com ela podemos ver que a cultura foi profunda-
mente mudada, os alicerces da civilização foram inteira-
mente renovados e até mudanças simples marcaram
historicamente um milênio inteiro de história. Homens
com suas falhas, outros dotados de heroísmo e grande
senso de responsabilidade e alguns inspirados por
Deus se uniram em torno de um mesmo ideal: criar uma
civilização onde Cristo fosse o Seu verdadeiro Rei e em
tal empreitada deixaram legados inimagináveis que até
hoje são usufruídos pela nossa pobre sociedade. Que a
história não morra e os exemplos do passado inspirem
os homens nos seus destinos e na esperança de cons-
truírem um futuro melhor e o mais importante: que a
nossa concepção de futuro melhor seja um em que
Cristo é rei de todos. Viva Cristo Rei!
Bibliografia:

WOODS, Thomas; Como a Igreja Católica Construiu a


civilização Ocidental
Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias
Orígenes de Alexandria, Dos Princípios
DAWNSON, Christopher. A criação do Ocidente
Carta de São Basílio Magno, Carta aos jovens sobre a
importância da literatura pagã
Jacopo de Varazze, Legenda Aurea
INTRODUÇÃO

Qual o propósito da razão humana? Este é um proble-


ma crucial se se deseja criticar o pensamento medieval
sem viés ideológico. Atualmente, não há critério para
responder ao problema, mas o sentimento geral dos
cientistas é que o propósito final da razão é se prestar
a dominar a Natureza e manipulá-la. Por isso os avanços
tecnológicos modernos são geralmente citados como
prova cabal da superioridade da civilização liberta da fé,
mas geralmente obscurecesse o fato de que os avanços
tecnológicos servem à centralização da força em uma
minoria.
Nunca antes houve tamanha diferença de poder como
um sujeito ter milhares de bombas atômicas e outro
sequer direito a porte de armas, este único exemplo
mostra cabalmente que o avanço tecnológico não pode
ser visto tão somente como uma conquista da humani-
dade, sendo em primeiro lugar uma conquista de uma
elite. Os próprios cientistas são também uma classe,
mas, ao contrário dos sacerdotes que tinham clara vo-
cação sacrificial, os cientistas são grandes devoradores
de verbas de estudos. Tais verbas acabam por constituir
seu modo de vida e, portanto, podem facilmente condi-
cionar suas pesquisas para a manutenção do mesmo
mais do que por amor à verdade1. Uma classe gradual-
mente acumula mais e mais poder bélico e domínio
sobre estruturas sociais, possibilitando tiranias cada
vez mais violentas, justificando tudo como a busca do
bem comum; outra classe, chamando para si uma auto-
ridade sacrossanta, define sua atividade como uma in-
vestigação que, concretamente, se dá por confronto de
hipóteses contraditórias. Em outras palavras, eles recla-
mam para si uma fé, um culto. Reclamam submissão.
Por outro lado, os medievais sabiam claramente que o
propósito da razão humana não poderia ser encontrado
por ela mesma. A razão pode maravilhar-se com a mul-
tiplicidade e riqueza da natureza, seja por suas qualida-
des produtivas (agricultura, caça, fenômenos naturais)
ou pela harmonia cósmica, e por isso os pagãos cultua-
ram tais possibilidades como os modernos cultuam a
tecnologia e a ciência teórica, mas dispersa na multipli-
cidade ela nunca saberá como pode realizar-se, como
pode atingir algo que lhe satisfaça. Mesmo os cristãos
mais simples perceberam este problema e por isso
tantos riram-se das filosofias pagãs e o assunto foi pro-
fundamente aprofundado desde os primeiros padres
até o medievo.
O que os cristãos sabiam tão simplesmente é que a
razão humana só podia realizar-se na contemplação de
algo que lhe fosse superior, assim como qualquer
objeto só pode realizar-se ao alcançar uma perfeição
superior. A realização de um mineral é alimentar uma
planta, que pode alimentar-se para manter uma espé-
cie, criar beleza com uma flor, gerar folhas que alimen-
tam animais, que por sua vez também servem a propa-
gação das espécies e, por fim, como alimento e compa-
nheiros dos humanos. O homem, por sua vez, tem um
corpo mineral que também serve a uma função de cres-
cimento, que por sua vez serve para fazer vivo sua sen-
sibilidade, que alimenta sua razão. E a razão, para que
serve? Para atingir o Logos, a Verdade, esta verdade que
encarnou para nos alcançar.
Esta encarnação da Verdade é a vitória triunfante do
cristianismo sobre todo paganismo, antigo e moderno.
Não é uma vitória imperial, como desejada pelos
judeus, mas uma vitória amorosa e redentora, pois o
Logos fazer-se carne significa que tudo aquilo que o
homem amou na multiplicidade agora encontra-se num
objeto único, que pode ser amado, louvado e imitado. O
próprio chamado à imitação é a boa-nova de que é che-
gado o tempo em que a realização da razão humana
pode finalmente ser satisfeita ainda em vida, pois a pró-
pria Verdade nos ordena “sede perfeitos”.
***
Profetas para todos os gostos

Para entender a relação entre razão e fé, seja entre os


escolásticos, nos primeiros cristãos ou hoje, será preci-
so primeiro entender em que estado está a própria
razão. Para isto, não é necessário apelar à Revelação
quanto a Queda do homem, pois a própria observação
basta: somos capazes de alcançar algumas verdades
pontuais e delas tirar conclusões superiores por abstra-
ção, mas somos fatalmente incapazes de chegar a uma
realidade última. Ou seja, descobrimos que há algo
como uma abóbora e que esta possui diversas qualida-
des e capacidades como notamos constantes na nature-
za, mas não podemos descobrir porque a abóbora
existe ou porque as “leis da natureza” são, afinal, cons-
tantes2. Este dado aparentemente trivial encerra um
questionamento essencial: por que existem as coisas
que a ciência meramente descreve? Por que existe algo
e não o nada?
Esse questionamento sempre esteve, em algum grau,
presente ao ser humano, e o fato dele não o alcançar
denuncia a vacuidade nos esforços de sua razão. No en-
tanto, a reflexão sobre a natureza em si não é vã. A na-
tureza é, afinal, Criação e um primeiro livro divino e
algo diz sobre seu Autor3. Assim, alguns homens de
boa vontade conseguiram se aproximar do conheci-
mento sobre o fundamento da realidade e fizeram es-
forços para expressar a experiência adquirida, incial-
mente em teogonias, mas estas foram reavaliadas e cri-
ticadas por uma tradição filosófica ao ponto de alguns
filósofos afirmarem o monoteísmo4.
No advento do Cristianismo, a filosofia já havia chega-
do a desenvolvimentos brilhantes e atestado a validade
dos esforços da razão, ainda que admitindo limites5.
Porém, cada degrau alcançado tornava-se simultanea-
mente motivo de glória ou de soberba, uma vez que a
descoberta das capacidades de argumentação poderia
provocar a ilusão de domínio da verdade mesmo
quando desacompanhada de seu fundamento: a vida
virtuosa.
A relação do cristianismo com a filosofia grega se ini-
ciará já com os debates entre São Paulo e os filósofos de
Atenas, onde o apóstolo mostrará a consistência de sua
fé, e será este santo apóstolo o primeiro a afirmar
serem os pagãos capazes de adquirir certos conheci-
mentos de Deus a partir do mundo exterior. Este exem-
plo foi seguido, por vezes, com motivações diferentes,
como justificar a existência da fé aos imperadores, utili-
zando da própria filosofia grega.
Porém, a relação não foi apenas retórica, pois muitos
pagãos chegaram ao cristianismo depois de uma longa
caminhada filosófica, estabelecendo uma relação muito
mais íntima com a filosofia. É o caso de São Justino (100
- † 165), que depois de repetidas desilusões com esco-
las filosóficas, finalmente encontrou paz no cristianis-
mo. Justino dirá que o cristianismo é a verdadeira filo-
sofia, mas os que não a conheceram não são culpados
pela ignorância. Em suas apologias ele nos diz que o
Verbo ilumina todo o homem que vem a este mundo e,
independente de ter sido judeu ou pagão, quem viveu
segundo o Verbo, viveu segundo o Cristo. A revelação
cristã é o ponto culminante onde o Verbo aparece por
completo e contém todas as verdades enunciadas pelos
pagãos. Este primeiro esforço de São Justino para con-
ciliar o reconhecimento de verdades ditas pelos pagãos
e reconhecíveis no ensinamento cristão mostra, para
além de quaisquer dúvidas, que o reconhecimento da
capacidade racional do homem já estava presente no
início do cristianismo, que faz parte de seus primeiros
ensinamentos e era louvado.
Não se trata de um caso à parte, como podemos ver
pelos escritos de Clemente de Alexandria (c. 150 - †
215) que dizia, em seu Estrômates, ter o Bom Pastor
mandado os filósofos gregos para preparar o povo para
a Revelação, guiando-os pela luz divina que é a razão.
Clemente elogiaria, principalmente Platão e Pitágoras, e
excluía Epicuro destes “profetas”6. A filosofia não é ne-
cessária para a salvação, Clemente deixará claro, mas
ela pode ajudar a aprofundar o nosso entendimento
sobre a doutrina do Cristo. O que Clemente compreen-
dia era algo muito óbvio: Cristo nos falou em linguagem
simples e humana uma doutrina perfeita, mas a convi-
vência com tal verdade mostra que nesta doutrina havia
muito mais riqueza do que parecia à primeira vista. Ora,
a forma humana de melhor compreender um discurso é
a filosofia, logo ela é naturalmente apropriada uma vez
que a fé esteja estabelecida.
Eusébio de Cesário (c. 265 – † 339) reconheceu que
Platão conhecia praticamente o mesmo Deus que
Moisés e São Basílio Magno (329 - † 379) até mesmo es-
creveria uma carta aos jovens para convencê-los a
imitar bons exemplos nos escritos pagãos!
Estes serão os exemplos mais emblemáticos, mas a
opinião dos cristãos quanto a filosofia não se resume a
apenas entendimento de que eram verdades parciais.
Em primeiro lugar, as verdades parciais vinham com
erros ou expressões provisórias que poderiam causar
confusões: imagine um pagão que pela obstinação na
busca da verdade acaba vislumbrando o dogma da trin-
dade, como ele além desta conquista heróica consegui-
ria já expressá-la perfeitamente? Este é apenas um
exemplo, os pagãos deixarão diversas pesquisas como
que no meio do caminho e os cristãos irão desenvolvê-
-las, criando o que conhecemos hoje como Patrística.
Mas esta também se compôs como refutação a outra
classe de intelectuais de enorme relevância para este
tema: os hereges.
A razão avalia a santa doutrina pregada pelos apósto-
los e escolhe aquilo que lhe apetece segundo os ensina-
mentos recebidos ou segundo as próprias elucubra-
ções: eis como nasce a heresia e eis porque ela é cha-
mada de “escolha”7. Estes hereges muitas vezes passa-
vam por filósofos, apesar de sua conduta mais indicar
uma tentativa de senhorio do que de amizade (filo) para
com a Sabedoria (sofia) e, por isso, muitos cristãos
terão receios das aplicações dos ditos “discursos racio-
nais” e da “filosofia” na doutrina. Estas aplicações trági-
cas criarão um certo trauma que reforçará o sentimento
de valor da própria simplicidade cristã, pois para que
arriscar com erudição quando Cristo falou em parábo-
las para salvar aos simples e não apenas aos doutos?
Este tipo de herege são falsos profetas, mas há uma
raça ainda pior, que não apenas tentará engolir o relato
evangélico em prol das próprias doutrinas, mas que o
fará para apaga-lo e usurpar seu lugar. Os gnósticos to-
mavam os símbolos cristãos, mas negando toda o mis-
tério de salvação do homem só admitiam o que convi-
nha para dar crédito a própria doutrina de salvação
através do conhecimento. São anti-profetas.
Estas heresias começavam até com algum direito, pois
se é o mesmo Deus que criou o mundo e mandou a Re-
velação, os dois não podem contradizer-se. Portanto,
alguns mais propensos à filosofia naturalmente levanta-
ram questões que ainda não haviam sido desenvolvi-
das8 à luz da fé, mas que já percorreram um grau de in-
vestigação avançado na filosofia. O indivíduo só se
torna propriamente herético quando as questões se re-
velam à luz da fé, mas ele continua obstinado numa
conclusão contrária e a ensina. Ou seja, a razão não
estava ameaçada por uma Igreja purista, mas escraviza-
da por vícios da vaidade.9
O que este cenário revela é, acima de tudo, que a
razão não é um poder suficiente, mas que precisa de
um ordenamento da vontade e da memória aliados à
razão ou, mais propriamente, ao intelecto. O que os
cristãos sabiam antes de tudo, e nisto estavam de
acordo com os melhores filósofos, é que a busca da ver-
dade deve coroar uma vida virtuosa, ordenada, humil-
de. Os cristãos foram inimigos da desordem, não da
razão. Podemos sintetizar esta trajetória em três
pontos:
1. A luz da fé revelada foi tão ofuscante que as peque-
nas conquistas da razão humana pareceram desprezí-
veis num primeiro plano.
2. Os cristãos mais simples tiveram horror às compli-
cações trazidas a uma fé tão simples que operava sua
salvação mesmo aos mais simples.
3. Os cristãos eram inimigos das teses que colocavam
o conhecimento como método de salvação, pois a Salva-
ção foi uma pessoa que desceu ao mundo e morreu por
nós. Eles sabiam que o conhecimento não salvava se
não era acompanhado pela sua encarnação em nós
mesmos nos ordenando ao Criador.
Esta visão do cristianismo criou os eremitas, os márti-
res e os primeiros mosteiros, foram esses elementos os
verdadeiros modelos de sabedoria: os primeiros porque
abandonaram tudo para amá-la e busca-la; os segundos
porque tanto discerniram o valor das verdades que
mantiveram-se fiéis a ela contra todos os inimigos; o
terceiro porque criaram uma verdadeira comunidade or-
denada tão somente para viver conforme a sabedoria.
Foi principalmente graças aos esforços destes últimos
que o conhecimento pagão pode sobreviver na cristan-
dade ao longo de todo o medievo.

A luz da Idade das Trevas

A História, porém, escapa aos domínios da razão. É


verdade que na chamada Alta Idade Média10 a formação
de intelectuais cristãos de grande valor diminuiu drasti-
camente, mas é preciso entender o papel que este perí-
odo desempenhou no enfrentamento dos problemas
contemporâneos se quisermos nos livrar definitivamen-
te do mito da “Idade das Trevas”. Ao fazer isto correta-
mente, ganharemos ainda outro valor: um posiciona-
mento mais adequado do valor do entendimento inte-
lectual.
A queda de Roma pelas invasões bárbaras e, posterior-
mente, as invasões vikings prejudicariam em muito a
organização intelectual da cristandade, ao menos se-
gundo os critérios que costumamos encarar como a
produção de intelectuais originais ou que dominam
uma vastidão de assuntos. Mas estes critérios foram re-
jeitados pela própria patrística, quando esta percebeu
que a filodoxia (o amor a opiniões) é uma ilusão entor-
pecente, é o ópio dos intelectuais. Se o maior perigo na
busca da verdade é o orgulho, o primeiro e maior crité-
rio para avaliar a “luminosidade” de uma época é a bata-
lha contra o orgulho, e nesta batalha a derrota para
forças mundanas como hordas bárbaras pode facilmen-
te se tornar um aliado.
A própria patrística, em grande parte, surgiu por dois
fatores: (1) intenção de tornar acessível a doutrina pagã
para povos que não participaram da experiência históri-
ca judaica; (2) responder e defender o povo de doutri-
nas heréticas. Ora, o caos político das invasões impossi-
bilitou que qualquer classe estivesse desocupada o sufi-
ciente para voltar-se à criação de doutrinas e, assim, o
perigo herético exigiu consideravelmente menos esfor-
ço. Por outro lado, o diálogo com o paganismo já não se
dava no círculo intelectualizado de Roma, Atenas ou
Alexandria, onde havia um ambiente que propiciava e
demandava a defesa do posicionamento por escrito, a
consequência disto é que as pregações cristãs para con-
versão dos povos bárbaros europeus foram eminente-
mente orais.
Assim, não apenas a vaidade intelectual morreu por
inanição, mas pela primeira vez na história nascia uma
civilização que se compreendia como um povo em com-
bate ao orgulho11. Esta consciência nascia dos mostei-
ros e linhas quase consangüíneas de santos; uma tradi-
ção viva, portanto. Atualmente, por estar mais acessí-
vel, as formulações patrísticas e as resoluções sinodais
da época parece-nos mais importantes, justamente por
isso é tragicamente fácil para nós aprendermos a dou-
trina sem conviver com modelos que a revelaram como
algo vivo e em ação, fértil12. O que é menos acessível
em nossa época era mais acessível naquela, seus impac-
tos eram mais sentidos: a memória da vida dos santos
ou a convivência com eles, os oásis de cristianismo “ra-
dical” nos mosteiros, era daí que brotava uma nova
ordem nos povos convertidos.
Após a desfragmentação do império, em meio ao caos
e a invasões, os cristãos buscaram atrair os povos para
a salvação e, ao invés de dar-lhes dogmas para memori-
zar, trataram primeiro de despertar neles o amor às vir-
tudes, prover um mínimo de cultura necessária para
que novamente pudesse haver paz e prosperidade,
salvar os escritos, educar no que era extremamente ne-
cessário para a fé. Apenas na medida em que voltava a
haver espaço e necessidade, as contribuições propria-
mente intelectuais foram retornando. Houvesse o cris-
tianismo perdido a visão no essencial e não haveria
criado tantos santos naquela época, não haveria deixa-
do para as futuras gerações uma Europa capaz de abri-
gar e gerar as universidades ou a escolástica e, portan-
to, nossa própria ciência moderna tampouco teria sido
capaz de existir. Em certas ocasiões, mais vale uma ma-
chadada de São Bonifácio do que uma suma teológica.
Quando vista pelo ângulo certo, portanto, a falta de
“produção intelectual” da época é, em verdade, uma vir-
tude: mostrou que a Igreja é fonte de sabedoria antes
de ser um corpo de idéias. Sabedoria não é uma virtude
mais elevada que a inteligência, pois sabe como a utili-
zar. Não é possível criar uma civilização benéfica para a
vida sem construir antes uma personalidade sã. Neste
sentido podemos sim falar de uma idade das trevas tra-
zida por hordas bárbaras para humilhar uma Roma or-
gulhosa, mas devemos ainda mais falar da luz que
triunfou sobre essas trevas numa nova Roma, mãe e
mestra, que preservou e renovou todas as coisas.

Um zênite estranho
Como sabemos, o zênite solar é o ponto que o sol está
perfeitamente acima de um observador ao ponto de não
projetar uma sombra. É assim que o século XIII, espe-
cialmente, ficou eternizado na memória de muitos cató-
São Bonifácio cortando o carvalho sagrado, de Bernhard Rode

A deusa Heresia, de Antonius Eisenhoit


licos, depois do qual o declínio se iniciaria. O “século de
ouro” merece o elogio, mas não podemos adotar a me-
táfora literalmente sem aceitar também seu daninho
pessimismo e, mais grave ainda, sem esquecer a pró-
pria trajetória que acompanhamos até aqui.
A adoção deste nome provém da influência benéfica
que a Igreja exercia sobre a civilização ocidental em di-
versos campos, mas especialmente na cultura pela pro-
dução filosófica nas universidades. A magnitude dos fi-
lósofos da época, especialmente Santo Tomás de
Aquino, foi tão grande que, comparando com a loucura
que seguiu, parece mesmo ofuscar todas as demais
eras da humanidade. O século XIII tornou-se uma espé-
cie de mito, um tempo para o qual os católicos desejam
retornar, e contentam-se melancolicamente com o fato
de que o sol teima em não voltar.
Para entender como chegamos ao século XIII, retome-
mos de onde paramos: a cristandade consegue final-
mente criar uma ordem fundamentalmente cristã, cris-
tianiza os vikings e estabelece as condições para o fo-
mento da cultura. Os monges copiaram, preservaram e
ensinaram a patrística através dos séculos, aos poucos
tentando reviver as artes liberais como praticadas na
antiguidade. Essa formação transbordará nas escolas
catedrais, formando uma classe cada vez mais educada.
A fonte pela qual a cultura intelectual jorrará tem, nas-
cendo dentro da própria Igreja, primariamente o inte-
resse na formação do homem para às virtudes, para a
santidade.
Isto significa que, por um lado, a escolástica estava
montada sobre ombros de gigantes13 e, por outro lado,
nasceu num berço eminentemente mais consciente da
necessidade da encarnação da sabedoria. Estas duas in-
fluências, na prática intelectual, mesclam-se numa hu-
mildade perante a autoridade, uma obediência ao
status quaestionis14, ou seja, o dever de primeiro co-
nhecer os mestres para depois contribuir numa discus-
são. Essas virtudes foram a responsáveis por manter o
debate num nível objetivo e construtivo, mas se ela des-
creve a média dos intelectuais do período, ainda é ver-
dade que houveram exceções historicamente relevan-
tes. Em outras palavras, houve sombra no zênite.
O vício em discussões, em elaborações lógicas sem
conhecimento suficiente do status quaestionis teve as
mais diversas consequências, como criação de here-
sias15, banimento das obras de Aristóteles em algumas
universidades, focos pontuais de banalização da ativi-
dade intelectual, enfim, ervas daninhas que poderiam
se encontrar em qualquer época, estando o solo rico o
suficiente. Estar ciente destes desvios é estar ciente do
perigo em entrar no clima de discussão escolástica sem
o prévio fortalecimento nas virtudes, na filosofia clássi-
ca e na Patrística, para não mencionar as obras de litera-
tura e retórica clássicas já ensinadas nas artes liberais.
Há ainda outro fator de dificuldade para que um ob-
servador moderno compreenda a atividade intelectual
do período: o clima de que havia uma amizade para
com a verdade que deveria ser buscada e mantida em
conjunto. Foi deste amor à sabedoria que nasceram as
universidades16, o que as torna mais importantes por
sua origem do que pelo que delas conhecemos hoje17.
A corrupção deste impulso foi um processo considera-
velmente simples, com o nascimento das universidades
a partir das escolas catedrais. Formada por alunos que
gravitavam mestres com os quais desejam aprender e
estavam dispostos a pagar por isso, a estrutura logo se
estabilizou a tal ponto que se tornou essencial na socie-
dade. A universidade se tornou uma produtora de pro-
fissões e meio de ascensão social, perdendo na mesma
medida o valor de produção de grandes intelectuais18.
Uma das maiores mudanças para o nascimento dessa
classe de burocracia intelectual foi a criação do diplo-
ma: os alunos passaram gradualmente a estudar para
ganharem um símbolo de conhecimento, e esqueceram
do compromisso com o próprio conhecimento. Não de-
moraria para que alunos se unissem em sindicatos estu-
dantis e trabalhassem para que a universidade deman-
dasse cada vez menos deles.
Todas estas sombras foram prenuncio do que seria os
tempos que se seguiriam e, pior ainda, do que será glo-
rificado nos livros de história. Nossos livros de história
vieram invertidos, a história da ascensão da razão des-
carnada e burocrática (separada do homem que efetiva-
mente conhece) será explicada como o surgimento de
um império da razão, e a atividade dos homens que lu-
tavam por uma verdadeira união com o conhecimento
será descrita como um “império de teologia”, uma
“época em que a fé dominava a razão”.
Dois fatos simples destroem este mito. O primeiro é
que nem todas as universidades possuíam o ensino de
teologia e apenas para essa disciplina se exigiam as
premissas de fé. Mesmo tais premissas eram discutidas
para que se pudesse avalia-las. Além disso, a filosofia
foi reconhecida, por filósofos como Sto. Tomás de
Aquino (um dos mais representativos da época), uma
disciplina independente por natureza. Isso não significa
que a filosofia pudesse avaliar a fé como quisesse, pois
o objeto do estudo possui regras intrínsecas. Seria
como querer estudar a planta poeticamente e chamar a
isso de biologia! Por outro lado, a fé no Criador dava
uma confiança extrema de que o mundo era inteligível
e com sentido, pois foi feito para o homem. Esta con-
fiança será a base para o desenvolvimento de todas as
ciências antes que estas se tornassem tão mecânicas
que poderiam ser desenvolvidas sem que o cientista
acreditasse ou não no que estava estudando. É o que
acontecerá na filosofia moderna, uma filosofia de gra-
dual desconfiança do homem em relação a sua capaci-
dade de conhecer o mundo, ironicamente cada vez mais
confiante em sua capacidade de mudá-lo.
O segundo fato é a naturalidade com que os filósofos
discutiam com pensadores de outras religiões, especial-
mente judias e árabes, mas obviamente também com a
literatura clássica greco-romana. Novamente, podemos
notar que, enquanto os medievais aceitavam discutir
metafísica com muçulmanos e judeus, a “era da razão”
que se seguiu é incapaz de fazer o mesmo com qual-
quer um dos três! Ao afirmar que todas as discussões
metafísicas eram apenas debates sobre fé, a moderni-
dade menospreza os filósofos justamente por eles
serem superiores: na falta de argumentação, o despre-
zo.
Mais impressionante que tudo isto, no entanto, foi a
capacidade dos diversos filósofos medievais (para não
comentar os místicos) organizarem o vasto campo de
conhecimentos da patrística, dos seus mestres, dos
pagãos, e organizá-los num novo gênero de literatura fi-
losófica: as sumas. As sumas são um argumento tão
fatal ao mito da “Idade das Trevas” quanto uma catedral
– e por motivos muito similares. Trata-se de uma hierar-
quização de conhecimentos onde cada questão é deba-
tida, todos os argumentos contrários conhecidos são
considerados. Na Suma Teológica de Santo Tomás de
Aquino o mesmo tratamento é aplicado a existência de
Deus logo no início de milhares de outras questões. En-
quanto isso, na Física Quântica, os próprios cientistas
confessam que não entendem do que estão falando ou
inventam bilhões de outros universos, os mesmos que
dirão que Deus é uma hipótese impossível de ser prova-
da. Da mesma forma as catedrais mostram-se ao obser-
vador como uma harmonia que nasce dos elementos
mais diversos, todos apontando para o céu.
Apesar de admiráveis, não são as obras medievais ou
o estilo escolástico que precisam ser ressuscitados,
pois todos os elementos que foram usados naquela
época podem projetar sombras. O zênite da Idade
média não consiste nos elementos externos que ela
produziu, reproduzível pela imitação do estilo ou da lin-
guagem da época, mas sim na capacidade íntima dos
homens em assimilar, organizar e hierarquizar os ele-
mentos de educação, ciência, filosofia, artes, etc., numa
formação do homem que os entrega a Deus. Este zênite
não é posse de época ou estilo algum, mas ele sim é
acessível e digno de imitação. O século XIII, ou melhor,
os homens do século XIII são fruto da sabedoria cristã
de séculos – e até milênios – para posicionar-se correta-
mente em resposta ao cenário encontrado. A escolásti-
ca não foi capaz de deter a deterioração intelectual que
surgiu na modernidade porque um sistema intelectual
não é capaz de agir historicamente, mas o homem que
busca a elevação e o estudo com ordem pode se tornar
capaz. Quando vemos o século por este ângulo, perce-
bemos a necessidade de, como os homens da época, re-
viver primeiro a Patrística, a vida virtuosa, a educação
básica. Quando vemos o zênite por este ângulo, ele nos
parece ainda mais luminoso, pois era vivo.

A vida continua
Em todo este capítulo estivemos a demonstrar que a
razão é uma bela faculdade humana, mas que ainda
mais luminoso e racional é a sabedoria como capacida-
de de saber o que é adequado nesta ou naquela situa-
ção. Sem esta sabedoria, a razão se corrompe, sucumbe
perante uma multiplicidade de informações que ela não
pode hierarquizar por si. Notamos que ao longo da his-
tória da Igreja, a razão foi mais do que um triunfo, uma
vaidade, mas sim um instrumento para resolver um pro-
blema específico: as heresias, a conversão dos gentios
e o caos político, continuar e explicar a multidão de co-
nhecimentos recebidos da tradição. Tudo isto nos
aponta para um critério mais adequado para julgar a ca-
pacidade racional de um povo, mas resta uma última
confrontação, uma prova de que a vida racional cristã
pôde contribuir ainda que numa época fragmentada
pela atividade solitária da razão.
A prova é uma quantidade inabarcável de cientistas
que foram homens de fé e até mesmo sacerdotes e
papas. Não citaremos os homens ilustres medievais
como São Silvestre II, Santo Alberto Magno, Jean Buri-
dan, Roger Bacon ou Nicolau Oresme, que contribuíram
para diversas áreas como ótica, mecânica, economia,
matemática, física, astronomia, etc., pois assim pode-
mos focar nas contribuições mais propriamente moder-
nas.
Jurista, líder militar, diplomata, economista e pai da
teoria heliocêntrica e sacerdote, Nicolau Copérnico
(1475-1543) escreveu suas teses sem encontrar qual-
quer resistência por parte da Igreja. Também o agosti-
niano Gregor Mendel, um nome muito mais conhecido,
se tornou pai da genética ao escrever sobre a transmis-
são de carácteres hereditários, um fato muito mais
comprovado do que a teoria da evolução. Entre os mais
notáveis também está o grande George Lemaître (1894
– 1966), pai da teoria do “Big Bang”, hoje utilizada como
uma explicação que dispensa o criacionismo. Johann
Dzierzon (1811 – 1906), polaco e sacerdote católico,
descobriu a partenogênese em abelhas além de outros
estudos na área, é reconhecido como o pai da apicultu-
ra moderna; o padre Andrew Gordon criou o primeiro
motor elétrico. O jesuíta Francesco Maria Grimaldi des-
cobriu a refração da luz; René Just Haüy é conhecido
como pai da cristalografia; São Roberto Bellarmino,
doutor da Igreja, um gênio que participou do debate a
no caso inquisitorial de Galileu Galilei (que, não pode-
mos esquecer, também foi católico e nunca deixou de
ser). Por fim, conhecido como pai da Aeronáutica e
grande contribuidor para um alfabeto da escrita cega, o
sacerdote jesuíta Francesco Lana de Terzi é mais um
exemplo das grandes contribuições católicas dentro da
ciência moderna.
São centenas e centenas de nomes cuja exposição
seria exaustiva. As contribuições contemplam todas as
diversas áreas das ciências naturais e humanas, com
contribuições mais profissionais ou feitas por amantes
interessados como o São Maximiliano Kolbe. Outra
forma de contribuição à ciência moderna é o próprio
Observatório do Vaticano, um dos institutos científicos
mais antigos do mundo (fundado em 1572) e a Pontifí-
cia Academia de Ciências (fundada em 1603) que
possui diversos membros não católicos. Vale notar que
dentre os membros da Pontifícia Academia vários rece-
beram prêmios Nobel, como Ernest Rutherford, Max
Planck, Niels Bohr, Werner Heisenberg e Erwin Schrödin-
ger.

Fides est Ratio


Se há algo que não podemos acreditar em todo este
debate é a divisão radical entre fé e razão, como se elas
fossem água e óleo ou, mesmo, como se elas fossem
duas atividades radicalmente diferentes ainda que con-
ciliáveis.
A razão nada mais é do que a capacidade do homem
de observar a realidade e dela extrair conhecimentos.
Para isto, o homem precisa crer que a natureza não irá
alterar randomicamente ou, ao menos, que essa altera-
ção randômica será em campos mais ou menos delimi-
tados. Antes que o homem possa criar uma teoria helio-
cêntrica, ele já tem algum tipo de fé que a natureza
possui leis, que o Sol irá nascer na manhã seguinte, que
ele acordará no mesmo mundo em que foi dormir, etc.
Não há nenhuma evidência além do hábito para supor-
tar tal tese, absolutamente nada pode provar para o
homem sequer que a memória que ele tem do Sol é ver-
dadeira. Por que? Porque a relação com a verdade é
como a relação com uma pessoa, ela exige uma partici-
pação para com o que é percebido como verdade, ela
rejeita a noção ser possuída. A consequência disto é
que, quando eliminada a pessoalidade na relação com o
mundo, quando os filósofos rejeitam a Deus, tornam-se
céticos por consequência natural de suas premissas.
A fé é o reconhecimento de que a relação com a reali-
dade é uma relação com o Logos, entregando-se con-
fiante a Ele. Esta relação de amizade entre o homem e
Deus que, podemos dizer, começou com Abraão se es-
tende até um ponto máximo na vinda do Cristo e na ex-
tensão dessa amizade pelo Espírito Santo aos membros
da Igreja. A razão entra novamente como uma espécie
de relação com este Logos, é a nossa atividade de tentar
compreender o que Ele fala ao falar “árvore” ou ao falar
“e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”,
assim como a compreensão de que esta última palavra
possui um valor maior por ser dita pela própria pessoa
encarnada em nossa linguagem humana.
Logo, a fé da Igreja não é algo oposto à razão, mas
uma atividade de confiança numa tradição passada pelo
magistério. Crer nessa tradição é similar ao ato do cien-
tista de aceitar uma vastidão inabarcável de estudos
científicos anteriores. Crer na Igreja ou numa teoria
científica é similar a crer que sua esposa não está enve-
nenando sua janta.
A atividade da razão é bem vista por Deus, é como dar
água para saciar a sede de conhecimento que é a nossa
sede de ter um relacionamento com a verdade. Assim, a
sede sempre retornará quando uma teoria deixar de
nos agradar ou encontramos algum erro nela, a água
que a Igreja nos dá, porém, é uma água viva para que
nunca mais tenhamos sede.
Notas

1. Atentar para isto é atentar que aquele professor de “extrema-


-humanas” ou de biologia que escracha a religião o faz justamente
devorado o dinheiro daqueles que debocha, seja por impostos ou
por vias particulares, servindo-se do espaço em parte aberto pela
mesma elite mencionada acima, em parte por eles mesmos. Sim, o
mesmo professor que descreve os sacerdotes católicos, ou mesmo
evangélicos, como gananciosos pelo dizimo dos fiéis.
2. Remetemos o leitor ao artigo de G. K. Chesterton ‘Miracles and
Modern Civilisation’ onde, com bastante humor, o Apóstolo do Para-
doxo faz uma crítica fatal ao racionalismo.
3. Esta exposição não é estranha à Igreja, como o autor pode con-
ferir na encíclica Fides et Ratio, pag. 31.
4. Novamente, remetemos o leitor a encíclica Fides et Ratio, pag.
52.
5. O pai da Filosofia, Sócrates, deixou um exemplo de humildade
no reconhecimento da própria ignorância: “só sei que nada sei”.
6. Para entender o porquê desta exclusão, sugerimos a leitura de
O Jardim das Aflições.
7. “Heresia” é o mesmo que “escolha” no grego, daí alguns ateus -
ressentidos porque as suas próprias idéias não podem ter o valor de
uma tradição milenar – acusarem a Igreja de intolerância. No enten-
der destes jovens, a verdade deve curvar-se segundo suas escolhas.
Um crismado deve compreender que a posse de uma verdade exige
um comprometimento especial para com ela, ou estará na mesma
categoria de debate que estes ateus.
8. Isto é, ainda não haviam extraído dos símbolos condensados da
Revelação o conteúdo específico de uma questão ou outra, não que
algo da fé tenha sido inventado posteriormente. Ex.: a relação da
Criação do mundo com teorias evolucionárias: antes de Darwin, era
muito pouco a quantidade de pessoas que se interessavam por um
assunto que não mudaria em nada as suas vidas (como a possibili-
dade de que um pássaro ganhe um bico diferente a cada 3 milhões
de anos), mas uma vez que este assunto é posto em questão e é
usado como ferramenta para negar uma verdade de fé, então a
Igreja responde à nova questão desenvolvendo o que antes já era
crido de forma condensada.
9. É importante salientar que o próprio Sócrates, pai da Filosofia,
morreu para ser testemunha da verdade contra estas mesmas vaida-
des, algumas das quais desmascarava em suas conversas públicas.
Portanto, a vaidade é, historicamente, inimiga da própria “razão”.
10. O período entre os séculos V e X.
11. Difere atualmente, por exemplo, do Brasil que se entende por
uma aspiração melancólica por enriquecer ou da aspiração america-
na pela liberdade.
12. Esta letra vivificada pelo Espírito é inconcebível para o católico
que não conviveu com santos (sequer por leituras) e vive num perío-
do pós Revolução Protestante, quando o espírito, pela sola scriptu-
ra, se tornou servo da letra.
13. Assim eles próprios se entendiam. A expressão nasceu na
Escola de Chartres; os gigantes eram os grandes profetas judaicos e
os apóstolos, mas vale também para poderia ser aplicável para os
Padres da Igreja e, mesmo, para os grandes filósofos.
14. O conceito significa o estado de discussão sobre uma questão,
os argumentos que foram utilizados até então e os resultados obti-
dos. No caso específico da teologia, significa o reconhecimento dos
Padres da Igreja como autoridades mais próximas da fonte da dou-
trina e o reconhecimento dos pronunciamentos de Roma.
15. Veremos sobre este problema em específico no capítulo sobre
Inquisição.
16. Antes de verbas públicas, bolsas, diplomas... estes recursos,
em verdade, apareceram com potencial alienante quando o impulso
inicial já havia cessado ou esfriava.
17. Pode não ser difícil para um brasileiro hoje imaginar isso atual-
mente, mas mesmo a universidade “ideal” moderna não seria capaz
de igualar o valor em qualidade de produção que existia na Idade
Média.
18. É similar a diferença entre, de um lado, um sapateiro capaz de
fazer sapatos de luxo e sapatos baratos, de outro lado, a indústria
que só é capaz de realizar sapatos medíocres em larga escala.

Bibliografia Indicada

GILSON, Etienne. A filosofia na idade média, trad. De Edu-


ardo Brandão, São Paulo: Martins, 2006.
HASKINS, Charles Homer. A ascensão das universidades.
Santa Catarina: Livraria Danúbio, 2015.
PAULO II, JOÃO.; ET RATIO, PAPA Carta Encíclica Fides.
Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo: Paulinas,
1993.
Coleção Patrística. Vários volumes. São Paulo: Paulus
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Ecclesiae,
2016. 2019.
BARTELLONI, Andrea; Agnoli, Francesco.; Cientistas de
Batina. Ecclesiae, 2018.
WALSH, James Joseph. The thirteenth: Greatest of centuries.
Library of Alexandria, 1970.
INTRODUÇÃO E MITOS

1.1 O que é Inquisição?

A depuração da linguagem é o primeiro passo para qual-


quer entendimento sobre um assunto, e condição prelimi-
nar indispensável num debate. Isto é, primeiro é preciso
você conhecer quais sentidos cada palavra comporta e
estar atento para possíveis confusões ou você simples-
mente não estará num debate, por mais que acredite estar
argumentando. Não se assuste, foi assim que nos ensina-
ram a ter pensamento crítico e exemplificarei isto justa-
mente com a palavra “inquisição”.
Quando você usa - ou escuta - a palavra “Inquisição”, a
que você está fazendo referência exatamente? Digamos,
na frase “a inquisição foi uma ferramenta desumana de
perseguição religiosa”, você consegue definir quem é o su-
jeito tão bem quanto em “João está doente”? Preste bem
atenção, dizer que consegue definir quem é o sujeito sig-
nifica olhar para uma multidão, reconhecer e apontar
quem é João. Naturalmente, para apontar para a “Inquisi-
ção” teríamos uma dificuldade natural que não temos com
o exemplo de João: não conhecemos este fenômeno ou
instituição pessoalmente, então devemos nos fiar nas ca-
racterísticas que nos disseram dela.
Ora, caso procurássemos na multidão de eventos medie-
vais, o primeiro problema que encontraríamos é que hou-
veram várias “inquisições”, instituições de defesa da fé,
com características específicas para seus territórios. O se-
gundo problema é que nenhuma delas eram entendidas
como “órgãos de perseguição religiosa”, pelo contrário,
todas possuíam jurisdição apenas sobre o corpo interno
da Igreja.
A palavra “Inquisição”, referindo-se a diversos processos
distintos perde o significado inerente como resposta a
cada um dos fenômenos regionais e adquire um significa-
do virtual, abstrativo. A abstração não é uma atividade ne-
gativa por si, mas ela nunca pode sobrepor-se ao real, sem
o qual torna-se uma prisão domiciliar para a razão. A de
depuração da linguagem é o habeas corpus. É fácil com-
preender isto quando observamos que a abstração é carac-
terizada pela exclusão de características de diversos entes
para “mescla-los” numa espécie reconhecível. Se a abstra-
ção for usada provisoriamente para retirar características
acidentais, superficiais, ela pode nos iluminar sobre um fe-
nômeno complexo. “A Inquisição” não é um destes casos,
pois foi ao retirar seu papel de defesa que conseguiram
criar a maior campanha de difamação da História: o mito
da perseguição sangrenta aos divergentes, da onipresença
tirânica do papado medieval e de padres sádicos sedentos
pelo sangue de velhinhas curandeiras.
Eis como se dá o truque: ao retirar as características regio-
nais, é possível escolher o que será definido como a moti-
vação da instituição; como todas as inquisições concor-
dam em ser opositoras a um pensamento contrário, defini-
rei a Inquisição como oposição ao pensamento contrário. É
literalmente como num truque mágico envolvendo um
rápido movimento de mãos. Depois, basta retornar a falar
como se não se tratasse mais de uma abstração, mas sim
de uma narração e explicação: a própria mentira tratará de
engolir o que não parecer coerente, todos os detalhes
serão guiados pela motivação falsa. Alguns mentirão mais,
outros mentiram menos (isto é, acrescentarão fatos ou ne-
garão verdades conhecidas), isto é apenas um detalhe es-
tratégico.
Caso não tenha ficado claro o suficiente, um último exem-
plo a este respeito: imagine que seu amigo tomou leite.
Para entender o porquê, você separa momentaneamente
algumas características e informações sobre o leite, sobre
seu amigo e as circunstâncias envolvidas; ao nível abstrato
e lógico, tem idêntico valor dizer que seu amigo bebeu
leite para dormir como dizer que ele bebeu por ser leite
um símbolo da supremacia branca. Se escolher este
último, basta escolher dentre as infinitas circunstâncias,
quais são relevantes para uma narrativa coerente.
Em segundo lugar, outro fator possibilita com que o mito
tenha alcançado tão grande poder sobre nossa imagina-
ção: falta completamente uma educação sobre a verdade
histórica. Pelo contrário, todos foram educados para não
entender a História: buscamos por sujeitos ilusórios como
nações ou instituições, quando os únicos com a capaci-
dade de ação na história são homens, tudo o mais são
“personificados” para facilitar a linguagem. Entenda, o co-
munismo não pode matar uma mosca, mas os comunistas
mataram milhões; a Democracia não pode ampliar os direi-
tos de ninguém, são pessoas que assumem deveres para
beneficiar a outras; por fim, o Brasil não poderia ser escra-
vocrata, mas sua população, sim, foi capaz de comprar mi-
lhões de escravos do mercado criado pelos muçulmanos.
Sem entender Inquisição como a soma dos diversos
homens e mulheres, nomeá-los o quanto possível e conhe-
ce-los melhor como pessoas, você nunca será capaz de
tratar do tema com seriedade com responsabilidade. Este
é o objetivo deste capítulo, a uma só vez desfazer a abstra-
ção maliciosa, utilizando-a corretamente, e enriquecer o
imaginário para permitir que a inteligência possa iluminar-
-se com esta brilhante passagem da vida da Igreja.

1.2 O que dizem que foi?


Por diversos fatores, difundiu-se toda uma mitologia
sobre a Inquisição, uma das preferidas na campanha uni-
versal de difamação da Igreja Católica. A narrativa inclui
perseguição às “bruxas”, judeus, ruivos, gatos, gays, ca-
nhotos, seitas inofensivas, etc. Além disso, parece óbvio,
pela narrativa, que a Igreja Católica era uma instituição
quimicamente dependente de poder, misógina, obscuran-
tista que teve de ser corrigida (ou ao menos restringida)
pela racionalidade do mundo moderno. Enfim, a Inquisição
projetava uma sombra de terror por toda a Europa.
Vejamos, brevemente, ponto por ponto desta narrativa.
Mito 1: Um espectro ronda a Europa, o espectro da In-
quisição
Um artigo da revista Mundo Estranho nos narra que “O
pânico era generalizado: todos eram suspeitos em poten-
cial.” Muito criativamente ainda acrescentam que os
padres chicoteavam os hereges durante a Missa; sugerem
que a Igreja inventou a morte na fogueira e confiscava os
bens para aumentar a fonte de renda1.
A autoridade das informações são dois historiadores ci-
tados a esmo. Fontes primarias2: 0 (zero)
Mito 2: Acho que vi uma bruxinha
Ainda a Mundo Estranho nos diz que “bastava a mulher
ser uma esquisitona para ser considerada uma bruxa”, que
nunca houve rituais estranhos, conexões com paganismos
ou demônios3.
Novamente, não há referências bibliográficas, mas é im-
portante ressaltar que este artigo faz uma observação im-
portante: a perseguição maciça às bruxas não foi um fenô-
meno propriamente medieval. Não obstante, o artigo repli-
ca o mito de que o famoso livro “Martelo das Bruxas” era
aceito pelos católicos. Na verdade, seus autores foram ex-
comungados e o livro foi proibido pela Igreja por alimentar
a superstição. Por fim, há diversas fontes primarias de tes-
temunhos e confissões de rituais pagãos e demoníacos,
geralmente colocados classificados como “invenção dos
inquisidores” ou “histeria”.
Mito 3: Fogueira de RGCS+, Ruivos, homossexuais, Ca-
nhotos e simpatizantes
A quantidade de “minorias” que dizem terem sido quei-
madas no período medieval cresce a cada dia, mas o fato
é sempre o mesmo: nunca há citação de fontes primárias
ou de trabalho sérios a respeito, no melhor dos casos você
verá uma referência a uma tese universitária ou a um livro.
Mais comumente o que escutamos é que a bisavó do su-
jeito levou umas palmadas da freira para aprender a não
escrever com a mão esquerda e, portanto, fica provado
que a Igreja sempre foi preconceituosa com os canhotos.
Todo católico que honre o óleo gasto em sua Crisma deve
desqualificar esta mentira imediatamente: apenas para
ilustrar, a Igreja venera um santo protetor dos canhotos,
São Tito.
Tanto em relação à perseguição aos canhotos quanto em
relação aos ruivos, o difamador sempre abusa daquela ig-
norância que é irmã siamesa da canalhice, isto é, justa-
mente por ignorarem completamente o assunto e apenas
estar repetindo um boato, querem se isentar da respon-
sabilidade da informação enquanto cobram do outro uma
prova de que ela é falsa. Infelizmente, a intimidação nor-
malmente cola e as pessoas esquecem que provar a falsi-
dade de uma mentira costuma ser muito mais trabalhosa,
quando não impossível.
Não reconhecer isso no debate é dar vantagem para o ad-
versário.
Com os homossexuais, a situação é mais complicada: a
Igreja sempre ensinou sobre a santa doutrina que condena
os pecados contra a castidades, mas o julgamento desta
prática por parte do tribunal do Santo Ofício foi extrema-
mente restrito às inquisições de Portugal e só podem ser
compreendidas num exame aprofundado que ainda não
foi amadurecido. As pesquisas são relativamente recentes
e, em sua maioria, conduzida com viés. Vale lembrar ainda
que a noção de se identificar com um gosto sexual seria
um anacronismo se aplicada a outras épocas, a conduta
sexual só se tornou movimento identitário depois de tone-
ladas de recursos financeiros e ideológicos. A Igreja con-
denou (moralmente e não criminalmente) uma conduta
para proteger sua liberdade; alguns fazem do elogio à con-
duta uma ferramenta de manipulação.
Mito 4: Polícia do Pensamento
Segundo este mito, Roma seria uma seita gigante que uti-
liza da manipulação psicológica e reprime toda liberdade
de expressão divergente. Este poderoso império da propa-
ganda teria dominado toda a Europa, escravizando mental-
mente pobres lavradores, comerciantes, nobres e clérigos.
Assim é o entendimento de boa parte da população acerca
da perseguição aos hereges em nível intelectual, porém,
talvez este seja um dos exemplos mais claros da máxima
atribuída a Lenin “acuse-os do que você faz, chame-os do
que você é”.
Em verdade, em contraposição aos períodos de persegui-
ção pagã e moderna, o período medieval foi justamente
um período de liberdade onde finalmente as pessoas
podiam ser verdadeiramente cristãs sem medo de um mar-
tírio sangrento (chegando ao ponto que muitos queriam
viajar para conseguir um martírio!). As ferramentas de ma-
nipulação psicológica em massa ainda não haviam sido in-
ventadas4 e sequer havia facilidade em viajar pelas estra-
das para que houvesse a mínima vigilância centralizada
que alardeiam: como o papa controlaria um aldeão há 100
km de distância sem internet, rádio, telefone, organização
de espionagem, sem tecnologia bélica consideravelmente
superior e podendo demorar semanas ou até meses para
um emissário chegar?
Mais ainda, a Inquisição nunca perseguiu não-católicos,
sendo um tribunal interno da Igreja. Sendo assim, qual-
quer condenação de “excomunhão” não pode ser mera-
mente entendida como matéria jurídica, punição ou “per-
seguição, senão como juízo de fato. Ou seja, se o indiví-
duo não comunga das regras de uma religião, ela não está
em comunhão com os fiéis desta religião. O que causa
grande alvoroço, na verdade, é que, após o julgamento in-
quisitorial, o condenado seria “abandonado” à Justiça Civil
que possuía suas leis próprias, e onde a Igreja não podia
intervir senão como suplicante por seus fiéis ou sugerindo
o perdão para com os incrédulos.
Com esta introdução, podemos compreender melhor o
que um grande medievalista como Ricardo da Costa nos
diz:
” A jurisdição inquisitorial abrangia sim o Judaísmo pra-
ticado por conversos (ou seja, oficialmente católicos), o
protestantismo e demais doutrinas consideradas heréti-
cas (como o averroísmo), além da feitiçaria, da astrologia,
a leitura de livros proibidos – a censura é tão antiga
quanto a escrita (e acompanhou o Catolicismo ao longo
de sua história) –, a bigamia, a pederastia, práticas sexu-
ais dos sacerdotes e desacatos contra o próprio Tribu-
nal.”5
Quanto à censura de livros, convido o leitor novamente a
um simples exercício imaginativo: você guardaria cente-
nas de livros desgastados e com pornografia dentro de sua
casa, ao alcance das crianças? Pois bem, por que, então, os
monges não poderiam queimar aquilo que seu diretor de
confiança dizia ser prejudicial às suas almas? Considere
ainda que o “Habitat natural” dos livros eram os mosteiros,
com o clero, não porque estes controlavam, mas porque o
copiavam e os guardaram por séculos! No melhor dos
casos, podemos considerar se o Index Librorum Prohibito-
rum foi a melhor estratégia para aquele período, mas cer-
tamente não é humilde posicionar-se sobre uma estratégia
em circunstâncias que sequer conhecemos ou julgar os
responsáveis por um conhecimento que só foi adquirido
depois.
Não confundamos “censura” como vivenciada atualmente
- em plataformas de redes sociais, inquéritos abusivos e
em ditaduras comunistas – com a disciplina religiosa. São
fenômenos completamente diferentes que, quase por
acaso, possuem o mesmo nome.
É evidente que um mito desses nunca deveria, sem
grande vergonha, enganar qualquer criança acima de 8
anos, mas a insistência com que é repetido por pessoas
supostamente formadas para o ensino de história só
indica que vivemos numa espécie de “Idade das Trevas”.
Assim, uma professora de História revisando um texto
sobre inquisição deixa passar que “no longo período em
que durou a Inquisição, fazer as próprias escolhas era uma
atitude extremamente perigosa. Caso essas escolhas re-
presentassem uma ameaça ao poder da Igreja, a pessoa
poderia ser perseguida, processada, torturada e condena-
da, inclusive, à morte.”6 O próprio texto definindo o fim
da Inquisição no século XIX teria de explicar-se sobre
como tantos judeus, protestantes e livres-pensadores pu-
deram sobreviver a tão grande perigo. Vejam bem, século
XIX é após a Revolução Francesa, quando os iluministas
bradavam “O homem só será livre quando o último rei for
enforcado nas tripas do último padre” para logo após de-
capitarem religiosos em fila indiana.
Deixarei uma coletânea das mentiras presentes no texto,
que dão uma boa idéia do que tanto repetem:
“embora muitos dos “crimes” que levavam as pessoas à
pena de morte ainda hoje motivem preconceitos raciais e
discriminações religiosas.”
“O combate ao judaísmo na Península Ibérica foi tão
cruel que se pode compará-lo à perseguição promovida
pelo nazismo no século XX. Essa política racista promo-
veu um massacre tanto em Portugal quanto na Espanha, e
não poupou nem os judeus convertidos ao catolicismo,
os chamados “cristãos-novos””.7
“Dogmas são as chamadas “verdades reveladas” e pro-
nunciadas pela Igreja. Eles preservam em si a verdade da
fé. A existência de Deus, por exemplo, é um dogma. Du-
vidar da Sua existência, portanto, uma heresia.”8
“nem o batismo foi suficiente para limpar o pecado de
origem. Só entre os anos de 1481 e 1488, mais de 700
“cristãos-novos” foram condenados à fogueira na Espa-
nha. O mesmo destino tiveram muitos muçulmanos re-
cém-convertidos ao catolicismo.”9
“Uma leve suspeita ou um boato já era suficiente para
que um oficial da Inquisição, acompanhado por agentes,
fosse deslocado à casa do suspeito para detê-lo.”10
“Mas, no caso da pessoa não se mostrar disposta a se
reconciliar com a Igreja, existia a tortura. Essa prática foi
oficialmente autorizada na Itália em 1252 e logo se espa-
lhou por toda a Europa.”
“Acredita em amarrações? Já escreveu no nome da
pessoa amada três vezes na sola do pé esquerdo? Tem o
hábito de deixar uma porção de sal grosso na entrada de
casa para espantar a inveja e o mau olhado? Então cuida-
do. É melhor nem entrar na nossa máquina do tempo.
Você pode ser acusado de feitiçaria.”11’12
Basta, se ainda resta paciência no leitor, pode conferir
outras barbaridades no endereço citado.
Este capítulo foi uma purificação preliminar, apenas para
retirar a massa fétida que trasborda das difamações, para
compreender o período histórico realmente precisaremos
estudar o seu contexto.

O MUNDO DA INQUISIÇÃO

2.1 O que era religião?


A primeira coisa que devemos entender é o que significa-
va, para aquela época, a religião, a Igreja e a própria socie-
dade13. E a primeira diferença é que, nesta época, religião,
Igreja e sociedade não eram coisas tão diferentes.
Atualmente, há uma ilusão de que a sociedade não é de-
terminada por uma religião, ela deveria ser “plural”, “tole-
rante a todas as religiões” e o destino do país não deveria
ser influenciado pela religião. Mas isto é apenas uma
ilusão custosa para se manter. Cedo ou tarde, o homem
lembra-se de Deus, converte-se e ilumina um pouco ao seu
redor; Deus suscita grandes tochas e os fiéis (e não só
apenas cristãos) percebem que tanto foram temerosos em
posicionar-se segundo seus valores, que outras pessoas se
posicionaram com valores até mesmo contrários. De re-
pente, a sociedade percebe que é de sua própria natureza
guiar-se pela religião, embora as autoridades consigam re-
primir isto por algum tempo.
É importante que isto seja entendido: todas as civiliza-
ções da História foram religiosas, mesmo quando eram re-
ligiões falsas, religiões em crise ou quando um grupo con-
seguia distorcê-la para seus interesses14.
A cristandade medieval não caiu nessa lorota. Houveram
hipócritas, mundanos e inimigos, mas a identidade
sempre foi a comunhão na Igreja Romana. Porém, é preci-
so ainda afirmar que a identidade não era um partido, um
clube ao qual se associavam: não era um gosto que esco-
lhia uma religião, mas uma religião que julgava os gostos,
permitindo ainda ampla variedade. Essas pessoas vivencia-
vam milagres, eram agraciadas com visitas de santos e
santas que as fazia lembrar de uma lei e uma ordem para
além da existência temporal.
“Estas crises mundiais são crises de santos” São Josema-
ria, Caminho, 301
É simplesmente impossível entender o que era a vida
nessa época sem buscar e amar o tesouro invisível que
elas batalhavam para manter no coração. O intelecto aban-
donado, sob o desgoverno de um coração inconstante e
sem virtudes, não a alcança.
A medievalista Regine Pernoud, em Idade Média: o que
não te contaram, tenta nos dá um sabor através de uma
comparação conveniente:
“A Inquisição da Idade Média foi a reação de defesa de
uma sociedade para a qual, com razão ou sem ela, a pre-
servação da fé parecia tão importante como a da saúde
física para a atualidade”
Se esta era a mentalidade, quem eram as pessoas “perse-
guidas” pela terrível inquisição? A narrativa difamatória
nos sugere que uma Igreja centralizada oprimia a popula-
ção inocente, sem explicar como a população, sem acesso
a formação em matéria religiosa senão pelos padres e pre-
gadores, poderia criar idéias novas e convincentes para
ameaçarem a soberania ou sequer chamar a atenção. A
discussão e formulação de doutrinas contrárias encontra-
va ninho justamente a aqueles que juravam obediência, e
sua disseminação na sociedade era fruto da eloquência e
autoridade que o padre recebia da Igreja. O grande terror
da Idade Média não era da Inquisição, mas do poder de um
padre herege carregar multidões para o inferno. Natural-
mente, dentro das seitas já estruturadas, poderia surgir
uma liderança leiga.
Era a salvação das almas que estava em risco, de todas as
almas, por isto era dada as seguintes instruções para os
inquisidores:

"Esforçai-vos por levar os hereges a se converterem,


mostrai-vos cheios de mansidão diante daqueles que ma-
nifestam a intenção de fazê-lo. Não procedei a nenhuma
condenação sem provas claramente estabelecidas. Melhor
é deixar um crime impune do que condenar um inocente"
(A Inquisição em seu Mundo, Gonzaga, pag. 127)

2.2 A ameaça gnóstica


Jean de Salisburg “o melhor remédio contra essa doença é
ligar-se firmemente à Fé, não prestar ouvidos a essas mentiras
e jamais dar atenção a tão lamentáveis loucuras” (Pernoud,
Idade Média: O que não nos ensinaram)

O item anterior é a base para compreender a estrutura do


processo como um todo, agora é preciso começar a entrar
no campo mais factual. Ou seja, compreendemos que
devem haver leis, mas se não conhecermos os criminosos
e os efeitos de suas ações, qualquer castigo a eles parece-
rá perseguição. Este item, portanto, tem a função de rela-
tar extensamente sobre quem eram os hereges e o que
faziam, começando pelos que temos menos informações.
Tanquelmo foi um leigo que se passava por filho de Deus
e chegou a casar-se com uma imagem de Nossa Senhora.
Com esta soberba, criticava todo o clero e a validade dos
sacramentos e do ministério da Igreja. Foi preso por pouco
tempo entre 1113 e 1114. Sua seita foi combatida por São
Norberto, que conteve a dispersão das ovelhas na cidade
de Antwerp.
Os Luciferianos pregavam que Lúcifer foi punido injusta-
mente e entregavam-se a devassidões. Chegavam mesmo
a anúnciar o retorno do Diabo aos céus! O violento confes-
sor de Santa Isabel da Hungria foi o responsável pela re-
pressão desta heresia que espalhava a luxúria e o caos no
reino.
Eudo de Stella, bretão, dizia-se juiz dos mortos. A Igreja,
no sínodo de Reims (1148) entendeu que ele era louco e
foi internado num mosteiro.
Pedro de Bruys foi classificado por Pedro, o Venerável,
como um dos hereges mais perigosos. Sacerdote suspen-
so, ele era o líder dos pedrobrusianos, que cresceram no
sul da França. Por volta de 1118 começou a pregar: negou
o batismo de crianças, veneração de imagens, orações e
esmolas pelos defuntos, e desprezou até mesmo a Santa
Missa! Em 1119 foi logo advertido por Roma, mais de uma
vez, mas sua soberba apenas inflou. Não satisfeito com
pregações violentas, Pedro se tornou ainda mais agressivo
em suas palavras e ações, defendendo a destruição de
igrejas e o fim da veneração à Cruz. Numa Sexta Feira
santa, na cidade de Santo Giles, ele mesmo fez uma fo-
gueira para queimar todas as cruzes que encontrasse, mas
a população, cansada dele, jogou o próprio herege nela.
Sua heresia continuou através do monge apóstata de
Cluny, Henrique, este tanto pregou contra sacerdotes que
seus adeptos se tornaram violentos e foram expulsos da
cidade de Mans para não apedrejarem os padres. Algumas
de suas doutrinas incluíam a livre interpretação da Bíblia
como regra única da fé, mas também condenava toda a li-
turgia, os sacramentos e mesmo a oração pelos mortos,
doutrinas já familiares atualmente, apesar da sua óbvia in-
consistência: se a livre interpretação é dogma, nenhum
outro dogma ou negação de dogma pode se seguir – o fiel
deve ser necessariamente largado a própria sorte -, mas
isto não traz capital político algum para o pregador. Henri-
que foi duramente combatido por São Bernardo de Clara-
val, que conseguiu converter muitos dos hereges através
de milagres e pregações. Foi condenado ao cárcere em
1148 e morreu pouco depois.
Geraldo Segarelli de Parma, depois de ter sua admissão
negada à Ordem Franciscana desejou, ainda assim, pregar
sua doutrina. Dois papas (Honório IV e Nicolau IV) o proibi-
ram de pregar em nome da Igreja, mas Geraldo continuou.
Sua conduta tornou-se tão provocativa que chegou mesmo
a ser condenado à fogueira. Surgiu então Fra Dulcino, para
dar seguimento à seita, Os Irmãos Apostólicos, mas ainda
mais agressivo: chamava a Igreja de Roma de prostituta
babilônica e liderava uma horda de latrocidas. Suas provo-
cações encontraram resposta irada de cruzados, em 1307.
Mais uma vez, não se trata apenas de opiniões, mas de cri-
minosos que qualquer fiel, de qualquer religião, chamaria
de altamente perigosos.
Almarico de Bena, com uma doutrina similar à de Joa-
quim de Fiore, pregava o fim da Era de Cristo e o Início da
Era do Espírito Santo, onde a Lei da Igreja era abolida. Pre-
gavam para si uma liberdade desenfreada das paixões –
vejam, abolia a moral! Alguns chefes foram encarcerados,
outros foram à fogueira, depois de muito desobedecer às
proibições para pregar.
Outro grupo, chefiado por Arnaldo, da Bréscia, exigia
que a Igreja renunciasse ao direito de possuir bens assim
como ao poder civil sobre a cidade. Nunca foi acusado de
heresia, mas suas idéias geraram um movimento rebelde e
violento em Roma e por isso foi condenado e enforcado.
Sua demagogia ganhou eficácia, muito provavelmente,
pois direcionou a tristeza do povo católico, que assistia o
papado ser disputado em intrigas políticos, transforman-
do-a em ira contra o que era de direito da Igreja como um
todo. A insatisfação de um povo torna-o modelável para
pessoas que vendem a própria humildade, crendo-se capa-
zes de julgar como deveria ser o mundo. Poder-se-ia argu-
mentar a seu favor que agiu por mágoa e ignorância, mas
dever-se-ia adicionar a esta equação o orgulho e suas con-
sequências trágicas.
Outros que promoviam a maior luxuria e caos moral na
sociedade do século XIII foram os Irmãos e Irmãs do Livre
Espírito que pregavam já estarem salvos e, portanto, pode-
riam viver sem preocupar-se com castidade. Mesmo su-
pondo que restringissem sua lógica à matéria de castida-
de, é fácil supor como a população, em especial pais e
mães de moças, se sentiam quanto ao perigo de pregações
deste tipo em suas vilas e cidades.
Estas heresias não significavam, como pode ser constata-
do, mero perigo a uma “soberania espiritual” da Igreja.
Eram perigosas para toda a ordem social, ameaçavam a
instituição do matrimônio, a família e professavam deso-
bediência às autoridades, quando não escárnio e mesmo
violência. Houveram outras heresias menores15 no período
medieval, mas concentremo-nos agora nas mais sérias.

“Bandos inteiros de ladrões roubavam e incendiavam


igrejas e mosteiros, violavam as mulheres, desprezavam
os sacramentos e calcavam aos pés as hóstias consagra-
das.” (CHI, pag. 210)

Assim, Frei Dagoberto Romag nos descreve os albigen-


ses em seu Compêndio de História da Igreja. Os albigenses
receberam este nome por ter sede na cidade de Albi, na
França, mas também são chamados de cátaros, ou seja,
“puros”. Apesar do nome em homenagem à cidade, não
eram um fenômeno essencialmente novo.

“Os catáros foram, comparativamente, uma categoria de


hereges muito diferentes. Os maniqueus, o que funda-
mentalmente eram os catáros, eram vistos tanto por
pagãos quanto por cristãos como inimigos da raça
humana. Mesmo antes do advento do cristianismo, o ma-
niqueísmo fora tratado como uma ofensa capital pelo di-
reito romano16” Cristopher Dawson
Existiram duas seitas principais durante o período me-
dieval17:
Os paulicianos professavam um dualismo absoluto, onde
Jeová era mau, ele criou o corpo, e Cristo era bom, sendo
criador da alma. Não comiam carne, criam na metempsico-
se e possuíam uma hierarquia similar à Igreja, mas apenas
a elite tinha uma moral rígida.
A outra seita, os bogomilos, entendiam que o princípio
mau era Satanás, mas confundiam-no com Jeová. Dawson
explica “[O catarismo] Via o Deus dos católicos como uma
força do mal e a própria Igreja como criação de Satanás”.
De forma geral, eles não reconheciam outras autorida-
des, mesmo civis, isto porque negavam toda e qualquer
bondade nas coisas materiais, condenavam tudo que esti-
vesse ligado à carne, mesmo alimentos. Mas como uma
doutrina tão repugnante conseguiu tornar-se atrativa e
convencido milhares e dezenas de milhares?
Assim como o marxismo, não é incomum ensinamentos
repugnantes espalharam-se e dominarem corações, não se
tratando, portanto, de mera particularidade medieval.
Basta procurar sobre a proliferação de seitas no século XX,
como a de Rajneesh. Muitas chegavam a convencer que re-
lacionamentos carnais, até com crianças, eram praticas de
amor queridas por Deus. Também o marxismo sempre
pregou as maiores podridões imagináveis, realizou-as e
ainda não conseguem criminaliza-lo como apologia ao
crime. Um dos fatores para este poder hipnotizante,
apenas para ilustrar, é o convencimento de que o adepto
da doutrina está justificado apenas por participar dela,
mesmo sua vida continuando um pântano de vermes e
cobras.
Outro fator é a crítica, estas seitas costumam treinar
todos os demônios em nossas almas como se desejassem
transformá-los numa legião romana. O método não difere
muito: é preciso atacar a tudo, ferozmente; é preciso con-
vencer as pessoas, pelos sentimentos e não pela razão, de
que o mundo é mau, que a sociedade é má, que as institui-
ções são ruins, que a Igreja é um jogo de interesses, o
clero está corrompido, etc. Este método que nos é familiar
(de fato, nosso respeitável método de ensino) também foi
o método dos cátaros: criticaram a Igreja a não mais
poder, expunham os defeitos dos sacerdotes para que a
população perdesse a fé. E então, sequestravam sua fé.
Isto era ainda mais agravado, pois havia setores no clero
que estavam verdadeiramente relaxados, enquanto os cá-
taros pareciam representar uma vida de austeridade.
O religioso treinado já entende bem que a austeridade
física sem austeridade espiritual apenas potencializa o
pecado: os cátaros acreditavam estar livre de vícios, justa-
mente quando caíam no pior vício, a soberba. Mas com
pregações fracas por religiosos relapsos, o rebanho aban-
donado logo seria arrebato por qualquer cheiro de pasto.
A heresia cresceu rápido, mas a grande massa não vivia
a chamada “pureza”, senão o seu completo inverso. Mas-
turbação, libertinagem, abortos, suicídio18 ... tudo era jus-
tificado ou redimido no ensinamento direcionado às
massas. Parece contraditório com a doutrina? Acontece
que, se o mundo é mau, o pecador é apenas uma vítima19
e matar um bebê antes dele nascer até seria caridade... De
fato, não é de assustar que essa seita tenha sido duramen-
te condenada.
Havia ainda um ritual que tornava isso tudo possível: o
consolamentum, onde todos os pecados eram perdoados,
mas não se podia mais pecar depois dele. Resultado: os
fiéis caiam de abismo em abismo, até cansarem da vida e
pediam este sacramento. Depois: não se poluíam com
mais nada de material e morriam num lento suicídio de
abstinência total.
Atualmente, já se sabe que mais pessoas morreram pelo
suicídio cátaro do que pelas fogueiras.
Não é necessária muita imaginação para perceber que as
obras, para quem vive nesta doutrina, não significam ab-
solutamente nada, sejam boas... ou más. Isto significa
dizer que toda atrocidade movida pelo ódio a materialida-
de também não significa nada e nada mais impede o fiel
de atacar os símbolos da fé de toda a população: igrejas,
imagens ou pessoas. Para ilustrar a impiedade deste povo,
podemos acrescentar ainda a seguinte citação de Santo
Afonso de Ligório:
“Eles tinham as vidas mais horrivelmente imorais. Lucas
Tudensis nos amedronta contanto o que se escutava da-
queles que abandonavam a seita e retornavam à Igreja Ca-
tólica. Assassinato, traições, roubo e usura eram bem
comuns entre eles, mas suas impurezas eram das mais ter-
ríveis descrições; [...] os velhos eram blasfemos e cruéis;
os novos estavam dispostos a qualquer malvadeza; as
crianças, nascidas da depravação generalizada, não conhe-
ciam qual era o seu pai, eram corrompidas desde a infân-
cia; e os infantes bebiam dos erros mais terríveis no pró-
prio leite materno; as mulheres, sem vergonha ou modés-
tia, iam pela vizinhança fazendo os outros serem tão más
quanto elas mesmas” (Sto. Afonso de Ligório, a história
das heresias e suas refutações)

Outra seita que se mostrou perigosa foi a fundada por


Pedro Valdo e por isso recebeu o nome de “valdenses”.
Pedro era um comerciante desonesto que, depois de uma
experiência sentimentalista, abandonou suas riquezas e
começou uma vida de penitência. Seu exemplo o fez ser
seguidos por muitos, mas suas pregações eram arrogan-
tes e, por isso, o Papa Lúcio III quis lhe conceder apenas o
direto de pregar a penitência e o arrependimento. O Santo
Padre quis, assim, reconhecer o seu mérito de exemplo de
conversão, mas a conversão sentimental nem sempre é
fiel, pois os próprios sentimentos do homem são fracos
contra vícios do espírito. Pedro redobrou seu orgulho e
não reconheceu a ordem do papa: sua vaidade de prega-
dor e sua vaidade em achar-se um “homem bom” eram
maiores do que o interesse em salvar almas. Foi excomun-
gado em 1184, no Sínodo de Verona.
Pedro passou a atacar a ortodoxia ainda mais agressiva-
mente: negou a hierarquia da Igreja (fundou a sua própria
hierarquia), condenou os sacramentos, o sacerdócio, a
pena de morte e o serviço militar, bem como o trabalho
manual – ele vivia, confortavelmente, do suor de seus
adeptos. Para sustentar seu movimento, organizou-o em
milícias armadas, capazes de enfrentar autoridades civis e
eclesiásticas. Com alguns conflitos, a seita conseguiu
manter-se até ser absorvida pelas igrejas protestantes20.
Retomaremos outros movimentos heréticos ao longo de
nosso estudo, por hora bastam estes. Tendo estudado o
crime, agora é hora de estudar profundamente a tradição
jurídica - mas não a tradição escrita propriamente dita.

2.3 Paganismo inerente


“A Igreja defendia os hereges da população”
(PERNOUD)

Quando um católico se apaixona pela história medieval,


pelos seus exemplos de virtudes heroicas e pela vida dos
santos deste período, seu primeiro erro é acreditar esta foi
uma Era de Ouro, onde as instituições chegaram ao cume
da maturidade espiritual e que eram fruto exclusivo de
uma interpretação da doutrina. Com isto, ele exagera a
percepção de que o cristianismo era o centro mesmo da-
quela sociedade e pode até mesmo escandalizar-se ao de-
parar-se com algo contraditório com a doutrina cristã nas
práticas do povo, crendo que se tratam de algo como “do-
enças”.
Ao contrário, o desenvolvimento da cristandade tem real-
mente similaridades com os percalços de uma vida
humana, sujeito a fraquezas, mas é muito mais profundo
que isto: se a cristandade é como um homem convertido,
ela possui uma multiplicidade de camadas que não se con-
vertem junto com o centro de sua alma; este centro deve
lutar contra hábitos e crenças superficiais que ele precisou
esquecer para converter-se, mas retornam para assombrá-
-lo depois, discretamente. Trata-se de uma realidade
óbvia, o homem nunca está “completo” em vida, sempre
encontra percalços externos e internos para resolver.
Seria, pois, loucura pedir de instituições o que os homens
que as formam não são capazes de realizar.
Assim, a cristandade desabrochou num mundo pagão, e
esse desabrochar precisou resistir por séculos a espinhos
e transeuntes, a hereges e invasões bárbaras, para só
depois ter uma paz relativa que possibilitaria rever a he-
rança pagã das camadas mais superficiais. O direito é uma
destas camadas.
O direito medieval foi uma herança do Direito Romano e
dos códigos bárbaros e, portanto, trazia consigo elemen-
tos pagãos. No entanto, ele era mais do que leis mumifica-
das, mas representavam a própria experiência de mundo
herdada por estes povos, isto é, ainda havia camadas da
vida humana no medievo que não haviam sido reavaliadas
à luz da nova fé ou que haviam sido apenas parcialmente.
Estas camadas disfarçavam-se e sobreviviam vestindo-se
dos signos da fé.
Ainda, dizer isto da cristandade como um todo é alta-
mente problemático, devemos manter em mente que a in-
fluência da Igreja era limitada e muitas vezes precisou de
décadas ou séculos de pregação para que a população ou
a aristocracia renunciasse ao que foi herdado.

Em suma, o papel da Igreja era preservar a fé e educar a


população, mas o ordenamento civil desta população é es-
colhido por ela mesma e não pela Igreja. A autoridade ecle-
sial tinha limites para preservar que seu ensinamento não
se confundisse com o governo mundano e secular.
Mas que visão de mundo era esta que sobrevivera por sé-
culos? Para compreendermos precisamos ter em mente
que os pagãos possuíam apenas duas coisas para alcançar
a Deus (duas coisas intrinsecamente limitadas): a lei do co-
ração e o mundo em torno deles. Porém, a lei do coração
não é um objeto estável e comunicável senão para aqueles
interessados nela e, assim, o mundo em torno, por ser
uma experiência comum para todos e manter certa estabi-
lidade por séculos e até milênios, tornou-se o principal
símbolo da ordem divina. Estas civilizações buscavam seu
símbolo de ordem no cosmos e, portanto, eram cosmoló-
gicas.
Ainda que novos desenvolvimentos enriquecessem esta
premissa básica, ela deu origem a certas penas legais que
chamamos pelo nome genérico de ordálios. Os ordálios
eram uma forma de julgar a pessoa pelos poderes cósmi-
cos: o acusado era submetido ao poder do fogo, de um rio
poderoso ou um símbolo qualquer, pois assim ele estaria
entregue ao deus que regia aquele elemento.
Este mecanismo permitia aplacar a fúria de grupos rivais
dentro da sociedade, que poderiam sentir-se prejudicados
pelo viés de um juiz, era uma forma de não colocar sobre
uma pessoa a aplicação de uma pena, atraindo sobre ela
um desejo de vingança – mesmo hoje nos equilibramos
numa tênue neutralidade da justiça para prevenir explo-
sões e barbáries dentro da sociedade, mas estamos mais
iludidos crendo que vivemos numa sociedade invejavel-
mente mais civilizada em comparação com outras eras.
Naturalmente que esta estrutura não permaneceu inaba-
lável depois da conversão dos povos, mas sua alteração
não foi automática, mas gradual. Assim como os pagãos
entendiam o mundo como comunicação dos deuses, os
cristãos entendiam o mundo como um logos divino, e por
isso a primeira alteração foi apenas nominal e as provas
por fogo ou água continuaram sob o nome de Deus. João
Bernardino Gonzaga nos dá uma boa síntese deste proces-
so em seu livro A Inquisição em seu mundo:

“ Antes, quando no Direito leigo havia os ordálios, com


suas provas do fogo, da água, etc., tudo se simplificava,
porque as dúvidas eram postas nas mãos de Deus.
Quando porém esse expediente foi abandonado, porque
supersticioso, criou-se um vácuo para o juiz que devia
abrir o íntimo dos acusados renitentes. O Direito comum
recorreu então à tortura, e o mesmo fez depois a Inquisi-
ção.” (A Inquisição em seu mundo)

O abandono dos ordálios e da tortura, pela crescente su-


avização, foram obras da influência da Igreja e não foi um
processo fácil, considerando que a população não agia de
má fé, mas por medo das consequências trágicas que os
criminosos, hereges ou não, poderiam provocar ou que já
provocavam.
Um exemplo disto é o acontecido em Soissons, na França
em 1114:
"Então, nós fomos ao Concílio de Beauvais para consul-
tar os bispos sobre o que deveria ser feito. Mas, neste ín-
terim, o povo fiel, temendo fraqueza por parte do clero,
assaltou a prisão, arrebatou os prisioneiros, colocou-os
na fogueira, do lado de fora da cidade, e reduziu-os a
cinzas." PETERS, Edward. Heresy and Authority in Medie-
val Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1980. p. 74.

Este acontecimento é um símbolo perfeito da difícil


tensão que a Igreja precisava conciliar: o julgamento equi-
librado e a descoberta do método correto de solucionar
um problema são processos vagarosos, mas o problema
atinge o povo imediatamente e este sente urgência em
proteger-se. Muito antes da Inquisição ser criada, a Igreja
tentou diversas formas de remediar o problema: enviando
pregadores experientes, para leva-los à conversão; e até
mesmo com cruzadas para crises que se tornavam violen-
tas. Por fim, estabilizou-se o processo da Inquisição: a
Igreja seria responsável para que nenhuma acusação de
heresia fosse injusta e para que o problema teológico ti-
vesse um fim teológico, a salvação das almas, mas chegan-
do a uma conclusão, o processo seria movido para o poder
civil. Assim, a Igreja resolvia outro problema: heresia era
um crime no direito civil, mas as instituições civis não pos-
suíam a tecnologia para distinguir erros e mal-entendidos
de heresia.21
A grande medievalista Regine Pernoud ainda nos atenta
sobre esta transferência que estudaremos mais a fundo no
próximo item:

2.4 O braço secular


O papa reconhecia oficialmente os direitos do poder
temporal na perseguição às heresias. (PERNOUD)
Sem os dois itens precedentes, talvez parecesse absurda
esta afirmação de Pernoud, mas já podemos observar que
“heresia” não era um crime isolado, sem ameaças para a
sociedade, como também podemos compreender melhor
que, assim como os pagãos moldavam sua sociedade con-
forme as leis cósmicas, também os líderes cristãos busca-
vam defender a sociedade conforme a lei divina. No entan-
to, a História humana nunca obedece a simples princípios
e generalidades abstratas e toda instituição estava sujeita
às mesmas vaidades que todo indivíduo está submetido.
É preciso que isto esteja bastante claro para o leitor: toda
instituição pode ser usada contra até mesmo os princípios
que a fundaram. E isto aconteceu com a Inquisição.
Já vimos que a Inquisição tem como precedentes o envio
de pregadores, com o objetivo de converter àqueles que
estavam em erro, articuladamente com o objetivo de suavi-
zar o poder civil-temporal. É neste sentido que o grande
medievalista brasileiro Ricardo da Costa observa:

“A separação entre as jurisdições, como a ocorrida nos


países que receberam tribunais eclesiásticos, foi funda-
mental para a limitação do poder dos julgadores. A exis-
tência de várias instâncias judiciais – das coroas, das cida-
des, dos senhores locais, das corporações de ofício e da
Igreja – deram origem a uma característica fundamental
dos sistemas de Justiça dos países ocidentais: o pluralismo
jurídico.
A eficácia da divisão entre o poder inquisitório e a autori-
dade civil pode ser comprovada pelo número de anátemas
proferidos pela Inquisição, em especial se comparado às
dezenas de milhares de executados por heresia nos países
protestantes, no quais o Tribunal jamais atuou.”
Por isto, para ele, a fundação da Inquisição foi claramen-
te um avanço, pois retirava dos leigos a jurisdição sobre
assuntos religiosos. No entanto, há outro fator que conti-
nuou fazendo do poder temporal um problema e até
mesmo uma ameaça: a “ortodoxia” como ferramenta de
poder. Este, será o assunto deste item.
Nenhum rei conseguiria se opor ao catolicismo desde
fora, pois era o próprio ar que respiravam, mas isto não os
impedia de se apropriar das estruturas cristãs para os pró-
prios interesses. Sabemos, pois, que uma das maiores difi-
culdades na Igreja no período medieval foi o domínio que
o poder temporal conseguiu exercer sobre bispos, padres
e até papas. Como ele os faziam? Ameaças22, subornos (si-
monia), eloquência. Conquistado essa eloquência, o rei
poderia forçar a autoridade do bispo ao seu favor.23
Por este meio, o aparelho inquisitorial ainda poderia cair
nas mãos dos reis. E muitos farão uso disto, pois era um
excelente recurso para parecer melhor do que eram, ou,
como Dawson aponta cirurgicamente:

“Frederico II... encobriu a própria ortodoxia duvidosa


com o zelo pelo qual perseguia os hereges e a crueldade
de sua legislação anti-herética.” (DAWSON)

Este é, em verdade, um erro tentador para qualquer fiel e


podemos tomar como exemplo mesmo a Paulo de Tarso a
perseguir cristãos em nome de sua fé judaica, outros
exemplos uma pessoa atenta pode achar olhando ao redor
ou até para si mesmo.24 Dado a universalidade desta ten-
tação, não se trata de algo exclusivo das autoridades tem-
porais – e alguns inquisidores certamente cederam a ela -,
mas esses, do poder secular, tinham ainda outro motivo: a
consolidação do poder, e para isso o usaram mesmo
contra a crentes fiéis que acontecia de estarem em seu ca-
minho.

“O aparelhamento de legislação contra as heresias foi


usado contra a Igreja pelo próprio poder temporal: Acusa-
ções contra Bonifácio VIII, Bernard Saisset, contra os tem-
plários, Guichard de Troyes, etc. Felipe, o Belo, usou
muito desta ferramenta.” (PERNOUD)
Nestes casos, o príncipe naturalmente não se preocupava
com as regras para se bem conduzir uma investigação ou
inquirição, ou seja, uma inquisição. Apoiando-se em seu
poder militar ou nos bispos dominados ele poderia distor-
cer o processo para que seu objetivo fosse alcançado e
não o que a religião exigia. Isto explica casos como os cita-
dos acima ou mesmo ao famosos caso de Santa Joana
D’arc, perseguida por motivos temporais com pretextos
supostamente religiosos. É essencial que isto seja compre-
endido, visto que os caluniadores da Igreja – por repetição
ignorante ou por malícia – atribuem a ela o erro de seus
inimigos, muitas vezes ao mesmo tempo até que repetem
“deturparam Marx”.25
Assim, não é de se espantar que os reis não tivessem mi-
sericórdia no uso de meios como tortura, mas isto vai
ainda mais longe:

“Sempre com influência do poder temporal, a tortura


seria autorizada” (PERNOUD)

No entanto, não podemos cair no erro de ver a Igreja


apenas como vítima do processo: seu esforço para tentar
dar justiça ao processo foi muitas vezes reconhecido, seus
princípios eram claros e presentes nos conselhos aos in-
quisidores. Ao contrário do poder civil, seu princípio era a
salvação da alma investigada, mesmo quando considerada
“culpada”:

“Nos tribunais do Santo Ofício, a situação apresentava-


-se totalmente outra. O que o juiz almejava não era punir,
mas converter e salvar. Seu lema era extraído do profeta
Ezequiel (33, 11): Eu juro por minha vida, diz o Senhor
Deus: que eu não quero a morte do ímpio, mas sim que o
ímpio se converta do seu caminho, e viva.” (A Inquisição
em seu Mundo)

Sim, a tortura acabou sendo introduzida no processo,


mas a Igreja sabia muito bem que ela não um método con-
fiável e tentou suaviza-la o máximo possível:

“A ordem dos Pontífices era para que o seu emprego se


desse com prudência, sem excessos e uma única vez.
"Que isso se faça sem crueldade! Nós não somos carras-
cos", é o clamor que encontramos no Manual dos Inquisi-
dores de Eymerich-Pena. Em 1311, o papa Clemente V de-
terminou ainda que a tortura somente podia ser aplicada
após acordo entre o inquisidor e o bispo. As confissões
no seu curso prestadas deviam ser confirmadas em sub-
seqüente interrogatório, feito após pelo menos vinte e
quatro horas de intervalo.” (A Inquisição em seu Mundo)
Naturalmente, os inquisidores mais maldosos e inade-
quados para o cargo logo acharam uma forma de burlar o
mandamento da Mãe: fizeram diferentes sessões de tortu-
ra sob o pretexto de que era a continuação da tortura ante-
rior e não outra tortura. Estes casos, porém, foram exce-
ções.
Quanto às penas, a benevolência da Igreja foi ainda mais
patente. Considerando que a condenação não era o seu
desejo, sempre buscou penas menores para alcançar a re-
denção do sujeito:

“em vez de o livrar ao braço secular e a uma morte que


suprimia toda esperança de conversão, preferiam aplicar
penitências canônicas e penalidades temporárias, que
permitiam ao culpado corrigir-se.” (A Inquisição em seu
Mundo)
Por fim, podemos perceber o reconhecimento da miseri-
córdia da Igreja por parte da população numa cena mesmo
cômica:

“A Igreja reivindicou sempre a sua autoridade exclusiva


para conhecer de acusações envolvendo clérigos, tanto
nos crimes religiosos como nos comuns. Referem os his-
toriadores que muitos bandidos, por isso, se faziam ton-
surar, a fim de escaparem da Justiça laica, muito mais
severa, e passarem à alçada da religiosa, de maior bran-
dura.” (A Inquisição em seu Mundo)
Ainda assim, em casos extremos, o que era uma rarida-
de, a pena máxima: excomunhão. No momento que se re-
conhece que o sujeito não pertence a Igreja, então ela já
não pode ajuda-lo a enfrentar a justiça civil.
Munidos com estas introduções, o leitor terá mais clare-
za em reconhecer o “carácter” dos personagens históricos
envolvidos.
Histórico
“Até 1231, os heréticos não viviam de modo algum na
clandestinidade. Ao contrário, eram convidados para de-
bates, como o fez o próprio Domingos de Gusmão” (PER-
NOUD)
Esta frase de Pernoud talvez ainda possa assustar o
leitor, mas de fato foi assim. Perseguição a hereges nunca
foi normal na Igreja, nunca se tratou de uma espécie de
dogma que a fé católica deveria dominar militarmente ou
qualquer imperialismo do tipo. Seu objetivo nunca foi um
império mundial, mas a salvação das ovelhas desgarradas;
seu exemplo é o do pastor que abandona as 99 ovelhas
para cuidar da que fugiu. No entanto, desta vez não se tra-
tava de algumas ovelhas em erro, pulando pelo monte,
mas de inimigos violentos, organizados, que tentavam pôr
a perder reis, rainhas, regiões inteiras, até mesmo parasi-
tando sua própria estrutura.
Mas esta foi a Igreja que brotou do sangue de mártires!
Converteu Roma pelo sangue – pelo próprio sangue, assim
como nasceu. Naturalmente, portanto, ela não mudou de
posição ao ver-se no poder e um “grupo rival” ganhar
alguma notoriedade, mas tomou a mesma atitude que
sempre tomou ao longo dos séculos: enviar pregadores,
com o risco de tornarem-se mártires. Como exemplo
destes pregadores temos São Bernardo de Claraval
(†1153) e São Domingos de Gusmão († 1221) que conse-
guiram, pela força da palavra e de milagres, recuperar al-
gumas almas. Que eventos então foram capazes de mudar
uma atitude tão consolidada? Para compreender, é preciso
manter em mente tudo o que foi comentado até aqui e re-
visar os dois séculos que precederam a fundação da Inqui-
sição.
A importação de doutrinas gnósticas do oriente já susci-
tava heresias e preocupava muitas autoridades pela cris-
tandade, quando, em 1022, o próprio confessor da rainha
Constança tentou seduzi-la para suas idéias (o que incluía
abstenção de relações sexuais). Seu esposo, o rei franco
Roberto, o Piedoso († 1031), sendo advertido a respeito do
problema, inquiriu hereges acusados. Todos confessaram
participar do “culto” herege e foram condenados à foguei-
ra pelo Rei Roberto, que provavelmente sentia-se ofendido
triplamente como esposo, chefe de estado e cristão. Diz a
lenda que os hereges permaneceram confiantes perante à
fogueira crendo que, segundo a lógica dos ordálios, eles
não seriam atingidos pelo fogo como prova de sua inocên-
cia e da superioridade de sua fé. No entanto, todos acaba-
ram se tornando cinzas. Se a lenda for verdadeira, trata-se
de um argumento poderoso dado aos cristãos pelos here-
ges, pois é uma aceitação do modo de julgamento e uma
comprovação de que Deus não via com bons olhos tal fé.
A hierarquia da Igreja não participou da tomada de deci-
são neste e em muitos julgamentos do tipo. Já vimos, in-
clusive, o caso em que a população decidiu executar os he-
reges enquanto os bispos refletiam qual o melhor caminho
a tomar.
O poder civil, assim, manteria essa postura reativa até
1165, quando Raimundo V, como nos diz Regine Pernoud,
inaugurou, por assim dizer, a idéia de combater militar-
mente os heréticos. Raimundo era conde de Toulouse, pro-
víncia vizinha de Albi, onde a heresia cátara era poderosa,
e a princípio participou das tentativas de diálogo, envian-
do a própria esposa, em 1165, para um debate entre o
bispo, membros do clero da corte, e os heréticos. Estes,
porém, desrespeitaram o bispo, maldisseram o Antigo
Testamento e recusaram-se a célula das relações socias da
época: o juramento. A recusa de juramento implicava, não
uma falta de submissão, mas a recusa a qualquer relação
de confiança e amizade, em suma, os hereges excluíam-se
das relações sociais e impediam qualquer tentativa de
acordo.
Apesar de tudo, Raimundo não movimentou nenhuma
campanha militar, mas solicitou assistência cisterciense
para combater a heresia em seus domínios.
No entanto, a tensão subia nestas regiões, pois apenas
as pregações não estavam dando conta. Alguns governan-
tes e bispos, por iniciativa própria, chegaram a condenar à
pena capital alguns hereges, mas esta prática não possuía
sanção oficial da Igreja e grande líderes da ortodoxia na
época eram contrários, como o próprio São Bernardo. Até
que em 1184, o Sínodo de Verona buscou soluções mais
abrangentes. Primeiro, condenou diversas heresias como
arnoldistas, cátaros, humiliati, josephini, valdenses, etc.,
assim ele delimitou o que, afinal, a Igreja condenava para
que as autoridades seculares - que assistiam ao sínodo -
não perseguissem sob o nome de heresia simples inimigos
políticos do rei. O Papa Lúcio III, que o presidiu, também
publicou a bula Ad abolendam: o papel de cada autoridade
estava demarcado, os bispos vigiariam seu povo, cuidaria
de pregações e tentariam consertar o erro; por fim, se
todo esforço não resolvesse, a igreja entregaria o herege
às autoridades.
Esta evolução natural na jurisdição, porém, sofreria um
abalo terrível que, enfim, criaria o contexto para as cruza-
das. Um legado pontifício de Inocêncio III, Pierre de Castel-
nau, seria assassinado por um suspeito de favorecer os al-
bigenses e o papa responderia este assassinato convocan-
do uma cruzada, a cruzada albigense (1209-1229): uma
resposta natural para o assassinato de um representante
oficial de um poder instituído é, e sempre foi, a guerra –
tanto mais em um clima de extrema tensão. Sob o estímu-
lo da indulgência plenária, distintivo de uma cruzada, os
senhores do Norte da França abraçaram a convocação e
pegaram em armas, mas os soldados não tinham as boas
intenções do papa e se excederam no combate: houve
saques e atrocidades.
Ainda no meio da cruzada, Inocêncio tomaria algumas
medidas para refrear a perseguição. Primeiro, ele suspen-
deu a pena de morte (por lasae majestatis) que pesava
pelo crime de heresia e decretou o exílio e o confisco de
bens. Isto se deu no IV Concílio de Latrão, em 1215. Em
1220 foi Frederico II que agiu criando o Confoederatio
cum principibus ecclesiasticis, um tribunal que não ficou
ileso de manobras políticas dos próprios inimigos internos
da Igreja. O tratado em si foi uma manobra política nociva
para a Igreja, ele consistiu em dar poder secular para os
bispos em troca de uma confusão entre poder secular e
poder espiritual que beneficiava os reis. Agora, dentro dos
territórios de Frederico, as sentenças de excomunhão ge-
ravam, automaticamente, sentenças que incriminavam o
sujeito no poder civil. O mesmo Frederico II, que seria ex-
comungado três vezes ao longo de sua vida, decretaria a
pena de fogueira contra hereges relapsos.
A cruzada, por fim, fracassou e a Inquisição iria nascer. O
papa Gregório IX, insatisfeito com a tomada do processo
inquisitorial pelos poderes seculares, desde sua eleição a
papa em 1227 tomou atitudes graduais26. Primeiro, au-
mentou os poderes do inquisidor Konrad von Marburg;
apenas após 6 anos acompanhando os resultados, Gregó-
rio fundaria a Inquisição com a bula Licet ad capiendos, em
20 de Abril de 1233. Seus inquisidores seriam escolhidos
dentro das ordens mais humildes da época: os francisca-
nos e os dominicanos. A escolha não foi arbitrária, Gregó-
rio IX soube diferenciar hereges de movimentos cristão
sinceros e chegou mesmo a ser amigo pessoal de São
Francisco de Assis, canonizando-o ainda em seu papado.
Ainda, o que Gregório IX percebeu é que estas ordens
mendicantes eram a cura mandada por Deus às heresias
que se mostravam pobres no exterior, mas ricas de orgu-
lho por dentro. De quebra, a santa pobreza também era
uma resposta e um substituto para a inquisição liderada
por bispos corrompidos pelo poder secular e os prazeres
do mundo.
Ainda assim, houveram excessos, exemplificados princi-
palmente pelos dois primeiros inquisidores, o dominicano
Roberto Le Brouge († 1239) e o próprio premonstratense
Konrad von Marburg († 1233). Como avalia Christopher
Dawson, estes inquisidores mereceram condenação... e a
tiveram. Roberto foi condenado à prisão perpétua depois
de protestos de arcebispos e Konrad meteu-se num confli-
to político, acusando o conde de Sayn de participar de
orgias satânicas, sendo assassinado em represália. Vere-
mos que, apesar destas exceções, entre os inquisidores te-
remos bons e sinceros homens como Bernardo Gui – aliás,
muito mais representativo da conduta dos inquisidores.
Este escreveria um manual para orientar a inquirição, um
esforço sério, ainda que imperfeito.
Em 1252 foi decretada a bula Ad extirpanda, por Inocên-
cio IV, autorizando a tortura – procedimento condenado
pelo Papa Nicolau I em 866.

***
Ainda que já tenha sido explicado que a Inquisição era
uma instituição interna e não se aplicava a outras religi-
ões, é conveniente mencionar brevemente a relação com
os judeus por parte da hierarquia da Igreja e por parte dos
leigos. Estes, muitas vezes mereceram condenação por
suas atitudes, culpando em massa a judeus injustamente –
ainda que histórias escritas posteriormente por judeus
mostrassem que eles chegavam a extremos de blasfêmias
a Cristo e à Virgem –, mas essa perseguição nunca ou rara-
mente foi apoiada pela Igreja. Pelo contrário, nas crises
que explodiam onde a massa de leigos cristãos perseguia
judeus, estes buscavam justamente o asilo na Igreja. O
clero representava segurança para os judeus. Tal posição
por diversas vezes foi declarada oficial, mas algumas bulas
especificas são representativas de como a Igreja buscou
preservar a integridade destes irmãos. São elas: a bula
Orat mater ecclesia, em 1291, que protegia os judeus de
opressões; a bula Quamvis Perfidiam, em 1348, contra o
rumor que Judeus contaminavam as águas (durante a
peste negra); e as duas bulas de Eugênio IV contra os su-
persticiosos libelos de sangue contra judeus.

Inquisição: ingredientes e modo de preparo


Passamos, por fim, por todo o assunto fundamental para
entender o nascimento da Inquisição. Agora, resta aproxi-
mar nossos olhos para entender como a inquisição funcio-
nava internamente. Qual era o procedimento padrão de
um Inquisidor? Quais suas dificuldades e estratégias para
chegar a uma sentença justa? Para fins didáticos, faremos
um comentário a bela síntese do processo escrita em “A In-
quisição em seu mundo”.
Instalado o tribunal, este era como um rito religioso de
carácter sóbrio. Não deveria haver pompas ou um séquito
dispensável. O inquisidor era acompanhado de guardas,
um escrivão, alguns assistentes e seu conselheiro espiritu-
al, pois sua missão não era ordinária e a retidão de sua
alma precisava estar afinada para o processo: o conselhei-
ro espiritual tem a missão de, observando de fora e orando
pelo dom do Conselho, aplainar a ira e orgulho e afastar os
sentimentos e desejos periféricos. Quais os desejos perifé-
ricos para um inquisidor? Qualquer um que não seja o cui-
dado com as almas – as outras, e a dele. O escrivão teve
uma função muito importante de registrar minunciosa-
mente as investigações, fornecendo não apenas ricas
fontes para nossa época como um registro para autorida-
des vigiarem inquisidores exagerados.
“Quando ele se instalava em certa cidade, o primeiro ato
consistia em apregoar a sua presença e reunir os fiéis,
exortando-os a, sob juramento, se comprometerem a in-
dicar os hereges e as pessoas suspeitas que conheces-
sem. Passava-se depois ao "Tempo de Graça", geralmente
com quinze a trinta dias de duração, em que os culpados
dispunham da possibilidade de se purificarem. Cabia-
-lhes, para tanto, procurar seus confessores a fim de re-
ceberem a absolvição dos pecados, e ao inquisidor
deviam fornecer garantias de sinceridade, consistentes
em cumprir penitências, dar à Igreja uma parte ou, con-
forme a gravidade do caso, a totalidade dos seus bens e
identificar os hereges de que tivessem notícia.”
Em todos estes casos, a igreja não estava interessada em
“hereges privados” que apenas soltaram uma idéia repenti-
na numa conversa particular ou em pensamento, mas
mesmos estes poderiam ir confessar-se com um religioso
sábio para conferir suas colocações e serem educados.
Sendo a heresia confessada, pronto, a disciplina é entre o
sujeito e o seu confessor. Uma questão pessoal. Pode pa-
recer estranho, mas muitos caiam na lábia de hereges e
depois se arrependiam ou ficavam simplesmente confusos
e esta era uma chance para que buscassem um conselho
verdadeiramente paterno.
“Escoado esse período sem o comparecimento espontâ-
neo do suspeito, o mesmo era citado para se apresentar
pessoalmente no tribunal. Exigia-se-lhe então o juramen-
to de dizer a verdade, de obedecer à Igreja, inclusive rea-
lizando as penitências por esta prescritas, e de apontar
os hereges que fossem do seu conhecimento. A recusa a
prestar esse juramento significava implícita admissão de
culpa.”
Lembrando que muitas heresias eram conhecidas justa-
mente por proibirem o juramento, daí a inferência jurídica.
“Submetiam-no depois a minucioso interrogatório, que
era tomado por termo pelo escrivão. Ao ato deviam estar
presentes, como garantia de seriedade, duas pessoas de
confiança e imparciais, que a tudo assistiam sob promes-
sa de manter segredo.”
Como os hereges não prestavam juramento, os interro-
gatórios tinham um caráter investigativo importante, bus-
cavam averiguar se o interrogado concordava com a fé da
Igreja e conferir, nos olhares e palavras, se ele se esquiva-
va ou usava de artifícios, como o abuso da dubiedade. As
testemunhas poderiam vigiar para garantirem a integrida-
de da investigação, podendo levar reclamações para os
bispos se houvesse qualquer excesso. Mais um esquema
para preservar a retidão de todo o processo. Este ponto foi
enfatizado diversas vezes pelos papas, reforçando a sua
importância em garantir imparcialidade na investigação.
A observação dos inquisidores era muito consistente em
relação a astúcia dos hereges. Eles não revelavam seu
desvio, sendo necessário alguma forma, por mais argúcia
ou pela força, de obter a confissão. Deixar um herege
impune seria o mesmo que condenar diversas almas a uma
influência nefasta; extrair uma confissão a força poderia
proteger a pureza espiritual da região e abrir a possibilida-
de de redenção para o reú.
“Se o interrogando protestava inocência, mas havia
fortes provas em contrário, podia ser utilizada a tortura e
submetiam-no a prisão processual, enquanto se faziam
mais investigações. Nesse entretempo, o réu era visitado
na cela pelo inquisidor, por seus assistentes ou por cató-
licos de prestígio da região, que tentavam persuadi-lo a
se arrepender e confessar o crime.”
Os apelos para o arrependimento do réu, por sincera pre-
ocupação com sua alma, eram insistentes. O inquisidor
estava à disposição para educa-lo sobre o erro em todo
este processo. O próprio prosseguimento de novas investi-
gações demonstra como sua alegação de inocência deveria
ser levada em conta.
A este respeito, é conveniente a citação do Manual do In-
quisidor de Nicolau Eymerich:
“Em alguns casos, o réu pode apelar para o Papa. A ape-
lação será ou não considerada de acordo com as circuns-
tâncias e as motivações. A apelação será justa se o inqui-
sidor infringir a lei durante o processo (recusa de desig-
nar a defesa, aplicação de tortura sem avisar o bispo).
Nessas situações o réu só tem uma coisa a fazer: apelar
para o Papa.
[...] Mas, se não conseguir nada, e se o inquisidor junto
com o bispo acharem mesmo que o réu lhes esconde a
verdade, então devem mandar torturá-lo moderadamente
e sem derramamento de sangue, lembrando sempre que
a tortura é enganadora e ineficaz. Existem pessoas com o
espírito tão fraco, que confessam qualquer coisa com o
mínimo de tortura, mesmo se não cometeram nada.
Outras, são tão obstinadas que não abrem a boca, inde-
pendentemente das torturas que sofrerem.”27
Além disso, mulheres, crianças e idosos não podiam ser
submetidos a tortura. O medievalista Ricardo da Costa nos
conta mesmo que a Inquisição só se utilizou dela em 2%
dos processos.28 A discrepância entre a realidade e o que
é reproduzido em todos as mídias é, simplesmente, crimi-
nosa.
Após todo o processo de investigação, era proclamada a
sentença, assistida por especialistas no Direito Canônico e
comum, absolvendo-o ou condenando-o. A pena não pode-
ria ser grave (prisão perpétua ou entrega ao poder civil)
sem a concordância do bispo local. As decisões eram reali-
zadas em um ato público e de carácter religioso, os “autos-
-de-fé”, como ficariam chamados (especialmente em Portu-
gal). Há muitas pinturas modernas que representam estes
autos de forma caluniosa, como se execuções fossem leva-
das a cabo nele, quando na verdade havia apenas a entre-
ga ao braço secular (para os impenitentes). O carácter
solene do auto não permitia execução de sentenças,
apenas a abjuração por parte dos convertidos e um apelo
para que o povo mantenha a pureza da fé.
“Na hipótese de absolvição em que subsistissem,
porém, dúvidas sobre a efetiva inocência do imputado,
providências acautelatórias podiam ser tomadas: ele
devia prestar um juramento, chamado "purgação canôni-
ca", juntamente com conjuratores escolhidos entre católi-
cos de confiança, que afiançavam a sua ortodoxia. Se isso
não fosse obtido, o suspeito era excomungado, dispondo
de um ano para demonstrar o descabimento da medida;
e, se tal não acontecesse, somente então passava a ser
considerado herege, recebendo a punição a que fazia
jus.”
Um fato que é importantíssimo ter memorizado é o ano
inteiro que se dava para o acusado defender-se. A imagina-
ção popular, movida pelas acusações infames contra a
Igreja, tem para si que o processo inquisitorial era algo
movido por um desejo urgente de condenação, como se os
participantes desejassem a morte imediata do acusado.
Não, o processo era lento e criterioso. Durante todo este
ano, as anotações do interrogatório poderiam ser revisa-
das; o herege poderia apelar para padres e fiéis respeitá-
veis para que jurassem por sua fidelidade. São meses de
investigação e um ano concedido para defesa antes
mesmo de declarar o réu como herege. A excomunhão,
portanto, não significava uma classificação de “herege”
para o sujeito, mas era apenas uma medida protetiva, pre-
cisando ser embasada em fortes provas, para que o sujeito
não maculasse a sacralidade dos sacramentos.
As condenações de casos leves, por sua vez, são descri-
tas nas escolas como humilhações. Mas seriam mesmo?
Enquanto os juízes leigos possuíam penas que poderiam
até chegar a amputações, os inquisidores condenavam a
práticas piedosas29: prescreviam algumas orações, certa
frequência na Igreja (ou em determinados dias), jejuns,
etc. Nestes casos mais leves, a pena era a mesma que qual-
quer confessor pediria para o fiel comum realizar. Algu-
mas penas de maior rigor incluíam flagelações, peregrina-
ções, multa, prisão e porte de sinais estampados nas
vestes. Por estranho que nos pareça atualmente, flagela-
ções e porte de sinais estampados também não tinham ca-
ráter humilhante, que prejudicassem a honra do cidadão
na sociedade. As flagelações eram atos piedosos entre os
próprios monges que receitavam a pena30, enquanto que o
porte de estampas servia igualmente como penitência e
como um alerta para todos que poderiam ter escutado o
erro no sujeito anteriormente. Diga-se, ainda, que estes
símbolos deixaram de ser usados como pena na medida
em que a população não respondia a eles como a Igreja so-
licitava – desprezando os seus portadores ou mesmo sub-
metendo-os a maus tratos. Por fim, tais símbolos eram pa-
dronizados para cada tipo de crime:
“Para os casos comuns de heresia, consistia em cruzes
de pano cosidas na frente e no dorso das vestes. Dois
martelos de feltro amarelo indicavam os acusados em li-
berdade provisória; tecidos vermelhos em forma de
língua eram reservados aos que haviam falsamente acu-
sado alguém de heresia; distintivos representando hós-
tias destinavam-se àqueles que haviam profanado o sa-
cramento da Eucaristia, etc.”
***
Quanto ao carácter que os inquisidores deveriam ter, po-
demos tomar a descrição do famoso Bernardo Guy (†1331)
como modelo:
"Ele deve ser diligente e fervoroso em seu zelo pela ver-
dade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação
da heresia. Deve portar-se diante de situações difíceis e
desconfortáveis de modo a nunca perder o controle de si
com acessos de raiva ou de ódio; nem deve, por outro
lado, se render à letargia e à languidão, já que tal torpor
exaure a força de um administrador. O inquisidor deve
ser constante e perseverante nos perigos e adversidades,
até a morte. Deve estar disposto a sofrer pela causa da
justiça, nem se precipitando imprudentemente, nem se
retraindo vergonhosamente de medo, já que tal covardia
debilita a estabilidade moral. Mesmo permanecendo infle-
xível às súplicas e lisonjas dos pecadores, não deve endu-
recer o seu coração a ponto de repelir apelos de conces-
são ou mitigar penitências de acordo com as circunstân-
cias que sugerirem o lugar e o tempo, já que tal procedi-
mento cheira mais a crueldade."
A diligência em cumprir com a Justiça parecerá a muitos
excessivas, pois nossa sociedade é vítima de um vício
oposto ao rigorismo: o relaxamento. Ainda que pareça hu-
manitária, já estamos despertando para a condenação
oculta que este vício proclama para a sociedade inocente.
Assassinos, estupradores, ladrões... todos vêem de muito
bom grado a oportunidade de retornarem aos seus crimes
e, assim, é a sociedade que deve pagar a pena com “confis-
co de bens”, a integridade do próprio corpo e mesmo a
pena capital. A mesma complexa balança pendia para o in-
quisidor, com a diferença que este deveria estar atento
para bens ainda mais valiosos: as almas da sociedade, a
alma do réu e sua própria alma.
Além deste preparo espiritual, os inquisidores também
deveriam ser hábeis pregadores, o que explica a escolha
por dominicanos e mesmo franciscanos. O princípio é
claro: antes de condenar qualquer pessoa por uma “opi-
nião errada”, é preciso ensinar-lhe a verdadeira, e conce-
dia-se o benefício da dúvida nestes casos, considerando
que os bispos e padres nem sempre atendiam sua popula-
ção com uma educação diligente.
Ainda aproveitando o próprio exemplo de Bernardo Guy,
poderemos nos informar sobre a proporção de condena-
ções graves: dos dois mil casos que ele julgou, proferiu
apenas quarenta sentenças em que entregava ao braço se-
cular (e que nem sempre eram levadas a cabo).

***

Já tivemos oportunidade de observar como o processo ju-


dicial e o preparo psicológico dos inquisidores eram estru-
turados para salvação dos envolvidos, resta averiguar se
eles efetivamente chegaram a este resultado ao menos
uma vez. Para isso, iremos considerar a inquisição mesmo
antes de sua estruturação do século XIII, com casos famo-
sos e emblemáticos. É importante salientar que para cada
herege mencionado, temos muitos seguidores que apren-
dem com sua história e são indiretamente chamados a
emendarem-se, de forma que estes exemplos não podem
ser tomados como meros casos particulares.
Começamos nossas histórias em 1050, quando um
herege foi chamado para o Concílio romano convocado
pelo papa São Leão IX. O herege não deu importância pra
o concílio e chamo-o até mesmo de “concílio da vaidade”,
ele continuaria sendo condenado em concílios até 1055.
Nestes 5 anos, Berengário (999 - 1088†), este herege em
questão, teve oportunidade de ir defender-se ou abjurar
pelos seus erros, o que acabou fazendo nesta última oca-
sião. Convencido de seus erros, ele jurou que nunca mais
se separaria da fé da Igreja Católica... mas não foi fiel à pa-
lavra e, em 1059 seria convocado novamente, agora pelo
Papa Nicolau II, para um concílio em Roma na presença de
113 bispos. Nesta ocasião, Berengário renovou seu jura-
mento e jogou os próprios livros no fogo.
Porém, ao retornar a França, escreveu outro livro em
defesa de suas heresias (negava a transubstanciação na
Eucaristia), desafiando a Igreja de Roma. Com paciência
admirável, o novo papa, Alexandre II, mandou-lhe uma
carta com concelhos, mas foi respondido com insolência.
Frente a esta situação, Maurilio, arcebispo de Rouen, o ex-
comungou junto aos seus seguidores. Esta condenação foi
confirmada no Concílio de Poitiers, em 1075, e novamente
em 1079, pelo concílio convocado por Gregório VII em
Roma, unido a 155 bispos.
Berengário, finalmente, respondeu: “Eu confesso que o
pão e o vinho colocados sobre o altar são substancialmen-
te convertidos em verdadeira carne e verdadeiro sangue
de Jesus Cristo, pelo mistério da sagrada oração e pelas
palavras de nosso Redentor, não apenas como um signo e
virtude de Sacramento, mas pela verdade da substância.”
Nos concílios, Berengário provavelmente convencia-se ver-
dadeiramente, mas sua história nos mostra como a adula-
ção e a vaidade intelectual pode levar uma alma à perdi-
ção. Ao retornar novamente para o convívio dos seus se-
guidores, ele novamente retrataria seu juramento, apenas
conseguindo a graça de uma conversão sincera em 1080,
depois da qual tomou novo juramento e manteve-se fiel
até sua morte em 1088, em espírito de penitência. Prestes
a morrer chegou a dizer “hoje, Jesus Cristo deve aparecer
para mim – seja para me mostrar misericórdia em conside-
ração às minhas penitências, ou mesmo para punir-me,
temo eu, por ter levado tantos à perdição.” Foram 30 anos
em que vários papas o chamaram à conversão, mas feliz-
mente esta veio a tempo, pela graça do bom Deus.
Caso similar foi o de Pedro Abelardo (1079 - 1142†),
famoso lógico tornado monge após engravidar uma aluna
e que se mostraria especialmente teimoso em sua vida. No
primeiro Concílio em que foi chamado, apelou ao papa e,
apenas por este recurso, escapou de um julgamento por
um ano. Seria São Bernardo de Claraval um ferrenho oposi-
tor de suas heresias, tornando-se quase seu inimigo, não
fosse pela reconciliação que Pedro, o Venerável, conseguiu
entre os dois. Convencido de seus erros depois de anos,
Pedro aceitaria uma simples condenação a um silêncio em
matéria de doutrina, e continuou até mesmo a dar aulas de
lógica, em Cluny, até sua morte, em verdadeiro espírito de
penitência.31
Gilberto Porreta32 (1085 - † 1154), por sua vez, foi um
bispo herético, e outro apaixonado por lógica e argumen-
tações – o leitor pode perceber que este vício foi muito
pernicioso para aqueles que não tiveram preparo espiritual
suficiente. Gilberto defendeu heresias contra a natureza
divina e a Encarnação, e foi novamente São Bernardo de
Claraval a expor seus erros em um concílio que terminou
sem julgamento. Porém, no ano seguinte, o papa conde-
nou suas heresias e ele abjurou seus erros, reconciliando-
-se com São Bernardo e seus acusadores.
Folmar de Triefenstein poderia ser mais outro exemplo
de arrependimento por defesas de heresias contra os sa-
cramentos.

Dados básicos sobre seu alcance e dureza


Tratamos até aqui com abordagens sociais, históricas,
processuais e casos emblemáticos de todo o processo,
resta completar com uma breve observação geral estatísti-
ca.
Porém, antes podemos fazer uma pergunta guiados
apenas pelo bom senso: quantas pessoas iriam, realmen-
te, preferir a fogueira apenas para não abdicar sua posição
religiosa? Mesmo na época de ouro dos mártires em Roma
este não era o caso da maioria. O herege comum não era
um convicto de uma doutrina, apenas seguia um pregador
carismático. Era este, por sua vez, que já havia criado uma
estrutura de poder sob a qual se sustentava, que teria mais
dificuldades em abandonar sua posição mundana. Consi-
derando todas as aberturas para arrependimento e diálo-
gos, seria natural concluir que o número de condenados
não poderia ser tão grande quanto alardeiam professores
colegiais, acadêmicos mal-intencionados e pastores evan-
gélicos.
Os dados podem variar, mas os especialistas no assunto
alternam entre 130.000 a 150.000 julgamentos inquisito-
riais, dos quais somente 6 mil são os “abandonos” ao
poder secular, temos, portanto, cerca de 4% a 6% de pesso-
as condenadas em três séculos de existência e em diver-
sos países. Curiosamente, os casos mais agressivos e ex-
cessivos de perseguição religiosa vieram dos mesmos
países que criaram o mito da Igreja Católica intolerante: na
Escócia calvinista, 4 mil bruxas foram executas em apenas
90 anos! A própria solução católica para a questão da bru-
xaria foi o silêncio, pois inquisidores como Alonso de Sala-
zar observaram que “não havia bruxas, nem enfeitiçadas,
no lugar até que se começou a falar delas”. Quando, na In-
quisição espanhola, deixaram de falar de bruxas, estas
simplesmente pararam de “aparecer”.

OS HERÓIS
Os filósofos escolásticos definiram o “argumento de au-
toridade” como a forma mais fraca de refutação, mas não
deixa de ser propício para nosso estudo estudarmos ao
menos mais um caso e mencionarmos verdadeiros heróis
que participaram do processo inquisitorial. Caso não forta-
leça a convicção de alguns acerca da retidão da Igreja
neste período, ainda valerá como belos exemplos para en-
riquecer nosso conhecimento da vida dos santos e admi-
rarmos as maravilhas que Nosso Senhor realiza na história
através de seus instrumentos.
Em primeiro lugar, devemos saber que houveram santos
inquisidores e inquisidores mártires, como São João Capis-
trano, S. Pio V, Pedro de Arbués, São Roberto Belarmino e
São Pedro Mártir (São Pedro de Verona). Etienne de Saint-
-Thierry e Guilherme Arnaud são exemplos de francisca-
nos enviados para converter hereges e que foram massa-
crados no processo. Não sendo possível expor cada caso,
escolhemos o santo que, sem dúvida, melhor simboliza o
período.
São Domingos
Sem dúvidas um dos maiores pregadores combatentes
das heresias foi São Domingos, já mencionado anterior-
mente. São Domingos, pela sua poderosa palavra, chegou
a ser chamado de “exterminador de Albigenses”. Por pelo
menos 7 anos, ele dedicou-se a salvar as ovelhas disper-
sas, sendo um oponente ferrenho, incansável e altamente
preocupado com a formação intelectual daqueles que po-
deriam sucedê-lo em tais atividades.
Seu esforço santo foi confirmado por Deus em milagres.
Entre os vários milagres, citaremos apenas um pelo poder
de simbolizar o combate às heresias. Depois de uma con-
ferência em Montreal, São Domingos escreveu alguns
textos numa folha e deu aos hereges para que eles exami-
nassem à vontade suas refutações.
No dia seguinte, os albigenses estavam sentados à beira
do fogo, debatendo o conteúdo. Não encontrando como
defender-se das refutações do papel, foi proposto que jo-
gassem a fogueira e, se o papel queimasse, seria a “prova”
de que eles, afinal, estavam certos. Uma bela forma de
testar a Deus é cair no erro e depois pedir uma prova a Ele
que estavam realmente errados. Concordaram com a
fraude e jogaram o papel no fogo, mas este permaneceu
intacto. Um albigense indignado sugeriu que jogassem no-
vamente o papel ao fogo, mas o resultado repetiu-se. E o
mesmo novamente. Absolutamente indignados e não po-
dendo, como os fariseus, planejar a morte do “milagreiro”,
decidiram-se por manter o ocorrido em segredo. No entan-
to, o evento havia sido testemunhado por um soldado que,
por providência divina, estava inclinando-se a fé católica e
ele quebrou o silêncio, contando a muitas pessoas.
Em outra ocasião, o mesmo milagre repetiu-se, mas
agora de forma muito mais justa. São Domingos propôs a
um herege que ambos os lados deveriam escrever suas
profissões de fé, com seus principais argumentos, e jogá-
-las ao fogo, para que Deus julgasse. O papel do santo no-
vamente permaneceu intacto, mas agora Deus teve oca-
sião de mandar um sinal ainda mais evidente para os here-
ges: seu papel, contendo apenas uma doutrina construída
por mãos humanas, virou cinzas em instantes. O experi-
mento também se repetiu três vezes, com igual resultado.
São Domingos, porém, não salvou apenas papéis do
fogo. Certo dia, em Toulouse, alguns hereges seriam quei-
mados na fogueira quando o santo separou um deles e im-
pediu os carrascos de executar a sentença. Ao homem se-
parado, ele profetizou uma conversão sincera que ocorreu
vinte anos depois. Raimundo, este herege salvo, tornou-se
um frade pregador exemplar em sua Ordem.

LEIGOS
A postura de dois santos leigos, contemporâneos, pode
também ser suscitada como exemplo magnífico de ponde-
ração e prudência, justamente por serem “contraditórias”.
Trata-se dos primos São Fernando III (1201 - † 1252) e São
Luís IX (1214 - † 1270), o primeiro recusaria a implantação
da inquisição em seus territórios pois, apesar de ser o con-
solidador da reconquista espanhola contra os mouros, ele
se considerava igualmente rei de católicos, judeus e mu-
çulmanos. São Luís, por sua vez, sempre apoiou a Inquisi-
ção em seus domínios. Explicação? A inquisição sempre foi
uma resposta a um problema histórico, não uma necessi-
dade dogmática da Igreja que poderia ressuscitar em qual-
quer época como alertam histericamente seus detratores.

Simão IV de Monfort (116~ - †1218)


É proclamada a Cruzada contra os albigenses, animados
pelas indulgências e ambiciosos de protegerem seu reino,
muitos senhores e soldados reúnem-se para a empreitada,
Simão do Monfort está entre eles. Os albigenses e aliados
chegavam a dezenas de milhares ou talvez até mesmo a
cem mil combatentes (provavelmente, um exagero lendá-
rio), os cruzados eram apenas mil e duzentos. Simão foi
desaconselhado a entrar em conflito, mas respondeu
“somos numerosos o suficiente, porque nós lutamos por
Deus e Deus por nós”.
Ele dividiu seu exército em três frentes, e ameaçou mar-
char pela região de Toulouse com um corpo, enquanto o
restante marcharia oculto pelos flancos. O inimigo caiu no
engodo e foi atacado com tanta ferocidade que foram obri-
gados a fugir. O exército cruzado se uniu e saiu em perse-
guição, e Simão conseguiu alcançar o rei de Aragão, que
lutava pelos hereges, arrancou-o do cavalo e matou-o.
Apavorado com a morte do rei, o exército fugiu para todos
os lados, tornando-se ainda mais vulnerável. Milhares mor-
reram do lado dos hereges, sete morreram entre os católi-
cos. Foi a gloriosa batalha de Muret, em novembro de
1215.
Simão morreria no segundo cerco a Toulouse, quando,
desejando assistir a uma missa antes da batalha, foi infor-
mado que o povo de Toulouse atacava as tropas. No entan-
to, Simão recusou-se a sair durante a Missa, ansioso por
ver seu Salvador no altar. Parecia que pressentia que sua
hora chegaria e queria encomendar sua alma ao Redentor.
Por fim, exclamou “Agora dispense teu servo, Senhor, se-
gundo tua palavra, pois meus olhos viram a Salvação.”
Após esta oração, Simão convocou os soldados a morre-
rem por Aquele que morreu por eles. Neste dia, 25 de
junho de 1218, ele morreu em batalha, com tempo de re-
comendar a própria alma a Deus e a Virgem.
Graças aos seus esforços, o poder militar dos albigenses
foi enfraquecido, mas a guerra ainda duraria anos antes de
um acordo de paz e o papa Gregório IX poder enviar a In-
quisição para tratar da heresia de forma mais pacífica e
educadora na região.

A doutrina
Apenas após todo o aprofundamento histórico, podemos
contemplar as bases doutrinais para a Inquisição, mas
com salutar cuidado. Revoltado contra as acusações infa-
mes, alguns fiéis adotam uma postura francamente irra-
cional, crendo por inverter uma mentira torna-la verdade.
Esta é uma postura fundamentalista ou “inveterada”. Estes
inveterados utilizam-se de exposições doutrinárias de 800
anos atrás para justificar uma posição política atual sob o
pretexto da doutrina da Igreja ser eterna. Fazendo tal ma-
labarismo, eles ignoram que a moral eterna defendida pela
Igreja não dizia respeito às punições conhecidas na época
e, mesmo as atribuições aos poderes civis, possuíam um
contexto muito diferente. O erro do fundamentalista é
acreditar na palavra pela palavra, como se esta não subsis-
tisse num contexto específico. A autoridade da instituição
medieval da Inquisição foi formulada tendo em mente o
tipo de estado existente na época, e a história legou ensi-
namentos acerca dos erros e acertos estratégicos. É im-
prescindível que o leitor leia a exposição a seguir com im-
parcialidade e um “interesse distante”, à luz de tudo o que
foi exposto anteriormente. Tendo dito isto, podemos
aprender com os mestres dos mestres e, em primeiríssimo
lugar, com o Doutor Angélico.

Santo Tomás de Aquino


Primeiro, e mais fundamentalmente, São Tomás de
Aquino (ambas as grafias estão corretas), nos dá uma clas-
sificação dos pecados:
Delitos contra a fé: heresia, cisma, apostasia, blasfêmia,
perjúrio, simonia, sacrilégio, magia, etc.
Delitos carnais: adultério, bigamia, estupro, sodomia,
rapto, lenocínio, etc.
Os delitos contra a fé são os mais graves, pela dignidade
da matéria em questão, mas não necessariamente mais ur-
gentes. Diz-nos o Aquinate:
“É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da
alma, do que falsificar o dinheiro, que serve à vida tem-
poral. Ora, se os falsificadores de moeda ou outros mal-
feitores logo são justamente condenados à morte pelos
príncipes seculares, com maior razão os heréticos desde
que sejam convencidos de heresia, podem não só ser ex-
comungados, mas justamente serem condenados à
morte” ( II-II, 11, 3)
A argumentação, não devemos faltar em perceber, é ba-
seada em uma comparação: posto que X é mais grave que
Y, e Y é possui pena Z, logo, X também pode ter pena Z.
Com isto, Santo Tomás não está defendendo a pena capital
para hereges mas, antes, ensinando sobre a hierarquia dos
crimes. O silogismo é composto de suas premissas: a
maior (a gravidade dos delitos contra a fé) é ensinamento
firme da Igreja e mantém-se no catecismo até hoje, mas a
premissa menor (a pena corrente sobre um dos crimes car-
nais) é ocasional. Portanto, a conclusão não pode ser
transporta sem considerar a adaptação para as circunstân-
cias em questão.
Diz-nos ainda o Doutor Angélico:
“Não devem de nenhum modo ser considerados heréti-
cos os que, procurando a verdade com cautelosa solicitu-
de, defendem, sem nenhuma pertinaz animosidade, a
opinião própria, embora falsa e pervertida, e estão pron-
tos a se emendarem quando encontrarem a verdade.” IIa
IIae, Q11, a. 2
Com isto, Santo Tomás diferencia entre a simples maté-
ria grave do pecado em si. Devemos lembrar que, para que
um delito seja considerado pecado, deve haver plena ad-
vertência. Isto deve nos afastar de usar o qualitativo de
“herege” indiscriminadamente, pois muitos o fazem sem
sequer ter pleno conhecimento da verdade de fé em ques-
tão, arriscando cair no pecado do orgulho e da vaidade e
perdendo a oportunidade de emendar uma alma com uma
argumentação indigna. A busca pela verdade é uma atitu-
de própria do ser humano e não é invulnerável a erros de
ocasião, coisa que o próprio Santo Tomás, o maior intelec-
to do século, é prova por seu engano em relação ao dogma
(ainda não proclamado em sua época) da Imaculada Con-
ceição, que ele negaria.
Por isso, a Igreja não condena imediatamente um herege,
mas apenas após repetidas advertências, nisto seguindo o
ensinamento bíblico (Mt 18, 15-18)33. Se, no entanto, o
herege permanece pertinaz, a Igreja deve prover para a
salvação dos outros, separando-o pela sentença de exco-
munhão, deixando-o ao juízo secular.
Segue Santo Tomás:
“Deus, na ordem de sua sabedoria, às vezes mata os pe-
cadores imediatamente, para livrar os bons; outras vezes,
dá-lhes tempo de fazerem penitência, conforme sabe o
que importa aos seus eleitos. O que também a justiça
humana imita, na medida do possível, matando os que
são perniciosos para os outros e deixando se arrepende-
rem os que pecam sem danificá-los gravemente.” IIa IIae,
Q.64, a 2
A justiça não é, e nunca foi, um mecanismo de aplicação
mecânica de sentenças. A prudência do rei e do juiz, por
vezes, deve perscrutar a circunstância em questão, sempre
preocupado com o bem maior.
Respondendo a um problema análogo, o Doutor Angélico
nos diz que:

“E, por isso, os fiéis cristãos movem freqüentemente


guerra aos infiéis, não para obrigá-los a crer – porque
ainda que os mantivessem vencidos e cativos, lhes deixa-
riam a liberdade de querer crer ou não – mas para com-
peli-los a não mais impedir a fé em Cristo. “ IIa IIae, Q.10,
a.8
Trata-se de confronto com religiões diversas, mas sua
regra de ouro vale também para heresias nascidas no seio
da Igreja: a Igreja não deve buscar expansão militar da fé,
mas tem o dever de defender os locais em que ela está em
perigo. Na questão 10, artigo 11, do mesmo livro, Santo
Tomás ensina que os ritos judaicos devem ser tolerados e
os ritos pagãos podem ser tolerados ou não. Escrito funda-
mental para que nunca mais se repita o chavão da “igreja
medieval intolerante” em vão em presença de católicos es-
clarecidos.
Por fim, um último critério:
“São escolhidos para o serviço do altar, no qual se re-
presenta a paixão de Cristo imolado, ‘que, ao ser espan-
cado, não espancou’. Portanto, não compete aos clérigos
espancar e matar. Pois, os servos hão de imitar o seu
Senhor” II-II, 64, 4
A fundamentação para que sentenças de morte nunca
fossem proclamadas ou executadas pelo clero sem fla-
grante contrariedade ao ensino da Igreja.

Atualmente, o Concílio Vaticano II, através da encíclica


Dignitatis Humanae (artigo 2) proclamou o princípio de li-
berdade religiosa, sempre defendido pela igreja, que ga-
rante que nenhum homem pode ser coagido à força a fé ou
privado injustificadamente de suas convicções em matéria
de fé pública ou privada. Neste ponto, a Igreja determina
sobre profissões de fé de outras religiões, mantendo sua
autoridade para regular e punir erros disseminados em
seu santo nome.

O sentido
Fazendo, enfim, uma anamnese de nosso estudo até
aqui, poderemos tirar diversas lições, mas a mais valiosa é
a simples abertura de nossos olhos para as verdades
óbvias que já nos cercavam: tribunais modernos ainda
desviam suas funções por interesses políticos e até
mesmo legislam perfidamente, distribuem sentenças gra-
tuitas contra inimigos em franca perseguição jurídica, etc.
Os detratores da Igreja raramente, ou nunca, atacam estes
mesmos tribunais, por que? Trata-se do problema funda-
mental da separação entre Igreja e Estado: se esta aliança
se deu naturalmente pela conversão de povos inteiros du-
rante a Europa moderna, e não sem prejuízo para a primei-
ra, atualmente algumas ideologias querem confundir pro-
positadamente pautas do Partido com as demandas dos
Poderes. Os mesmos defensores da liberdade de consciên-
cia são os defensores destes verdadeiros “tribunais da ver-
dade” que condenam inocentes por soltarem verdades in-
convenientes e, diferente da Igreja, nunca há chance de di-
álogo para que o acusado possa demonstrar ou não a vali-
dade suas afirmações. Mesmo nos casos dos templários
ou no caso de Santa Joana D’Arc não havia tamanho desvio
das funções dos tribunais instituídos.
As autoridades que acusam a Igreja já demonstraram, re-
petidas vezes, que não caíram em um simples erro ocasio-
nal, mas são, sinceramente ou não, partes interessadas
num reino de maior injustiça do que a que criticam. Não
deve restar dúvidas para qualquer cristão informado que
os “formadores de opinião” e a vasta maioria dos professo-
res são mentirosos e não merecem hesitação para serem
desmascarados. Graças a eles, as pessoas realmente acre-
ditavam que ser judeu era crime na Idade Média, que as
mulheres eram perseguidas por fazerem chá de camomila,
que o herege era, enfim, merecedor apenas de persegui-
ção e execução sumária. Tudo isto foi cabalmente de-
monstrado como falso.
É preciso esclarecer que a Inquisição foi uma verdadeira
resposta imunológica da Igreja para aquele tempo, funda-
da nos ensinamentos bíblicos e na caridade em sua estru-
tura. Paciente, prudente, até paternal, nenhum castigo era
aplicado por “intolerância religiosa”. Tal sistema imunoló-
gico falhou por excessos – que buscou corrigir -, por des-
vios (por influência do laicato), ou por relaxamentos, como
nos tempos atuais. No entanto, a instituição representou,
mesmo objetivamente, um avanço que ainda traz consigo
ensinamentos para os nossos dias. Como o próprio Doutro
Angélico nos ensina, é natural que no processo de busca
da verdade (ou da Justiça) ocorram erros que não implicam
em uma má vontade de seus agentes, prova disto é a sin-
cera piedade em muitos envolvidos na Cruzada Albigense,
muito mais fácil de criticar atualmente do que no meio do
caos da época e do sentido de que era urgente tomar uma
ação.
Enfim, é urgente que nenhum católico se sinta intimida-
do em defender-se de acusações levianas, mas seja uma
imagem de escudo para proteger contra mentiras escanda-
losas todos aqueles menos capacitados para notarem a
farsa, tão disseminada em todos os círculos.

Notas complementares:
• A caça às bruxas foi um fenômeno protestante como
no massacre do condado de Vaduz, não havendo fenôme-
no de proporção notável no medievo. Só na Alemanha pro-
testante mais de 25 mil mulheres foram processadas ofi-
cialmente, enquanto a própria crença em bruxaria foi com-
batida por diversos pregadores católicos.
• A “terrível” Inquisição Espanhola, que é apresentada
como a mais violenta e brutal, condenou menos de 3,5%
das pessoas julgadas à morte, sendo que quase metade
destes não foram realmente executados (queimaram ou
enforcaram bonecos no lugar). Na boca de muitos difama-
dores, o total de mortes será de centenas de milhares, mas
a realidade é que sequer o total de processos chegou a
tanto: foram cerca de 45 mil processos. Isso dá 900 pesso-
as executadas entre 1540 e 1700, cerca de 5 pessoas con-
denadas por ano numa Espanha que continha diversos
países além do pequeno território atual. Suas celas
também eram mais confortáveis e o tratamento era tão
melhor que bandidos preferiam ser julgados pelos inquisi-
dores do que pela justiça civil.
• Escutem um pouco as memórias e a impressão das
coisas que lhe disseram sobre o caso de Galileu. Por um
momento não quase parece que ele sofreu da inquisição
medieval? Essa é a capacidade da massiva propaganda di-
famatória: o processo de Galileu aconteceu enquanto An-
tônio Vieira estudava para ser padre; São Thomas More e
Santo Antônio de Lisboa já haviam subido aos céus; e São
Francisco Xavier e Santo Inácio de Loyola já haviam chega-
do aos altares. Além disso, Galileu nunca foi torturado, sua
prisão foi um dos mais belos palácios de Roma, e sua con-
denação foi rezar algumas orações.
• Nenhum dos aparelhos de tortura como (toma fôlego)
a Dama de Ferro, Pêra da Angústia, Cardeira das Bruxas,
Esmaga-Joelhos, Serrote, Berço de Judas, Asno Espanhol
ou a Gaiola suspensa, sim, nenhum desses (usados como
exemplos de tortura medieval) possuem qualquer indício
de terem sido usados na Inquisição, nem a medieval e nem
a espanhola.
• Por fim, a Inquisição não foi uma instituição puramente
negativa, em alguns casos como na avaliação das obras de
Santa Tereza D’Avila e do filósofo brasileiro Matias Aires,
suas obras foram recomendadas. Em ambos os casos,
como em muitos outros, os autores tinham interesse que
suas obras fossem revisadas para que, havendo erros, elas
fossem purificadas. Posteriormente, a Inquisição mudou
seu nome para Congregação para a Doutrina da Fé que,
pelo bom Deus, continua até os nossos dias.
Obras de Pedro Berruguete sobre o martírio pelos hereges de Pedro, o Venerável.
Notas

1.https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-inqui-
sicao/. É óbvia a tentativa assemelhar a história da Inquisição ao na-
zismo.
2. Fontes primarias são todos os documentos ou objetos da época
que atestam ou testemunham a informação mencionada.
3.https://mundoestranho.abril.com.br/materia/quem-eram-as-
-bruxas
4. O século XX foi marcado justamente pelo assassinato em massa
(cerca de 100 milhões) e por um desenvolvimento absurdo das téc-
nicas de manipulação de massa. Ler: O Jardim das Aflições.
5. COSTA, Ricardo da. Visões da Idade Média. Santo André, São
Paulo: Editora Armada, 2019, p. 20-53.
6. https://www.hipercultura.com/inquisicao-fogueira/
7. Eric Voegelin demonstra perfeitamente o anacronismo de afir-
mações como estas em A história da idéia de raça. Simplesmente
não existia uma doutrina racial neste período, só inventada muito
posteriormente no ocidente graças às teses darwinianas.
8. O autor não sabe sequer o que significa “heresia”, termo técnico
que desde o medievo é diferenciado de ateísmo, infidelidade, apos-
tasia ou cismático. Veja, por exemplo, Suma Teológica IIa IIae, Ques-
tão 10 e 11. Retornaremos a ela no curso deste capítulo.
9. O leitor pode ficar calmo, estas difamações serão retomadas ao
longo do capítulo.
10. Aparentemente, os santos inquisidores possuíam o dom do te-
letransporte.
11. Graças a Deus, depois do advento da razão as pessoas estão
livres para dar três pulinhos no mar e torcer para não ter uma vida
tão vazia, com um pouco mais de dinheiro na carteira ou marcas de
batom na cueca.
12. Todas as citações foram retiradas do endereço: ht-
tps://www.hipercultura.com/inquisicao-fogueira/
13. Para não dispersar do assunto, faremos uma apresentação pa-
norâmica sobre a sociedade da época, para maiores detalhes com as
contradições intricadas do período medieval, seguir a bibliografia ao
final do livro.
14. Nada disto implica que não deve haver uma determinada “tole-
rância” para com outras religiões, muito pelo contrário. Não sequer
necessário citar a Parábola do Bom Samaritano, se um cristão é ver-
dadeiro cristão, então ele sabe que deve haver um fervor apaixona-
do para compartilhar do seu tesouro com todos. Ide e pregai o Evan-
gelho. Da mesma forma, o cristão apaixonado não verá nenhuma re-
ligião, no mínimo, como do mesmo valor que a sua própria.
15. Por exemplo: houveram aqueles que defendiam o direito a ca-
samento dentro dos 4 graus proibidos pela igreja: incesto.
16. Que renascia na época através das universidades.
17. É preciso esclarecer que não era claro, para eles, a separação
da Igreja. Os albigenses, então, muitas vezes comungavam de cren-
ças inversas enquanto parasitavam a Igreja.
18. A ‘endura”, abstenção de comida e bebida justamente para
morrer sem contaminar-se do mundo material.
19. Havia ainda o consolamentum, espécie de sacramento em que
a pessoa era purificada.
20. Ainda assim, muitas “crianças” acreditam que eles foram exter-
minados na Idade Média. Uma rápida busca no Google daria conta
para ver que ainda hoje há Igrejas que se reconhecem como valden-
ses e possuem raízes na seita original.
21. Problema semelhante assola a nossa sociedade e dedicaremos
atenção a isto nas páginas finais deste capítulo.
22. Cabe lembrar o século de ferro onde o império renomeou di-
versos papas a seu bel prazer, crise encerrada pela renovação espiri-
tual do mosteiro de Cluny e a força do papa São Gregório VII.
23. Não podemos, porém, esquecer que isto não algo tão fácil.
Pernoud nos lembra que “a nomeação de bispos e abadies por inte-
resse e favoritismo existia, mas eram abusos irregulares.” (PER-
NOUD)
24. O leitor do Guia para Católicos certamente lembrará das indi-
cações sobre usar a fé como porrete ou do alerta contra a exaltação
imaginativa.
25. Ainda que não seja o assunto deste livro, vale comentar que,
diferentemente da Inquisição, os crimes socialistas não estavam em
desacordo com os princípios marxistas: “Não temos compaixão e
não lhe pedimos compaixão alguma. Quando chegar nossa vez, não
inventaremos pretextos para o terror” (Karl Marx, Neue Rheinische
Zeitung, 19 de maio de 1849). E há muitas citações como esta.
26. Curiosamente, o Papa Gregório IX promulgou a bula Parens
scientiarum, em 1231, que daria independência a Universidade de
Paris, significando um avanço na liberdade científica.
27. NICOLAU EYMERICH. Directorium Inquisitorum: Manual dos In-
quisidores (revisto e ampliado por Francisco de La Peña em 1578)
(trad. de Maria José Lopes da Silva). Brasília: UNB, 1993
28. https://www.ricardocosta.com/artigo/pedro-berruguete-goya-
-banti#footnoteref18_dcqqujx
29. O sistema penitenciário moderno, afinal, recebe o nome desta
instituição medieval.
30. Lembremos, ainda, que açoites eram até práticas comuns
entre pais e filhos e entre professores e alunos.
31. Por ser um caso mais famoso, este relato foi abreviado consi-
deravelmente. Remetemos o leitor interessado ao artigo de Ricardo
da Costa, que pode ser encontrado no endereço: “https://www.ricar-
docosta.com/artigo/ha-algo-mais-contra-razao-
-que-tentar-transcender-razao-so-com-forcas-da-razao-disputa-entr
e”
32. Sic.
33. Aliás, a Inquisição é completamente embasada no ensinamen-
to bíblico, confiram: Tg. 5: 19-20; 2 Tl, 3:6, 14-15; Rm 16:17-18; At.
5: 1-11. Para citar apenas alguns exemplos.

Bibliografia:

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Trad. Maurício Brett Menezes. Rio de Janeiro: Agir, 1994.
DAWSON, Christopher. A formação da cristandade: das ori-
gens na tradição judaico-cristã à ascensão e queda da unida-
de medieval. São Paulo: É Realizações, 2014.
DE'LIGUORI, Saint ALPHONSO MARIA; MULLOCK, John
Thomas. The History of Heresies, and Their Refutation...
Translated... by John T. Mullock. James Duffy, 1857.
Regine Pernoud; dade Média, o que não te ensinaram;
ROMAG, Dagoberto. Compêndio da história da Igreja: a
Idade Média. Editora Vozes, 1940. [citado como CHI]
GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em seu mundo.
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KAMEN, Henry. The Spanish Inquisition: a historical revi-
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DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja das catedrais e das cruzadas.
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ITURRALDE, Cristián Rodrigo. La Inquisición, un tribunal de
misericordia. Domine Editorial, 2012.
PETERS, Edward (Ed.). Heresy and authority in medieval
Europe. University of Pennsylvania Press, 1980.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Ecclesiae,
2016. 2019.
L’inquisizione: atti del Simposio Internazionale
http://www.radiovaticana.va/portuguese/brasar-
chi/2004/RV25_2004/04_25_07.htm
Um dos grandes problemas a ser discutido e desenvol-
vido são as cruzadas. O mais comum, quando falamos
nas cruzadas, é imaginarmos guerreiros sanguinários
que se utilizaram de ideais nobres para objetivos
pueris, espúrios e baixos. Ou seja, nada de tão novo
quanto estamos acostumados a ver. Entretanto, cai aqui
o problema de redução de um período histórico por
péssimos exemplos. Medimos uma civilização inteira
pela experiência e realidade a qual estamos acostuma-
dos no dia a dia, isso é anacronismo histórico.
A Igreja bem sabe e qualquer bom católico também
que o homem de fato se encontra numa natureza decaí-
da e, portanto, todos os seus atos podem ter uma
mancha de corrupção. Porém, a mesma Igreja afirma
que são 3 os inimigos da alma: o Mundo, o Diabo e a
Carne. A carne torna-se o fator principal para enxergar
qualquer relação na sociedade medieval com uma acu-
sação num tom de denúncia de uma hipocrisia “Homens
que viviam pensando em Deus, mas que cometeram
barbáries! Tá vendo? Nenhuma diferença faz a presença
do cristianismo na sociedade!”. Tal acusação fundada
apenas nesse princípio da carne como força motriz
capaz de determinar as ações dos seres humanos se es-
quece que apesar dela a cultura e a sociedade civil (a-
quilo que a Igreja chama de mundo) podem ser elemen-
tos que irão expandir ou diminuir a tendência do
homem para o mal, jamais aniquilá-la pois cremos que
é impossível não existir a corrupção nesse mundo
exceto no paraíso.
Daí que, ao utilizar os defeitos da carne do homem
medieval como fruto de condenação de valores cristãos,
como ineficientes ou inúteis para o impedimento do
mal sobre a terra, o acusador age de forma vil ao não se
dar conta que a mesma corrupção ainda existe nos
mundos atuais, mas de forma pior: ela não é mais fruto
do desordenamento da alma do homem, inerente a
quem quer que seja, mas é um subproduto da cultura
secular que se instaurou no Ocidente.
Portanto, se numa era em que tudo remetia a Deus o
homem tendia a errar e cometer atos falhos, numa era
em que nada nos lembra a Deus o homem tende a
transformar o paraíso secular num verdadeiro inferno
na terra. Tal situação nos lembra Alexsander Soljhenit-
sin (inserir breve nota sobre Alexsander) durante o
prêmio Nobel da Paz de 1970 ao ser questionado sobre
os horrores que acometeram a Rússia durante a URSS
ele disse
“Mais de meio século atrás, quando eu ainda era
uma criança, lembro-me de ouvir um número de pes-
soas mais velhas oferecerem a seguinte explicação
para os grandes desastres que se abateram sobre a
Rússia: 'Os homens se esqueceram de Deus; é por isso
que tudo isso aconteceu'. Desde então, tenho passado
quase 50 anos estudando a história de nossa revolu-
ção. Durante esse processo, li centenas de livros, cole-
cionei centenas de testemunhos pessoais e contribuí
com oito volumes de minha própria lavra no esforço
de transpor o entulho deixado por aquele levante. Mas
se hoje me pedissem para formular da maneira mais
concisa possível a causa principal da perniciosa revolu-
ção que deu cabo de mais de 60 milhões de compa-
triotas, não poderia fazê-lo de modo mais preciso do
que repetir: 'Os homens se esqueceram de Deus; é por
isso que tudo isso aconteceu'”.
Essa grande introdução serve-nos para compreender
que quando falamos de Cristandade, não falamos ime-
diatamente de homens brutais e sanguinários. Mas de
homens devotos, muitas vezes com pouco conhecimen-
to humano mas um profundo conhecimento da vida. De
uma cultura que por mais que possuísse vícios ela tinha
um grande desejo de se voltar diante de Deus. Era uma
sociedade dominada pela influência da Igreja, sim;
todos os princípios buscavam ser construídos nos ali-
cerces do evangelho e o homem tinha consciência pro-
funda de seu lugar na sociedade e na história, bem
como do lugar de Deus. O bispo francês Adalberão de
Laon (947-1030) nos dá uma primeira definição de
como a cristandade se organizava: “A casa de Deus, que
cremos ser uma, está, pois dividida em três: uns oram,
outros combatem, e outros, enfim, trabalham” (Citação
retirada de Le Goff. A civilização do Ocidente medieval,
V.II, p.45)
Portanto, vemos que o combate era próprio daquela
sociedade, embora ele não estivesse inteiramente dis-
sociado dos outros dois ofícios, mas haveriam homens
que se dedicariam mais a um do que a outro. Com a po-
pularização dos feitos das ordens militares e dos cruza-
dos, surgiu um grande efeito cultural de pessoas inte-
ressadas nesse assunto.

A Santa Igreja, por inspiração do Espírito Santo, en-


gendra através dos tempos a construção e a manuten-
ção da sociedade, ela age a fim de atender às necessida-
des das almas em cada momento histórico. Durante a
idade média, havia união entre a Igreja e o Estado. A co-
munidade dos povos cristãos, fundada na mesma Fé,
constituía a Cristandade. Nesta época a grande família
de povos sob a autoridade espiritual do Papa sofria di-
versos ataques internos e externos que ameaçavam a
integridade da Cristandade e da Santa igreja. Os inimi-
gos internos eram os hereges, que, por meio de suas
doutrinas espiritual e temporalmente revolucionárias,
procuravam arrebatar regiões e até nações inteiras à ju-
risdição da Santa Sé. Os inimigos internos eram os here-
ges, que, por meio de suas doutrinas espiritual e tem-
poralmente revolucionárias, procuravam arrebatar regi-
ões e até nações inteiras à jurisdição da Santa Sé.

Os inimigos externos eram de um lado os bárbaros do


oriente europeu (saxões, eslavos, etc., muitos deles
depois convertidos) e também do norte da Europa como
os vikings (também acabaram se convertendo). De
outro lado vinham os muçulmanos da Espanha, Ásia
Menor e norte da África. Estes atacavam com frequência
as fronteiras do mundo cristão, e infestavam os mares
perseguindo os peregrinos que iam visitar os Lugares
Santos. Urgia defender contra essas violências a Fé e a
civilização católica. Como empreender tal defesa? Para
consegui-lo, a Igreja precisou recorrer às Armas.

“O espírito da Igreja fez nascer na Idade Média as


Ordens Militares, que tanto fizeram para a conservação
da Terra Santa. Fez nascer aqueles cavaleiros orantes e
monges armados, cujos mosteiros eram castelos. Que
recebiam as expedições de peregrinos, as amparavam,
curavam os feridos e doentes, e obedeciam com o
mesmo fervor ao sino ou à trombeta, quando eram
chamados para a batalha. Eles eram os primeiros no
ataque e os últimos na retirada. Homens cujas espadas
infligiam tão graves feridas, e cujas orações e cânticos
se elevavam entusiastas até o Céu! O espírito das Cru-
zadas, a união do heroísmo com a devoção, do amor
ao próximo com a varonilidade, da espada e da peni-
tência, se mostra em suas cores mais brilhantes nas
Ordens de Cavalaria. ”

As cruzadas deram início às Ordens Militares dentro


da Santa Igreja Católica, estas eram compostas por
homens que se dedicavam a viver uma vida monástica e
seguir os três votos adicionando a ele um quarto voto,
ficando assim os votos das Ordens Militares Cristãs:
Obediência, Pobreza, Castidade e Combate aos Infiéis.
Assim, os cavaleiros abraçavam uma regra monástica,
não para viver a solidão, mas para defender a Cristanda-
de dos ataques que ela vinha sofrendo a tantos anos.
Os guerreiros-monge formavam um exército permanen-
te, pronto a entrar em combate onde quer que os inimi-
gos ameaçassem a Religião cristã.
Foram criadas cinco ordens militares durante o tempo
das cruzadas. São elas: A ordem do Santo Sepulcro, a
ordem de Malta, a ordem do Templo, a Ordem dos Ca-
valeiros de Santiago e a ordem Teutônica.
Aliado a isso surgem também muitos entusiastas das
ordens militares. E isso é sempre bom. Entretanto,
muitos fazem e levam isso de uma forma inteiramente
distorcida. Na ânsia de defender a verdade histórica das
cruzadas acabam fazendo o contrário: dando o teste-
munho de que aqueles homens eram apenas guerreiros
de armas. Muito enganado estão os que crêem nisso.
Sejam defensores ou acusadores. Os cruzados eram
guerreiros, portavam armas e matavam quando em con-
flito estavam. Entretanto, as ordens militares eram tão
religiosas como uma ordem beneditina ou cisterciense.
Eles tinham regras rígidas de oração, jejum, trabalhos
e afazeres. E mais do que todos os monges já faziam
também tinham hora extra como defensores da fé. Isso
tudo para diminuir a possibilidade de loucos, hereges e
vaidosos arruinarem todo o clima da ordem. Óbvio que
isso é o ideal, dentro do real sempre surgem figuras
que se aproveitam e mancham o bom nome das institui-
ções. Mas o espírito era esse.
Até na própria cristandade. Em várias batalhas perdi-
das os cristãos se punham a rezar e jejuar antes de
entrar num conflito. Quando perdiam acreditavam ser
por culpa de seus pecados, como diz uma canção da
época. Portanto, o sujeito que desejaria uma nova em-
preitada dessa na modernidade ou que quiser defender
a honra desses guerreiros deve fazer por jus também:
rezar, jejuar e manter uma cosmovisão medieval, sus-
tentada na crença firme e poderosa de que Deus possui
todo o senhorio da história humana. “Os Cruzados eram
monges, antes de guerreiros. E porque eram monges
tornaram-se guerreiros.”
Portanto, a Cristandade era uma civilização cuja seiva
era a fé católica, o corpo eram suas instituições e seus
membros cada ordem, família ou nobre que empreen-
diam um ato para favorecer a fé. Entretanto, pessoal-
mente houveram homens que traíram esse ideal e
homens que o honraram e até outros que foram santos
durante a cruzada, tais exemplos podemos ter como
Reinaldo de Châtillon (1125-1187) que vivia fazendo in-
cursões de rapina para saquear pessoas e até sacerdo-
tes cristãos, ou o rei de Jerusalém Godofredo de Buillion
(1058-1100) que não queria usar uma coroa de ouro
onde seu Senhor foi coroado de espinhos e dentre eles
o Rei Francês e Santo: Luís IX que é canonizado e serve
de exemplo a todos os cristãos.
As Cruzadas eram guerras, por isso seria um erro ca-
racterizá-las como nada além de piedade e boas inten-
ções. Como toda a guerra, a violência era brutal (embo-
ra não tão brutal quanto as guerras modernas). Houve
percalços, erros e crimes. Estes são geralmente bem
lembrado hoje. Durante os primeiros dias da Primeira
Cruzada, em 1095, um grupo de cruzados liderados
pelo Conde Emicho de Leiningen fez o seu caminho
pelo Reno, roubando e assassinando todos os judeus
que podiam encontrar. Sem sucesso, os bispos locais
tentaram parar a carnificina. Aos olhos desses guerrei-
ros, os judeus, como os muçulmanos, eram os inimigos
de Cristo. Roubá-los e matá-los, então, não era errado.
Na verdade, eles acreditavam que era uma ação justa, já
que o dinheiro dos judeus poderia ser usado para finan-
ciar a cruzada a Jerusalém. Mas eles estavam errados, e
a Igreja condenou fortemente os ataques anti-judeus.
Cinquenta anos depois, quando a Segunda Cruzada
era preparada, São Bernardo frequentemente pregava
que os judeus não seriam perseguidos: “Perguntem a
qualquer pessoa que conheça as Sagradas Escrituras o
que ela encontra profetizado sobre os judeus no Livro
dos Salmos: “Não oro para a sua destruição”, diz o
Salmo. Os judeus são para nós as palavras vivas das Es-
crituras, visto que eles nos lembram sempre o que o
Nosso Senhor sofreu…. Sob os príncipes Cristãos, eles
suportam um cativeiro severo, mas ‘eles esperam o mo-
mento da sua libertação’.” No entanto, um monge cis-
terciense chamado Radulf incitou pessoas contra os
judeus da Renânia, apesar de numerosas cartas de Ber-
nardo exigindo que ele parasse. Por fim, Bernardo foi
forçado a viajar para a Alemanha, onde encontrou
Radulf, mandou-o de volta ao seu convento e acabou
com os massacres. Outros exemplos de atitudes nas
cruzadas condenadas pela Igreja temos:
• O saque de Jerusalém, que foi condenado pelos líde-
res das Cruzadas: Raymond de Toulouse e Godofredo
de Bouillon, foi uma ação incomum na guerra de cerco.
• O saque de Constantinopla, que foi condenado pelo
líder cruzado Simon de Montfort, e pelo papa da época,
Inocêncio III, que disse sobre o incidente: “Não admira
que os gregos chamam-lhe cães”. Ele excomungou os
responsáveis pelo atentado.
• A Cruzada das Crianças e Cruzada do Povo foram
Cruzadas populares não oficiais que custaram muitas
vidas e, de forma alguma, foram aprovadas oficialmen-
te pela Igreja. (Que explicaremos mais abaixo)
Mas se a Cristandade era um período de fé tão fervoro-
sa por que haviam esses exemplos? A melhor resposta
encontramos na pena brilhante de Daniel-Rops:
“Nada seria mais absurdo do que ver na Idade Média
uma época paradisíaca de inocência e de doçuras uni-
versais; mesmo entre os batizados. Os homens conti-
nuam a ser homens. No entanto (ao contrário de hoje),
quando se comportam mal, sabiam que cometeram
uma falta e referiam-se incessantemente a princípios
superiores. Com seus grandes pecados, com a sua cre-
dulidade mais ou menos supersticiosa, com a sua dou-
trina de salvação um pouco barateada, o homem me-
dieval está, apesar de tudo, no caminho real do cristia-
nismo, porquê é humilde diante de Deus e possui uma
confiança absoluta na Redenção (...) Deus nesta época
não está morto: está intensamente vivo! A fé, portanto,
faz parte da substância deste tempo. É ela que ilumina
a civilização com a suave luz da esperança cristã (...) A
sociedade medieval não tem nada de triste ou de in-
quieto; pelo contrário, transmite uma impressão de
alegria e de audácia criadora” (Daniel Rops. A Igreja
das catedrais e das cruzadas, p.44-45)
Portanto, chegamos a um ponto nevrálgico do nosso
tema: O objetivo dos cristãos jamais saíram dos seus
ideais. Qualquer desvio foi ocasionado por homens iso-
lados, que poderiam ter poder ou não, mas que foram
tomados pelas suas paixões e utilizaram um serviço
nobre para fins pessoais. Mas, o que foram as cruza-
das? Segundo a bela descrição de Lucas Lancaster
vemos:
“Do ponto de vista religioso, foram guerras santas
em nome de princípios eternos; do ponto de vista mili-
tar foi uma guerra defensiva e retaliatória; do ponto de
vista macropolítico foi, nos termos de Samuel P. Hun-
tington, um choque de civilizações, um embate entre
dois mundos. De um lado a civilização cristã, a Cris-
tandade, do outro o Mundo Islâmico” LANCASTER,
Lucas; São Luís: O rei da coroa de espinhos, p.159
De imediato, podemos saber que tal embate foi reali-
zado 9 vezes. A primeira cruzada (1095-1099) conheci-
da como cruzada dos nobres, devido a participação de
senhores da França, Itália e Sacro Império. A segunda
Cruzada (1147-1150) ocorreu em 3 frentes e abarcou
quase toda a cristandade. A terceira cruzada (1189-
-1192) foi uma das mais bem preparadas liderada pelos
monarcas mais poderosos da época como Frederico I da
Alemanha, Filipe II da França e Ricardo I da Inglaterra,
além de muitos de seus vassalos e algumas outras
nações. A quarta cruzada (1202-1204) liderada pelos
venezianos; a quinta cruzada (1217-1221) conduzida
por todo o sacro império. A sexta cruzada (1228-1229)
chefiada pelo imperador Federico II e a sétima (1248-
-1254) e a oitava (1270) lideradas pela França e, por
fim, a nona cruzada (1271-1272) composta por ingle-
ses, franceses e napolitanos. (Informação facilmente
obtida no livro As cruzadas do autor Grousset).
Nosso objetivo aqui não será tratar de todos os 9 em-
bates, já existem livros demais sobre este tema, mas
chamarei a atenção a esses 3 aspectos citados anterior-
mente: O evento religioso, o Militar e o macropolítico,
para que assim compreendamos melhor a mente do
cristão medieval e saibamos colocar pingos nos i’s em
cada um dos questionamentos que nos fizerem, deixan-
do apenas em branco um trabalho historiográfico que
poderá ser realizado se o leitor ler alguma das obras
que indicarmos ou que citarmos ao longo deste texto.
No aspecto religioso uma das primeiras acusações re-
alizadas é a de que “A mente religiosa e fechada do me-
dieval ocasionou uma outra cruzada, em que pessoas
pobres e famintas, foram de ‘peito aberto’ contra inimi-
gos poderosos e armados e perderam suas vidas”. Bem,
a Igreja acredita no martírio apenas quando a pessoa é
capturada e não quando se entrega, portanto, o ideal de
ir numa guerra sem condição de vencê-la não é algo
típico que um cristão daquela época faria, pois bem, en-
tendamos em que contexto se deu esse movimento ini-
cial de tentativa de conquista e percebamos o motivo de
os cristãos se entregarem numa missão suicida.
Em 1070 os turcos haviam tomado Jerusalém aos
árabes e começaram então as perseguições e profana-
ções que os peregrinos narravam com cores vivas no
Ocidente. Nessa época, um piedoso peregrino chamado
Pedro d’Amiens, ao retornar da Terra Santa, foi ter com
o Papa Urbano II a fim de descrever-lhe os vexames dos
cristãos na Palestina e profanação dos lugares santos
pelos infiéis.
J. F. Michaud nos diz que Urbano II fora informado de
um ataque iminente a Constantinopla. Decidiu, pois,
passar ao ataque do campo inimigo. Por este motivo, o
Papa convocou o concílio de Clermont (1095), ao qual
compareceram muitos príncipes do Ocidente. Lá com-
pareceu também Pedro d’Amiens e expôs com tal
emoção a triste situação do país de Cristo que todos os
circunstantes, em lágrimas, romperam num grito unís-
sono de fé e coragem: “Deus o quer! Deus o quer! “.
Ocorre que antes da definição e concretização das
metas, Pedro, o Eremita e um cavaleiro apelidado Gau-
thier Sans-Avoir (Gualter Sem Tostão, o que nos dá uma
ideia de sua falta de recursos), anteciparam-se aos
planos do Papa Urbano II e partiram para o Oriente com
uma massa de 17.000 pessoas ignorantes, pobremente
equipadas e sem nenhuma experiência militar. Foi um
movimento paralelo e independente que partiu em dire-
ção à Niceia sem o prévio consentimento do Papa, cha-
mado “cruzada do povo”. Após uma travessia caracteri-
zada por desordens, violências e epidemias, foram
completamente trucidados pelos turcos quando ataca-
ram aquela cidade. Por isto, não se considera este movi-
mento como a primeira cruzada, que teve seu início em
1096, portanto, no ano seguinte.
Ainda que este movimento não seja considerado como
uma cruzada, precisamos analisar o que se passava na
mente do homem medieval comum. Não era uma limita-
ção da inteligência, mas era algo que nós, homens mo-
dernos, perdemos a muito tempo: convicção moral pro-
funda. O homem medieval poderia recitar um livro intei-
ro de cantigas religiosas ou de oração mesmo sendo
analfabeto pois a repetição dos cânticos, a vivência reli-
giosa era tão profunda que não era necessário um pro-
cesso de formação muito sólido para que aquele
homem adquirisse a piedade. Para ele a fé não era um
sentimento, opinião ou mero estilo de vida, mas era o
sentido último de sua vida; junto com o lar os templos
eram sinônimo de segurança e conforto, desde a queda
do império romano e o advento dos mosteiros os pere-
grinos sabiam que onde houvesse uma cruz ele ali seria
bem-vindo, bastasse se identificar como cristão. Portan-
to, aquele mesmo homem ao ouvir o relato de Pedro
D’amiens não interpretou como uma mera fatalidade do
dia a dia, tal qual nós interpretamos quando sabemos
do surgimento de um novo grupo terrorista que decapi-
ta cristãos as centenas durante um único dia, não! Ele
interpretou como uma agressão ao seu próprio lar,
perder aqueles locais de culto era sinal de perder a
graça de Deus na sua própria vida.
Um exemplo dessa forma de enxergar o mundo temos
na descrição da entrada de São Luís na cruzada, o santo
é o exemplo máximo para qualquer cristão:
“Certa feita o Santo Rei foi acometido de uma doença
que tomaram ele como morto. Após uma discussão das
cuidadoras sobre se ele estava morto ou não ele acorda
de súbito e diz: Dêem-me a cruz! Essa frase era um voto
de um cruzado, quem o dissesse estaria se comprome-
tendo diante de Deus a empreender uma cruzada.
Em especial, sua mãe e muitos tentaram dissuadi-lo a
não empreender essa cruzada. Sua mãe, branca de Cas-
tela, foi a principal argumentadora. Porém, ele não
cedia na sua posição. Estava disposto a seguir seus an-
tepassados (Luís VII, bisavô que liderou a segunda cru-
zada; Filipe Augusto, avô que liderou a terceira cruzada
e Luís VIII, pai que morreu na cruzada contra os albigen-
ses). O argumento, porém, era de que o voto não seria
válido. Pois ele o proferiu em meio aos delírios de uma
doença. Até que ele fez um inflamado discurso: ‘Vós
dizeis que a fraqueza foi a razão de eu ter tomado a
cruz. Pois bem, desde que é o que desejas, eu deito a
cruz. Renuncio a ela.’ Arranca violentamente de suas
roupas a cruz que estampava o peito entregando-a ao
bispo de Paris. Nesse momento todos aplaudem, mas
ele diz com voz e rosto Mudados: ‘Meus amigos, vocês
concordam que agora eu estou em plena posse de meus
sentidos, que eu estou, de qualquer maneira, são de
mente e de corpo?’ E virando-se ao arcebispo diz de
forma grave: ‘Me devolva a cruz. Pois Aquele que co-
nhece todas as coisas sabe que nenhum alimento pas-
sará meus lábios até que a minha Cruz seja devolvida
definitivamente a mim.’ E a multidão entra em êxtase
Exclamando: Isso foi o dedo de Deus!!!!” (São Luís: O rei
da coroa de espinhos, Lucas Lancaster, Cap. 2)
Proclamada a cruzada, com qual ordem os homens
partiram em missão? O Papa Urbano II deu aos Cruza-
dos dois objetivos, e esses objetivos mantiveram-se
centrais para as Cruzadas orientais durante séculos. O
primeiro era o de salvar os Cristãos do Oriente. Tal
como o seu sucessor, Papa Inocêncio III, mais tarde es-
creveu: “Como é que um homem que ama o seu próxi-
mo segundo os preceitos divinos, sabendo que os Cris-
tãos seus irmãos na fé e no nome, são retidos pelos pér-
fidos muçulmanos em reclusão estrita, e subjugados
pelo jugo mais pesado da servidão, não se dedica à
missão de os livrar? … Por acaso, vocês não sabem que
muitos milhares de Cristãos se encontram escravizados
e aprisionados pelos muçulmanos, torturados com tor-
mentos inumeráveis?” “Ir para uma Cruzada”, alegou
corretamente o Professor Jonathan Riley-Smith, era en-
tendido como um “gesto de amor” – neste caso, amor
pelo próximo. A Cruzada era vista como uma missão de
misericórdia como forma de corrigir um mal terrível. Tal
como o Papa Inocêncio III escreveu aos Cavaleiros Tem-
plários: “Vocês executam as obras das palavras do Evan-
gelho, ‘Ninguém tem maior amor do que este, de
alguém dar a sua própria vida pelos seus amigos’ [João
15:13]” O segundo objetivo era o da libertação de Jeru-
salém e de outros locais tornados santos pela Vida de
Cristo. A palavra “cruzada” é uma palavra moderna; os
Cruzados Medievais olhavam para si como peregrinos,
levando a cabo atos de justiça a caminho do Santo Se-
pulcro. A indulgência da Cruzada que eles recebiam
estava canonicamente relacionada com a indulgência da
peregrinação. O objetivo era frequentemente descrito
em termos feudais. Apelando para a Quinta Cruzada em
1215, Inocêncio III escreveu: “Levemos em considera-
ção, meus queridos filhos, que se algum rei temporário
fosse lançado para fora dos seus domínios, e talvez
capturado, não iria ele, depois de ver restaurada a sua
liberdade cristalina, e o tempo tivesse chegado para
que ele, executar um olhar justo sobre os seus vassalos,
classificá-los de desleais e traidores a menos que eles
não só tivessem comprometido as suas posses mas
também as suas pessoas para o libertar? Semelhante-
mente, não irá Jesus Cristo, o Rei dos reis e o Senhor
dos senhores, cujos servos dEle vocês não podem negar
ser, que uniu a vossa alma com o vosso o corpo, que
vos remiu com o Seu Precioso Sangue … vos condenar
pelo vício da ingratidão e pelos crime de infidelidade, se
por acaso vocês negligenciarem prestar-Lhe ajuda?” A
reconquista de Jerusalém, portanto, não era colonialis-
mo, mas sim um ato de restauração e de declaração
aberta de amor por Deus. Os homens medievais
sabiam, obviamente, que Deus tinha o Poder para res-
taurar Ele mesmo Jerusalém – de fato, Ele tinha o poder
para restaurar todo o mundo para o Seu governo.
Um exército em geral tende a se considerar um só. A
noção de companheirismo é fundamental para que
combatentes possam atuar com maior força, pois, pela
força da caridade um companheiro tende a proteger o
outro. Nas guerras modernas esse sentimento é fomen-
tado pelo humanismo, em que os homens se conside-
ram como iguais apenas pelas suas características
inatas, entretanto, na Cristandade um homem era irmão
do outro pois ambos sabiam que eram batizados. São
Luís, na sua Cruzada, nos mostra o espírito que regia o
companheirismo de seus soldados: Eles representavam
a Igreja. Eles eram e se consideravam a encarnação do
corpo de Cristo, contemplavam suas ações como uma
extensão da força salvadora e evangelizadora do seu
Deus, veja o discurso que o Rei francês profere minutos
antes de chegar na batalha:
“Fortificado pela Santíssima Eucaristia, Luís se prepa-
rou para entrar em batalha. Antes do desembarque, se
levantou de forma enérgica e imponente, exortando seu
exército em um discurso épico: ‘Meus amigos e segui-
dores, seremos inconquistáveis se formos indivisos! A
vontade divina nos trouxe até aqui e, sejam quais forem
as forças dos nossos inimigos, iremos desembarcar!
Não sou eu quem sou o Rei da França, não sou eu quem
sou a Santa Igreja: São vocês, unidos, que são a Igreja e
o Rei! Em nós Cristo triunfará, dando glória, honra e
bendizendo não a nós, mas ao seu próprio Santo
Nome!’.” –(São Luís: O rei da coroa de espinhos, Lucas
Lancaster)
O triunfo dos soldados era o triunfo da cristandade, o
triunfo da monarquia francesa. A união não era mera-
mente natural, mas, pela força do batismo, os homens
se reconheciam como um só prontos a realizar um
único e final ato de fé: Dar a vida pela vida de seus
irmãos que estavam sendo atacados pelos Muçulmanos
e impedidos de terem acesso aos lugares santos de Je-
rusalém. Os cruzados eram a Verdade do evangelho, a
Liberdade dos seus irmãos e a Glória do reinado de
Cristo.
Mas não somente no triunfo os cristãos enxergavam a
possibilidade de realização de seu ideal, mas também
na derrota. Durante a batalha, São Luís foi feito preso e
sua esposa, Margarida, que se encontrava com ele du-
rante a expedição tomou a dianteira do exército como
rainha da frança. Grávida e com o marido preso forne-
ceu ao mundo um brilhante testemunho de fé e fortale-
za diante dos inimigos bem como a desenvoltura admi-
nistrativa para lidar com os problemas que enfrentou na
frente, como a escassez de alimentos ou dinheiro para
continuar sustentando o exército.
Apesar da derrota em Mansurá, os cristãos ainda deti-
nham Damieta e fora a rainha Margarida quem recebera
do marido a chefia do exército na sua ausência. Estava
grávida de nove meses quando recebeu a notícia: os
cruzados haviam sido destroçados no deserto e o rei
caíra prisioneiro dos infiéis. A notícia da prisão de Luís
abalou tanto Margarida que, em todas as noites seguin-
tes, ela sonhava que seu quarto estava cheio de sarrace-
nos e acordava aos gritos: Socorro! Ajudem-me! E por
medo de matarem a criança que estava em seu ventre a
ranha obrigou um velho cavaleiro de oitenta anos a
dormir ao lado de sua cama segurando sua mão.
Sempre que ela acordava gritando, ele dizia "Senhora,
não tenha medo, pois estou aqui". Alguns dias após a
prisão do marido (8 de Abril de 1250), ela entrou em
trabalho de parto e nasceu um menino, ao qual ela deu
o nome de João Tristão por ter nascido no mais difícil e
triste momento da vida de seus pais.
Mas foi igualmente nesse momento de terrível angús-
tia que Margarida pôde mostrar uma firmeza de aço. A
silenciosa e escondida rainha, com seus poucos 29
anos, que até aquele momento aparece quase silencio-
sa nas crônicas e pouco mencionada pela história
mostra, na fraqueza de seu leito de parturiente, a
mulher firme e corajosa que era, a cristã verdadeira que
não fraquejava ante as piores provações: no mesmo dia
em que dera a luz, soube que os marinheiros de Pisa,
Gênova e de outras repúblicas italianas iriam deixar Da-
mieta. Convocou, então, todos os seus líderes ao seu
quarto e, ainda de cama, suplicou-lhes que não deixas-
sem a cidade, caso contrário o rei e os demais prisionei-
ros estariam perdidos, implorando que esperassem, ao
menos, que ela própria se recuperasse antes de parti-
rem. Eles explicaram que temiam morrer de fome em
razão da escassez de víveres, ao que ela se comprome-
teu a fornecer com seu dinheiro os mantimentos para a
cidade e o exército. Ante essa promessa, eles consenti-
ram em permanecer. Margarida cumpriu que prometeu
e despendeu ela própria de 360 mil libras o mais para
que fosse providenciada comida para os habitantes de
Damieta e para os cruzados.
A atitude firme de Margarida se manifestou ainda em
relação aos muçulmanos: eles queriam Damieta a qual-
quer custo, enviaram emissários para a rainha cristã re-
clamando a cidade, ameaçando que matariam seu
marido. Ela não cedeu. Conhecia Luís, sabia que ele pre-
feria a morte a ver a Cristandade ser dessa forma humi-
lhada pelo Islã. Os dias passavam, os muçulmanos fica-
vam cada vez mais furiosos em razão da obstinação de
Margarida, os barões em Damieta estavam tentados a
ceder, mas Margarida não aceitava. No seu leito puerpe-
ral, consumida pela tristeza e pela dor e entre lágrimas
e preces, Margarida de Provença manteve a coragem e a
fé. Não decepcionaria Luís, a cristandade, não trairia a
causa cristã, não entregaria Damieta por medo dos infi-
éis. Para demonstrar a todos que não cederia, fez com
que o cavaleiro idoso que lhe fazia guarda jurasse que
a decapitaria caso os árabes reconquistassem Damieta,
para que ela própria não caísse nas mãos dos infiéis.
(São Luís: O rei da coroa de espinhos, Lucas Lancaster)
Organizar uma expedição como essa não era fácil. No
geral, haviam apenas duas rotas possíveis: A primeira
pela europa, passando pelo mediterrâneo para somente
aí chegar a região da Anatólia e depois Jerusalém; e a
segunda era por mar. Em ambas as situações os exérci-
tos sofriam enormes baixas, as condições precárias de
saúdes possibilitavam o alastramento de diversas doen-
ças, além do alto custo com mantimentos ou reparo de
navios.
As pessoas podem se Perguntar: Como era, em geral,
um exército de uma cruzada?
No dia 25 de Agosto de 1248, o futuro São Luís, sua
esposa Margarida, seus irmãos Roberto e Carlos e uma
parcela do exército da Sétima Cruzada embarcaram em
Aigues-Mortes, no litoral mediterrâneo da Provença. O
exército de Luís IX era composto por 2.500 cavaleiros
acompanhados de seus escudeiros e valetes, 10.000
soldados de infantaria e 5.000 besteiros (somando
quase 25.000 homens) e por 7.000 a 8.000 cavalos. A
frota combinava 38 grandes navios e 1.800 embarca-
ções menores.
Após a entoação do Veni Creator Spiritus, a frota le-
vantou âncora e partiu rumo ao oriente. A viagem até o
Chipre durou pouco menos de um mês. O Chipre era
um reino católico, conquistado por Ricardo Coração de
Leão em 1191 e governado, naquele momento, por
Henrique I de Lusignan, rei de origem francesa. Desde
sua conquista pelos latinos na Terceira Cruzada, em
razão de sua posição estratégica no Mediterrâneo
Oriental, próxima tanto do Egito, quanto da Palestina e
da Anatólia, se tornou a base de todas as cruzadas sub-
sequentes e seria para a de Luís IX. Em 17 de setembro
de 1248, Luís desembarcou em Nicósia, capital do
Chipre e permaneceu por um ano lá até a chegada do
restante da armada.
No ano seguinte, na sexta feira antes do Pentecostes
de 1249, São Luís e a rainha Margarida embarcaram na
nau La Monnaie, assim como todos os cruzados estacio-
nados no Chipre. Joinville conta que "Todo o mar, desde
onde a vista alcançava, parecia coberta pela lona das
velas dos navios, que eram mil e oitocentos, grandes e
pequenos." (São Luís: O rei da coroa de espinhos, Lucas
Lancaster)
Causando tantos problemas, podemos ver que era im-
possível executar uma cruzada sem auxílio de algumas
outras nações e é aí que entra o fator militar e também
macropolítico entram em ação. Tanto o mundo oriental
quanto o mundo ocidental possuíam na raiz de suas so-
ciedades a vida em Deus, a adoração e preceitos religio-
sos que determinavam normas e condutas. A cultura,
como o estilo arquitetônico, músicas e roupas, eram
fortemente influenciadas pelo culto que ambos presta-
vam. No geral, a convivência era tranquila, como o foi
na Espanha até o século 15, entretanto, tamanha dife-
rença cultural ocasionava agressões. Para piorar, a dou-
trina islâmica define uma conversão mundial de todas
as nações ao islamismo, bem como a fé católica deter-
mina uma conversão mundial de todas as nações ao ca-
tolicismo.
Um outro fator é que muitas conversões na época
eram realizadas “por procuração” ou seja, o povo se
convertia após a conversão do rei ou líder. A fé era uma
unidade não só espiritual, mas civilizacional. A ida de
missionários de ambos os lados, bem como as micro-
-conversões realizadas em territórios alheios eram
motivo de temor e ameaça à ordem espiritual das duas
civilizações. Entretanto, havia na cultura de todo o
mundo daquela época um apreço pela batalha e pelo
combate, a Igreja tentou e sempre combateu esse espí-
rito com diversas condenações, no período pós império
carolíngio (império de Carlos Magno) foi instituída a
anarquia feudal, onde os homens guerreavam consigo
mesmos por terras, apostas ou qualquer outra forma de
juízo. Nesse espírito a Igreja estabeleceu os movimen-
tos de paz e trégua de Deus que estabelecia a definição
de guerra justa, tal definição se encontra viva até hoje
no catecismo (número 2309).
Entretanto, no islamismo, Maomé unifica os 3 aspec-
tos: político, militar e religioso colocando uma relação
de interdependência entre ambos. Sendo assim, após a
unificação de todo o mundo árabe em torno de uma
doutrina religiosa cria-se um forte império disposto a
converter o mundo seja pela via política, religiosa ou
militar. De imediato, essa configuração tornou-se uma
oposição intrínseca a cristandade medieval que
também possuía esses 3 princípios, mas definidos de
forma diferenciada. Podemos ver essa articulação no
episódio de São Luís com os mongóis:
“O mais notável acontecimento da permanência de São
Luís no Chipre se deu pouco antes do Natal de 1248: a
chegada de dois emissários dos mongóis, poderoso
povo asiático que, por pagão que fosse, estava há déca-
das em guerra contra os muçulmanos e procurava alian-
ças cristãs, tanto com os católicos quanto com os cris-
tãos orientais, contra o crescente islâmico. A aliança
proposta a Luís era um ataque conjunto ao mundo mu-
çulmano: enquanto os cruzados atacassem o Egito e
depois Jerusalém pelo Oeste, os mongóis se lançariam
sobre Bagdá, no atual Iraque, pelo leste, de modo que o
sultão do Egito não pudesse ir em socorro do sultão da
Síria (senhor de Bagdá), e este não viesse em socorro do
sultão do Egito. Luís, mais cristão que guerreiro, viu
nessa proposta mais do que uma aliança militar, mas
uma oportunidade de levar a fé a essas massas huma-
nas gigantescas que não conheciam a verdadeira reli-
gião. Não apenas concordou com a aliança militar, mas
enviou emissários pessoais para o senhor dos mongóis
com intenções missionárias.” -São Luís: O rei da coroa
de espinhos; Lucas Lancaster
Com essa digressão e explicação compreendemos que
militarmente a guerra foi uma defesa mas também foi
um choque civilizacional, mais abaixo podemos uma
linha histórica de todos os fatos desde a morte de
Maomé até a proclamação da primeira cruzada. Esses
fatos são bem explicados no livro “São Luís: O rei da
coroa de espinhos” e no livro “Cruzadas: uma história”.
Cronologia de eventos desde a morte de Maomé até a
proclamação da Primeira Cruzada:
Século VII
632: Maomé morre.
633: Mesopotâmia cai face à invasão muçulmana. Se-
gue-se a queda de todo o Império Persa.
635: Damasco cai.
638: Jerusalém é capitulada.
643: Alexandria cai terminando assim 100 anos de
cultura helénica.
648: Chipre é atacado.
649: Chipre cai.
653: Rodas cai.
673: Constantinopla é atacada.
698: Todo o Norte da África é tomado pelos muçulma-
nos. São apagados os vestígios de cultura romana.

Século VIII
711: Hispânia é atacada. O reino visigodo colapsa.
717: Os muçulmanos atacam Constantinopla de novo
e são repelidos pelo Imperador Leão III.
720: Narbona cai.
721: Saragoça cai. Avistamentos de muçulmanos na
França.
732: Bordeus é atacada e as suas igrejas são queima-
das. Carlos Martel e o seu exército detêm os muçulma-
nos. Os ataques na França continuam.
734: Avinhão capturada por uma expedição muçulma-
na.
743: Lyon é saqueada.
759: Os árabes são expulsos de Narbona.
Século IX
800: Começam as incursões muçulmanas na penínsu-
la itálica. As ilhas de Ponza e Isquia são saqueadas.
813: Civitavecchia, o porto de Roma, é saqueado.
826: Creta cai perante as forças muçulmanas.
827: Os muçulmanos começam a atacar a Sicilia (sul
da península itálica).
837: Nápoles repele um ataque muçulmano.
838: Marselha saqueada e conquistada.
840: Bari cai.
842: Mesina capturada e o estreito de Mesina contro-
lado pelos muçulmanos.
846: Os esquadrões muçulmanos chegam a Ostia, na
foz do Tiber, e saqueiam Roma e a Basílica de São
Pedro. Tarento, em Apulia, é conquistado pelas forças
muçulmanas.
849: O exército do Papa repele uma frota muçulmana
na foz do Tiber.
853-871: A costa italiana desde Bari até Reggio Cala-
bria é controlada pelos sarracenos. Os muçulmanos se-
meiam o terror no Sul de Itália.
859: Os muçulmanos tomam controlo de toda a
Mesina.
870: Malta capturada pelos muçulmanos. Bari recon-
quistada aos muçulmanos pelo Imperador Luis II.
872: O Imperador Luis II derrota uma frota sarracena
em Capua. As forças muçulmanas devastam Calabria.
878: Siracusa cai após um cerco de 9 meses.
879: O Papa João VII é obrigado a pagar aos muçulma-
nos um tributo anual de 25.000 mancusos (cerca de
625.000 dólares americanos modernos).
880: Os comandantes bizantinos conseguem uma vi-
tória em Nápoles.
881-921: Os muçulmanos capturam uma fortaleza em
Anzio e saqueiam as terras circundantes sem retalia-
ções durante 40 anos.
887: Os exércitos muçulmanos tomam Hysela e
Amasia, na Asia Menor.
889 Toulon capturado.

Século X
902: As frotas muçulmanas saqueiam e destroem De-
metrias, na Tesalia, Grécia central.
904: Tesalónica cai perante as forças muçulmanos.
915: Após 3 meses de bloqueio, as forças cristãs saem
victoriosas contra os sarracenos entrincheirados na sua
fortaleza no norte de Nápoles.
921: Peregrinos ingleses a caminho a Roma são esma-
gados por uma derrocada de rochas causada pelos sar-
racenos nos Alpes.
934: Génova atacada pelos muçulmanos.
935: Génova conquistada.
972: Os sarracenos são finalmente expulsos de Faxi-
neto.
976: O Califa do Egipto envia novas expedições muçul-
manas ao sul de Itália. O Imperador Oto II, que tinha o
seu quartel general em Roma, consegue derrotar os sar-
racenos.
977: Sérgio, arcebispo de Damasco, é expulsado da
sua sede por los muçulmanos.
982: As forças do Imperador Oto II são emboscadas e
derrotadas.

Século XI
1003: Os muçulmanos de Espanha saqueiam Antibes,
na França.
1003-1009: Hordas de saqueadores sarracenos prove-
nientes de bases na Sardenha saqueiam a costa italiana
desde Pisa até Roma.
1005: Os muçulmanos da Espanha saqueiam Pisa.
1009: O Califa do Egipto ordena a destruição do Santo
Sepulcro em Jerusalém, a tumba de Jesus.
1010: Os sarracenos apoderam-se da Cosenza, no Sul
da Itália.
1015: A Sardenha cai completamente em poder mu-
çulmano.
1016: Os muçulmanos de Espanha saqueiam de novo
Pisa.
1017: Frotas de Pisa e Génova dirigem-se à Sardenha e
encontram os muçulmanos a crucificar cristãos e expul-
sam o líder muçulmano. Os sarracenos tentaram reto-
mar a Sardenha até 1050.
1020: Os muçulmanos de Espanha saqueiam Narbona.
1095: O Imperador bizantino Aleixo I Comneno pede
ao papa Urbano II ajuda contra os turcos.
1096: É proclamada a Primeira Cruzada.
Acredito que aqui seja suficiente para compreender-
mos os reais motivos da cristandade em entrar em
guerra: motivos religiosos, choques de civilizações e es-
tratégia militar, seja como for, houve uma razão para
esses acontecimentos e ela paira muito longe da mera
aleatoriedade ou sede pelo poder. Ao leitor que chegou
até aqui pode se perguntar: e como acabou a tradição
guerreira das ordens templárias? Bem, ela acaba e não
acaba. Formalmente se encerra com a dissolução da
ordem templária, porém ela foi sucedida e recebeu uma
nova roupagem com uma finalidade igual mas em
meios diferentes: os homens que antes desbravam o
deserto em busca da terra santa agora desbravariam o
Oceano em busca do mundo novo e de novos povos
para evangelizar.
Em geral, a maçonaria tenta se apropriar dos símbolos
da ordem templária como forma de legitimar sua comu-
nhão com a Igreja Católica. Entretanto, a história nos
mostra que os verdadeiros herdeiros dos templários
foram os homens que aqui embarcaram com suas cara-
velas e deram nome a esta querida terra de Santa Cruz,
No site do professor Orlando Fedeli (Montfort) temos
um breve histórico do destino da ordem e de sua heran-
ça:
"Os Templários foram perseguidos pelo Rei Felipe IV,
o Belo. O processo foi iníquo. Aproveitando-se de erros
doutrinários e escândalos que realmente haviam se in-
filtrado na Ordem, o Rei Felipe o Belo, pressionou o
Papa Clemente V, a que fechasse a Ordem. No processo,
houve muitos abusos, e, até hoje, não se conhece o
quanto, de fato, havia de heresias e escândalos na
Ordem do Templo, e qual foi a real extensão do mal lá
praticado, às ocultas. Pena foi que o papa Clemente V --
dominado pelo rei francês -- tivesse fechado a Ordem,
em vez de apenas reformá-la, eliminando os erros e
abusos existentes. Dessa injustiça do Papa Clemente V,
aproveitaram-se certas seitas secretas para se dizerem
descendentes dos Templários. E nisso há muito de
fábula e de astúcia."
Como podemos ver, os templários foi uma ordem
criada para combater nas cruzadas e de caráter monás-
tico, com uma regra assinada e criada por São Bernardo.
Foi extinta de forma definitiva pelo papa Clemente V.
Porém, a história não acaba aí... Essa mesma ordem foi
ressurgida em Portugal a pedidos do Rei de Portugal, D.
Dinis, que desejava que os bens da ordem ficassem
guardados em terras lusitanas sob a tutela do rei. Dela
ouvimos falar quando se trata da ESCOLA DE SAGRES,
criadores das caravelas, evangelizando o novo mundo e
revivendo a ordem templária agora com o nome de
Ordem de Cristo. Se observarmos os símbolos das cara-
velas são os mesmos que estavam estampados nos es-
tandartes da ordem templária.
Que os maçons digam hoje que são herdeiros vinga-
dores da ordem templária não faz o menor sentido his-
tórico. Pois eles não possuem: os bens da ordem, a
regra, nem mesmo um propósito semelhante. A idéia
deles é apenas arrebanhar um significado simbólico na
tentativa de afirmar que o joio é o trigo.
A importância de conhecermos a história dos cruza-
dos e de todos que lutaram pela nossa fé é a de nos per-
mitir a coragem para lutarmos contra as imposições de
um mundo que cada vez mais busca se desfazer de
seus valores cristãos. Entretanto, com uma imagem
destruída os cristãos sentem-se cada vez mais tentados
a abandonarem essa luta, pois a luta, o conflito, se
tornou sinônimo de hipocrisia ou anti-cristianismo. O
pacifismo reina nas nossas almas e com ele a tolerân-
cia, única virtude permitida aos cristãos, que destrói e
corrói qualquer apreço ou vontade de vivermos os
nossos valores. Quando perdemos a vontade de lutar e
cremos que a luta será longa ou infrutífera é sinal de
que já perdemos, não há mais o que combater apenas
fingimos estar vivos enquanto já deitamos na cova es-
perando apenas alguém que coloque a terra em cima.
Como imagem perfeita para estes tempos tão difíceis
e de árdua luta duradoura temos a representação da
rendição dos muçulmanos na ibéria diante dos reinos
cristãos: Navarra, Castela, Leão, Aragão, Condado Por-
tucalense (posteriormente o Reino de Portugal). Passa-
ram anos dominados pelos muçulmanos e jamais desis-
tiram de reconquistar suas terras e reimplantar sua cul-
tura. Para quem não imagina, quando há um choque de
culturas uma tenta sobrepor costumes de outras, então,
por exemplo, nessa época havia o "imposto das vir-
gens"; tributo de cem jovens virgens para o emirado de
córdoba. O Reino das astúrias se revoltou (844 d.C.)
diante de tamanho disparate e a partir daí houve uma
sucessão de batalhas até a rendição completa em 1492
d.C. Repare no tempo e vejam quão trabalhoso foi lutar
para que a moral comum e ocidental juntamente com a
salvaguarda da fé cristã pudesse estar livre de abusos e
perseguições... Hoje em dia os mesmos europeus, her-
deiros dessa cultura e desse legado fazem-se de fingi-
dos e deixam tudo ser destruído. Quando eles mesmos
não destroem tudo como existem grupos LGBT’s fazen-
do zombarias de imagens de Cristo ou transformando
igrejas em museus

Cremos ser o ápice da história humana, mas a verdade


é que temos muito o que aprender com o homem me-
dieval: convicto de suas crenças e disposto a lutar por
elas; enquanto nós somos fracos e com fé de geleia,
usando de desculpas e subterfúgios para permitirem
que vilipendiem e destruam a fé.
“Na catedral, os cristãos se reuniam em torno do
padre que celebrava a missa em um altar olhando para
o Oriente e renovava, sem derramamento de sangue, o
máximo mistério do cristianismo: a Encarnação, Paixão
e morte de Jesus Cristo. Nas Cruzadas, as mesmas pes-
soas pegavam em armas para libertar a Cidade Santa de
Jerusalém que caíra nas mãos dos maometanos. O
túmulo vazio do Santo Sepulcro, junto com o Santo Su-
dário, são testemunhos vivos da Ressurreição e as mais
preciosas relíquias da Cristandade. A primeira Cruzada
foi pregada em decorrência da meditação das palavras
de Cristo: ‘Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si
mesmo, tome sua cruz e siga-me’ (Mt 16, 21-27).
Aquela mesma Cruz, em torno da qual se reuniam as
pessoas nas catedrais, foi estampada nas vestes dos
cruzados e exprimia o ato pelo qual o cristão se mostra-
va disposto a oferecer sua vida pelo bem sobrenatural
do próximo brandindo suas armas. O espírito das Cru-
zadas era, e continua a ser, o espírito do cristianismo: o
amor ao mistério incompreensível da Cruz.” (Apologia
da Cruzada, Professor Roberto De Mattei). E conclui o
mesmo professor italiano: “Expurgar a idéia de Cruzada
da ‘plataforma programática’ pessoal significa banir a
própria ideia do combate cristão.”
Bibliografia:

Cruzadas: Uma história - Jonathan Riley Smith (Cruza-


das)
São Luís IX: O rei da coroa de espinhos - Lucas Lancaster
(Cruzadas)
MICHAUD, Joseph Francois. História das Cruzadas. Tra-
dução de Vicente Pedroso. São Paulo: Editora das Améri-
cas.
INTRODUÇÃO

Felizmente, pesquisas recentes já têm corrigido o pre-


conceito, que durou séculos, de que a imagem da
mulher do medievo era apenas “gerar filhos”. Mesmo
marxistas e protestantes, a partir do momento que co-
nhecem minimamente a história medieval - mesmo tal
qual é estudada em faculdades -, são obrigados a reco-
nhecer que a mulher possuía uma liberdade e condições
muito superiores às civilizações romana, grega e judai-
ca1. No entanto, séculos desta mentira e décadas de
doutrinação feminista deixaram o seu legado tanto nos
meios anticatólicos quanto entre os católicos.
É importante notar que mesmo as acusações de que a
mulher era simplesmente uma “parideira”2 já compor-
tam uma redução do valor da maternidade: não é de es-
pantar que muitos dos que divulgaram esta mentira (e
ainda divulgam) são a favor de controle de natalidade
mesmo quando a vida já está formada. Mas é sim de se
espantar que quase todos que divulgam esta mentira
são entusiastas do advento de Direito Romano na Re-
nascença, o maior responsável para que, afinal, as mu-
lheres fossem realmente vistas simplesmente como
“barrigas”. Acontece que, no Direito Romano, o homem
era senhor máximo da casa, com direito de vida e morte
sobre todos, inclusive sua esposa e filhos (nascidos ou
não), todos lhe eram sujeitos numa posição similar à
servidão. Com o advento do cristianismo, a dignidade
do homem e da mulher foi vista como igual, tanto no
nível terreno como no nível espiritual. Naturalmente,
pode-se admirar os benefícios do Direito Romano e lhe
fazer ressalvas, mas é impossível fazê-lo honestamente
sem dar mérito a quem abriu a possibilidade de fazer
ressalvas: a Igreja Católica.
Dentro do meio católico, os fiéis tinham uma inclina-
ção quase natural para negar a difamação: ora, a Igreja
sempre reconheceu que a mulher é capaz de santidade
e, de fato, Nossa Senhora é o grande e majestoso
modelo de santidade que possuímos, abaixo apenas do
próprio Deus Filho. Além disso, alguns mais conhecedo-
res também sabiam que haviam mulheres casadas que
se tornaram santas3. No entanto, a falta da cosmovisão
medieval, que fundamentava a vida da cristandade, fez
os católicos modernos ou caírem no engodo e adotarem
a visão burguesa, ou reagirem justamente indignados,
mas irracionalmente, e defenderem que o objeto de di-
famação era, na verdade, uma virtude. Ou seja, eles
passaram a ver a geração dos filhos como a principal
atividade da mulher, exceto no caso ainda mais digno
da vocação à virgindade (como ensina a Santa Madre
Igreja).
Acontece que, apesar da geração ser um ato belíssimo
e, aliás, ter sido o caminho que a própria Salvação veio
ao mundo, ela não é, em si ao menos, um meio de reali-
zação de vida. Nenhuma santa foi canonizada apenas
por ter quinze filhos. A geração ainda é, em sua base,
uma atividade animal: Animais geram e até ‘educam’
seus filhos; os leõezinhos aprendem a caçar com a leoa.
Ora, na prática, portanto, esta visão limitante acaba por
criar uma experiência de dignidade inferior, pois o
exemplo é mais convincente do que as palavras.
Qual é, portanto, a visão mais completa da situação?
Está claro que a resolução do problema, portanto, de
uma só vez nos iluminará sobre nossa própria situação
e sobre a história medieval. Para alcançar esta resposta
não é possível fazê-lo apenas pelo método histórico,
este precisa receber um reforço de conceitos mais apu-
rados, de uma visão mais completa da vida humana, ou
seja, é preciso usar o método histórico com um olhar
mais maduro.
O primeiro passo o próprio método histórico alcança:
é impossível entender a época sem entender como a
época se entendia. Antes de criticar ou elogiar a situa-
ção das mulheres medievais, parece falta de educação
não perguntar a elas mesmas o que pensavam a respei-
to. O que uma mulher ou homem medieval enxergavam
como realização pessoal? Para responder a isso, será
preciso se afastar da questão de gênero por um breve
momento.
A realização máxima de uma pessoa é a santidade. A
visão medieval – a visão cristã - sobre realização partia
deste princípio: todos somos chamados a ser perfeitos.
No entanto, esta perfeição não é abstrata, mas encarna-
da na pessoa concreta, em sua situação concreta, cuja
primeira atividade é cumprir os deveres de estado.
Porém, apenas cumprir os deveres de estado é... apenas
fazer a própria obrigação, apenas não se revoltar com
as circunstâncias, mas não uma realização do “Eu”. Nos
dirá o filósofo Ortega e Gasset “se não salvo as minhas
circunstâncias, não salvo a mim”, com isto Ortega nos
ensina que a realização do “Eu” é mais do que apenas
acatar as circunstâncias, mas elevá-las. Esta resposta
livre e generosa às circunstâncias não faz, necessaria-
mente, um santo, mas é um meio de realizar ações que,
por assim dizer, saciem a sede de justiça do “eu”. Ela
sacia a “sede de justiça” pois sempre é direcionado ao
bem do próximo, fazendo-nos participar da própria Jus-
tiça: o “Eu” jamais será saciado senão por tornar-se mais
próximo das virtudes e da santidade, pois todos os
bens externos sempre aparece-nos na dualidade de
poder ser usado para o bem ou para o mal, por ser pas-
sageiro, poder provocar dor ou prazer. Enfim, o recebi-
mento de um bem externo sempre será acompanhado
da espera de seu fim.
Esta complementaridade não é acidental: a santidade
é o aspecto do Primeiro Mandamento, amar ao Deus
acima de todas as coisas; salvar as circunstâncias é o
aspecto do Segundo Mandamento (na síntese dada pelo
Cristo), amar ao próximo como a si mesmo. A circuns-
tância aqui também está encarnada numa pessoa con-
creta ou em pessoas concretas, salvamo-las entregando
um bem que elas não poderiam ter. Gradualmente, este
hábito de viver salvando estas pessoas torna-se uma
descrição da própria vida do sujeito e ele será melhor
em entregar alguns bens do que outros.
O professor Luiz Gonzaga de Carvalho Neto sintetizou
três caminhos possíveis para uma vida satisfazer-se, se-
gundo os três diferentes tipos de bens que ela pode
doar4. A primeira é a entrega de bens materiais, através
da produção de riquezas, da manipulação da matéria,
Ex.: fazer um rebanho multiplicar-se com maestria per-
mite saciar a fome dos pobres, vender a carne mais
barata para aqueles com menos condições, etc; outra
possibilidade é cuidar do jardim e da casa para que sua
visão seja sempre agradável e confortadora; ou, por
fim, a escrita de um poema ou de música são manipula-
ções de elementos, ao menos originalmente, materiais.
Em outras palavras, a criação de um ambiente de pros-
peridade e beleza criam condições melhores para a so-
ciedade, mesmo que esta prosperidade não se espalhe
imediatamente para toda a sociedade de uma só vez,
pois mesmo apenas uma esmola já é um ato completo.
Para que possa haver prosperidade, é preciso que
alguém proporcione segurança contra feras, ladrões,
inimigos, etc. Este é o segundo caminho, que alivia o
sofrimento do próximo seja uma dor, um risco de vida,
uma ofensa, agravo jurídico ou coisa similar. Trata-se
de uma luta para livrar a pessoa de uma condição que
não condiz com sua dignidade. Por fim, o terceiro cami-
nho é a busca por despertar nas pessoas a própria cons-
ciência de sua dignidade por uma busca pessoal de sa-
bedoria. Aquele que buscou ser sábio, saberá despertar
no próximo o que há de melhor em si, aconselhará
como perseverar nas virtudes, nas orações, o afastará
de erros e criarão ensinamentos que ajudarão gerações
a preservarem sua fé.
Na Idade Média não encontraremos tal formulação
abstrata, mas estes caminhos encontram-se mais ou
menos cristalizados em classes sociais: o camponês, o
artesão, a aristocracia guerreira, o clero. O pertenci-
mento a uma classe não determina o caminho, mas con-
diciona. Assim, uma camponesa que deseje ser sábia
terá dificuldades em aplicar tal busca em sua rotina fora
do convento. Não obstante, todos estes caminhos de re-
alização estavam ao alcance e foram realizados por mu-
lheres ao longo de toda a Idade Média: a mulher não era
vista como “incapaz” ou impedida de qualquer realiza-
ção por conta de seu gênero.
Vejamos, finalmente, os dados históricos.

Prosperidade e Beleza:
Ao contrário dos que muitos possam pensar, o cami-
nho da prosperidade não é impossibilitado pelo voto de
pobreza, pois a produção de riquezas não implica, ne-
cessariamente, a posse delas. Por isso, muitos monges
e padre paroquiais podem ter o legítimo desejo de fazer
sua paróquia crescer materialmente, construir uma
Igreja maior e mais bela, criar as condições materiais
para que suas pastorais tenham uma ação ainda mais
benéfica ou que seu mosteiro tenha uma horta mais
produtiva. Assim, na Idade Média, também muitas aba-
dessas tiveram condições invejáveis de administrar
grandes terrenos de terra, territórios com diversas cida-
des, etc.
São os registros de impostos e litígios jurídicos, no en-
tanto, que revelam que mesmo as leigas da época exer-
ciam diversas funções: professora, médica, boticária,
estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encaderna-
dora, cabelereira, etc5. Desenvolver uma técnica ou
uma arte, coloca-la à prova e ser reconhecido por sua
utilidade dentro da sociedade, chegando até a se tornar
referência... Mais do que profissões, estes são meios de
gerar valor e desenvolver a própria personalidade. Com
a renda destas atividades, a mulher podia contribuir nas
finanças domésticas ou usar para seus próprios interes-
ses, não dependendo exclusivamente de doações do
marido.
Algumas destas profissões eram exclusivamente femi-
ninas e, aliás, tratavam-se de produção de artigos de
luxo no ramo da tecelagem e vestuário: era preciso
muita habilidade e delicadeza. O desenvolvimento
dessa habilidade significa, em suma, uma posição de
destaque no maior ramo medieval, o mesmo que conce-
deu ao pai de São Francisco uma situação bastante con-
fortável financeiramente6.
De algumas profissões as mulheres eram, geralmente,
afastadas por exigirem um esforço demasiado, é o caso
da tapeçaria. Mas elas fizeram-se presentes até mesmo
na metalurgia, fabricando de brincos a armaduras. O
ramo em que as mulheres eram mais numerosas é na
produção e comercialização de alimentos: salsicheiras,
queijeiras, vendedoras de galinhas, padaria, carnicei-
ras, leiteiras, etc, etc.
Responsáveis por tantos papéis sociais, as mulheres
eram igualmente responsáveis por eles juridicamente:
outra conquista da Igreja foi a soberania jurídica femini-
na, que agora podia mover processos e defender-se
sem estar subordinada ao marido. Já sabe-se que as
mulheres exerciam até mesmo o direito a voto em di-
versas comunas. De fato, por sua importância para a so-
ciedade e por produzir com o marido os bens do lar,
este não poderia dispor das propriedades da família so-
zinho, como apontam alguns documentos de transa-
ções econômicas que atestavam o consentimento da
mulher em uma doação ou venda.
Ainda, as oficinas de trabalho eram, em sua maioria,
partes do próprio lar e uma atividade que facilmente
podia ser feita com o marido, assim como os trabalhos
nos campos. Assim, não havia divisão radical entre os
cuidados com filhos, esposo e serviços. Além disto,
muitas famílias possuíam membros adultos que não
eram descendentes e podiam cuidar das crianças em
casa, como tias solteiras ou primos solteiros.
Finalmente, a própria decoração da casa e o capricho
nos trabalhos realizados, nos bens produzidos, era uma
forma da mulher tornar o ambiente ao redor mais belo.
Esta singela preocupação, que comporta até mesmo o
cuidar de jardins, possui uma capacidade de realização
diária, pois entrega um conforto a todos que convivem
e relacionam-se com ela. A capacidade de encontrar
sentido na administração do lar não pode ser menos-
prezada.
E a capacidade de criar formas belas não era restrita
ao lar ou produtos: a abadessa de Gandersheim e poeti-
sa Hrotsvitha (ou Rosvita), escreveu 6 comédias inspira-
das por Terrêncio, no século X. Santa Hildegarda de
Bingen, doutora da Igreja, compôs diversos hinos e
poemas que atravessaram os séculos. Temos ainda
muitos outros exemplos de poetisas medievais, como
Clara d’Anduza, Marguerite d’Oingt, Maria da França e
Cristina de Pisano. E não se pode deixar de aludir aos
próprios hinos cantados nas igrejas, uma beleza criada
para louvar a Deus e elevar a alma de toda a comunida-
de.
Por fim, podemos mencionar a vida de duas beatas
que darão o tom de como estas realizações foram pos-
síveis.
Beata Ida de Bolonha (1040 – † 1113) teve um casa-
mento piedoso, gerou dois reis de Jerusalém e cavalei-
ros cristãos honrados (Godofredo de Bouillon e Balduí-
no). Filha de um duque e casada com um conde, esta
mulher piedosa usou suas riquezas para fundar diver-
sos mosteiros, além de promover a reforma iniciada em
Cluny. Assim, Ida tornou-se modelo de como usar a
prosperidade para a maior glória de Deus.
Mas não é apenas através de grandes riquezas que é
possível fazer o caminho da prosperidade servir aos de-
sígnios de Deus, quem nos ensinará isto é Beata Maria
da Cabeça, ou Toríbia. Maria casou-se com Isidoro, co-
nhecido por ‘o Lavrador’, que por sua vida piedosa foi
canonizado pela Igreja. Esse casal de santos campone-
ses não apenas trabalhava arduamente, o que lhes per-
mitia a distribuição de esmolas apesar de serem
pobres, como também tinham uma piedade louvável:
assistiam a Santa Missa diariamente. A vida simples
deste casal é uma vela que prova a capacidade de reali-
zar a narrativa da prosperidade mesmo em condições
precárias, trabalhando para prover o possível aos que
mais precisam. É a santificação nas pequenas coisas.
Estes exemplos devem deixar claro um aspecto do ca-
minho da prosperidade: ele é uma base social para
outros caminhos, ele cria as condições materiais para o
cavaleiro, para o médico, para o monge estudar Santo
Agostinho e Aristóteles. Portanto, tal busca por prospe-
ridade não pode ser confundida com ganância e nem a
busca pela criação de coisas belas como vãs preocupa-
ções, pois também esta concede alívio ao herói cansado
e nutre a inteligência e vontade dos sábios e toda a co-
munidade desejar o Bem.

Alívio do Sofrimento:
A atividade política da mulher já foi mencionada por
sua capacidade de voto nas comunas, mas elas também
marcaram presenças na alta política como administra-
doras ou em união com a vocação de seus maridos. A
atividade de administração da nobreza era um dos ca-
minhos para aliviar o sofrimento, de assegurar a justiça
em seus territórios através do poder e da riqueza herda-
das e recebidas por impostos. A personalidade que
mais se destaca neste aspecto é Eleonor da Aquitânia
(1137 – † 1204), uma das mulheres mais poderosas de
toda a Idade Média, assumiu posição de liderança na Se-
gunda Cruzada e liderou exércitos em muitas ocasiões.
Antes de sua morte, a mulher mais poderosa da época
tomou um véu na abadia de Westminster. Sua neta, a
rainha Branca de Castela (1188 - † 1252), mãe de São
Luís IX, também foi reconhecida por sua excelência
como estadista, e seu filho reconheceu o quanto devia
a ela pela administração do reino, confiando-o quando
da Sétima Cruzada. Outras rainhas também foram im-
portantes em sua época, auxiliando os maridos nas
questões de Estado, como Adelaide de Saboia (1092 - †
1154), Adélia de Champanhe (1140 – 1206), ou a culta
Isabel de Hainaut, Joana I de Auvérnia, etc.
No campo militar, as mulheres também marcaram pre-
sença. Santa Joana D’Arc é, com certeza, o exemplo
mais notável, mas não o único. Pelo contrário, Santa
Joana ficou famosa conciliar uma piedade luminosa
com o caminho militar, mesmo sendo mulher. No en-
tanto, temos muitas histórias notáveis de mulheres que
mostraram seu valor em batalhas, como Jeanne Hachet-
te, “Joana Machadinha”, no século XV, que defendeu sua
cidade bravamente numa atitude decisiva, ganhando
sua alcunha de ‘Hachette’. Seu feito foi reconhecido
pelo rei Luís XI que lhe concedeu alguns privilégios.
Joana de Flandres (1295 - † 1374) também foi reconhe-
cida por sua liderança militar, convocando mesmo as
mulheres para defender a cidade, e Isabel de Conches,
no século XI, também ficou famosa por lutar de armadu-
ra completa num conflito no norte da França.
Temos ainda Etelfleda (870 – † 918) que foi reconheci-
da por seus feitos militares, Sikelgaita (1040 – † 1090)
por batalhar bravamente de armadura completa, A
Grande Condessa, Matilda de Canossa (1046 - † 1115)
e numerosas outras mulheres como Emma de Gauder,
Gwenllian (1100 - † 1136) e Margaret of Beverly, para
citar as mais notáveis. Por fim, temos a Orden del Hacha
(Ordem do Machado), criada pelo conde de Barcelona,
Ramón Berenguer IV, em 1150, para honrar as mulheres
que combateram no cerco de Tortosa contra os muçul-
manos, e a Ordo Militiae Mariae Gloriosae, fundada em
1261, que admitia mulheres guerreiras, as militissa.
Mas o papel nas mulheres na guerra não pode ser re-
sumido apenas a participação militar direta, tendo sido
essencial sua participação em locais mais reservados,
cuidando de doentes e feridos, provendo alimentação
às tropas ou elevando a moral. Aquelas se tornaram he-
roínas ou personalidades admiráveis, estas são em
grande parte anônimas com nobre espírito de entrega
pela sociedade que apenas queriam seguir seu impulso
piedoso, nas cruzadas, ou conjugal, acompanhando e
auxiliando o marido mesmo próximo ao campo de bata-
lha. Sabe-se ainda, que mulheres desempenharam fun-
ções de espiãs e agentes secretos.
O tratamento dos doentes e auxílio aos pobres será
um dos caminhos mais belos para a mulher medieval,
como o é ainda hoje. Ainda que algumas profissões
possam ser naturalmente vias deste caminho de auxílio
do sofrimento pela medicina como as curandeiras da
aldeia, parteiras (exclusiva para mulheres) e até médi-
cas ou enfermeiras, muitas mulheres adotaram esta
missão gratuitamente imitando os modelos de rainhas,
santas e outras mulheres piedosas. Diga-se, aliás, que
os hospitais foram invenção da cristandade e mosteiros
e conventos costumavam atender doentes e cuidar do
enterro dos defuntos piedosamente. Tal atividade é
ainda mais digna pois o modelo do médico medieval era
o Cristo e cada paciente era um Cristo, pois o Cristo
vivia neles.
Elizabete da Hungria não apenas fundou um hospital,
mas cuidava ela mesma dos doentes, especialmente aos
mais repulsivos. Sua irmã, Santa Edwiges, duquesa da
Silésia e da Polônia, tornou-se uma verdadeira mãe para
seu povo. Ela e seu marido, Henrique I, doaram para as
ordens religiosas do país, cuidaram dos pobres, dos
órfãos, das viúvas e fundaram diversos hospitais. Sobri-
nha de Santa Isabel da Hungria foi Santa Cunegunda,
que seguiu o carisma de sua família real no cuidado aos
doentes. Beata Maria D'Oignes cuidou de leprosos (na
época, achavam que era muito mais contagiosa e não
tinha cura) e transformou sua casa em abrigo para desa-
brigados. Outro exemplo é Santa Margarida da Escócia
visitava hospitais e prisões, cuidando e doando alimen-
tos e bebidas, ou ainda Beata Aliete, mãe de São Bernar-
do de Claraval, cuidava e servia dos pobres e enfermos
com humildade. Para não tornar os exemplos ainda
mais exaustivos, Santa Brígida da Suécia nos mostra
como cada uma destas vidas eram, elas próprias, se-
mentes de virtudes: desejosa de fazer seus filhos serem
verdadeiramente cristãos, sempre os levou para cuidar
dos doentes. Assim, podemos ver que a aristocracia
medieval, diferente do que imaginam, não era uma
classe ociosa: mesmo quando havia ocasião de ócio, os
homens e mulheres de valor da nobreza buscavam ocu-
pações piedosas para sacrificar-se pelo próximo. Ah, se
um por cento de seus críticos tivessem tamanha dispo-
sição!
Santa Isabel de Portugal é um verdadeiro modelo e
motivo de orgulho para o povo brasileiro e lusitano:
depois de muito sofrer pelo seu marido, a morte deste
finalmente a libertou. Tomou o hábito de Santa Clara
sem tomar os votos para poder usar toda sua riqueza
para a caridade. Cuidou de órfãos pobres, noivas sem
dote, distribuía esmola aos presos, lavava os pés dos
mendigos e beijava os pés dos leprosos. Tanto quanto
as ações de caridade, o sofrimento que ela passou pelo
marido, aguentando seu temperamento difícil e infideli-
dade, até mesmo adotando os filhos ilegítimos, tudo foi
convertido e aceito por ela para o bem e a paz de sua
nação.
O cuidado aos doentes como vocação, no entanto, não
parou aí. A faculdade médica de Salerno admitia estu-
dantes e professoras mulheres. Trotula de Salerno, por
exemplo, foi a primeira ginecologista do mundo, cujos
tratados de anatomia e fisiologia feminina foram
usados por séculos. Mas Salerno também produziu um
grupo notável de mulheres médicas, como Constânce
Calenda, Rebecca Guarna, Abella (especializada em em-
briologia) e Mercuriade foram as mais influentes.
Estes foram apenas alguns exemplos que revelam
como este Caminho poderia ser trilhado por campone-
sas, rainhas, monjas e estudiosas. A Igreja Católica,
cabe lembrar, foi a instituição que mais prestou servi-
ços de caridade nos últimos milênios e ainda o é hoje.

Sabedoria:
Já pudemos demonstrar que as mulheres da cristanda-
de não eram proibidas de estudar, como sugerem algu-
mas feministas. Pelo contrário, houveram muitas mu-
lheres cultas especialmente no convento e secundaria-
mente na aristocracia. No campo havia uma dificuldade
material que impossibilitava uma educação em larga
escala, tanto para as mulheres quanto para os homens.
Assim, por muito tempo o convento foi o melhor meio
de alcançar a sabedoria, pois além da contemplação das
Sagradas Escrituras, também era um local de erudição,
onde mesmo os clássicos da sabedoria pagã estavam
conservados. Apenas como exemplo de abertura pode-
mos citar Heloísa, ex-amante do herege Pedro Aberla-
do, que ensinou grego e hebraico às monjas no seu
convento.
A falta de instrução para a população em geral era em
parte compensada por pregações e pelas próprias ima-
gens das Igrejas que serviam como pequenos catecis-
mos, representando a vida dos santos, passagens do
Antigo Testamento e a Vida de Cristo. Era o que era pos-
sível, tentava-se garantir que a população teria o essen-
cial para bem conduzir suas vidas e sua falta foi um
grande fator para o crescimento de heresias, assim
como a educação hoje é o grande fator para a submis-
são a ideologias. A presença ou falta de educação oficial
certamente não é um fator para se julgar uma socieda-
de.
As mulheres medievais tiveram até mesmo uma vanta-
gem em relação aos homens: nos conventos não havia
o mesmo clima de disputa lógica que nas universidades
e nas escolas catedrais. Se a disputa pode ser um ótimo
meio de pôr o entendimento à prova, ela também é um
meio para submeter todo conhecimento ao ego vaido-
so. Foi este, em parte, o erro que muitos hereges
caíram, incluindo o próprio Pedro Abelardo, antes de
sua conversão. Nas disputas em que a razão ou o amor-
-próprio do estudioso quer o papel principal, é a sabe-
doria que sempre sai perdendo. Os conventos estavam
preservados deste vício, as monjas possuíam um inimi-
go a menos para buscar a sabedoria sem pervertê-la,
apenas conforme a necessidade, a ocasião e o amor. Tal
experiência é mais difícil de conceber atualmente do
que pode parecer à primeira vista, pois nossa experiên-
cia está manchada pelo nosso próprio sistema educa-
cional onde centenas de assuntos são despejados na
mente dos jovens sem que estes tenham capacidade
mínima de reconhecer seus conceitos na experiência
real. O adolescente moderno fala “evolução” com a
mesma naturalidade da criança que ainda acha que o
leite de caixinha “vêm do mercado”. Tal digressão é de
extrema importância para que se entenda de que ema-
ranhado de confusões estavam livres as monjas.
Assim, algumas figuras se destacam neste tempo.
Santa Hildegarda, para além de seu currículo imbatí-
vel7, foi universalmente reconhecida em seu tempo,
tendo seus escritos lidos e elogiados pelo próprio Papa
em um concílio, sem contar os homens de todas as
partes que lhe escreviam pedindo conselhos, incluindo
São Bernardo. Se havia algum preconceito contra o inte-
lecto feminino na cristandade, esqueceram de informar
aos papas, bispos, monges e às personalidades políti-
cas mais importantes da época. Mesmo tendo sido a
maior de seu tempo, foram abadessas como Hildegarda
que formavam as monjas, mas tratava-se de uma forma-
ção integral, pois a monja não seria uma “erudita” sus-
tentada pelo trabalho dos outros: aprender a orar; pro-
duzir algo para sustentar o mosteiro, como remédios,
tecidos ou alimentos8 ; além de estudar as Sagradas Es-
crituras e as letras clássicas; e, por fim, colocar a humil-
dade e a caridade em prática servindo às irmãos na lim-
peza do mosteiro ou à comunidade no cuidado dos en-
fermos ou defuntos. Além de tudo isso, a própria admi-
nistração de um ou vários conventos requeria uma téc-
nica elaboradíssima, para ser passada para as futuras
abadessas. Menosprezar tal rotina é fruto de uma falta
de imaginação doentia e soberba.
Além de Hildegarda, muitas outras mulheres foram
respeitadíssimas pela sua inteligência, mesmo quando
eram analfabetas. É o caso de Santa Catarina de Sena,
por quem os teólogos da época viajavam centenas de
quilômetros para a ouvir e influenciou enormemente o
cenário político da época. Temos também as irmãs
Santa Matilde de Hackeborn e Gertrude de Hackeborn, a
primeira fez seu monastério ser reconhecido pela pros-
peridade cultural e espiritual, sendo reconhecida pela
sua bela voz e por seu conhecimento místico. O conhe-
cimento místico, devemos lembrar, é o mais respeitado
na Idade Média, pois é uma espécie de sabedoria que
provêm da própria relação com a Sabedoria, o Cristo, e
nos conduz a ela. Sua irmã, Gertrude, era zelosa para
que suas freiras no convento de Helfta aprendessem as
Artes Liberais e as Sagradas Escrituras, além de pedir
que copiassem tantos bons livros quanto fosse possí-
vel. Sob a tutela de Gertrude temos outras duas místicas
importantes: Matilda de Magdeburg, que escreveu di-
versos livros, inclusive em alemão, e Santa Gertrudes de
Helfta, importantíssima na dilatação da devoção ao Sa-
grado Coração. De fato, em uma de suas visões, o pró-
prio São João Evangelista conta que escutou as batidas
do Coração de Cristo na Última Ceia, mas que esta reve-
lação estaria guardada para reavivar o amor e a fé
quando o mundo já estivesse esfriado. Bento XVI men-
ciona este luminoso mosteiro em sua catequese sobre
Santa Matilda de Hackeborn:
“Em 1261, chega ao convento uma menina de cinco
anos, de nome Gertrude: é confiada aos cuidados de
Matilde, com apenas vinte anos, que a educa e guia na
vida espiritual até fazê-la não somente excelentes discí-
pulas, mas a sua confidente. Em 1271 ou 1272, entra
no mosteiro também Matilde de Magdeburgo. O lugar
acolhe, assim, quatro grandes mulheres – duas Gertru-
de e duas Matilde –, glória do monaquismo germânico.
Na longa vida transcorrida no mosteiro, Matilde é afligi-
da por contínuos e intensos sofrimentos, aos quais se
juntam duríssimas penitências escolhidas para a con-
versão dos pecadores. Desse modo, participa da paixão
do Senhor até o fim da vida. A oração e a contemplação
são o húmus vital da sua existência: as revelações, os
seus ensinamentos, o seu serviço ao próximo, o seu ca-
minho na fé e no amor têm aqui as suas raízes e o seu
contexto. No primeiro livro da obra Liber specialis gra-
tiae, as redatoras recolhem as confidências de Matilde
explicadas nas festas do Senhor, dos Santos e, de modo
especial, da Beata Virgem. É impressionante a capacida-
de que essa Santa tem de viver a Liturgia nos seus
vários componentes, também aqueles mais simples, le-
vando-os à vida cotidiana monástica. Algumas imagens,
expressões e aplicações às vezes estão distantes da
nossa sensibilidade, mas, se se considera a vida monás-
tica e a sua missão de mestra e diretora do coro, colhe-
-se a sua singular capacidade de educadora e formado-
ra, que ajuda as coirmãs a viver intensamente, partindo
da Liturgia, todos os momentos da vida monástica.”9
Entre as leigas, Branca de Castela destaca-se por con-
seguir educar pessoalmente seus oito filhos enquanto
assumia as funções do reino em plena cruzada contra
os albigenses e Christopher Dawson menciona como a
própria Leonor da Aquitânia e suas filhas tornaram suas
cortes em difusores de cultura e literatura de corte, mo-
vimento que tomou toda a Europa. A atuação das leigas
seguirá este padrão, algumas serão instruídas, mas não
serão famosas pela própria sabedoria senão que gera-
rão a cultura e sabedoria em sua prole ou em sua corte.

***

Não devemos pensar, idealizando a Idade Média, que


os caminhos estavam igualmente abertos para todas as
mulheres: o dever de estado as impedia. Mesmo uma
filha que desejasse entrar para um convento poderia ser
aconselhada a desistir ou até impedida caso a escolha
fosse causar grandes danos a seus pais, por não possuí-
rem nenhum modo de sustentarem-se na velhice. Da
mesma forma, uma princesa poderia sentir-se chamada
a responsabilidade de casar-se pelo bem do reino, em
obediência aos pais, apesar de sentir desejo pela virgin-
dade. E a filha do artesão poderia ter muitas atribuições
na oficina que a impedissem de aliviar o sofrimento do
próximo habitualmente. Surpreendentemente ou não,
estas coisas não eram motivo de angústia como a trau-
mática escolha de profissão moderna justamente por
não haver tantas opções. A mulher medieval não tinha
ressentimento por não virar “médica” ou “advogada”,
pois aquilo não era um ideal de “realização”. Maior an-
gústia estava em não ser capaz de fazer um bem ou não
saber discernir entre o bem e mal em determinada oca-
sião10. Se ela quisesse ser “médica”, corria até a casa de
alguém que soubesse e pedia umas lições!
Além do mais, A aceitação dos deveres de estado,
mesmo quando nos contrariam, é o primeiro passo da
vida cristã, é carregar a cruz. Uma vez aceita a cruz, é
possível buscar o bem que a situação abre para si e agir
para realiza-lo, este bem permite alcançar uma tranqui-
lidade superior ao sofrimento da contrariedade. Portan-
to, é lógico que, como em toda e qualquer época, a
mulher medieval encontrava obstáculos à sua realiza-
ção pessoal, mas esta, em si, não era o valor máximo.
Elas estavam como que livres desta ilusão.
O próprio problema do casamento arranjado era um
amplo espectro que poderia variar entre previsão pru-
dente dos pais, solução de necessidades econômicas e
interesses viciosos. Nos casos de casamento forçados,
que para muitas civilizações pagãs sempre foi natural, a
Igreja foi a instituição que mais combateu e mostrou-se
mesmo disposta a anulá-los, após avaliar o caso.
A história de como essa ilusão contaminou o universo
feminino iniciará quando, primeiro, ela será trancada
dentro de casa. Os romances modernos representarão
como a mulher primeiro iludiu-se que poderia saciar-se
com um amante numa paixão carnal; depois, pelo inte-
resse da classe burguesa de não pagar salário para um
homem prover para toda sua família, o trabalho femini-
no foi incentivado em massa e o desenvolvimento deste
processo levou a uma inserção completa da mulher no
mercado de trabalho. Em grande medida, esta entrada
foi por necessidade financeira, e não por desejo, mas a
“realização profissional” foi uma ilusão implantada com
sucesso para que o homem se tornasse um perfeito me-
canismo das empresas por livre e espontânea vonta-
de11. Ironicamente, a chamada independência da
mulher em relação ao marido deu-se numa relação de
dependência para com pessoas que não possuíam uma
fração das obrigações que o marido tinha para com a
mulher.
Observando, porém, toda a amplitude de atividades
que as mulheres da cristandade desempenharam e que
foram vias de santificação, já foi comprovado que é na-
tural e benéfico que elas busquem magnanimamente
realizações que transbordem do seu lar. Isto será, natu-
ralmente, integrado e absorvido por sua própria ativida-
de como mãe e esposa, e o mesmo é válido para as situ-
ações de emprego, como o carisma da Opus Dei com-
prova. O que invariavelmente será corrosivo é a cisão e
o vício individualista de que ela precisa realizar-se inde-
pendente de sua relação com o esposo. A recíproca é
verdadeira, o balanço ideal só pode ser discernido em
cada caso concreto.
Por fim, é necessário rematar que os exemplos e
dados históricos apresentados neste capítulo não afir-
mam que os personagens ou classes citadas possuíam
tal ou qual caminho, mas apenas confirmar por exem-
plo biográfico ou dados históricos que haviam cami-
nhos definidos onde se poderia realiza-los. Ou seja,
Santa Hildegarda não é citada como uma vocacionada
para o caminho da Sabedoria, da prosperidade e beleza
ou do alívio de sofrimento - inclusive porque ela reali-
zou os três – mas ela comprova que tal caminho poderia
ser realizado.
Mulheres medievais trabalhando com linho

Mulheres medievais caçando

Mulheres medievais ensinando geometria

Mulheres medievais defendendo sua cidade


Santa Elizabete da Hungria banhando um mendigo

Santa Edwiges cuidando dos doentes e dos prisioneiros.


Igreja Notre-Dame Phare Calais, fundada por Beata Ida.
Notas

1. Em alguns povos bárbaros, as mulheres possuíam estatuto igual


ou similar aos homens.
2. A afirmação é uma acusação à civilização ocidental, mas
também é utilizada para identificar a mulher ao proletariado, criar
ressentimento e fazer dela uma massa de manobra para propósitos
revolucionários.
3. Santa Salomé, Santa Emília, Santa Nona, Santa Mônica, Santa
Paula Romana, Santa Melânia, Santa Quieta, Santa Clotilde, Santa
Plectruda, Santa Godelina, Santa Matilde, Santa Ludmila, Santa
Edwig, Santa Isabel da Hungria, Santa Gerardesca, Santa Humiliana,
Santa Cunegunda, Santa Humildade, Santa Ângela, Santa Isabel de
Portugal, Santa Catarina da Suécia, Santa Francisca Romana, etc..
Enfim, a lista é extensa.
4. O leitor familiarizado com a exposição de professor, mais co-
nhecido como “Gugu”, talvez estranhe aqui algumas adaptações.
Trata-se de uma leitura possível e por um ângulo diverso, simples-
mente
5. Os documentos se referem a centenas de profissões diferentes.
6. Curiosamente, o “botão” foi invenção do século XIII.
7. Monja beneditina, mística, teóloga, compositora, uma das mais
famosas pregadoras da época, naturalista, médica informal, poetisa,
dramaturga, botânica, escritora alemã e mestra do Mosteiro de Ru-
pertsberg em Bingen am Rhein, na Alemanha, além de santa e dou-
tora da Igreja.
8. As monjas produziam até mesmo cerveja e a própria Hildegarda
fez acréscimos a receita que mantemos até hoje.
9. https://noticias.cancaonova.com/mundo/catequese-de-bento-
-xvi-sobre-santa-matilde-de-hackeborn
10. Com isto não estamos dizendo que todos desejam a santida-
de, mas que era este o entendimento comum entre as pessoas e era,
por assim dizer, a expressão dominante como hoje “passar na facul-
dade” é o símbolo dominante da realização de boa parte da socieda-
de brasileira.
11. A complexidade do processo é grande demais para os propósi-
tos deste capítulo e esta breve exposição não se pretende exaustiva.

Bibliografia:

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PERNOUD, Régine; RODRIGUES, Miguel; VIEIRA, Manuel
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