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AS VERDADES ROUBADAS

P.Dr. Miguel Angel Fuentes, I.V.E.

A todos os jovens

que lutam sinceramente

por conhecer a Verdade

ÍNDICE

Apresentação

I. A verdade roubada sobre a verdade. É tudo relativo e não há verdade?

II. A verdade roubada sobre Deus. A existência de um Deus pessoal


1. As "outras" provas (argumentações secundárias)

a) Pela existência do homem, inteligente e livre

b) Pela existência de uma lei moral

c) Pela crença universal do gênero humano

d) Pelo desejo natural de perfeita felicidade

2. As vias de Santo Tomás (argumentos realmente provatórios)

a) A primeira via: a via do movimento

b) A segunda via: a via da causalidade eficiente

c) A terceira via: pela contingência dos seres

d) A quarta via: pelos distintos graus de perfeição

e) A quinta via: pela finalidade do universo

3. Os cientistas e Deus

III. A verdade roubada sobre a alma. Temos uma alma espiritual e imortal

1. Existência da alma

2. Natureza da alma

a) A alma é simples

b) A alma é espiritual

c) A alma não se pode reduzir nem explicar só pelo cérebro material do homem
d) A alma é imortal

IV. A verdade roubada sobre a religião. A religião é algo intrínseco a todo ser humano

1. Os passos de uma demonstração "católica"

a) Primeira etapa: o espiritualismo

b) Segunda etapa: o cristianismo

c) Terceira etapa: o catolicismo

2. A universalidade do fato religioso

3. Alguns intentos de explicação

4. Por que é necessária a religião?

V. A verdade roubada sobre nossa dignidade e origem. Verdades e limites do evolucionismo

1. O estado atual das teorias da evolução

a) Sobre a origem do universo

b) Sobre a origem da vida

c) Sobre a origem das espécies

d) Sobre a origem do homem

e) As duas variantes do evolucionismo

f) Em síntese

2. Que ensina a Igreja sobre estes temas e o que diz destas teorias?

3. Há verdadeiramente oposição?

a) A oposição com os sistemas extremos

b) A possível armonización com os sistemas moderados

4. A modo de visão conclusiva

VI. A verdade roubada sobre a vida humana. Quando começa a ser humano um ser humano

1. A natureza biológica do embrião

a) O embrião e sua origem

b) Da implantação até a gastrulación

c) Da formação do sistema nervoso central a organogénesis

2. Algumas considerações
a) A natureza do embrião

b) O momento da animação

VII. A verdade roubada sobre a lei natural. Há uma lei natural e esta nos faz livres!

1. O que é isso de uma lei natural?

a) Existe uma lei chamada "natural"

b) Qual é o conteúdo dessa lei (quer dizer, o que é o que manda)?

c) Como é essa lei natural?

2. Nossa idéia equivocada dos mandamentos

3. Os mandamentos e nossa maturidade

VIII. A verdade roubada sobre sua sexualidade. A verdade de que a castidade é possível

1. Castidade e moderação

2. O que nos diz a Bíblia sobre a sexualidade

3. por que esta virtude

4. Lei natural e castidade

5. Necessidade e função da castidade

6. Castidade para todos

7. Mas, a castidade é possível?

8. O pudor é a defesa da castidade

IX. A verdade roubada sobre a consciência. A nobreza de sua consciência depende da docilidade à
verdade

1. O que é a consciência

2. A falibilidade da consciência

3. Uma palavrinha sobre a função do magistério e a consciência

4. A educação da consciência

X. A verdade roubada sobre a história. A importância de respeitar a verdade histórica

1. Manipulação da história

2. Confrontar a verdade

3. Lendas negras e lendas rosas

4. Modernos inimigos da verdade


5. Observações

Conclusão: o prestidigitador

Vocabulário

APRESENTAÇÃO
Em meus anos de trabalho sacerdotal conheci muitos jovens católicos que pareciam prometer chegar aos
homens de bem para a Igreja e para nossa pátria, futuros profissionais seguros dos valores pelos que
deveriam trabalhar e lutar, dispostos a desafiar as tentações mundanas e forjar não só famílias exemplares
mas também uma pátria apoiada na verdade, no bem comum e na fé. Infelizmente muitos deles não encheram
as expectativas que tinham despertado; alguns claudicaram em seus princípios morais, negociando com os
oferecimentos do mundo, vendendo às vezes sua consciência por um posto político ou para assegurar-se em
suas distintas profissões; outros perderam a fé, passando a sustentar um vaporoso cepticismo ou uma
descrença quase total; outros, mantendo a fé e os princípios morais, simplesmente se desanimaram da luta,
ao ver cair a muitos de seus antigos amigos nos recém mencionados precipícios. E muitos perseveraram
chegando a ser hoje em dia excelentes cristãos no plano pessoal mas –mal de muitos compatriotas–
desperdiçados franco-atiradores da cultura católica (Ai do sozinho!, diz a Escritura); quer dizer, cada um faz
o que pode e suas boas obras se diluem como as fundas de uma pedrinha que cai no mar; faltou-lhes a
decisão de lutar unidos.

Um dos momentos cruciais em que a inteligência ou a vontade de grande parte destes jovens entrou em crise,
foi seu contato com a universidade. Os estudos universitários a nível mundial adoecem de espantosas
lacunas; a principal delas é a falta de cultivo do espírito (e entre as disciplinas espirituais, principalmente da
visão da transcendencia, quer dizer, da abertura ao mundo sobrenatural e ao pensamento metafísico); dito
em outras palavras: as universidades de nosso tempo, com honrosas mas reduzidas exceções, formam
materialistas do materialismo mais crasso; modelam homens e mulheres que saem de suas cadeiras já
derrotados nas batalhas do espírito. A causa não é simplesmente a inépcia para ensinar as matérias mais
importantes que deve cultivar todo ser inteligente (a filosofia e a mesma teologia, como se faz em muitas
universidades anglosaxônicas, que têm, é obvio, outros problemas) a não ser a positiva destruição –planejada
sinestramente– de todo ideal religioso, espiritual e filosófico das mentes de tantos jovens que inocentemente
(ou sem tanta inocência) caem nas mãos de profissionais deformadores. Há várias décadas o mesmo
fenômeno se pode constatar no ensino médio.

Deste modo muitas das convicções, ou a visão serena que o senso comum ou a tradição familiar ou uma
rudimentar formação religiosa deram a muitos dos jovens católicos de nosso tempo, caem esmiuçadas ante
os sofismas demolidores de falsos argumentos científicos, prova indemostradas (e às vezes indemonstráveis),
dados superdimensionados, etc., que põem em alvo de julgamento as verdades fundamentais sobre as que
se apóia a lei natural, o conhecimento vulgar da verdade e a mesma fé. Tudo apresentado com os adornos
do falso halo da ciência de nosso tempo, com o único resultado de que tantos jovens entraram com algumas
sólidas convicções –se levaram alguma– terminam com as verdades roubadas; esta é a razão de nosso título.
Saem, pois, médicos materialistas, psicólogos positivistas, advogados rapinantes, economistas sem
escrúpulos, ou simplesmente profissionais incultos, sem valores morais, sem mais interesse que os
econômicos..., em definitiva, pobres mercados.

O resultado é uma legião de pseudo céticos e pseudo ateu. E digo pseudo (falso) porque muitos não são tais.
Pode lhes acontecer como a aqueles jovens universitários franceses que subiram a um trem em que viajava
um sacerdote (estou falando de um caso ocorrido vários lustros atrás); ao vê-lo, começaram a burlar-se da
fé, da Igreja e de Deus; quando o sacerdote pôde cercar conversação com eles lhes perguntou no que
acreditavam: "Nós? Alguns somos ateu –respondeu um deles– e outros céticos". "Que interessante!" –
demarcou o sacerdote, e começou a lhes perguntar: "Qual é a obra do Aristóteles que mais lhes gostou?";
"Não tenho lido nenhuma", respondeu o interpelado. "E Platón?"; "Tampouco; bem, algumas páginas estavam
em um dos apontamentos da faculdade". "E não têm lido as obras de Santo Agostinho, nem de Santo Tomás,
nem os discursos do Lacordaire, nem os documentos dos Papas...", e lhes foi enumerando os principais
autores que de uma ou outra maneira haviam deixado meio doido o tema de Deus ou algum dos temas
fundamentais da vida... e a todos eles foram respondendo que não tinham lido nada ou virtualmente nada.
Finalmente o sacerdote lhes disse: "Então, moços, vocês não são céticos nem ateu"; "E o que somos então?".
"Simplesmente ignorantes", respondeu.

As páginas que encontrarão a seguir não são mais que uma "introdução" aos grandes problemas da vida:
Deus, a alma, a ciência, a religião, a verdade, etc. Já é um lucro que estes temas sejam um "problema" para
um homem. Enquanto tenham esse caráter exigirão que a inteligência pense, e para isso temos precisamente
nossa mente. Confiamos plenamente no poder da inteligência humana para alcançar a verdade; por isso, não
são os que questionam os grandes costumes, quem terminará pensando mau, a não ser quem se negue a
pensar e a discutir. Da verdade pode dizer-se algo semelhante ao que Jesus disse do céu: só se entrega aos
que lutam por ela.

I. A verdade roubada sobre "a verdade"

É tudo relativo e não há verdade?


Podemos conhecer a verdade? Ou tudo é relativo e em definitiva cada um tem sua verdade? Provavelmente
uma das primeiras coisas que faça cambalear seu edifício intelectual ou sua fé seja o relativismo, quer dizer,
a concepção que não admite princípios absolutos no campo do conhecer e do atuar. Normalmente um jovem
chega a seus estudos com uma série de princípios ou verdades que ele admite como absolutas, já sejam
convicções de ordem natural ou sobrenatural (as verdades de fé) ou verdades de certeza popular; um mau
centro educativo começará a bombardear precisamente o valor de tais verdades. A primeira verdade que lhe
roubarão é a convicção de que há verdade, e que pode conhecer a verdade.

Para o relativismo cada um tem sua verdade, cada um alcança as coisas com uma visão própria e pessoal
apoiada em seus gostos, sua educação ou seus interesses. Não somente se faz difícil, para quem assim
pensa, conseguir compreender adequadamente o que pensam outros mas sim é impossível obter um acordo,
posto que não haveria propriamente falando uma verdade objetiva válida e obrigatória para todos. Assim se
começam a demolir os princípios religiosos, os critérios morais pelos que nos regemos, e a vítima deste te
esmaguem ataque se inunda em uma autêntica "depressão intelectual".

O relativismo é o câncer fatal que carcome a cultura contemporânea. E entretanto é também a falácia maior
que pode passar pela mente humana e não pode fazer-se aceitar a menos de nos enganar por meio de sutis
sofismas. O relativismo, no âmbito do conhecimento, nega a possibilidade de alcançar verdades universais e
objetivas. No âmbito moral é a negação de poder chegar a conhecer os valores e bens objetivos e atuar em
conseqüência (ou seja nega que possa afirmar-se que um comportamento é mau para todos ou que outro é
sempre bom). Na vida cotidiana caem neste engano todos os que não aceitam verdades absolutas; os que
sustentam que "cada um tem sua verdade", os que tacham de "fundamentalismo" a todos aqueles que
mantêm com firmeza a verdade da fé. Uma de suas conseqüências mais notáveis em nosso tempo é que tem
aberto o caminho para a New Age, a religião do relativismo: "O terreno [para a aceitação da New Age] foi
preparado pelo desenvolvimento e a difusão do relativismo".

O relativismo adota várias formas:

1) O relativismo individualista é o que ensina que o que determina a verdade de alguma afirmação é cada
indivíduo, portanto, haverá (ou poderia haver) tantas verdades quantos homens existem. Algo pode ser
verdadeiro para o João e não para o José, e ambos têm razão: "sua razão". Em um importante periódico
argentino li (maio de 2004) a seguinte afirmação comentando uma partida de futebol: "a partida terminou com
um justo empate; embora também teria sido justo que ganhasse ou um ou os outros". Três casos de justiça
em três situações contraditórias! Entretanto não foi o jornalista do pouco afortunado artigo quem inventou a
bobeira que lhe ocorreu escrever, a não ser Protágoras de quem é a tese de que "o homem é a medida de
todas as coisas". Platón o descreve: "como dizia Protágoras ao afirmar que o homem é a medida de todas as
coisas; assim, em conseqüência, como me parece que são as coisas, tais são para mim; e, como lhe parecem,
tais são para ti". daqui se segue que não há uma verdade a não ser infinitas, quer dizer: tantas quantas
pessoas distintas. É fácil dar-se conta de que isto está muito divulgado em nossa sociedade; nós o escutamos
sob o título de "ponto de vista": cada um tem seus "pontos de vista". E assim tem mais valor a opinião que a
verdade. E não somente cada um tem sua verdade, mas sim cada um tem direito a formar-se sua verdade
embora se trate de temas que desconhece em sua quase totalidade; por isso a um esportista lhe pergunta
sua opinião não somente sobre seu esporte a não ser sobre questões de moral, sobre a Batata, a filosofia e
a história; de todos os modos o valor do que diga é relativo, só valerá para ele. Desde este ponto de vista (o
mais divulgado talvez) o relativismo é o princípio de isolamento maior entre os seres humanos: o ostracismo
das inteligências que ficam desterradas aos limites de seu dono. Com a aceitação da filosofia relativista não
pode haver professores, há tão só orientadores de opinião, ou melhor ainda, cada um oferece sua opinião se
por acaso a alguém gostaria de fazê-la sua. Curiosamente isto vale para tudo... menos para os que ensinam
o relativismo, pois seu ensino de que tudo é relativo e de que não há verdades objetivas, é o mais objetivo e
universal que possa afirmar-se!, e cuidado com quem a ponha em dúvida ou sugira timidamente o contrário
ou opine que talvez haja algo que seja absoluto! Imediatamente o destrói como ao mais perigoso fanático: o
fanático que pensa que há uma verdade e que se pode morrer por ela. "Não há nenhuma verdade objetiva",
essa é a mais objetiva das verdades!, diz o relativista. A pesar do absurdo que estará recebendo o ler estes
artigos, mais terá que te surpreender o saber que isto o afirmou não um honesto mas rústico padeiro a não
ser um filósofo insensato como pai do relativismo, Augusto Comte, quem já aos 19 anos escrevia: "tudo é
relativo, eis aqui o único princípio absoluto". Pobre Comte, de velho dizia as mesmas tolices!

2) O relativismo cultural é o que faz depender a verdade da cultura histórica. Foi defendido por Oswald
Spengler em sua conhecida obra "A decadência do Ocidente". Cada cultura –a chinesa, hindu, egípcia,
babilônica, grego-romana, árabe, americana, ocidental– realiza sua própria valorização do real, tem seu modo
de compreender o cosmos, distinta das demais culturas e irredutível a qualquer delas. Nenhuma cultura pode
aspirar a que sua valorização seja absoluta, universalmente válida. Não muda muito do relativismo individual
só que é menos radical e em lugar do indivíduo coloca como fonte da verdade-opinião a cada cultura ou povo.

3) O relativismo sociológico foi criado e defendido por Émile Durkheim e faz depender o que condiciona a
verdade do julgamento nos grupos sociais. "O grupo social pressiona, segundo Durkheim, de modo irresistível
e inconsciente sobre seus membros, lhes impondo normas de conduta e critérios de valorização. Esta coação
não se sente quando o indivíduo aceita e cumpre com as normas sociais e, por isso, cai na ilusão de acreditar
que é ele mesmo o que, espontânea e voluntariamente, as impõe. A força da pressão social unicamente fica
de manifesto ao infringir-se certas normas... O indivíduo receberia da sociedade todo seu mundo mental; o
mundo ideológico do indivíduo seria o reflexo da sociedade em que vive; o verdadeiro e o falso, o bom e o
mau, o belo e o feio, toda a gama axiológica, seriam determinados assim como tais pelo grupo social, e o
indivíduo se limitaria a recebê-los passivamente; considera-se a sociedade como anterior ao homem e à
pessoa". Novamente o fundo é a mesma coisa, troca o fator que determina qual é a verdade.

4) O relativismo racista faz depender as verdades da raça. Esta forma de relativismo foi defendida pelo
nazismo em geral e de um modo particular por seu teórico Alfred Rosenberg. "Toda manifestação cultural
estaria determinada pela raça, que não terá que confundir com o grupo social, já que uma mesma sociedade
pode de fato estar integrada por diversas raças. A filosofia, a ciência, a moral, a religião, a arte seriam a
expressão da raça, que nelas plasma sua força vital. A raça seria o princípio criador e o elemento
condicionante de toda produção cultural, a que terá que valorar positivamente, se se tratar de uma raça
superior, ou negativamente, nos casos das raças inferiores. Assim, não haveria nunca uma verdade única,
igual a que não há uma raça única; haveria só uma verdade ária, outra eslava, outra saxônica, etc.".

5) O relativismo político é hoje em dia uma das formas mais estendidas em nossa sociedade; este relativismo,
como seu nome o indica, faz depender a verdade dos compromissos políticos, já seja dos votos da maioria
ou dos pactos entre os partidos políticos ou de outros modos de obter o comum acordo (consenso). Assim se
todos estamos de acordo em que o aborto seja legal, o aborto será realmente legal e portanto bom; se todos
estivermos de acordo em permitir a prostituição, esta já não será nem delito nem sequer pecado; se a maioria
tiver votado que se acostume um engano, isso deixará de ser um engano para ser uma verdade. Este
relativismo, metido até os ossos em nossa cultura, produz muito graves danos começando pelo descalabro
da mesma liberdade humana. Sobre ele tem escrito João Paulo II: "Com esta concepção da liberdade, a
convivência social se deteriora profundamente. Se a promoção do próprio eu se entender em términos de
autonomia absoluta, chega-se indevidamente à negação do outro, considerado como inimigo de quem
defender-se. Deste modo a sociedade se converte em um conjunto de indivíduos colocados uns juntos dos
outros, mas sem vínculos recíprocos: cada qual quer afirmar-se independentemente de outros, inclusive
fazendo prevalecer seus interesses. Entretanto, frente aos interesses análogos dos outros, vê-se obrigado a
procurar qualquer forma de compromisso, se quer garantir a cada um o máximo possível de liberdade na
sociedade. Assim, desaparece toda referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para todos; a vida
social entra nas areias movediças de um relativismo absoluto. Então tudo é pactuante, tudo é negociável:
inclusive o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida. É o que de fato acontece também no âmbito mais
propriamente político ou estatal: o direito originário e inalienável à vida fica em discussão ou se nega sobre a
base de um voto parlamentário ou da vontade de uma parte –embora seja majoritária– da população. É o
resultado nefasto de um relativismo que prepondera incontroverso: o ‘direito’ deixa de ser tal porque não está
já fundamentado solidamente na inviolável dignidade da pessoa, mas sim fica submetido à vontade do mais
forte. Deste modo a democracia, apesar de suas regras, vai por um caminho de totalitarismo fundamental. O
Estado deixa de ser a ‘casa comum’ onde todos podem viver segundo os princípios de igualdade fundamental,
e se transforma em Estado tirano, que presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos, do
menino ainda não nascido até o ancião, em nome de uma utilidade pública que não é outra coisa, em
realidade, que o interesse de alguns".

Qual é a crítica fundamental ao relativismo? Ou melhor, para formulá-lo com o que mais pode nos interessar:
é verdade que não há verdade? E não o estou formulando mau, posto que não faz falta nos perguntar se
houver "verdade objetiva" posto que verdade e verdade objetiva são conceitos realmente equivalentes; a
verdade é a adequação de nossa mente com as coisas, portanto ou há verdade objetiva (adequada com a
realidade) e portanto válida para todos os seres inteligentes, ou simplesmente não há verdade a não ser
opiniões, que são apreciações diversas sobre as coisas. Há pois uma verdade objetiva? Já havemos dito que
"a crítica mais essencial que se pode formular ao relativismo, além de outras de caráter extrínseco como seria
a demonstração da existência de uma verdade absoluta, de evidências universais, está em que todo
relativismo implica uma contradição intrínseca. Ao manter-se que nenhum julgamento goza da propriedade
de ser verdadeiro em sentido absoluto e que toda verdade é relativa surge, como conseqüência ineludible,
que o julgamento "toda verdade é relativa" tampouco pode ter caráter de validez absoluta, o que destrói, com
suas próprias armas, ao relativismo Se, dado um certo fator condicionante, admite-se como verdade que toda
verdade é relativa, posto outro fator distinto terá que admitir como verdadeiro que toda verdade é absoluta, o
que é uma contradição com a tese fundamental do relativismo. Além desta inconsistência geral do relativismo,
a crítica do relativismo seria parecida com a do cepticismo e subjetivismo".

Mais ainda, a existência da verdade (da verdade como algo objetivo e universal, invariável e superior a
qualquer opinião humana) é uma certeza de senso comum; tão de senso comum que nos apoiando em que
há verdades objetivas nos casamos, semeamos, subimos a um navio ou a um avião, compramos e vendemos
e nos deixamos matar defendendo a pátria ou as pessoas que amamos. Porque não nos cabem dúvidas que
há verdades objetivas repetimos refrões a modo de verdades objetivas cultivadas pela filosofia popular: "quem
vai pra frente, não olhe pra trás"; "o que com o alheio se veste, na rua os despem"; "as aparências enganam";
"Deus dá pão a que não tem "; "uma coisa é cacarejar e outra pôr ovos"; etc. Não supõe isto que acreditam
no valor objetivo das coisas e das verdades que as expressam? Quem se casaria se aceitasse que uma coisa
será a fidelidade para mim e outra para ti? Quem se embarcaria se não estivesse seguro do princípio pelo
qual um corpo sólido pode flutuar em definidas condições ou quem subiria a um avião apoiando-se só em que
o piloto opina que seu avião é capaz de manter-se no ar?

Mas não só temos uma certeza popular da existência e valor objetivo da verdade a não ser uma certeza
científica da mesma. A verdade existe e que não pode ser negada, pois, como diz ,entre outros, Tomás de
Aquino, "quem nega a existência da verdade afirma implicitamente que a verdade existe, pois se a verdade
não existisse, seria verdade que ela não existiria; e se algo é verdadeiro, é necessário que exista a verdade".
Parece uma trava-línguas, mas é um silogismo... perfeito. Nossa inteligência é capaz de raciocinar e de
alcançar o ser das coisas, a realidade. Conhecemos o ser das coisas, como nos ensina uma sã filosofia e
como reconhecemos na prática, apesar de que professemos a mais teimosa das filosofias do subjetivismo,
pois o mais crasso negador de que possamos conhecer a verdade absoluta das coisas, é capaz de mover
céu e terra para que lhe paguem seu salário (como sabe que é dele? e se o patrão opina que não lhe tem
que pagar?), e cuidado com que lhe toquem sua esposa ou seus bens, e nisto não valem opiniões nem que
cada um tenha sua verdade (também o ladrão diz ter sua verdade, dizendo que gosta mais do meu carro que
o seu e por isso decide apropriar-se dele; o que lhe responderei eu, miserável relativista? "Senhor, se você
opina assim, aqui tem as chaves; desculpe se pensei mal de você").

Um relativista pode ensinar o relativismo durante toda sua vida com plena convicção (o que seria contrário ao
relativismo); mas se chegasse a ir a um restaurante "relativista" e pedindo lebre lhe trouxessem gato porque
o dono do restaurante desde seu ponto de vista sustenta que o gato é igual à lebre, não só pode ver derrubar-
se seu sistema em poucos segundos mas também passar o resto "relativo" de sua vida na prisão por intento
de homicídio de um proprietário de restaurante. Todo relativista é, necessariamente, inconseqüente na vida
real.

Ainda assim a um relativista é difícil fazer entender seu engano (não o de demonstrar seu engano, a não ser
conseguir que ele aceite) porque o relativismo é uma forma de necedade, e a necedade acostuma a ser não
só um pecado mas também o castigo no que caem os que não têm amor pela verdade. Pode, entretanto,
castigar do único modo que podem entender: lhes pedindo que nos devolvam nosso dinheiro, pois para me
dizer que o que me ensina só tem valor para ele e que é muito provável que eu tenha outra opinião, a qual
ele não pensa compartilhar mas tampouco refutar... melhor me devolve meu dinheiro e vou para casa, pois
isso eu posso aprender sozinho!

Bibliografia para ampliar

–Jaime Balmes, O critério, (há numerosas edições), em: Obras completas, BAC, Madrid.

–J. Bairro Gutiérrez, Relativismo; I. Filosofia, Grande Enciclopédia Rialp, Madrid, 1991.

–A. Aliotta, Relativismo, em: Enciclopédia filosofica, V, 2 ed. Florência, couve. 638-648.

–R. Garrigou-Lagrange, O sentido comum, Palavra, Madrid 1980.

–Antonio Orozco-Delclós, A liberdade no pensamento, Ed. Rialp, Madrid 1977.

–Pieper, Josef, O ócio e a vida intelectual, Rialp, Madrid 1983.

–––––––––––, O descobrimento da realidade, Rialp, Madrid 1974.

–––––––––––, Defesa da filosofia, Herder, Barcelona 1982.

–Jacques Maritain, Introdução à filosofia, Clube de leitores, Bs. Ás. 1950.

–Velazco, Miguel Angel, Os direitos da verdade, MC, Madrid 1994.

–G. K. Chesterton, Ortodoxia, em: Obras completas, Plaza & Janés, Barcelona 1967 (há edições com
melhores traduções).

II. A verdade roubada sobre Deus:

A existência de um Deus pessoal


Existe Deus? Sua existência é uma questão religiosa ou científica? Alguém pode ser um profissional e
acreditar em Deus? Para muitos o contato com o mundo científico (falsamente científico, entende-se) é a
porta pela que entram no mundo do ateísmo, ou ao menos do agnosticismo. Escutei várias vezes a frase "eu
me declaro agnóstico", em boca de pessoas famosas; provavelmente ignoram que tal afirmação equivale a
declarar-se maneta ou cego ou impotente no plano intelectual. O conhecimento de Deus é certamente uma
questão religiosa, se se entender por "questão religiosa" um problema de fé; mas também é uma questão
científica, pois a filosofia é uma ciência, e nossa inteligência, filosofando chega a esta grande verdade.

Para que entendamos os alcances deste tema deixemos sentado o que ensina a Igreja sobre Deus. O ensino
sobre Deus que nos dá a Igreja é um ensino teológico, quer dizer, está composta por verdades sobre Deus
que a Igreja sustenta como reveladas (já seja porque estão contidas na Sagrada Escritura, ou reveladas na
tradição e foram definidas como tais pelo magistério da Igreja), e contém também verdades às que nossa
inteligência pode acessar a partir de suas forças naturais. Conhecemos de Deus não só sua existência mas
também seus atributos ou qualidades, sua essência íntima (é um só Deus em três Pessoas distintas, quer
dizer é Trindade), conhecemos seu plano de salvação sobre os homens (revelado na Sagrada Escritura,
particularmente no Novo Testamento).

Cientificamente algumas destas verdades não são acessíveis pois ultrapassam a capacidade de nosso
intelecto; estas verdades superiores a nossa potência natural são denominadas "mistérios intrinsecamente
sobrenaturais", e como tais só podem ser conhecidos por Deus e por aquele a quem Deus queira manifestá-
los (= revelá-los ). Tal é o caso do mistério da Trindade, do pecado original, da Encarnação de Deus
(Jesucristo) e sua obra salvadora. A ciência não pode alcançá-la com seu próprio método, pois este parte das
coisas naturais e se eleva ao conhecimento das causas por métodos naturais e com a força que só é dada
pela razão humana natural. Mas estritamente falando a ciência tampouco pode refutá-la nem as contradizer
posto que precisamente por definição escapam a seu campo. Um cego não pode ver as cores, mas tampouco
pode dizer que não existem, nem que o que eu vejo branco é verde, posto que não tem capacidade para
captá-los; escapa à sua faculdade; um surdo não pode ouvir os sons, mas também não pode dizer que uma
orquestra está desafinada, pois o mundo dos sons é desconhecido para ele. A ciência, portanto, deixa de ser
ciência se se meter em um campo que não é o seu. Deste modo um cientista não tem autoridade para falar
do que não da sua competência; ser matemático ou biólogo não fica autorizado a falar do que sua ciência
matemática ou biológica não lhe ensina nem daquilo para o que não o capacita; ao igual a um astrônomo
surdo não pode opinar sobre sinfonias por mais que seja o melhor dos astrônomos. Acredito que isto deve
ficar claro para marcar competências, pois muitos dos problemas expostos contra a fé são empunhados por
pessoas que não têm fé e, o que é realmente grave, a partir de disciplinas que nada têm nada a ver com a fé
(quer dizer, com o plano do mistério sobrenatural).

De todos os modos, nós não falaremos propriamente aqui desse mundo intrinsecamente sobrenatural, mas
sim da ordem natural e daquilo que está ao nosso alcance intelectual. Igualmente a isto se aplica o dito no
parágrafo anterior: o problema da existência de Deus é uma verdade natural mas também metafísica ou
filosófica; portanto segue havendo uma indevida invasão de terreno quando as objeções contra (ou negações
de) uma verdade filosófica provêm não já da filosofia mas sim de uma ciência puramente experimental (ou
seja que não chega ao plano filosófico). Um médico pode falar com autoridade de enfermidades e objetar tal
ou qual tratamento terapêutico, mas não pode, assim como médico discutir sobre a essência das coisas, pois
a medicina pode o deixar cego, surdo e mudo para este mundo. O mesmo se diga do matemático, do
astrônomo, do biólogo e de outros científicos (para abordar estes temas terão que ser também filósofos).
Infelizmente, a maioria das oposições a verdades estritamente filosóficas provêm de campos infra e extra
filosóficos. E lhes damos capacidade!

"O problema de Deus, tem escrito Cornelio Fabro, um dos filósofos mais eminentes do século XX, é o primeiro
interrogante e último do homem porque busca o Primeiro Princípio seja do ser como do não ser; por isso se
pode dizer por sua central- idade que é o problema essencial do homem essencial e por sua universalidade
é o problema do homem comum".

O problema de Deus (de se Deus existe ou não) é o mais universal dos problemas; ao ponto tal que todo
homem o expõe, já de velho ou em sua juventude, seja poeta, soldado, artesão, camponês ou filósofo, seja
homem ou mulher. E se declare como se declare: ateu, agnóstico ou crente; pois o ateu é quem ante tal
exposição se extraviou até a negação de Deus; o agnóstico desistiu em seu caminho e o crente chegou a
porto. Não é uma viagem fácil, conforme dizem os filósofos e os teólogos; o mesmo Santo Tomás diz que
alguns não puderam dedicar-se a este estudo por sua compleição defeituosa, outros por ter ocupações
familiares substanciais absorventes, e outros, enfim, por preguiça; e inclusive os que se dedicam à filosofia
só com esforço chegam a estas alturas do conhecimento de Deus, em particular quando as paixões os cegam,
daqui a grande misericórdia de Deus, ao nos facilitar seu conhecimento por meio de sua própria revelação.
Mas apesar de todas as dificuldades, esta é a aventura mais emocionante em que possamos nos embarcar.

Os filósofos de todos os tempos tentaram chegar à demonstração da existência de Deus. Desde aí tantas
provas distintas. O P. Cornelio Fabro, em sua obra "O prove DELL’esistenza dava Deu" (As provas da
existência de Deus), analisa as provas dadas por filósofos da antiguidade, como Sócrates, Platón, Aristóteles,
Cleantes, Filão, Plotino, Proclo, etc., pelos primeiros pensadores cristãos como Orígenes, Gregorio de Nissa,
Agostinho, Boecio, João Damasceno, etc.; filósofos árabes e judeus como Alfarabí, Avicebrón, Avicena,
Algazel, Averroes, Maimonides; filósofos e teólogos medievais como Sorte, Tomás de Aquino, Juan Duns
Decoto, Ockam, Lhe dêem Alighieri, Nicolás da Cusa; e pensadores modernos como Descartes, Pascal,
Locke, Leibniz, Vico, Wolff, Kant, Hegel, Rosmini, Newman, Kierkegaard, etc. Como vemos é um argumento
que interessou a muitos; e dos mais diversos campos chegaram a Deus, com provas mais ou menos sérias,
que mais ou menos provam. Em alguns casos, com argumentos que, por partir de princípios falsos, podiam
terminar ao revés, na negação de Deus.

Podemos reduzir as provas (ou via, como as chama a tradição filosófica) a duas categorias: as cinco vias de
Santo Tomas e "as demais". Em rigor científico as vias que realmente provam som as cinco vias usadas por
Santo Tomás; as outras podem nos dar uma aproximação à verdade da existência de Deus, mas por si só
são insuficientes.
1. As "outras" provas (argumentações secundárias)

Há provas que nos "põem na pista" da existência de Deus. Rigorosamente não são plenamente
demonstrativas, mas já abrem nossa inteligência e a encaminham a esta grande verdade.

a) Pela existência do homem, inteligente e livre

Pode-se demonstrar particularmente a existência de Deus pela existência do homem, inteligente e livre, pois
não há efeito sem uma causa capaz de produzi-lo.

Um ser que pensa, reflete, raciocina e quer, não pode proceder se não é de uma causa inteligente e criadora;
e como essa causa inteligente e criadora é Deus, segue-se que a existência do homem demonstra a existência
de Deus.

É um fato indubitável que eu não existi sempre, que os anos e dias de minha vida podem contar-se; se, pois,
comecei a existir em um momento dado, quem me deu a vida?

1º Não fui eu mesmo. Antes de existir, eu nada era, não tinha ser; e o que não existe, não produz nada.

2º Não foram só meus pais. O verdadeiro autor de uma obra pode repará-la quando se deteriora, ou refazê-
la quando se destrói. Agora bem, meus pais não podem me sarar quando estou doente com uma doença
grave, nem me ressuscitar depois de morto. Se somente meus pais fossem os autores de minha vida, por que
não podem me fazer perfeito? Que pai, que mãe, não trataria de fazer a seus filhos perfeitos? Além disso,
minha alma é simples e espiritual, não pode proceder de meus pais: nem de seu corpo, pois então seria
material; nem de sua alma, porque a alma é indivisível; nem de seu poder criador, pois nenhum ser criado
pode criar.

3º Não posso dever minha existência a nenhum ser visível da criação. Porque assim, dotado de entendimento
e vontade, sou superior a todos os seres irracionais.

Se eu ao não ser fruto de mim mesmo, nem de meus pais, nem de nenhum outro ser criado, só explica minha
existência um Espírito criador que seja In-criado. Alguém que tenha podido tirar minha alma de um nada, quer
dizer, criá-la. E como um ser que reúna estas qualidades (espírito, in-criado e criador) é o que todos chamam
Deus, então minha existência e minha natureza postulam a existência de Deus.

b) Pela existência da lei moral

Também provaria a existência de Deus o fato da lei moral. Existe, em efeito, uma lei moral, absoluta, universal,
imutável, que manda fazer o bem, proíbe o mal e domina na consciência de todos os homens (falarei desta
lei em um capítulo especial). quem obedece esta lei, sente a satisfação do dever completo; que a desobedece,
é vítima do remorso.

Agora bem, como não há efeito sem causa, nem lei sem legislador, essa lei moral exige a existência de um
autor, o qual é Deus. Logo pela existência da lei moral chegamos a deduzir a existência de Deus.

Ele é o Legislador supremo que nos impõe o dever iniludível de praticar o bem e evitar o mal; a testemunha
de todas nossas ações; o juiz inapelável que premia ou castiga, com a tranqüilidade ou os remorsos de
consciência.

Nossa consciência nos ensina: 1º, que entre o bem e o mal existe uma diferença essencial; 2º, que devemos
praticar o bem e evitar o mal; 3º, que todo ato mau merece castigo, e toda obra boa é digna de prêmio.

Por isso nossa consciência se alegra e se aprova a si mesmo quando procede bem, e se reprova e condena
quando obra mau, portanto, existe em nós uma lei moral, naturalmente impressa e gravada em nossa
consciência.

Qual é a origem dessa lei? Evidentemente deve haver um legislador que a tenha promulgado, assim como
não há efeito sem causa. Essa lei moral é imutável em seus princípios, independente de nossa vontade,
obrigatória para todo homem, e não pode ter outro autor que um ser soberano e supremo, que não é outro
que Deus.

Além do dito, deve-se ter presente que se não existir legislador, a lei moral não pode ter sanção alguma; pode
ser quebrantada impunemente. Logo uma de dois: ou é Deus o autor dessa lei, e então existe; ou a lei moral
é uma utopia, e nesse caso não existiria diferença entre o bem e o mal, entre a virtude e o vício, a justiça e a
iniqüidade, e a sociedade seria impossível. O sentimento íntimo manifesta a todo homem a existência de
Deus. Por natural instinto, principalmente nos momentos de ansiedade ou de perigo, nos escapa este grito:
meu deus!... É o grito da natureza. "O mais popular de todos os seres é Deus –disse Lacordaire: o pobre o
chama, o moribundo o invoca, o pecador lhe teme, o homem bom o bendiz. Não há lugar, momento,
circunstância, sentimento, em que Deus não se ache e seja renomeado, A cólera cre não ter alcançado sua
expressão suprema, a não ser depois de ter amaldiçoado este Nome adorável; e a blasfêmia é deste modo a
comemoração de uma fé que se rebela ao esquecer-se de si mesmo". Ninguém blasfema do que não existe.
A raiva dos ímpios, como as bênçãos dos bons, testemunha a existência de Deus.

c) Pela crença universal do gênero humano

Podemos chegar à existência de Deus também examinando o consentimento de todos os povos sobre este
ponto. O argumento pode se expor dizendo: todos os povos, cultos ou bárbaros, em todas as regiões do
mundo e em todos os tempos, admitiram a existência de um Ser supremo. Agora bem, como é impossível
que todos se equivocassem a respeito de uma verdade tão transcendental e tão contrária às paixões,
devemos admitir com a humanidade inteira que Deus existe.

Quando falamos de "todos os povos" devem entender uma totalidade "moral"; materialmente podem
encontrar-se exceções, individuais e talvez inclusive de tribos atéias ou semi atéias (ao menos podemos
postular hipoteticamente; no capítulo dedicado ao fenômeno religioso veremos que muitos estudiosos negam
que existem povos inteiros ateus). Mas quando estas exceções são realmente isso "exceções" pode falar-se
de certa unanimidade moral.

Pois bem, é induvidável que os povos se equivocaram a respeito da natureza de Deus; uns adoraram deuses
de pedra, outros animais em lugar de Deus, e muitos aos astros (em particular ao sol e à lua); muitos
atribuíram a seus ídolos qualidades boas ou más, etc.; mas todos reconheceram a existência de uma
divindade a que rendessem culto. Assim o demonstram os templos, os altares, os sacrifícios, cujos rastos se
encontram em qualquer parte, tanto entre os povos antigos como entre os modernos. O historiador Plutarco
escrevia na antigüidade: "Joguem um olhar sobre a superfície da terra e acharão cidades sem muralhas, sem
letras, sem magistrados, povos sem casas, sem moeda; mas ninguém viu jamais um povo sem Deus, sem
sacerdotes, sem ritos, sem sacrifícios". Com razão dizia um autor: "Eu procurei o ateísmo ou a falta de crença
em Deus entre as raças humanas, das mais inferiores até as mais elevadas. O ateísmo não existe em
nenhuma parte, e todos os povos da terra, os selvagens da América como os negros da África, acreditam na
existência de Deus".

Agora bem, o consentimento unânime de todos os homens sobre um ponto tão importante é necessariamente
a expressão da verdade. Porque não se pode explicar tal consentimento por nenhuma outra causa. Não foram
os sacerdotes (pagãos) quem convenceu aos homens à existência de Deus, pois, no melhor, terá que dizer
que todo sacerdócio toma origem de uma crença anterior à existência de um Deus ao que terá que render
culto. Não se pode explicar pelas paixões humanas, pois as paixões tendem mais bem a apagar a idéia de
Deus, que as contraria e condena. Não pode explicar-se por prejuízos, pois um prejuízo não se estende a
todos os tempos, a todos os povos, a todos os homens; cedo ou tarde lho dissipa a ciência e o senso comum.
Não pode explicar-se pela ignorância, pois entre os maiores sábios sempre se contaram fervorosos crentes
em Deus. Não pode explicar-se pelo temor (como alguma teoria etnológica pretendeu), pois ninguém teme o
que não existe: o temor de Deus prova sua existência. Tampouco pode explicar-se pela política dos
governantes, pois nenhum governante decretou a existência de Deus, antes ao contrário, a maioria quis
confirmar suas leis com a autoridade divina; isto é uma prova de que dita autoridade era admitida por seus
súditos.

Portanto, a crença de todos os povos só pode ter sua origem em Deus mesmo, que se deu a conhecer, desde
o começo do mundo, a nossos primeiros pais, ou que foi conhecido por meio de suas criaturas.

d) Pelo desejo natural de perfeita felicidade


Este argumento pode expor do seguinte modo: consta-nos que todo ser humano tem um desejo natural e
inato de alcançar a felicidade plena; também nos consta que esse desejo não pode ser inútil ou ineficaz; e
nos consta que não podemos alcançar a felicidade a não ser em um Bem infinito, que não pode ser outro que
Deus.

1º Nos consta com toda certeza que o coração humano gosta da plena e perfeita felicidade com um desejo
natural e inato.

Esta proposição é evidente para qualquer espírito reflexivo. Consta, efetivamente, que todos os homens do
mundo aspiram a ser felizes no grau máximo possível. Ninguém que esteja em seu são julgamento pode pôr
reserva ou limitação alguma à felicidade que queira alcançar: quanta mais, melhor. A ausência de um
mínimum indispensável de felicidade pode nos jogar em braços do desespero; mas não poderá nos arrancar,
mas sim nos aumentará ainda mais o desejo da felicidade. O mesmo suicida –dizia Pascal– procura sua
própria felicidade ao enforcar-se, já que crê –embora com tremendo equívoco– que encontrará na morte o fim
de suas dores e amarguras. É, pois, um fato indiscutível que todos os homens aspiram à máxima felicidade
possível com um desejo forte, natural, espontâneo, inato; ou seja, com um desejo que brota das profundidades
da própria natureza humana.

2º Nos consta também com toda certeza que um desejo propriamente natural e inato não pode ser vão, ou
seja, não pode recair sobre um objetivo ou finalidade inexistente ou de impossível aquisição.

A razão é porque a natureza não faz nada em vão, tudo tem sua finalidade e explicação. Do contrário, esse
desejo natural e inato, que é uma realidade em todo o gênero humano, não teria razão suficiente de ser, e é
sabido que "nada existe nem pode existir sem razão suficiente de sua existência".

3º Nos consta, finalmente, que o coração humano não pode encontrar sua perfeita felicidade mais do que na
posse de um Bem Infinito, portanto existe o Bem Infinito ao qual chamamos Deus.

O homem não pode encontrar sua plena felicidade em nenhum dos bens criados em particular nem na posse
conjunta e simultânea de todos eles, porque nem pode possui-los todos (como nos ensina claramente a
experiência universal: ninguém possui nem possuiu jamais de uma vez todos os bens externos –riquezas,
honras, fama, glória, poder–, e todos os do corpo –saúde, prazeres–, e todas as da alma –ciência, virtude–;
muitos deles são incompatíveis entre si e jamais podem chegar a reunir-se em um só indivíduo), nem seriam
suficientes embora pudessem conseguir-se todos, já que não reúnem nenhuma das condições essenciais
para a perfeita felicidade objetiva pois são bens criados (por conseguinte finitos e imperfeitos); não excluem
todos os males (posto que o maior mal é carecer do Bem Infinito, embora se possuam todos outros); não
saciam plenamente o coração do homem (como consta pela experiência própria e alheia); e, finalmente, são
bens caducos e perecíveis, que se perdem facilmente e desaparecerão de tudo com a morte. É, pois,
impossível que o homem possa encontrar neles sua verdadeira e plena felicidade.

Somente um Bem Infinito pode encher por completo as aspirações imensas do coração humano, satisfazendo
plenamente seu apetite natural e inato de felicidade. Logicamente terá que concluir que esse Bem Infinito
existe realmente, se não querermos incorrer no absurdo de declarar vazio de sentido esse apetite natural e
inato que experimenta absolutamente todo o gênero humano.

2. As vias de Santo Tomás (argumentos que realmente provam)

Vejamos agora os argumentos que certamente provam, expostos em seu conjunto com suma claridade por
Tomás de Aquino. Chamam-se "vias", por ser itinerários pelos que a mente chega à existência de Deus.

a) A primeira via: a via do movimento

A primeira via para demonstrar a existência de Deus pode formular do seguinte modo: o movimento do
universo exige um Primeiro Motor imóvel, que é precisamente Deus.

Diz Santo Tomás de Aquino: "É inegável e consta pelo testemunho dos próprios sentidos que no mundo há
coisas que se movem. Pois bem: tudo o que se move é movido por outro, já que nada se move mais que
aquele que está em potência respeito a aquilo para o qual se move. Em troca, mover requer estar em ato, já
que mover não é outra coisa que fazer acontecer algo da potência ao ato, e isto não pode fazê-lo mais que o
que está em ato, à maneira como o quente em ato, por exemplo, o fogo, faz que uma lenha, que está quente
só em potência, passe a estar quente em ato. Agora bem: não é possível que uma mesma coisa esteja, de
uma vez, em ato e em potência em relação ao mesmo, a não ser respeito a coisas diversas; e assim, por
exemplo, o que é quente em ato não pode estar quente em potência para esse mesmo grau de calor, a não
ser para outro grau mais alto, ou seja, que em potência estaria se estivesse frio. É, pois, impossível que uma
mesma coisa seja de uma vez e do mesmo modo motor e móvel, ou que se mova a si mesmo. Terá que
concluir, por conseguinte, que tudo o que se move é movido por outro. Mas se este outro é, a sua vez, movido
por um terceiro, este terceiro necessitará outro que mova a ele, e este a outro, e assim sucessivamente. Mas
não se pode proceder indefinidamente nesta série de motores, porque então não haveria nenhum primeiro
motor e, por conseguinte, não haveria motor algum, pois os motores intermédios não movem mais que em
virtude do movimento que recebem do primeiro. É necessário, por conseguinte, chegar a um Primeiro Motor
que não seja movido por ninguém, e este é o que todos entendemos por Deus".

O argumento é de uma força demonstrativa incontrovertível para qualquer espírito reflexivo acostumado à
alta especulação filosófica. Mas vamos expor de maneira mais clara e singela para que possam captá-lo
facilmente os leitores não acostumados aos altos raciocínios filosóficos.

No mundo que nos rodeia há infinidade de coisas que se movem. É um fato que não necessita demonstração:
basta abrir os olhos para contemplar o movimento por toda parte.

Agora bem: prescindindo do movimento dos seres vivos, que, em virtude precisamente da mesma vida, têm
um movimento imanente que lhes permite crescer ou transladar-se de um sítio a outro sem mais influxo
aparente que o de sua própria natureza ou o de sua própria vontade, é um fato de tudo claro e indiscutível
que os seres inanimados (ou seja, todos os pertencentes ao reino mineral) não podem mover-se a si mesmos,
mas sim necessitam que alguém os mova. Se ninguém mover a uma pedra, permanecerá quieta e inerte por
toda a eternidade, já que ela não pode mover-se a si mesmo, posto que carece de vida e, pelo mesmo, está
desprovida de todo movimento imanente.

Pois apliquemos este princípio tão claro e evidente ao mundo sideral e nos perguntemos quem pôs e põe em
movimento essa máquina colossal do universo estelar, que não tem em si mesmo a razão de seu próprio
movimento, posto que se trata de seres inanimados pertencentes ao reino mineral; e por muito que queiramos
multiplicar os motores intermédios, não teremos mais remédio que chegar a um Primeiro Motor imóvel
incomparavelmente mais potente que o universo mesmo, posto que o domina com soberano poder e o
governa com infinita sabedoria. Verdadeiramente, para demonstrar a existência de Deus basta contemplar o
espetáculo maravilhoso de uma noite estrelada, sabendo que esses pontinhos luminosos pulverizados pela
imensidão dos espaços como pó de brilhantes são sóis gigantescos que se movem a velocidades fantásticas,
apesar de sua aparente imobilidade.

Jesus Simón tem exposto este argumento de uma maneira muito bela e sugestiva: "Sabemos por experiência,
e é um princípio inconcuso de mecânica, que a matéria é inerte, isto é, de ser indiferente para o movimento
ou o repouso. A matéria não se move nem pode se mover por si mesma: para fazê-lo, necessita uma força
extrínseca que a impela... Se vermos um aeroplano voando pelos ares, pensamos imediatamente no motor
que o põe em movimento; se vermos uma locomotiva avançando majestuosamente pelos trilhos, pensamos
na força expansiva do vapor que leva em suas vísceras. Mas até: se vermos uma pedra cruzando pelos ares,
pensamos imediatamente na mão ou na catapulta que a lançou.

Eis aqui, pois, nosso caso.

Os astros são aglomerações imensas de matéria, globos monstruosos que pesam milhares de cuatrillões de
toneladas, como o Sol, e centenares de milhares, como Betelgeuse e Antares. Logo também são inertes de
por si. Para pô-los em movimento se precisou uma força infinita, extracósmica, vinda do exterior, uma mão
onipotente que os tenha atirado como projéteis pelo espaço...

De quem é essa mão? De onde procede a força incontrastável capaz de tão colossais maravilhas? A força
que avassalou os mundos?

Só pode haver uma resposta: a mão, a onipotência de Deus".


Hillaire em sua obra "A religião demonstrada" expõe este mesmo argumento na seguinte forma: "É um
princípio admitido pelas ciências físicas e mecânicas que a matéria não pode mover-se por si mesmo: uma
estátua não pode abandonar seu pedestal; uma máquina não pode mover-se sem uma força motriz; um corpo
em repouso não pode por si mesmo ficar em movimento. Tal é o chamado princípio de inércia. Logo é
necessário um motor para produzir o movimento.

Pois bem, a terra, o sol, a lua, as estrelas, percorrem órbitas imensas sem chocar jamais umas com outras.
A terra é um globo colossal de quarenta mil quilômetros de circunferência, que realiza, conforme afirmam os
astrônomos, uma rotação completa sobre si mesmo no espaço de um dia, movendo os pontos situados sobre
o Equador com a velocidade de vinte e oito quilômetros por minuto. Em um ano dá uma volta completa ao
redor do sol, e a velocidade com que marcha é de uns trinta quilômetros por segundo. E também sobre a
terra, os ventos, os rios, as marés, a germinação das plantas, tudo proclama a existência do movimento.

Todo movimento supõe um motor; mas como não se pode supor uma série infinita de motores que se
comuniquem o movimento uns aos outros, posto que um número infinito é tão impossível como um fortificação
sem extremidades, terá que chegar necessariamente a um primeiro ser que comunique o movimento sem
havê-lo recebido; terá que chegar a um primeiro motor imóvel. Agora bem, este primeiro ser, esta primeira
causa do movimento, é Deus, quem com justiça recebe o nome de Primeiro Motor do universo.

Admiramos o gênio do Newton, que descobriu as leis do movimento dos astros; mas que inteligência não foi
necessária para as estabelecer, e que poder para lançar no espaço e mover com tanta velocidade e
regularidade estes inumeráveis mundos que constituem o universo?... Napoleão, na rocha da Santa Elena,
dizia ao general Bertrand: ‘Minhas vitórias lhes têm feito acreditar em meu gênio: o Universo me faz acreditar
em Deus... O que significa a mais bela manobra militar comparada com o movimento dos astros...?’".

Este argumento, inteiramente demonstrativo por si mesmo, alcança sua máxima certeza e evidência se lhe
combina com o da ordem admirável que reina no movimento vertiginoso dos astros, que se cruzam entre si
percorrendo suas órbitas a velocidades fantásticas sem que se produza jamais um choque nem a menor
colisão entre eles. O qual prova que esses movimentos não obedecem a uma força cega da mesma natureza,
que produziria a confusão e o caos, mas sim estão regidos por um poder soberano e uma inteligência infinita,
como veremos claramente mais abaixo ao expor a quinta via de Santo Tomás.

Fique, pois, sentado que o movimento do universo exige um Primeiro Motor que impulsione ou mova a todos
outros seres que se movem. Dada sua soberana perfeição, este Primeiro Motor tem que ser necessariamente
imóvel, ou seja, não tem que ser movido por nenhum outro motor, mas sim tem que possuir em si mesmo e
por si mesmo a força infinita que impulsione o movimento a todos outros seres que se movem. Este Primeiro
Motor imóvel, imensamente perfeito, recebe o nome adorável de Deus.

b) A segunda via: a via da causalidade eficiente

Este segundo procedimento para demonstrar a existência de Deus pode formular-se sinteticamente do
seguinte modo: as causas eficientes segundas reclamam necessariamente a existência de uma Primeira
Causa eficiente a que chamamos Deus.

Em filosofia se entende por causa eficiente aquela que, ao atuar, produz um efeito distinto de si mesmo.
Assim, o escultor é a causa eficiente da estátua esculpida por ele; o pai é a causa eficiente de seu filho.

Entende-se por causa eficiente segunda toda aquela que, a sua vez, foi feita por outra causa eficiente anterior.
E assim, o pai é causa eficiente de seu filho, mas, a sua vez, é efeito de seu próprio pai, que foi quem lhe
trouxe para a existência como causa eficiente anterior. Neste sentido são segundas causas todas as do
universo, exceto a Primeira Causa não causada, cuja existência vamos investigar.

Expõe-a Santo Tomás de Aquino: "Achamos que no mundo do sensível há uma ordem determinada entre as
causas eficientes; mas não achamos nem é possível achar que alguma coisa seja sua própria causa, pois em
tal caso teria que ser anterior a si mesmo, e isto é impossível. Agora bem: tampouco se pode prolongar
indefinidamente a série das causas eficientes, porque, em todas as causas eficientes subordinadas, a primeira
é causa da intermédia e esta é causa da última, sejam poucas ou muitas as intermédias. E posto que,
suprimida uma causa, suprime-se seu efeito, se não existisse entre as causas eficientes uma que seja a
primeira, tampouco existiria a última nem a intermédia. Se, pois, prolongasse indefinidamente a série de
causas eficientes, não haveria causa eficiente primeira, e, portanto, nem efeito último nem causa eficiente
intermédia, coisa falsa claramente. Por conseguinte, é necessário que exista uma Causa Eficiente Primeira,
a que chamamos Deus".

Como se vê, o argumento desta segunda via é também de tudo evidente e demonstrativo. Mas para pô-lo
ainda mais ao alcance dos não iniciados em filosofia, vamos pôr um exemplo muito claro para todos: a origem
da vida no universo. É um fato indiscutível que no mundo há seres viventes que não existiram sempre, mas
sim começaram a existir; por exemplo, qualquer pessoa humana. Todos eles receberam a vida de seus
próprios pais, e estes dos seus, e assim sucessivamente. Agora bem: é impossível prolongar até o infinito a
lista de nossos tataravôs. É forçoso chegar a um primeiro ser vivente que seja o princípio e origem de todos
outros. Suprimido o primeiro, ficam suprimidos automaticamente o segundo e o terceiro e todos outros; de
onde terei que concluir que os seres viventes atuais não existem realmente, o qual é ridículo e absurdo. Logo
existe um Primeiro Ser Vivente que é causa e origem de todos outros.

Agora bem: este Primeiro Vivente reúne, entre outras muitas, as seguintes características:

1º Não tem pai nem mãe, pois do contrário já não seria o primeiro vivente, a não ser o terceiro, o qual é
absurdo e contraditório, posto que se trata do primeiro vivente absolutamente.

2º Não nasceu nunca, porque do contrário tivesse começado a existir e alguém tivesse tido que lhe dar a vida,
pois de um nada não pode sair absolutamente nada, já que um nada não existe, e o que não existe, nada
pode produzir. Logo esse primeiro vivente tem a vida por si mesmo, sem havê-la recebido de ninguém.

3º Portanto é eterno, ou seja, existiu sempre, sem que tenha começado jamais a existir.

4º E assim todos outros seres viventes procedem necessariamente dele, já que é absurdo e contraditório
admitir dois ou mais primeiros viventes: a primeira em qualquer ordem de coisas se identifica com a unidade
absoluta.

5º Logicamente dele procedem, como de sua causa e origem criadora, todos os seres viventes do universo
visível: homens, animais e plantas, e todos os do universo invisível: os anjos de que nos falam as Escrituras.

6º Conseqüentemente é superior e está imensamente por cima de todos os seres viventes do universo, aos
que comunicou a existência e a vida.

Terá que concluir forçosamente que o Primeiro Vivente que reúne estas características tem um nome
adorável: é, simplesmente, Deus.

Isto mesmo Hillaire o expõe dizendo: "As ciências físicas e naturais nos ensinam que houve um tempo em
que não existia nenhum ser vivente sobre a terra. De onde, pois, saiu a vida que agora existe nela: a vida das
plantas, a vida dos animais, a vida do homem?

A razão nos diz que nem sequer a vida vegetativa de uma planta e menos a vida sensitiva dos animais, e
muitíssimo menos a vida intelectual do homem, puderam brotar da matéria, por quê? Porque ninguém dá o
que não tem; e como a matéria carece de vida, não pode dá-la.

Os ateu se encontram encurralados por este dilema: ou a vida nasceu espontaneamente sobre o mundo, fruto
da matéria por geração espontânea, ou terá que admitir uma causa distinta do mundo, que fecunda a matéria
e faz brotar a vida. Agora bem: depois dos experimentos concludentes de Pasteur, já não há sábios
verdadeiros que se atrevam a defender a hipótese da geração espontânea; a verdadeira ciência estabelece
que nunca um ser vivente nasce sem germe vital, semente, ovo ou renovo, proveniente de outro ser vivente
da mesma espécie.

Mas qual é a origem do primeiro ser vivente de cada espécie? por mais que se remonte tudo o que queiram
de geração em geração: sempre terá que chegar a um primeiro criador, que é Deus, primeira causa de todas
as coisas. É o velho argumento do ovo e a galinha; mas não por ser velho deixa de ser molesto para os ateu".

Este argumento da origem da vida é um simples caso particular do argumento geral da necessidade de uma
Primeira Causa eficiente e pode aplicar-se, pelo mesmo, a todos outros seres existentes no universo. Cada
um dos seres, viventes ou não, que povoam a imensidão do universo, constitui uma prova concludente da
existência de Deus; porque todos esses seres são necessariamente o efeito de uma causa que os produziu,
a obra de um Deus criador. É obvio que não aceitarão esta demonstração, nem outras semelhantes, aqueles
pensadores que neguem a validez do "princípio de causalidade" (que diz que não há efeito sem causa), como
por exemplo William James –muito gabado novamente em nossos tempos– quem afirmava em uma de seus
principais obras que "a causalidade é muito escura como princípio para levar o peso de toda a estrutura desta
teologia, que não só o afirma James, escreve-se logo sobre um papel e é fácil fazer acreditar em outros de
uma cadeira universitária quando outros em lugar de espírito crítico nos têm respeito admirativo... mas não é
possível vivê-lo. É provável que o mesmo James, agarrando o estômago em meio de alguma retorcida tenha
pensado para seu intimo: "devem ser os pêssegos verdes que comi ontem", ou "isto aconteceu por glutão";
ou simplesmente terá impedido que algum de seus filhos coloque os dedos na tomada ou bisbilhote de perto
aos leões do zoológico de New York... levado por sua convicção vital de que há uma relação de causa e efeito
–princípio de causalidade– entre estes acontecimentos, o qual embora o negue intelectualmente lhe resulta
evidente vitalmente. Isso mostra que os filósofos néscios quando passeiam em pijama em suas casas
presumem guiar-se pelo senso comum, o qual abandonam junto com seus pijamas quando saem para dar
aula. No dia que deixarem de fazer isso terminarão dormindo em um cano, como Diógenes, ou no manicômio
como Nietszche.

Vamos ver isto agora de outro ponto de vista:

c) A terceira via: pela contingência dos seres

O argumento fundamental da terceira via para demonstrar a existência de Deus pode formular-se
sinteticamente do modo seguinte: a contingência das coisas do mundo nos leva com toda certeza ao
conhecimento da existência de um Ser Necessário que existe por si mesmo, ao que chamamos Deus.

Esclareçamos alguns conceitos:

· um ser contingente é aquele que existe, mas poderia não existir; ou também, aquele que começou a existir
e deixará de existir algum dia; tais são todos os seres corruptíveis do universo;

· um ser necessário é aquele que existe e não pode deixar de existir; ou também, aquele que, tendo a
existência em si e por si mesmo, existiu sempre e não deixará jamais de existir.

O argumento o expõe Santo Tomás: "A terceira via considera, o ser possível ou contingente e o necessário,
e pode formular-se assim: Achamos na natureza coisas que podem existir ou não existir, pois vemos seres
que se engendram ou produzem e seres que morrem ou se destroem, e, portanto, têm possibilidade de existir
ou de não existir.

Agora bem: é impossível que os seres de tal condição tenham existido sempre, já que o que tem possibilidade
de não ser houve um tempo em que de fato não existiu. Se, pois, todas as coisas existentes tivessem a
possibilidade de não ser, houve um tempo em que nenhuma existiu de fato. Mas, se isto fosse verdade,
tampouco agora existiria coisa alguma, porque o que não existe não começa a existir mais que em virtude do
que já existe, e, portanto, se nada existia, foi impossível que começasse a existir alguma coisa, e, em
conseqüência, agora não existiria nada, coisa evidentemente falsa.

Por conseguinte, não todos os seres são meramente possíveis ou contingentes, mas sim forçosamente tem
que haver entre os seres algum que seja necessário. Mas uma das duas coisas: este ser necessário ou tem
a razão de sua necessidade em si mesmo ou não tem. Se sua necessidade depender de outro, como não é
possível admitir uma série indefinida de coisas necessárias cuja necessidade dependa de outras –conforme
vimos ao tratar das causas eficientes–, é forçoso chegar a um Ser que necessariamente exista por si mesmo,
ou seja, que não tenha fora de si a causa de sua existência necessária, mas sim seja causa da necessidade
de outros. E a este Ser absolutamente necessário o chamamos Deus".

Trata-se, como se vê, de um raciocínio absolutamente demonstrativo em todo o rigor científico da palavra. A
existência de Deus aparece através dele com tanta força como a que leva consigo a demonstração de um
teorema de geometria. Não é possível subtrair-se a sua evidência nem há perigo algum de que o progresso
das ciências encontre algum dia a maneira de desvirtuá-la, porque estes princípios metafísicos transcendem
a experiência dos sentidos e estão por cima e além dos progressos da ciência.
Que o ser necessário se identifica com Deus é coisa clara e evidente, tendo em conta algumas das
características que a simples razão natural pode descobrir com toda certeza nele. Eis aqui as principais:

1º O ser necessário é imensamente perfeito. Consta pelo mero feito de existir em virtude de sua própria
essência ou natureza, o qual supõe o conjunto de todas as perfeições possíveis e em grau supremo. Porque
possui a plenitude do ser e o ser compreende todas as perfeições: é, pois, imensamente perfeito.

2º Não há mais que um ser necessário. O Ser necessário é infinito; e dois infinitos não podem existir ao
mesmo tempo. Se forem distintos, não são nem infinitos nem perfeitos, porque nenhum dos dois possui o que
pertence ao outro. Se não serem distintos, não formam mais que um solo ser.

3º O ser necessário é eterno. Se não tivesse existido sempre, ou se tivesse que deixar de existir,
evidentemente não existiria em virtude de sua própria natureza. Posto que existe por si mesmo, não pode ter
nem princípio, nem fim, nem sucessão.

4º O ser necessário é absolutamente imutável. Mudar-se é adquirir ou perder algo. Mas o Ser necessário não
pode adquirir nada, porque possui todas as perfeições; e não pode perder nada, porque a simples
possibilidade de perder algo é incompatível com sua suprema perfeição, portanto é imutável.

5º O ser necessário é absolutamente independente. Porque não necessita de ninguém, basta-se


perfeitamente a si mesmo, já que é o Ser que existe por si mesmo, infinito, eterno, muito perfeito.

6º O ser necessário é um espírito. Um espírito é um ser inteligente, capaz de pensar, de entender e de querer;
um ser que não pode ser visto nem meio doido com os sentidos corporais, a diferença da matéria, que tem
as características opostas. O Ser necessário tem que ser forçosamente espírito, nem corpo, nem matéria.
Porque, se fosse corporal, seria limitado em seu ser, como todos os corpos. Se fosse material seria divisível
e não seria infinito. Tampouco seria imensamente perfeito, porque a matéria não pode ser o princípio da
inteligência e da vida, que estão mil vezes por cima dela. Logo o Ser necessário é um Ser espiritual,
imensamente perfeito e transcendente.

Agora bem: estes e outros caracteres que a simples razão natural descobre sem esforço e com toda certeza
no ser necessário coincidem absolutamente com os atributos divinos. Logicamente o ser necessário é Deus.
Conseqüentemente, a existência de Deus está fora de toda duvida à luz da simples razão natural.

d) A quarta via: pelos distintos graus de perfeição

A quarta via chega à existência de Deus pela consideração dos distintos graus de perfeição que se encontram
nos seres criados. É, possivelmente, a mais profunda do ponto de vista metafísico; mas, por isso mesmo, é a
mais difícil de captar pelos não iniciados nas altas especulações filosóficas.

Santo Tomás a expõe dizendo: "A quarta via considera os graus de perfeição que há nos seres. Vemos nos
seres que uns som mais ou menos bons, verdadeiros e nobres que outros, e o mesmo acontece com as
diversas qualidades. Mas o mais e o menos se atribui às coisas segundo sua diversas proximidade ao
máximo, e por isso se diz que uma coisa está tão mais quente quanto mais se aproxima do máximo calor,
portanto, tem que existir algo que seja muito verdadeiro, nobilísimo e ótimo, e, por isso, ente ou ser supremo;
pois, como diz o Filósofo, o que é verdade máxima é máxima entidade. Agora bem: o máximo em qualquer
gênero é causa de tudo o que naquele gênero existe, e assim o fogo, que tem o máximo calor, é causa do
calor de todo o quente. Existe, por conseguinte, algo que é para todas as coisas existentes causa de seu ser,
de sua bondade e de todas suas demais perfeições. E a esse Ser muito perfeito, causa de todas as perfeições,
chamamo-lhe Deus".

O argumento desta quarta via é similar às anteriores. Partindo de um fato experimental completamente certo
e evidente –a existência de diversos graus de perfeição nos seres–, a razão natural se remonta à necessidade
de um ser muito perfeito que tenha a perfeição em grau máximo, ou seja que a tenha por sua própria essência
e natureza, sem havê-la recebido de ninguém, e que seja assim a causa ou manancial de todas as perfeições
que encontramos em graus muito diversos em todos outros seres. Agora bem: esse ser muito perfeito, origem
e fonte de toda perfeição, é precisamente o que chamamos Deus.

e) A quinta via: pela finalidade e ordem do universo


Diz Santo Tomás: "A quinta via se tira do governo do mundo. Vemos, em efeito, que coisas que carecem de
conhecimento, como os corpos naturais, obram por um fim, o que se comprova observando que sempre, ou
a maior parte das vezes, obram da mesma maneira para conseguir o que mais lhes convém; de onde se
deduz que não vão a seu fim por acaso ou ao acaso, a não ser obrando intencionadamente. Agora bem: é
evidente que o que carece de conhecimento não tende a um fim se não o dirigir alguém que entenda e
conheça, à maneira como o arqueiro dispara a flecha para o alvo. Logo existe um ser inteligente que dirige
todas as coisas naturais a seu fim, e a este chamamos Deus".

Esta prova da existência de Deus, além de ser totalmente válida (até o mesmo Kant se inclinava com respeito
ante ela), é a mais clara e compreensível de todas. Por isso foi desenvolvida amplamente por escritores e
oradores, que encontram nela a maneira mais fácil e singela de fazer compreensível a existência de Deus,
até aos entendimentos menos cultivados. Por esta razão darei alguns exemplos, tirados da ordem do
universo. No livro do P. Royo Marín, que vamos seguindo se podem encontrar vários exemplos partindo da
ordem do cosmos, do mundo das forças físico-químicas, da vida vegetal e animal, do reino sensitivo e outros
mais, tomados a sua vez da obra do Ricardo Velho-Felíu, O Criador e sua criação. Afasto-me
momentaneamente do livro do Royo Marín para me apoiar no que diz a em relação a ordem do universo o P.
Jorge Loring, em seu conhecido livro" Para te salvar":

"Olhe o céu. Pode contar as estrelas? O Atlas do cosmos, que já se começou a publicar, constará de vinte
volumes, onde figurarão uns quinhentos milhões de estrelas. O número total das estrelas do Universo se
calcula em 200.000 trilhões de estrelas: um numero de vinte e quatro cifras!. O Sol tem dez planetas: Mercúrio,
Vênus, a Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão. Os nove conhecidos, e o décimo que se
acaba de descobrir: o Planeta X. Foi localizado pela sonda Pioneer em 1987, mas há vinte anos que
conhecíamos sua existência. Nossa galáxia, a Via Láctea, tem cem bilhões de sóis. E galáxias como a nossa
se conhecem cem bilhões. A Nebulosa da Andrômeda consta de duzentos bilhões de estrelas. Pois, se umas
fossas na areia não podem ter sido feito sozinhas, fez-se sozinhos os milhões e milhões de estrelas que há
no céu? Alguém tem feito as estrelas. A esse Ser, Primeira Causa de todo o Universo, chamamos Deus.

A Lua, está a 384.000 Km da Terra. O Sol a 150.000.000 Km. Plutão a 6.000.000.000 de Km. Fora do sistema
solar, Sírio a oito anos luz, Arturo a trinta e seis anos luz. A luz, a 300.000 Km. por segundo, percorre em um
ano uma distância igual a 200 milhões de voltas à Terra. Em quilômetros são uns dez trilhões de quilômetros.
Para cair na conta do que é um trilhão, pensemos que um trilhão de segundos são quase trinta e dois mil
anos. A velocidade da Luz, segundo as leis da Física, não pode superar-se. A velocidade da luz é batente,
como demonstrou matematicamente Einstein; pois segundo a equação e=mc2 a essa velocidade a massa se
tornaria infinita. E fora de nossa galáxia, a nebulosa da Adrómeda, que é a mais próxima a nossa galáxia da
Via Láctea, está a dois milhões de ano-luzes-luz. Vírgula de Virgem a 200 milhões de ano-luzes-luz, e o
Cumulo de Hidra a 2.000 milhões de ano-luzes-luz.

Este é o limite de percepção dos telescópios ópticos. Mas os radio-telescópicos aprofundam muito mais. O
astro mais longínquo detectado é o Quásar PKS 2.000-330, está a quinze bilhões de ano-luzes-luz. Os
quásares são radio-estrelas que emitem ondas hertzianas, detectaram-se por primeira vez em 1960.

No céu há milhões e milhões de estrelas muitíssimo maiores que a dimensão da Terra. A Terra é uma bola
de 40.000 Km. de perímetro (meridiano). O Sol é um milhão e trezentas mil vezes maior que a Terra. Na
estrela Antares, da constelação de Escorpião, cabem 115 milhões de sóis. Alfa do Hércules, que está a 1.200
ano-luzes-luz, e é a maior de todas as estrelas conhecidas, é oito mil trilhões de vezes maior que o Sol. Para
esclarecer um pouco estes volumes descomunais, diremos que a órbita da Lua dando voltas ao redor da
Terra, cabe dentro do Sol; e que o rádio do Antares é o diâmetro da órbita da Terra, quer dizer, de trezentos
milhões de quilômetros; e que o diâmetro da órbita de Plutão, que é de doze bilhões de Km., é a décima parte
do rádio de Alfa do Hércules. Tudo isto me calculou um astrônomo. A maior radio-estrelas conhecida é DÁ-
240 que tem o fabuloso diâmetro de seis milhões de ano-luzes-luz. O diâmetro desta radio-estrela é sessenta
vezes maior que o diâmetro de nossa galáxia, a Via Láctea, que é de cem mil anos de luz.

Estas bolas gigantescas vão a enormes velocidades. A Terra vai a cem mil Km. por hora, quer dizer a trinta
Km. por segundo. O Sol vai a trezentos Km. por segundo, para a Constelação do Hércules. A Constelação de
Virgem se afasta de nós a mil Km. por segundo. O Cumulo do Boiadeiro se desloca a cem mil Km. por
segundo. Pelo deslocamento para o vermelho das raias do espectro se calculou que há estrelas que se
afastam de nós a 276.000 Km. por segundo. Quer dizer, aos 92 % da velocidade da luz.
O movimento das estrelas é tão exato que se pode fazer o calendário com muchísima antecipação. O
calendário põe a saída e Pôr-do-sol de cada dia, os eclipses que haverá durante o ano, o dia que serão, a
que hora, a que minuto, a que segundo, quanto durarão, que parte do Sol ou da Lua se ocultará, desde que
ponto da Terra será visível, etc. Em 30 de junho de 1973, Espanha inteira esteve pendente do eclipse parcial
do Sol do qual a imprensa vinha falando vários dias. Em 2 de outubro de 1959, foi visível das ilhas Canárias,
um eclipse total do Sol, às 12 do meio-dia, tal como se havia previsto desde muito antes. Por isso se instalou
na Ponta da Jandía na Fuerteventura um posto de observação no que se reuniram cientistas do mundo inteiro.
O anterior eclipse de Sol contemplado desde as Canárias, foi 30 de agosto de 1905, e se sabe que terá que
esperar até passado o século XXII para ver outro eclipse total de Sol dentro de nossas fronteiras [Loring se
refere a Espanha]. No ano 2005 pôde-se observar um eclipse anular desde o Cádiz. O cometa Halley
(chamado assim em honra do astrônomo Edmundo Halley, contemporâneo e amigo do Isaac Newton) que
como se preveu no século passado, passou junto a nós no ano 1910, voltou a passar perto da Terra (a 486
milhões de quilômetros) em março de 1986 conforme se anunciou. Todos os periódicos do mundo falaram
dele. Halley (1646-1742) que observou o cometa em 1662 calculou sua órbita e previu que apareceria de
novo cada setenta e seis anos, e assim aconteceu. Voltará a ver-se o ano 2062. Quando passou junto à Terra
em 1986 foi fotografado pela sonda européia Giotto, que se aproximou do núcleo do cometa a uma distância
de 500 quilômetros. A longitude da cauda do cometa Halley é de cinqüenta milhões de quilômetros e está
formada por gases rarefeitos (...) O núcleo do cometa está formado por gases sólidos a 100 graus centígrados
baixo zero. Suas dimensões são de 7'50 por 8'50 por 18 quilômetros. Embora os chineses já o conheciam mil
anos antes de Cristo e deu milhares de voltas ao redor do Sol, terminará por desaparecer, pois cada vez que
se aproxima do Sol perde peso ao volatilizar-se pelo calor parte dos gases sólidos do núcleo. A cauda do
cometa não vai para trás, como a esteira de um avião de reação, mas sim arrastada pelo vento solar se
degrada no sentido oposto ao Sol, como a fumaça de uma locomotiva em marcha, que se degrada
lateralmente se fizer um vento forte.

A precisão do movimento dos astros seria impossível conhecê-lo se a ordem do movimento dos astros não
fosse calculável matematicamente. Por isso James Jeans, ilustre matemático e Presidente da Real Sociedade
Astronômica da Inglaterra e Professor da Universidade de Oxford, um dos maiores astrônomos
contemporâneos, em seu livro "Os mistérios do Universo" afirma que o Criador do Universo teve que ser um
grande matemático. E Einstein disse que a Natureza é a realização das idéias matemática de Deus. Paul
Dirac, Catedrático de Física Teórica da Universidade de Cambridge e um dos cientistas mais sobressalentes
de nossa geração, disse na revista Scientific America: ‘Deus é um matemático de alto nível’.

Toda esta ordem maravilhosa requer uma grande inteligência que o dirija. O que aconteceria numa praça de
muito trânsito se os condutores ficassem repentinamente paralisados e os veículos, sem inteligência,
abandonados a seu próprio impulso? Em um momento teríamos uma horrenda catástrofe.

Quanto mais complicado e perfeita seja a ordem, maior deve ser a inteligência ordenadora. Construir um
relógio supõe mais inteligência que construir um carrinho de mão. Se um dia naufragar em alto mar, e
agarrado a um madeiro chega a uma ilha deserta, embora ali não encontre rasto de homem, nem um sapato
do homem, nem um trapo de homem, nenhuma lata de sardinhas vazia, nada; mas se passeando pela ilha
deserta encontra uma cabana, imediatamente compreende que naquela ilha, antes que você, esteve um
homem. Compreende que aquela cabana é fruto da inteligência de um homem. Compreende que aquela
cabana não se formou ao amontoarse paus cansados de uma árvore. Compreende que aquelas estacas
cravadas no chão, aqueles paus em forma de teto e aquela porta giratória são fruto da inteligência de um
homem. Pois se uns paus em forma de cabana requerem a inteligência de um homem, não fará falta uma
inteligência para ordenar os milhões e milhões de estrelas que se movem no céu com precisão matemática?
Isaac Newton (1642-1727) e Johann Kepler (1571-1630) formularam matematicamente as leis que regem o
movimento das estrelas do Universo; mas Newton e Kepler não fizeram essas leis, porque as estrelas se
moviam segundo essas leis muitíssimos anos antes de que nascessem Newton e Kepler. portanto há algum
autor dessas leis que regem o movimento matemático das estrelas. Por isso o astronauta Borman disse da
Lua: ‘nós chegamos até aqui graças a umas leis que não foram feitas pelo homem’. E Newton: ‘O conjunto
do Universo não podia nascer sem o projeto de um Ser inteligente’. ‘Me basta –há dito Albert Einstein– refletir
sobre a maravilhosa estrutura do Universo, e tratar humildemente de penetrar sequer uma parte infinitesimal
da sabedoria que se manifesta na Natureza’. Disse também: ‘Deus não joga aos jogos de dados’. A
inteligência que ordena as estrelas no céu e dirige com tanta perfeição a máquina do Universo é a inteligência
de Deus. Por isso diz a Bíblia: Os céus cantam a glória de Deus (Sal 19,2). As criaturas são dedos que
assinalam a Deus. Mas há gente que fica olhando o dedo e não vê mais à frente".

Até aqui a entrevista do Loring. Mas não menos surpreendente que a ordem do cosmos é a ordem de cada
ser. Basta com perguntar a um médico que te explique o maravilhoso mecanismo da fecundidade feminina e
da maternidade para que deva reconhecer uma ordem extraordinária que não pode responder a não ser a
uma inteligência ordenadora: o maravilhoso mecanismo hormonal pelo qual cada mulher é preparada ao longo
de cada ciclo fértil para poder ovular e tudo o que desencadeia a ovulação: uma extraordinária e harmoniosa
interação de precisas ordens entre as diversas glândulas para preparar todo o organismo em ordem a uma
possível concepção, preparação que não só olha a preparação do corpo feminino a não ser o amparo do
embrião em caso de que tenha lugar a concepção; e uma vez dada esta, o misterioso e matemático processo
pelo qual a célula fecundada, o embrião humano, começa um crescimento sempre rigorosamente igual nos
milhões de seres humanos que já vieram à vida, até culminar no nascimento. Não pode ser menos, se
tivermos em conta que em níveis extremamente inferiores a este, verifica-se o mesmo fenômeno de uma
ordem surpreendente como o demonstra, por exemplo, a sabedoria de uma simples abelha. Em efeito, a
abelha resolve o problema de construir uma casa de abelha tal, que com a menor quantidade de cera admita
a maior quantidade de mel. Reaumur o descobriu faz dois séculos, aplicando logaritmos do cálculo
infinitesimal, descoberto pelo Leibnitz. Mas o curioso foi que os sábios, ao fazer pela primeira vez o cálculo,
equivocaram-se; e a abelha, sem cálculo, sem estudo, não se equivocava. E era lá pelos anos em que ainda
não tinham nascido Reaumur, Leibnitz nem Pitágoras! O descobrimento foi assim. Reaumur, o famoso físico
introdutor da escala termométrica que leva seu nome, suspeitando o que em efeito acontecia, propôs a seus
companheiros o seguinte problema: Que ângulos terá que dar aos rombos da base de uma casa de abelha,
de seção hexagonal, para que, sendo a superfície mínima, a capacidade seja máxima? König aplicou a teoria
de máximos e mínimos do cálculo infinitesimal e achou, para o ângulo agudo de rombo, uma amplitude de
70º 34’; naturalmente o ângulo obtuso tinha que ser complementar daquele. Medido o rombo das casas das
abelhas, encontraram constantes seus ângulos, e o agudo era de 70º 32’. Aparentemente o bichinho se
equivocava na insignificante cifra de dois minutos de grau! Mas ao pouco tempo naufragou um navio no litoral
francês; o acidente se deveu a um engano na apreciação da longitude. Pedem responsabilidades ao capitão,
que tranqüilamente apresenta seus cálculos, os quais estavam bem feitos. Todos estavam desorientados. A
causa terei que procurá-la em outra parte. Repassadas e estudadas as operações, encontraram uma errada
na tabela de logaritmos, que marcou sua estampagem no cálculo da longitude. Corrigido dito engano, König
voltou sobre o problema proposto pelo Reaumur, que deu para o ângulo agudo do rombo da 70º base 32’. Se
equivocaram os sábios matemáticos, mas a abelha não se equivocou nem se equivoca e constrói uma casa
de abelha tal modo que com o menor gasto de cera admite a maior quantidade de mel.

De tudo isto se pode deduzir que se não existir um Criador imensamente sábio e poderoso, a ordem dinâmica
que preside a todo o cosmos, das galáxias até os hábitos das abelhas, deve-se atribuir ao acaso. Não há
solução intermédia. É assim que o acaso não explica esta ordem, portanto, existe aquele Criador de sabedoria
e poder infinito.

O mundo, em uma palavra, é o resultado de uma compreensão infinita. Por isso, a crença em Deus pertence
às funções normais da inteligência humana. E por esta mesma razão, o ateu é um caso clínico, como o de
um que perde a razão. Porque admitir só o choque cego de forças naturais é aceitar uma ininteligência mais
inteligente que a inteligência mesma. A incredulidade não consiste em não acreditar, a não ser em acreditar
no difícil antes que no fácil.

3. Os cientistas e Deus

Por isso acabamos de expor, não nos pode surpreender que embora há em nossos dias científicos que dizem
não acreditar em Deus, entretanto, junto a eles há muitos outros, que são a maioria, e se contam entre os
mais prestigiosos no mundo da ciência, que acreditaram em Deus não só levados por sua fé (alguns foram
cristãos e outros não) mas sim por sua ciência. Tampouco deveria nos surpreender que verdadeiros
pensadores caiam em argumentos anti-científicos quando se trata da negação de Deus; só para citar um
exemplo, quando William James, a quem já nos referimos antes, ensinou que a existência de Deus não pode
ser demonstrada, não deu outra prova que o argumento de autoridade (argumento fundamental em teologia,
mas de valor quase nulo em filosofia e menos em ciência): "todos os idealistas desde Kant estiveram de
acordo em rechaçar ou ao menos não considerar as provas, o que demonstra que elas não são
suficientemente sólidas para servir como fundamento da religião". Mas assim não pode proceder um cientista
pois também a maioria –se não todos– dos cientistas estavam de acordo em que o sol gira em volto da terra
quando Copérnico (e logo depois dele Galileo) expôs sua teoria de que eram os planetas os que giravam em
torno do sol! Onde estaria a ciência se tivesse se guiado pelo argumento do número? Por este motivo vejamos
o que dizem sobre Deus alguns dos estudiosos mais destacados no mundo da ciência:

Copérnico, astrônomo polonês (1473-1543) que provou a esfericidad da terra, expôs seus movimentos e a
rotação de todo o sistema solar e defendeu antes que Galileo o heliocentrismo, disse: "Se existir uma ciência
que eleve a alma do homem e a remonte ao alto em meio das pequenezes da terra, é a Astronomia..., pois
não se pode contemplar a ordem magnífica que governa o universo sem olhar ante si e em todas as coisas
ao Criador mesmo, fonte de todo bem".

Galileo Galilei, astrônomo e físico italiano (1564-1642) a quem muitos cientistas, inclusive ateus, consideram
um dos símbolos do "homem de ciência", morreu professando sua fé em Deus e na Igreja católica, apostólica
e romana.

Kepler, astrônomo alemão (1571-1630), que formulou as leis que levam seu nome, apesar de ter levado uma
vida muito desgraçada, escreve: "Dou-te obrigado, Deus Criador, porque me concedeste a felicidade de
estudar o que Você tem feito, e me regozijo de me ocupar de suas obras. Coube-me a honra de mostrar aos
homens a glória de sua Criação, ou, pelo menos, daquela parte de seu infinito reino que foi acessível a minhas
escassas luzes"; e também: "Dia virá em que poderemos ler a Deus na Natureza como o lemos nas Sagradas
Escrituras"; "Agora eu terminei a obra de minha profissão, tendo empregado todas as forças do talento que
me deste; manifestei a glória de suas obras aos homens que leram estas demonstrações, pelo menos na
medida em que a estreiteza de minha inteligência pôde captar sua infinidade, meu espírito esteve atento a
filosofar corretamente".

Isaac Newton, físico, astrônomo e matemático inglês (1642-1727), considerado por muitos cientistas como o
maior de todos os tempos, tanto de inteligência como de engenho, não teve reparo em deixar escrito: "A
ordem admirável do sol, dos planetas e cometas tem que ser obra de um Ser Todo-poderoso e inteligente...;
e se cada estrela fixa é o centro de um sistema semelhante ao nosso, é certo que, todos devem estar
submissos a um só e mesmo Ser... Este Ser infinito o governa tudo não como a alma do mundo, mas sim
como Senhor de todas as coisas. Deus é o Ser Supremo, Infinito, Eterno, absolutamente Perpétuo".

O médico e naturalista sueco Karl von Linneo (1707-1778), considerado como fundador da Botânica e um dos
maiores botânicos de todos os tempos, que escreveu mais de 15 relevantes obras, teve firmes convicções
religiosas, como o demonstram estas soube palavras de sua obra Systema Naturae: "Saía eu de um sonho
quando Deus passou de lado, perto de mim: o vi e me enchi de assombro... rasteei os rastos de Deus nas
criaturas e, em todas, até nas mais ínfimas e mais próximas , que poder, que sabedoria, que insondáveis
perfeições encontrei!".

O físico italiano Alessandro Volta (1745-1827), inventor do electrófono e a pilha que leva seu nome,
testemunhou: "estudei e refleti muito. Agora já vejo deus em tudo...".

O astrônomo francês Hervé-Auguste-Etienne-Albans Faye (1814-1902), falando do ateísmo disse: "Quanto a


negar a Deus, é como se desde aquelas alturas me deixasse cair pesadamente sobre o chão. (...) É falso que
a ciência tenha chegado por si mesmo à negação de Deus. Esta se produz em certas épocas de luta contra
instituições do passado. Assim se encontram alguns filósofos ateus na decadência da antiga sociedade
grecorromana. A fins do século XVIII e ainda hoje certamente, porque é próprio da luta, logo voltarão os
espíritos às verdades eternas, muito assombrados, no fundo, de havê-las combatido durante tanto tempo".

O tcheco Gregor Johann Mendel (1822-1869) foi frei agostino, pai de toda a genética e de grande parte da
biologia atual, com sua vida religiosa sem muitas palavras praticou sua fé cristã sem contradições com sua
ciência.

O químico e bacteriologista francês Louis Pasteur, (1822-1895), fundador da assepsia e antisepsia modernas,
quem não tinha reparo em rezar seu rosário enquanto viajava de trem apesar das brincadeiras de alguns
"universitários" pedantes que sem saber quem era pensavam que era um simples camponês ignorante, dizia:
"Eu te asseguro que, porque sei algo, acredito como um bretão; se soubesse mais acreditaria como uma
bretã" (fazendo referência a que sua ciência não contradizia a fé de um simples camponês).

O engenheiro alemão, logo nacionalizado americano, Wernher von Braum (nascido em 1912), autor da
convocação em órbita do primeiro satélite americano Explorer I, chamado "rocket genius", o gênio dos
foguetes, que trabalhou como diretor na Nasa, nos projetos do foguete Saturno e no projeto Apolo (foguete
tripulado à Lua), possuiu um profundo sentido religioso: "Os materialistas do século XIX e seus herdeiros
marxistas do século XX nos dizem que o crescente conhecimento científico da criação permite rebaixar a fé
em um Criador. Mas toda nova resposta suscitou novas perguntas. quanto mais compreendemos a
complexidade da estrutura atômica, a natureza da vida ou o caminho das galáxias, quanto mais encontramos
novas razões para nos assombrar ante os esplendores da criação divina... O homem tem necessidade de fé
como tem necessidade de paz, de água e de ar... Temos necessidade de acreditar em Deus!".
O médico francês Aléxis Carrel (1873-1944), ateu convertido em Lourdes ante a vista de um milagre, dizia:
"Eu quero acreditar, eu acredito todo aquilo que a Igreja Católica quer que creia mais e, para fazer isto, não
encontro nenhuma dificuldade, porque não encontro na verdade da Igreja nenhuma oposição real com os
dados seguros da ciência". "Eu não sou filósofo nem teólogo; falo e escrevo somente como homem de
ciência".

Pascal Jordan (nascido em 1902) foi um físico alemão, fundador junto com Max Born e Werner Heisenberg
da mecânica quântica, ao escrever seu livro que titulou" O homem de ciência ante o problema religioso", dizia:
"Não sem razão titulei este livro "O homem de ciência ante o problema religioso". Sua intenção era explicar
como todos os impedimentos, todos os mitos que a ciência antiga tinha levantado para obstruir o caminho de
acesso à religião hoje desapareceram (...)A afirmação da concepção determinista de que Deus ficou sem
trabalho em uma natureza que seguia seu curso regularmente, perdeu agora seu fundamento. (...) Na
inumerável quantidade de resultados sempre novos e indetermináveis se pode ver a ação, a vontade, o
senhorio de Deus (...) Não afirmamos que a ação de Deus na natureza se fez cientificamente visível ou
demonstrável (...) mas sim, no que concerne a fé religiosa, a nova física negou aquela negação: provou que
são errôneas aquelas concepções da velha ciência que tinham sido aduzidas antes como provas contra a
existência de Deus".

O neurobiólogo John Eccles, diretor do departamento de Bioquímica da Universidade de Cambridge, dizia


falando do materialismo de muitos cientistas: "Acredito que o materialismo hipotético é ainda a crença mais
estendida entre os cientistas. Mas não contém mais que uma promessa: que tudo ficará explicado, inclusive
as formas mais íntimas da experiência humana, em términos de células nervosas... Isto não é mais que um
tipo de fé religiosa; ou melhor, é uma superstição que não está fundada em evidências dignas de
consideração. quanto mais progressos na hora de compreender a conformação do cérebro humano, mais
clara resulta a singularidade do ser humano respeito a qualquer outra coisa do mundo material".

Henry Margenau, colaborador de Einstein, Heisenberg e Scheoedinger, físico da Universidade do Yale,


fundador de três importantes revista científicas, oito doutorados honoris causa, presidente da American
Association of the Philosophie et Science, dizia: "Quase todo mundo admite claramente que o Universo teve
um começo e embora haja alguns, como Carl Sagan, que em astronomia são vivamente antirreligiosos,
outros, como Robert Jastrow, que trabalham no mesmo campo, não o são. E Jastrow é mais prestigioso que
Sagan como cientista e como físico. Sagan é um publicitário, Jastrow é um físico que investigou a matéria da
que fala. E Jastrow é um homem religioso".

John von Neumann, matemático húngaro (1903-1957), filho de um rico banqueiro judeu, considerado por
muitos como a mente mais genial do século XX, comparável só a de Albert Einstein, participou ativamente no
Projeto Manhattan, o grupo de cientistas que criou a primeira bomba atômica, participou e dirigiu a produção
e posta dos primeiros ordenadores e, como cientista foi acessor do Conselho de Segurança dos Estados
Unidos nos anos cinqüenta; é o criador do campo da Teoria de Jogos (um campo no que trabalham atualmente
milhares de economistas e se publicam diariamente centenas de páginas) e além disso as formulações
matemáticas descritas por ele serviram de apoio para a teoria da utilidade para resolver problemas do
Equilíbrio Geral. Em 1937 publicou Ao Model of General Economic Equilibrium, do que E. Roy Weintraub
disse em 1983 que era "o mais importante artigo sobre economia matemática que tenha sido escrito". Este
cientista no final de sua vida se converteu ao catolicismo.

E terminou com este texto do cientista italiano Enrico Medi: "Quando digo a um jovem: olhe, ali há uma estrela
nova, uma galáxia, uma estrela de nêutrons, a cem milhões de anos luz de lonjura. E, entretanto, os prótons,
os elétrons, os nêutrons, as hospedarias que há ali são idênticos aos que estão neste microfone (...). A
identidade exclui a probabilidade. O que é idêntico não é provável (...). portanto, há uma causa, fora do
espaço, fora do tempo, proprietária do ser, que deu ao ser o ser assim. E isto é Deus (...). O ser, falo
cientificamente, que deu às coisas a causa de ser idênticas a um bilhão de ano-luzes-luz de distância, existe.
E partículas idênticas no universo temos 10 elevadas a 85a potência... Queremos então acolher o canto das
galáxias? Se eu fosse Francisco de Assis proclamaria: Oh galáxias dos céus imensos, elogiem a meu Deus
porque é onipotente e bom! Oh átomo, prótons, elétrons! OH canto dos pássaros, rumor das folhas, assobiar
do vento, cantem, através das mãos do homem e como prece, o hino que chega até Deus!".

Indubitavelmente, não se pode dizer que a ciência tenha problemas com Deus; têm-na alguns cientistas... e
não por sua ciência.

***
Por tudo isto podemos dizer que a verdade sobre a existência de Deus é um conhecimento tão claro que a
Sagrada Escritura trata muito duramente aos sábios pagãos que não souberam remontar-se ao Criador
através da beleza e potência de suas obras:

Vãos por natureza todos os homens em quem se encontrou ignorância de Deus e não foram capazes de
conhecer pelas coisas boas que se vêem aquele que é, nem, atendendo às obras, reconheceram ao Artífice;
mas sim ao fogo, ao vento, ao ar ligeiro, à abóbada estrelada, à água impetuosa ou aos fogaréus do céu os
consideraram como deuses, senhores do mundo. Pois se, cativados por sua beleza, tomaram por deuses,
saibam quanto lhes avantaja o Senhor destes, pois foi o Autor mesmo da beleza quem os criou. E se foi seu
poder e eficiência o que lhes deixou sobressaltados, deduzam daí quanto mais capitalista é Aquele que os
fez; pois da grandeza e formosura das criaturas se chega, por analogia, a contemplar a seu Autor... Pois se
chegaram a adquirir tanta ciência que lhes capacitou para indagar o mundo, como não chegaram primeiro a
descobrir a seu Senhor? (Sb 13,1-5. 9)

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Reinhard Löw, O nuove prove che Deu esiste (As novas provas de que Deus existe), Piemme, Lhe case
Monferrato 1996 (o autor foi Diretor do Instituto de investigação em filosofia, do Hannover; especialista na
relação entre ciências naturais e filosofia; esta é uma posta ao dia, da visão do cientista, das provas
tradicionais, e do que o autor chama "as novas provas" científicas).

–Hillaire, A religião demonstrada, Barcelona 1955.

–Cornelio Fabro, O prove DELL’esistenza dava Deu, Ed. A Scuola, Brescia 1990 (excelente estudo com a
análise das provas da existência de Deus nos principais filósofos da história).

–––––––––––––, Deus. Introdução ao problema teológico, Rialp, Madrid 1961.

–––––––––––––, Drama do homem e mistério de Deus, Rialp Madrid 1974.

–R. Garrigou-Lagrange, Deus. Sua existência. Sua natureza (dois volúmenes), Palavra, Madrid 1980.

–Víktor Frankl, A presença ignorada de Deus, Herder, Barcelona 1985.

–Fulton Sheen, Religião sem Deus, Latinamericana, México Df s/f.

–Antonio Royo Marín, Deus e sua obra, BAC, Madrid 1963.

–Jesus Simón, SJ, A Deus pela ciência, Barcelona 1947.

–Ricardo Velho-Felíu, SJ, O Criador e sua criação, Ponce, Porto Rico, 1952.

–Jorge Loring, Para te salvar, Edapor, Madrid 1998 (51ª edição).

–Manuel Carreira, S.I., O crente ante a Ciência, Cadernos BAC, N. 57. Madrid 1982.

–Max Picard, A fuga de Deus, Guadarrama, Madrid 1962.

–Nello Venturini, I filosofi e Deu. Dizionario storico-critico, Marna, Barzago 2003.

––––––––––––––, A ricerca DELL’Assoluto: Deu, c’È? Chi È?, Coletti 1998.

III. A verdade roubada sobre a alma


Temos uma alma espiritual e imortal
Que não lhe roubem a verdade sobre sua alma...

O homem é uma criatura racional composta de corpo e alma. Talvez alguém te diga que não temos alma mas
sim somos simplesmente um corpo com funções mais evoluídas que as dos outros seres, e inclusive é
possível que escute que as funções químicas e elétricas do cérebro (funções neurológicas) explicam a
realidade de nosso pensamento. Inclusive em nossos dias se fala cada vez mais de uma ciência que trataria
estes temas: a neuro-filosofia. Isto expõe realmente um tema crucial, pois de que tenhamos alma ou não
dependem as coisas mais essenciais de nossa vida... e da outra vida (pois se não tivermos alma espiritual e
imortal, tudo acaba nesta vida).

Nós dizemos que o homem é um ser composto de corpo e alma (aonde a alma é forma do corpo). Este ensino
é conhecido como teoria hile- mórfica, já ensinada por Aristóteles e completamente compatível com os
ensinos bíblicos e católicos (teólogos, pais da Igreja, magistério). A tradição judeu-cristiana afirma que Deus
é quem cria cada alma infundindo-a nesse novo ser humano (chamado por isso momento de animação).

Todas as demais interpretações ou se reduzem a um monismo (monismo em grego significa um) negando a
diferença entre corpo e alma, ou caem em um dualismo fazendo do corpo e da alma duas substâncias
completamente distintas, unidas acidentalmente. Este último considera que o homem está composto de duas
substâncias só acidentalmente unidas ou relacionadas entre si (está acostumado a se colocar nesta postura
ao Platão –que ensinava que o corpo é em relação a alma como a nave ao piloto ou o pincel ao artista–, e
sobre tudo a Descartes).

Quanto ao monismo se podem distinguir diversas classes. Há um monismo espiritualista que reduz o homem
a sua alma enquanto o corpo não passa de ser algo puramente aparente; ensinaram no passado os docetas,
e na atualidade é revivido por alguns gnósticos da New Age (embora a estes últimos não terá que lhes
acreditar muito quando falam de espírito e espiritualismo pois muitos deles acreditam que o espírito é uma
espécie de matéria mais sutil que o resto da matéria, portanto são no fundo crassos materialistas). O monismo
materialista (Gassendi, Hobbes), em troca, reduz toda atividade intelectual às operações sensitivas; só
conhecemos o que recebemos pelos sentidos; em nossos tempos é difundido por alguns cientistas que negam
a alma e reduzem o homem ao corpo e sua atividade intelectual e volitiva a funções cerebrais. O monismo
neutro (Bertrand Russell, Spinoza) afirma que o ser humano não é nem espiritual nem material, a não ser
uma terceira coisa, uma certa substância in-diferenciada em si mesmo e da que o espírito e o corpo são
aspectos –fenomenais– parciais ou relativos.

Vejamos o que podemos demonstrar sobre a realidade da alma.

1. Existência da alma

Que temos "alma", no fundo não o nega nenhum pensador sério; o problema discutido, em todo caso é em
torno da "natureza" dessa alma. Digo que nenhum pensador sério nega a existência da alma, se entendermos
por esta afirmação "um princípio vital". Em efeito, até aqui nos leva a experiência: todos nós somos seres
vivos, como também o são cada planta, cada animal e cada pedra. Princípio vital quer dizer "princípio" que
unifica toda essa realidade e do qual emana sua unidade, sua vitalidade e sobre tudo o ter uma finalidade.
Não vou entrar neste ponto que é árduo, mas sobre o qual não acredito que se dêem as principais topadas,
pois com seus mais e com seus menos, todo filósofo da escola que seja aceitará que não somos um conjunto
de órgãos, tecidos e funções justapostas acidentalmente (como estão as batatas em uma bolsa) a não ser
com uma perfeita relação entre si, e, o que é o argumento central, com uma direção de todo este ser que sou
eu (se um conjunto de homens correndo detrás de uma bola não formam uma equipe a menos que haja uma
mente que os organize e coordene para que joguem em equipe –ou seja, seu diretor técnico– apesar de que
se trata de um grupo de seres todos inteligentes; menos poderá esperar-se que um grupo de órgãos, tecidos,
funções, etc., trabalhem para a perfeição de tudo, às vezes de maneira tão perfeita como vemos, por exemplo
no desenvolvimento das primeiras etapas do embrião, tão bem estudadas em nossos dias, ou seja, se não
haver um princípio coordenador e unificador, que é o que filosoficamente se denomina alma).

Até aqui, digo, estaremos de acordo. O término alma está empregado de modo muito general, e baixo este
aspecto pode se dizer que têm alma também os minerais, as plantas e os animais; quer dizer, têm um princípio
vital que lhes dá vida, e lhes permite obrar. Não têm os animais, as plantas e os minerais, alma espiritual,
mas sim alma sensitiva, ou vegetativa ou mineral. Para evitar confusões a filosofia fala geralmente de forma
substancial, evitando usar a palavra alma. Não deve, pois, confundir a alma dos seres infra-humanos com a
alma que lhe atribuem algumas doutrinas errôneas do passado e hoje revividos pela New Age.

Nós, pois, vivemos, sentimos, pensamos, julgamos, raciocinamos, amamos, escolhemos, etc. Todas estas
operações brotam de nosso ser, portanto de um princípio que dá a nosso ser vida, capacidade de sentir, de
amar e raciocinar, de escolher livremente. Este mesmo princípio nos dá a capacidade de crescer, evoluir, nos
aperfeiçoar; todas as ações de nosso ser estão coordenadas, subordinadas entre si, e umas se sacrificam
pelas outras pelo bem desse todo que sou eu. Há pois um princípio vital que explica esta perfeita unidade
com fins bem definidos que tem este ser que sou eu mesmo. Essa é minha alma.

2. A natureza da alma

Supomos que até aqui podiam nos seguir todos os pensadores mais ou menos sensatos (pois há muitos que
não o são, embora se apreciem disso). O problema começa a expor-se seriamente quando se trata de definir
de que natureza é esse princípio. É algo puramente físico, corporal? é algo vegetativo? ou é algo espiritual?

Ao longo da história da filosofia houve muitas teorias diversas sobre a alma, como mencionávamos mais
acima: Platão afirmou que as almas preexistem antes da aparição de nossos corpos, e são enviadas a eles
como os prisioneiros a um cárcere, mas também defendeu a imortalidade da alma; Aristóteles, em troca,
sustentou que a alma é a forma substancial do corpo, portanto, a unidade substancial do mesmo. Plotino
sustentou que é uma emanação (a terceira, depois Entendimento e antes do Mundo) a partir do Um; ele
mesmo identifica a alma com a consciência. Para as estóicas a alma do homem era parte do sopro ou fogo
universal que constituía a alma do mundo.

Entretanto terá que esperar a Guilherme de Occam (1280-1349) para que, pela primeira vez, fique em dúvida
a realidade mesma da alma e se diga que é impossível demonstrar sua existência e, muito menos, sua
imortalidade. Para isto Occam forma parte somente do terreno da fé, mas não do conhecimento racional. Mais
tarde, Descartes (1596-1650) volta a instaurar o dualismo de alma e corpo: "o espírito na máquina", tal como
o batiza G. Ryle. Este dualismo se radicaliza e Descartes fala da substância que é pensamento e a substância
que é extensão. A partir dele grande parte da história da filosofia se transformará em variações sobre o tema
do cogito cartesiano e as maneiras de resolver a relação mente-corpo. Para o inglês Hume, a pretendida
realidade substancial da alma é uma mera construção fictícia; e Kant, muito influenciado por este autor,
sustentará que "o eu" não pode ser pensado como "alma substancial" e imortal; no melhor dos casos, é uma
idéia reguladora da razão no campo de sua atividade psicológica unificadora e um postulado da razão prática
(da moralidade). A época atual herdará esta profunda desconfiança pelo tema até chegar à Psicologia sem
alma, como denominou Lange (1828-1875) um de seus mais célebres trabalhos.

O que podemos dizer nós? Até com o risco de nos opor a muitas destas "vacas sagradas" da filosofia,
podemos dizer que nossa razão nos alcança para nos dar a entender não só que temos alma mas também
esta é simples, espiritual e imortal. Agora, demonstrá-lo já é outra coisa, que tentaremos a seguir.

a) A alma é simples

A alma é, em sua essência, simples e indivisível, ao revés das coisas materiais que são compostas e
divisíveis. Podemos demonstrá-lo analisando as operações da alma.

Prova-nos isso a percepção que das coisas materiais têm uma percepção indivisa, e isto não se pode explicar
senão pela simplicidade da alma. Pois se a alma estivesse composta de partes, cada uma dessas partes
perceberia ou todo o objeto ou uma parte somente dele, e teríamos no primeiro caso tantas percepções totais
quantas partes tivesse a alma; e no segundo caso, tantas percepções parciais quantas partes tivesse a alma,
mas nunca uma percepção uma e indivisa do objeto.

Prova-nos isso também a reflexão. A alma pode voltar ou em certo modo "voltar-se" sobre si mesmo para
conhecer-se em seus atos. Mas o que está composto de partes não pode conhecer-se si mesmo como um
tudo, porque as partes do composto som necessariamente externas as umas às outras. Caso que uma parte
pudesse conhecer-se si mesmo, as outras lhe seriam totalmente estranhas. Só uma substância simples é
capaz de espelhar-se ou reverter sobre si mesmo, quer dizer, conduzir-se por reflexão.
Simplicidade equivale a imaterialidade, e um ser simples e imaterial pode encerrar várias potências ou
faculdades (inteligência e vontade) e produzir atos múltiplos e diversos.

b) A alma é espiritual

Somos seres corpóreos; isto é inegável e seria uma perda de tempo nos deter em provar isto (embora algumas
correntes modernas falam de corpos astrais e etéreos, que em definitiva não se sabe o que querem dizer com
isso). A corporeidade a demonstram nossos sentidos: somos influenciados por outros corpos e por suas
ações: sofremos o calor do fogo e o frio do gelo, doem-nos as feridas, temos sensações de agrado e
desagrado segundo a impressão que exerçam sobre nossos sentidos determinados manjares, posições e
atividades.

Mas há algo muito mais importante que esta experiência do corporal: tudo isto é vivido por mim como algo
que eu realmente sou; não somente sou um corpo mas sim sei que o sou, e com isto começamos a
transcender o corporal. "Este conhecimento que possuo de minha própria índole corpórea é um fato
intelectual, não um conhecimento sensível. Os sentidos não bastam para que o sujeito que os tem se
represente algo universal –supra-individual– como o é o ser-corpo. O homem necessita os sentidos para
chegar a adquirir esta noção, e não somente para ela, a não ser para todas as demais; mas não são os
sentidos, a não ser o entendimento, a faculdade que as capta". E o mesmo acontece com nosso "querer"
(chamado "volição") mesmo que o que queremos sejam coisas corpóreas; não só queremos coisas que nos
atraem por sua utilidade mas também bens que não nos reportam nenhuma utilidade a não ser somente
porque são coisas boas em si e vale a pena as amar. O animal ama e defende seu território e combate os
intrusos; isto forma parte de seu instinto de sobrevivência específico (necessita esse território para sua
conservação e a de sua espécie) mas não pode formar uma idéia de pátria nem em conseqüência amá-la; o
animal tem um amor instintivo, ligado a seu interesse individual ou específico; não ama por nenhum idealismo,
nem por tradições, nem por valores espirituais; um animal matará e se deixará matar por defender um par de
hectares de selva ou de deserto, mas jamais poderia fazê-lo pela bandeira que o representa ou por seu hino,
ou por suas poesias. O primeiro amor, que também o homem compartilha com os animais, é material; o
segundo, que só é exclusivo do homem, é espiritual.

Um periquito adestrado pode repetir um verso ou uma estrofe, e pode sentir deleite no som ou na musicalidade
de seus sons; mas não pode entender os conceitos nem apaixonar-se pelos mundos infinitos que eles
evocam. Um galo pode excitar-se fisicamente ante uma fêmea de sua raça, mas não obterá jamais que as
folhas de um olivo lhe recordem com nostalgia os olhos verde terra de sua galinha, nem que a ravina que se
abre junto a seu galinheiro lhe possa evocar a profundidade do olhar de sua franga. Simplesmente porque
nem a oliveira nem a ravina exalam os hormônios pelas que se desata todo o processo de excitação sexual
ordenado à conservação da espécie, e o animal não transcende estes campos das ações e reações.

Somos, portanto, espírito e não só corpo; e isto em unidade substancial: a alma é forma do corpo. Daqui que
a alma humana é espírito. Chama-se espiritual todo ser que não depende da matéria nem em sua existência
nem em suas operações. A alma é espiritual; podemos comprová-lo por seus atos, como se prova a existência
de Deus por suas obras. É um princípio evidente que as operações de um ser são sempre conforme a sua
natureza: conhece-se operário por suas obras. Agora bem, nossa alma produz atos que transcendem a
matéria (quer dizer, são espirituais) como os pensamentos, os julgamentos, as volições; portanto nossa alma
é espiritual.

Podemos ver por três classes de atos, eminentemente superiores a qualquer outro realizado pelo mesmo
homem: os atos do pensar (formar idéias), raciocinar (de inventar, de progredir) e querer livremente. Estes
atos transcendem o puramente sensível, como podemos ver comparando com os atos análogos dos animais.

1º O homem pensa, abstrai, saca das imagens materiais subministradas pelos sentidos idéias universais,
gerais, absolutas; concebe as verdades intelectuais, eternas. Conhece coisas que não percebem os sentidos,
objetos puramente espirituais, como o verdadeiro, o bom, o belo, o justo, o injusto. Sabe distinguir as causas
e seus efeitos, as substâncias e os acidentes, etcétera. O animal vê, ouve e sabe achar seu caminho,
reconhecer seu amo, recordar que uma coisa lhe fez mal, etc. Mas o animal não tem idéias gerais, não
conhece a não ser aquilo que cai sob seus sentidos, o concreto, o particular, o material, vê, por exemplo, tal
árvore, tal flor, mas não pode elevar-se à idéia geral de uma árvore, de uma flor; assim, o cão se esquenta
agradando ao calor da luz, mas não terá jamais a idéia de acender o fogo e muito menos aproximar
combustível para que não se extinga.
O homem, além disso, conhece o bem e o mal moral: goza do bem que faz e sente remorsos ao obrar mau.
O animal não conhece mais que o bem agradável e o mal nocivo a seus sentidos: não tem remorsos; nem a
verdade nem o bem e o mal moral podem ser conhecidos senão pela inteligência.

2º O homem raciocina, inventa, progrede, fala. O homem analisa, compara, julga suas idéias, e dos princípios
ou axiomas que conhece, deduz conseqüências. Calcula, dá-se conta das coisas; sabe o que faz e por que o
faz. Descobre as leis e as forças ocultas da natureza, e sabe as utilizar para invenções maravilhosas. Por sua
faculdade de raciocinar, inventa as ciências, as artes, as indústrias, e todos os dias descobre algo admirável.
O animal não raciocina, não calcula, não tem consciência de suas ações, se guia só pelo instinto. Jamais
aprenderá nem a escritura, nem o cálculo, nem a história, nem a geografia, nem as ciências, nem as artes,
nem sequer o alfabeto. Nada inventa, nem faz progresso algum: os pássaros constróem seu ninho hoje como
o fizeram ao seguinte dia de ter sido criados.

Só o homem fala: o homem possui a palavra falada e a palavra escrita. Só o homem tem a intenção explícita
e formal de comunicar o que pensa: capta os pensamentos dos outros e diz coisas que passaram em outros
tempos e que não têm nenhuma relação com sua natureza. O animal não lança mais que gritos para
manifestar, às vezes o pesar dele, o prazer ou a dor que sente; mas não tem linguagem, porque não tem
pensamento. O papagaio melhor amestrado não é mais que uma máquina de repetição; enquanto que o
selvagem, até o mais ignorante, pode sempre expressar o que pensa.

3º Só o homem obra livremente. É livre para escolher entre as diversas coisas que lhe apresentam. Quando
faz algo, diz-se: eu poderia muito bem não fazê-lo. O animal não é livre, e tem por guia um instinto cego que
não lhe permite deliberar ou escolher. Por isso não é responsável por seus atos; e, se o castiga depois de ter
feito algo inconveniente, é a fim de que não o repita, recordando a impressão dolorosa que lhe causa o castigo.

Esta faculdade de obrar livremente a chamamos vontade. Esta vontade tende para bens inacessíveis aos
sentidos e a seus apetites. Necessita de um bem infinito, do bem moral, da virtude, da ordem, da honra, da
ciência. Às vezes, para conseguir estes bens, chega até sacrificar os bens sensíveis, únicos que deveriam
comovê-la se fosse uma faculdade orgânica. Logo a vontade, tão apreciadora dos bens espirituais e
desprezadora dos objetos materiais, é uma faculdade espiritual que não pode achar-se a não ser em um
espírito.

A vontade é proprietária absoluta de suas operações; determina-se a si mesmo a obrar ou não; a vontade é
livre. Minha consciência me diz que quando meu corpo procura o prazer, eu posso resistir; quando meu
estômago sente fome, eu posso me negar a satisfazê-la; além disso, eu posso infligir a meu corpo castigos e
austeridades, apesar dos sofrimentos dos sentidos. Agora bem, como poderíamos nós ter império e livre-
arbítrio sobre nossas tendências instintivas, se a inteligência e a vontade não tivessem atos próprios,
independentes do corpo; se nossa alma não fosse um espírito? Seria impossível.

Por último, o homem tem o sentimento da divindade, eleva-se até Deus, seu Criador, e o adora; tem a
esperança de uma vida futura, e este sentimento religioso é tão exclusivamente dele, que os pagãos definiam
ao homem: um animal religioso.

Por isso, o homem, apesar de sua inferioridade física, domina os animais, doma-os, domestica-os, faz-os
servir a suas necessidades ou seus prazeres e dispõe deles como dono, como dispõe da criação inteira.
Basta um menino para conduzir uma numerosa manada de bois, cada um dos quais, tomado separadamente,
é cem vezes mais forte que ele. De onde lhe vem este domínio? Não é, por certo, de seu corpo; vem-lhe de
sua alma inteligente, porque ela é espiritual, criada a imagem de Deus.

O homem é o ser único da criação que reúne em si a natureza corporal e a natureza espiritual, e se comunica
com o mundo material mediante os sentidos, e com o mundo espiritual mediante a inteligência.

Por tudo isto se pode entender por que um cientista da talha do neurologista britânico sir Francis Walshe
(1885-1973; membro do Royal College of Physicians; pioneiro na descrição e análise dos reflexos humanos
em términos fisiológicos; editor do boletim Brain; estudioso e conferencista sobre a função da casca cerebral
em relação com os movimentos e sobre fisiologia neuronal em relação com a consciência de pena; presidente
da Associação de Neurologistas e da Royal Society of Medique, especialista nos problemas filosóficos da
relação mente-cérebro), diga: "Acredito que temos que voltar para o antigo conceito de alma espiritual: essa
parte integral da natureza do homem que é algo imaterial, sem a qual não se pode ser pessoa humana".
É tão importante compreender bem esta relação entre o corpo e a alma que devemos dizer que não é nossa
alma a que se comporta de uma maneira passiva em relação a nosso corpo (ou seja, que o corpo a move,
usa-a porque a necessita ou se serve dela como instrumento), mas sim é nosso corpo o que tem uma certa
atitude passiva em relação a nossa alma. Em conseqüência, esta não tem que estar unida a nosso corpo
nada mais que para realizar as operações peculiares da vida vegetativa e sensitiva, as quais não são as
próprias do espírito humano, embora dele dependam. É, em realidade, nosso corpo o que tem necessidade
de nosso espírito para poder viver com esses únicos modos ou maneiras de vida que em um corpo se podem
dar. É tão clara a transcendência do espiritual na atividade humana que não só se deve falar do homem como
um ser composto de corpo e alma mas sim com mais propriedade terá que falar da alma e seu corpo.

c) A alma não pode se reduzir nem explicar só pelo cérebro material do homem

Talvez uma das falsificações mais difundidas pela imprensa de nossos dias é a que diz que aquilo que os
crentes (os que crêem, em sentido amplo) chamam alma em realidade se explica pela atividade do cérebro.
Não faria falta supor uma alma espiritual pois todas as atividades que dizemos que nossa alma realiza são,
em realidade, atividades cerebrais, e portanto materiais. Há muitos cientistas que pensam também assim e
inclusive se fala de "neuro-ciência", de "neuro-filosofia", e de "filosofia da mente"; disciplina nas que militam
muitos que identifica o cérebro com a mente humana; ou seja, a alma com o corpo (pois isso é o cérebro: um
órgão corporal). O que tem de certo nisto? Pouco e nada. Em muitos casos nem sequer temos um trato
"científico" do tema, por parte de muitos que são considerados como "grandes cientistas" no mundo atual.
Por exemplo, o filósofo australiano David Chalmers expõe o problema da seguinte maneira: "O problema...é
o de como os processos físicos do cérebro dão lugar à consciência"; e o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina
Francis Crick, deste outro modo: "Como explicar os eventos mentais como sendo causados pela descarga de
grandes conjuntos de neurônios?". Em ambos os casos temos uma colocação enganosa, porque não estão
perguntando o que acreditam que perguntam mas sim já estão respondendo: os dois partem de que os
"eventos mentais" ou a "consciência" são produzidos pelos processos do cérebro ou, o que é equivalente,
pela descarga dos neurônios! Que lugar há para se perguntar se os fenômenos mentais são algo espiritual?
Nem sequer tomam o trabalho de propô-lo.

Alguns cientistas, até resolvendo mal o tema, tiveram a honestidade de reconhecer que há alguns problemas
que parecem escapar a qualquer explicação materialista; estes seriam, ao menos, quatro: a consciência, a
intencionalidade, a subjetividade e a casualidade mental. Como o explica Serani Merlo: [sobre a consciência]
"o que é difícil de entender para o enfoque científico atual seria: como pode essa massa-relatório cinza e
branca que está dentro de meu crânio ser consciente? A intencionalidade (...) é aquela propriedade pela qual
nossos estados mentais se referem a algo: como pode a respeito de algo ser um rasgo intrínseco do mundo?
(...). A subjetividade (...) refere-se ao feito de que eu posso sentir minhas dores e você não pode (...) O quarto
rasgo tem que ver com a convicção que todos temos de que nossos estados mentais têm efeitos causais
sobre o mundo físico e com a dificuldade que deriva deste fato em ordem a vincular estes dois tipos de
realidades. Por exemplo: digo levantar meu braço e eis aqui que meu braço se levanta. Como pode algo tão
‘gasoso’ e ‘etéreo’ como um estado mental consciente ter algum impacto em um objeto físico como o corpo
humano?".

A gente poderia entusiasmar-se pensando que se os cientistas que expuserem tais questões, tentarão
resolver. Falsa esperança. Limitam-se, na generalidade dos casos, a afirmar sua tese que é a seguinte, no
caso do Searle, e, com certas variantes, a da maioria dos cientistas materialistas: "Os fenômenos mentais,
todos os fenômenos mentais, já sejam conscientes ou inconscientes, visuais ou auditivos, dores, comichões,
coceiras, pensamentos, toda nossa vida mental, estão efetivamente causados por processos que acontecem
no cérebro"; ou, como diz em outro lugar: "Os fenômenos mentais são um resultado dos processos
eletroquímicos no cérebro, tanto como a digestão é o resultado de processos químicos que acontecem no
estômago e no resto do aparelho digestivo". E depois de dizer algo tão sério como o que acabamos de
transcrever (tão sério que implica a negação da alma espiritual) Searle não considera pertinente realizar
nenhum comentário para justificar a validez de sua tese, pois a considera óbvia. Outros autores, como
Chalmers, filósofo australiano, reconhece que o problema é "difícil", mas não moverão um dedo para
solucioná-lo. O que mais se aproxima de uma explicação se pode expressar com as palavras com que o faz
F. Crick: "a maioria dos neuro-científicos atuais acreditam que..."; quer dizer, usam um argumento de
autoridade (pedindo um ato de fé) que a sua vez tem o valor provativo que tem toda opinião ("acreditam que")
ou seja, nenhum. É um tamanho abuso nos pedir que façamos um ato de fé em sua afirmação de que não
existe a alma e que o cérebro é o que pensa e ama e é consciente... e não mover um dedo para demonstrá-
lo. Há muitos motivos pelos que se pode perder a alma; mas perdê-la por ter fé no Crick, no Chalmers, no
Searle ou em qualquer outro cientista materialista, deve ser um dos móveis mais estúpidos. Provavelmente o
inferno de que tanto os materialistas negaram, a existência do espírito tenha um lugar especial para tantos
néscios chegarem ali... por fé em outros néscios!

Por isso é importante saber, como diz Serani Merlo que: "a maior parte dos cientistas e filósofos que assumem,
consciente ou inconscientemente, a tese materialista, supõem que a força de sua verdade surge dos
descobrimentos da ciência contemporânea. Agora bem, qualquer pessoa que leve alguns anos revisando a
literatura neuro-científica, será capaz de reconhecer que não existe nenhum trabalho experimental, ou alguma
interpretação de dados experimentais, publicado em alguma revista científica séria, que permita afirmar de
modo claro, rigoroso e inequívoco, que a atividade eletroquímica, bioquímica ou genético-molecular da casca
cerebral causa os fenômenos mentais de modo total, próximo e suficiente, de modo análogo como os ceio
mamários produzem o leite e as ilhotas do Langerhans a insulina. Não existe portanto nenhuma evidência
científica que permita assegurar de modo óbvio, in-duvidável, inequívoco, experimentalmente verificável, que
a matéria físico-corpórea, tal como a ciência nos dá a conhecer, é a causa dos fenômenos mentais. De fato,
os autores Crick e Koch que tão sinceramente aceitam que as descargas de grupos de neurônios causam os
fenômenos mentais, reconhecem que não chegamos ainda a descobrir qual é o correlato exato dos
fenômenos mentais".

Daqui que o filósofo judeu-alemão Hans Jonas sustenta que a tese materialista se enfrenta absurdos em seu
próprio domínio.

Além de que não há nenhuma evidência (nem pode havê-la) de que o cérebro é o que produz os estados
mentais, temos também a evidência contrária de que, em um todo unitário, é o todo o que atua pela parte e
não a parte pelo todo; assim, por exemplo não é o pulmão o que respira, mas sim o animal respira pelo
pulmão; e portanto, terá que dizer igualmente que não é o cérebro o que conhece senão que o homem é
quem conhece por meio de seu cérebro. A alma, para pensar, serve-se do cérebro como de um instrumento,
como nos servimos de uma janela para que entre a luz, mas não é a janela a que produz a luz, a não ser a
condição para que a luz chegue a nós que estamos dentro da habitação; daí que devemos dizer que o cérebro
é condição para raciocinar, mas não é a causa do raciocínio nem da vontade. Loring cita ao neurologista e
neuro-cirurgião Wilder Penfield, da Universidade de Montreal, que se dedicou toda sua vida ao estudo da
pessoa e do cérebro humano, quem explica: "O cérebro se parece muito a um computador. Entretanto, a
mente, o espírito, é algo independente do cérebro. A mente não é um produto do cérebro. A mente não é algo
físico. Depende do cérebro mas não é o cérebro, não é algo fisiológico. Nenhum cientista conseguiu
demonstrar que a mente tem explicação material".

Por isso, devemos dizer que certamente existe uma estreita relação entre a mente (alma) e o cérebro humano
(órgão corporal) que não conhecemos ainda muito bem e cujo estudo está em fraldas. Terá que seguir
investigando; mas também devemos reconhecer duas coisas. A primeira, nunca se poderá explicar o
fenômeno do pensamento (e todo o relacionado com ele; consciência, querer, intencionalidade, subjetividade,
etc.) reduzindo-o ao cérebro (já sejam movimentos químicos, reações elétricas, etc.); no máximo poderemos
constatar que quando pensamos, ou temos consciência, ou amamos, etc., há reações em nosso cérebro, e
não pode ser de outra maneira, já que o cérebro é o instrumento de que se serve nossa alma, e todo
instrumento se altera ao ser utilizado, mas seu efeito o transcende (move-se o pincel e esparrama o óleo
combinando maravilhosamente as cores em um quadro de Van Gogh, mas nenhum néscio diria que é o pincel
quem está produzindo a maravilha de um conjunto de girassóis nem o que está tentando nos dar uma
mensagem "mental" através das formas estilizadas e das cores escolhidas, embora o gênio de Van Gogh
sem pincéis fosse tão inútil como um maneta). A segunda coisa é que a maioria dos "cientistas" que negam
a alma espiritual e reduzem todo fenômeno mental ao cérebro, não trabalham com honestidade científica,
pois normalmente caem em um destes enganos: ou partem de que, de fato, todo fenômeno mental é um
fenômeno físico (como faz Crick) o qual não é um ponto de partida mas sim, em todo caso teria que ser o
ponto de chegada, ou ao chegar a esta afirmação a deixam sem demonstrar ou a esquivam por ser difícil (e
além disso, em lugar de deixá-la em suspense, seguem-na sustentando como se estivesse demonstrada), ou
simplesmente apelam a que a maioria dos cientistas acreditam que a coisa é assim, o qual não é totalmente
certo, e embora fosse certo –ou seja, se todos acreditassem assim– se esquecem de que a função da ciência
não é nos pedir atos de fé –porque o cientista não é Deus nem vem ao mundo a revelar nenhum mistério
sobrenatural– mas sim deve demonstrar o que postula ou reconhecer que lhe escapa de sua competência
por não poder demonstrá-lo; outra atitude fora desta seria anti-científica (e precisamente essa é a que tomam
tais personagens; o qual tem um nome: prejuízos materialistas). Em todo caso, um cientista que obra assim
não atua cientificamente mas sim se comporta como um fundador de falsa religião, que pede fé sem fazer
milagres para prová-la; e talvez isso seja o que pretende um ramo da nova ciência. Neste caso não só te está
vendendo uma teoria que está em fraldas mas também "uma teoria que já terei que trocar os fraldas".
Tendo isto em conta se compreende que um verdadeiro cientista, como é John Eccles, Premio Nobel de
Medicina por seus trabalhos sobre o cérebro, tenha acusado o cientificismo materialista de superstição, e
tenha dito que "o materialismo carece de base científica, e os cientistas que o defendem estão, em realidade,
acreditando em uma superstição. Leva a negar a liberdade e os valores morais, pois a conduta seria o
resultado dos estímulos materiais. Nega o amor, que acaba sendo reduzido a instinto sexual: por isso, Popper
disse que Freud foi um dos personagens que mais dano tem feito à humanidade no último século e teve
ocasião de comprovar que o método do Freud não é científico, pois trabalhou faz muitos anos em Viena em
uma clínica onde se aplicava esse método. O materialismo, se levado até as ultimas conseqüências, nega as
experiências mais importantes da vida humana: ‘nosso mundo’ pessoal seria impossível".

E também: "A atividade cerebral nos permite realizar ações de modo automático. Mas podemos acrescentar
um nível de consciência. Por exemplo, quando caminho, ‘quero’ ir mais depressa ou mais devagar. Inclusive
podemos envolver quase tudo na consciência: ‘quero’ andar com ar do Charlot, pensando cada passo e cada
movimento..." (...) "Monod me chamou ‘animista’; eu me limitei a lhe chamar ‘supersticioso’, porque
apresentava seu materialismo como se fosse científico, o qual não é certo: é uma crença, e de tipo
supersticiosa".

"Os fenômenos do mundo material são causas necessárias mas não suficientes para as experiências
conscientes e para meu ‘eu’. Há argumentos sérios que conduzem ao conceito religioso da alma e sua criação
especial por Deus. Acredito que em minha existência há um mistério fundamental que transcende toda
explicação biológica do desenvolvimento de meu corpo (incluindo o cérebro) com sua herança genética e sua
origem evolutiva; e que se for assim, o mesmo tenho que acreditar de cada um dos outros e de todos os seres
humanos".

Talvez bastaria recordar aquela anedota que nos recorda Hillaire: um positivista se esforçava em provar que
a alma era matéria como o corpo e um sábio lhe respondeu: "Quanto engenho gastou, senhor, para provar
que você é uma besta!... Como se trata de um fato pessoal lhe acreditam confiados em sua palavra..."

d) A alma é imortal

Se quiséssemos apresentar de modo resumido os argumentos usados classicamente para provar a


imortalidade da alma, deveríamos citar os seguintes:

a) Por sua mesma natureza: um ser é naturalmente imortal quando é incorruptível e pode viver e obrar
independentemente de outro. Agora bem, a alma é incorruptível, porque é simples, indivisível; pode viver e
obrar independentemente do corpo, porque é um espírito; logo, é imortal por natureza. Um espírito não pode
morrer. Nossa alma é incorruptível porque não encerra em si nenhum princípio de dissolução e de morte. Este
é um argumento propriamente metafísico.

b) Mostram-no também os desejos e as aspirações da alma (este é, na melhor das hipóteses, um argumento
de conveniência e supõe a aceitação de algumas verdades contidas nele): o desejo natural e irresistível que
temos de uma felicidade perfeita e de uma vida sem fim prova a imortalidade da alma (todo homem que
penetre em seu coração encontrará nele um imenso desejo de felicidade; não é um efeito de sua imaginação,
pois não é ele quem o deu, e não está em seu poder desprezá-lo; não é uma coisa individual, pois todos os
homens, em todos os climas e em todas as condições, experimentaram-no e o experimentam diariamente;
portanto esta aspiração brota do fundo de nosso ser e se identifica com ele). Agora bem, este desejo não
pode ser satisfeito na vida presente e, pelo qual, deve ser satisfeito na vida futura; se não, Deus, autor de
nossa natureza, teria se burlado de nós, nos dando aspirações e desejos sempre defraudados, nunca
satisfeitos; o que não pode ser. É possível que Deus tenha posto em nós um desejo tão ardente, que não
possamos satisfazer? Criou-nos para a felicidade, e nos pôs na impossibilidade de consegui-la?
Evidentemente, não; que nesse caso Deus não seria o Deus de verdade. Deus não engana o instinto de um
inseto, e enganaria o desejo que infundiu em nossa alma? Logo é necessário que, cedo ou tarde, o homem
obtenha uma felicidade perfeita, se ele por própria culpa, não se opõe a isso. Mas esta felicidade perfeita não
se acha na terra: nada nesta vida pode satisfazer nossos desejos; todos os bens finitos não podem encher o
vazio de nosso coração: ciência, fortuna, honra, satisfações de todas classes, caem nele, como em um abismo
sem fundo, que se alarga sem cessar. Estranha coisa!, os animais, que não têm idéia de uma felicidade
superior aos bens sensíveis, contentam-se com sua sorte. E os homens, só o homem, procura em vão a sorte,
cuja imperiosa necessidade leva na alma. Nunca está contente, porque aspira a uma bem-aventurança
completa e sem fim. Posto que não é feliz neste mundo, é necessário que ache a felicidade na vida futura.
Este raciocínio também vale para nossas aspirações intelectuais; o homem tem sede de verdade e de ciência;
quer conhecer tudo; nunca pode encher seu desejo de saber, foi criado, pois, para achar em Deus toda
verdade e toda ciência. À maneira que o corpo tende para a terra, assim a alma tende para Deus e para a
imortalidade.

c) Exige-o a sabedoria de Deus: se Deus for Deus, é, conseqüentemente legislador sábio e justo, premiando
e castigando conforme exigem os méritos e de-méritos de cada homem. Mas nós não vemos na vida presente
uma sanção eficaz da lei de Deus; portanto é necessário que exista na vida futura, sob pena de dizer que
Deus é um legislador sem sabedoria. Esses prêmios e castigos não podem reduzir-se aos remorsos ou à
alegria da consciência, pois os malvados afogam os remorsos e a alegria da consciência que é bem pouca
coisa comparada com os sofrimentos e as lutas que requer a virtude.

Não está no desprezo público nem na estimativa dos homens, pois com muita freqüência vemos que são
precisamente os grandes culpados os que gozam da estima dos homens, enquanto que os justos som o
branco de todas as brincadeiras.

Não está na justiça humana, porque ela não alcança os pensamentos e desejos, fontes do mal; não tem
recompensas para a virtude; não pode descobrir todos os crimes, pode ser burlada pela habilidade, comprada
pelo dinheiro, intimidada pelo medo; e se, às vezes, vindica os direitos dos homens, não vindica os direitos
de Deus.

Por conseguinte, a sanção eficaz da lei de Deus não pode achar-se mais que nos castigos ou prêmios que
nos esperam depois da morte.

Por isso o mesmo J. J. Rousseau dizia: "Se eu não tivesse mais prova da imortalidade da alma que o triunfo
do malvado e a opressão do justo, esta flagrante injustiça me obrigaria a dizer: não termina tudo com a vida,
tudo volta para a ordem com a morte". E Delille escrevia com justeza:

Os que derrubam, fazendo a Deus a guerra,

os altares das leis eternais,

malvados opressores da terra,

tremam! são imortais!

Os que gemem desditas passageiras,

que vela Deus com olhos paternais,

peregrinos de um dia a outras ribeiras,

acalmem sua dor! são imortais!

d) Embora de valor inferior aos anteriores argumentos, também o manifesta a aceitação desta verdade por
todos os povos da terra. É um fato atestado pela história antiga e moderna que os povos do mundo inteiro
admitiram a imortalidade da alma, como o prova o culto dos mortos, o respeito religioso dos homens pelas
cinzas de seus pais e os monumentos que erigiram sobre seus sepulcros.

Esta crença universal e constante não pode proceder senão for da razão, que admite a necessidade da vida
futura, ou da revelação primitiva, feita por Deus a nossos primeiros pais e transmitida por eles a seus
descendentes. Agora bem, o testemunho, seja da razão, seja da revelação, não pode ser ao menos a
expressão da verdade; logo a crença dos povos é uma nova prova da imortalidade da alma. Segundo frase
de Cicerone, aquilo em que convém a natural persuasão de todos os homens, necessariamente tem que ser
verdadeiro. É um axioma de senso comum contra o qual em vão protestam alguns materialistas modernos.
Mas tratemos de aprofundar mais nas razões metafísicas que demonstram a imortalidade da alma.

É um fato que o homem morre. Nossa vida está afetada pelo tempo; em cada instante vemos os rastros que
o tempo deixa e chega um momento em que nossa vida acaba por completo como viver material. Até aqui
chega a experiência; só nos diz que o viver sensitivo e vegetativo deixam realmente de dar-se em um indivíduo
humano no momento que chamamos morte; mas não vai mais à frente e não chega a demonstrar que com a
morte se extinga a totalidade de seu ser. Se o homem se reduzir a pura matéria, poderíamos chegar a essa
conclusão, mas já vimos que não é assim. A experiência, portanto, não nos fala da "não-imortalidade" do
homem, mas sim da mortalidade do que o homem tem de material. Isto é bom que o deixemos sentado, para
evitar essas imprecisões e invasões de campo às que tanto nos acostumam quem aborda estes temas sem
rigor científico ou filosófico: a experiência não constata a extinção total do homem na morte a não ser a
desintegração de seu corpo; como experiência não pode estender-se mais que ao que é diretamente
experimentável; o que é imaterial não é objeto de experiência direta; portanto, disso não se pode julgar a
partir da pura experiência, e com maior razão se pode dizer que as ciências que se apreciam de experimentais
não tem autoridade para falar destes temas; como um cego não pode sentenciar sobre cores, nem um surdo
ser jurado em um concurso de música.

Já havemos dito que a alma é simples e espiritual. daqui se segue que seja imortal. Se a forma substancial
do corpo humano –alma– fosse somente material (o que se provaria se somente fosse princípio de atividades
sensíveis e vegetativas), a morte consistiria, indubitavelmente, na extinção da forma substancial de nosso
ser, pois não cabe que este permaneça sem que o corpo que a possui não esteja vivendo. Mas já vimos que
a forma substancial do corpo humano é algo mais que princípio de nossa conduta sensitiva e vegetativa; é a
fonte das operações peculiares do entendimento e da vontade.

Certamente que é indispensável que a alma anime à matéria para que o homem exista e para que este realize
as atividades de suas potências intelectiva e volitivas. Mas daqui não se conclui que estas atividades não
possam ser realizadas pelo espírito senão estiver unido à matéria. A alma tem que estar unida ao corpo para
que o homem (corpo e alma) viva e execute suas operações; mas esta união não é requisito para que o
espírito exista nem para que execute suas próprias operações, porque "a um espírito não unido com a matéria
não lhe falta nada essencial. A matéria não é nenhuma parte física dele, nem tampouco nenhum de seus
aspectos. O espírito não é matéria em modo algum, embora possa informá-la ou animá-la e embora isso
resulte necessário para o ser e o obrar do homem".

"Desta sorte, não pelo fato de que o homem morra se extingue também seu espírito. A morte é a corrupção
do corpo humano, mas o espírito não pode corromper-se, porque não tem partes. Poderia, não obstante, se
extinguir se de um modo essencial dependesse do corpo, quer dizer, se tivesse necessidade da matéria para
ser o que é. Mas não se encontra nesse caso, por não ser material. Inclusive quando está unido à matéria –
que é, nem mais nem menos, o que ocorre no caso do homem–, o espírito segue sendo imaterial. E não cabe
que no homem esteja sob o ‘influxo’ –se esta palavra se tomar em sua acepção mais estrita– da matéria, a
qual anima ou vivifica. Em tanto que forma substancial e como já se explicou, o espírito se comporta, em
relação à matéria, de uma maneira ativa, não de um modo passivo. Assim, pois, para falar de um influxo da
matéria no espírito, tem que se dar à voz ‘influxo’ a exclusiva acepção de um puro e simples condicionamento
que, como já se esclareceu, só acontece de uma maneira extrínseca e indireta, com o qual fica dito que esse
condicionamento é necessário tão somente para que o espírito funcione em seu estado de união com a
matéria, sem que a sua vez ,esse estado tenha que ser nele uma necessidade inseparável de sua própria
índole. Em conseqüência, a separação do espírito em relação ao corpo humano é a morte do corpo ou, dito
mais cabalmente, a do homem. O homem morre ao ficar sem o espírito que o vivificava ou animava não só
com um viver sensitivo e vegetativo, mas também com outro evidentemente superior por sua índole imaterial".

Podemos acrescentar algo mais, embora não seja o que principalmente nos interessa aqui: "embora por
incorruptível é imortal, o espírito não per-vive por si só. Sem a cooperação de Deus, nenhum ente finito
permanece no ser. Por conseguinte, embora a morte do homem não implica em maneira alguma a extinção
do espírito, tampouco pode permanecer no ser em virtude de uma certa inércia existencial, de tal modo que
o seguir sendo não devesse a Deus. Até no caso de que pudesse haver essa espécie de inércia, o espírito a
teria como algo que Deus lhe teria conferido ao lhe implantar no ser, com o qual, em definitiva, deveria a Deus
e não a si mesmo. Em nenhum caso pode ser a per-vivência do espírito um pouco imposto por este, como
uma necessidade, ao ser de Deus". Tampouco entro neste lugar em outro tema discutido pelos teólogos: se
a unidade substancial de corpo e alma (que é o modo próprio de existir do homem) não expõe certa anti-
naturalidade do estado da alma separada (como ocorre na morte) e se isto, a sua vez, não expõe uma espécie
de necessidade da ressurreição; não entramos neste tema, posto que a ressurreição do corpo humano é já
um dogma da fé cristã, e não nos temos proposto nos deter nos dogmas de fé a não ser nas questões que,
sendo filosóficas, são postas em dúvida ou negadas pela falsa ciência de nosso tempo.

***

Os que negam que os seres humanos têm alma merecem, com toda razão, o nome de desalmados; e cedo
ou tarde atuam como tais. Da negação da alma ao desalmamento (tirar a alma, que, como a Real Academia
indica, é o término próprio para designar a des-humanidade e a perversidade) não só há um passo a não ser
um passo muito curto. Alonso de Palencia poderia nos emprestar o título de sua fábula Batalha campal dos
cães e os lobos para intitular como corresponde o mundo criado pelos que negam a alma.

Um autor sugeria que a melhor forma de fazer compreender a estes tais que a alma realmente existe é só
rompendo a deles; um método eficaz, embora como cristãos não possamos recomendá-lo.

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Regis Jolivet, Tratado de filosofia. Psicologia, Carlos Lohlé, Bs.As. 1956.

–Antônio Millán-Puelles em: Léxico Filosófico, Rialp, Madrid, 1984.

–Abelardo Pithod, A alma e seu corpo, Grupo Editor Latino-americano, Buenos Aires. 1994.

–Alejandro Serani Merlo, Dificuldades na Neuro-filosofia ou: Onde está o problema no problema mente-
cérebro, II Congresso Internacional da Bio-ética. Departamento da Bio-ética - Universidade de La Savana.
Santa Fé de Remará, Colômbia, 30 de Julho de 1999; em .

–Carlos A. Marmelada, Sobre a origem da inteligência humana, ()

–Maria Gudin, Cérebro e pessoa (em: ); Idem, Cérebro e Afetividade, Coleção Astrolábio Saúde, EUNSA,
Pamplona 2001.

–Antonio Royo Marín, Teologia da Salvação, BAC, Madrid 1965.

–Santo Tomás de Aquino, De anima (sobre a alma).

–N. Marín Negueruela, Deus e o homem, Barcelona 1936.

–René Biot, O corpo e a alma, Desclée do Brouwer, Bs. Ás. 1952.

–Carlos Velasco Suárez, Psiquiatria e Pessoa, Educa, Bs. Ás. 2003.

–Víktor Frankl, Homo patiens, Plantín, Bs. Ás. 1955.

––––––––––––, A idéia psicológica do homem, Rialp, Madrid 1986.

–Bruchner, Corpo e espírito na medicina atual, Rialp, Madrid 1969.

–Pio XII, Discursos a respeito de ética e psiquiatria, em: López Medrano e outros, Pio XII e as ciências
médicas, Guadalupe, Bs. Ás. 1961.

–Karol Wojtyla, Minha visão do homem, Palavra, Madrid 1997.

––––––––––––, O homem e seu destino, Palavra, Madrid 1998.

–Francisco Rego, A relação da alma com o corpo, Gladius, Bs. Ás. 2001.
IV. A verdade roubada sobre a religião

A religião é algo intrínseco a todo ser humano

Quando lhe disserem que a religião é um invento dos homens, ou um produto cultural, pode estar seguro de
duas coisas: a primeira é que querem te roubar sua religião; a segunda é que acabam de pôr em seu coração
o primeiro alicerce de uma nova religião. Pedem-lhe que não lhe acredite à Igreja, ou não acredite a Deus...
e para isto deverá acreditar neles. Não lhe pedem um ato racional nem científico, realmente lhe pedem um
ato de fé (humano) em uma pessoa que não é digna de crédito: o ladrão da verdade.

Parece-me muito instrutivo o exemplo de um teólogo protestante americano, Harvey G. Cox, o qual em
meados da década de sessenta escreveu um livro, com o título "A cidade secular" (um best seller em seu
momento) em que sustentava que o processo de secularização e a progressiva diminuição de interesse pela
religião por parte dos homens contemporâneos eram já um pouco completamente evidente; entre outras
coisas constatava a perda de interesse da sociedade sobre qualquer aspecto diretamente sobrenatural da
religião, como os temas relacionados com a escatologia, os anjos e demônios, as curas e os milagres. Por tal
motivo, em dito livro Cox convidava a que em lugar de lutar contra a secularização (empresa que ele
qualificava de impossível e pueril) as Igrejas começassem a ver que seu novo rol já não seria a religião a não
ser um compromisso preponderantemente social. Não é estranho que Cox junto com outros como Vahanian,
João Segundo Luis, etc., tenham sido conhecidos como teólogos da "morte de Deus". Este livro influiu de uma
maneira pavorosa naqueles pensadores que sempre estão à busca e à caça de novidades, causando perdas
de fé, abandonos do sacerdócio e da vida religiosa, politização da religião e inclusive derramamento de
sangue por parte dos que entenderam tal "compromisso social" como um "compromisso com a subversão
armada". Como se nada tivesse passado e com a mesma irresponsabilidade com a que 30 anos antes
proclamava a chegada de uma civilização sem religião, o mesmo Cox em meados da década de 90 publicava
outro livro com o título "Fogo do céu" no que afirmava que tudo que tinha ensinado na cidade secular" eram
previsões errôneas e que em lugar de uma civilização sem Deus o que temos agora é uma civilização
obstruída de religiosidade: agora considerava "óbvio que em lugar da morte de Deus’ que alguns teólogos
tinham declarado não faz muitos anos, ou da decadência da religião que os sociólogos tinham previsto,
ocorreu algo completamente distinto". Não vamos usar suas conclusões como dados seguros, posto que o
cão troca as manhas mas não as pulgas, e por isso neste ano como antigamente Cox segue fazendo uma
análise incorreta da religiosidade (assim como antes se entusiasmava com uma sociedade ateia, agora se
ilude com uma sociedade pletórica de religiosidade, que em realidade não é tal mas sim é em parte o broto
de uma religiosidade sentimental fortemente imbuída do espírito da New Age). Mas o exemplo nos serve para
ver o superficial dos diagnósticos dos teólogos que se separam da sã doutrina.

Pois, os que em nossas salas-de-aula destrambelham contra a religião e a atribuem a uma invenção humana,
não passam do nível acadêmico de Cox, e terminam a maior parte das vezes deixando-se levar pelas modas
do momento... como Cox.

Em lugar, então, de aceitar estes ensinos perigosos, melhor faremos em nos perguntar "por que somos
religiosos?", "por que todos os povos têm sua religião, verdadeira ou falsa?" A religião, quer dizer, o "fato
religioso", é um dos fenômenos mais profundos de nossa natureza (inclusive alguns quiseram ver nele uma
prova da existência de Deus..., e de fato não é um método desacertado embora não tenha o rigor das provas
que já vimos em seu lugar). Dizia Chesterton do homem eterno": "A natureza não se chama Isis nem busca
ao Osiris; mas busca, entretanto, busca desesperadamente o sobrenatural". E em outro lugar acrescentava:
"o que tem de mais natural no homem é o sobrenatural; eis aqui a última palavra da questão. Sua natureza o
obriga a adorar, e por muito disforme que seja o deus e estranha e rígida sua postura, a atitude de adorar é
sempre generosa e grandiosa; prostrando se eleva; com as mãos juntas é livre; ajoelhado é grande. Liberem-
o de seu culto e o encadearão; lhe proíbam dobrar os joelhos e o rebaixarão. O homem que não pode rezar
leva uma mordaça... O indivíduo que executa os gestos da adoração e do sacrifício, que derrama a libação
ou levanta a espada, não ignora que executa um ato viril e magnânimo e vive um dos momentos para os
quais nasceu".

1. Os passos de uma demonstração "católica"

Nosso tema aqui é a realidade do "fato ou fenômeno religioso", não da prova da autenticidade e origem divina
da Igreja Católica. A prova da origem divina da Igreja (ou seja de que é fundada por Deus) pertence a uma
disciplina chamada "apologética católica" ou também "teologia fundamental". De todos os modos, para que
se veja o tema em seu conjunto quis apresentar aqui os passos pelos que se dá esta "demonstração", se
assim pode chamar-se. São fundamentalmente três: a demonstração do espiritualismo, a do cristianismo e a
do catolicismo.

a) Primeira etapa: o espiritualismo

O primeiro momento consiste na demonstração da existência de Deus e de suas qualidades, do homem e


sua espiritualidade (quer dizer, que o homem tem alma, que esta é espiritual, livre e imortal), da religião (do
fato religioso e da necessidade –para o homem– de praticar o culto religioso). Esta parte também deve incluir
a refutação dos enganos contrários: o ateísmo, o panteísmo, o agnosticismo e o determinismo.

Este passo já foi dado com os capítulos dedicados precisamente a demonstrar a existência de Deus, da alma,
neste em que analisaremos a realidade da religião. Até aqui chega o intento deste livro que tem entre mãos.
Mas quem quer demonstrar a autenticidade do catolicismo deveria logo transitar duas etapas mais, que indico
a seguir.

b) Segunda etapa: o cristianismo

Uma vez demonstrada a existência de Deus e a espiritualidade do homem e a necessidade da religião terá
que comprovar se houver uma religião revelada (não se trata já da religião natural) e qual é a religião
verdadeira.

Acima de tudo terá que provar a possibilidade da revelação de mistérios sobrenaturais (ou seja, de que Deus
fale com homem de Si mesmo). A seguir se devem analisar os critérios através dos quais podemos conhecer
com segurança que se esses mistérios são revelados por Deus e através dos quais poderemos também
discernir uma religião verdadeira de outra falsa. Estes critérios são dois, como o demonstra este passo: o
milagre estritamente dito e a profecia estritamente dita.

Uma vez dado este passo podem seguir-se duas vias diversas. A primeira –mais difícil pelo trabalho que
representa– é analisar todas as religiões que se dizem reveladas vendo se nelas se verificam os critérios da
revelação (milagre e profecia estritos), além disso (o que terei que fazer previamente) de verificar que em
seus ensinos dogmáticos e morais não se contém nada contra os princípios da razão e da lei natural (digo
nada contrário, não nada superior) pois se contradisser os princípios da razão (ou seja, se for contra o princípio
de contradição ou qualquer dos outros princípios) ou da lei natural (os mandamentos da lei natural, que são
divinos, como veremos em seu lugar) é claro que não pode ser verdadeira, pois Deus é o autor tanto da ordem
sobrenatural como do natural e não há uma dupla verdade a não ser uma somente (contra o que ensinaram
alguns filósofos que diziam que algo pode ser verdadeiro para a fé e falso para a filosofia; teoria chamada de
dupla verdade). A outra via consiste em analisar primeiro o Cristianismo, e se verificam que nele se cumprem
os critérios já ditos (concluindo, portanto, que é de origem divina), nos limitar a considerar as principais
religiões que também se postulam como reveladas (embora já não faria falta estudar todas, nem com tanto
rigor como devemos fazê-lo com o Cristianismo, pois não pode haver duas religiões que ensinem coisas
contrárias e sejam ambas as verdadeiras, pois cairia por terra o 'princípio de não contradição'). Esta é a via
que está acostumado a seguir-se, e com todo direito, pois é no seio do cristianismo onde nasceu esta
disciplina apologética.

Para levar adiante este estudo se deve, acima de tudo, demonstrar convincentemente a historicidade do
cristianismo (quer dizer, o valor histórico de suas fontes: em particular os Evangelhos) para determinar se
pode aceitar como historicamente verdadeiro quanto eles nos testemunham sobre Jesucristo e o começo do
cristianismo.

Uma vez determinada sua historicidade se procede a demonstrar a legação de Cristo (ou seja que Cristo é o
revelador dos mistérios divinos) e sua autoridade divina, aplicando-lhe os critérios do milagre e da profecia.
O fruto deste estudo é a prova da absoluta credibilidade do testemunho que Cristo dá sobre si mesmo, sobre
os mistérios divinos e sobre suas obras (também ficará demonstrada sua divindade se logo depois deste
processo pudermos demonstrar que entre esse testemunho digno de fé dado por Cristo se encontra também
sua afirmação de que Ele é Deus).

Esta parte deve completar-se com o estudo dos principais enganos como o racionalismo e o indiferentismo.
Muitos estudos foram dadicados a isso num apaixonado itinerário intelectual; um dos melhores é o de Leoncio
de Grandmaison
c) Terceira etapa: o catolicismo

O terceiro passo é a demonstração de que Cristo fundou uma Igreja e a investigação de qual é essa Igreja.
Para isto se podem seguir três métodos:

O primeiro é a chamada "via histórica". Procede provando primeiro a missão divina de Cristo, e logo mostra
que Cristo confiou a continuação de sua obra redentora a uma sociedade religiosa que é a Igreja Católica.
Este método nos obriga a nos remontar ao passado e embora seja árido, é muito firme e seguro e procede
através de três passos:

1º Primeiro demonstra que Jesucristo teve intenção de fundar uma Igreja: fica de manifesto pela promessa
de edificar a Igreja (MT 16,18), a eleição, instrução e missão dos Doze Apóstolos (Mc 3,13-19; Lc 6,12-17), a
"nova aliança" realizada na Última Ceia (MT 26,28 e paralelos), etc.

2º Logo demonstra que Jesucristo fundou efetivamente uma Igreja e lhe deu uma constituição e estrutura
determinada; fundou-a sobre os apóstolos: enviando-os a pregar (Mc 3,14; Lc 9,2, etc.), com autoridade de
reger em seu nome a todos os homens e de administrar os sacramentos (Mc 16,16), particularmente o
batismo, a Eucaristia e o perdão dos pecados. Além disso prometeu e deu efetivamente a um só apóstolo,
Simón Pedro, a autoridade suprema para reger à Igreja Universal (cf. MT 16; Jn 21).

3º Finalmente mostra que Jesucristo instituiu essa Igreja para que perdurasse até o fim do mundo e na forma
hierárquica com que a dotou nos tempos apostólicos; isto patenteia que se pode deduzir claramente que
ordenou aos apóstolos que tivessem perpétuos sucessores no triplo ofício de ensinar, santificar e reger, o
qual se desprende das promessas de Cristo sobre sua Igreja: as portas do inferno não prevalecerão contra
ela (MT 16), as parábolas do trigo e o joio (MT 13,39), o encargo a Pedro de confirmar seus irmãos no futuro
(Lc 22,31). Esta sucessão se verifica nos bispos, sucessores dos apóstolos, e no Papado, sucessor do
Apóstolo Pedro.

O segundo método é a chamada "via das notas", que consiste em analisar a vontade de Cristo e ver que
características (ou notas) quis que tivesse a Igreja por Ele fundada. Estas notas são quatro:

1º a unidade de regime, de fé e de comunhão;

2º a santidade de princípios, de membros e de meios de santificação;

3º a catolicidad ou universalidade da missão, sua permanente e simultânea difusão em todo o círculo, sua
predicación a toda classe de pessoas e raças, etc.;

4º finalmente, a apostolicidad, quer dizer, a continuidade da missão apostólica (constantes sucessores dos
apóstolos) até o fim do mundo.

depois de analisar as quatro notas, analisam-se as diversas "pretendentes" ao título de "igreja fundada pelo
Jesucristo" e se vê como quão única realiza em plenitude substancial as quatro notas é a Igreja Católica.

A terceira via é a chamada por alguns "via da transcendência" e por outros "via empírica ou analítica": parte
do fato da Igreja, de sua atividade e de sua ação, tal qual se apresenta diretamente a todo homem e o ponto
chave deste método é a demonstração de que na realidade histórica da Igreja se pode constatar a
"intervenção imediata de Deus". Este método se apóia em último término no milagre (o milagre presente na
vida atual da Igreja), de modo particular em: 1º a admirável propagação da Igreja apesar das dificuldades,
perseguições, obstáculos; 2º a milagrosa unidade católica; 3º a invicta estabilidade; 4º a exímia santidade e
fecundidade dos Santos.

Evidentemente, a exposição detalhada de qualquer destas vias supõe um desenvolvimento que excede as
dimensões deste breve livro. Por isso sugiro a leitura de algum dos clássicos estudos de apologética católica
citados na bibliografia no final.

2. A universalidade do fato religioso


Ficamos pois só no primeiro momento e concretamente na análise do fenômeno religioso.

Ao longo dos séculos XIX e XX, com o advento das ideologias ateias, muitos filósofos quiseram procurar à
religião uma explicação puramente natural, entretanto, há algo que não se pode evitar: a universalidade do
fato religioso.

O fato religioso se encontra em todos os povos. Esta religiosidade, constante e universal, apóia-se na crença
da necessidade moral da religião; de outro modo, não seria constante nem universal, como acontece com
outras práticas que foram desconhecidas em alguns povos e estiveram vigentes em outros, dos que mais
tarde desapareceram; por exemplo, o sistema de castas fechadas, vigente entre os índios; o de castas
abertas, entre os egípcios; ambos os desconhecidos entre gregos, romanos, etc.

Conhecida é a religiosidade do povo hebreu, provada por sua lei, templo, sacrifícios, sinagogas, sacerdócio,
sábado, dízimos, primícias e circuncisão; dos povos cristãos, com seu admirável dogma, moral e culto; e do
povo maometano, que dá culto ao Alá e tem suas mesquitas, santões, oração, dias festivos, Ramadán, etc.
Outros povos podem dividi-los em pré-históricos e históricos.

Nos povos pré-históricos vêem indícios certos de sua religiosidade nos monumentos megalíticos, sepulturas,
amuletos e redondezas do crânio ou ossos separados do crânio e perfurados em seu centro, que se
colocavam perto do esqueleto.

Os povos históricos, seja cultos, seja primitivos ou selvagens, todos praticaram a religião, professando certos
dogmas, preceitos e ritos.

Entre seus dogmas podemos destacar: (a) A fé em um Deus superior ao homem, que cuida dele e que pode
lhe fazer bem ou dano, não só nesta vida, mas também na vida futura. chamou-se a Deus com diferentes
nomes: Céu ou Imperador eminente, pelos chineses; Brahma, pelos índios; Mazda ou Ormuz, pelos iranianos;
O, Elohim, pelos semitas; Nuter, pelos egípcios; Zeus, pelos gregos; Júpiter, pelos romanos; Huitzilopochtli,
pelos asteca; Grande Espírito, pelos primitivos. (b) Esse Deus é juiz de todos os homens e seu remunerador,
que premia os bons, e castiga os maus com penas muito largas ou eternas. Sob a autoridade do Deus
Supremo alguns povos colocavam a outros deuses, semideuses e gênios.

Em relação a sua moral podemos constatar que em todos os povos se manda: (a) a justiça com todos; (b) a
piedade com os deuses e com os pais; (c) os sacrifícios para adorar ao Deus Supremo e aplacá-lo. Estes
sacrifícios são, geralmente, cruentos: às vezes, a vítima é outro homem, com preferência menino, donzela ou
prisioneiro, principalmente entre os semitas e americanos.

Finalmente todos os povos tiveram um culto no qual se prescreviam fórmulas ou ritos especiais para dar culto
aos deuses e receber seus benefícios; de sua observância escrupulosa depende o êxito da petição. A fins do
século XIX alguns viajantes despreparados ou mau ensinados falavam da existência de povos selvagens, que
careciam de idéias religiosas: australianos, japonês, índios brasileiros, ilhéus de Samoa, etc. menos de 50
anos depois, quer dizer, a partir dos estudos etnológicos se podia já afirmar com Schmidt: "Na moderna
etnologia desapareceu a categoria de povos ateis. A grande multidão de povos que antigamente tinham
adjudicado tinha ficado reduzida recentemente a um só, os kubus da Sumatra, que foram depois eliminados
também, mediante as observações de von Dongen e Schebesta. O último intento, feito recentemente pelo W.
Tessmann, de descobrir entre os índios do Ucayali homens sem Deus, foi também rechaçado pela crítica
etnológica". Digamos, de passagem, que mesmo que se pudesse alguns povos ou tribos verdadeiramente
ateias, isto não iria contra o fenômeno da universalidade moral do fato religioso, pois sempre se trataria de
casos isolados e excepcionais, como o demonstra o que se discuta sobre a mesma existência de tais povos.

Poderiam aduzir em relação à religiosidade universal os testemunhos de Cicerone, Plutarco, Sêneca, Máximo
de Tiro, entre os antigos, e Quatrefages e Schneider, entre os estudiosos do século XX. Podemos nos
contentar com algumas afirmações, como as do Lactancio: "A religião é quase o único que separa o homem
dos brutos". João Jacobo Rousseau: "Pode demonstrar-se, contra Bayle, que não subsiste nenhum Estado
cuja base e fundamento não seja a religião". Quatrefages acrescenta: "O fato da universalidade da religião é
tão manifesto, que os mais eminentes antropólogos não vacilam em aceitar a religiosidade como um dos
atributos do reino humano". E o mesmo eminente sábio se pergunta: O que é o homem? Um ser organizado,
dotado de moralidade e religião".
Byon Jevons se atreve a afirmar: "Que jamais houve época na história do homem em que este viveu sem
religião é uma afirmação cuja falsidade tentaram demonstrar alguns escritores, nos trazendo o conto de tribos
selvagens alheias, claro está, a toda ideia religiosa. Nem sequer tentamos discutir este ponto, que, como sabe
todo antropólogo, jaz sepultado no limbo das disputas mortas. Escritores que abordaram o tema com pontos
de vista tão diferentes como os adotados pelo professor Tylor, Max Müller, Ratzel, Quatrefages, Waytz,
Gerland, Peschel estão acordes em afirmar que não há raça humana, por miserável que seja, desprovida de
toda idéia religiosa".

"A afirmação de que há povos ou tribos sem religião –assinalava o holandês C. P. Corte– descansa, seja em
observações inexatas, seja em uma confusão de idéias... Temos, pois, direito a chamar à religião, tomada em
seu sentido mais amplo, um fenômeno próprio de toda a Humanidade". E podemos fechar estes testemunhos
com as palavras nada suspeitas de Renan: "Nada mais falso que o sonho de quem querendo conceber à
humanidade perfeita, imaginam sem religião... Suponhamos um planeta habitado por uma Humanidade cujo
poder intelectual, moral e físico fosse o dobro do da Humanidade terrestre; aquela seria, pelo mesmo, duas
vezes mais religiosa que a nossa. Suponhamo-la dez vezes mais forte que a nossa, e essa humanidade seria
imensamente mais religiosa... O progresso dará, pois, por resultado o engrandecimento da religião, e não
tenderá a destrui-la nem diminui-la".

Por isso, apesar dos anos, são muito atuais as palavras do Eötvös a seus com-nacionais húngaros: "Por
muitos progressos que faça a ciência, nunca conseguirá apagar com seus raciocínios a debilidade humana,
nem a consciência da mesma. Deus criou nossa espécie de maneira que necessitemos apoio, necessitemos
algo ante o qual nos inclinemos. O homem não cessará de procurar um Ser superior, ante quem ficar-se de
joelhos; e, se os altares da divindade fossem derrubados, sobre suas ruínas se levantarão os tronos dos
tiranos". E como confirmava o escritor russo Leão Tolstoi (1828-1910): "Se cruzar por sua mente o
pensamento de que os conceitos que tem formado de Deus não são justos, e que acaso nem sequer existe
Deus, não te desespere. Todos podemos passar por tal transe. Não creia que sua incredulidade tenha por
causa que Deus não exista".

3. Alguns intentos de explicação

Houve realmente muitas escolas filosóficas (denomino-as assim embora se auto denominem etnológicas,
metem-se neste ponto em uma questão que toca problemas filosóficos) que tentaram explicar o fenômeno
religioso com investigações puramente naturais. Embora não o tenham obtido (sempre ficam buracos
inexplicáveis) vale a pena as mencionar.

Explicação da escola mitológica

Esta escola foi formada em meados do século XIX por A. Kuhn e sustentava que as figuras da mitologia
religiosa não eram a não ser personificações dos objetos e fenômenos da natureza, especialmente dos
grandes astros. O mais famoso representante foi Federico Max Müller (1823-1900), fundador da "História das
Religiões". Este, abusando do método filológico, pôs a origem da mitologia em defeitos do conhecimento do
mundo, em faltas da linguagem, na confusão e exuberância de palavras. A origem da religião, explicava-se,
para ele, pela influência do infinito sobre a consciência humana; o homem vê até certo limite, e ali se detém,
como não tem linguagem para nomeá-lo o chama de Deus sem precisar se este deus é um ou múltiplo. Müller
nunca explicou, entretanto (e não podia), como é possível que em todas partes e em todos os povos, a
imprecisão do idioma, a confusão de palavras, a ignorância, seja o ponto de partida do fato mais universal
que registra a História.

Esta escola mitológica teve muitas variantes: a mitológica natural (que é a que acabo de mencionar), a
mitológica astral, o pan-lunarismo, etc.; todas com os mesmos defeitos.

Explicação da escola antropológica

Segundo esta escola o homem tem a tendência de pôr nas coisas que o rodeiam algo de sua própria vida,
sentimentos, paixões, etc. A doutrina desta escola se condensa em três hipóteses que não demonstra. A
primeira é um agnosticismo cru: nada podemos saber das causas transcendentais, pois não as podemos
submeter a experiência; portanto não devemos procurar a origem da religião em tais causas metafísicas a
não ser em nós mesmos. Assim dizia Réinach: "A menos de admitir a hipótese gratuita e pueril (infantil) de
uma revelação primitiva, é preciso procurar a origem da religião na psicologia do homem, não do homem
civilizado, mas sim do que se afasta mais desta civilização". Seria bom saber por que sua hipótese, sendo
em todo caso também pueril e gratuita, será melhor ver o que quer refutar. Mas ela não diz o que quer refutar.
A segunda hipótese é o postulado evolucionista, levado a maior universalização: tudo evolui do simples e
rudimentar ao composto; portanto, se queremos encontrar a origem do fato religioso, terá que analisar a
religião nos povos mais selvagens pois são os que reproduzem mais fielmente o estado primitivo da
humanidade. Em todo caso terá primeiro que demonstrar isto; pois estes autores poderão discutir se pode
provar ou não uma revelação primitiva (ou seja, uma revelação divina ao começo da humanidade) mas o que
não podem é negá-la sem demonstrar, posto que nada impede que se Deus existir, revele-se ao homem; e
se assim tivesse sido, tal religiosidade seria mais perfeita por proceder de uma revelação direta de Deus,
enquanto que as formas posteriores correspondem a uma degeneração do sentido religioso; ou seja,
destruiria esta hipótese. A terceira hipótese é o postulado determinista, segundo o qual os diferentes cultos
se encadeiam sucedendo um ao outro, mercê a múltiplos fatores como a cultura, o meio ambiente, o gênero
de vida, etc.

É claro que os postulados de onde parte esta explicação são falsos, e apriorísticos sobre tudo por descartar,
sem demonstração alguma, toda possível revelação primitiva e qualquer explicação transcendente. Deste
modo não só se fecham a qualquer explicação sobrenatural, mas também a qualquer explicação científica,
pois não há nada mais anticientífico que a negação sem provas da Causa Sobrenatural.

Infelizmente não temos espaço aqui para expôr algumas teorias do fato religioso que dependem desta escola,
como são o animismo (que explica a origem da religião pela crença dos povos primitivos nas almas individuais
e nos espíritos), o manismo (hipótese que afirma que o culto das almas dos mortos –ou emane– é a origem
da religião), o magismo (baseado pelo Frázer, quem faz derivar o fato religioso da magia, ou comunicação do
homem com um poder ou energia misteriosa que, respondendo a suas invocações e ritos, satisfaz seus
desejos); o fetichismo (culto ao fetiche(=feitiço), quer dizer, a uma representação em madeira, barro, pedra,
etc., consagradas a diversos gênios ou ídolos; Augusto Comte, fundador do positivismo no século XIX, supôs
que esta é a primeira etapa "religiosa" do homem); o totemismo, que afirma que a origem da religião se deriva
do culto dado aos totens, preferentemente animais (o totem é um objeto material que o pagão olha com
respeito supersticioso acreditando que entre ele e cada membro do clã a quem representa, no totem há uma
relação íntima e especial), etc..

Explicação da escola sociológica

Para esta escola é a sociedade quem impõe mecanicamente o fato religioso a cada um dos indivíduos que
compõem certa sociedade; é, portanto, a sociedade a que cria a noção religiosa; esta noção brota
espontaneamente dos indivíduos .Só ficam em contato e fazem vida social; depois esta religião vai lentamente
se desencardindo e idealizando. O motivo é que a sociedade para viver necessita um ideal; cria-o e o
apresenta a todos os indivíduos que a constituem sob o aspecto do sagrado e a majestade do divino. Esta
teoria tem o mérito de reconhecer o fenômeno religioso e afirmar, contra Comte, que não é uma criação
artificial a não ser espontânea; também tem o mérito de ensinar que a religião é o fato social por excelência
de onde se derivam todos os outros, quer dizer, que é o vínculo social mais forte, o fator principal de coesão
entre os membros de uma sociedade; a idéia de Deus, até para os sociólogos, é a única idéia que pode
inspirar e manter o espírito de sacrifício dos indivíduos em relação ao resto da sociedade (e que aceite isto
não é pouco dizer); também é seu mérito o reconhecer que a religião tem um aspecto social, quer dizer, que
não é um fenômeno puramente individual (como pretende o liberalismo), que necessitamos uma tradição
religiosa, que é legítima uma sociologia religiosa, que a religião é um fato perpétuo e permanente e que há
concordância entre as transformações sociais e as doutrinas ou práticas religiosas... mas se equivoca em sua
explicação de base. Para o Durkheim, principal expositor desta escola, o homem nasce besta e é a sociedade
quem o faz homem; portanto o que há nele de humano é só um reflexo ou eco da sociedade; inclusive sua
dimensão religiosa é só um eco da sociedade. É evidente que tal explicação é viciosa: em algum momento
houve indivíduos que terminaram formando uma sociedade e ao menos nesse momento o processo tem que
ter sido necessariamente ao revés do explicado pela escola sociológica: os indivíduos projetaram seus valores
sobre a sociedade que eles formaram. Com isso cai o princípio sobre o qual se fundamenta toda a teoria e
com ela todas as explicações com que concebem os fatos, inclusive o religioso.

Explicação da escola psicológica

Para esta escola, iniciada pelo William James, em seu livro "Variedades da experiência religiosa", o fato
religioso consiste, acima de tudo, em uma atitude afetiva; para este autor o sentimento, associado à vontade,
é o essencial na religião. São os sentimentos os verdadeiros estados religiosos: ao otimismo se reduzem as
experiências religiosas de confiança no divino, gozo, exaltação, êxtase; ao pessimismo os sentimentos de
pecado, remorso, arrependimento. O fenômeno religioso não é mais que uma projeção do subconsciente. As
mesmas idéias penetraram no catolicismo através do movimento modernista que reduzia a religião e a fé a
um sentimento de indigência do divino. Não há portanto religião objetiva, nem revelação, nem fé em um Deus
que fala verdadeiramente ao homem, a não ser uma projeção subconsciente de nossa necessidade de
amparo, de segurança, que descarregamos sobre uma idéia de Deus que nós mesmos fabricamos sem sabê-
lo.

Esta escola e suas teorias têm também seus méritos: reconhece a realidade das experiências religiosas e
dos fatos de consciência, separando-se em parte do crasso materialismo de outras teorias; não reduzem
estes fatos a leis fisiológicas (James ridiculariza aos médicos materialistas que pretendem explicar a
conversão moral como uma crise do instinto sexual, ou catalogam a Santa Teresa de Jesus como histérica);
reconhece a multiplicidade das experiências religiosas; proclama o elevado valor da vida religiosa (considera
que a santidade é um fator essencial do bem-estar social e conta os Santos entre os maiores benfeitores da
humanidade). Mas se equivoca em pontos radicais: reduz todo o fenômeno religioso à esfera afetiva, não
contando os elementos intelectuais (as crenças, dogmas, verdades) que são fundamentais em toda religião;
leva o engano do agnosticismo pelo qual descarta de suas explicações tudo o que seja sobre-humano; como
lhe critica Faguet: "James não diz uma palavra, ou, pelo menos, será tão curta que me terá escapado, a
respeito de Santo Tomás de Aquino, de Bossuet ou São Francisco de Sales. Em troca, todos os homens
desequilibrados que tenham um defeito qualquer no cérebro acham neste livro efetiva hospitalidade". Além
disso, a escola psicológica descuida o elemento principal da religião, a adoração, precisamente porque esta
supõe uma realidade pessoal distinta do homem a que este deve submeter-se, aceitando seus ensinos,
obedecendo seus mandatos e propiciando-a mediante certas práticas ou atos de culto.

Conclusões

As investigações, desligadas de prejuízos, feitas por importantes filósofos e etnólogos, permitem-nos chegar
a conclusões certas sobre o fato religioso, que podemos resumir nas seguintes:

1º Na história da humanidade não há época nenhuma a-religiosa. "Nenhum sábio de algum renome se
atreveria a negá-lo" (W. Schmidt). A afirmação do Lubbock, Letorneau, Mortillet. Hovelacque, O Bom e outros,
de que as origens da humanidade são a-religiosas, está em oposição com os fatos; em todas partes o homem,
já como aparece na história, já observado pela etnografia, já reconstituído pela pré-história, mostra-se
religioso.

2º Não há religião separada em sua origem da moral: não há, portanto, estados primitivos amorais. Por onde
quer, se nos fixarmos nos povos naturais, vemos uma moral intimamente ligada a dogmas e ritos religiosos.
A maior parte das práticas imorais estão unidas, não à religião e sim à magia, que pretende obter, sem Deus
e contra Ele, resultados que o homem é impotente para produzir.

3º A moral é mais pura e mais dependente da religião nos povos mais primitivos. "Os negros, que estão nos
primeiros degraus do progresso, têm uma moral especulativa e prática, superior certamente a numerosas
populações africanas, relativamente civilizadas" (O Roy).

4º Não existem povos sem organização familiar determinada. É falsa, portanto, a promiscuidade gregária (ou
seja, que todos conviveriam sexualmente sem matrimônio nem família) que supunham os partidários da
evolução monista nos princípios da humanidade. O mesmo Darwin escreve: "A hipótese que apresenta a
promiscuidade como uma etapa geral na história da humanidade é uma das mais néscias dentro do terreno
das ciências sociológicas".

5º O Progresso religioso da humanidade não é unilineal, retilíneo, progressivo, segundo o esquema


evolucionista, pois, contrariamente às pretensões evolucionistas, o ponto de partida das religiões se
caracteriza pela moral religiosa e o monoteísmo e, em muitos casos comprovados, têm cansado logo no
politeísmo. Os mesmos evolucionistas não puderam ficar de acordo nas etapas religiosas. E assim variam as
escalas religiosas, conforme aos prejuízos de cada autor. Freqüentemente, a evolução religiosa tem sido feita
por degradação; o animismo substituiu o monoteísmo, uma moral grosseira a outra mais pura. Portanto,é um
empecilho a evolução religiosa de Tylor, Spencer, Reville e outros autores.

6º Não há paralelismo nem sincronismo entre as evoluções religiosa e mitológica. Em cada povo revistam
coexistir estes dois elementos, religião e mitologia. A religião, elemento superior, acredita em um ser superior
ao homem, pai e fazedor das coisas; a mitologia, elemento inferior, é grosseira e, freqüentemente, obscena.
Estes dois elementos evoluem inversamente. O elemento religioso perde pureza e elevação, afogado pela
mitologia. "Os romanos e gregos têm uma religião mais complicada, mas menos pura, que os assírios e
caldeos; estes, crenças menos elevadas que os egípcios; estes, práticas mais multiplicadas e complexas,
mas menos fáceis de compreender, que as das tribos Hamitas, Nigricianas e Bantúes; estas últimas, enfim,
noções religiosas mais difusas e menos singelas, e, por ende, menos claras e puras que as dos humildes
pigmeus, cuja pobre imaginação não achou nada com que enriquecer o fundo dogmático e moral que levam
consigo em sua vida errante, e que mantiveram através da larga série de séculos passados" (O Roy).

7º Não existe religião sem relação com seres superiores. A magia, que para o King, Hartland, Marett e outros,
seria o ponto de partida da evolução religiosa, é desconhecida nas religiões da Índia e do Egito; mais ainda,
a etnografia nos ensina que nos povos inferiores, ao maior culto do Ser Supremo corresponde menos magia.
É que o sentimento de dependência, unido a toda religião, supõe a crença em seres superiores e pessoais.

8º A religião dos povos verdadeiramente primitivos foi monoteísta. Esta conclusão da história das religiões é
uma confirmação prática da tese filosófica sobre a possibilidade de conhecer Deus. Os povos primitivos,
escassos de cultura, por falta de civilização que nós supomos, têm alma racional; têm idéias, que se forjam
ao olhar as coisas que os rodeiam; idéias que não são exclusivas do homem civilizado. Da contemplação das
coisas que vêem inferem a existência do Soberano Criador. O mesmo A. Lang (+ 1912), antes o mais brilhante
defensor da evolução religiosa, ao examinar de perto aos povos primitivos da Austrália e das ilhas da
Austronesia, converteu-se em intrépido defensor do monoteísmo primitivo. O berço da humanidade escutou
o nome mais augusto: Deus, e esse nome era o mais querido do homem; chamava a Deus de seu Pai...

9º A análise do fato religioso nos proporciona uma prova evidente, científica da existência de Deus. Se
negarmos a Deus, o fato religioso é um enigma indecifrável.

4. Por que é necessária a religião?

Porque já havemos dito que temos alma e que a alma é capaz de conhecer tanto o que é Deus como o que
é o homem. Este conhecimento nos obriga, então, a praticar a religião, que une o homem com Deus como a
seu princípio e último fim.

Em efeito, a religião é o conjunto de deveres que o homem deve cumprir para com o Ser Supremo, seu
Criador, seu Benfeitor e seu Senhor e através dos quais se une com Deus.

Estes deveres contêm: verdades que acreditar, preceitos que praticar e um culto que coletar a Deus.

Assim como entre os pais e os filhos existem laços ou relações naturais e sagradas, do mesmo modo existem
entre Deus Criador e Pai do homem, e o homem criatura e filho de Deus. O laço que une o homem com Deus
é mais forte que aquele que une ao filho com o pai, por quê? Porque nós devemos muito mais a Deus do que
deve um filho a seu pai. Deus é nosso Criador e nosso último fim, não assim nossos pais. Assim, nossos
deveres para com Deus são muito mais Santos que os dos filhos para com os pais.

Terá que distinguir a religião natural da sobrenatural ou revelada.

A religião natural é a que se conhece pelas luzes naturais da razão e se funda nas relações necessárias entre
o Criador e a criatura. Esta religião natural obriga absolutamente a todos os homens, em todos os tempos e
em todos os lugares, porque ela emana da natureza de Deus e da natureza do homem. Encerra em si as
verdades e preceitos que o homem pode conhecer pela razão, embora, de fato, tenha-os conhecido pela
revelação: a existência de Deus, a espiritualidade, a liberdade e imortalidade da alma, os primeiros princípios
da lei natural, a existência de uma vida futura, suas recompensas ou castigos.

A religião sobrenatural ou revelada é aquela que Deus tem feito conhecer homem da origem do mundo. O
Criador impôs ao primeiro homem verdades para acreditar, como o destino sobrenatural do homem, a
necessidade da graça para chegar a este fim sublime, a esperança de um Redentor, etc., e deveres positivos
para cumprir, como o descanso do sábado, o oferecimento de sacrifícios, etc.

A intenção destas páginas não é, como já disse mais acima, falar da religião revelada nem provar que a
religião católica seja a verdadeira; sobre este ponto só nos limitamos a indicar quais são as vias para
demonstrá-lo. Portanto, o propósito aponta só em deixar sentados os motivos pelos que o homem necessita
a religião como o peixe necessita a água. A religião é necessária ao homem porque se funda sobre a natureza
de Deus e sobre a natureza do homem, e se apóia nas relações necessárias entre Deus e o homem. Impor
uma religião é direito de Deus; praticá-la é dever do homem: Deus é o Criador, o homem deve o adorar; Deus
é o Senhor, o homem deve o servir; Deus é o Benfeitor, o homem deve o dar obrigado; Deus é o Pai, o homem
deve o amar; Deus é o Legislador, o homem deve guardar suas leis; Deus é a fonte de todo bem, o homem
deve lhe dirigir suas preces. Todos estes deveres do homem para com Deus são necessários e obrigatórios,
e o conjunto de todos eles constitui a religião, portanto, a religião é necessária.

Até tal ponto é necessária que Deus não pode dispensar ao homem do dever religioso. Deus não pode
renunciar a seus direitos de Criador, de Senhor, de fim último. Assim como um pai não pode dispensar a seus
filhos do respeito, da submissão e do amor que lhe devem, assim tampouco pode Deus nos dispensar de
praticar a religião.

Deus, sabedoria infinita e justiça suprema, devo necessariamente prescrever a ordem e a ordem requer que
os seres inferiores estejam subordinados ao Ser supremo, que as criaturas glorifiquem o seu Criador, cada
uma conforme a sua natureza, portanto, a ordem requer que o homem inteligente e livre renda a Deus:

1º a comemoração de sua dependência, porque Ele é seu Criador e seu Senhor;

2º a comemoração de sua gratidão, porque Ele é seu benfeitor;

3º a comemoração de seu amor, porque Ele é seu Pai e seu Soberano Bem;

4º a comemoração de suas expiações, porque Ele é seu legislador e seu juiz;

5º a comemoração de suas orações, porque Ele é a fonte e o oceano infinito de todos os bens. Deus não
pode, pois, renunciar a este direito essencial de exigir nossas comemorações, porque não seria Deus, já que
não amaria a ordem e a justiça.

Deus podia não nos criar, mas do momento que somos a obra de suas mãos, seu domínio sobre nós é
inalienável.

A religião é também necessária ao homem porque o homem não pode ser feliz sem religião. O homem não é
feliz neste mundo se suas faculdades não estiverem plenamente satisfeitas; e só a religião pode dar
tranqüilidade ao espírito, paz ao coração, retidão e força de vontade. Por conseguinte sem religião o homem
não pode ser feliz neste mundo. Tampouco pode ser feliz na vida futura, porque sem religião não pode
alcançar a felicidade, que é a posse de Deus, Soberano Bem.

O homem não pode ser feliz mas sim pela religião que lhe permite conhecer adequadamente a Deus e lhe
amar. Isto se pode ver com claridade:

1º A inteligência necessita da verdade e da verdade inteira: as partículas de verdade pulverizadas pelas


criaturas não podem lhe bastar; necessita da verdade infinita, que só se acha em Deus. Em conseqüência,
ante todas as coisas, a inteligência necessita do conhecimento de Deus, seu princípio e seu fim. Mas como a
religião é tão única oferece soluções claras, precisas e plenamente satisfatórias a todas as questões que o
homem não pode ignorar, devemos concluir que a religião é necessária. Por isso todos os sábios,
verdadeiramente dignos de tal nome, mostraram-se profundamente religiosos. A frase do Bacon será sempre
a expressão da verdade: "Pouca ciência afasta da religião, muita ciência leva a ela".

2º O coração do homem necessita do amor de Deus, porque foi feito para Deus, e não pode achar repouso
nem felicidade a não ser amando a Deus, seu Bem supremo. Nem o ouro, nem os prazeres, nem a glória
poderão jamais satisfazer o coração do homem: seus desejos são tão grandes, que não bastam para encher
todas estas coisas finitas e passageiras. Por isso todos os Santos, todos os corações nobres, todos os
homens acham na religião uma alegria, uma plenitude de contente que não poderão dar jamais todos os
prazeres dos sentidos e todas as alegrias do mundo.

3º A vontade do homem necessita de uma regra segura para dirigir-se para o bem e de motivos capazes de
sustentar seu valor frente às paixões que terá que vencer, aos deveres que terá que cumprir, aos sacrifícios
que terá que fazer. Pois bem, só a religião pode dar à vontade esta firmeza, esta energia soberana, mostrando
a Deus como o remunerador da virtude e castigador do crime. A não ser pelo freio saudável do temor de
Deus, o homem se abandonaria a todas as paixões e se precipitaria em um abismo de misérias.

4º Finalmente, a religião nos proporciona na oração um consolo, na esperança um remédio, no amor de Deus
uma alegria, na resignação um socorro e uma força; e, além disso, faz-nos entrever, depois desta vida, uma
felicidade completa e sem fim. O homem religioso é sempre o mais feliz, ou, pelo menos, o mais consolado.

Por outro lado, o homem sem religião é um grande desgraçado até neste mundo.

A religião é também necessária à sociedade. Pois toda sociedade necessita: 1º nos que governam, justiça e
pronta disposição a servir e favorecer a outros; 2º nos súditos, obediência às leis; 3º em todos os associados,
virtudes sociais. Agora bem, só a religião, pode inspirar: aos superiores, a justiça e a disposição a sacrificar-
se em bem dos súditos; a estes, o respeito ao poder e a obediência; a todos, as virtudes sociais, a justiça, a
caridade, a união, a concórdia e o espírito de sacrifício pelo bem de outros. Portanto, a religião é necessária
à sociedade.

O fundamento, a base de toda sociedade, é o direito de mandar naqueles que governam, e o dever de
obedecer naqueles que são governados. Reconhecia-o o mesmo ímpio Voltaire: "Eu não queria ter que ver
com um príncipe ateu, que achasse seu interesse em me fazer amassar em um morteiro; estaria seguro de
ser amassado..." E acrescenta: "Se o mundo fosse governado por ateus, seria o mesmo que achar-se sob o
império dos espíritos infernais que nos pintam cevando-se em suas vítimas". De fato, hoje em dia, em muitos
países governados por ateus, cumpre-se a observação volteriana. De onde vem este direito de mandar, que
constitui a autoridade social? Não pode vir do homem, até tomado geralmente, posto que todos os homens
são iguais por natureza, ninguém é superior a seus semelhantes. Este direito não pode vir senão de Deus,
que, criando ao homem sociável, criou de fato a sociedade. portanto para justificar este direito, terá que
remontar-se até Deus, autoridade suprema, da qual emana toda autoridade. "O homem sem religião é um
animal selvagem, que não sente sua força a não ser quando remói e devora", escreve Montesquieu. E o
incrédulo Rousseau confessa: "Eu não acerto a compreender como se possa ser virtuoso sem religião;
professei durante muito tempo esta falsa opinião, da que me desenganei".

E além disso, a necessidade da religião é provada por nossa própria experiência. "Em todas as idades da
história, diz Play, notou-se que os povos penetrados das mais firmes crenças em Deus e na vida futura se
elevaram rapidamente sobre os outros, assim pela virtude e o talento como pelo poderio e a riqueza".

Os crimes se multiplicam em uma nação à medida que a religião diminui. Por isso, os que tratam de destruir
a religião em um Povo são os piores inimigos da sociedade, cujos fundamentos escavam. "Seria mais fácil
construir uma cidade nos ares, que constituir uma sociedade sem templos, sem altares, sem Deus", dizia
Plutarco. E Platón: "Aquele que destrói a religião, destrói os fundamentos de toda sociedade humana, porque
sem religião não há sociedade possível". E o mesmo Napoleón I dizia: "Sem religião, os homens se
degolariam por qualquer insignificância". Dito e feito: olhemos, então, as novas sociedades irreligiosas... e
cuidemos nossas costas.

Por isso todos os povos reconheceram a necessidade da religião. Todos os povos tiveram templos e altares
em todos os tempos. Como dizia o nada suspeito Hume: "Jamais se fundou um Estado sem que a religião lhe
servisse de base. Procurem um povo sem religião, e se o encontram, podem estar seguros de que não se
diferencia dos animais".

***

Ao considerar estes temas podemos constatar que muitos elaboraram teorias como se fossem novas torres
de Babel, capazes de chegar ao céu e desafiar ao mesmo Deus. Mas ao pouco tempo as vimos desabar-se
como as muralhas do Jericó, com a diferença de que na maioria dos casos não tem feito falta soar nenhuma
trombeteiro mas sim bastou o irrisório assobio de um apito.

Bibliografia para ampliar e aprofundar


–Vizmanos-Riudor, Teologia fundamental para seculares, BAC, Madrid 1963.

–Leoncio do Grandmaison, Jesucristo, Ed. Litúrgica Espanhola, Barcelona 1941 (reeditado pela Edibesa,
Madrid 2000).

–Hillaire, A religião demonstrada, Difusão, Bs. Ás. 1964.

–Nicolás Marín Negueruela, Lições de apologética, Livraria Casas de campo, Barcelona 1944.

–Nicolás Marín Negueruela, por que sou católico?, Poblet, Buenos Aires 1956.

–Albert Lang, Teologia fundamental, tomo 1 e 2, Rialp, Madrid 1977.

–G. K. Chesterton, O homem eterno, em: Obras completas, Plaza & Janés, Barcelona 1967, t.1 (há traduções
melhores).

V. A verdade roubada sobre nossa dignidade e origem

Verdades e limites do evolucionismo


Se lhe disserem que a doutrina da Igreja se choca contra a indiscutível teoria do evolucionismo... estão-lhe
roubando várias verdades. Nem se trata de uma só teoria, nem em muitos casos tem valor de "teoria", nem –
nas que gozam de seriedade– se choca contra nenhuma verdade católica.

É compreensível, de todos os modos, que nos chapeemos este tema. A todos intriga saber de onde vem o
homem, qual é sua origem e história; pois disto depende também qual é seu fim (sua finalidade ou destino).
Somos fruto do azar, da evolução, obra de um Criador? As distintas respostas equivalem a muito distintos
conceitos do homem e do mundo... e se traduzem logo em muito distintas atitudes ante a vida (da esperança
e até da angústia ante a morte). A Igreja nos ensina, com a Bíblia na mão, uma resposta: o homem foi criado
por Deus, formando seu corpo de um elemento material, e criando de modo direto sua alma; isto segue
repetindo-se para cada homem que vem a este mundo: seu corpo o recebe de seus pais, mas sua alma,
espiritual e imortal, é criada por Deus. Os ensinos evolucionistas (tanto sobre a origem do universo como
sobre a origem do homem), contradizem este ensino? Nem todas as teorias evolucionistas. E as teorias
evolucionistas que impugnam este ensino, são dignas de crédito ou têm seus "buracos negros" que se
desarmam como uma estátua com pés de barro? Vejamos-lo neste capítulo.

1. O estado atual das teorias da evolução

Vejamos, acima de tudo, e com a simplicidade que requer nosso trabalho (e capacidade), qual é o estado
atual das teorias da evolução (tanto sobre a origem do universo, como sobre a vida e o homem em particular).
Seguirei neste ponto um valioso trabalho do Dr. Mariano Artigas.

Ao falar de evolução, imediatamente se pensa em Darwin, mas já antes dele e de sua obra A origem das
espécies (1859) deram-se outros intentos de explicar cientificamente a evolução; especialmente Lamarck, em
1809, propôs explicar a evolução mediante a herança dos caracteres adquiridos, e segundo Artigas, o mesmo
Aristóteles ao explicar a existência da finalidade na natureza propôs uma explicação que é quase idêntica à
darwinista: a aparente finalidade das partes do organismo vivente se explicaria porque, entre os diferentes
produtos da natureza, só se conservariam os melhor adaptados. Darwin deu ao evolucionismo fama e
influência, ocupando-se primeiro da origem das espécies, e posteriormente da origem do homem e, de
passagem, da origem dos primeiros viventes. Com o tempo o pensamento evolucionista se estendeu à origem
do universo e a sua posterior evolução. Vejamos o estado atual de cada um destes pontos.

a) Sobre a origem do universo


Albert Einstein formulou a relatividade geral em 1915 e a aplicou ao estudo do universo em seu conjunto em
1917. Sua teoria propunha um universo em mudança; aborrecido com essa idéia, introduziu em suas fórmulas
uma "constante cosmológica" com o fim de obter um universo estático: mais tarde disse que tinha sido o pior
engano de sua vida. Willem do Sitter em 1916-1917 e Alfred Friedmann em 1922-1924 desenvolveram a
teoria de Einstein no marco de um universo dinâmico, idéia que resultou corroborada quando, em 1929, Edwin
Hubble formulou a lei segundo a qual o universo está em expansão e as galáxias se apartam umas de outras
com uma velocidade que é proporcional a sua distância mútua.

Em 1927, o sacerdote Georges Lemaître propôs sua teoria do "átomo primitivo", que, depois de ser
reformulada pelo Georges Gamow em 1948, é conhecida como teoria do Big Bang ou "grande explosão".
Segundo esta teoria, faz 15 bilhões de anos toda a matéria e energia do universo, concentrada em condições
de enorme densidade e temperatura, experimentou uma expansão que, seguida de uma sucessiva diminuição
de temperatura e de concentrações locais, produziu uma radiação que ainda deveria observar-se na
atualidade. A detecção dessa radiação fóssil em 1964 por Arno Penzias e Robert Wilson produziu a geral
aceitação da teoria. Mas como toda teoria física, contém aspectos problemáticos, que muitos tentaram
solucionar com outras teorias, como a "teoria da inflação" proposta por Alan Guth, segundo a qual o universo,
nos primeiros momentos de sua existência e durante um lapso de tempo muito pequeno, teria experiente uma
enorme expansão. Em 1992, as observações do satélite COBE ("Cosmic Background Explorer") sobre a
radiação de fundo puseram de manifesto a existência de flutuações no universo primitivo, o qual explicaria a
distribuição irregular da matéria, necessária para que se produzissem as condensações locais que deram
lugar às estrelas e planetas.

O modelo da grande explosão tem muita aceitação mas expõe importantes interrogantes, entre outras coisas
não menos importante ignoramos (do exclusivo ponto de vista da ciência) por que houve uma grande
explosão?

b) Sobre a origem da vida


Calcula-se que a idade da Terra é de 4.500 milhões de anos. Os fósseis mais antigos se remontam a 3.800
milhões de anos, supõe-se que os viventes primitivos apareceram, portanto, no intervalo entre essas duas
datas.

Existem várias teorias que pretendem explicar a origem da vida na Terra. Uma das primeiras foi a proposta
por Alexander Oparin em 1922: a vida teria surto na água dos oceanos. Em um famoso experimento realizado
em 1953 em Chicago, Stanley Miller simulou as condições da atmosfera primitiva (amônia, metano, hidrogênio
e vapor de água, ativados por descargas elétricas) e obteve alguns aminoácidos, que são os tijolos com que
se constróem as proteínas; parecia que o problema da origem da vida se podia resolver, ao menos em
princípio. Entretanto, as dificuldades seguem sendo grandes. A vida que existe agora na Terra se apóia na
interação mútua entre ácidos nucléicos (ADN e RNA) e proteínas; mas os ácidos nucléicos são necessários
para fabricar proteínas, e viceversa. Além disso, essas macromoléculas possuem uma enorme complexidade,
o que faz difícil pensar que se originassem de modo espontâneo.

A finais da década de 1960, Carl R. Woese, Francis Crick e Leslie E. Orgel propuseram o que agora se
conhece como teoria do "mundo do RNA", segundo a qual a vida primitiva se apoiava no RNA. supõe-se que
este ácido nucleico possuía duas propriedades das que agora carece: poderia-se autorreplicar sem
necessidade de proteínas, e poderia catalizar a síntese de proteínas. Mas nem sabe como poderia fazer isso
nem –menos ainda– como se formou o RNA mesmo, que possui uma grande complexidade... e além de tudo
se apóia em um "se supõe", o qual para teoria científica é muito fraco...

Outros têm proposto teorias mais radicais, como A. Graham Cairns-Smith, segundo o qual o primeiro sistema
com capacidade de replicar-se era inorgânico e se apoiava sobre cristais de argila. Outra proposta diz que a
origem da vida se verificou em fontes hidrotermais nos recursos marinhos. Entretanto, continua havendo
enormes dificuldades: basta pensar que o ADN de uma bactéria, um dos viventes atuais mais simples, pode
ter uns dois milhões de nucleótidos, de cuja organização depende que o ADN seja funcional e possa dirigir a
produção de mais de um milhar de proteínas diferentes. Em vista disso, alguns cientistas como Juan Orou,
Fred Hoyle e Chandra Wickramansinghe têm proposto que teriam existido compostos precursores da vida em
outras regiões do espaço, e teriam chegado à Terra, por exemplo por meio de choques de meteoritos. Ou
seja, elimina-se o problema da origem da vida na terra passando-o a outro lugar do universo (como surgiu
ali?).

Os enigmas que rodeiam a origem da vida são muito grandes, apesar da existência de diferentes teorias que
se proposto para explicá-lo.

c) Sobre a origem das espécies


Darwin propôs em 1859 que a seleção natural, que atuaria sobre variações hereditárias, é o principal motor
da evolução, mas nada sabia sobre a natureza dessas variações. A partir dos trabalhos do monge beneditino
Gregor Mendel, publicados em 1866 e redescubiertos em 1900, a genética se converteu em parte essencial
da teoria evolutiva. A incorporação da genética ao darwinismo conduziu, em torno de 1940, à formulação do
neo-darwinismo ou "teoria sintética" da evolução, que segue considerando que a seleção natural é o fator
explicativo principal da evolução.

Uma objeção típica ao neodarwinismo é que não explica a "macroevolución", ou seja, a origem de novas
espécies ou tipos de viventes. O darwinismo insiste no gradualismo e afirma que as grandes mudanças são
o resultado da acumulação de muitas mudanças pequenas, mas se formularam propostas alternativas.
Stephen Jay Gould e Niles Eldredge sustentam que a evolução não é gradual, mas sim funciona a saltos
(teoria do "equilíbrio pontuado"): existiriam grandes períodos de estabilidade interrompidos por intervalos
muito breves nos que teriam lugar mudanças evolutivas grandes e bruscas (isto explicaria, segundo eles, por
que não se encontram elos intermédios no registro fóssil). Esta teoria (do equilíbrio pontuado) propõe
explicações que não são darwinistas mas são evolucionistas (a discussão se centra em torno dos mecanismos
da evolução, não em torno de sua existência).

Em 1967 Motoo Kimura propôs outra teoria (o "neutralismo"), que nega que a evolução tenha nada que ver
com a seleção natural; para ele as mudanças evolutivas se deveriam à "deriva genética" de mutações
genéticas. Tampouco ele discute a evolução a não ser seus mecanismos.

Uma das maiores dificuldades do evolucionismo é a explicação dos novos tipos de organização, que requerem
múltiplas mudanças complexas e coordenadas. Para solucioná-lo têm-se proposto teorias que, no momento,
são muito hipotéticas, pois se apóiam em dados que ainda conhecemos de modo muito insuficiente.

Muitas das teorias que mencionamos se apresentam às vezes como opostas ao darwinismo, mas os
darwinistas afirmam que cabem dentro de sua teoria e, em qualquer caso, não são críticas ao evolucionismo,
a não ser intentos de proporcionar explicações mais profundas de evolução.

d) Sobre a origem do homem


Da publicação da teoria de Darwin, a atenção se centrou, sobre tudo, na explicação biológica da origem do
homem. Começou a busca de elos intermédios entre o homem e outros personagens, que conduziu à
classificação habitual dos precursores do homem atual: os australopitecos africanos (entre 4,5 e 2 milhões de
anos), seguidos do homo habilis (desde 2,3 a 1,5 milhões de anos), o homo erectus (fala-se também de homo
ergaster, entre 2 e 1 milhões de anos, na África, e de homo erectus na Ásia), e as diversas variedades de
homo sapiens. trata-se de um terreno no que existem muitas incertezas e freqüentemente se produzem
novidades que obrigam a trocar esquemas.

Nas últimas décadas se aplicaram os novos métodos da biologia molecular aos estudos da evolução,
chegando, às vezes, a conclusões diferentes das que se derivam do estudo dos fósseis, e se produzem
discrepâncias entre os biólogos moleculares e os paleontologistas. Assim, de acordo com a biologia
molecular, o suposto antecessor comum de chimpanzés e humanos se situaria entre faz 5 e 6 milhões de
anos, muito mais recentemente da estimativa anterior que se remontava a 20 milhões de anos. estima-se
provável que a linhagem desse antecessor comum já se separou da dos gorilas.

Neste âmbito, teve especial ressonância a presunta determinação da origem do homem atual mediante o
estudo do ADN mitocondrial, que se transmite por via materna. Segundo alguns biólogos moleculares, todos
os seres humanos atuais descendem de uma mulher que viveu entre 100.000 e 200.000 anos atrás, na África,
e que recebeu o significativo título de Eva mitocondrial". Há que destacar, não obstante, que os próprios
autores desses estudos não pretendiam provar cientificamente o monogenismo, e que suas afirmações não
são aceitas por todos: em particular, alguns paleontologistas mostram reservas, sobre tudo com respeito ao
uso que esses biólogos moleculares fazem do denominado "relógio molecular".

Sobre a presumida origem do homem atual existem duas opiniões diferentes: o modelo de "continuidade
regional" e o modelo da "origem africana recente". O modelo de "continuidade regional" sustenta que a
espécie, muito primitiva, Homo erectus (incluído Homo ergaster) não é mais que uma variante antiga do Homo
sapiens; defende, além disso, que nos últimos dois milhões de anos de história da nossa estirpe se produziu
uma corrente de populações entrelaçadas desta espécie que evoluíram em todas as regiões do Velho Mundo,
cada uma das quais se adaptou às condições locais, embora todas se achavam firmemente vinculadas entre
si por intercâmbio genético. A variabilidade que vemos hoje entre as principais populações geográficas seria,
de acordo com este modelo, a última permutação de tão comprido processo.

Por outro lado, o modelo da "origem africana recente" sustenta que, faz 100.000 anos, um novo tipo de ser
humano, originado na África, teria substituído completamente às espécies anteriores.

Também se realizaram estudos sobre o cromossomo E, que se herda exclusivamente do pai, e os resultados
estão de acordo com o modelo da origem africana recente.

Quanto à época mais recente, parece que, há 30.000 anos, só permaneceu o homem moderno atual, embora
coexistisse, durante milhares de anos, com outros tipos humanos ancestrais (como o homem do Neanderthal).
Não existe unanimidade sobre a origem dos diferentes grupos humanos que existem na atualidade.

Em meio de muitas incertezas, está acostumado a afirmar-se que a humanidade atual procede de uns
antepassados relativamente recentes que apareceram na África ou, possivelmente, no Oriente Médio, e que
se estenderam por toda a Terra.

e) As duas variantes fundamentais do evolucionismo


Mencionamos teorias e propostas diversas do ambiente fio-evolucionista. Devemos ter em conta também
outro elemento chave que se entrecruza com os argumentos mais ou menos cientistas de toda teoria
evolucionista e que transcende o campo estritamente científico: a aceitação ou exclusão de uma causa
sobrenatural no processo da evolução.

Digo que é um elemento que transcende o campo próprio das disciplinas nas quais se propõe o evolucionismo
(física, química, biologia, paleontologia, etc.) posto que entramos com isto em um plano metafísico e inclusive
–embora não exclusivamente– teológico. É importante entender este ponto, já que alguns pensam que tantos
evolucionistas negam a intervenção de uma causa sobrenatural (Deus) no processo da evolução e estão
fazendo uma afirmação que cai dentro do campo de sua ciência; não é assim, senão que estão invadindo o
plano da filosofia, como já deixamos claro ao falar da existência de Deus e das competências de todo cientista
a respeito.

Segundo a postura que os cientistas evolucionistas tomem em relação à possível intervenção sobrenatural
na origem do cosmos, da vida e do homem, nos encontraremos com duas variantes essencialmente diversas:
o evolucionismo radical e o mitigado.

O evolucionismo "radical", "crasso" ou "absoluto", coloca uma potencialidade residente na matéria que faz
que desta, por evolução a partir de suas virtualidades quase infinitas, vão surgindo todos os seres. Na ordem
do universo, consiste em atribuir a um caos inicial, ou a uma primeira partícula, ou ao que seja, a capacidade
de expandir-se, estalar, reagir, etc. (segundo as diversas explicações de cada teoria) dando origem ao
universo atual; aplicado à origem da vida, "consiste em supor que os seres sem exceção se foram originando
a partir de um primeiro organismo vivo elementar, ou inclusive a partir de uma primeira matéria ou partículas
materiais não vivas, que teriam dado lugar a um primeiro organismo vivo, que teria ido reproduzindo e por
diversas mutações diversificando-se em diferentes espécies, etc.". Oparin falava, por exemplo, de um "caldo
primitivo", de onde teria surgido toda a vida como resultado de uma descarga poderosa de energia elétrica.
Isto não é ciência a não ser "uma concepção mitológica e literária da vida"
Este evolucionismo foi sustentado por autores como Lamarck, Spencer, Darwin, Oparin e muitos outros mais,
às vezes, fazendo profissão de um claro e descarado ateísmo, como pode ver-se em declarações explícitas
de muitos de seus defensores. Dizia, por exemplo, Darwin a Thomas Huxley: "minha doutrina seria como o
evangelho de Satanás e você como o apóstolo do evangelho de Satanás"; "Deus –dizia Haeckel– é um
vertebrado gasoso"; e confessava Lemoine: "a evolução é o dogma da anti-Igreja"; e em palavras do Thomas
Huxley: "a doutrina da evolução ocupa uma posição de antagonismo completo e irreconciliável em relação à
Igreja". É claro que referendo-se a este evolucionismo crasso, não cabe dúvida de que é assim; mas também
é claro que este evolucionismo crasso não é uma teoria científica a não ser um dogma pre-científico ou mas
bem uma fé pseudo-científica adornada com elementos científicos. De fato, este tipo de explicação
evolucionista foi respondida por diversas ciências: as matemática (que duvidam de que tenha havido tempo
suficiente para que a seleção natural e as leis que aplicam as teorias evolucionistas tenham dado lugar aos
fenômenos que se observam na natureza), a bioquímica (porque o azar e a simples evolução não guiada por
uma Inteligência não pode explicar a perfeita organização da vida no estado presente, nem a origem e
funcionamento dos organismos vivos a partir de um estado puramente material), a filosofia (que demonstra
que o mais não pode surgir do menos, tratando-se de saltos qualitativos de forma e não puramente acidentais;
e sobre tudo que o espírito não pode provir da matéria e que de um nada, nada sai; daí que a vida intelectual,
moral e espiritual não podem deduzir-se dos processos biológicos). Apesar de todo este evolucionismo radical
foi assimilado como base de sistemas filosóficos que o adaptaram a outros esquemas, como Federico Hegel
(quem aplicou a evolução ao Espírito Absoluto), Marx e Engels (que o aplicaram à sociedade e à história
dirigida por uma evolução dialética), daí a vigência das extravagantes afirmações darwinistas: de sua vigência
depende a estabilidade de outros sistemas que insensatamente se elevaram sobre suas bases.

Em uma situação distinta temos o evolucionismo "relativo" ou "mitigado", que aceita ao mesmo tempo uma
evolução, tanto do universo, como da vida, mas sem excluir a ação divina, a qual, por um lado dirigiria
providencialmente a mesma evolução orgânica, e, por outro, em um momento dado, infunde por criação a
alma espiritual. Pelo fato de que seja mitigado, de todos os modos, não devemos esquecer que os argumentos
científicos em que se apóiam as diversas teorias evolucionistas, não resolvem todos os problemas e entre
elas discrepam notavelmente.

f) Em síntese
Como vemos, em todas estas teorias, que são as que dirige a ciência atual, existem muitos e importantes
interrogantes. A teoria do Big Bang pareceria bem assentada, mas não pode considerar-se como
definitivamente estabelecida e contém muitos problemas não resolvidos. Existem hipóteses muito diferentes
sobre a origem da vida. Em relação à evolução dos viventes, embora esteja acostumado a admitir-se que a
combinação de variações genéticas e seleção natural desempenha um papel importante, buscam-se
explicações que vão além desse esquema. Finalmente, a origem do homem segue envolvido em muitas
dúvidas e discussões (inclusive entre os mesmos evolucionistas).

Apesar disto, o fato da evolução em seus rasgos gerais tem muitos elementos sólidos; mas não se pode dizer
o mesmo das explicações concretas desse fato (ou, melhor, dos muitos feitos incluídos na evolução em seu
conjunto). Argumentos tirados de diversas especialidades parecem avaliar a existência de um vasto processo
evolutivo que produziu a natureza em seu estado atual, embora existam muitos interrogantes e discrepâncias
sobre seus aspectos particulares.

Ao menos isto nos deve fazer refletir muito quando nos fala da teoria da evolução como se estivesse se
referindo a uma teoria concreta e pontual. Muito longe estamos disso: distinto é o valor da explicação evolutiva
do universo, que a do homem ou a da vida; muitas e não uma são as diversas explicações; contraditórias
entre si (e portanto, inimizadas e excludentes) são muitas destas teorias, ao ponto tal que se alguém tiver
razão cai sonoramente a contrária; e qualquer destas teorias (sobre o ponto que seja) não explica todos os
fatos que ela mesma expõe (ficam sempre buracos negros por onde escapa a ponta do nó que fecharia sua
explicação com uma certeza; dito de outro modo: não há teoria que fecha completamente). Ainda assim,
vamos lhe dar um certo valor, ao menos referido ao fato da evolução em geral.

2. Que ensina a Igreja sobre estes temas e o que diz destas teorias?

Como aqui se trata de ver se é verdade que as teorias evolucionistas excluem ou desautorizam o que a fé
católica ensina sobre a origem do mundo, da vida e do homem, convém deixar bem claro o que é o que
propriamente ensina a fé católica.
A principal fonte da doutrina católica é a Sagrada Escritura (o relato da criação do universo e do homem está
no livro do Gênesis, embora não exclusivamente, pois há outras passagens que podem complementá-lo), e
nos documentos do Magistério nos que a Igreja precisou com sua autoridade doutrinal o que deve acreditar-
se com fé sobre estes temas. Estas são as fontes, segundo a fé católica, em que se contém a Revelação
divina.

No relato do Gênesis (capítulos 1-3) há muitos elementos que devem ser corretamente entendidos, pois estão
escritos com um estilo peculiar e único, relatando-se ali feitos verdadeiros mas em uma linguagem adaptada
à mentalidade de seus primeiros destinatários (portanto em um sentido histórico que não responde aos
cânones da história a que estamos acostumados na atualidade). Não se trata certamente de fábulas tiradas
de mitologias e cosmo-gonias dos povos antigos e adaptadas à doutrina monoteísta (fé em um só Deus) pelo
autor sagrado, expurgando antes de tudo o engano do politeísmo (crença em vários deuses); não se trata
tampouco de alegorias e símbolos destituídos de todo fundamento objetivo e real, proposto sob forma
histórica, para inculcar verdades religiosas e filosóficas; tampouco se trata de lendas em parte históricas e
em parte fictícias, compostas livremente para instrução e edificação dos ouvintes ou leitores.

Mas, por outra parte, tampouco se trata de história no sentido que dão os historiadores grego-latinos nem os
modernos. Há pois, elementos rigorosamente históricos e elementos que relatam de modo metafórico fatos
históricos. Quais são os elementos que devem entender-se com sentido literal histórico? Assinalemos
principalmente:

1º a criação de todas as coisas por parte de Deus;

2º a peculiar criação do homem;

3º a formação da primeira mulher a partir do primeiro homem;

4º a unidade da linhagem humana;

5º a felicidade original dos primeiros pais no estado de justiça, integridade e imortalidade;

6º o mandamento imposto por Deus para provar a obediência;

7º a transgressão, por persuasão do diabo;

8º a perda do estado primitivo de inocência;

9º a promessa do Reparador futuro.

Portanto, é lícito para a doutrina católica discutir e seguir, cada um, a sentença que mais fundada pareça,
naqueles pontos nos que não há definição por parte do magistério e que já foram discutidos por autores sérios
(começando pelos mesmos pais da Igreja e os doutores de todos os tempos), sempre e quando a
interpretação não contradiga ou distorça alguma outra verdade de fé (isto é o que quer dizer-nos os
documentos da Igreja quando se afirma que deve ficar salvo o julgamento da Igreja e a analogia da fé); o
documento da Comissão bíblica de 1909 indicava expressamente a liberdade de discutir e oferecer diversas
interpretações respeito de: muitas das palavras e frases empregadas neste relato (especialmente daquelas
que têm claramente um sentido metafórico ou antropomórfico); podem-se interpretar de modo alegórico e
profético algumas passagens (como fizeram alguns Santos Padres); não se devem entender afirmações como
se pretendessem ser declarações científicas; e em particular se deixa liberdade para discutir sobre o
significado do término "dia" (Yôm, os dias da criação).

A Igreja, pois, apoiando-se principalmente nos relatos bíblicos ensina que Deus criou todas as coisas,
livremente, de um nada; que tudo que criou é bom (Deus não fez o mal, senão que ele foi introduzido por sua
criatura: os anjos que se rebelaram no céu e logo os homens que, por instigação dos anjos rebeldes,
desobedeceram a Deus); que o homem foi criado de um modo peculiar por Deus, distinto das demais
creaturas, e que a primeira mulher procede do primeiro homem (unicidade do gênero humano). Alguns
discutem este último ponto, dizendo que a unicidade do primeiro casal, Adão e Eva, (doutrina chamada
monogenismo) não é um ensino de fé; só seria de fé que Deus criou o homem, mas poderia ter criado vários
casais humanos (doutrina denominada poligenismo); outros autores dizem que se não ser de fé, ao menos é
uma verdade próxima à fé, o qual quer dizer que sem esta afirmação não se poderiam compreender outras
verdades de fé, e, portanto, pode considerar-se implicada em outras verdades. Em particular as verdades
católicas que podem ficar mais comprometidas se não se aceita o monogenismo são, acima de tudo, o dogma
do pecado original (um pecado que, cometido pelos primeiros pais, transmite-se a todo homem que vem a
este mundo) e, como conseqüência disto, o dogma da redenção universal de Cristo (quer dizer, que Cristo
redimiu a todos os homens do pecado original) ensinamente que é certamente bíblica, como pode ver-se na
passagem da Carta de São Paulo aos Romanos (5,12-21), e outros lugares paralelos. O Papa Pio XII, na
encíclica Humani generis, limitou-se a dizer que "não se vê claro como tal sentença possa reunir-se com o
que as fontes da verdade revelada e os documentos do Magistério da Igreja ensinam sobre o pecado original
que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, difundindo-se a todos os homens
pela geração, é próprio de cada um deles".

3. Há verdadeiramente oposição?

a) A oposição com os sistemas extremos

É evidente a oposição com os sistemas extremos, como são todos os evolucionismos que, além dos dados
que contribuem para formular suas teorias, acrescentam gratuitamente o pressuposto não cientista a não ser
infundado científica e filosoficamente da não existência (e portanto, não intervenção) de um Poder
sobrenatural. Não faz falta acrescentar muito mais. Esta posição, entretanto, cai por si só, se tivermos em
conta o já dito ao falar da existência de Deus e da existência da alma. Se lhe roubarem estas duas verdades
(Deus e a alma espiritual), como conseqüência lhe roubarão também a verdade de sua dignidade, te
reduzindo a um pouco de matéria evoluída "milagrosamente" (para que não tenha dúvida: os evolucionistas
ateus acreditam nos milagres; ao menos acreditam neste singular e assombroso milagre que de um nada sai
algo e do algo material sai a vida, e da vida biológica sai o espírito; falta prová-lo, mas sem dúvida, ao primeiro
que o demonstre o canonizarão imediatamente).

b) A possível armonização com os sistemas moderados

Os sistemas evolucionistas moderados necessitam também ser demonstrados, o qual, estamos ainda longe
de alcançá-lo. De todos os modos, têm a seu favor um conjunto de dados mais ou menos certos, mas
unificados em teorias difíceis de demonstrar e com a oposição de outras teorias dentro do mesmo âmbito
científico. Ao menos têm o mérito de não pretender sair dos limites que lhe prescreve o objeto e o método de
sua especialidade; por isso não saltam de dados geológicos, biológicos, ou arqueológicos a conclusões
metafísicas. Neste sentido, são hipótese de trabalho, e merecem ser consideradas pela filosofia e a teologia,
sempre e quando tomar respeitando seu estado científico (portanto, que se considerem como hipótese e não
se contemplem como algo já comprovado).

Tenha-se em conta que, pela natureza deste livro, não é meu propósito discutir de modo direto nenhuma das
teorias ou hipótese, a não ser tomar naquelas conta com as que do ponto de vista científico pode dialogar-se
ou discutir-se e ver se realmente põem em julgamento a fé católica (como pretendem muitos pseudo cientistas
e muitos de seus porta-vozes universitários e secundários). De todos os modos, embora só seja de passagem,
quero indicar aqui que, segundo alguns autores, estamos em um momento histórico de possível transição
quanto ao valor de algumas teorias científicas, particularmente aquelas referidas à origem da vida e do
homem. É o que alguns, como Carlos Javier Alonso, chamam "crises do paradigma darwinista"; embora não
significa isto que quem põe em crise este "modelo de explicação" saiam do esquema de pensamento
evolucionista (pois se localizam em outras escolas evolucionistas como os diversos neo-darwinismo),
entretanto, demonstram a debilidade das teorias. "Hoje por hoje, não existe propriamente uma teoria científica
aceitável sobre a origem da vida, mas sim uma série de conjeturas altamente especulativas. Todos os
conhecimentos biogenéticos se acham lastrados de hipótese sem suficiente fundamento, e atualmente nada
há sobre a origem da vida que não sejam asserções in-justificadas ou hipóteses aventuradas sobre as que
nem sequer podemos avaliar seu grau de semelhança", sustenta Alonso. E em relação à questão da evolução
humana (anátropo-gênesis) "existem muitos problemas sem resolver e faltam numerosas evidências para
revelar para poder afirmar –como têm feito alguns destacados neo-darwinistas– que a busca das origens
humanas concluiu com êxito. Os especialistas não só não têm um número suficiente de fósseis bem
diferenciados com que trabalhar, mas também tampouco ficam de acordo em como classificar os poucos tipos
de fósseis que se dispõem. A origem dos homínidos é ainda um enigma científico cuja elucidação precisa
constituir uma aventura fascinante. A busca deve continuar, embora à vista dos precedentes elos perdidos
nunca verificados e a tentação conseguinte de suprir a falta de evidências com generalizações, a melhor
política em uma área tão sensível como a das origens humanas deveria ser a da cautela e a moderação". Se
tudo isto é tido em conta, compreender-se-á que não estamos aceitando nenhuma hipótese –ou teoria, se
quiser– evolucionista a não ser analisando, sem perder de vista seu caráter hipotético, a possível dificuldade
para a fé.

Se tomarmos em consideração as teorias sobre a origem do universo e sua evolução, tanto a do Big Bang ou
qualquer outra, terá que dizer que são teorias sobre a origem do desenvolvimento do universo, não sobre o
por que o universo de fato tem este começo ou qualquer outro. Não exclui de maneira nenhuma a casualidade
por parte de Deus,´por mais que tenha começado por uma "grande explosão" de um "núcleo primitivo", como
supôs Georges Lemaître, e admitem hoje em dia a maioria dos cientistas ou qualquer outra explicação. O
universo é (existe), em lugar de não ser (não-existir); esse é o tema; a ciência pode tentar explicações sobre
como foi esse princípio, mas não pode explicar por que foi em lugar de não ter sido.

Não está demais recordar, para ver até que ponto não há oposição entre as teorias da origem do universo
(ao menos, as que o concebem como um universo em expansão) que Georges Lemaître, um dos fundadores
da teoria da grande explosão, foi um sacerdote belga (1894-1966). O término "big Bang" foi cunhado pelo
astrônomo britânico Fred Hoyle (partidário, por razões filosóficas, de um universo eterno), com sentido irônico
e zombador para ridicularizar as idéias desenvolvidas pelo Lemaître, pensando que este pretendia com sua
teoria justificar cientificamente a criação bíblica do mundo. Entretanto, as convicções científicas do Lemaître,
fundavam-se não em sua fé (sempre soube evitar toda confusão entre ciência e crença), a não ser em
argumentos matemáticos e físicos de sólida base.

Quanto à evolução de nosso planeta, os cientistas distinguem nele dois momentos claramente diferenciados;
o primeiro é a era abiótica (ao BIOS: sem vida); o segundo a era biótica (a partir da origem da vida). Esta
segunda é dividida geralmente em vários lapsos de tempo: era-a primária (períodos cámbrico, silúrico,
devônico, carbonífero, pérmico), era-a secundária (triásico, jurássico, cretáceo), era-a terciária (eocénico,
oligocénico, miocénico, pliocénico) e a era quaternária (períodos diluvial e aluvial). Nesta era se coloca a
aparição do homem.

Houve, ao longo da história do cristianismo, diversos intentos de conciliar estes períodos (segundo a ciência
ia determinando) com os relatos bíblicos; apareceram assim sistemas conciliatórios que se dividem em três
grupos: os sistemas históricos ou concordistas (querem concordar a narração bíblica com a ordem objetiva
das coisas tal como pretende estabelecer a ciência), os sistemas alegóricos (representados, por exemplo, por
Santo Agostinho; pretendem que o relato bíblico não é um relato histórico mas sim é o modo em que o autor
inspirado teve conhecimento dos fatos ou são uma descrição alegórica destes fatos), e os sistemas histórico-
alegóricos (que sustentam que o relato contém a verdade objetiva, mas reconhecem certo artifício literário na
narração). É claro que todos os sistemas concordistas (muito em rema nos séculos XIX e princípios do XX)
caem em exposições artificiosas e não têm em conta que o relato bíblico não é uma exposição científica; o
problema dos sistemas alegoristas –embora tenham sido expostos por alguns Padres da Igreja– é que não
salvam com suficiente segurança o caráter histórico dos primeiros capítulos da Gênesis (embora não o
neguem); o mais adequado será, pois, sustentar que a correta interpretação deverá tomar o relato em parte
histórico e em parte alegórico. Acredito que a pesar do tempo transcorrido se pode tomar como linha
fundamental de interpretação quanto indicava o P. Prado em sua exposição ao Antigo Testamento,
distinguindo entre os elementos claramente históricos e doutrinais e os elementos pertencentes à forma
literária:

1º à história e doutrina pertencem, entre outras coisas:

A. a criação de todas as coisas, feita por Deus no princípio do tempo;

B. a bondade de todas as obras de Deus assim que respondem à idéia e vontade divinas;

C. certa graduação e sucessão na produção das coisas, começando na criação dos primeiros elementos e
terminando com a formação do homem;

d. a criação totalmente peculiar do homem, à imagem de Deus (o que implica necessariamente a criação de
um elemento espiritual);

2º À forma literária podem reduzir-se:


A. as imagens antropomórficas que representam a Deus falando ou trabalhando;

B. a descrição do céu, mar, chuva, plantas e animais, onde não se usam descrições científicas, e sim as
aparências, as idéias da época e o modo de falar daquele tempo;

C. a ordem da narração (ao modo de uma semana); etc.

É claro que se distinguirmos desta maneira, não há problema para harmonizar o relato bíblico com os dados
que dirige a ciência (sempre e quando esta se mantenha em seus limites). portanto, quando nos perguntam
se as descrições que faz a ciência da origem e evolução de nosso planeta e das etapas do desenvolvimento
da vida nele (fósseis pré-históricos; deslocamento de moderados, cataclismos remotos, etc.) podem tomar
como objeções à veracidade do relato bíblico ou da fé judeo-cristã, terá que responder que não existe tal
dificuldade. Pode resultar interessante sobre este tema a leitura do trabalho de Mariano Magro (Doutor em
Biologia e em Teologia), Concordância da Gênesis com a ciência moderna. Adão Eva e o homem pré-
histórico.

Outro tanto pode dizer-se em relação ao origem do homem. Já indicamos que os dados bíblicos sobre a
origem do homem que não podem ficar em duvida do ponto de vista da fé se podem reduzir aos seguintes: a
criação singular do homem, a diferença essencial com todos outros seres viventes (portanto, a criação de sua
alma espiritual e imortal), eu me inclino a pensar que também a unidade do gênero humano pertence a estes
dados de fé (mono-genismo; pois, embora há teólogos que dizem que o poli-genismo não oferece dificuldades
para entender o dogma do pecado original e da redenção universal feita por Cristo, sinceramente não chego
a ver essa "ausência de dificuldades") e os dados referentes ao pecado original.

Em relação a estes dados não há verdadeiras objeções por parte de uma possível evolução de alguma
espécie animal até chegar ao homem, nem menos ainda por parte da existência das diversas raças em que
se divide hoje a humanidade.

Comecemos por este último tema. As diferentes raças humanas foram o pretexto para que alguns escritores
negassem em algum momento a unidade da espécie humana (especialmente para defender o poligenismo).
As principais raças humanas são três: a branca ou caucásica, a amarela ou mongólica e a negra ou etiópica;
têm certamente características diversas quanto à pigmentação e rasgos físicos (principalmente faciais).
Nestas realidade três são só raças principais, mas para ser bem preciso terei que destacar também as
numerosas sub-raças em que estas se subdividem. Em realidade, estas diferenças não são diferenças
suficientes para defender o poligenismo, porque: (1º) a coloração da pele é um fenômeno de pouca
importância fisiológica, produzido facilmente pela influência do meio e do regime alimentício, e de nenhum
valor específico; (2º) o cabelo –que segundo Haeckel diferencia as espécies humanas– carecem totalmente
de valor, sendo tão mutáveis até o ponto de que no mesmo indivíduo podem trocar de forma e cor facilmente,
e apresenta variações muito menos profundas que a pelagem dos animais classificados na mesma espécie;
(3º) as diferenças anatômicas não são tão exclusivas de uma raça que não se encontrem em indivíduos de
outras raças; igualmente vemos muito mais pronunciados os caracteres anatômicos em indivíduos animais
da mesma raça; (4º) as diferenças intelectuais não são exclusivas das raças, mas sim depende
fundamentalmente dos indivíduos (há coeficientes intelectualmente altos em todas as raças e baixos também
em todas); (5º) menos ainda as diferenças lingüísticas pois inclusive encontramos línguas irredutíveis entre
si entre indivíduos de uma mesma raça (como ocorre com algumas tribos negras do Sahara Oriental).

Pelo contrário, entre as diversas raças o que prevalece são as coincidências fundamentais: a mesma
formação genética, ao ponto de que se encontra o mesmo ADN mitocondrial –que se transmite
exclusivamente por via materna– em todas as mulheres de todas as raças humanas, o que levou a alguns
cientistas a postular a existência de uma mesma mãe original (a Eva mitocondrial), tema, de todos os modos,
discutido no momento; além disto são remarcáveis as semelhanças anatômicas, fisiológicas e psicológicas.
Anatômicas assim que todas as raças apresentam os mesmos órgãos, a mesma estrutura anatômica e a
mesma correlação de órgãos. Fisiológicas porque idênticos em todas as raças são os fenômenos da vida
orgânica e sensitiva, enquanto diferem notavelmente nas raças animais; assim se consideram como
pertencentes a uma mesma espécie e descendentes de um tronco comum quão animais ao unir-se
engendram produtos dotados de uma fecundidade contínua; ao contrário, consideram-se pertencentes a
diferentes espécies aqueles animais cuja tendência é estéril ou cujos produtos são infecundos; agora bem,
desde tempo imemorial as raças humanas se entrecruzaram engendrando gerações e gerações de indivíduos
sadiamente fecundos. Psicológicas porque embora há diversidades psicológicas acidentais entre as raças
(uns mais secos e reservados, outros mais loquazes e abertos; uns mais crédulos e supersticiosos, outros
mais céticos) e entre os indivíduos da mesma raça, entretanto, todos os homens sãos, seja qualquer sua
raça, possuem linguagem articulada, têm noções do bem e do mal, são por natureza religiosos, progredem
em todos os ordens, são industriosos, etc.

Basta com isto para ver que não é esta uma dificuldade para sustentar a unidade do gênero humano a não
ser justamente o contrário. Deixemos à discussão dos mais peritos as teorias sobre como se foram
diferenciando as raças e que fatores influíram neste processo.

Poderia mencionar-se aqui outro tema que em certa maneira se relaciona com o nosso. Poderia ter existido
antes de nossos primeiros pais outra humanidade já desaparecida no tempo da criação de Adão? Alguns o
postularam no passado com a doutrina do pre-adâmico (sustentada pelo Isaac da Peyrère em 1655); esta
teoria entretanto não falava da extinção dos preadamitas mas sim sustentava que deles descenderiam os
pagãos, enquanto que do Adão só os judeus (evidentemente Isaac da Peyrère era judeu); a teoria caiu dois
anos depois com a conversão de seu autor. Os enciclopedistas do século XVIII a repetiram. Talvez alguém a
proponha para explicar alguns dos achados arqueológicos de indivíduos que não parecem enquadrar
completamente na espécie humana (homo sapiens). Digamos que não temos dados para sustentá-la
biblicamente, mas tampouco haveria dificuldades para aceitá-la (salvo o que deve ser provada e não só
apresentada a modo de hipótese) enquanto se sustente ou que estas raças sub-humanas ou pre-humanas
ou pára-humanas ou inclusive humanas mas anteriores ao Adão, desapareceram antes da criação do Adão,
ou subsistiram junto à raça humana sem mesclar-se com ela e pereceram depois. Isto é puramente hipotético,
mas não toca o essencial do dogma: a criação da raça humana por intervenção divina e a unicidade desta
(pelos motivos já ditos).

Quanto a uma possível evolução animal que teria terminado no homem atual terá que dizer que em si não há
estrito me choque com o ensino da fé cristã enquanto se aceite a direção providencial sobre esta evolução e
a criação, em um momento dado, da alma humana espiritual e sua infusão –neste caso– no indivíduo que
começaria a raça estritamente humana.

Sobre isto volto para artigo mais acima chamado do M. Artigas: "Em 1950, na encíclica Humani generis, o
Papa Pio XII declarou que: ‘o Magistério da Igreja não prohíbe que, segundo o estado atual das disciplinas
humanas e da sagrada teologia, investigue-se e discuta pelos peritos em ambos os campos a doutrina do
evolucionismo, assim que procura a origem do corpo humano a partir de uma matéria vivente lhe preexistam
já que a fé católica nos manda manter em pé que as almas são criadas diretamente Por Deus’ (...) Em um
discurso de 1985, dirigido aos participantes em um simpósio sobre fé cristã e evolução, o Papa João Paulo II
recordava textualmente o ensino de Pio XII, afirmando que: ‘em apoio a estas considerações de meu
predecessor, não existem obstáculos entre a teoria da evolução e a fé na criação, se as entende corretamente’
(...) Fica claro que ‘entender corretamente’ significa admitir que as dimensões espirituais da pessoa humana
exigem uma intervenção especial por parte de Deus, uma criação imediata da alma espiritual; mas se trata
de umas dimensões e de uma ação que, por princípio, caem fora do objeto direto da ciência natural e não a
contradizem em modo algum. Tendo em conta as precisões anteriormente remarcadas e remetendo de novo
ao ensino de Pio XII, João Paulo II ensinava em sua catequese, em 1986: ‘portanto, pode-se dizer que, do
ponto de vista da doutrina da fé, não se vêem dificuldades para explicar a origem do homem, assim de corpo,
mediante a hipótese do evolucionismo. É preciso, entretanto, acrescentar que a hipótese propõe somente
uma probabilidade, não uma certeza científica. Por outro lado, a doutrina da fé afirma de modo invariável que
a alma espiritual do homem é criada diretamente por Deus. Ou seja, é possível, segundo a hipótese
mencionada, que o corpo humano, seguindo a ordem impressa pelo Criador nas energias da vida, tenha sido
preparado gradualmente nas formas de seres viventes antecedentes. Mas a alma humana, da qual depende
em definitiva a humanidade do homem, sendo espiritual, não pode ter emerso da matéria’. Em 1996, João
Paulo II dirigiu uma mensagem à Academia Pontifícia de Ciências, reunida em assembléia plenária. De novo
aludia ao ensino de Pio XII sobre o evolucionismo, dizendo que: ‘Tendo em conta o estado das investigações
científicas dessa época e também as exigências próprias da teologia, a encíclica Humani generis considerava
a doutrina do evolucionismo como uma hipótese séria, digna de uma investigação e de uma reflexão
profundas, ao igual à hipótese oposta’. E pouco depois acrescentava umas reflexões que têm grande
interesse, porque ecoam do progresso da ciência no âmbito da evolução nos tempos recentes: ‘Hoje, quase
meio século depois da publicação da encíclica, novos conhecimentos levam a pensar que a teoria da evolução
é mais que uma hipótese. Em efeito, é notável que esta teoria se impôs paulatinamente ao espírito dos
investigadores, por causa de uma série de descobrimentos feitos em diversas disciplinas do saber. A
convergência, não procurada ou provocada, dos resultados de trabalhos realizados independentemente uns
de outros, constitui de seu um argumento significativo em favor desta teoria’. Estas palavras não deveriam
interpretar-se como uma aceitação acrítica de qualquer teoria da evolução. Em efeito, imediatamente depois
dessas palavras, João Paulo II acrescenta reflexões importantes sobre o alcance das teorias evolucionistas,
de suas diferentes variantes, e das filosofias que podem estar implícitas nelas. Especialmente interessantes
são as amplas reflexões que o Papa dedica às idéias evolucionistas aplicadas ao ser humano. Inclusive
poderia dizer-se que esse é o núcleo deste documento do Papa (...)Neste contexto, recorda literalmente as
palavras de Pio XII na encíclica Humani generis, segundo as quais a alma espiritual humana é criada
imediatamente por Deus. E extrai a seguinte conseqüência: ‘Em conseqüência, as teorias da evolução que,
em função das filosofias nas que se inspiram, consideram que o espírito surge das forças da matéria viva ou
que se trata de um simples epifenômeno desta matéria, são incompatíveis com a verdade sobre o homem.
Por outra parte, essas teorias são incapazes de fundar a dignidade da pessoa’ (...) João Paulo II afirma que
nos encontramos, no ser humano, ante ‘uma diferença de ordem ontológica, ante um salto ontológico’, e se
pergunta se essa descontinuidade ontológica não contradiz a continuidade física suposta pela evolução. Sua
resposta é que a ciência e a metafísica utilizam duas perspectivas diferentes, e que a experiência do nível
metafísico põe de manifesto a existência de dimensões que se situam em um nível ontologicamente superior,
tais como a autoconsciência, a consciência moral, a liberdade, a experiência estética e a experiência religiosa.
Acrescenta, por fim, que a todo isso a teologia acrescenta o sentido último da vida humana segundo os intuitos
do Criador".

4. A modo de visão conclusiva

"...A atividade científica supõe que existe uma ordem natural –diz Artigas, de quem transcrevo todo este
parágrafo–. A ciência experimental procura conhecer essa ordem, e qualquer de seus lucros é uma
manifestação particular da ordem natural. Pode dizer-se de modo gráfico que há mais ciência, mais ordem:
quanto mais progride a ciência, melhor conhecemos a ordem que existe na natureza, embora obviamente o
conhecemos a nosso modo, através de representações que não sempre são simples fotografa da realidade
(...) Quando refletimos sobre esta cosmovisão atual, que se encontra penetrada de sutileza e de racionalidade,
resulta inverossímil reduzir a natureza ao resultado da atividade de forças cegas e casuais. É muito mais
lógico admitir que a racionalidade da natureza reflete a ação de um Deus pessoal que a criou, imprimindo
nela umas tendências que explicam a prodigiosa capacidade de formar sucessivas organizações,
enormemente complexas e sofisticadas, em diferentes níveis, até chegar à complexidade necessária para
que possa existir o ser humano.

Não resisto a comentar aqui uma espécie de definição da natureza proposta por Tomás de Aquino, e que me
parece mais completa e profunda que as definições usuais. Ao final de um de seus comentários à Física de
Aristóteles, Tomás de Aquino vai muito mais à frente que seu professor e escreve: ‘A natureza não é outra
coisa a não ser o plano de uma certa arte, concretamente uma arte divina, inscrito nas coisas, pelo qual essas
coisas se movem para um fim determinado: como se quem constrói um navio pudesse dar às peças de
madeira que pudessem mover-se por si mesmos para produzir a forma do navio’.

A comparação é muito mais atual agora que no século XIII: então não passava de ser uma simples
comparação, enquanto que agora poderia ser a pura realidade. Contemplada sob a perspectiva teísta, a
natureza não perde nada do que lhe é próprio; ao contrário, seu dinamismo e suas potencialidades aparecem
assentadas em um fundamento radical, que não é outro que a ação divina, que explica sua existência e suas
notáveis propriedades. Toda a natureza aparece como o desdobramento da sabedoria e do poder divino que
dirige o curso dos acontecimentos de acordo com seus planos, não só respeitando a natureza, mas também
lhe dando o ser e fazendo possível que possua as características que são próprias. Deus é de uma vez
transcendente a natureza, porque é distinto dela e lhe dá a vida, e imanente a natureza, porque sua ação se
estende a tudo o que a natureza é, ao mais íntimo de seu ser.

Esta perspectiva mostra que as presumidas oposições entre evolução e ação divina carecem de base. O
naturalismo pretende desalojar a Deus do mundo em nome da ciência, mas para isso deve fechar os olhos
às dimensões reais da empresa científica. Pode falar-se de um ‘naturalismo integral’ que, na linha das
reflexões anteriores, contempla à ciência natural junto com suas suposições e suas implicações, cuja análise
conduz às portas da metafísica e da teologia.

Muitos cientistas de primeira linha admitem que a evolução e a ação divina são compatíveis. Por exemplo,
Francisco J. Ayala, um dos principais representantes do neo-darwinismo na atualidade, tem escrito que a
criação a partir de um nada ‘é uma noção que, por sua própria natureza, fica e sempre ficará fora do âmbito
da ciência’ e que ‘outras noções que estão fora do âmbito da ciência são a existência de Deus e dos espíritos,
e qualquer atividade ou processo definido como estritamente imaterial’. Em efeito, para que algo possa ser
estudado pelas ciências, deve incluir dimensões materiais, que possam submeter-se a experimentos
controláveis: e isto não acontece com o espírito, nem com Deus, nem com a ação de Deus. Por outra parte,
Ayala recolhe a opinião dos teólogos segundo os quais ‘a existência e a criação divinas são compatíveis com
a evolução e outros processos naturais. A solução reside em aceitar a idéia de que Deus opera através de
causas intermédias: que uma pessoa seja uma criatura divina não é incompatível com a noção de que tenha
sido concebida no seio da mãe e que se mantenha e cresça por meio de mantimentos... A evolução também
pode ser considerada como um processo natural através do qual Deus traz as espécies viventes à existência
de acordo com seu plano’ (...)

A doutrina católica afirma que tudo depende de Deus, e que ‘a criação tem sua bondade e sua perfeição
próprias, mas não saiu plenamente acabada das mãos do Criador. Foi criada em estado de via (in statu viae)
para uma perfeição última ainda por alcançar, a que Deus a destinou. Chamamos divina providência às
disposições pelas que Deus conduz a obra da criação para esta perfeição. Deus guarda e governa por sua
providência tudo o que criou, alcançando com força de um extremo ao outro do mundo e dispondo tudo com
doçura (Sb 8, 1). Porque tudo está nu e patente a seus olhos (Hb 4. 13), inclusive o que a ação livre das
criaturas produzirá’. Nesta perspectiva, fala-se de Deus como Primeira Causa do ser de tudo o que existe, e
das criaturas como segundas causas cuja existência e atividade sempre supõe a ação divina: ‘É uma verdade
inseparável da fé em Deus Criador: Deus atua nas obras de suas criaturas. É a primeira causa que opera em
e pelas segundas causas (...) Esta verdade, longe de diminuir a dignidade da criatura, a realça’. Não é que
Deus seja simplesmente a primeira entre uma série de causas do mesmo tipo: sua ação é o fundamento da
atividade das criaturas, que não poderiam existir nem atuar sem o permanente influxo dessa ação divina.

A existência de Deus e sua ação na natureza seriam, segundo o naturalismo, desnecessárias. A natureza,
incluído o homem, seria o resultado de forças cegas. O darwinismo está acostumado a ser utilizado neste
contexto para afirmar que Darwin fez possível ser ateu de modo intelectualmente legítimo, porque o
darwinismo mostraria que não é necessário admitir a ação divina para explicar a ordem que existe no mundo.
diz-se também que o darwinismo permitiria mostrar que se deve desprezá a hierarquia de idéias que coloca
a Deus na cúpula e interpreta tudo a partir de Deus: a explicação darwinista proporcionaria uma espécie de
algarismo geral que explicaria, de modo vantajoso, o que anteriormente se pretendia explicar recorrendo à
ação divina.

Estas doutrinas naturalistas revistam incorrer em um engano filosófico básico: concretamente, revistam dar é
obvio que a ação divina e a ação das causas naturais se encontram no mesmo nível. Se admitir isto, todas
as ações naturais serão interpretadas como se excluíram a ação divina, e parecerá que o progresso científico,
que proporciona um conhecimento cada vez mais amplo da atividade natural, põe cada vez mais entre as
cordas à metafísica e à teologia. Vista nesta chave, a evolução parece, efetivamente, fazer desnecessária a
ação divina. Entretanto, estes raciocínios naturalistas esquecem que a perspectiva científica, sendo não só
legítima mas também importante, é só uma perspectiva, que não só não se deveria opor às perspectivas
metafísica e teológica, mas sim as exige, ao menos se se deseja obter uma idéia completa dos problemas.
Tal como apontamos anteriormente, a reflexão filosófica sobre os supostos e implicações do progresso
científico resultam plenamente coerentes com a perspectiva teísta. Por ouro lado, a perspectiva naturalista
resulta forçosamente incompleta, já que se contenta com as explicações da ciência experimental, como se a
razão e a experiência humanas não pudessem ir mais à frente, e renuncia a exercer o raciocínio metafísico,
que é uma das características específicas do ser humano e que inclusive resulta decisivo para o progresso
científico.

O Papa João Paulo II, em um discurso à Academia Pontifícia de Ciências, expressava-o do modo seguinte:
‘A Bíblia nos fala da origem do universo e de sua constituição, não para nos proporcionar um tratado científico,
a não ser para precisar as relações do homem com Deus e com o universo. A Sagrada Escritura quer declarar
simplesmente que o mundo foi criado por Deus, e para ensinar esta verdade se expressa com os términos da
cosmologia usual na época do redator. O livro sagrado quer além de comunicar aos homens que o mundo
não foi criado como sede dos deuses, tal como o ensinavam outras cosmogonias e cosmologias, mas sim foi
criado ao serviço do homem e para a glória de Deus. Qualquer outro ensino sobre a origem e a constituição
do universo é alheia às intenções da Bíblia, que não pretende ensinar como foi feito o céu a não ser como se
vai ao céu. Qualquer hipótese científica sobre a origem do mundo, como a de um átomo primitivo de onde se
derivaria o conjunto do universo físico, deixa aberto o problema que concerne ao começo do universo. A
ciência não pode resolver por si mesma semelhante questão: é preciso aquele saber humano que se eleva
por cima da física e da astrofísica e que se chama metafísica; é preciso, sobre tudo, o saber que vem da
revelação de Deus’.

Deus não compete com a natureza. As colocações que contrapõem a Deus e à natureza se apóiam em um
equívoco metafísico: não se adverte que a existência e a atividade das segundas causas, em vez de fazer
desnecessária a existência e a atividade da Primeira Causa, resultam ininteligíveis e impossíveis sem esse
fundamento radical. Certamente, pensar em términos de Primeira Causa e de segundas causas exige situar-
se em uma perspectiva metafísica que dificilmente adotarão quem pensa que a ciência experimental esgota
o tipo de perguntas e respostas acessíveis ao ser humano. Mas, por vulgar que isto pareça, deveria recordar-
se que qualquer reflexão sobre a ciência, também quando se faz para negar a legitimidade de um
conhecimento que a ultrapasse, supõe aceitar uma certa dose de pensamento coloque-científico (...). Com
muita freqüência, ao tratar sobre o evolucionismo se consideram deus e às criaturas como causas que
competem no mesmo nível, ignorando a distinção entre a Primeira Causa, que é causa de todo o ser de tudo
o que existe, e as segundas causas criadas, que atuam sobre algo que preexiste e o modificam, necessitando
do constante concurso da Primeira Causa para existir e atuar em todo momento. Em tal caso, quando se
ignora esta distinção, expõe-se a alternativa: ou Deus ou as causas naturais. Então se tem uma idéia
empobrecida de Deus, que fica convertido em um deus que se introduz para explicar problemas particulares,
especialmente a ordem ou ajuste entre diversas partes da natureza (...).

Não se deveria formular o problema como uma espécie de ‘competência’ entre Deus e a evolução para
explicar a finalidade natural (...) A cosmovisão científica atual é muito coerente com a afirmação da ação
divina que serve de fundamento a tudo o que existe. Deus é diferente da natureza e a transcende
completamente, mas, de uma vez, como Primeira Causa, é imanente à natureza, está presente em qualquer
lugar que existe e atua na criatura, fazendo possível sua existência e sua atuação. Além disso, para a
realização de seus planos, Deus conta com as segundas causas, de tal modo que a evolução resulta muito
coerente com essa ação consertada de Deus com as criaturas".

***

Portanto, deixemos aos cientistas com suas discussões sobre a origem e desenvolvimento do cosmos, da
vida e do homem (lhes pedindo somente que se comportem profissionalmente como verdadeiros homens de
ciência, e que demonstrem o que afirmam e saibam duvidar do que é duvidoso), e se vier ao caso (e tem
vocação), seja também homem de ciência, passando pela peneira tudo o quanto lhe venderem como já aceito.
Quando uma pessoa com voz sedutora e atrativa quer te vender um cavalo dizendo que é jovem, olhe primeiro
os dentes do eqüino e encontrará que detrás de muitos sinos feiticeiros, esconde-se o selo de um enganador.

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–E. Wasmann, Catholics and Evolution, em: Catholic Encyclopedia, Volume V, Robert Appleton Company,
1909.

–É. Gilson, D'Aristote Á Darwin et retour, Essai sul quelques constantes da biophilosophie, Paris 1971.

–Mariano Artigas, Evolução, fé e teologia. Desenvolvimentos recentes em evolução e sua repercussão para
a fé e a teologia, Rev. Scripta Theologica, 32 (2000), pp. 249-273. pode-se ver na página do Grupo de
Investigação sobre Ciência, Razão e Fé (CRYF): .

––––––––––––––, As fronteiras do evolucionismo, MC, Madrid 1986.

–J. Morais Marín, Evolução. Filosofia e visão de conjunto, Grande Enciclopédia Rialp, 1991.

–E. Díaz Araujo, Evolução e evolucionismo, Universidade Autônoma de Guadalajara, Guadalajara 2000.

–Nicolás Marín Negueruela, Com a razão e a fé ou Problemas apologéticos, Barcelona 1941.

–Dominique Lambert, O universo do Georges Lemaître, Rev. Investigação e Ciência, Abril 2002; publicado
também em .

–João Paulo II, Discurso a estudiosos sobre "fé cristã e teoria da evolução", 20 abril 1985.

–––––––––––, Audiência geral, O homem, imagem de Deus, é um ser espiritual e corporal, 16 abril 1986.

–––––––––––, Mensagem à Academia Pontifícia de Ciências, 22 outubro 1996.


–––––––––––, Discurso à Academia Pontifícia de Ciências, Que a sabedoria da humanidade acompanhe
sempre à investigação científica, 3 outubro 1981.

–Magro, Mariano, Adão, Eva e O Homem Pré-histórico, Folhetos Mc, 604, Palavra.

–Carlos Javier Alonso, O evolucionismo e outros mitos. A crise do paradigma darwinista, EUNSA, Coleção
Astrolábio Ciências.

–G. K. Chesterton, O homem eterno, em: Obras completas, Plaza & Janés, Barcelona 1967, t.1 (há traduções
melhores).

VI- A verdade roubada sobre o ser humano

Quando começa a ser humano um ser humano


Se estudar medicina, biologia, embriologia, farmácia, enfermagem ou alguma das ciências afins, não seria
raro que escute as coisas mais extravagantes sobre o momento em que um ser humano começa a ser
humano. Talvez ouça dizer que isto ocorre só duas semanas depois da concepção, ou talvez no momento da
implantação (e sempre que esta tenha lugar) ou inclusive mais tarde. Daqui também tirarão algumas
conseqüências lógicas: antes desse momento "precisado" pela ciência não há um ser humano, e portanto,
não há ferimento a um ser humano se é que se investiga e se danifica "isso" que é o fruto da concepção, nem
há homicídio se o destrói, nem há nenhuma tenebrosa operação se o usa como depósito de células, etc.
Tome cuidado; estão te preparando para que você se prestar ao jogo macabro de destruir a seus semelhantes
tirando previamente o título de seres humanos. Não só lhe estão roubando uma verdade que foi parte de sua
vida (você também foi embrião e está lendo isto porque te trataram do primeiro instante como um ser humano)
mas sim pedem seu apoio para a matança cotidiana que se leva a frente em nosso mundo atual, ou te
convidam para te associar aos modernos açougueiros.

Este capítulo tem uma importância tal, que tratarei de que seja o mais claro possível, embora terá que fazer
o esforço de ler muitos términos técnicos que são necessários para deixar clara esta verdade. Entretanto,
apesar de sua complexidade de linguagem, verá que é uma verdade não tão difícil de assimilar.

1. A natureza biológica do embrião

Em primeiro lugar queria destacar a exposição de dois autores, A. L. Vescovi, L. Spinardi, membros do
"Consórcio Nacional de Células Estaminales" da Itália, quem nos convida a seguir –com os dados da ciência
atual– os diversos momentos do desenvolvimento de um embrião humano para tirar nossas conclusões sobre
o momento em que começa a ser humano". A raiz do debate sobre a fecundação "assistida", utilização de
células estaminales, clonação, etc., estes dois autores assentam as bases biológicas para dar uma resposta
também biológica ao debate sobre o começo da vida.A pergunta chave que deve preceder toda discussão
sobre este tema tem que ver com esta: quando –se é que é possível determiná-lo– começa a haver vida
propriamente humana? Eles respondem: biológica e logicamente pode estabelecer-se com certeza; antes de
ver sua resposta, sigamos sua exposição. Somente nos circunscreveremos ao processo embrional (quer dizer
até os dois meses de idade, a partir do qual o término "embrião" é substituído por "feto"); já com isto nos basta
para nosso intento. Alguns autores usam o término "embrião" para referir-se a "essa realidade" que se
desenvolve no seio de uma mulher "depois da implantação no útero". Para os momentos prévios, e por razões
ideológicas, usam outros términos, como "pre-embrião" ou outros semelhantes. É um abuso da linguagem
que vem com sua má intenção incluída; de todos os modos, não entramos nesta discussão; basta para nosso
objetivo com que, por simplificação da linguagem, nos conceda usar o término "embrião" para o processo que
vai do momento da concepção até cumpridos os dois meses.

Se a alguém parecem áridas algumas das próximas páginas ,os lembramos a importância que tem o tomar
consciência dos passos em que se desembrulha o desenvolvimento embrional (questão estritamente
científica), para ter uma base correta e certa no momento de discutir questões filosóficas (e inclusive
teológicas) posteriores. Não se pode curar ao homem se não se souber o que é o homem, ou com palavras
do Gustave Thibon, o técnico da medicina não pode saber o que tem o doente enquanto não saiba o que é o
doente. Não em vão se atribui a Médico (C. 130 D.C.) a expressão: "o melhor médico é também filósofo".

a) O embrião e sua origem


O desenvolvimento de um ser humano começa com o encontro em que um espermatozóide (célula masculina)
une-se com uma célula ovo, óvulo (célula feminina), depois de um ato sexual realizado em um período fértil
da mulher. Isto se denomina fecundação. A fecundação compreende uma série de acontecimentos sucessivos
que vão do contato do espermatozóide com o óvulo à fusão das membranas celulares (o que alguns chamam
singamia), à união dos pro-núcleos das duas células (cada um dos quais possui 23 cromossomos) para dar
origem a uma nova célula que possui um patrimônio genético completo (chamado diplóide) de 46
cromossomos. Recordemos que as células de nosso corpo se dividem em duas grandes espécies: todas
menos uma (portanto, as células nervosas, musculares, epiteliais, ósseas, etc.) têm 46 cromossomos, quer
dizer, o patrimônio completo com nossa informação genética (por esta razão se chamam diploides); quão
única não compartilha estas características é a célula sexual ou germinal (chamada assim por estar destinada
a ser o germe de um novo ser; espermatozóide no varão, óvulo na mulher) que tem só a metade desse
patrimônio genético (23 cromossomos; um dos quais é denominado Y no varão e X na mulher) porque estão
destinadas a unir-se formando um novo ser com patrimônio genético completo, metade contribuído pelo
engendrador (o pai) e metade pela engendradora (a mãe).

A célula óvulo fecundada pelo espermatozóide é uma nova entidade celular chamada zigoto. Este zigoto
começará a dividir-se primeiro em duas células, logo em quatro, etc. As duas células que se originam da
primeira divisão celular parecem possuir características diferentes, que persistem nas divisões celulares
sucessivas, assim que da origem de uma das células se origina o embrião e da origem da outra os anexos
embrionais (entre os quais está a placenta). Entretanto não se pode falar do destino" celular, porque se uma
das primeiras células é removida, as restantes estão em condições de compensar sua falta.

Depois da fecundação, as primeiras divisões celulares do zigoto ocorrem lentamente em um processo


chamado segmentação, que, partindo de uma célula, leva a formação de dois, quatro, oito e dezesseis células.
As células assim formadas se chamam blastómeros e o organismo em seu conjunto se denomina mórula
(pela semelhança que tem com uma amora). Muitos zigotos não ultrapassam este estado de desenvolvimento
e morrem por aborto espontâneo (portanto, antes de chegar à implantação). Quando a mórula chega ao útero
está constituída por 32 células e começa a inflar-se absorvendo líquidos entre os blastómeros. Os espaços
que contêm os líquidos se reagrupam dando origem a uma cavidade; quando esta cavidade se faz evidente,
todo o organismo vem chamado blástula. As células mais externas da blástula, sobre tudo as que rodeiam a
cavidade, assumem uma forma chata e dão origem às células do trofoblasto . Estas células contribuirão à
formação dos anexos embrionais. As células mais internas à blástula dão origem às células do nó embrional:
estas contribuirão à formação do novo organismo. As células do nó embrional (inner mass cells) podem dar
origem a todos os tipos celulares presentes no indivíduo adulto; por isso são chamadas pluripotentes, embora
não é correto as definir (como alguns o fazem) totipotentes, porque não são capazes de originar as células
que constituem os anexos embrionais (que se originam exclusivamente dos trofoblastos). As células
estaminales (células mãe) embrionais são separadas, precisamente, das células do nó embrional.

No útero, a blástula se aumenta e se adere ao endométrio (chama-se assim à parede interna do útero) por
meio dos trofoblastos. Este fato se denomina implantação do blastocisto, e ocorre seis dias depois da
fecundação. O embrião inicia assim a segunda semana de desenvolvimento. A implantação do blastocisto se
completa em três ou quatro dias e está geralmente terminada antes do dia doze. Durante a implantação, as
células trofoblásticas tomam contato ativamente com a superfície do endométrio e penetram totalmente o
epitélio da mucosa. No ponto de contato com a mucosa uterina, desenvolve-se um sistema circulatório
primitivo, que provê de nutrição ao blastocisto implantado e aos anexos embrionais que estão se formando.
A cavidade do blastocisto tende a dilatar-se e se dá a separação definitiva entre as células do nó embrional e
os trofoblastos. Forma-se assim o primeiro anexo embrional chamado cavidade amniótica. Dos trofoblastos
se origina outro anexo embrional, chamado corion (membrana que envolve ao embrião e que delimita com a
parede uterina) do que se derivam sucessivamente as pelugens coriônicas e, por último, a placenta. O
blastocisto está assim completamente aninhado na mucosa rica de espaços intersticiais irrigados pelo sangue
materno. Quando se desenvolve a circulação sangüínea fetal, o sangue fetal e a materna permanecem
separadas. Administra-se nutrientes, e difundem oxigênio e produtos de descarte na justa direção através da
barreira da placenta.

b) Da implantação até a gastrulación

Durante as fases de implantação no útero, os trofoblastos se diferenciam de forma antecipada às células do


nó embrional para garantir a nutrição do embrião. Entretanto também as células do nó embrional têm uma
série de mudanças. Acima de tudo se dividem para dar origem ao disco embrional diblástico (ou ectodermo
primitivo) e o hipoblasto (ou endodermo primitivo) mais interior. Os anexos embrionais de suporte são externos
ao embrião que começa a desenvolver-se independentemente, ainda permanecendo em estreita continuidade
com eles.

Ao começo da terceira semana de desenvolvimento, as células do epiblasto se espessam e dão origem a


uma estrutura chamada linha primitiva, que se estende da extremidade caudal ao centro do disco embrional,
definindo assim o eixo antero-posterior e a simetria bilateral do embrião. Algumas células do epiblasto
emigram e acabam dando origem a três capas chamadas ectodermo, mesodermo e endodermo. Todo este
processo é chamado gastrulação. Há que destacar que todas as malhas do futuro organismo se derivam do
epiblasto; ao dia de hoje parece que o hipoblasto não contribui à formação de nenhuma estrutura embrional,
mas sim teria uma função transitiva: proteger o epiblasto.

A gastrulación é um ponto de crucial importância no desenvolvimento embrional; durante este processo uma
blástula essencialmente esférica se transforma em uma estrutura cilíndrica com uma cabeça e cauda e três
paredes embrionais distintas. Do ectodermo se originará a pele, o sistema nervoso e as estruturas sensoriais
de olhos, ouvidos e nariz. Do mesodermo terão origem o sistema ósseo, o muscular e o circulatório. Do
endodermo se originarão os epitélios de revestimento, como o aparelho digestivo e do aparelho respiratório.

c) Da formação do sistema nervoso central a organogênesis

Com o término neurulación se indica uma série de processos que conduzem à formação do sistema nervoso
central no embrião. Da extremidade cranial da linha primitiva, desenvolve-se no mesodermo uma larga
estrutura que se estende além da direção cranial. Esta estrutura é chamada notocorda e constitui o eixo
antero-posterior do embrião. Sobre os lados da notocorda se desenvolverá a coluna vertebral. Neste estádio
de desenvolvimento, a notocorda e as malhas adjacentes exercitam uma indução primária sobre o ectodermo
do que se origina a placa neural. Esta se eleva de ambos os lados da notocorda originando as dobras
cefálicas. As dobras cefálicas se unem englobando o tubo neural, começando do centro por volta das duas
extremidades, com um mecanismo semelhante ao do "fechamento relâmpago". Este processo está completo
para o final da terceira semana do desenvolvimento embrional. O mesodermo, que confinando com o tubo
neural, diferencia-se em uma série de estruturas chamadas submeta. O primeiro par de submeta aparece na
parte cranial do tubo neural no dia vinte depois da fecundação. As outras submetas se formam pouco a pouco
em direção caudal até o dia trinta. As células mesenquimales que provêm das submetas dão origem a maior
parte das estruturas do esqueleto e do sistema muscular.

A formação do sistema circulatório fetal começa no embrião três semanas depois da fecundação, enquanto o
sangue fetal não começa a ser produzida antes da quinta semana. O coração aparece como um grande copo
sangüíneo, que se torna sobre si mesmo para originar as aurículas e ventrículos que o constituem em sua
forma final. Entretanto, já em sua primeira estrutura com forma de tubo, as membranas plasmáticas de
algumas de suas células possuem um potencial elétrico e uma capacidade contrátil para fazer que o coração
comece a bater desde a terceira semana formando assim um sistema circulatório primitivo.

As principais estruturas do organismo e as conexões entre os vários órgãos e sistemas se formam entre a
quarta e a oitava semana do desenvolvimento embrional. Acima de tudo o embrião se dá várias voltas,
transformando a estrutura linear e plana do tubo neural e das submetas em uma estrutura com forma de "C".
Esta mudança estrutural dá ao cérebro, ao intestino e a outros órgãos uma posição mais apta para a formação
das conexões anatômicas. Durante a quarta semana as extremidades do tubo neural se fecham, delimitando
assim o que se converterá no sistema nervoso central. Durante a quarta semana aparecem também os
bosquejos cartilaginosos dos membros. Durante a clausura do tubo neural, desenvolvem-se as estruturas
primitivas do cérebro. Os nervos do crânio, como aqueles dos olhos e dos músculos da cara, começam a
desenvolver-se nesta etapa. O cérebro embrional começa a desenvolver-se em torno da quinta semana,
assim como aparecem neste estádio também a vesícula óptica e a retina do olho. O desenvolvimento continua
com a aparição dos diversos órgãos, do aparelho esquelético, dos membros e da cara. Tudo isto ocorre depois
da oitava semana da fecundação, quando o embrião já é chamado feto. Embora os elementos se apóiem no
processo, foram estabelecidos durante o desenvolvimento do embrião, o pleno desenvolvimento do plano
corpóreo e as infinitas conexões entre todos os aparelhos do corpo se desenvolvem durante o estádio fetal
para continuar inclusive depois do nascimento.

2. Algumas considerações
Tendo em conta o que acabamos de expôr, seguindo ao Vescovi e Spinardi (que são semelhantes às que
podem encontrar-se no capítulo de embriologia humana de qualquer manual de medicina ou biologia),
podemos tirar algumas conclusões de enorme importância.

a) A natureza do embrião

A primeira questão a expõem muito bem os mesmos autores que vamos citando: "O problema principal da
discussão sobre a natureza do embrião se centra sobre um ponto fundamental: onde é lícito, de um ponto de
vista estritamente biológico, delinear o limite entre a vida e a ‘não vida’?"; ou seja, podemos determinar um
momento neste processo no que possamos dizer que antes não há vida humana e depois sim? "A resposta
–seguem dizendo– é, em realidade, dramaticamente simples. E é esta: o início da vida coincide com o ato da
formação de uma entidade biológica que contém e está dotada do programa inteiro de crescimento e da
informação necessária para desembrulhar e atravessar todos os estádios de desenvolvimento que
caracterizam a um ser humano e que são parte integrante de sua história natural –zigoto, mórula, blastocisto,
embrião, feto, recém-nascido, menino, adolescente, homem– até a morte. Esta última coincide com a perda
e/ou destruição de tal informação e/ou capacidade. Sobre esta base, resulta evidente como o início da vida,
em um ser humano, coincide com o ato da fusão entre o espermatozóide e o óvulo, o qual leva a criação do
zigoto e ao desencadear-se daquela cadeia de eventos que culminam logo no nascimento de um recém-
nascido".

Inclusive estes autores nos propõem fazer a análise da perspectiva contrária: partindo de um indivíduo adulto,
tratemos de percorrer para trás sua história biológica, procurando uma "solução de continuidade" (quer dizer,
uma interrupção) em seu processo vital. "Notaremos imediatamente que tal solução de continuidade ocorre
só no ato da fecundação". Em todos outros estádios de desenvolvimento a vida (e se referem a uma vida
autônoma, promovida e dirigida do mesmo embrião) está presente. A tal ponto "que os diversos estádios
freqüentemente sugeridos como pontos de limite entre a vida e a não vida –a implantação no útero, a formação
do cérebro, a autoconsciência– saltam como arbitrários. Estes estádios sublinham exclusivamente o limite
entre fases diversas do desenvolvimento vital, mas todos contidos no interior deste último, do qual não
representam nenhum limite".

Daqui, terminam dizendo, todas as tentativas de reduzir o embrião a uma entidade privada de vida são vagas
e insustentáveis biológica e lógicamente.

Assim, por exemplo, sustentar –como afirmaram alguns autores– que o embrião não é um ser vivo porque é
incapaz de "comunicar-se" (relacionar-se) é absurdo porque o embrião se comunica com sua mãe nos
primeiríssimos estádios de desenvolvimento; faz-o através do intercâmbio de moléculas químicas muito
específicas. A discriminação entre vida e não vida, portanto, não se apóia na incapacidade de comunicar-se
a não ser na forma de comunicação usada: química no embrião, mecânica (o som, a vibração do ar) no adulto.
Para os que negam ao embrião o estatuto de ser humano o problema é que se relaciona com sua mãe sem
usar a voz ou os gestos de sua cara ou mãos.

A mesma falácia encontramos nos que negam ao embrião a categoria de ser humano porque seria incapaz
de elaborar informação ou de obrar de modo autoconciente; se assim fora poderíamos chegar a catalogar
como não-viventes a um significativo número de afetados por importantes patologias, como por exemplo, os
doentes do Alzheimer, morbo que pode anular totalmente as faculdades cognitivas.

b) O momento da animação

Ao falar da alma humana dissemos que um ser humano é tal porque tem alma espiritual. Se dissermos que o
embrião é um ser humano, temos que afirmar ao mesmo tempo que tem alma: o que não tem alma espiritual
não é humano. Agora bem, desde que momento é pessoa humana, quer dizer, tem alma humana (ou seja,
espiritual)?

Não vamos voltar a considerar as respostas que muitos pensadores dão em relação ao ser humano; basta
com que só as tenhamos em conta. Alguns sustentam que o homem é o fruto da casualidade ou da sorte
(quer dizer, da casual confluência de fatores que deram como fruto não uma parte de mármore ou uma espiga
de trigo, a não ser um homem). Os que assim respondem concluem cedo ou tarde dizendo que o homem é
um absurdo (Sartre se animou a dizer com claridade que para ele, o homem é "uma paixão inútil, um ser
vomitado no mundo, condenado a ser livre e destinado a um nada"). Mas não é possível pensar (sério) assim,
nem menos ainda obrar em conseqüência com esta afirmação. Em efeito, o que nasce da casualidade, vive
por acaso e está entregue à casualidade, sem lei nem fim algum, e nenhum homem pode levar uma vida com
esta perspectiva. Escreve, a respeito, Basso: "Mais concretamente, cabe perguntar-se: poderia ser que a
vida, com suas perfeições distintivas (a complexidade de seus mecanismos, suas preparações remotas e
seus acondicionamentos próximos) seja simples produto da sorte? Se se tiver feito, uma só vez sequer, o
cálculo aproximado do número matematicamente infinito de coincidências fortuitas necessárias para juntar
em uma minúscula célula de quatro micrões por dois (o espermatozóide) 23 cromossomos com seus 50.000
gens perfeitamente programados, cairá na conta afirmativa à pergunta mencionada. Acreditar até tal ponto
na casualidade. Aí sim que é difícil ter fé!".

Outros sustentaram que o ser humano em estado embrional é um "material biológico" potencialmente
humano, e que só adquere o estatuto de pessoa mediante o livre reconhecimento e a livre aceitação por parte
da sociedade dos adultos. Por exemplo, René Frydman, afirma que os embriões não possuem os atributos
da pessoa humana, a não ser só sua potencialidade. Para adquiri-los deve sair ao encontro o desejo do filho
por parte do adulto, e devem superar as dificuldades concretas do desenvolvimento. A pessoa séria, deste
modo, uma construção social, o fruto artificial de uma adoção social seletiva e arbitrária. Do mesmo modo,
daqui concluirão (com lógica conseqüência) que uma pessoa pode logo renunciar a sua personalidade ao
desejar não viver; portanto tirar a vida a quem já não quer relacionar com seus semelhantes ou a quem seus
semelhantes segregam de sua sociedade... não seria um homicídio (aí temos a eutanásia legitimada!).

Nós havemos já dito que o homem começa a ser pessoa, ser humano, ao receber de Deus a alma espiritual
que faz a função de forma no composto humano. A doutrina católica o afirma dizendo: "Deus criou o homem
a sua imagem, a imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou (Gn 1,27). O homem ocupa um lugar
único na criação: está feito a imagem de Deus; em sua própria natureza une o mundo espiritual e o mundo
material; é criado homem e mulher; Deus o estabeleceu na amizade com Ele. De todas as criaturas visíveis
só o homem é capaz de conhecer e amar a seu Criador; é a única criatura na terra que Deus amou por si
mesmo; só ele está chamado a participar, pelo conhecimento e o amor, na vida de Deus. Para este fim foi
criado e esta é a razão fundamental de sua dignidade: ‘Que coisa, ou quem, perguntava Santa Catarina de
Sena dirigindo-se a Deus, foi o motivo de que estabelecesse o homem em semelhante dignidade?
Certamente, nada que não fosse o amor inextinguível com o que contemplou a sua criatura em ti mesmo e te
deixou cativar de amor por ela. Por amor o criou, por amor lhe deu um ser capaz de gostar de seu Bem
eterno’. Por ter sido feito a imagem de Deus, o ser humano tem a dignidade de pessoa; não é somente algo,
a não ser alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de dar-se livremente e entrar em comunhão com
outras pessoas; e é chamado, pela graça, a uma aliança com seu Criador, a lhe oferecer uma resposta de fé
e de amor que nenhum outro ser pode dar em seu lugar".

Já tratamos que este tema no capítulo correspondente à alma; agora o que nos expõe é algo que
precisamente nesse capítulo ficou pendente: e quando começa a alma a estar presente neste ser que começa
a ter vida com a concepção e terminará em sua morte natural (talvez em uma entrada velhice)?

É claro que quem diz que o homem é fruto da sorte dirá que começa a ser pessoa quando a casualidade o
produz e, portanto, dependerá da sorte em cada caso. Os que sustentam a tese relacional, dirão que quando
a sociedade aceita o novo indivíduo (portanto, um embrião não aceito como pessoa, ou um embaraço "não
desejado" determinam que "essa realidade" não seja uma pessoa humana). Mas quem sustenta que tudo
começa com uma intervenção criadora da alma por parte de Deus (a animação) terão que concluir que o novo
ser começa a ser pessoa quando Deus infunde a alma humana em um organismo apto para recebê-la.

Aceitando esta posição que diz que a alma é criada e infundida por Deus, nos encontramos com um dado
histórico de curioso interesse: a teoria da animação retardada. Esta teoria foi defendida na antigüidade não
só por filósofos pagãos como Aristóteles (com sua teoria conhecida como epigênesis, embora ele não usasse
este término posto recém em 1651 por William Harvey) mas também –vários séculos mais tarde– por grandes
pensadores cristãos, tanto homens de ciência como teólogos incluso da talha de São Alberto Magno e Santo
Tomás de Aquino. A teoria de Aristóteles dizia que a formação dos organismos viventes se realiza por um
lento processo no que estes vão adquirindo lentamente sua forma definitiva, substituindo-se sucessivamente
forma imperfeitas por outras mais perfeitas até chegar à definitiva; Aristóteles sustentava isto contra Demócrito
quem tinha defendido a teoria da preformación implícita, precursora de todas as teorias preformistas (o
preformismo sustentava –não sei se terá na atualidade defensores– que os órgãos de todo organismo já estão
preformados no óvulo ou no espermatozóide; ou seja, teríamos –no caso do homem– uma espécie de
homenzinho perfeito mas microscópico ou homúnculo como o chamaram alguns e como pode ver-se na obra
literária Fausto de Goethe). O perigo que os cientistas e teólogos medievais quiseram evitar ao voltar para a
animação retardada aristotélica era precisamente este preformismo que defenderam alguns teólogos
agustinianos. Contra isto Santo Tomás –quem, como todos os pensadores, não podia contar com outros
dados que os que lhe oferecia a ciência de seu tempo– defendeu esta animação retardada dizendo que "o
corpo se forma e se vai dispondo sucessivamente com vistas à alma", recebendo uma série de "almas" (não
espirituais a não ser imperfeitas, portanto, como as que têm os seres não humanos) que vão se substituindo,
de tal modo que "quando está imperfeitamente disposto, recebe uma alma imperfeita; e depois, quando está
disposto perfeitamente, recebe a alma perfeita", esta sim, espiritual; precisamente Santo Tomás recorda esta
doutrina a propósito do caso de Cristo quem para ele foi uma exceção posto que seu "corpo (...) devido ao
poder infinito de Deus, esteve perfeitamente disposto do primeiro instante, e por isso no primeiro instante
recebeu a forma perfeita, quer dizer, a alma racional". Quero destacar esta teoria por duas coisas:

1º A primeira é que, embora os partidários da animação retardada admitiam que só nos últimos estádios de
sua formação o embrião recebia a alma espiritual e imortal, condenavam igualmente como crime o aborto.
Houve alguma vacilação a respeito em alguns teólogos como Pedro Lombardo. Entretanto, estes mesmos
autores sustentavam que o aborto dos embriões ainda inanimados embora não era homicídio era igualmente
ilícito. De todos os modos, não foi assim a doutrina da Igreja e a da maioria dos teólogos. Quero esclarecer
que as discussões sobre o tema não giravam sobre a aprovação do aborto nestes casos a não ser sobre a
despenalización (ou seja, não por penas canônicas) em caso de que um feto ainda não fosse humano. É
interessante que a maioria dos antigos autores, até aceitando –seja como certa ou como possível– a
animação retardada sustentaram sempre a gravidade do aborto em qualquer de suas etapas. Quem tem
estudado as implicações da doutrina de Santo Tomás sobre este tema afirmam que ele, ainda sustentando a
animação retardada, não aceitou a licitude do aborto em nenhuma etapa em razão do princípio que sustenta
que "o que a natureza tenta, Deus o tenta através dela"; portanto interromper o processo biológico de um ser
humano é tentar impedir a aparição de uma vida humana querida por Deus, e será, assim, um atentado contra
uma vida humana, já seja direto (se já foi infundida a alma) ou indireto (se ainda não tivesse sido infundida);
nisto Santo Tomás e os antigos moralistas se guiavam pelo princípio: "vida provável, vida certa", querendo
dizer enquanto há séria probabilidade de que exista vida humana pessoal, terá que comportar-se como se
existisse total certeza, pelo risco que implica expôr-se conscientemente a cometer um homicídio.

2º Esta discussão é valiosa também porque foi elaborada pela insuficiência dos dados científicos que dirigiam
sobre o embrião; outra tivesse sido a solução destes cientistas, filósofos e teólogos se houvessem possuído
os dados contribuídos pela biogenética atual que nos faz conhecer como os membros e órgãos definitivos
não se encontram atualmente presentes no espermatozóide nem no óvulo nem no embrião –proposta
grosseira do preformismo– mas tampouco faz falta esperar a um momento tardio na evolução do embrião
para ver que se dão as condições de uma matéria –corpo– adequadamente disposta para receber a alma,
pois no momento mesmo da concepção se dá já a totalidade do patrimônio genético no que se contêm
perfeitamente, embora em estado potencial, todas as virtualidades que o embrião, o feto, o menino e o futuro
adulto desenvolverão com o passar do tempo sempre a partir das ordens emanadas do mesmo embrião.
Santo Tomás aceitava que Deus podia preparar um corpo que estivesse perfeito do primeiro instante e em tal
caso receberia a alma imediatamente (para ele assim foi o caso de Cristo). Estou seguro de que se Santo
Tomás tivesse conhecido o que é realmente o embrião, seu patrimônio genético e sua capacidade de
autodirigirse a si mesmo no processo de gestação, tivesse considerado tal estado como o estado de perfeição
(relativa) necessária para julgar a matéria disposta para a alma e não teria tido necessidade de distinguir o
caso de Cristo do de outros homens quanto ao momento de sua animação.

Destaco que a discussão antiga da animação retardada é um dado muito valioso –não, como alguns
erroneamente pensam, como uma objeção à doutrina católica desde seus mesmos teólogos– porque nos
mostra que: (a) o sustentar uma animação retardada (como de fato sustentam muitos cientistas atuais,
embora não falem de animação mas sim de hominización ou personalización) é um engano ligado a uma
incompreensão da natureza biológica do embrião; se os cientistas, filósofos e teólogos do passado caíram
neste desacerto, não pode acontecer o mesmo em nossos dias com o conhecimento que temos da genética
e a embriologia; e (b) mostra-nos que apesar de que se sustentasse tal animação retardada, a atitude moral
será sempre a de respeito absoluto pelo embrião.

Agora bem, devemos ser conscientes de que assim como não podemos ter um conhecimento direto e
experimental nem da alma nem do ato criador divino, tampouco podemos dar uma resposta "direta" à questão
do momento em que se produz a infusão da alma. Entretanto, com o que havemos dito mais acima sobre o
desenvolvimento biológico do embrião, podemos tentar uma resposta "indireta". Esta resposta indireta se
apóia em um dado absolutamente objetivo que nos permite constatar com certeza que em tal ou qual momento
neste novo ser se dão já as condições para que seja uma pessoa humana; se verificarem tais condições,
então deveremos concluir que é uma pessoa humana (ou ao menos terá que concluir que não se pode dizer
o contrário, quer dizer que "não é uma pessoa humana"). Este dado existe –e hoje em dia reforçado pelos
estudos de genética–: em todo o processo que vai do ato sexual entre um homem e uma mulher, a
fecundação, seu desenvolvimento embrional, nascimento, crescimento, adultez, ancianidad e morte, só há
um dado objetivo que nos permita dizer: "biologicamente neste momento há um novo ser". Tal momento é a
concepção ou fecundação que dá como resultado um novo ser plenamente individualizado, diverso das
células que lhe dão origem e diverso do organismo materno que o aninha.

Queria mostrar isto reproduzindo textualmente umas páginas de um estudo muito valioso do Prof. Ângelo
Serra (geneticista de enorme prestígio). Trata-se do ponto no que este autor, depois de ter exposto o
desenvolvimento biológico do embrião de modo muito semelhante como fizemos nós mais acima, passa ao
que denomina "a indução biológica", ou seja, processo pelo qual um cientista, partindo dos dados
experimentais que lhe dá a ciência, chega a conclusões provadas. Diz textualmente: "até agora se
descreveram brevemente os primeiros estádios do desenvolvimento do embrião humano, e se tem feito uma
aproximação a seu controle genético. Não se tentou nem verificar nem falsificar nenhuma hipótese particular.
O objetivo era dar a conhecer alguns aspectos essenciais do complexo processo biológico que é o
desenvolvimento de um ser humano. Este conhecimento é a premissa necessária para a resposta às
perguntas: 1) Qual é o estado de um embrião humano precoce? , e 2) Quando começa um ser humano seu
ciclo vital? Para responder a estas perguntas não é necessário formular novas hipóteses, a não ser
simplesmente analisar nossos dados indutivamente (...)".

E passa logo a considerar como não pode se destacar outro momento, como começo e adquisição do estatuto
definitivo de um ser humano (ou seja, quando começa a ser pessoa, e, desde nosso ponto de vista, quando
é o momento da infusão da alma) que o da fecundação; porque a partir deste momento se dão nesse ser três
propriedades fundamentais que indicam que temos um indivíduo autônomo e acabado (quanto a
individuación) embora não tenha desenvolvido ainda todas suas virtualidades. Essas três propriedades são:
a coordenação, a continuidade e a gradualidade. Continua dizendo Serra:

"A. A coordenação. A primeira propriedade é a coordenação. O desenvolvimento embrional, do momento da


fusão das gametas até o da formação do disco embrional ao redor dos 14 dias depois da fecundação, e ainda
mais evidentemente depois, é um processo onde existe uma seqüência e interação coordenada de atividade
molecular e celular, sob o controle do novo genoma, que é modulado por uma cascata ininterrupta de sinais
transmitidos de célula a célula e do ambiente externo e/ou interno às células singulares.

Precisamente esta inegável propriedade implica, e ainda mais, exige uma rigorosa unidade do ser que está
em constante desenvolvimento. Quanto mais progrede a investigação científica, mais parece que o novo
genoma garante esta unidade, onde um grande número de gens reguladores asseguram o tempo exato, o
lugar preciso e a especificidad dos eventos morfogenéticos. J. Vão Blerkom, concluindo uma análise da
natureza do programa de desenvolvimento dos primeiros estádios dos embriões dos mamíferos, sublinha
claramente esta propriedade: ‘As provas disponíveis sugerem que os eventos no oocito em maturação e no
embrião precoce seguem uma seqüência direta de um programa intrínseco. A evidente autonomia deste
programa indica uma interdependência e coordenação aos níveis molecular e celular, que tem como resultado
a manifestação de uma cascata de acontecimentos morfogenéticos’.

Tudo isto conduz à conclusão de que o embrião humano –como qualquer outro embrião– também em seus
primeiros estádios não é, como afirma N.M. Ford ‘tão somente uma massa de células’, ‘cada uma das quais
é um indivíduo ontológicamente distinto’, mas sim o embrião completo é um indivíduo real, onde as células
singulares estão estritamente integradas em um processo mediante o qual traduz autonomamente, momento
por momento, seu próprio espaço genético em seu próprio espaço organísmico.

B. A continuidade. A segunda propriedade é a continuidade. Parece inegável, sobre a base dos dados até
agora apresentados, que na fecundação se inicia um novo ciclo vital. ‘A função última do espermatozóide é
fundir-se com a membrana plasmática do oocito. No momento da fusão [singamia] deixa de ser um
espermatozóide e aparece como parte de uma célula formada de novo, o zigoto’. O zigoto é o princípio do
novo organismo, que se encontra precisamente ao início de seu ciclo vital. Se considerar o perfil dinâmico
deste ciclo no tempo, observa-se claramente que procede sem interrupções: o primeiro ciclo não termina no
disco embrionário, nem se inicia outro ciclo desde aquele ponto em adiante. Um acontecimento singular, como
a multiplicação celular ou a aparição de vários tecidos e órgãos, pode aparecer descontínuo a nossos olhos;
entretanto, cada um deles é a prova final, em um momento dado, de uma sucessão ininterrupta de feitos –
poderia dizer-se que infinitesimais– interconectados sem solução de continuidade. Esta propriedade implica
e estabelece a unicidade ou singularidade do novo ser humano: da fusão (singamia) em adiante, ele é sempre
o mesmo indivíduo humano que se constrói autonomamente segundo um plano rigorosamente definido,
passando por estádios que são qualitativamente sempre mais complexos.

C. A gradualidade. A terceira propriedade é a gradualidade. A forma final se alcança gradualmente: trata-se


de uma lei ontogênica, de uma constância do processo generativo. Esta lei do gradual construir-se da forma
final através de muitos estádios partindo do zigoto implica e exige uma regulação que deve ser intrínseca a
qualquer embrião singular, e mantém o desenvolvimento permanentemente orientado na direção da forma
final. É precisamente por causa desta lei epigenética intrínseca, que está inscrita no genoma e começa a
atuar do momento da fusão das duas gametas, que cada embrião –e, portanto, também o embrião humano–
mantém permanentemente a própria identidade, individualidade e unicidade, permanecendo sem interrupção
o mesmo idêntico indivíduo durante todo o processo de desenvolvimento, da singamia em adiante, apesar da
sempre crescente complexidade de sua totalidade.

W.J. Gehring reconhece claramente esta lei, antecipando os futuros progressos da genética do
desenvolvimento: ‘Os organismos –escreve– se desenvolvem segundo um preciso programa que especifica
seu plano corpóreo com um grande detalhe e determina além disso a seqüência e a temporización dos
eventos epigenéticos. Esta informação está desenhada na seqüência do núcleo do ADN [...]. O programa de
desenvolvimento consiste em um determinado quadro espaço-temporal de expressão dos gens estruturais
que formam a base do desenvolvimento. O desenvolvimento normal exige a expressão coordenada de
milhares destes gens em uma modalidade conservada. Posto que o controle independente dos gens
estruturais singulares conduziria a um desenvolvimento caótico, podemos predizer que são gens de controle
que regulam a atividade coordenada de grupos de gens estruturais’".

E conclui Serra com a "resposta" que estes dados nos dão: "É evidente que as três propriedades recordadas,
para uma consideração desapaixonada, satisfazem perfeitamente os critérios essenciais estabelecidos por
uma reflexão coloque-biológica para a definição de um ‘indivíduo’. Por isso a indução lógica dos dados que
subministram as ciências experimentais conduz à única conclusão possível, isto é, que além de alterações
fortuitas na fusão de duas gametas um novo indivíduo humano real começa sua própria existência, ou ciclo
vital, durante o qual –dadas todas as condições necessárias e suficientes– realizará autonomamente todas
as potencialidades das que está intrinsecamente dotado. O embrião, portanto, do momento da fusão das
gametas é um indivíduo humano real, não um indivíduo humano potencial. Nós consideramos que a clara
afirmação da «Donum vitae», Instrução sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade da
procriação, publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé em 1987, é cientificamente correta. Nela se
expressa: ‘Pelas recentes adquisições [de] a biologia humana [...] reconhece-se que no zigoto derivado da
fecundação está já constituída a identidade biológica de um novo indivíduo humano’". Até aqui o estudo do
Ângelo Serra.

De todos os modos, insistimos em que se alguém não aceitasse este dado científico como determinante do
momento da animação não ficaria, por isso mesmo, autorizado por nenhum outro dado para colocar outro
momento distinto como o começo da pessoa humana, pois todo outro momento (já se destaque a aninhação,
ao término das duas semanas, dos dois meses, etc.) não representa nenhuma mudança essencial com o
momento imediatamente anterior; trataria-se, pois, de uma determinação arbitrária. Estaria, em tal caso,
dizendo: "ao não poder constatar experimentalmente quando se realiza a intervenção criadora de Deus, eu
dito que é em tal momento". portanto, o término de "pré-embrião, cunhado para designar o tempo anterior a
estas determinações arbitrárias é tão arbitrário e tendencioso como elas mesmas. Sobre isto diz a Declaração
sobre o aborto: "Do ponto de vista moral isto é certo: embora houvesse dúvida sobre a questão de se o fruto
da concepção é já uma pessoa humana, é objetivamente um pecado grave o atrever-se a confrontar o risco
de um homicídio. ‘É já um homem aquele que está em caminho de ser’ (Tertuliano)".

**

O que temos exposto neste capítulo tem capital importância para nossa vida; especialmente para a de um
cientista ou a de um estudante em carreiras relacionadas com a vida. Dos princípios que sentamos se
compreende o motivo da ilicitude de algumas técnicas de reprodução humana (como a fecundação in vitro),
a experimentação embrional, a clonación e sobre tudo o aborto (em qualquer de suas modalidades cirúrgicas
ou químicas).

Ao não aceitar estes princípios se pode cair na aceitação das práticas mais aberrantes de experimentação
com seres humanos (técnicas muito similares às que, por outra parte, nossa sociedade condena no nazismo),
a eugenia (assassinato de meninos que nascem com discapacidades, ou simplesmente não reúnen as
expectativas que tinham seus pais ao "encarregá-los"), a criação de bancos de órgãos (em realidade bancos
de seres humanos em estádio embrional para usá-los extirpando células ou órgãos em caso de que os
necessite um adulto), e todos os modos de aborto e infanticídio.

Não te assombre disto, nem te deixe enganar pelos títulos e lucros que possa ter um cientista em seu haver;
quem nega a humanidade de um embrião pode chegar a defender as posturas mais criminais. Basta, para
mostra, ler as arrepiantes declarações do Dr. James Watson, Premio Nobel de medicina e fisiologia (célebre
por seu descobrimento da estrutura DNA, junto com o Francis Crick): "Muitas má formações e uma série de
defeitos só se vêem depois de nascida a criatura, com freqüência porque não tudo pode submeter-se a um
diagnóstico pré-natal. Por isso estou de acordo com meu colega e amigo Francis Crick, partidário de não
declarar ‘vivos’ aos recém-nascidos até os três dias depois de sua vinda ao mundo, dando aos pais, durante
este prazo, a possibilidade de evitar uma vida cheia de sofrimentos a um menino incurável". Sim, acaba de
ler a reivindicação do infanticídio por parte dos dois descobridores da estrutura do DNA, um dos maiores
lucros em biogenética. Se está lendo estas páginas deve agradecer a seus pais que não tenham prestado
ouvidos a estes e outros autores que propõem aos homens a possibilidade de converter-se em modernos
Herodes e a ti em um mais dos inumeráveis integrantes da legião dos santos inocentes.

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Alonso Bedate, C. e Cefalo, R.C., O zigoto é ou não é uma pessoa?, Trabalho Hospitalar, 1990.

–Blázquez, Niceto e Pastor, Luis Miguel, Bioética fundamental, Madrid, Editorial Católica, 1996.

–Castilla, Branca, Começo da vida humana. Aspectos filosóficos, Cadernos da Bioética, 1997, p.113ss.

–Colón, Roberto, Statuto biologico e statuto ontologico dellé embrione e do feto umano, Anthropotes, 1996,
XI, p.132ss.

–Melina, Livio, O embrião humano. Estatuto biológico, antropológico e jurídico, Madrid, Rialp, 2000.

–Monge, Fernando, Pessoa humana e procriação artificial, Madrid, Palavra, 1998.

–Possenti, Vittorio, É o embrião pessoa? Sobre o estatuto ontológico do embrião, no VVAA (Massini e Serna
ed) O direito à vida, Pamplona, EUNSA, 1998.

–Sgreccia, Elio, Manuale dava Bioetica, Milan, Veta e pensiero, 2 vosl. 1998.

–Jesus Ballesteros, O estatuto do embrião, Fundação Interamericana Ciência e Vida, .

–Manuel do Santiago, Estatuto Biológico, Antropológico e Ético do Embrião Humano, .

–Fernando Orrego Vicuña, A respeito da infusão da alma espiritual, .

–Angelo Serra, A contribuição da Biologia ao estatuto do embrião, .

–Natalia López Moratalla e María J. Iraburu Elizalde, Os quinze primeiros dias de uma vida humana, Eunsa,
Pamplona 2004.
VII. A verdade roubada sobre a lei natural

Há uma lei natural e esta nos faz livres!

Não seria raro que muitas vezes tenha escutado a palavra lei e a palavra liberdade. Tenho suficientes
elementos para temer que não tenham lhe apresentado nem de uma nem de outra o verdadeiro conceito.

Hoje em dia se exalta muito a liberdade, sem fazer as elucidações que correspondem; e não se fala da lei a
não ser em um sentido empobrecido; e provavelmente a maioria de nossos contemporâneos se formam uma
idéia destes dois conceitos como o de dois boxistas que se dão socos sobre o ringue de nossa consciência.
Se eu quero ser livre, a lei me freia; se intento impor a lei, confino(limito) minha liberdade ou a de meus
semelhantes. Com uma idéia assim não terão muito futuro os que queiram me falar dos mandamentos de
Deus. E o que pensará de mim se te devo dizer que os mandamentos de Deus lhe liberam e lhe abrem
horizontes desconhecidos! Acreditará ou pensará que falo como um padre que vem te impor dissimulações?

E entretanto, queria chamar sua atenção sobre este ponto, porque se não compreender a potência liberadora
dos mandamentos e da lei (natural e divina) te asseguro que não lhe estão desamarrando nenhuma cadeia
mas sim estão roubando as pernas com as que caminha sua verdadeira liberdade.

Antes de prosseguir, quero esclarecer um ponto para evitar confusão . Com relação aos mandamentos de
Deus (ou decálogo, ou seja dez palavras ou leis) e a lei natural, não se trata da mesma coisa, mas coincidem
substancialmente. A lei natural é a lei que está gravada em nosso coração, do momento em que fomos criados
(todo ser tem isso gravado em sua natureza). O decálogo foi revelado por Deus em várias oportunidades; a
mais solene foi a revelação de Deus a Moisés sobre o Monte Sinaí; mas mais vezes ainda o repete Nosso
Senhor nos Evangelhos. Em realidade o decálogo é uma expressão privilegiada da "lei natural". Como a
substância dos mandamentos pertence à lei natural, pode-se dizer que, embora foram revelados, são
realmente conhecíveis por nossa razão, e, ao revelá-los, Deus não fez outra coisa que recordá-los
(acrescentando indubitavelmente algumas precisões ou aplicações estritamente reveladas). São Ireneo de
Lyon dizia: "Do começo, Deus tinha posto no coração dos homens os preceitos da lei natural. Primeiro se
contentou recordando Isto foi o Decálogo". A humanidade pecadora necessitava esta revelação; diz São
Sorte: "No estado de pecado, uma explicação plena dos mandamentos do Decálogo resultou necessária a
causa do obscurecimento da luz da razão e da separação da vontade". Por isso, conhecemos os
mandamentos da lei de Deus pela revelação divina que é proposta na Igreja, e pela voz da consciência moral.

Se compararmos os Dez Mandamentos da Lei Antiga, os da Lei de Cristo e a lei natural veríamos esta
correlação:

(Deuteronômio 5, 6-21)Lei de Cristo -Lei Natural

-Eu sou o Senhor, seu Deus, que te tirou do Egito, da servidão. Não haverá para ti outros deuses diante de
mi...

-Amará ao Senhor seu Deus com todo seu coração, com toda sua alma e com toda sua mente (MT 22,7).

-Está escrito: Ao Senhor seu Deus adorará, só a Ele dará culto (MT 4,10).

-Amará a Deus sobre todas as coisas.

-Não tomará em falso o nome do Senhor seu Deus... disse aos antigos: ‘Não perjurará’... Pois eu lhes digo
que não jurem em modo algum (MT 5.33-34).

-Não tomará o nome de Deus em vão.

-Guardará o dia do sábado para santificá-lo.


d -O sábado foi instituído para o homem e não o homem para o sábado. De sorte que o Filho do homem
também é Senhor do sábado (Mc 2,27-28).

-Santificará as festas

-Honra a seu pai e a sua mãe. Moisés há dito: Honra a seu pai e a sua mãe, e o que amaldiçoe a seu pai ou
a sua mãe é réu de morte (Mc 7,10).

-Não matará.Ouvistes o que se disse aos antepassados: ‘Não matará’; e aquele que mate será réu ante o
tribunal. Pois eu lhes digo: Todo aquele que se encolerize contra seu irmão, será réu ante o tribunal (MT 5,21-
22).

-Não cometerá adultério.Ouvistes que se disse: ‘Não cometerá adultério’. Pois eu lhes digo: tudo o que olhe
a uma mulher desejando-a, já cometeu adultério com ela em seu coração (MT 5,27-28).

-Não cometerá atos impuros.

-Não roubará. Não roubará (MT 19,18).

-Não dará testemunho falso contra seu próximo.Disse aos antepassados: Não perjurará, mas sim cumprirá
ao Senhor seus juramentos (MT 5,33).

-Não dirá falso testemunho nem mentirá.

-Não desejará a mulher de seu próximo.

-Quem olhe uma mulher desejando-a, já cometeu adultério com ela em seu coração (MT 5,28).

-Não consentirá pensamentos nem desejos impuros.

-Não cobiçará... nada que seja de seu próximo.

-Onde está seu tesouro ali estará seu coração (MT 6,21).Não cobiçará os bens alheios.

Como vemos, os preceitos contidos na lei natural, que todo homem pode descobrir com sua inteligência,
foram também revelados por Deus no Antigo Testamento e no Novo. E, como explicaremos a seguir, a lei
natural provém de Deus e é em tal sentido "divina", por isso falaremos indistintamente dos mandamentos
divinos referendonos a ambas as coisas.

1. O que quer dizer lei natural?

Em seu discurso à Congregação para a Doutrina da Fé, em 6 de fevereiro de 2004, o Papa Jão Paulo II
destacou de modo muito claro o seguinte: "Outro argumento importante e urgente que queria submeter a sua
atenção é o da lei moral natural. Esta lei pertence ao grande patrimônio da sabedoria humana, que a
Revelação, com sua luz, contribuiu a desencardir e desenvolver ulteriormente. A lei natural, acessível de por
si a toda criatura racional, indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. Apoiando-se
nesta lei, pode-se construir uma plataforma de valores compartilhados, sobre os que se pode desenvolver um
diálogo construtivo com todos os homens e mulheres de boa vontade e, mais em geral, com a sociedade
secular. Como conseqüência da crise da metafísica, em muitos ambientes já não se reconhece que há uma
verdade gravada no coração de todo ser humano. Assistimos por uma parte à difusão entre os crentes de
uma moral de caráter fideísta, e por outra parte, falta uma referência objetiva para as legislações que
freqüentemente se apóiam somente no consenso social, fazendo cada vez mais difícil o que se possa chegar
a um fundamento ético comum a toda a humanidade".

a) Existe uma lei chamada "natural"


A existência de uma lei natural é postulada pela mesma razão. Se aceitarmos a existência de Deus e a criação
de tudo que existe por parte de Deus, devemos aceitar a existência de um plano eterno de Deus sobre a
criação; como conseqüência se segue a existência de certa correlação nas creaturas mesmas, pois toda regra
e medida se encontra de um modo no que regula e de outro no que é regulado. Isto se vê reforçado pela
convicção universal (incluídos os povos pagãos) de um dever moral e da possibilidade do conhecimento e
discernimento do bem e do mal; também o vemos considerando o absurdo a que levaria a negação de uma
lei da natureza: todas as opiniões morais seriam plausíveis, portanto, os vícios poderiam ser virtudes e as
virtudes vícios, segundo as diversas concepções arbitrárias dos homens. Para um crente, a estes argumentos
se soma o testemunho da Revelação.

Por isso se diz que a lei natural é a mesma lei eterna participada dos seres dotados de razão, ou, como está
acostumado a definir-se uma participação da lei eterna na criatura racional. Com grande acerto se falou de
uma "teonomía participada", quer dizer, o ordenamento divino da creatura racional para seu fim último,
gravado na natureza humana e recebido pela luz da razão.

Esta lei está presente em todos os seres. Entretanto, no homem tem algo particular. As criaturas irracionais
se dirigem por instintos cegos; procuram os bens que os aperfeiçoam, mas sem entender que são bens nem
que os estão procurando; simplesmente procuram. Não têm consciência de procurar; são arrastados.
Defendem-se quando os atacam porque amam instintivamente sua vida e não a querem perder; mas não
entendem o que é a vida. Se acasalam e procriam e logo alimentam e defendem a suas crias porque amam
cegamente o bem da espécie, embora não entendam o que é o amor sensível que sentem nem o que é a
espécie (por isso, quando seus cachorrinhos já não os necessitam mais, esquecem-se deles). Vivem em
manada porque se deleitam em conviver com os de sua própria espécie, mas não entendem o que isso
significa. Gozam de estar juntos, mas não fazem amizade. Os instintos são os fios invisíveis que os fazem
mover-se no cenário do mundo como as marionetes de um infantil teatro de brinquedo.

Há com o homem uma distância abismal. Também ele tem gravado em seu ser o Plano de Deus. Mas os
seus não são instintos cegos. Recebe também de Deus a luz da razão que lhe permite descobrir e ler esse
Plano, e a liberdade para executá-lo. Nisto consiste sua prerrogativa. Deus o manda ao grande teatro do
mundo com um libreto cheio de sabedoria e com olhos espirituais para ler e compreender, para amar esse
plano e para executá-lo. Essa é a lei natural: "No profundo de sua consciência –afirma o Concílio Vaticano II–
, o homem descobre uma lei que ele não se dá a si mesmo, a não ser a que deve obedecer e cuja voz ressoa,
quando é necessário, nos ouvidos de seu coração, chamando-o sempre a amar e a fazer o bem e a evitar o
mal: faz isto, evita aquilo. Porque o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração, em cuja obediência
está a dignidade humana e segundo a qual será julgado (cf. ROM 2, 14-16)". Este "código está inscrito na
consciência moral da humanidade, de tal maneira que quem não conhece os mandamentos, isto é, a lei
revelada por Deus, são para si mesmos Lei (ROM 2,14) Assim o escreve São Paulo na carta aos Romanos;
e acrescenta a seguir: Com isto mostram que os preceitos da Lei estão inscritos em seus corações, sendo
testemunha sua consciência (ROM 2,15)".

Trata-se, portanto, de uma lei divina, porque foi querida e promulgada diretamente por Deus; chama-se natural
não em contraposição à lei sobrenatural, mas sim por oposição à lei positiva (divina ou humana). Seu nome
próprio é "lei divina natural".

Por que a chama natural? Acima de tudo, porque não impõe a não ser coisas que estão ao alcance da
natureza humana razoável, mandadas porque são boas em si mesmas (a veracidade, o amor de Deus), ou
proibidas porque são males em si mesmos (como a blasfêmia, a mentira). Além disso, porque é conhecida
pela luz interior de nossa razão, independentemente de toda ciência adquirida, de toda lei positiva e inclusive
de toda revelação (embora Deus, em sua misericórdia também nos revele isso). Tal luz nos permite distinguir
entre o bem e o mal por comparação de nossas inclinações para seus fins próprios. É por isso que, através
dela pode estabelecer o fundamento para determinar a moralidade objetiva universal das ações humanas.

Que temos esta lei gravada no coração significa que nossa razão é capaz de ler em sua própria natureza o
fim para o que existe (fim que é sua verdadeira perfeição e felicidade) e pode descobrir que, em relação com
este fim, todos outros seres não são a não ser médios pelos que se chega ao fim. No momento em que cada
ser humano, chegando ao uso de sua razão, reconhece que tem um fim último e uma causa eficiente da que
sempre depende, dá-se como a promulgação individual ou subjetiva que aplica a cada um dita lei.

b) Qual é o conteúdo dessa lei (quer dizer, o que é o que manda)?


Analisando nossa natureza e as inclinações naturais ou espontâneas que descobrimos em nosso interior,
podemos chegar a formular as coisas que a lei natural nos manda ou nos prohíbe.Trata-se mais bem de uma
espécie de "leitura" que fazemos em nossa natureza.

Acima de tudo, descobrimos um mandamento fundamental. A primeira coisa que captamos na ordem prática
é a noção de "bem": o bem se apresenta como aquilo que todos os seres gostam. Daqui nossa razão capta
um primeiro preceito: deve-se obrar o bem e terá que evitar o mal. Às vezes reveste outras formulações (por
exemplo, "observa a ordem do ser", "cumpre sempre seu dever", etc.), mas estas não são mais que
formulações derivadas ou equivalentes daquele primeiro princípio, sobre o qual se fundam todos outros. Não
devemos reduzir esta percepção de que terá que fazer o bem e terá que evitar o mal no sentido que lhe dava
Kant (para ele isto tem só o sentido de uma simples obrigação da que não podemos escapar );em realidade
é imensamente mais rico que isto; o que nossa inteligência capta ao perceber o bem é a atração que este
exerce sobre todo ser; entendamos, pois, isto no sentido de que o bem é o que realmente nos atrai –com
força irresistível, como o amor– e o mal nos causa autêntica repulsão.

As conclusões imediatas. Ao dizer que nossa natureza se inclina para bem e foge do mal, estamos ainda
dizendo coisas muito gerais; qual bem, que mau? Nossa razão, analisando as inclinações próprias de nossa
natureza poderá a seguir concretizar qual é esse bem (ou esses bens) que nos atraem com sua força
irresistível (porque neles está nossa perfeição) e daqui poderá expressar em forma de preceitos ou
mandamentos, os primeiros preceitos da lei natural, chamados também conclusões imediatas por ser as
conclusões às que chega a partir do primeiro preceito. Já Santo Tomás descobria em nossa natureza três
tendências fundamentais do homem: a que nos corresponde como substâncias (gênero remoto do ser
humano), a que nos corresponde como animais (gênero próximo) e a que nos corresponde como seres
racionais (que é nossa diferença específica com o resto do gênero animal); e esta última, a sua vez revela
duas facetas complementares, pois vemos que há bens que nos aperfeiçoarão no espírito, enquanto que
outros nos aperfeiçoam socialmente. Vejamos cada uma delas:

A primeira inclinação é a inclinação que nos conserva no ser (o ser, o existir, é o primeiro bem que nos
aperfeiçoa e por isso gostamos). Esta inclinação a temos em comum com todos os seres e produz em nós o
desejo de viver. Esta inclinação natural funda, por exemplo, o direito de legítima defesa e, correlativamente a
proibição do assassinato do inocente (o ser é minha perfeição, portanto tenho direito a que não me tirem isso
injustamente; e estou obrigado a fazer eu o mesmo com meus semelhantes). Esta inclinação é também a
fonte do amor espontâneo e natural de si mesmo; forma em nós o amor para os bens naturais, como a vida
e a saúde; inclina-nos a procurar tudo o que é útil para nossa subsistência: o alimento, o vestido, a habitação;
inclina-nos à ação e também ao necessário repouso. Esta inclinação se desenvolve e fortifica por meio de
algumas virtudes naturais, de modo particular a esperança e a fortaleza.

A segunda inclinação é a inclinação sexual e familiar. Trata-se da inclinação própria de nossa dimensão
animal, e por esta inclinação tendemos a perpetuar nossa espécie. Não se trata de uma simples inclinação
ao sexo a não ser mais exatamente uma tendência ao amor entre o homem e a mulher e à afeição entre os
pais e os filhos. Cabe o direito ao matrimônio assim como o dever de assumir responsavelmente as obrigações
conexas e complementares: o dom da transmissão da vida, o mútuo sustento, a educação dos filhos que são
fruto desta inclinação, o dever de respeitar o matrimônio alheio. Da análise desta inclinação podem coligar-
se falsas formas de sexualidade: a homossexualidade, o autoerotismo (masturbação), a heterossexualidade
deliberadamente infecunda (anticoncepção), a heterossexualidade instável (concubinato e fornicação,
incluídas as relações prematrimoniais). Esta inclinação é aperfeiçoada naturalmente pela virtude da castidade
que assegura o senhorio sobre a própria sexualidade em vista do crescimento natural, espiritual e familiar.

A terceira inclinação é a inclinação ao conhecimento da verdade. Nasce de nossa natureza espiritual, e se


traduz em um espontâneo instinto de busca da verdade. É tão natural ao homem que é como constitutiva de
sua inteligência; por isso ninguém ensina a um menino a perguntar o porquê das coisas, e entretanto, todos
os meninos, nem bem começam a usar sua inteligência querem conhecer tudo e querem que lhes explique
tudo; às vezes os vemos como máquinas de perguntas; mais exatamente são devoradores da verdade. O
amor da verdade é o desejo mais propriamente humano e está na origem de toda ciência. Esta inclinação
funda o direito natural de cada homem a receber o que lhe é necessário para desenvolver sua inteligência,
quer dizer, o direito à instrução. Mas, por outro lado, também impõe o dever fundamental de procurar a
verdade e de cultivar a inteligência, especialmente no domínio da moral e da verdade fundamental que é a
verdade sobre Deus.
Esta mesma terceira inclinação espiritual tem outra meta, que é a inclinação a viver em sociedade. Já
Aristóteles qualificava ao homem como animal social e político. Esta inclinação se apóia tanto em motivos de
ordem material (a impossibilidade do indivíduo para subsistir por si só) quanto em razões espirituais (a
inclinação e necessidade da amizade, do afeto e do amor humano). Esta inclinação fundamenta todos os
direitos sociais e põe limites a uma liberdade concebida arbitrariamente; assim por exemplo, desta inclinação
pode estabelecer-se a antinaturalidad da mentira, do roubo, da injusta distribuição dos bens naturais, etc. A
virtude da justiça aperfeiçoa e salva corretamente esta natural inclinação do homem.

Os segundos preceitos da lei natural. Junto ao preceito fundamental da lei natural e aos primeiros preceitos
da lei natural, nossa razão, trabalhando já de modo mais fino, descobre outros fins que nos aperfeiçoam mas
que não têm já a evidência imediata dos anteriores, mas sim são fruto de um raciocínio geralmente científico.
Estes constituem o que alguns chamam com diversos nomes: direito natural aplicado, ou especial, ou
segundo, ou derivado. Por exemplo, pertence a este nível de princípios a ilicitude da vingança privada, a
indissolubilidade do matrimônio, etc.

c) Como é essa lei natural?

Esta lei natural tem várias características, as mais importantes das quais são três: é universal, imutável e
indispensável.

Universalidade. A lei natural é válida para todos os homens. Negam esta verdade todos os que defendem de
algum modo o relativismo cultural ou geográfico (ou seja, os que sustentam que os princípios morais ou éticos
dependem exclusivamente de cada cultura ou cada região, como os que dizem que não tem o mesmo valor
moral o homicídio ou o adultério em nossa cultura ocidental). No fundo estes relativismos confundem o valor
objetivo da lei natural com seu possível desconhecimento por parte de alguns homens. A lei natural é válida
para todo ser humano porque se deduz, como já indicamos, a partir das inclinações naturais do homem.
Havendo unidade essencial no gênero humano, os preceitos têm que ser necessariamente universais. O
homem, com as estruturas fundamentais de sua natureza, é a medida, condição e base de toda cultura.
Entretanto, outra coisa é que todos os homens conheçam todos estes preceitos. Neste sentido os filósofos e
teólogos distinguem entre os distintos níveis da lei dizendo que: sobre o preceito universalísimo não cabe
ignorância alguma por sua intrínseca evidência; sobre os primeiros preceitos cabe a possibilidade de ignorar
alguns, embora não durante muito tempo; isto se agrava na situação real do homem cansado (mas dizem que
é impossível ignorá-los todos em conjunto); finalmente, sobre as conclusões remotas cabem maiores
probabilidades de ignorância inculpável, de obscurecimento da razão devido ao pecado e de engano no
procedimento do raciocínio prático. Digamos de passagem que isto postula a necessidade moral da graça e
a revelação para que as verdades religiosas e morais sejam conhecidas de todos e sem dificuldade, com uma
firme certeza e sem mescla de engano.

Imutabilidade. A lei natural é também imutável, quer dizer, que permanece através das variações da história;
subsiste sob o fluxo de idéias e costumes e sustenta seu progresso.Opõe-se a esta verdade o relativismo
histórico ou evolucionismo ético que sustenta que a moralidade está sujeita a uma mudança constante (ou
seja, que uma coisa é a moral em nosso tempo e outra a moral dos tempos de Cristo; e outra será a moral do
próximo século). Novamente estamos ante uma confusão de planos. Podemos distinguir uma imutabilidade
objetiva e uma imutabilidade subjetiva. Objetivamente falando a lei natural admite uma certa mudança
quantitativa no sentido de que pode obter-se com o tempo uma maior declaração dos preceitos contidos nela;
mas isto não significa que mude mas sim os mandatos vão se explicitando, concretizando e conhecendo mais.
Do ponto de vista dos sujeitos a lei natural é imutável assim que não pode apagar do coração do homem, do
mesmo modo que não pode este perder sua natureza.

Indispensabilidad. A lei natural não admite exceções. Santo Tomás aceitava só a possibilidade da dispensa
realizada pelo mesmo Deus, assim que autor da natureza, de algum preceito do direito natural secundário
quando o exige um bem maior, já que este salva só os fins secundários da natureza. Tal é o caso, por exemplo,
da permissão no Antigo Testamento da poligamia e do divórcio. Mas nunca há exceção nem dispensa de
nenhum preceito primário; por isso, as aparentes exceções que admite a moral nos casos de furto e homicídio
não são verdadeiras exceções da lei natural, a não ser autênticas interpretações que respondem à verdadeira
idéia da lei.

2. Nossa idéia equivocada dos mandamentos

Ditosos os que guardam suas leis...


Oxalá meus caminhos se assegurem

para observar seus preceitos!

...Ensina-me seus mandamentos...

Estas são palavras da Bíblia, tiradas do Salmo 119, titulado "Elogio da Lei divina". Não deixará de surpreender
a leitura atenta deste Salmo a quem tem da lei uma idéia cinzenta. De fato, qual é o conceito vulgar que temos
dos mandamentos divinos? Podemos dizer que a maioria dos cristãos têm deles o conceito de um
"alambrado". Quer dizer, pensamos que os mandamentos nos poriam o "limite" de nosso obrar; indicariam
algo assim como o mínimo passível: quem os transpassa "se machuca". São pois como um alambrado: "mais
à frente não se pode ir".

Inclusive muitas pessoas boas pensam assim; ou assim trabalha seu subconsciente.

Basta prestar atenção a muitas perguntas que correntemente deve escutar o sacerdote. Os homens de
negócios perguntam: qual é o mínimo que alguém tem que declarar ao pagar seus impostos? Outros
perguntam: até que hora se pode chegar tarde a Missa sem perder o preceito? Vale se chegarmos depois da
predicación? E se chegarmos depois do Credo? A alguns noivos perguntam: o que é lícito fazer os noivos
durante o noivado? quais entendimentos são pecado? até onde se pode chegar sem pecar?... E poderíamos
fazer uma lista interminável!

No fundo, o que pedimos? Que nos indiquem o mínimo de moral! Ou seja, negociamos com Deus; pedimos-
lhe um "desconto" nos mandamentos.

Quem pensa assim, também costumam dizer com a maior normalidade: "Eu não sou uma pessoa má. Não
digo que cumpro todos os mandamentos; mas cumpro a maioria...".

Que idéia nós temos sobre a lei natural e os mandamentos de Deus? É como um alambrado de arame farpado
que nos prohíbe passar ao campo do vizinho... o qual, por outra parte, sempre parece mais verde que o
nosso! Mas o que é o que acontece quando a vemos desta maneira? O mesmo que acontece às vacas que
estão encerradas em um campo de pastos murchos, separadas por um alambrado de outro campo de atraente
verdura e cheirosa fragrância: passam o dia pisando no arame, mordiscando as gramas que penetram entre
os fios e olhando com lânguida ilusão a pradaria vizinha.

Algo semelhante ocorre entre cristãos que vêem assim os mandamentos: passam a vida paquerando o
pecado e invejando aos que sem escrúpulos vivem libertinamente. A estes Pemán recorda:

Que mau equilíbrio é

este andar pés trás pés

pelo borde de um vulcão!

Este modo de entender a lei e os mandamentos é alheio a nossa fé; ou melhor dizendo, é oposto. Começou
com a idéia que difundiu um mau frei chamado Guilherme de Ockam, quem pensava que Deus nos manda
coisas com certa arbitrariedade. Ockam reconhecia que para nos salvar temos que cumprir o que Deus nos
manda; mas também dizia que Deus poderia perfeitamente mudar de opinião e nos mandar o contrário do
que nos manda agora, e fazer que o que agora é vício passe a ser virtude, e o que agora é virtude se qualifique
como vicioso. Chegou a dizer que se Deus em lugar de mandar que o amemos sobre todas as coisas
preceituase que lhe tenhamos ódio, o ódio a Deus seria virtuoso e obrigatório!. Ockam fundou o voluntarismo
puro que afirma que é a vontade que determina o bem e o mal, independentemente da inteligência. Faz já
vários séculos que vamos pagando o pato de seu equívoco: todos os que acreditam que uma má ação (como
a anticoncepção, a esterilização ou o aborto) é lícita porque a lei o permite, são filhos legítimos de Ockam,
como são seus brotos os que na Cúpula da Terra, celebrada no Rio de Janeiro em 1997, disseram: "Há que
elaborar uma nova ética para um mundo novo, um novo código universal de conduta: substituir os dez
mandamentos pelos dezoito princípios desta carta". E os dezoito princípios dessa carta não faziam outra coisa
que afirmar a licitude da anticoncepção e o aborto, o direito à esterilização, o direito dos homossexuais e
lésbicas a casar-se e adotar meninos, o direito a repartir anticonceptivos aos menores de idade, etc..
As coisas são muito distintas, e devemos ter muito claro em nossa mente (e esta terá que conservá-la fria).
Os mandamentos divinos, assim como a lei natural em que estão contidos, não só emanam da Vontade
Divina, mas também fundamentalmente de sua Inteligência. Como ensinsa a Escritura, a Tradição, o
Magistério, a Teologia e o senso comum que Ockam se esqueceu de consultar: a lei divina é o plano da
Sabedoria de Deus. Por isso o Salmo 107, mencionando a atitude dos pecadores diz: rebelaram-se contra os
mandamentos, desprezando o Plano do Altíssimo (Sal 107,6). Este é o Plano segundo o qual criou todo o
universo e o dirige e cuida. Plano segundo o qual tem feito todas as coisas de uma maneira determinada.
Como diz a Escritura: Você todo o dispôs com medida, número e peso (Sb 11,20).

Cada natureza determinada só pode ser aperfeiçoada por bens determinados, como em cada fechadura só
entra uma chave; se colocar a chave equivocada quebro a fechadura. Por esta razão em cada ser do universo,
incluído o homem, encontramos inclinações naturais para os bens que as aperfeiçoam. Procurar esses bens,
portanto, não é só uma obrigação, é um "desejo", uma "tendência" da natureza, é uma "vocação". Porque o
bem atrai aquilo para o qual é bem.

Já dissemos que essa lei se condensa no expresso pelos Dez Mandamentos; portanto, os mandamentos não
fazem a não ser nos indicar os "bens" que nos aperfeiçoam e nos ajudam a nos precaver dos males que nos
degradam e rebaixam arruinando nossa natureza. Também dissemos que esses mandamentos estão
gravados em nossa natureza e também foram revelados, por quê? Porque com o pecado, o homem perdeu
seu norte moral e religioso e trouxe sobre sua consciência o embotamento. Ficou com o livreto, mas se tornou
míope para lê-lo; parece um curto de vista tentando ler à meia luz. Por este motivo, quando Moisés desceu
do Monte Sinaí onde Deus lhe revelou sua lei, trazia em realidade a misericórdia de Deus esculpida em duas
pranchas de pedra. Deus repetiu para o homem surdo e cego os mandamentos divinos. A sua vez, Jesucristo,
ao fundar a Nova Lei, interiorizou e elevou pela graça essa mesma lei repetindo várias vezes a necessidade
de observar os mandamentos de Deus. No Sermão da Montanha, Jesus revelou o sentido originário dos Dez
Mandamentos, mostrando todas suas exigências e lhes dando pleno cumprimento. Deste modo, Jesucristo
revelou o intuito primitivo de Deus sobre o homem. Cumpre-se assim o que diz o Salmo: Todos seus
mandamentos são verdade (Sal 119,86). A verdade sobre o homem.

A Lei divina é, pois, um farol, uma luz esplêndida que vai iluminando nosso caminho.

Como o jovem guardará puro seu caminho?

Observando sua palavra (Sal 119,9).

Guardar "puro" o caminho é guardá-lo seguro... Que melhor educação poderá fazer "entender" a sabedoria
escondida nos mandamentos de Deus? Não basta sabê-lo: terá que entendê-los.

Em seus regulamentos quero meditar

e olhar seus caminhos (Sal 119,15).

Abre meus olhos para que contemple... (119,18).

Seus mandamentos não me oculte (119,19).

Faça-me entender, para guardar sua Lei

e observá-la de todo coração (119,34).

O que significa "conhecer" os mandamentos? Três coisas: primeiro, sabê-los; segundo, conhecê-los
interiormente; terceiro, entender sua íntima e indissolúvel conexão.

O primeiro é o mais fácil. A maioria dos cristãos aprenderam em seu catecismo, ou em sua família, quais são
os dez mandamentos da lei de Deus (embora não todos, para vergonha dos cristãos e dos sacerdotes que
os devem ensinar). Mas para conhecê-los bem terá que meditá-los no coração:

Com meus lábios contei


todas as sentenças de sua boca.

No caminho de seus mandamentos me deleito

mais que em toda riqueza.

Em seus regulamentos quero meditar

e olhar os seus caminhos.

Em seus preceitos tenho minhas delícias,

não esquecendo sua palavra (Sal 119,13-16).

Ó, como amo sua lei!

Todo o dia a estou meditando (Sal 119,97).

O segundo significa compreender o valor de cada mandamento, quer dizer, todo seu conteúdo. Deve-se ver
se todos sabem tudo o que cada mandamento implica. Por exemplo, não todos sabem que cada mandamento
inclui um aspecto positivo (um bem que terá que procurar ou defender) e um aspecto negativo (proibem os
atos que põem em perigo esses bens). Os mandamentos tutelam, quer dizer, protegem, defendem e
promovem os bens fundamentais da pessoa. Os bens sem os quais, uma pessoa não pode nem maturar,
nem aperfeiçoar-se, nem ser feliz. Assim, por exemplo:

O primeiro mandamento (Amará ao Senhor sobre todas as coisas) abrange todas nossas relações teologales
com Deus, ordena nossos atos de fé, esperança e caridade; e também nos exercita na virtude da religião com
os atos de adoração, oração, sacrifícios, etc. Nos preserva de todas as perversões religiosas que ameaçam
ao homem: a superstição, a idolatria, a irreligión, o ateísmo, o agnosticismo.

O segundo mandamento (Não tomar o Nome de Deus em vão) engendra em nós o respeito por Deus e por
todo o sagrado, dá-nos um autêntico sentido da religião, e suscita o louvor de Deus em nossos lábios.

O terceiro mandamento (Santificar as festas) faz-nos aprender a dedicar nossa vida a Deus, e também nos
ensina a saber descansar e cultivar a vida familiar, cultural, social e religiosa.

O quarto mandamento (Honrar os pais) conquista-nos as virtudes familiares e sociais: o respeito entre pais,
filhos e irmãos; faz de toda família uma "igreja doméstica", e humaniza e cristianiza toda a sociedade.

O quinto mandamento (Não matará) ensina-nos a respeitar e valorar o dom da vida e a dignidade de toda
pessoa humana, garante a paz na sociedade e no mundo.

O sexto mandamento (Não cometer atos impuros) educa na virtude da castidade e no domínio das emoções,
e portanto, garante a verdadeira liberdade humana nos liberando da escravidão das paixões desordenadas.
Faz brilhar a castidade em todos seus regimes: na virgindade consagrada, no noivado, no matrimônio.
Garante a fidelidade entre os maridos.

O sétimo mandamento (Não roubará) ordena nossas relações com os bens materiais. Ajuda-nos a ser
respeitosos dos bens, a nos separar deles, a ser generosos com o que temos, a ser justos em nossa vida
trabalhista e econômica, ensina-nos a amar e ajudar aos mais pobres.

O oitavo mandamento (Não dar falso testemunho nem mentir) faz-nos amar a verdade e viver na verdade.
Garante a honradez e a franqueza entre os homens. É objeto de verdadeira amizade.

O nono mandamento (Não desejar a mulher alheia) leva a castidade e a pureza ao campo dos pensamentos
e desejos, faz-nos puros de coração e verdadeiramente livres.
O décimo mandamento (Não cobiçar os bens do próximo) ordena nosso coração para os bens terrenos e nos
libera da tirania da cobiça e da avareza e nos tira a tristeza que todo apego produz.

Compreende-se assim que o livro dos Atos dos Apóstolos, chame os mandamentos Palavras de vida (At
7,38).

Educar segundo os mandamentos significa, segundo meu ponto de vista, fazer entender quais são os bens
aos que nos conduzem os mandamentos, fazê-los valorar como bens, quer dizer, apresentá-los como
"amáveis", e fazer compreender por que é necessário amá-los e praticá-los. Também significa fazer entender
que não só "terá que cumprir porque Deus manda", mas sim "Deus manda porque neles está nosso bem e
nossa felicidade". Antes que mostrar sua Autoridade, Deus mostra sua infinita Bondade ao iluminar desta
maneira nosso caminho para a felicidade.

Devemos nos convencer que jamais seremos felizes se não vivermos estes bens em nossa vida. Não somente
porque não cumprindo os mandamentos não se pode salvar, mas também porque seremos uns infelizes
incluso nesta vida terrena; quer dizer, não passaremos de ser medíocres.

Os mandamentos, pois, não são um alambrado que nos limita e castiga, nos proibindo cruzar ao campo feliz.
Pelo contrário, são um Farol Sobrenatural que nos conduz pelo caminho seguro em meio das tempestades
da vida. São guias luminosas em nosso itinerário de perfeição. Recordemos o que diz o Salmo:

A lei de Javé é perfeita,

consolo da alma,

o juízo de Javé, veraz,

sabedoria do singelo.

Os preceitos de Javé são retos,

alegria do coração;

o mandamento de Javé é claro,

luz para os olhos...

Os julgamentos de Javé são verdade

justos todos eles,

apetecíveis mais que o ouro,

mais que o ouro refinado;

suas palavras mais doces que o mel,

que vai escorrendo dos favos (Sal 19,8-9. 10b-11).

Sua palavra é uma tocha para meus pés,

uma luz em meu atalho (Sal 119,105).

3. Os mandamentos e nossa maturidade

Se alguma vez escutas que uma pessoa amadurecida não se deixa dirigir por nada nem por ninguém e que,
por isso, é imaturidade "atar-se" a qualquer lei ou a qualquer mandamento, não trague essa pílula! Animo-me
a te dizer que a realidade é tão distinta deste slogan que chega a ser precisamente o contrário. Porque, se
tiver entendido o que havemos dito até aqui, compreenderá que todo processo de autêntica maturação passa
por fazer carne o que os mandamentos preceituam. A imaturidade afetiva, psicológica e espiritual, sempre
afunda suas raízes na incompreensão de um ou mais de um dos mandamentos e, portanto, na ausência dos
bens que eles nos exigem manter firmes em nossa vida. Perguntemos, se não, a qualquer psiquiatra ou
psicólogo, quais são os tipos de imaturidade e nos responderá que correspondem às pessoas que são
incapazes de levar adiante uma vida familiar, ou são incapazes de viver a castidade própria de seu estado,
ou aqueles que são instáveis em seus compromissos, os que mesclam sempre a verdade com a mentira, os
que são dependentes de coisas supérfluas, os que não encontram sentido à vida, os que são incapazes de
perdoar os ultrajes, os ressentidos, os irremediavelmente supérfluos, etc. A todos estes falta algum bem que
poderiam alcançar se respeitassem os mandamentos divinos.

Que bom programa de educação para os pais, professores, catequistas e sacerdotes, é o ajudar a
compreender a Sabedoria dos mandamentos de Deus!

Não me refiro só a que deveriam ensinar quais são os mandamentos, mas sim a que deveriam ensinar a vivê-
los. Às vezes me perguntam: que coisas devemos ter em conta para formar a nossos filhos, ou a nossos
alunos, ou a nossos dirigidos no caminho da maturidade ou da perfeição? Pois há que começar olhando o
que apontam os mandamentos de Deus. Por aí começou Jesus Cristo. Ao jovem rico que se aproximou lhe
perguntando: «Professor, o que tenho que fazer de bom para conseguir a vida eterna?».... Se quer entrar na
vida, guarda os mandamentos». «Quais?» –diz ele. E Jesus disse: «Não matará, não cometerá adultério, não
roubará, não levantará falso testemunho, honra a seu pai e a sua mãe, e amará a seu próximo como a ti
mesmo (MT 19,16-19). Os mandamentos, ao nos inclinar sobre os bens fundamentais se convertem em
condições para adquirir as virtudes. E só o homem virtuoso é homem em sentido autêntico, pleno e
amadurecido.

Entretanto, devo insistir em um terceiro elemento.Trata-se do fato, muitas vezes insuficientemente


compreendido, de que os mandamentos devem ser observados em todo seu conjunto. Quer dizer, ou se
observam todos ou o edifício se desmorona. Nenhum vendedor de propriedades nos ofereceria uma casa
dizendo: "Eu te recomendo esta casa: é muito ampla, tem dois pisos, terraço, vista ao mar, gás natural e
telefone; é verdade que tem uma greta que já partiu os alicerces e alguma das vigas... mas não deixa de ser
muito cômoda". Todo desmoronamento começa por uma greta!

O que pensar então quando alguém nos diz que ele é bom porque não rouba? Dá vontade de dizer: Continua,
faltam só mais oito coisas!

O Papa João Paulo II disse claramente fazendo referência aos atuais crimes contra a vida: "O conjunto da Lei
é, pois, o que salva plenamente a vida do homem. Isto explica quão difícil é manter-se fiel ao "não matará"
quando não se observam as outras palavras de vida (Hch 7,38), relacionadas com este mandamento. Fora
deste horizonte, o mandamento acaba por converter-se em uma simples obrigação extrínseca, da que muito
em breve vão querer ver limites e se buscarão atenuações ou exceções".

Muitos que terminaram em autênticos desastres morais começaram claudicando por algum mandamento
particular. Um pecado chama a outro pecado.

Se não cumprirmos todos os mandamentos, não devemos nos enganar acreditando que cumprimos a lei de
Deus. Por isso se deve insistir com todas as forças: os pais e educadores não podem contentar-se com que
os meninos e jovens evitem só o "pior" como não se drogar ou não cometer delitos– mas sim devem educá-
los em todos os valores da pessoa. Quantos pais vêem que seus filhos se iniciam no alcoolismo ou na droga
depois de ter dado tantas recomendações de que não o fizessem! Sim, fizeram muitas recomendações, mas
só em um sentido: o da droga ou do álcool. Mas descuidaram de educá-los na castidade, no pudor, no domínio
de si, na prudência sobrenatural, na modéstia,na oração, em evitar a frivolidade. Não se pode fazer um grande
homem nenhuma grande mulher só com um par de virtudes!

No fundo devemos entender e fazer entender que há uma gigantesca verdade escondida naquelas palavras
de Cristo: que observa meus mandamentos e os guarda, esse me ama... Se alguém me ama, guardará minha
Palavra... quem não me ama não guarda minhas palavras (Jn 14-21-24). Digo "verdade escondida" porque
muitos entendem esta frase de um modo que está bem, mas é incompleto. Pensam que Jesus está dizendo
que quem o ama aceita a condição de cumprir suas palavras ou mandamentos. Mas Jesus Cristo também
está dizendo que o mesmo amor para Ele os levará a amar o que contêm suas palavras ou mandamentos.
Para quem ama verdadeiramente os mandamentos não são condições, ou obrigações, senão que se trata de
verdades "atraentes"; os mandamentos lhes manifestam como "viae amoris", atalhos do amor.

Para o que ama a Deus com coração puro, a castidade, o respeito, a veracidade, e outros bens contidos nos
mandamentos, atraem-no, deslumbram-no, apaixonam-no. Para o duro de alma, em troca, cumprir todos
estes bens são só uma dura carga que deve transportar se não querer condenar-se. Esta segunda visão dos
mandamentos é a que tinham muitos homens antes da encarnação do Verbo Divino. A primeira é a que têm
os que pertencem em espírito ao Novo Testamento, porque a graça infundida nos corações nos inclina por
amor a quão mesmo mandam os mandamentos. Por isso diz Jesus: Meu jugo é suave e minha carga ligeira
(MT 11,30).

Para o coração duro e principiante, os mandamentos são como um turno com o dentista: vamos porque do
contrário nos caem os dentes, mas com que gosto fugiríamos! Para o coração amante o que prescrevem os
mandamentos os sonha igual a um menino em quem se impõem a obrigação de comer sorvete todos os dias.
Não acredito que seja necessário repetir duas vezes!

Muitas vezes, os educadores (penso em pais, professores e catequistas) caem neste engano, o de ensinar
os meninos e os jovens a respeitar o próximo, de não roubar nem mentir, de evitar as más conversações e
os atos impuros, de ter que ir a Missa todos os domingos, e não caluniar, etc., insistindo só na obrigação, o
dever, o castigo que merecem os que não cumprem isto, etc., é apontar a educação para um rumo
equivocado.

Olho, não quero dizer que isto não seja também necessário! Há que ser realistas. Santo Tomás, comentando
o velho filósofo Aristóteles, dizia: "as palavras persuasivas podem incitar e mover ao bem a muitos jovens
generosos, que não se acham sujeitos a vícios e paixões e que possuem nobres costumes, assim que têm
aptidão para as ações virtuosas", mas "há muitos homens que não podem ser incitados a ser bons pelas
palavras, pois não obedecem à vergonha temente e desonestidade a não ser que sejam refreados pelo temor
dos castigos. Em efeito, não se separam das más ações pela estupidez das mesmas mas sim porque temem
os castigos ou penas, porque vivem segundo as paixões e não segundo a razão... e fogem dos dores
contrárias aos deleites procurados, as quais dores são inferidas pelos castigos. Mas não entendem o que é
verdadeiramente bom e deleitável, e tampouco podem perceber ou gostar de sua doçura".

Isto é certo. Mas reduzir toda a educação a isto é um engano. Não há que esquecer que os próprios pais
começam a educar seus filhos antes que qualquer paixão comece a dominá-los. Eles sim podem começar a
educá-los no amor ao bem e aos bens mandados por Deus.

Portanto, a principal ênfase que deve dar-se na educação, é fazer brilhar as virtudes ante os olhos dos
meninos e jovens. Para que? Para que se apaixonem por elas. O amor fará logo o resto. Claro que isto é
muito mais exigente! Porque não se pode ensinar a amar o que alguém não ama. Nem lhes exigir a outros o
que a gente mesmo não faz em sua vida. O primeiro ensino é o do exemplo; mas muitos não se animam a
dar exemplo. A muitos resulta comprometedor tratar de apaixonar a seus filhos de bens e valores tais como
o ser fiéis a Deus, a obediência à Igreja, o amor pelos pobres, a modéstia e a castidade, o desprendimento
das coisas, etc... Têm medo que seus filhos lhes perguntem: "Mas, se isto é tão bom, por que vocês não
vivem assim?". Por isso, aos pais ou catequistas que não querem ser virtuosos, que não querem ser Santos,
resulta-lhes mais cômodo ensinar os mandamentos como se fossem leis de trânsito: "proibido dobrar em Ou",
"máxima 60", "velocidade controlada por radar", "mantenha a direita", "não ultrapasse nas curvas"... O
caminho da vida se faz muito difícil visto só desde esse ponto; e por isso, na primeira crise religiosa ou moral,
pisam no acelerador, embora saibam que podem chocar de frente com um caminhão.

Portanto, resumindo o que quis dizer aqui:

1º Todos os educadores devem preparar-se muito melhor no conhecimento da lei moral de Deus. Deverá
saber-se que é uma lei de virtudes, e que a essas virtudes apontam os mandamentos; e que só se entende a
beleza da lei divina quando a cumpre toda inteira. Se você está estudando um professorado, uma carreira
pedagógica, um magistério, tenha isto muito em conta.

2º Dever-se-á interiorizarse com a Lei de Deus. Dever-se-á conhecê-la de modo saboroso, meditado,
interiorizado. Conhecendo não só o que manda mas também o por que se manda. Conhecer o brilho próprio
de cada virtude.
3º Dever-se-á conhecer também os grandes homens e mulheres que têm feito brilhar em suas vidas as
virtudes, como Dom Orione ou a Mãe Teresa de Calcutá a caridade com os excluidos, os inumeráveis mártires
da fortaleza, o padre Miguel Pró com a alegria e o humor nas provas, São Francisco Xavier com o zelo
missionário, María Goretti com a virgindade até o martírio, Santa Teresinha com a fidelidade às coisas
pequenas, etc.

4º Dever-se-á tomar o trabalho de falar com os filhos ou com nossos alunos e amigos sobre os mandamentos
e as virtudes, e tomar o tempo para educá-los e aproximá-los de Deus. Dever-se-á prepará-los para a vida e
para as dificuldades. O Padre Lebbe, que foi um missionário que chegou à China a princípios de 1900, quando
logo terminava a perseguição dos Boxers que deu muitos mártires à Igreja, contava em suas cartas
emocionantes exemplos de como os pais preparavam a seus filhos para que não abandonassem a fé em
meio das torturas. Ele conta de um pai que "advertido do perigo que corria, reunia diariamente a seus filhos
lhes exortando a manter-se corajosamente até a morte na fé de Cristo. Este homem perguntava a seu filho
menor: ‘Se os pagãos oferecessem o perdão em troca de renunciar a Cristo,o que você responderia?’. E o
menino respondia: ‘Responderia: Sou cristão’. O pai continuava: ‘E se ameaçam com a morte e cortam suas
mãos ou querem arrancar seus olhos, que contestará?’. O menino repetia com doce voz: ‘Que sou cristão’.
Este pai –acrescenta o Padre Lebbe– sofreu o martírio e foi admirado inclusive pelos pagãos pela paz e sorte
que seu rosto refletia".

Esses eram pais que amavam mais a virtude e a vida eterna de seus filhos que sua vida ou bem-estar terreno.
Amava muito a seu filho a mãe do menor dos mártires chineses canonizados, Andrés Wang Tianquing, de 9
anos; os pagãos quiseram salvar ao menino, mas a custa de sua fé; nesse momento sua mãe disse com voz
firme: "Eu sou cristã, meu filho é cristão. Terão que matar os dois". E Andrés morreu de joelhos olhando a
sua mãe com um sorriso; hoje os dois são Santos.

Poderíamos dizer muito mais a respeito deste tema. Mas acredito que basta para mostrar a importância de
educar nas virtudes, nos apoiando em uma visão mais profunda dos mandamentos de Deus.

Quero terminar com uma antiga anedota. Um rito de Iniciação dos meninos judeus na vida da Sinagoga, a
começos de 1600, tinha em sua cerimônia este diálogo: o rabino, pondo a ponta do Cilindro da Lei no peito
do menino perguntava:

–O que sente? –E o menino respondia:

–Sinto um coração que pulsa. –Então o rabino replicava:

–É o Coração de Deus! Escuta sua Palavra. Cumpra sua Lei!

A lei de Deus é o Coração vivente de Deus. Quem pretende te arrancar esta lei não quer outra coisa que
matar teu coração.

**

Há quem não aceita uma lei natural –ou os mandamentos divinos– porque isto implica limitar sua liberdade,
mas devemos recordar que a liberdade é um grande valor, mas também é um término análogo que pode
aplicar-se a coisas muito diversas, inclusive perdendo o sentido verdadeiro. Não tudo o que leva o nome de
liberdade é realmente liberdade, nem toda dependência é uma escravidão. Se alguém está encerrado numa
jaula e se escapa dela, o ato de escapar bem merece chamar-se liberação e seu prêmio poderá denominar-
se liberdade. Se alguém está dominado pela droga ou pelo álcool e consegue se desprender de seus laços,
bem pode chamar a isto liberação e a pessoa será realmente um homem livre. Se tiver ficado encerrado num
elevador, é liberação sair dele e é liberdade experimentar de novo a respirar ar puro na rua. Se alguém está
arrasado pelas penas e as enfermidades, libertar-se-á quando se curar e será livre ao recuperar sua saúde.
Mas se alguém ao escalar uma montanha escorrega no gelo e fica pendurando no vazio sustentado só pela
corda de segurança, não chamará liberação ao gesto de cortar a corda, nem poderá considerar liberdade ao
se converter numa mancha vermelha sobre o branco glacial que aguarda centenas de metros mais abaixo.
Se alguém te arrancar os tubos de oxigênio com que mergulhas a 80 metros de profundidade, não chamará
liberação a tal imbecilidade, nem te considerará livre por flutuar afogado na água salgada. Tirar um peso de
cima nem sempre é liberdade, como terá compreendido muito bem a pobre Maria Antonieta no dia que
injustamente a guilhotina a aliviou do peso de sua cabeça. Nem todo laço que nos ata nos escraviza
verdadeiramente, como poderia te dizer, se falar pudesse, uma marionete que só vive num "estar pendurado"
do animador que lhe dá vida no mundo de um pequeno teatrinho de brinquedo.

Há, pois, liberdades que são escravidões; e servidões que são independências, como diz a Bíblia quando nos
recorda aquela sonora e formosa sentença: servir a Deus é reinar.

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Santo Tomás, Suma Teológica, I-II, questões 94 e seguintes.

–J. M. Aubert, Lei de Deus, leis dos homens, Herder, Barcelona 1979.

–Finnis, John. A lei natural, a moralidade objetiva e o Vaticano II, em: Mai, W., Princípios de vida moral,
EIUNSA, Barcelona 1990, pp. 83-102.

–Mai, W. A lei natural e a moralidade objetiva: uma perspectiva tomista, em: Princípios de vida moral, EIUNSA,
Barcelona 1990., pp. 103-124.

–J. Mausbach e G. Ermecke, Teologia Moral Católica, I, Pamplona 1971.

–J. Messner, Ética social, política e econômica, à luz do direito natural, Madrid 1967.

–––––––––––, Ética geral e aplicada, Madrid 1969.

–O. N. Derisi, Os fundamentos metafísicos da ordem moral, Madrid 1969.

–Ildefonso Adeva, Lei moral, Grande Enciclopédia Rialp, Madrid1991.

–Bernardino Montejano, Lei. Colocação geral, Grande Enciclopédia Rialp, Madrid1991.

–L. Lachance, O conceito de direito segundo Aristóteles e Santo Tomam, Buenos Aires 1953.

–S. Ramírez, Doutrina política de Santo Tomás, Madrid 1952.

–G. Soaje Ramos, Sobre a politicidad do direito, Mendoza 1958.

–C. Soria, Introdução ao tratado da Lei, em Suma Teológica do S. Tomás de Aquino, ed. bilíngüe BAC, VI,
Madrid 1956.
VIII. A verdade roubada sobre sua sexualidade

A verdade de que a castidade é possível

Uma das verdades que têm maior incidência na vida de uma pessoa é a relacionada com sua sexualidade:
deveria controlar seus impulsos sexuais?, ou antes ainda desta pergunta: são controláveis nossos impulsos
e desejos? Nossa sociedade não tem muito claro este ponto; é mais, é este um dos campos onde mais
confusão encontrará; encontrará-te com amigos (que amigos!), professores (vá educadores!) e sobre tudo os
que têm a sua acusação os meios maciços de comunicação, que tentarão encher sua cabeça com idéias
sexualizadas do homem e da mulher. Mais ainda se está estudando alguma das carreiras relacionadas com
a psiquiatria e a psicologia, pois, como dizia um eminente escritor argentino (Leonardo Castellani), "não há
outra ciência onde seja tão fácil dar gato por lebre e que tanto convide aos enganadores". Pode ler, se não,
os livros sérios sobre o Sigmund Freud e suas teorias (não as mitificações que correm sobre ele).

Não é difícil entender este fenômeno; certamente a tendência ao prazer sexual é uma das mais fortes de
nossa natureza (porque precisamente por este meio a natureza garante a conservação da espécie). É fácil
que se uma pessoa se degenerar, faça-o reduzindo a realidade do homem ao sexo, e identifique a felicidade
com o prazer sexual. Tampouco é difícil que confunda as raízes de toda enfermidade com algum problema
de repressão sexual, nem que, como lógica conseqüência, reduza toda terapia e cura a liberar esse instinto
sexual reprimido. Junta todo isto e terá a substância da doutrina freudiana.

Imagina o que lhe espera, nesta visão, à doutrina ensinada por nossa fé, com um ideal de vida casta, de
noivado puro, de matrimônio fiel e monogâmico. Se não lhe tacharem de dissimulado ou dissimulada, pelo
menos lhe considerarão transtornado ou transtornada.

Esteja onde esteja (pois embora principalmente dirijo a quem estuda em uma universidade, estas páginas
podem perfeitamente ter um alcance mais universal), sei que está submetido a terríveis pressione sobre seu
instinto sexual. Já não só é a televisão, o cinema e as revistas dedicadas ao sexo; hoje em dia a desordem
sexual (inclusive a pornografia mais descarada) vem envolta em literatura de entretenimento (novelas,
histórias) e pseudo científica, em cadeiras de diversas índole, e te assaltará no meio principal de nossa
comunicação moderna: a Internet (o negócio do sexo é o terceiro negócio em importância que se dirige no
mundo de Internet, depois do hardware e do software; e para esta autêntica máfia da pornografia, você é um
cliente que terá que conquistar!). E sua vulnerabilidade aumentará exponencialmente se suas idéias sobre o
sexo e a castidade são confusas, ou pior ainda se estão envenenadas. Infelizmente nossa escola moderna,
em amplos setores, desempenha um papel corruptor neste sentido (pensa somente no que muitos ensinam
sob o disfarçado título de educação sexual).

Este ponto poderia esclarecer o de duas maneiras: a primeira expondo o que ensinam alguns dos pensadores
principais sobre este tema (como Freud e muitos de seus sequazes) e fazendo as críticas pertinentes ao caso;
o qual é algo que já foi feito em estudos apropriados e profundos e não faria mais que resumir e repetir. O
outro modo, que é o que melhor quadra com meu propósito neste livro, é te mostrar que a castidade é
necessária e é possível; é o que aqui te ofereço.

1. Castidade e moderação

A castidade, também chamada pureza, é uma virtude, parte da virtude da moderação, que nos inclina a
moderar o uso da faculdade sexual segundo a razão (iluminada pela fé, no caso da castidade sobrenatural).
A sexualidade é um bem eminente da pessoa. O pensamento cristão foi sempre muito cristalino a respeito,
ao menos em seus pensadores mais preclaros, podem-se destacar algumas exceções que tiveram uma visão
pessimista da sexualidade, como os que chegaram a pensar e afirmar que no Paraíso terrestre não teria
acontecido propagação do gênero humano por via sexual se Adão não tivesse pecado. De todos os modos
se adjudica à paternidade de Tertuliano (já herege montanista) a visão pessimista da sexualidade humana.
Sobre a autêntica visão dos grandes pensadores, como Santo Tomás, podem-se ler as páginas que lhe
dedicou Josef Pieper em seu livro "As virtudes fundamentais".

Etimologicamente, a palavra castidade vem de castigo, não no patético sentido que alguém poderia imaginar-
se a não ser só entendida como alusão a que por meio deste hábito a razão submete o apetite concupiscente
a sua medida razoável. É a virtude moderadora do apetite genésico ou sexual. Sua matéria própria é a
atividade propriamente generativa, já que os atos secundários da sexualidade (olhadas, tatos, etc.) são
matéria da pudicícia, embora segundo Santo Tomás, esta não seja uma virtude especial distinta da castidade,
a não ser uma circunstância da mesma.

A castidade tem como finalidade imediata o domínio racional e moral sobre o instinto sexual. O estado da
natureza humana exige uma virtude que seja disposição permanente e firme da alma que tenha tal objeto. O
apetite sexual é muito intenso e no homem não está regido acertadamente pelo instinto, como ocorre nos
animais. Uma fantasia desordenada pode levar a vida sexual do homem a numerosos excessos de que não
são capazes os animais. As normas da lei natural que regem a vida sexual humana ficariam ineficientes se a
razão se limitasse a conhecer senão existisse ao mesmo tempo uma virtude que inclinasse a vontade a seu
cumprimento lhe comunicando o vigor necessário para isso. Daí que a virtude da castidade seja indispensável
para a perfeição do homem interior e para a justa harmonia entre o corpo e a alma.

Psicologicamente falando, a castidade é um hábito moral pelo qual a pessoa humana ordena seu instinto
generativo (o apetite concupiscente) fazendo que este procure o autêntico bem deleitável, na medida em que
este aperfeiçoa à pessoa humana, e controla que não se desvie para bens deleitáveis contrários ao bem
integral da pessoa. Este hábito, como todos os hábitos ou virtudes morais, atua em correlação com a virtude
da prudência que lhe dita o justo meio (quer dizer, o "verdadeiro" bem concupiscente) que deve procurar em
cada momento segundo o próprio estado de vida.

Este hábito é, propriamente falando, uma inclinação (ou atração) impressa no apetite concupiscente (quer
dizer, na afetividade) para o bem sensível moral (quer dizer, para o bem concupiscente legítimo e ordenado
segundo os princípios morais). Em realidade a inclinação para o bem deleitável dos sentidos é constitutiva do
apetite sensível; o que acrescenta o hábito da castidade é a "docilidade" ou "consonância" (adquirida pelo
exercício e disciplina) desta inclinação com a "medida" virtuosa em que é lícito procurar e gozar destes bens
(segundo o próprio estado e situação). Para que se chegue a adquirir esta docilidade há dois elementos mais
que formam parte integrante do âmbito da castidade. O primeiro é um conjunto de princípios morais (neste
caso princípios sobre a sexualidade) que pertencem a diversos hábitos intelectuais, já seja ao hábito dos
primeiros princípios morais (chamado sindérese), ou a uma moral elementar (que está acostumado a adquirir-
se por tradições familiares, por formação religiosa –catecismo– ou inclusive por senso comum), ou talvez a
uma ética mais científica fruto do estudo pessoal. Estes princípios gerais são aplicados a cada situação
concreta pelo hábito da prudência, que sempre está presente em todo ato virtuoso da natureza que for (não
há virtude moral sem prudência, pois é esta a que determina a medida virtuosa em que todo hábito deve
exercitar-se em uma circunstância determinada). O segundo elemento é a ação da vontade, aperfeiçoada
pela justiça e suas virtudes anexas. A vontade, ordenada pelo amor ao bem, é o que "impera" (com o chamado
"império de exercício") dominando ao apetite sensível e aplicando-o à busca do bem sensível segundo a
medida em que este aperfeiçoa o sujeito (ou seja, na medida em que é lícito e virtuoso). Como resultado
deste contínuo domínio da vontade e de sua "aplicação" sobre o apetite sensível, neste se termina por plasmar
uma "forma" ou inclinação estável (a obrar sempre da mesma maneira) que é o que denominamos hábito
virtuoso ou "virtude".

2. O que nos diz a Bíblia sobre a sexualidade

Se tratarmos de olhar a idéia da sexualidade que nos apresenta a Sagrada Escritura temos que nos remontar
necessariamente ao relato da criação do homem e da mulher no Gênesis, não só por ser o primeiro mas
também por ser "normativo". Não devemos perder de vista que Jesus Cristo sobre o matrimônio em sua
discussão com os fariseus diz –contra a prática do divórcio– "ao princípio não foi assim". O "princípio"
apresenta uma norma, a da vontade divina sobre o matrimônio e sobre a sexualidade; Nosso Senhor a retoma
em sua prédica moral; nós também devemos fazer isso. No relato do Gn 1,26-31 o homem é criado macho e
fêmea (v.27), portanto se destaca a criação da bissexualidade, a que é querida por Deus; em ambos se dá
imagem de Deus; a seguir se acrescenta que Deus ordena e benze a fecundidade (v.28), ligando-a ao
matrimônio. No relato complementar do Gn 2,18-24 aparece salientado especialmente o aspecto de ajuda
mútua e sociabilidade (v.18); precisamente a este texto apela Cristo para falar da união indissolúvel: ao
princípio não era assim ou seja, não havia divórcio (MT 18,1-9); a bondade do sexo assim que saído das
mãos de Deus fica posto de manifesto na harmonia e limpeza de consciência dos primeiros pais: estavam
nus e não se envergonhavam (v.25). Há também outros elementos de soma importância que se destacam
destes primeiros capítulos.

Uma visão da sexualidade no Antigo Testamento não pode deixar de lado os escritos sapienciais (em especial
o Cântico dos Cânticos) e os livros proféticos; em todos estes o amor conjugal –descrito inclusive com
caracteres passionais– é usado como símbolo do amor entre Deus e seu povo (e também do amor de Deus
por cada alma singular). Destaquemos que o fato de que o amor humano sirva para ilustrar o amor de Deus
para os homens, implica também a capacidade de que o amor divino ilumine (faça-nos entender) até certo
ponto o amor humano. No Antigo Testamento, talvez sem muitos desenvolvimentos, ficam evidenciados os
grandes dons do amor e da sexualidade: a fidelidade, a lealdade, a indissolubilidade, a fecundidade, etc.

Indo ao Novo Testamento, o texto mais importante –e completo– está nos capítulos 6 e 7 de 1 Coríntios. Em
1 Cor 6,12-20 São Paulo apresenta uma visão clara e equilibrada do prazer do corpo contra o laxismo e contra
o rigorismo moral que já se apresentavam em seu tempo como inimigos da visão cristã da sexualidade. O
Apóstolo valoriza o corpo em sua dimensão religiosa: é membro de Cristo (v.15); destinado à ressurreição
(v.13-14); templo do Espírito Santo (v.19). Igualmente o texto condena a fornicação por um duplo motivo:
natural (desonra o corpo: v.18), sobrenatural (sacrilégio contra o Espírito Santo). E se acrescenta que o corpo
pode e deve glorificar a Deus (v.20). No texto de 1 Cor 7,1-10 se mostram alguns aspectos notáveis: a
castidade e a virgindade é algo bom (v.1), mas também é lícito o matrimônio (v.2) e assinala o "débito
conjugal" como uma obrigação mútua (v.3). São Paulo fala do efeito do matrimônio como uma mútua posse
por parte do varão e a mulher (v.4); e quando fala da abstinência periódica da união sexual, declara que para
que seja lícita deve ser realizada com mútuo consentimento e para um fim honesto como a oração (v.5).
Finalmente recomenda a virgindade (v.8-9) e recorda o tema da indissolubilidade matrimonial (v.10-11).
Outros textos do Novo Testamento aparecerão ao longo destas páginas.

3. Por que esta virtude

O ser humano é algo complexo, que não pode ser reduzido a uma só dimensão sem ser, ao mesmo tempo
destituído de sua dignidade; quer dizer, destruído. Assim todas as reduções do homem são desumanizações.
O materialismo o reduz a sua dimensão mais baixa (seja o materialismo biologista que está na base do
moderno cientificismo; seja o materialismo animal, ou o materialismo evolucionista, etc.); o falso espiritualismo
o reduz a puro espírito desencarnado. As duas visões são falsas. O homem é um micro-cosmos que resume
em sua frágil entidade o universo inteiro: compartilha (o que os escolásticos diziam "comunica") com o
universo mineral, com o mundo vegetativo, com o animal ou sensitivo, e com o mundo espiritual. Todo ele é
um complexo mundo hierarquizado. A hierarquia tem como fruto a harmonia. Isto se explica dizendo que o
menos está subordinado ao mais, o inferior ao superior, servindo-o e permitindo desenvolver todas suas
virtualidades. Isto significa que enquanto o inferior (por exemplo o animal) mantenha-se subordinado e dócil
ao superior (a alma, a inteligência e a vontade), permite a esta desenvolver todas suas potencialidades. Esta
era a condição "original" do homem no Paraíso, se consideramos o relato bíblico do Gênesis. O homem em
sua origem gozava de uma harmonia apoiada em uma hierarquia de suas potências: o mundo exterior estava
sob seu domínio na medida em que em seu corpo se submetia a seus afetos, estes ao domínio da vontade e
a inteligência, e estas últimas potências serviam a Deus. Tudo isto era fruto do que a tradição católica chamou
"dons preternaturais" (imortalidade, impassibilidade, harmonia, etc.), jogo de dados por Deus à natureza
humana para garantir de modo gratuito esta harmonia (em definitiva para pôr as bases da amizade entre o
homem e Deus). O pecado original transtornou tudo rompendo a subordinação essencial: a da alma respeito
de Deus. Como conseqüência, todas as demais subordinações garantidas pelos dons preternaturais ficaram
transtornadas: as paixões escravizam à alma, o corpo se debilita e caminha para a morte, presa muitas vezes
dos instintos desbocados e compulsivos, o mundo externo arranca suor e lágrimas ao homem que tenta
submetê-lo.

Este quadro é chave para interpretar o que significa "bem integral do homem" (término que aparece em alguns
documentos magisteriais). Algo pode ser considerado bem "integral" (ou "verdadeiro e integral") quando é um
bem para toda a pessoa humana (e também para toda pessoa humana) e não para uma potência isolada
(inteligência, vontade, afetividade) ou para um aspecto particular de seu ser. Para que possa dar-se isto, uma
realidade não só deve ser boa em si (per se bona) mas sim deve reunir duas condições mais: não deve entrar
em conflito com outros bens da pessoa e, conseqüentemente, deve ter uma "medida" (in meio virtus). Há
realidades que são boas em si (a comida, o prazer sexual, o trato social) mas podem entrar em conflito com
o bem total da pessoa tanto porque contradizem diretamente (per se) outros bens da mesma pessoa (como
o prazer sexual para quem tem feito voto de celibato) ou indiretamente (per accidens), isto é, quando a
contradição vem pelo modo, o tempo, ou a medida em que se procura dito bem (pensemos no excesso de
comida –gula– ou a busca do prazer sexual de modo indevido).

Nenhuma pessoa sensata pode negar a validez desta consideração.

O ponto está talvez na discussão sobre o "modelo" de dito bem integral da pessoa. Pode estabelecer um
modelo válido para todo homem e mulher, tanto de nosso tempo como do passado e do futuro? Devemos
responder que sim; e dito modelo integral se apóia na lei natural, da qual já falamos no capítulo anterior.

4- Lei natural e castidade

Esta lei é a que fundamenta uma norma da castidade, como fundamenta também toda relação do ser humano
respeito de si mesmo, de sua relação com o próximo e com Deus.

No plano concreto da castidade a lei natural, quer dizer, o que nossa inteligência pode captar do plano divino
gravado em nossa natureza, devemos dizer:

1º que o primeiro que se observa é o complemento varão-fêmea (não só no plano físico, mas também no
psicológico e sobre tudo no genético); toda sexualidade deve ser, portanto, "heterossexual";

2º em segundo lugar devemos salientar o fim social da sexualidade: o exercício da sexualidade


(heterossexualidade, entende-se) é necessário para a perpetuação do gênero humano; este princípio exige
ser complementado, pois a perpetuação da raça humana não se obtém do simples emparelhamento entre os
indivíduos humanos de diversos sexos mas sim de sua união estável, pois a fragilidade e complexidade do
ser humano exige que o fruto do exercício da sexualidade (o menino) seja acompanhado e educado durante
um comprido período de tempo; disto se desprende que o matrimônio (união de um com uma para sempre)
seja a única forma natural em que se pode atuar adequadamente a vida sexual humana;

3º a terceira observação que podemos fazer é que a atração entre o varão e a mulher (quer dizer, entre o
macho e a fêmea da raça humana) não responde nem exclusiva nem primeiro à esfera física ou hormonal
(como nas demais espécies) mas sim nasce de um elemento psicológico e espiritual: o amor; não se trata de
um movimento puramente instintivo mas sim de um movimento livre; isto significa que o movimento que leva
a uso da sexualidade nasce de uma inclinação à doação de si mesmo à pessoa amada; isto é o que vem
significado com o término "unitivo": o fim do amor é a união e a doação; agora bem toda doação tende a ser
total (psicologicamente toda doação que não seja total não tem relação com o amor, pois este é total);
novamente isto nos leva a enquadrar o exercício da sexualidade dentro do marco matrimonial, pois uma
doação de si só é total quando é selada com um compromisso social e está aberta à vida (neste caso tal
doação é "total": implica doação do próprio ser, das próprias coisas e da capacidade pro-criadora, para toda
a vida, sem intenção de retratar);

4º a quarta observação é que fisicamente o varão e a mulher possuem os elementos próprios para expressar
em uma linguagem corporal os três primeiros elementos que temos observados: a sua inclinação e desejo de
doar-se corresponde nos indivíduos do outro sexo a capacidade receptiva não só de sua dimensão física mas
também de sua capacidade pro-criadora; isto nos leva a considerar que através de sua dimensão corporal o
varão e a mulher possuem as chaves de uma linguagem, quer dizer as palavras próprias (corporais) para
expressar este mútuo amor e para consumá-lo;

5º estes elementos que expressamos de forma positiva também podem expressar-se de forma negativa pois
a observação profunda da natureza física, psicológica e espiritual do varão e a mulher também nos permite
deduzir um uso da genitalidade contrário ao bem integral do ser humano; concretamente: um uso egoísta do
sexo (masturbação, pensamentos impuros); um uso infiel do sexo (a falta de fidelidade ao legítimo cônjuge
tanto de modo consumado como de modo interno: desejos e pensamentos infiéis); um uso infrutífero do sexo
(homossexualidade, uso da sexualidade fechado à vida); um uso circunstancial do sexo (a relação não
permanente nem comprometida, como acontece com o sexo entre pessoas não casadas), etc. Todas estas
expressões sexuais, destrutivas do verdadeiro amor e do bem integral da pessoa são proibidas (precisamente
por sua contradição com esse bem integral) pelo mandamento que exige "não cometer atos impuros".

5. Necessidade e função da castidade

O magistério da Igreja o expressou de uma maneira muito ajustada: "a alternativa é clara: ou o homem controla
suas paixões e obtém a paz, ou se deixa dominar por elas e se torna desgraçado".

Esta frase é a explicação de outra afirmação: "a castidade implica uma aprendizagem do domínio de si, que
é uma pedagogia da liberdade humana". A importância desta asserção fica de manifesto se dermos volta nos
conceitos: a liberdade humana exige como pedagogia o domínio de si por parte do ser humano; e a castidade
é um dos âmbitos onde se aplica dito domínio (talvez um dos mais importantes). A falta ou ausência da
castidade comporta a falta de domínio do homem sobre as forças mais capitalistas que experimenta em seu
interior; falta de domínio ou falta de controle equivale a escravidão, e escravidão é sinônimo de prostração,
derrota e desgraça.

Quando o documento magisterial que acabamos de citar indica que o homem voluptuoso (quer dizer, que não
tem domínio sobre sua afetividade –ou seja sua castidade) é desgraçado não faz nenhuma observação pueril
nem apela a presumíveis ameaças próprias de uma educação má encarada, mas sim estamos ante uma
verdade objetiva da psicologia experimental.

O texto do Catecismo explica sua afirmação com uma passagem da Gaudium et Spes: "A dignidade do
homem requer, em efeito, que atue segundo uma eleição consciente e livre, quer dizer, movido e induzido
pessoalmente de dentro e não sob a pressão de um cego impulso interior ou da mera coação externa. O
homem obtém esta dignidade quando, liberando-se de toda escravidão das paixões, persegue seu fim na livre
eleição do bem e se procura com eficácia e habilidade os meios adequados".

A castidade suporta a recuperação (na medida em que é possível recuperá-la) da harmonia original, quer
dizer, do domínio das potências afetivas inferiores por parte da inteligência e da vontade (ou dito ao reverso:
a submissão "política" do plano afetivo em relação ao plano racional). Santo Agostinho ensina: "A castidade
nos recompõe; nos devolve à unidade que tínhamos perdido nos dispersando". Não é obtida por um dom
preternatural mas sim pela virtude da castidade humana adquirida, elevada à ordem sobrenatural pela graça
ou acompanhada por uma virtude infusa complementar.

O Catecismo também ensina que "a castidade significa a integração obtida da sexualidade na pessoa, e por
isso na unidade interior do homem em seu ser corporal e espiritual". Isto quer dizer que sem a castidade a
sexualidade forma parte da vida de uma pessoa (inclusive pode ocupar grande parte da vida dessa pessoa),
mas não está "integrada" em sua pessoa. Ao não estar integrada, converte-se em um elemento
"desintegrador". A sexualidade deve ser humana"; o próprio da sexualidade humana é a capacidade de ser
uma ponte de "relação" com as demais pessoas e de "doação total" na relação particular do homem e a
mulher. Isto diferencia a sexualidade "humana" da sexualidade "animal". A sexualidade animal é instintiva, é
possessiva, não livre, responde a estímulos puramente biológicos (hormonais, quer dizer: aos períodos de
zelo) e é por natureza alheia à fidelidade (embora se conheçam casos de certa fidelidade e estabilidade em
algumas espécies animais, isto não responde a um amor propriamente dito a não ser a necessidade da
mesma espécie e em particular à necessidade da prole). O ser humano não pode exercitar sua sexualidade
de modo livre, fiel, total, regulado, etc., se não ser dono de seus instintos.

Por que a castidade produz esta integração?: "A pessoa casta mantém a integridade das forças de vida e de
amor depositadas nela. Esta integridade assegura a unidade da pessoa; opõe-se a todo comportamento que
a possa lesar. Não tolera nem a dupla vida nem a dupla linguagem". A falta de castidade implica desintegração
porque a luxúria é uma decomposição das forças da pessoa. A castidade permite ao homem represar todas
suas forças para um mesmo ponto: a pessoa amada. A luxúria derrama as forças da pessoa em múltiplos
objetos (para o luxurioso não há pessoas amadas a não ser pessoas convertidas em objetos).

A castidade e a pureza é uma "capacidade"; quer dizer, é algo positivo, não algo negativo (está mau, ou ao
menos é incompleto defini-la como mera "ausência de mancha ou pecado moral"). É uma energia interior que
dá ao que a possui o poder de realizar algo; esta capacidade é poder de ordenar a faculdade do apetite
concupiscente, com toda sua força e brio, e represar toda sua potência já seja para um objeto concupiscente
que "deve" ser amado com toda a força da pessoa, incluída a força sexual (como no caso dos maridos), ou
concede a capacidade de transformar essas forças ("sublimar") integrando-as na energia espiritual da pessoa
(seja na busca da verdade, no amor de misericórdia para o próximo, no amor a Deus, etc.).

Um texto importante para entender este aspecto é o que diz São Paulo em 1 Ts 4,3-5: Porque
esta é a vontade de Deus: sua santificação; que lhes afastem da fornicação, que cada um de
vós saiba possuir seu corpo com santidade e honra, e não dominado pela paixão, como fazem
tantos gentios que não conhecem a Deus. Neste texto se pode observar a dimensão de
"contenção" que exerce a pureza sobre as paixões (é próprio da natureza da pureza ou
castidade a capacidade de conter os impulsos do desejo sensível, razão pela qual esta virtude
é uma parte da virtude da moderação); mas aqui se sublinha também outra função e
dimensão –positiva– indicada como capacidade de manter a santidade e honra do corpo. Em
realidade ambas as funções ("abstenção da paixão libidinosa" e "manutenção da ordem
corporal") são reciprocamente dependentes porque não se pode "manter o corpo com
santidade e respeito", se falta essa abstenção "da impureza", enquanto que dita manutenção
da santidade e respeito corporal dá sentido e valor à luta para abster-se das desordens
passionais.

6. Castidade para todos

A castidade é necessária a todo ser humano, em todos os regimes da vida: casados, solteiros,
celibatários, etc., embora cada um de modo diverso. Como resultado de alguns artigos em
que mencionei o tema da castidade, recebi consultas e críticas, apoiadas em que ao falar de
castidade matrimonial o magistério da Igreja exigiria aos casados uma impossível abstinência
sexual; mas não é isso o que significa "castidade conjugal" a não ser algo muito distinto. Isto
mostra que muitos cristãos não compreendem o sentido desta virtude nem sua prática.

Há distintos modos de viver a castidade, segundo o estado de vida de cada pessoa.

Há uma castidade própria dos que consagraram sua vida no celibato ou a virgindade. Há
outro modo de castidade próprio de quem acredita ter vocação ao matrimônio mas ainda
estão solteiros ou se preparam ao matrimônio mediante o noivado; esta castidade se
denomina "castidade simples" ou mais propriamente "continência". A uma forma de castidade
análoga a estas duas primeiras estão chamados quem, por um motivo ou outro, diferente do
desejo de consagrar sua vida a Deus ou a um ideal sublime, não estão (nem talvez cheguem
nunca a estar) em condições de formar uma família; já seja porque nunca encontraram a
pessoa adequada com a qual casar-se, ou porque experimentam atração para pessoas de
seu próprio sexo (inclinações homossexuais) ou porque sofrem um medo patológico a
comprometer-se em uma vida de intimidade sentimental ou sexual, ou porque lutam com
alguma separação sexual; em todos estes casos terá que considerar que, de fato, deve-se
expor como modelo de vida a vida casta em celibato. Há um modo de viver a castidade próprio
dos maridos, denominado por este motivo "castidade conjugal". Há também uma castidade
própria das pessoas que por um motivo ou outro tendo tido vocação ao matrimônio agora não
podem viver neste estado (por exemplo, as viúvas e viúvos, as pessoas casadas que se
separaram de seus cônjuges).

As normas morais são diversas para uns e outros.

Quem tem ingressado voluntariamente no estado de virgindade consagrada ou de celibato


(por voto ou promessa) estão obrigados a viver a pureza em sua forma mais elevada,
renunciando a todo ato sexual e sensual voluntariamente procurado, e também a todo
pensamento ou desejo sexual ou sensual. Este regime da castidade exige a mortificação dos
sentidos externos (vista, tato, etc.) e dos internos (memória, imaginação).

Os que ainda não estão casados mas se preparam ao matrimônio (noivos e pessoas solteiras
que não estão noivos) devem viver, enquanto dure este estado, em perfeita castidade, mas
não excluem, evidentemente, a atividade sexual para o momento em que estejam
legitimamente casados, nem exclui um trato mais afetuoso com aquela pessoa com a que
esperam contrair matrimônio. A regra é neste caso muito delicada, mas pode resumir-se
naquilo que consideraram autores respeitáveis: (1º) são lícitas as demonstrações de afeto,
aceitas pelos costumes e usos, que são signo de cortesia, urbanidade e educação; (2º) em
troca são ilícitas tanto as expressões púdicas (abraços, beijos, olhadas, pensamentos,
desejos) que se realizam com a intenção expressa e deliberada de produzir prazer venéreo
ou sexual, embora não se tenha vontade de chegar à relação sexual completa; e (3º) com
mais razão são ilícitas as expressões impudicas e as relações sexuais completas.

No caso das pessoas casadas que já não vivem com seu legítimo cônjuge, seja por
separação (às vezes inculpável por parte de um deles) ou por viuvez, embora não lhes é lícito
realizar atos sexuais com quem não estão legitimamente casados, por outro lado não é
pecado pensar ou recordar os atos realizados com seu cônjuge legítimo, porque tudo o que
é lícito fazer, é também lícito desejar e recordar (salvo que isto seja perigo próximo de
consumar seus desejos em um ato ilícito).

Finalmente as pessoas casadas têm um regime especial de castidade que consiste em


realizar seus atos matrimoniais abertos à vida. Podem em alguns casos escolher para seus
atos completos os momentos de infertilidade natural da mulher, quando há motivos graves
que sugerem a conveniência de não pôr as condições de uma nova concepção (abstinência
periódica), mas isto não implica que não lhes seja lícito nestes momentos, como em qualquer
momento da vida, as manifestações sensuais e sexuais incompletas (quer dizer, que não
terminam em nenhum ato pleno ou orgasmo). A castidade também lhes exige o represar
todos seus desejos e pensamentos só para seu legítimo consorte e os proíbe dar lugar na
imaginação ou na vista a imagens que tenham por objeto outra pessoa distinta (embora isto
seja procurado como meio para realizar logo o ato conjugal com o cônjuge legítimo).

7. Mas, a castidade é possível?

A castidade ou pureza é possível. Há muitas pessoas, inclusive consagradas, que pensam


que a castidade perfeita (total e permanente) é impossível. Há quem pensa que nem sequer
tem sentido expor o valor de uma vida sem sexo; há os que também pensam que talvez possa
aspirar-se a ser castos uma boa parte do tempo, levantando-se de ocasionais quedas;
freqüentemente recebi consultas cuja idéia de fundo é que certos problemas de pureza (pelo
geral se referem à masturbação) são "normais", e por "normais" entendem que toda pessoa,
sem exceção, cai neste vício, ao menos durante a adolescência ("durante minha juventude,
escrevia-me uma pessoa, fiz o que fazem todos: masturbei-me com freqüência"; sua consulta
era... por um problema de vício sexual, que o escravizava ainda depois de casado e já com
muitos grisalhos em cima). A mesma idéia, apresentada de outro modo, forma parte de um
pensamento corrente que relaciona a felicidade com o exercício da sexualidade. "O sexo é
felicidade", rezava o anúncio de um grupo de médicos sexólogos que durante os últimos anos
ofereceu seus serviços nas primeiras páginas de vários jornais argentinos. Ao ler avisos
semelhantes me vem à mente a observação do P. Benedict Groeschel quem em seu "The
Courage to be Chaste" mencionava que a maior parte das pessoas que estamos
acostumados a encontrar em um ônibus, em um metrô, em um shopping, ou inclusive na
missa dominical, muito provavelmente teve algum tipo de experiência sexual durante os dias
precedentes; mas não é felicidade o que se destaca na maioria dos rostos; se a felicidade
dependesse do sexo, dizia o psicólogo religioso, o mundo brilharia como o sol, ao menos a
metade do tempo. Devemos reconhecer que o sexo, sendo muito importante na vida de
muitas pessoas, não é capaz, por si só nem de modo principal, de dar a felicidade; e de modo
contrário, tampouco a voluntária e perfeita abstenção (e menos ainda a ordenação da
atividade sexual de um matrimônio segundo os cânons da lei natural e divina) é sinônimo de
frustração, tristeza ou depressão, nem de perigo próximo de tais estados.

Daqui que a castidade seja possível; e se em nossos dias resulta mais difícil não é por uma
razão intrínseca ao ser humano (fora da desordem introduzida pelo pecado original, do que
já tenho feito menção) mas sim pela pouca vida interior da maioria de nossos
contemporâneos.

"A continência é perfeitamente possível ao ser que tem saúde psíquica. É inegável que assim
como há cleptomaníacos e piromaníacos há também seres que têm sua responsabilidade
diminuída e alguns até extinta, tratando-se da sexualidade, mas tais casos constituem a
exceção (...) Por outro lado, temperamentos ardentes triunfam de seus apetites (...) De
ordinário, pois, quando o instinto sexual se impõe como uma necessidade é porque o homem
lhe permitiu arraigar-se. A castidade não é questão de temperamentos: é assunto de
educação, de princípios, de vontade".

A castidade é possível. A primeira coisa que é necessária para que esta possibilidade seja
algo real é –como assinalava o grande educador que foi o P. Furtado– uma "filosofia sexual
que represente a dominação do espírito sobre a matéria". Quer dizer, uma visão sã e
harmoniosa da sexualidade (já seja do plano de Deus sobre o homem e a mulher como uma
concepção clara da antropologia humana, algumas de cujas idéias esboçamos nas páginas
anteriores). Em efeito, como assinalava o mesmo autor, "uma parte imensamente grande da
debilidade humana na vida moderna não vem de uma exigência orgânica irresistível, mas sim
de uma concepção materialista da vida que, aberta ou ocultamente, nos tem como
prisioneiros". E acrescenta: "quando o homem chegue a obter esta segurança científica, que
tantos médicos se esforçam por desvanecer, o sistema sexual encontrará a paz que não pode
encontrar em meio das fórmulas excitantes de agora nem em meio das disciplinas incertas
do pensamento moderno. O corpo obedece com gosto ao espírito que chegou a estar seguro
de si mesmo".

A castidade não é possível, então, para quem tem uma visão antropológica distorcida, para
quem reduz o ser humano a pura matéria, ou dá primazia aos instintos e põe um manto de
incerteza sobre a capacidade espiritual que tem o ser humano de governar-se. É
indispensável certa segurança sobre a aptidão do espírito e sobre sua supremacia sobre a
matéria (embora esta convicção pressuponha a ajuda da graça divina).

Não se pode negar que há causas que influem notavelmente nas quedas do ideal da pureza;
há causas físicas (certas propensões hereditárias, estados nervosos, enfermidades, estados
climáticos, etc.), causas devidas a hábitos que dificultam a guarda da castidade sem tratar-
se, eles mesmos, de vícios (falta de higiene, vida sedentária, relutância, etc.); mas as causas
principais são psíquicas: a curiosidade, a imaginação e a memória quando estão
indisciplinadas e sobre tudo quando estão privadas de um marco filosófico sadio (ou seja,
quando se carece de princípios reitores corretos) ou estão modeladas em um sistema de
pensamento que lhe distorçam (materialismo, hedonismo, freudismo, consumismo,
liberalismo, etc.).

Evidentemente a formação do hábito da castidade não é só questão de princípios racionais


mas sim exige várias coisas mais, a primeira das quais é a formação da vontade pelos hábitos
da justiça, a fortaleza e a moderação (aplicada a outros campos diversos do sexual, como a
moderação no comer e no beber), a vigilância, o esporte e o trabalho físico, etc. além disto,
para quem se empenha no caminho da castidade deve ter em conta o que o P. Groeschel
chama com justeza "ocultas ocasiões de luxúria". Entre estas menciona quatro principais:

A primeira é a auto-compaixão; esta –sentimento injustamente negativo respeito de si


mesmo– pode representar em muitos casos uma autêntica possibilidade de regressão
psicológica para condutas infantis; é comum que estas pessoas caiam em certa tolerância
sexual e especialmente na masturbação. Estes pensamentos destrutivos estão na base de
tudo os vícios sexuais. Esta auto-compaixão –é necessário dizê-lo– toma às vezes a forma
de uma falsa humildade; é em realidade uma forma de sentimento de inferioridade; seu
contrário não consiste, como poderia pensar uma moderna terapia de auto-apoio como a new
age, em afiançar a confiança em si mesmo ou formar grandes ideia em relação ao próprio
eu; isto nos levaria a um egoísmo ou a estéril soberba; o contraposto a auto-compaixão é um
são realismo, de equilíbrio natural e sobrenatural; quer dizer, o tomar consciência do valor
que tem nossa pessoa ante os olhos de Deus e a grandeza de nossa vocação tão social
como sobrenatural.

O segundo perigo são os sentimentos de ódio e raiva; muitas pessoas, inclusive cristãs,
guardam um grande ressentimento para o mundo, para si mesmos, e –no fundo– para Deus.
Esta raiva está profundamente enterrada no coração e se manifesta exteriormente como
frustração e depressão; pode, em conseqüência, exteriorizar-se através de uma conduta
sexual desordenada; nestes casos a conduta sexual toma o caráter de auto-castigo.
O terceiro perigo está representado pelos inesperados amores, que revistam acontecer
quando se encontram duas pessoas em similares maus momentos espirituais. Não é
estranho encontrar-se com pessoas que, em um momento de debilitação espiritual ou
psicológica, de ressentimento ou de abandono dos ideais, de fracassos espirituais, etc.,
encontram-se com a pessoa "ideal" que os "compreende" como nenhum outro o tem feito até
o momento. Às vezes o jogo começa com algo inocente: bate-papos largos, confidências das
próprias dificuldades, conselhos, consolos, etc., e pode terminar (freqüentemente acontece
assim) em um amor ilícito (por exemplo, quando se trata de pessoas casadas, de religiosos
ou religiosas).

O quarto perigo é encarnado pelas mesmas forças do maligno, quer dizer, a ação diabólica
que pode ser em grande medida responsável por muitos abusos no plano da sexualidade. A
desordem sexual degrada ao ser humano e o demônio é inimigo de nossa natureza. O
demônio deve ter muito que ver na corrupção da esfera sexual, especialmente quando a
desordem sexual se relaciona com duas coisas: com a perversão e a separação sexual, e
quando se junta com a destruição da vida (aborto) ou a teimosia à vida (anticoncepção).

Mas voltando para nosso tema da educação da castidade, uma das chaves em sua
pedagogia e conservação está no trabalho sobre o sentimento do pudor.

8. O pudor é a defesa da castidade

Não é possível defender ou alcançar a castidade se não se começar por educar o pudor.
Pudor designa a tendência a esconder algo para defender a própria intimidade em relação às
intromissões alheias. É uma "qualidade, em parte instintiva e em parte fruto da educação
deliberada, que protege a castidade. Realiza-se o mesmo na esfera sensitivo-instintiva que
na consciente-intelectual, como freio psíquico frente à rebeldia da sexualidade". Santo Tomás
diz dele que é um são sentimento pelo que as paixões relacionadas com a sexualidade,
depois do pecado original, produzem um sentimento de desgosto, de vergonha, de mal-estar
no homem, até tal ponto que instintivamente quer ocultar todo o relativo ao corpo, à intimidade
e à sexualidade, dos olhares indiscretos.

Pudor e pudicícia. O pudor pertence tanto à esfera instintiva como a consciente. No primeiro
caso, existe o pudor no sentido estrito da palavra; no segundo, uma organização superior do
mesmo que entra na categoria de virtude e se denomina pudicícia. A pudicícia ou pudor-
virtude "se relaciona intimamente com a castidade, já que é expressão e defesa da mesma.
É, por conseguinte, o hábito que põe sobre aviso ante os perigos para a pureza, os incentivos
de quão sentidos podem transformar-se em afeto ou em emoção sexual, e as ameaças contra
o reto governo do instinto sexual, tanto quando estes perigos procedem do exterior, como
quando vêm da vida pessoal íntima, que também pede reserva ou subtração aos olhos de
outros e cautela ante os próprios sentidos. Desta sorte o pudor atua como moderador do
apetite sexual e serve à pessoa para desembrulhar-se em sua totalidade, sem reduzir-se ao
âmbito sexual. Não se confunde com a castidade, já que tem como objeto não a regulação
dos atos sexuais conforme à razão, a não ser a preservação do que normalmente se relaciona
estreitamente com aqueles atos. Deve ser uma defesa providencial da castidade, em razão
da constituição psicofísica do gênero humano, perturbada pelo pecado original".

No plano puramente instintivo podemos dizer que consiste em uma resistência inconsciente
a tudo o que revelaria em nós a desordem da concupiscência da carne. Quando se faz
consciente, consiste na elevação desse são instinto por obra da virtude da prudência, já que
tende a excluir circunstâncias e a frear pensamentos prevendo que mediante sua atividade
causariam uma violação da ordem moral.

Pudor e educação. Neste sentido, sendo a educação humana a atuação dos valores humanos
que estão em todo homem em potência e a afirmação dos valores espirituais sobre a matéria,
pode muito bem concluir-se que a bondade de uma educação se mede pelo desenvolvimento
e afinado jogo de dados a pudicícia, a qual tende a fortificar o espírito mais que nenhum outro
hábito operativo. Não pode existir educação da castidade sem o desenvolvimento do
sentimento do pudor. Da preservação desta faculdade natural depende em grande parte a
possibilidade e a capacidade de resistência às causas externas que continuamente atentam
à integridade moral e à pureza.

Pudor instintivo e pudor convencional. Existe um pudor instintivo, ligado à constituição


psicológica do homem, e portanto universal, que se manifesta como sentimento de medo, de
vergonha, ligado de algum modo, à emoção sexual. "Embora alguns negam este caráter
natural do pudor, afirmando que se trata só de um hábito adquirido como fruto da educação,
terá que dizer, entretanto, que os estudos antropológicos revelam a existência do pudor em
todos os povos, também nos primitivos, nos que, varia só o que chamam a individualização
secundária do pudor, quer dizer, sua localização em distintas zonas do corpo, que pelo resto
não depende do convencionalismo ou do costume, mas sim em suas linhas essenciais é um
processo racional, conforme à natureza do homem".

Mas a educação e as condições ambientais influem notavelmente na elaboração pessoal que


cada um faz deste pudor, o qual, embora instintivo, não exclui uma certa plasticidade comum
a todos os instintos, mas sim a implica. "As condições concretas às que o pudor adapta sua
ação prudencial são diversas, como por exemplo, a idade, a diferença de atração erótica
exercitada pelas distintas partes do corpo, o tipo psicológico individual, etc. Estes distintos
fatores explicam as diferenças das distintas formas de pudor entre os povos", quer dizer,
explicam a existência de um pudor convencional que depende essencialmente das épocas,
da educação, dos indivíduos, das regiões.

As múltiplas reações de pudor em uma pessoa não são todas manifestações de pudor
instintivo. Quer dizer: são manifestações de pudor instintivo as que estão ligadas a excitantes
absolutos (estes são relativamente poucos), enquanto que são manifestações convencionais
as ligadas a excitantes condicionais. O pudor convencional merece respeito, mas não sempre
é sincero nem revelador de uma virtude profunda. Certas pessoas depravadas, mas que não
ignoram as convenções sociais, rodeiam-se de precauções supérfluas para ocultar seus
perversos instintos. Mas este não é o verdadeiro pudor.

Falsa educação do pudor: o pudor excessivo. deve-se educar no pudor com prudência. Uma
educação muito estreita neste campo multiplicaria as dificuldades e não faria a não ser
agravar a inquietação e o mal-estar dos adolescentes e dos jovens. É um fato inegável que,
mediante uma educação muito rígida, os séculos passados levaram o pudor a terrenos nos
que não entra para nada, e desta maneira fizeram ver o mal em todas partes. Infelizmente
este tipo de "má educação do pudor" não pode causar a não ser reações contrárias, quer
dizer, conduz à impudicícia.

Educar no pudor significa, ao mesmo tempo que cultivá-lo, também defendê-lo de toda
mesquinharia que tão facilmente se confunde com o pudor.

Se trata, justamente, de uma falsificação do pudor. Vemos um pudor desequilibrado ou


excessivo, causado em geral por uma falsa educação. Esse falso pudor não faz às pessoas
castas a não ser caricaturas de castidade; é, no fundo, uma inimizade nata do pudor, como
a beatice é inimizade da religiosidade verdadeira e consciente. O espírito do adolescente se
rebela e lhe incomodam as idéias mesquinhas e ruins".

A autêntica educação do pudor: A educação do pudor deve ser indireta, porque uma
educação direta implicaria necessariamente orientar a atenção sobre os objetos que
justamente o pudor deve atenuar em seu atrativo. Não obstante, embora indireta, deve ser
positiva, quer dizer, deve preparar aquela atmosfera espiritual que além de impedir a
degradação no campo da sexualidade animal, fará mais fáceis as revelações graduais
necessárias em seu tempo oportuno.

Esta educação do pudor deve ser parte de uma educação moral do sentimento, quer dizer,
da afetividade em geral (que alguns chamam "educação do coração"). Educar o coração se
resume em conseguir apaixonar à pessoa da virtude e corrigir toda separação anormal do
amor sensível. Implica também educar a vontade; esta exige, junto ao exercício constante e
cotidiano, a "ginástica espiritual" que nos plasma e nos dobre de modo que sejamos capazes
de pôr em ato o que compreendemos com tanta facilidade e que proclamamos ainda com
maior facilidade, mas que realizamos com muitíssima dificuldade. Não se pode esquecer que
a virtude da castidade, assim como virtude moral, tem sua sede na vontade. Mas por cima de
tudo, tem que reinar a educação da religiosidade: para a vida casta, a educação religiosa "é
o primeiro coeficiente e mais poderoso, porque outros coeficientes humanos têm valor
somente temporário, quer dizer, enquanto perduram os interesses correspondentes no
espírito do menino. Só a religião possui uma eficácia que ultrapassa os limites de tempo, de
lugar, de espaço, de ambiente, de circunstâncias, contanto que seja sentida, consciente e
ativa.... A religião constituiu sempre para a pedagogia sexual uma potência única. A religião
valoriza a pureza e a apresenta ao jovem como uma das virtudes mais altas e mais formosas,
uma vez que indica os meios para conservá-la e defendê-la com esmero, com reserva, com
a disciplina interior das imaginações e dos desejos, e com a disciplina exterior dos sentidos".

***

Mesmo que a castidade possa te custar, não renuncie nunca a ela. Não renuncie a sua
felicidade, nem a forjar uma família Santa; não renuncie ao noivado puro nem ao verdadeiro
romantismo. Não troque o vôo da gaivota sobre o mar aberto, pela claudicação de urubu que
passa seus dias bicando carniça nas sujas desembocaduras de um riacho.

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Pieper, J., As virtudes fundamentais, Rialp, Madrid 1980.

–Dietrich von Hildebrand, Pureza e virgindade, Desclée de Brouwer, Pamplona 1958.

–Benedict Groeschel, The Courage to be Chaste, Paulist Press, New York 1985.

–P. Alberto Furtado, O adolescente um desconhecido (seu título original foi: A crise da
puberdade e a educação da castidade), Obras completas, tomo 2, Dólmen, Chile 2001.

–Zalba Erro, Pudor, em Grande Enciclopédia Rialp, tomo 19, Rialp, Madrid 1989, 455-456.

–Leonardo Castellani, Feud em cifra, Buenos Aires, 1966.

––––––––––––––––, Feud. Dicionário de Psicologia, Abundância, Mendoza 1996.

–Ennio Innocentti, Sigmund Freud, Rev. Diálogo 4 (1992), 73-104.

–––––––––––––, As características da psicanálise, Rev. Diálogo 5 (1993), 45-63.

–––––––––––––, Freudismo e ciência (1ª parte), Rev. Diálogo 7 (1993), 89-110.

–––––––––––––, Freudismo e ciência (2ª parte), Rev. Diálogo 8 (1993), 109-121.

––––––––––––– Freudismo entre filosofia e anti-filosofia, Rev. Diálogo 9 (1994), 95-117.

––––––––––––– Freud e a religião, Rev. Diálogo 11 (1995), 75-120.

–Miguel Angel Fontes, Pornografia e sexualidade, Rev. Diálogo 12 (1995), 131-158.

_________________, A educação da sexualidade, um desafio para pais e educadores, Rev.


Diálogo 18 (1997), 45-66.
–––––––––––––––––, E os fez varão e mulher, Edições Verbo Encarnado, São Rafael 1998.

–Karol Wojtyla, Amor e responsabilidade, Razão e Fé, Madrid 1978.

IX. A verdade roubada sobre a consciência

A nobreza de sua consciência depende da docilidade à verdade

Sua consciência é algo sagrado; tentarão te roubar isso substituindo-a com algo que se
parece levianamente a ela mas no fundo não é mais que uma caricatura da consciência. Pode
ser que te digam que deve te guiar por sua consciência ou que escute frases como "minha
consciência não me reprova nada", "terá que decidir em consciência", "que cada um siga sua
própria consciência". Estas frases seriam inobserváveis... se detrás delas o conceito de
consciência fosse o correto, mas se por consciência se entende o decidir o que alguém quer
sem interferências externas, sem que ninguém nos guie ou simplesmente sem que dita
consciência tenha a obrigação de "acomodar-se" a uma regra superior a ela... então não
estamos falando propriamente da consciência mas sim do mais crasso subjetivismo. Também
Nerón seguiu sua consciência, e outro tanto fizeram Hitler e Stalin e todos os tiranos da
história. Os loucos obedecem sua consciência e também os ladrões e os assassinos. Mas
quando eles fazem o que sua consciência lhes permite ou sugere, não entendem por
consciência o que entendeu a filosofia de sempre ou os grandes pensadores da cristandade;
o que eles chamam consciência é algo muito distinto.

Olhe, então, o que escrevia –ao começo de uma obra com o título "Confissões"– um
personagem pouco duvidoso de ortodoxia como foi João Jacobo Rousseau; ali, dirigindo-se
sem reparo algum ao Criador, dizia-lhe: "Que o trombeteiro do julgamento final soe quando
queira... Junta ao meu redor a incontável turva de meus semelhantes, que eles escutem
minhas confissões!... Que cada um descubra a sua vez seu coração aos pés de seu trono
com a mesma sinceridade, e logo, que embora seja um te diga, se tiver a coragem: eu fui
melhor que este homem!". Aí tem um homem com a consciência tranqüila... Bom,
precisamente dele dizia o enciclopedista Dionísio Diderot que tinha muita sorte, porque
fizesse o que fizesse, sua consciência sempre se pronunciava a seu favor, a tal ponto de
considerar-se sem mancha alguma. Mas quem tomar o trabalho de ler a vida deste homem
de consciência irreprochável, verá que dita consciência não lhe impediu de lhe tirar os quatro
pequenos filhos que lhe tinha engendrado sua concubina para colocá-los no Lar dos "Meninos
Abandonados", e que, quando o fato se divulgou escandalosamente, se defendeu dizendo
que tinha sido um "equívoco" e não uma canalhice... Uma vez mais, a consciência lhe
tranqüilizava. Como se vê, a consciência em lábios de João Jacobo é um término que se
dispõe para justificar qualquer velhacaria; essa é uma interessante ideia da consciência, tão
elástica que se pode com ela desculpar os mais negros buracos da moral. Esta consciência
de João Jacobo é a que hoje nos querem vender; cuidado, não é uma consciência, é uma
espécie de "síndrome de deficiência intelectual"; quem a aceita se contagia de toda infecção
ética que passar por seu lado.

Por este motivo, vale a pena que vejamos qual é o conceito verdadeiro da consciência (aquele
que autenticamente enobrece ao homem que a segue) e a necessidade de educá-la.
1. O que é a consciência

O Concílio Vaticano II se referiu belamente à consciência dizendo que "é o núcleo mais
secreto e o sacrário do homem, no que está a sós com Deus, cuja voz ressona no mais íntimo
dela".

O que nós chamamos "consciência" não é outra coisa que certas atuações de nossa
inteligência. Nossa inteligência, e nisto nos diferenciamos especificamente do resto dos
animais, conhece o que são as coisas, por que são, para que são, e –em alguns casos– por
que devem ser. Quando essas "coisas" que conhece o homem são nossos próprios atos e a
razão nos diz o que estamos fazendo, ou o que temos feito ou o que estamos projetando
fazer, e nos fala de sua bondade ou de sua malícia, tal ato da inteligência é o que chamamos
a "consciência": conscientiza "psicológica" (a que nos diz "o que" fazemos ou temos feito,
como escrever, passear, rezar ou trabalhar) e a consciência "moral" (a que nos adverte sobre
a bondade ou malícia daquilo que fazemos, fizemos ou estamos por fazer).

Como ocorre isto? Todos nós levamos interiormente impressa uma lei que nos indica o bem
e o mal, aquilo que nos aperfeiçoa, e aquilo que nos fere moralmente; e o conhecimento desta
lei é natural. O homem se dá conta, de um modo que podemos chamar "espontâneo", que
certas coisas estão bem e certas coisas estão mau (não faz falta que nos ensinem que o
amor a nossos pais é algo bom, nem que trair a pátria é algo abominável; a ninguém foi
ensinado que tem que defender a sua mãe ou a seus filhos... e se o ensinaram quando o faz
não é porque o tenham ensinado, mas sim porque espontaneamente reconhece que é o único
deve fazer nessa circunstância). Por isso há dito um autor: "levamos dentro de nós mesmos
nossa verdade, porque nossa essência (nossa natureza) é nossa verdade".

"A mesma lei, que Deus revelou por meio do Moisés e que Cristo confirmou no evangelho (cf.
MT 5,17-19) –disse João Paulo II–, foi inscrita pelo Criador na natureza humana. Isto é o que
lemos na carta de São Paulo aos Romanos: Quando os gentis, que não têm lei, cumprem
naturalmente as prescrições da lei, sem ter lei, para si mesmos são lei (ROM 2,14). Desta
forma, portanto, os princípios morais que Deus manifestou ao povo eleito por meio do Moisés
são tal qual ele tem inscrito na natureza do ser humano. Por esta razão, todo homem,
seguindo o que desde o começo forma parte de sua natureza, sabe que deve honrar a seu
pai e a sua mãe e respeitar a vida; é consciente de que não deve cometer adultério, nem
roubar, nem dar falso testemunho; em uma palavra, sabe que não tem que fazer a outros o
que não quer que façam a ele".

É por isso que cada vez que nós obramos, nos damo conta de que o que fazemos é conforme
e está em harmonia com esse conhecimento que temos escrito no coração, sobre o bem e o
mal. Ou simplesmente não está de acordo com ele. Esta é a consciência. A consciência é a
inteligência quando descobre essa "lei que ele (o homem) não se dá a si mesmo, mas a qual
deve obedecer... Lei inscrita por Deus em seu coração...". A consciência, cumpre, deste modo
um triplo ofício em nosso interior:

1º É a testemunha do que estamos fazendo ou temos feito, da bondade ou malícia do que


obramos. Neste sentido diz São Paulo em ROM 9,1: Minha consciência me testemunha isso
no Espírito Santo.

2º É o juiz de nossos atos: ela nos aprova quando o que obramos é bom, e nos condena
(remorsos de consciência) quando obramos ou estamos obrando o mal. A isto faz referência
São Paulo ao escrever em 2Co 1,12: O motivo de nosso orgulho é o testemunho de nossa
consciência.

3º É nosso pedagogo, como a chamava Orígenes: nos descobrindo e nos indicando o


caminho do bom obrar. Deste modo pode dizer o Apóstolo em ROM 14,5: "Cada um tenha
opinião bem definida em sua própria consciência".

Esta luz que há em nossa inteligência, pela qual julgamos nossas ações, colocou-a o próprio
Deus, ao nos criar. Não é outra coisa que a capacidade que temos de conhecer o bem e o
mal nas coisas. E essa luz é uma participação de sua Luz e de sua Verdade eterna. Por isso
é que podemos dizer corretamente que é a voz de Deus. Assim, São Boaventura dizia dela:
"A consciência é como um arauto de Deus e seu mensageiro, e o que diz não o manda por
si mesmo, mas sim o manda como vindo de Deus, igual a um arauto quando proclama o
decreto do rei. E disso deriva o fato de que a consciência tem a força de obrigar". João Paulo
II o explica dizendo: "São Paulo acrescenta na carta aos Romanos: Como quem mostra ter a
realidade dessa lei escrita em seu coração, testemunhando-o sua consciência (ROM 2,15).
A consciência se apresenta como a testemunha, que acusa ao homem quando viola a lei
inscrita em seu coração, ou o justifica quando é fiel a ela. Por conseguinte, segundo o ensino
do Apóstolo, existe uma lei ligada intimamente à natureza do homem, como ser inteligente e
livre, e esta lei ressona em sua consciência: para o homem, viver segundo sua consciência
quer dizer viver segundo a lei de sua natureza e, vice-versa, viver segundo essa lei significa
viver segundo a consciência; certamente, segundo a consciência verdadeira e reta, quer
dizer, segundo a consciência que lê corretamente o conteúdo da lei inscrita pelo Criador na
natureza humana".

Como podemos ver, temos aqui uma idéia da consciência como a de "mediadora" entre a
verdade objetiva das coisas (expressa na natureza das coisas e na revelação de Deus) e
nossos atos. Há, por outro lado, outra idéia da consciência que podemos definir como uma
consciência que não se "acomoda" à verdade das coisas mas sim "cria" ela mesma sua
verdade. Já dizia o Papa João Paulo II em sua encíclica Veritatis Splendor que, como
resultado das tendências culturais que contrapõem e separam a liberdade e a lei, exaltando
falsamente esta última, estendeu-se uma "interpretação criativa da consciência moral, que se
afasta da posição tradicional da Igreja e de seu Magistério".

Há em nossos dias três correntes que ressaltam o caráter criativo da consciência moral:

1º a de quem sustenta que o que marca o bem e o mal de nossos atos é a intenção pessoal
com a que obramos: está bem o que faço com boa intenção ("por amor", como alguns dizem);
está mal o que faço com má intenção. À margem, pois, pelo que se faça ou escolha (chamado
objeto moral do ato"): não importa o que se faz a não ser a intenção com que se faz. Minha
consciência me pode deixar tranqüilo se me mostrar que minto para defender um inocente,
ou que esterilizo a uma mulher para lhe evitar futuros riscos a sua saúde, ou se realizar atos
homossexuais mas por amor (isto o ensinaram autores como B. Häring, D. Capone, M. Vidal).

2º Uma segunda corrente minimiza as normas (leis) objetivas e somente dá valor moral ao
resultado do obrar. Isto quer dizer que quando vamos obrar fazemos um julgamento sobre a
bondade ou malícia de nossos atos (não terá que roubar porque está mau, sempre terá que
dizer a verdade) mas este julgamento é impessoal, teórico e pré-moral; e portanto, não conta
muito. Ao mesmo tempo fazemos outro julgamento que estes autores (por exemplo J. Fuchs)
chamam julgamento de operação, concreto e subjetivo, que seria fruto da consciência
pessoal e por isso sempre bom, mesmo que se oponha ao anterior. Por exemplo, uma mulher
que não deseja ter filhos faz este raciocínio: "em linhas gerais sei que a anticoncepção é algo
mau e por isso em linhas gerais a rechaço; mas aqui e agora, tendo em conta meus
problemas econômicos ou que já tenho três filhos, parece-me que é o mal menor e o que me
exige sacrifícios mais acessíveis; portanto em consciência julgo que me é lícito". Aí tem os
dois julgamentos: ao primeiro Fuchs o chama pré-moral (assim como alguns chamam pré-
embrião a um embrião de poucos dias ou poucas horas, e com isto se sentem autorizados a
matá-lo, assim também este autor chama pré-moral aos julgamentos de nossa consciência e
com isto se sente autorizado para não lhes fazer caso; o raciocínio é útil... mas não é
científico); ao segundo o chama de consciência; e além disso deixa assentado que é o
segundo o que nunca se equivoca; e o primeiro sim. O motivo é que o primeiro é universal e
o segundo concreto. No dia que venha um assassino a seu encontro e diga que vai te matar
para tirar umas moedas, não lhe recorde que isso está mau, pois ele também sabe mas com
seus julgamentos pré-morais ; o problema é que se leu Fuchs (não acredito, não é fácil
entendê-lo) dirá-te que embora ele aceita que em términos gerais não está bem matar nem
roubar, nestas circunstâncias concretas (ou seja, as circunstâncias pelas quais você é o dono
do dinheiro ou do automóvel que ele quer) sua consciência lhe diz que o melhor é tomar seu
dinheiro e logo te matar para que ninguém suspeite. No julgamento final poderá te queixar ao
Fuchs e a sua turma.
3º Uma terceira corrente que termina afirmando o mesmo, é a que identifica nossa
consciência com as decisões que tomamos (sustentaram-na por exemplo, Peter Knauer e A.
Molinario). Estes no fundo ensinam que o que decidimos está bem porque o decidimos. Eu
me encontrei com raciocínios deste tipo, com bastante freqüência. Por exemplo, quando
alguém escuta: "Fulana se fez de monja; pobre! Bom, mas o importante é que está fazendo
o que ela gosta". Cuidado; estamos nesta terceira corrente. Se o que Fulana tiver feito ao
entrar em convento está bem não provém de que ela o tenha decidido ou de que seja o que
gosta, mas sim de que está muito bem entrar em um convento para consagrar-se a Deus.
Não podemos dizer: "Butano é ladrão, mas ao menos é o que ele sempre quis ser desde
pequeno". Se Butano tiver decidido ser ladrão, ou mentiroso ou traidor, sempre estará mau,
apesar de que o tenha decidido.

O que todas estas posições têm em comum é que, no fundo, todas consideram o que
podemos chamar "caráter criativo" da consciência. Criativo do que? Da verdade. Coincidem
em ensinar que o que a consciência decide, determina, resolve, está bem... e se estiver bem
essa é a verdade (ao menos para a pessoa que toma a decisão). Recorda-nos o que diz o
marxismo: o que é a verdade? o que serve à causa da partida!

Esta é a idéia que pulsa debaixo de muitas outras expressões, como a de quem diz que terá
que auto-realizar-se (o que não quer dizer que cada um deve descobrir a realidade, o que
estaria muito bem, mas sim deve inventar sua realidade, seu próprio mundo), ou os que
querem viver autonomamente (ou seja sem lei que não venha do próprio eu).

Com estas correntes estamos ante o que Ratzinger chamou a "deificação da subjetividade,
da que a consciência é o oráculo infalível, que não pode ser questionada por nada nem por
ninguém". Por isso não estranha que se afirme, como faz Rousseau no Emílio, que a
consciência é infalível; ou mais modernamente B. Schüller: "A consciência não pode enganar-
se sobre o bem e o mal; o que ela ordena que é sempre infalivelmente bem moral". Se te
dissesse que Schüller foi quem tranqüilizou a consciência de Hitler me acreditaria; entretanto,
não ocorreu assim, pois Schüller é um moralista católico e escreveu quarenta anos depois do
líder nazista, e entretanto, Hitler ou Stalin ou Nerón mesmo, tivessem-lhe beijado na frente
por justificar tão bem seus atos!. Isto nos mostra que às voltas da história nos podem ensinar
em nossas salas-de-aula de hoje, o mesmo que nos produz repulsão nos homens de ontem.
De todos os modos, antes de te rasgar as vestimentas escandalizado ou escandalizada por
estas afirmações brutais... revisa se nós não dizemos o mesmo respeito de outros temas que
nos apressam mais: as relações pré-matrimoniais, o aborto, a anticoncepção, e outros pontos
onde talvez o sapato aperte a cada um de nós. Se estas teorias não devem justificar a
consciência de um genocida... tampouco deixemos que tranqüilizem nossas consciências
ante comportamentos imorais.

Se a consciência não criar nem inventa a verdade, qual é sua relação com ela? Uma relação
que é de uma vez humilde e enaltecedora: ela depende de, e manifesta, a verdade. É
dependente! Sim, é dependente, mas ao mesmo tempo recebe da verdade sua dignidade. É
como o ferro no fogo. Um miserável ferro posto ao fogo recebe do fogo a qualidade de ser
incandescente. Você o vê vermelho e ardente, e o ferro transformado pelo fogo é capaz de
cauterizar, de queimar, de dar calor e de dar luz. Se o separar do fogo, voltará a ser um
pedaço de ferro escuro e enferrujado. Nossa consciência depende da verdade, mas a
verdade transforma nossa consciência e a faz verdadeira, luminosa, ardente.

Como sabemos que isto é assim? Acima de tudo, esta dependência da consciência em
relação à verdade moral é um dado de experiência. Nossa experiência psicológica nos mostra
que, em nosso interior, temos dois tipos de julgamentos: por um lado, certos julgamentos
hipotéticos ou condicionais, quer dizer julgamentos frente aos quais cada pessoa se sente
obrigada só e na medida em que quer o que tal exigência condiciona ("se não querer me
adoecer neste dia frio, devo me abrigar"; tenho que me abrigar, só na medida em que não
quero me adoecer); mas existe além disso outra categoria diversa de julgamentos em certo
sentido absolutos, quer dizer, que se impõem por si mesmos, imediatamente, sem depender
de nenhuma condição e sem que possamos nos dispensar deles (por exemplo, "tenho que
respeitar a meus pais"; aqui não existe nenhuma condição que faça necessária esta
exigência, mas sim a mesma se impõe por si); tais são os que denominamos propriamente
julgamentos de consciência. O fato de que o homem perceba instintivamente que não pode
dispensar-se a si mesmo de tais obrigações impostas pela própria consciência mostra que
através desse julgamento a pessoa conhece uma verdade pré-existente e independente de
sua consciência. Esta realidade que se impõe a nossa consciência não é real porque nossa
consciência a conheça mas sim, pelo contrário, impõe-se a nossa consciência porque esta
verdade é real e existe independente e autonomamente de nós. Em outras palavras, a
verdade não depende de nossa consciência mas sim a consciência depende da verdade.

Além disso, é também um dado bíblico: Quando os gentios, que não têm lei, cumprem
naturalmente as prescrições da lei, sem ter lei, para si mesmos são lei; como quem mostra
ter a realidade dessa lei escrita em seu coração, testemunhando-o sua consciência com seus
julgamentos contrapostos que lhes acusam e também lhes defendem (ROM 2, 14-15).
Segundo as palavras de São Paulo, a consciência, em certo modo, põe o homem ante a lei,
sendo ela mesma «testemunha» para o homem: testemunha de sua fidelidade ou infidelidade
à lei, ou seja, de sua essencial retidão ou maldade moral. A consciência é a única testemunha.
O que acontece na intimidade da pessoa está oculto à vista de outros desde fora. A
consciência dirige seu testemunho somente para a pessoa mesma. E, a sua vez, só a pessoa
conhece a própria resposta à voz da consciência.

Finalmente, podemos deduzir se tomarmos em conta a mesma natureza de nossos


julgamentos. Nossos julgamentos de consciência (devo tomar este remédio, tenho que ir ao
médico, não devo fazer caso a este tolo...) são fruto, como diz Santo Tomás, de uma
aplicação (applicatio), ou na expressão equivalente que também usa, uma conveniente
acomodação da verdade universal ao caso particular ou concreto. Ou como traduz alguém:
feliz adaptação da verdade universal ao caso concreto. Dito de outra maneira, o julgamento
de consciência é a conclusão de um raciocínio prático que parte dos princípios mais
universais e chega a expressar que em tal ou qual caso particular se realiza ou se nega uma
exigência universal (lei). Raciocina por exemplo assim: 1º Primeiro princípio da razão natural:
Terá que evitar o mal; 2º Princípio da ciência moral: O roubo é um mal; 3º Conclusão de
ciência moral: Terá que evitar o roubo; 4º Conclusão impessoal: esta ação é um roubo e
portanto terá que evitá-la; 5º Julgamento de consciência: Eu devo evitar esta ação. Pouco
importa ao caso o que este processo seja mais ou menos complicado, que respeite ou não
todos os passos, que parta de um conhecimento universal da sindérese ou de uma concreção
da ciência moral ou de um princípio recebido do Magistério. Sempre é descobrimento de uma
relação entre uma ordem universal e um caso particular.

Como podemos ver a função da consciência é a de ser intérprete e mediadora entre a verdade
universal e objetiva e nossos atos concretos; por isso dizia Paulo VI: "A consciência por si
mesmo não é árbitro do valor moral das ações que ela sugere. A consciência é intérprete de
uma norma interior e superior; não a cria por si mesmo. Ela está iluminada pela intuição de
determinados princípios normativos, inatos à razão humana; a consciência não é a fonte do
bem e do mal; é o aviso, é escutar uma voz, que se chama precisamente a voz da
consciência". E Tomás de Aquino expressava esta função da consciência dizendo que a
razão do homem (e neste caso, a consciência) é a de ser uma regra regulada (regula
regulata). Como nossas regras comuns. Quanto mede? Um metro e cinqüenta, ou sessenta
ou setenta? Como pode estar seguro que essa é sua altura? Porque te mediste com uma
regra para medir. E como sabe que essa "regra não minta"? Porque respeita o "padrão" do
que se tomam todos os metros (assim durante muito tempo se definiu o metro padrão
internacional como a distância entre duas linhas finas riscadas em uma barra de liga de
platina e irídio, conservado em Paris). Quando compra um quilograma de açúcar como sabe
que a balança do mercenário não te "minta" te vendendo "quilogramas de 900 gramas"?
Porque se seu mercenário for honesto, terá calibrado sua balança com o padrão universal
que mede os quilogramas e os gramas... Assim é sua consciência... Ela te diz que está muito
bem fazer isto ou aquilo, mas como sabe que ela não te minta ou engana? Só se ela a sua
vez se regula sobre um padrão (uma norma fixa) que não minta nem possa equivocar-se... e
tal é a lei natural, que expressa a sabedoria de Deus e que nossa razão pode descobrir em
nossa própria natureza.

2. O falimento da consciência

Então, a consciência não é um juiz infalível; seus julgamentos sempre serão atos de nossa
inteligência criada, finita, falível, ferida e influenciável.
Os julgamentos de nossa consciência são muito comprometedores porque não são
afirmações abstratas ou puramente especulativos (como quando dizemos "o sol sai pelo
leste", "dois mais dois é igual a quatro"), a não ser afirmações que terminam comprometendo
nosso modo de obrar (são "julgamentos práticos"). Por exemplo, o conhecer a diferença entre
um triângulo eqüilátero e um triângulo isósceles não altera de maneira nenhuma o modo de
viver que tinha quando ainda ignorava tal verdade, mas o perceber que uma conduta
determinada que eu assumo habitualmente em minha vida privada, em meus negócios, em
minha vida conjugal, etc., contradiz a lei natural, é intrinsecamente má, não me pode deixar
indiferente ou igual a como me comportava antes de sabê-lo; pelo contrário, exige-me mudar
de vida. De igual modo, o reconhecer que me corresponde, de modo iniludível e inadiável,
realizar tal dever me impõe a obrigação de cumpri-lo apesar dos sacrifícios que suponha. Por
isso, nossos julgamentos de consciência sempre estão ameaçados com a interferência de
nossos defeitos, hábitos, comodidades ou gostos, que vão pugnar para que não reconheça
interiormente que não tenho desejos de realizar ou abandonar.

Terá que insistir uma vez mais em que a consciência mantém sua dignidade e impõe ao
homem a exigência de ser seguida sempre e quando lhe mostrar a verdade ou, em caso de
se equivocar, se errar involuntária e inculpavelmente. E por este motivo a Sagrada Escritura
nos insiste constantemente em que procuremos a verdade e julguemos de acordo à verdade:
"Certamente, para ter uma consciência reta (1Tim 1,5), o homem deve procurar a verdade e
deve julgar segundo esta mesma verdade. Como diz o apóstolo Paulo, a consciência deve
estar iluminada pelo Espírito Santo (cf. ROM 9,1), deve ser pura (2Tim 1,3), não deve com
astúcia falsear a verdade (cf. 2Co 4,2). Por outra parte, o mesmo Apóstolo admoesta aos
cristãos dizendo: Não se acomodem ao mundo presente, pelo contrário transforme-o
mediante a renovação de sua mente, de forma que possam distinguir qual é a vontade de
Deus: o bom, o agradável, o perfeito".

Quando a gente está falseando a verdade ou a desconhece por negligência ou por pouco
amor à verdade ou à virtude, ou por negar-se a fazer o esforço de educar a consciência ou
esclarecê-la com quem sabe mais, não poderia desculpar-se de pecado dizendo
simplesmente: "sigo minha consciência": "A pessoa humana deve obedecer sempre o
julgamento certo de sua consciência. Se obrasse deliberadamente contra este último,
condenaria-se a si mesmo. Mas acontece que a consciência moral pode estar afetada pela
ignorância e pode formar julgamentos errôneos sobre atos projetados ou já cometidos. Esta
ignorância pode com freqüência ser imputada à responsabilidade pessoal. Assim acontece
quando o homem não se preocupa de procurar a verdade e o bem e, pouco a pouco, pelo
hábito do pecado, a consciência fica quase cega. Nestes casos, a pessoa é culpada do mal
que comete".

Por isso dizia João Paulo II: "Não é suficiente dizer ao homem: ‘segue sempre sua
consciência’. É necessário acrescentar imediatamente e sempre: ‘ pergunte se sua
consciência diz a verdade ou algo falso, e busca incansavelmente conhecer a verdade’. Se
não se fizesse esta necessária precisão, o homem arriscaria encontrar em sua consciência
uma força destruidora de sua verdadeira humanidade, em vez do lugar santo onde Deus lhe
revela seu verdadeiro bem".

3. Uma palavrinha sobre a função do magistério e a consciência

Me permita uma palavrinha sobre a função que tem o magistério da Igreja na educação de
nossa consciência.

É constitutivo essencial da consciência reta sua adequação com a verdade objetiva, como já
havemos dito. Mas não sempre está em poder da razão alcançar por si só dita verdade com
a qual adequar-se, até tendo em si os princípios dos quais se derivam todas as verdades
morais. Os princípios universais estão, mas em sua condição universal. Descobrir a relação
estreita entre nossos comportamentos concretos e tais princípios pode resultar evidente como
pode não ser. E isto por muitos motivos. Por um lado, a nossa é uma razão ferida e debilitada
pelo pecado original. Por outra parte, algumas das verdades que regem o obrar concreto são
o fruto de deduções que não todos podem realizar. Do mesmo modo, têm sua cota de
ingerência as pressões de uma sociedade e uma cultura ateia e hedonista, que cria um modo
de pensar conseqüente com suas máximas. Finalmente, o julgamento prático da razão
guarda uma forte dependência de nossos hábitos morais; e quando estes são vícios
arraigados, interferem influindo notavelmente nosso modo de julgar. Daqui a necessidade do
Magistério.

A relação entre o Magistério e a consciência é análoga a que medeia entre a luz e nossos
olhos. Nossos olhos não vêem se não mediar a luz: "Falar de um conflito entre a consciência
e o Magistério é o mesmo que falar de conflito entre o olho e a luz".

Uma nova confirmação da harmonia entre Magistério e consciência pode ser aduzida partindo
da ação do Espírito Santo sobre o Magistério e sobre a consciência dos fiéis. A Lei Nova,
instituída por Cristo, é uma lei fundamentalmente interior: a ação do Espírito Santo operante
pela graça nos corações. Mas supõe, junto, elementos externos, também obra do Espírito
Santo, quais são o texto escrito da Revelação, os sacramentos e também o Magistério da
Igreja. O Espírito Santo atua sobre os dois elementos, sobre a consciência com a graça,
sobre o Magistério com sua assistência: "O Espírito de Deus que assiste ao Magistério no
propor da doutrina, ilumina internamente os corações dos fiéis, convidando-os a emprestar
seu assentimento". Não pode pensar-se que a oposição da consciência ao Magistério (guiado
pelo Espírito Santo) possa ser fruto da docilidade da consciência ao mesmo Espírito Santo.

Por tudo isto, faz-se necessária a intervenção de um magistério que por um lado custodie
mantendo incólumes os princípios, e por outro ilumine o obrar cotidiano à luz dos mesmos.
Por tal motivo, Ratzinger analisando aquela famosa expressão de Newman, "se eu tivesse
que levar a religião a um brinde depois de uma comida... certamente brindaria pelo Papa .
Mas antes pela consciência e depois pelo Papa", entende-a no sentido de que é a
consciência, ou mas bem, a necessidade de que a consciência seja custodiada, iluminada e
preservada do engano, o que explica o Papado. "Só neste contexto, escreve Ratzinger, pode-
se compreender corretamente a primazia do Papa e sua correlação com a consciência cristã.
O significado autêntico da autoridade doutrinal do Papa consiste no fato de que ele é o fiador
da memória. O Papa não impõe desde fora, mas sim desenvolve a memória cristã e a
defende. Por isso, o brinde pela consciência tem que preceder ao do Papa, porque sem
consciência não haveria papado. Todo o poder que ele tem é poder da consciência: serviço
ao duplo recordo, sobre o que se apóia a fé que deve ser continuamente desencardida,
ampliada e defendida contra as formas de destruição da memória, que está ameaçada tanto
por uma subjetividade que esqueceu o próprio fundamento como pelas pressões de um
conformismo social e cultural".

Por isso disse com força João Paulo II, no Discurso que dirigiu aos participantes do II
Congresso internacional de teologia moral (ano 1988), que "o Magistério da Igreja foi
instituído por Cristo o Senhor para iluminar a consciência", e que por isso "apelar a esta
consciência precisamente para responder à verdade de quanto ensina o Magistério, comporta
o rechaço da concepção católica de Magistério e da consciência moral". O Magistério da
Igreja foi disposto pelo amor redentor de Cristo para que a consciência seja preservada do
engano e alcance sempre mais profunda e acertadamente a verdade que a dignifica. Por isso
equiparar os ensinos do Magistério a qualquer outra fonte de conhecimento banaliza o
Magistério, e faz inútil o sacrifício redentor de Cristo.

4. A educação da consciência

Isto nos leva a um último ponto: devemos formar e educar nossa consciência para que nossos
julgamentos sejam sempre verazes: "Terá que formar a consciência, e esclarecer o
julgamento moral. Uma consciência bem formada é reta e veraz. Formula seus julgamentos
segundo a razão, conforme ao bem verdadeiro querido pela sabedoria do Criador. A
educação da consciência é indispensável a seres humanos submetidos a influências
negativas e tentados pelo pecado a preferir seu próprio julgamento e a rechaçar os ensinos
autorizados. A educação da consciência é uma tarefa de toda a vida. Desde os primeiros
anos desperta o menino ao conhecimento e a prática da lei interior reconhecida pela
consciência moral. Uma educação prudente ensina a virtude; preserva ou sara do medo, do
egoísmo e do orgulho, dos insanos sentimentos de culpabilidade e dos movimentos de
complacência nascidos da debilidade e das faltas humanas. A educação da consciência
garante a liberdade e engendra paz no coração".

Para educá-la devemos fazer duas coisas:

Acima de tudo, devemos ilustrar e iluminar nossa consciência sobre o bem e sobre a verdade.
E isto se faz mediante a Fé, a Palavra de Deus e o ensino claro da Igreja. Dito de outro modo,
devemos ser fiéis à verdade. Vale para todo cristão o que o Papa mandava aos Bispos da
França: "Os Pastores devem formar as consciências chamando bom ao que é bom e mau ao
que é mau".

A gente pode estar seguro de que está obrando com uma consciência reta, com honestidade
de consciência, quando pôs todos os meios para que esta seja reta. Isto vale particularmente
para os tema delicados de nossa vida moral e espiritual, e especialmente aqueles sobre os
que temos dúvidas.

Aqui se vê, finalmente, o motivo pelo qual não pode haver divergência entre o ensino da Igreja
e a consciência do cristão. Porque o Magistério não é uma opinião mais a não ser uma das
fontes onde devem iluminar a consciência.. O Papa há dito: "...o Magistério da Igreja foi
instituído por Cristo o Senhor para iluminar a consciência". E na Veritatis Splendor diz: "A
autoridade da Igreja, que se pronuncia sobre as questões morais, não menoscaba a liberdade
de consciência dos cristãos; não só porque a liberdade da consciência não é nunca liberdade
‘com respeito’ à verdade, a não ser sempre e só ‘na verdade, mas também porque o
Magistério não apresenta verdades alheias à consciência cristã, mas sim manifesta as
verdades que já deveria possuir, desenvolvendo-as a partir do ato primário da fé. A Igreja fica
só e sempre ao serviço da consciência, ajudando-a não ser sacudida aqui e lá por qualquer
vento de doutrina segundo o engano dos homens (cf. Ef 4,14), a não desviar-se da verdade
sobre o bem do homem, a não ser a alcançar com segurança, especialmente nas questões
mais difíceis, a verdade e a manter-se nela".

Em segundo lugar (embora não de importância secundária) devemos viver virtuosamente,


procurar a virtude e educar nossas virtudes. Só a virtude pode nos garantir que nossa
consciência não queira "justificar" nossos comportamentos defeituosos ou nossos pecados.
"Em efeito, diz a Veritatis Splendor, para poder ‘distinguir qual é a vontade de Deus: o bom,
o agradável, o perfeito’ (ROM 12,2) sim é necessário o conhecimento da lei de Deus em geral,
mas esta não é suficiente: é indispensável uma espécie de ‘co-naturalidade’ entre o homem
e o verdadeiro bem. Tal co-naturalidade se fundamenta e se desenvolve nas atitudes
virtuosas do próprio homem a prudência e as outras virtudes cardeais, e em primeiro lugar
as virtudes teologais da fé, a esperança e a caridade". A virtude é fundamental para que as
paixões e os vícios não alterem a objetividade de nossos julgamentos, assim como quem
queimou a língua não pode julgar com exatidão sobre os sabores a não ser quem tem a língua
sã, assim no plano moral não pode julgar bem o vicioso a não ser o virtuoso: o bêbado ou o
luxurioso perdem a sensibilidade ante seus respectivos pecados (e isto não os desculpa,
porque a tal embotamento moral chegaram culposamente), e só o casto e o sóbrio discernem
claramente.

E é por isso que até ao mais pintado as paixões lhe fazem atirar pelos bordes a retidão de
seus julgamentos, quando não há virtude. Podemos dizê-lo com aqueles versos que o célebre
poeta romano Trilussa titulou precisamente "Coscenza", "Consciência":

C’era um ber frango sopra a credenza.

Er Cane, che o vidde, disse ar Micio:

–Io nu’ o tocco: faccio um sacrifício,

MA armeno sto tranquillo de coscenza.

–Per lhe, vai bè’: MA io che c guadagno?


–je chiese er Micio che fissava er piatto–

CO’ ‘sta fame arretrata? Fossi matto!

Preferisco er rimorso e me o magno.

Pedindo desculpas pela tradução:

Um lindo frango fumegava na credencia;

o Cão, suspirando, disse ao Gato:

–Eu não o toco: faço o sacrifício,

e fico tranqüilo de consciência.

–Admiro sua moral altruísta e mansa,

disse o Gato olhando a bandeja,

Mas, Jejuar com a fome que me aflige?!

Venha o remorso e à pança!

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Miguel A. Fontes, Psicologia e Teologia da conversão, Diálogo 25 (1999), 93-120.

–––––––––––––––, Sentido do pecado e remorso, Diálogo 24 (1999), 141-156.

–––––––––––––––, A consciência e o magistério, Gladius 34 (1995) 37-50.

–Ramón García do Haro, A consciência moral, Rialp, Madrid 1978.

–A. Roldán, A consciência moral, Razão e Fé, Madrid 1966.

–C. Caffarra, Conscience, Truth and Magisterium in Conjugal Morality, em: Anthropos, Riv.
dava Studi sulla Pessoa e a Famiglia, 1 (1986), pp. 79 ss.

–V. Rodríguez, Função mediadora da consciência, em: "Mikael", Rev. do Seminário de


Paraná, 24 (1980), 111-124.

–L. Melina, A conoscenza lhe more, Città Nuova Ed., Roma 1987.

–Sagrada Congregação do Santo Ofício, Instrução sobre a «ética de situação», Contra


doctrinam, 2 de fevereiro de 1956.

–Paulo VI, Discurso breve na Audiência Geral de 12/II/1969.

–Joseph Ratzinger, Elogio da consciência, Esquiú 23 de fevereiro de 1992, P. 30.

–João Paulo II, Discurso ao II Congresso de Teologia Moral, L’Osservatore Romano, 22/I/89,
P. 9.
X. A verdade roubada sobre a história

A importância de respeitar a verdade histórica

Faz muitos anos li um livro cujo título é As mentiras do mundo moderno. Ali, com documentos
em mão, pode-se ver –pelo menos sobre alguns temas pontuais– como os grandes meios de
comunicação de nossa sociedade constantemente versam os dados que dirigimos. Uma das
maiores falsificações de nossos tempos é a relativa aos fatos históricos. Se sua carreira te
levar pelos atalhos da história, a sociologia, o magistério, etc., é muito provável que tope com
muitas afirmações que não são verdadeiras. Isto representa um enorme dano para sua
formação e para seus futuros alunos.

1. Manipular a história

Versar a história, por quê ou para que? Por motivos ideológicos, acima de tudo. Às vezes os
dados foram modificados para criar opinião pública. Assim, por exemplo, as lendas contra o
trabalho da Espanha em terras americanas (que aconteceu à posteridade como a lenda negra
por antonomásia) foram criadas, em grande parte, pelos inimigos da coroa espanhola –
principalmente seus inimigos ingleses e sobre tudo a franco-maçonaria– para suscitar o
consenso internacional contra Espanha. Com o tempo as lendas passaram a ocupar um lugar
importante nos programas de estudo de nossas escolas laicas, e inclusive das católicas.

Em muitos casos, estas lendas negras formaram parte de campanhas denegridoras contra a
Igreja católica e contra aquelas instituições civis ou políticas que a apoiaram em algum
momento de sua história. É o caso da Espanha católica do século XVI.

A versada também teve como móvel interesses de ordem política. Está acostumado a dizer-
se que a história a escrevem os vencedores. Tem isto algo de verdade; embora não é toda a
verdade, pois a história às vezes se escreve enquanto se combate e precisamente como uma
das armas mais úteis para alcançar a vitória. Ao menos a vitória política e militar; nunca a
vitória moral que só pode conseguir-se com a verdade. Mas a quantos políticos, sociólogos
e ideólogos, pode lhe importar uma vitória moral? Assim passou com nossa própria história,
pelo qual o mesmo João Batista Alberdi acusava às liberais argentinas de ter desfigurado a
história. E o confessam alguns deles, como Mitre quando escreve a Vicente López: "você e
eu tivemos... a mesma repulsão por aquelas [figuras históricas] a quem tenho enterrado
historicamente". E Sarmento lhe escrevia ao general Paz ao oferecer-se seu livro "Facundo":
"O tenho escrito com o propósito de favorecer a revolução e preparar os espíritos. Obra
improvisada, enche por necessidade de inexatidões, a intuito [propósito] às vezes, para
ajudar a destruir um governo e preparar o caminho a outro novo". A confissão de parte...
substituição de provas.

As "inexatidões a intuito", os "enterros históricos" das grandes figura... É triste saber que
nossa história está infestada de mentiras e falsificações.

Que interesses podem seguir-se de uma adulteração do passado? Muitos. O mais importante
é o domínio do presente e do futuro. "A história do que fomos explica o que somos", escrevia
Hillaire Belloc. Se mudo a história te oculto, então, o que realmente é; e se não saber o que
é, será o que eu quero que seja. Se mudo –em sua mente ao menos– seu passado, posso te
fazer guerrear contra seu pai e sua mãe te fazendo acreditar que são seus inimigos. Posso
fazer odiar a seus benfeitores e posso obter que me beije as mãos cheio de gratidão apesar
de que sou o ladrão que te lavou o cérebro.
Não é raro que o manejo manipulador da história se converteu em uma das armas mais
capitalistas na mentalidade das gerações. Porque com a história posso te fazer amar o que
em realidade é odioso e te fazer odiar o que é amável. Com o domínio da história (da história
escrita e a história contada) posso, como faz em nossos tempos a New Age, te desenhar um
Jesus Cristo diabólico e um diabo benfeitor da humanidade; posso te apresentar um
paganismo idílio açoitado por uma Igreja tirânica; posso te fazer acreditar que quem lhe trouxe
a fé só queriam seu sangue e seu ouro; posso te vestir de piratas aos missionários e angelizar
os tiranos. O marxismo entendeu muito bem o poder destrutivo desta manipulação cultural;
especialmente a partir de um homem tão inteligente como intelectualmente pervertido como
foi Antônio Gramsci, o ideólogo da revolução cultural. De todos os modos, não é um
descobrimento dele, como poderá ver se tiver em conta as lendas negras da antiguidade.

Muito se falou que a inquisição, das caçadas de bruxas, dos genocídios da América, da
perseguição contra o paganismo, da febre espanhola do ouro, das idílicas situações dos
indígenas americanos. Não salta assim dos documentos, nem das testemunhas
contemporâneas aos fatos, e em muitos casos nem sequer das declarações das mesmas
"vítimas".

Por isso, devemos sempre olhar quem diz as coisas; deve observar que móveis podem ter,
que fatia tiram com suas afirmações. E nunca escute um só sino. Investiga e estuda.

Digamos, de passagem, que tampouco fazem um grande serviço quem se defende das
lendas negras fazendo exaltações indevidas do que aquelas denigrem. Compreende-se sua
dor e as motivações que podem levá-los a reivindicar o que os falsários pisotearam
indecentemente. Mas não emprestam um autêntico serviço à verdade se não ficar de
manifesto toda a verdade. Há casos, indubitavelmente, em que se cobriram em torno de uma
situação histórica, uma instituição ou alguns personagens, patranhas injuriosas sem
nenhuma base de verdade. Pensemos simplesmente nas acusações contra Jesus, repetidas
ao longo da história contra muitos Santos e heróis. Mas em muitos casos não nos
encontramos com uma tal pureza de doutrina ou de vida. O mesmo Senhor predisse que em
seu campo encontraríamos misturado o trigo com o joio. Se aos que falsificam a história
pretendendo que cremos que tudo foi joio os enfrentamos dizendo que tudo foi trigo ou que
o joio foi quase inexistente, não faremos bom serviço nem à história nem a nossa
credibilidade.

Erros houve muitíssimos, como pode esperar-se de uma urdidura tecida por seres de carne
e osso, com paixões não controladas e muitas vezes com paixões vergonhosas (e não só de
luxúria falo mas sim de injustiça, de inveja e de cobiça).Houve abusos por parte dos que
foram fundamentalmente bons e justos mas não completamente bons nem justos. Tenhamos
presente que muitos foram os Santos; mas nunca os Santos foram "a maioria" de uma
geração.

Há casos em que as coisas que se criticam foram em realidade enganos involuntários ou


decisões equivocadas de pessoas que não sabiam que estavam equivocadas e portanto
devemos julgá-lo com justiça: é involuntário (portanto não o imputaremos a seu autor
material) mas é um engano. Em muitos outros casos, as coisas que hoje em dia nos
escandalizam não podiam compreender-se ainda em seu tempo ou não repugnavam a
sensibilidade de seu século como ocorre, talvez, no nosso. Os maiores homens foram filhos
de sua época; não os podemos julgar com todos os critérios que nos há custado suor e
lágrimas alcançar com o passo de décadas e séculos. Não julguemos a um homem do século
V ou do século XIII ou do XVI com a mentalidade de um homem do século XX, naquelas
coisas que dependem muito de circunstâncias temporárias ou culturais, como pode ser o
caso das idéias que tiveram muitos de nossos antepassados sobre fenômenos como a
escravidão, o direito de guerra, a liberdade de opinião, e outros fenômenos deste estilo. De
todos os modos, não devemos nos acreditar muito sensíveis em uma época em que
denegrimos a escravidão do passado ao mesmo tempo que aceitamos escravidões modernas
mais graves e mais extensas que as do passado, como a da prostituição ou a droga ou as
opressões econômicas que inundam a povos inteiros na injustiça e a miséria; ou vituperamos
as matanças e as guerras da antiguidade nos tampando os olhos ante genocídios diários
como o do aborto, as "limpezas" étnicas e os extermínios religiosos, etc.! Mas tampouco
vamos justificar nenhuma perversão do passado para que se realize no presente, nenhuma
degeneração do presente porque "sempre tenham ocorrido coisas assim". A verdade sempre
será verdade, a mentira sempre será mentira, a injustiça jamais deverá ser justificada.

Assim e tudo devemos ser conscientes de que se pode chegar com a razão a muitas verdades
que pertencem –ao menos secundariamente– ao direito natural; e por isso podemos supor
certa culpabilidade em muitos julgamentos errôneos do passado. Não podemos então
desculpá-los. Mas tampouco podemos acusá-los como o faríamos com nossos
contemporâneos.

Queria mencionar um par de escritos que me chocaram de modo muito particular sobre o
modo de realizar um trabalho de seriedade histórica. O primeiro deles tem como centro os
debates sobre o frade Bartolomeu de Las Casas. Como é sabido, a lenda negra anti-
espanhola lhe deve muito. Os inimigos da Espanha e da Igreja põem às Casas pelas nuvens;
seus caluniadores o acusam de paranóico, inventor de calúnias e difamatório (alguns deles
–não todos– salvando sua intenção, dizendo que ele mesmo se acreditava as coisas que
inventava e o levava a forjar-se tais histórias um sincero amor pelos indígenas americanos).
Um documento que me resultou muito luminoso foi a carta dirigida desde a Taxcala em 1555
ao imperador Carlos V por uma pessoa de probidade indubitável; refiro-me ao contemporâneo
de As Casas, Frei Toribio de Benavente, conhecido em nossa a América como Frei Toribio
Motolinía, personagem muito amado pelos indígenas mexicanos (foram eles quem lhe
chamou Motolinía que em sua língua significa Pobre, e que depois ele adotou como nome
próprio). Sua carta tem um valor excepcional, pois poucos anos antes (1541) tinha dedicado
ao mesmo destinatário uma maravilhosa obra com o título "História dos índios da Nova a
Espanha", onde não tem reparo em denunciar –toda vez que é necessário– abusos por parte
de espanhóis e não espanhóis, e pôr as coisas em seu lugar (um de cujos capítulos o título
é precisamente: "De alguns espanhóis que trataram mal aos índios, e do fim que tiveram");
como também faz nesta carta ao Imperador, que não é tudo louvores e defesas, a não ser
"postas a ponto". Não se trata portanto de uma pessoa de interesses criados a favor dos
conquistadores. Pois bem, nesta carta, Motolinía escreve a Carlos V como resultado das
campanhas de desprestígio que De las Casas levava a cabo na Espanha. Adverte ao
imperador lhe dizendo que "não tem razão o De las Casas de dizer o que diz e escreve e
imprime", e o acusa de "ser mercenário e não pastor", por ter abandonado a suas ovelhas
para dedicar-se a denegrir a outros. E logo diz do frade bagunceiro: "aos conquistadores e
encomendadores e aos mercados os chama muitas vezes, tiranos ladrões, violentadores,
raptores; diz que sempre e cada dia estão tiranizando os Índios (...) por certo De las Casas
se atreve a muito, e muito grande parece sua desordem e pouca sua humildade; e pensa que
todos erram e que ele sozinho acerta, porque também diz estas palavras que se seguem à
letra: todos os conquistadores foram ladrões, raptores e os mais qualificados em mau e
crueldade que jamais foram, como é a todo mundo já manifesto: todos os conquistadores
,diz, sem tirar nenhum (...) Eu me maravilho como Sua Majestade e os de seus Conselhos
puderam sofrer tanto tempo a um homem tão pesado, inquieto e importuno, e buliçoso e
demandista em hábito de religião, tão desassossego, tão mal criado e tão angariador e
prejudicial, e tão sem repouso: eu conheço De las Casas há quinze anos (...), e sempre
escrevendo processos e vidas alheias, procurando os males e delitos que por toda esta terra
tinham cometido os Espanhóis, para ofender e lhes encarecer maus e pecados que
aconteceram: e nisto parece que tomava o ofício de nosso adversário [quer dizer, do
demônio], embora ele pensava ser mais ciumento e mais justo que os outros Cristãos e mais
que os Religiosos, e ele aqui pouco teve de religião". E quando Motolinía compara ao
Marquês do Vale, quer dizer, ao Hernán Cortês, com seus caluniadores (entre os quais De
las Casas) afirma: "eu acredito que diante de Deus não são suas obras tão aceita como o
foram as do Marquês; embora como homem fosse pecador, tinha fé e obras de bom cristão,
e muito grande desejo de empregar a vida e fortuna por ampliar e aumentar a fé do Jesus
Cristo, e morrer pela conversão destes gentios, e nisto falava com muito espírito, como aquele
a quem Deus tinha dado este dom e desejo". Com muita razão criticava Motolinía ao De las
Casas lhe acusando que "ele não procurou saber a não ser o mau e não o bom". Mais
ajustado à realidade frei Toribio compensa seus julgamentos afirmando que "dado caso que
alguns [Pecuaristas, Calpixques e Mineiros] tenha havido ambiciosos e mau olhados,
certamente há outros muitos bons Cristãos e piedosos e caritativos, e muitos deles casados
vivem bem".
Este equilíbrio entre seus escritos; criticando o que terá que criticar, elogiando o que é
louvável e matizando o que terá que matizar, mostra às claras que o julgamento sobre as
realidades temporárias nunca pode ser verdadeiro se uma paisagem se pintar sozinho em
branco e negro. A vida tem muitos matizes; o ignorá-los leva a injustiça histórica.

O segundo escrito que não quero deixar de mencionar é a monumental obra de Marcelino
Menéndez e Pelayo, "História dos heterodoxos espanhóis", com seus oito tomos admiráveis.
Um de cuja leitura não terá que privar-se é o referido aos problemas dos sistemas de
iluminação e em particular ao processo que a Inquisição espanhola fez a frei Bartolomeu
Carranza, nada menos que sendo este arcebispo de Toledo. Pois escreve Dom Marcelino ao
começar seu trabalho: "Árduo, imenso trabalho seria a deste capítulo se nele tivéssemos que
narrar caprichosamente quanto resulta do estudo, árido e irritante como nenhum outro , que
tivemos que fazer do processo de Carranza, rudis indigestaque mói; como que consta não
menos que de vinte e dois volumes em fólio e de perto de 20.000 folhas, até sem ter em conta
os documentos de Roma, as obras mesmas do arcebispo e o que dele escreveram Salazar
de Mendoza, Lhorente, Sáinz de Corrimão, D. Adolfo de Castro e D. Fermín Cavalheiro (1731)
e (1732). Sem dificuldade se persuadirá o leitor que cheguei a tomar ódio a tão pesado
embora importante assunto e que não vejo chegada a hora de dar conta dele nas menos
palavras possíveis, porque temo perder a cabeça e o pouco gosto literário que Deus me deu
se por mais tempo sigo enredado na abominável leitura dos mamotretos que copiou o tabelião
Sebastián de Landeta. Por outra parte, como não escrevo uma monografia sobre Carranza,
a não ser uma história extensa e de muita variedade de personagens e acontecimentos, lícito
me será tomar só a flor do assunto, deixando o resto para os futuros biógrafos do arcebispo.
Entro neste trabalho sem afeição nem ódio a Carranza nem a seus juízos, e só formularei
meu julgamento depois de narrar escrupulosamente o que resulta dos documentos". Já pode
coligir-se desta obra, que Menéndez e Pelayo não escrevia de ouvidos a não ser depois de
ter lido, analisado e estudado cada passo deste processo... quer dizer, vários milhares de
folhas! Apesar disto nunca se toma mais atribuições em seus julgamentos históricos que os
que lhe permite o bom senso e os dados certos que dirige diante... freando-se onde suas
sentenças possam constituir uma afronta. Por isso, não deve ser raro que ao final de seu
estudo se pergunte: "O que temos que pensar de Carranza?", e responda com uma
extraordinária sensatez e imparcialidade: "clara e sinceramente afirmo que Carranza
escreveu, ensinou e dogmatizou proposições de sabor luterano". Mas imediatamente depois,
ao mencionar que Carranza fez profissão em seu leito de morte que jamais disse, ensinou ou
professou uma heresia, o mesmo autor acrescenta este parágrafo memorável: "Francamente,
se não tivéssemos a protesta de fé feita ao morrer por Carranza diante de Jesus
Sacramentado, na qual categoricamente afirmou que não tinha cansado em nenhum engano
voluntário, não haveria meio humano de lhe salvar. Mas ante essa declaração convém
guardar respeitoso silêncio. Dos pensamentos ocultos só a Deus pertence julgar. Eu não
acredito que Carranza mentisse sabendo em seu leito de morte. E, em soma, desculpando a
intenção, julgou dele como julgou a sentença: Veementemente suspeito de heresia,
amamentado na a doutrina de Lutero, Melanchton e Ecolampadio". Assim deve escrever um
historiador; sabendo parar-se nas soleiras da consciência alheia e deixando a Deus os
julgamentos últimos. O que pensaria Dom Marcelino de nossos escritores de folhetins e
páginas de Internet que escrevem do que ignoram, que só cortam e pegam um par de textos
tomados sem critério algum, e que logo fazem julgamentos que parecem infalíveis? Isso não
é fazer história; nem se convertem em historiadores nem adquirem direito a julgar da historia
os que procedem com tanta superficialidade como pode ver-se em nossos dias. E isto,
embora se tenham títulos e currículos surpreendentes (que também se podem falsificar).

É necessário, portanto, que forjemos nossas inteligências com um grande sentido crítico.
Muitas vezes recebi consultas onde se expõem temas que muitos adversários da Igreja
utilizam como cavalos de batalha sem ter, em realidade, a mais pequena idéia do tema; só
repetem ladainhas pré-fabricadas, que uns se emprestam a outros e nos que uns e outros se
citam mutuamente tentando com isto dar-se mais autoridade. Fulano inventa um rumor e o
faz público, talvez matizando com algum "pode ser", "talvez", "não seja que", etc. Outro o
transmite a sua vez, apoiando-se em que o tem lido (precisamente no Fulano que o lançou
aos quatro ventos), logo um terceiro o propaga já lhe aplicando um plural: "dizem que".
Finalmente, a cadeia se faz interminável e é obvio "solidamente estabelecida" pois "todo
mundo afirma que".... Mas nenhum se tomou o trabalho de verificar os fatos nem cotejar
documento algum. Isto se assemelha ao conto "do rumor infundado" que termina parecendo
certo pelos efeitos que ele mesmo produz (e que se encontra em autores tão díspares como
Chesterton e García Márquez); é a lenda da mãe que manda o filho comprar pão; um
quilograma, como sempre; mas como a tarde é cinza e pesada lhe diz: "Compra dois, se por
acaso ocorre algo". O menino diz ao padeiro: "Se por acaso ocorre algo, dois quilogramas de
pão". Uma vizinha escuta e repete no mercado que dupliquem suas rações habituais, "se por
acaso ocorre algo". Outras ouvintes reclamam a mesma duplicação com a mesma frase. De
noite as despensas estão repletas "se por acaso ocorre algo". Os maridos chegam e escutam
as afligidas explicações de suas mulheres. Um deles decide escapar, porque não pensa
suportar que algo ocorra. Tira sua carreta disposto a partir com tudo o que pode levar-se;
ouvem seus vizinhos, saem e compartilham a idéia de abandonar o povo, "se por acaso
ocorre algo". Já todos na rua, causa pena se dessas casas que só eles habitaram, e para não
as abandonar à sorte de intrusos, não duvidam de as incendiar. Já afastando-se a triste
caravana de seres confundidos, alta a poeirada do caminho e em meio da noite iluminada
pelo fogo, a mãe do começo olha entristecida as chamas do povoado e diz a seu filho: "Foi o
que te disse, ia ocorrer algo".

Desta maneira se criam as "histórias paralelas" completamente falsas mas solidamente


confiadas. Estamos imensamente longe da solidez dos grandes historiadores, como o
eminente Ludwig von Pastor. Menciono a este historiador alemão (1854–1928) pois é autor
de uma das obras monumentais da crítica histórica: sua "História dos Papas" ("Geschichte
der Päpste seit dem Ausgang dê Mittelalters. 1305-1799"); obra traduzida aos principais
idiomas ocidentais e publicada em vários volumes (segundo as edições vão de 16 a mais de
40 volumes), e elogiada por autores católicos e não católicos. Von Pastor, estudou história
nas universidades de Lovaina, Bonn, Berlim, Viena e Graz; foi professor no Innsbruck, dirigiu
o Instituto Histórico Austríaco, em Roma. Foi protestante e terminou convertido ao
catolicismo; em seu trabalho combinou o amor pela Igreja Católica com o mais meticuloso
academismo e erudição; foi privilegiado com o acesso aos arquivos secretos do Vaticano, e
sua história, apoiada amplamente em documentos não considerados até a data de seu
trabalho, supera a todas as histórias anteriores dos Papas; segundo a Columbia Encyclopedia
a idéia fundamental de Pastor (quem se desempenhou como ministro austríaco ante o
Vaticano desde 1921) é que os defeitos do papado refletiram as debilidades de cada época.
O Grande Dicionário Enciclopédico UTET diz da obra de Pastor que "representa um estudo
muito notável; a tese católica do autor não lhe impede de expor e criticar com toda liberdade
o obrado por alguns Papas do Renascimento, enquanto que a riqueza de documentação lhe
permite corrigir muitos dos prejuízos mais comuns, sobre tudo de parte dos protestantes".
Este autor para escrever sua obra "por espaço de 50 anos investigou nos arquivos de 230
cidades européias (...) Mostra um domínio perfeito da documentação...".

A muitos que consultaram sobre aparentes escândalos de alguns Papas, ou sobre situações
pouco edificantes da Igreja, recomendei-lhes a leitura desta obra; ao menos das passagens
relativas aos tema questionados por eles; porque sendo questões tão importantes (das que
em alguns casos dependia a adesão ou não destas pessoas ao catolicismo) não se podem
solucionar com resumidas respostas. Infelizmente em muitos casos constatei que meus
curiosos interlocutores não estavam interessados em nenhum estudo de fundo, sério,
documentado e profundo, a não ser só em respostas rápidas ("fast food" mental) curtas e
completamente prováveis! Mau signo de saúde intelectual. A verdade sempre exigirá ao
máximo nossa inteligência.

2. Confrontar a verdade

Nesta questão acredito que a Igreja nos deu um extraordinário exemplo de probidade
científica. Tivemos oportunidade de observá-lo muito de perto, nos anos prévios ao grande
jubileu do ano 2000, no qual o Papa João Paulo II quis realizar um ato central pedindo perdão,
em nome de toda a Igreja, pelas culpas cometidas por seus filhos ao longo dos dois mil anos
de história que temos vividos. Mas antes de proceder ao pedido de perdão, realizaram-se
muitos estudos históricos (inclusive simpósios internacionais) nos que se estudaram os
documentos para determinar com exatidão quais eram essas culpas (em particular as
acusações relacionadas com as cruzadas, a inquisição, o anti-semitismo). Com ocasião da
publicação das Atas do simpósio internacional sobre a Inquisição, o Papa escrevia: "É justo
que... a Igreja assuma com uma consciência mais viva o pecado de seus filhos recordando
todas as circunstâncias nas que, ao longo da história, afastaram-se do espírito de Cristo e de
seu Evangelho, oferecendo ao mundo, em vez do testemunho de uma vida inspirada nos
valores da fé, o espetáculo de modos de pensar e atuar que eram verdadeiras formas de anti-
testemunho e de escândalo". E fazendo referência ao caso concreto da Inquisição
acrescentava: "Ante a opinião pública a imagem da Inquisição representa de alguma forma o
símbolo deste anti-testemunho e escândalo. Em que medida esta imagem é fiel à realidade?
antes de pedir perdão é necessário conhecer exatamente os fatos e reconhecer as carências
ante as exigências evangélicas nos casos em que seja assim (...) Terá que recorrer ao
‘sensus fidei’ para encontrar os critérios de um julgamento justo sobre o passado da vida da
Igreja".

O Cardeal Georges Cottier OP, explicava: "É óbvio que uma petição de perdão só pode afetar
a feitos verdadeiros e reconhecidos objetivamente. Não se pede perdão por algumas imagens
difundidas pela opinião pública, que formam parte mais do mito que da realidade". E o
historiador Agostinho Borromeo, professor da Universidade A Sapienza de Roma,
acrescentava: "Hoje por hoje os historiadores já não utilizam o tema da Inquisição como
instrumento para defender ou atacar à Igreja. A diferença do que antes acontecia, o debate
se transladou a nível histórico, com estatísticas sérias". E o mesmo professor constatava "que
à lenda negra criada contra a Inquisição em países protestantes lhe opôs uma apologética
católica propagandista que, em nenhum dos casos, ajudava a obter uma visão objetiva".

Por isso devemos dizer que a investigação estritamente histórica nunca será um mal, e não
terá que lhe temer a não ser confiar nela: a verdade se impõe por si mesmo; não necessita
nem nossa poesia, nem nossa retórica, nem nossos argumentos sofisticados. Como há dito
João Paulo II: [a Igreja] "...não tem medo à verdade que emerge da história e está disposta a
reconhecer equívocos ali onde se verificaram, sobre tudo quando se trata do respeito devido
às pessoas e às comunidades. Mas é propensa a desconfiar dos julgamentos generalizados
de absolvição ou de condena em relação às diversas épocas históricas. Confia a investigação
sobre o passado a paciente e honesta reconstrução científica, livre de prejuízos de tipo
confessional ou ideológico, tanto no que diz respeito às atribuições de culpa que lhe fazem
como em relação aos danos que ela padeceu".

3. Lendas negras e lendas rosas

As lendas negras da história em geral som muito numerosas. É muito difícil que não tenhamos
ouvido falar muito mal do caso Galileo Galilei, da Inquisição, da expulsão dos judeus da
Espanha, das cruzadas, da conquista da América, das riquezas da Igreja, do Papa Pio XII e
o nazismo, do anti-semitismo da Igreja, etc. Como complemento obrigado se somam as
lendas rosas: mitificações tão falsas como as anteriores; pensemos nos halos celestiais que
rodeiam certos fatos do passado como o estado quase paradisíaco em que teriam se
encontrado os indígenas pre-colombinos e que os conquistadores europeus destruíram com
sua presença bélica (tampando-os olhos antes os séculos de violência e extermínio que
reinavam entre as diversas tribos americanas, os rituais demoníacos, a prática da
antropofagia, os sacrifícios humanos rituais, as deportações de povos inteiros, a escravidão
que reinava entre eles, as famosas "guerras floridas" realizadas para conseguir vítimas
humanas para os sacrifícios idolátricos, etc.); o mesmo se diga do estado idílio com que se
descreve o paganismo pre-cristão (tema muito posto de moda pelas correntes da New Age);
ou, mais próximo a nós, as apresentações simpáticas de acontecimentos sangrentos e
desumanos como os da revolução francesa, as liberais trama de algumas revoluções
americanas, as políticas imperialistas britânicas, etc. A tudo isto se deve somar as lendas
negras e rosadas que afetam a história de cada país, em particular os de raízes católicas.
Entre nós não faltou a idealização de personagens que, apesar das grandezas que não lhes
temos que negar em alguns campos, não foram modelos nem modelos de bondade, nem
justiça, nem patriotismo, nem cultura, apesar do qual dão nome à maioria de nossas praças,
povos, ruas e monumentos; penso em Sarmento,* Mitre, Rivadavia, Moreno, Lavalle,
Pellegrini, Rocha, Justo José de Urquiza, Adolfo Saldias, Juan Andrés Gelly e Obes, Santiago
Derqui, e tantos outros mais aos que nossa história –escrita muitas vezes por eles mesmos–
os põe pelas nuvens em hinos, poemas, composições e pueris fábulas escolar, quando em
muitos casos se trata dos artífices da perda de nossa cultura, da descristianização de nossos
costumes, do empobrecimento de nossa pátria e inclusive do derramamento de sangue
inocente em inúteis e injustas lutas fratricidas. Mas aí os temos elogiados de "grandes"
"ínclitos" "gloriosos" e todo o epiteto com que nimbam nossos banais livros escolares. Ao
mesmo tempo que os verdadeiros heróis de nossa história, os que forjaram a pátria e os que
edificaram sua cultura muitas vezes são desconhecidos ou nos oculta seu verdadeiro perfil
de grandeza (em muitos casos seu catolicismo); basta observar que nos textos escolares
jamais se nomeia o trabalho dos grandes missionários, muitos deles mártires que semearam
de fé, de cultura e de civilização, nossas terras. Felizmente em nossa pátria contamos com
grandes historiadores que têm feito um verdadeiro trabalho de revisionismo procurando
desentranhar a verdade em uma história tecida de sutis invenções ideológicas. Deveríamos
ter presente os grandes trabalhos de Vicente Serra, Federico Ibarguren, Rómulo Cárbia,
Enrique Díaz Araujo, Guillermo Furlong, Cayetano Bruno, etc.; infelizmente muitos destes
estudos não chegam ao grande público, ficam estancados nas bibliotecas dos mais cultos,
enquanto nas escolas, colégios e universidades, segue-se bebendo nas fontes turvas da
história falsificada.

(*Se trata de personagens argentinos, já que o autor desse livro é oriundo desse país)

Não é a intenção destas páginas –nem competência de seu autor– refutar nenhuma das
referidas lendas anti-históricas. Até seria infrutífero pretender sequer uma superficial
apresentação das principais falsificações (embora algumas tenhamos mencionado). Basta-
me acautelando sua inocente inteligência deste perigo e te sugerir que forje em ti um
verdadeiro espírito crítico. Espírito crítico não quer dizer mente "maldizente" a não ser uma
inteligência capaz de discernir um gato de uma lebre. Como poderá obtê-lo? Estudando
seriamente; não fique com o oficial; estuda aos autores sérios, especialmente aqueles que
podem te forjar um julgamento de sua probidade e honestidade intelectual. Estuda livros
documentados e vá às fontes. Lê, se puder, os livros dos contemporâneos destes sucessos.
E sobre tudo não "forme" sua inteligência em panfletos, revistas, livros de divulgação maciça
e textos de ensino puramente vulgar. E toma cuidado das ideologias!

4. Modernos inimigos da verdade

Hoje em dia os perigos de uma formação falsificada aumentaram que modo formidável por
causa de algumas fontes que os inimigos da verdade têm descoberto como verdadeiras
"minas" da falsificação; quero te mencionar três: a literatura barata, o cinema e a Internet.

A literatura que se "vende" a um público superficial (por algo o principal qualificativo que hoje
se usa é o de best seller, "o mais vendido"!) canalizou seus esforços ideológicos através do
gênero da "novela histórica", que, em realidade não é tal já que, na maioria dos casos, o
qualificativo de histórico só quer dizer que as situações descritas foram ambientadas no
passado; mas histórico não tem o significado de "verídicos" (embora o pretenda!); ao
contrário, baixo este gênero se transmitem mentiras, falsificações, distorções da realidade,
calúnias descomunais sobre instituições, fatos e personagens. Trata-se, portanto, de novelas
de "historia-ficção". Tome-se como exemplo muito atual alguns dos escritos que se auto-
proclamam "investigações históricas", como, por exemplo, os livros da Margaret Starbird:
María Madalena e o Santo Grial. A mulher com o frasco de alabastro; A deusa nos
evangelhos; os do Picnett e Prince, A revelação dos templarios, e Enigma do Lençol Santa;
o conhecido do Baigent, Leight e Lincoln, O enigma sagrado (em inglês Holy Blood, Holy
Grail), e o atualmente famoso de Dão Brown Código Da Vinci. Em uma nota ao começo deste
último livro, o autor declara descaradamente que "todas as descrições de arte, arquitetura,
documentos e rituais secretos nesta novela são fidedignas". Entretanto quem tem tomado o
trabalho de lê-lo criticamente publicaram páginas inteiras com listas de enganos, invenções,
falsificações e simples patranhas que abundam –com marcada má intenção– por todo o livro;
basta examinar a bibliografia que Brown usou para dar-se conta de que os livros sérios de
história ou arte não são os que compõem sua biblioteca pessoal e menos ainda sua bagagem
intelectual; pelo contrário, suas fontes de informação são as para-ciências, livros esotéricos
e pseudo-histórias conspirativas, etc. Para que se veja até que ponto há uma "trama" contra
a verdade, basta ler as críticas literárias de alguns jornais que, não obstante as mentiras do
livro, catalogaram-no de "trabalho histórico", "história fascinante e documentada especulação
que vale vários doutorados", ou simplesmente como "investigação impecável". Todos estes
livros, qualificam seu empenho como um retorno à verdade histórica, reivindicando a imagem
"gnóstica" de Jesus Cristo (o tema dos evangelhos gnósticos é hoje em dia um das estrofes
mais entoadas) como a "verdade original" sobre Jesus Cristo, e o fato de que a Igreja católica
dos primeiros séculos alterou e apagou a verdadeira figura de Jesus criando um Jesus anti-
feminista, fundador de um movimento religioso, celibatário, sofrido e divino. Mas isto não é
mais que uma projeção para o passado de um fenômeno que é estritamente moderno: "a
lavagem cerebral de massas". Ao pretender que os "chefes eclesiásticos" junto ao poder
político do século IV foram capazes de apagar por completo a imagem real de Cristo impondo
a imagem divinizada que prevaleceu até nossos dias, supõem no mundo antigo uma
capacidade de mentira (e uma capacidade de engano) que só conhecemos (poder real) na
última centúria. É nosso tempo o que pôs a ponto –e em marcha– o maior aparelho de
"lavagem de cérebro" através dos meios de comunicação dirigidos por interesses espúrios.
Mas o mesmo fato de que contando com semelhante aparelho não tenham obtido ainda seu
objetivo (depois do meio século de trabalho) demonstra que isto não foi possível no passado:
a Igreja não poderia ter obtido nos primeiros tempos impor a imagem legendária de Cristo
pelo simples fato de que na atualidade, com um poder quase imensamente superior de
comunicação e técnicas de convencimento (imprensa, televisão, internet, cinema, imprensa,
etc.), não conseguiram os meios de comunicação maciça impor a imagem contrária.

Nem sequer o explica a credulidade dos antigos. É certo que nos primeiros séculos de nossa
era cristã tem que ter existido um número grande de gente pouco séria e de crédulos (este é
um fenômeno humano que começou quando Eva acreditou no primeiro repórter da criação:
aquela serpente que apregoou no paraíso sua "versão dos fatos" divinos); entretanto, mais
crédulos são os homens de nosso tempo que aceitam com entusiasmo acrítico tudo quando
lhes vende diariamente apesar de constatar –também quase diariamente– a adulteração de
informação fundamental.

A realidade do ocorrido é, por outro lado, a contrária desta teoria da imposição de uma
imagem falsificada de Cristo: o que ocorreu foi o fracasso do intento de defraudar a verdade
sobre Cristo. Os escritos gnósticos (que não foram tampouco tantos como pretendem autores
como D. Brown) foram o primeiro ensaio de introduzir um Cristo "desnaturado". A tentativa
fracassou rotundamente não por manejos políticos mas sim porque a verdade sobre o Jesus
Cristo estava rubricada com o sangue dos mártires que não deram a vida –nem lhes tivesse
ocorrido dá-la– pelo "companheiro sentimental" da Madalena (como é o Jesus dos
feministas), nem pelo atormentado Jesus de Kazanzakis, nem pelo libidinoso Jesus Cristo
super-star. Se os atuais defensores da teoria do Cristo mitificado, pensam que os cristãos
dos primeiros séculos puseram o pescoço sob as garras dos leões por um Cristo como este,
então supõem que os primeiros cristãos eram tão néscios tal como são eles. Mas nem
aqueles de então eram tolos, nem estes de agora são mártires cristãos.

O cinema, em muitos casos, é o segundo passo que transitam estas modernas fabulações.
Mencionemos só alguns dos filmes que pretendem conter elementos históricos: "Jesus Cristo
Super-star" (de Norman Jewison, 1973), "A última tentação de Cristo" (Martin Scorsese,
1988), "Priest" ("Sacerdote"; de Antônia Bird, 1995), "Godspell" (de David Greene, 1973), "O
corpo" (do ano 2001, sobre o presumido descobrimento do corpo de Cristo e portanto contra
sua ressurreição), "Estigma" (do ano 1999; em que aparece o descobrimento do evangelho
apócrifo de Tomás, que seria anterior aos que integram o cânon da Bíblia cristã e que poria
à Igreja católica em perigo de desmoronamento), "Amém" (filme de Crosta Gavras, do ano
2002, contra o Papa Pio XII e sua suposta conivência com a perseguição nazista aos judeus),
etc. Também nestes casos se recorre ao mesmo processo: anunciar que os fatos ali descritos
são "estritamente verdadeiros e históricos" ou deixando-o entender através da propaganda.
"Calúnia, calúnia, que algo sempre fica", dizia Voltaire, um especialista nesta tática. E tinha
razão, pois ao menos sempre fica a dúvida ("se o disseram, por algo será"). Sobre a
campanha do cinema contra o catolicismo pode se ver com muito fruto um estudo
documentário de 1996, titulado "Hollywood Vs. Catholicism".

Internet também se converteu em uma das ferramentas pelas que pode obter a falsificação
da história. Particularmente este meio contribui seu anonimato, a capacidade de publicar uma
enorme massa de informação sem suporte documentado... e sobre tudo seu gigantesco
potencial para "captar" a um grande número de homens e mulheres que procuram informação
sem nenhum tipo de exigência científica; neste caso não só merece o nome de "rede" mas
também poderia inclusive comparar-se com uma tela de aranha que captura aos "homens-
mosca" (os que revoam farejando onde não devem, superficiais em suas exigências e frágeis
em seus princípios intelectuais). Estes são os que perseguem dados, não importa o grau de
certeza dos mesmos, seu valor científico ou hipotético ou seu simples caráter de intriga.
Muitíssimas destas pessoas procuram informação mas não formação. Internet é o reino do
"curta e pega", do "tudo feito"; ...e da trivialidade. Muitas vezes, por meu trabalho, devi
perseguir algum dado por esta via me encontrando com a desagradável surpresa de que
sendo abundantes os lugares onde se fala do tema... em realidade todos se copiam uns aos
outros, textualmente, sem acrescentar nada... e sem nenhum suporte sério. Tampouco terá
que exagerar contra Internet; pode achar-se por este meio bastante informação séria, e
inclusive páginas de verdadeira índole científica, com estudos, artigos e livros de muito valor
documentário, quase impossível de obter por outra via. O problema consiste em que estão
perdidos em tal mar de falsificações que se faz difícil para quem não tem uma boa dose de
discernimento evitar cair nas redes de mitificadores (quer dizer, "fabricantes de mitos"). Meu
trabalho particular me colocou freqüentemente em contato com pessoas boas mas ingênuas
que foram vítimas de enormes confusões por ficar expostos a tiros de loucos, fanáticos,
sectários e inclusive pervertidos, navegando por qualquer página da Internet procurando
informação pré-fabricada para evitar o trabalho de ler coisas sérias... mas largas ou duras de
digerir; pedindo ao mágico mundo de Internet, como Aladim o gênio escondido em seu abajur,
que nos consiga já feito o que necessitamos para nosso trabalho, nosso estudo ou nossa
profissão, evitando o trabalho de fazê-lo nós mesmos. De quantos recebi consultas e pedidos
de ajuda para tampar os buracos que estes corruptores deixaram em sua fé, em sua
confiança na verdade, na Igreja, em suas convicções culturais!

Só citarei um exemplo que conheço de perto porque quem tomou o trabalho de refutá-lo foi
um grande amigo nosso, o P. Juan Carlos Sack, licenciado em exegese bíblica e diretor de
uma das páginas de apologética católica mais sérias que conheço. Trata-se da "lenda negra"
das Taxa camarae. As Taxa Camarae (cujo nome completo é Taxa Camarae seu
Cancellariae Apostolicae) é o nome latino de um suposto documento pontifício, atribuído ao
Papa Leão X (1513-1521), no qual se formularia uma lista detalhada de pecados graves, de
uma vez que se estipula uma tarifa determinada para poder receber a absolvição de cada um
desses pecados. Trataria-se de uma simples venda de absolvições sacramentais, quer dizer,
um pecado de simonia organizado pelo mesmo Papa. Segundo este documento, o dinheiro
estabelecido varia segundo o pecado, e deve pagar-se ao tesouro pontifício. O documento –
feito público em nossos dias pelo jornalista espanhol Pepe Rodríguez, conhecido por suas
constantes campanhas contra a Igreja, contra os evangelhos e em geral contra a fé católica–
consta de trinta e cinco itens (umas três páginas). O suposto documento foi catalogado como
"ponto culminante da corrupção humana"; e para falar a verdade, até que seria... se fosse
autêntico. Em realidade, o que o Sr. Pepe Rodríguez publicou em seu sítio Web não é mais
que uma fileira de disparates muitos dos quais têm o sabor inconfundível das mentiras
proclamadas com tambor , como afirmar que a Taxa Camarae está conservada em um lugar
oculto dos arquivos secretos vaticanos, e custodiada por seis estritos controles de segurança,
três deles com guardas suíços armados com metralhadoras, razão pela qual seria
inacessível, etc. Já com isto bastaria para que uma pessoa sensata se dê conta da
brincadeira; entretanto, a maioria das pessoas que caem neste tipo de páginas não têm o
suficiente grau de sensatez para desviar as invenções do referido Rodríguez (dito seja de
passagem, entre os documentos que cita Pepe Rodríguez a seu favor há algum livro que
também fala das Taxa Camarae... mas que precisamente recolhe sua informação dos escritos
de Pepe Rodríguez! É como se dissesse: "isto é verdade não só porque o digo eu mas
também outros autores.." E eles de onde o tiraram? "Pois o leram em meus livros!"). O P.
Sack se tomou o trabalho não só de lhe pedir ao Sr. Rodríguez que lhe mostre os documentos
em que se apóia para afirmar coisas tão graves (sem nenhum resultado, como era de
esperar), mas sim tratou que percorrer o espinhel dos autores que afirmaria a autenticidade
do documento, para terminar concluindo que "de toda a literatura que vimos não chegamos
com nenhuma fonte-documentário do escrito que apresenta Rodríguez". Assim se dirige este
tipo de campanhas. Que interesse perseguem as pessoas comprometidas nestes projetos
denegridores? São fanáticos anticlericais; respondem a interesses particulares ou mundiais,
etc.? O diabo saberá... pois só o beneficiam. Só quero destacar aqui que devemos ter muito
cuidado, e em particular os estudantes que usam Internet como uma fonte de documentação.
Internet serve para investigar, mas devemos ver este monstro de dados como uma
gigantesca biblioteca onde há algumas coisas boas e úteis, rodeadas de muitas outras (que
as superam em número e atração) que são realmente corruptoras não só da moral mas
também da inteligência (e como diz nosso amigo: com um bibliotecário que quer que veja as
coisas más que ele oferece). Só pus um exemplo porque o conheço bem e posso oferecer
as fontes certas de documentação; mas os exemplos poderiam multiplicar-se até o cansaço.

5. Observações

Voltando para as falsificações da história, o Cardeal Giacomo Biffi, quando ainda era
Arcebispo de Bolonha escreveu o Prefácio de um livro muito interessante de Vittorio Messori
(Lendas negras da Igreja). Ali o erudito teólogo que é Biffi começava dizendo uma enorme
verdade: "Quando um moço, educado de forma cristã pela família e a comunidade paroquial,
a tenor das asserções apodícticas de algum professor ou algum texto começa a sentir
vergonha pela história de sua Igreja, encontra-se objetivamente no grave perigo de perder a
fé. É uma observação lamentável, mas indiscutível". E acrescentava a seguir algumas
observações de enorme valor. Queria aproveitar algumas delas para umas reflexões finais.

A primeira é que o que está em perigo em nosso tempo é não só a fé mas também a mesma
razão. O mundo moderno, com seus múltiplos ataques às instituições fundamentais não só
procura demolir a fé e descristianizar nossa sociedade (o que conseguiu em parte) senão
também levar à perda da razão e a que nos resignemos ao absurdo (o que conseguiu mais
amplamente). A falsificação da história é parte desta dupla campanha: não só contra a fé
(lendas falsas sobre a Igreja) a não ser contra nossa cultura bí-milenária; ou seja, contra
nossa razão e sensatez.

A segunda coisa é que todas estas lendas fazem mal principalmente a quem não tem "olhos
de fé" para olhar a Igreja. Para quem tem fé sabe que a Igreja é, como dizia são Ambrósio,
ex-maculatis immaculata, uma realidade intrinsecamente Santa mas constituída por homens
todos eles, em grau e medida diferente, pecadores. Não necessitamos que nos apresentem
uma Igreja integrada só por Santos para crer nela; sabemos que entre seus filhos todos são
pecadores; o que aspiramos é a que sejam pecadores arrependidos. Por isso não nos
escandalizaremos quando nos falarem dos pecados cometidos pelos homens do passado...
nem precisaremos forjar lendas áureas para poder escorar nossa fé. Basta-nos com a
verdade. Já disse que magro serviço se presta à verdade quando se contrapõe à falsidade
denegridora outra falsidade (talvez muito mais próxima à verdade, mas falsidade em parte)
mais idealizada. Leiamos os escritos e cartas dos primeiros missionários da América como
José de Deita, Jerônimo Mendieta, Toribio Motolinía, Antonio Ruíz de Montoya, e veremos
que não faz falta pintar conquistadores e encomendadores idealizados para demonstrar a
grandeza desta epopéia única. Foi uma epopéia, apesar das misérias que possamos
encontrar.

A última coisa que ressalto, com o Biffi, é que algo fundamental de toda lenda negra (refiro
às que têm por objeto responsabilizar à Igreja pelas culpas do passado) emprestam-nos um
serviço indireto, que é obvio seus autores não advertiram. Trata-se do fato de que ao falar de
"culpas históricas da Igreja", estão confessando que esta é a única realidade que permanece
idêntica no curso dos séculos, razão pela qual acaba sendo também a única chamada a
responder aos enganos de todos. Dizia Biffi: "Quem vai perguntar-se, por exemplo, qual foi,
na época do caso Galileo, a posição das universidades ou outros organismos de relevância
social em relação à hipótese copernicana? Quem pede contas a atual magistratura pelas
idéias e as condutas comuns dos juízes do século XVII? Ou, para ser ainda mais paradoxal,
quem pensaria em reprovar às autoridades políticas milanesas (prefeito, prefeito, presidente
da região) os delitos cometidos por Visconti e os Sforza? É importante observar que acusar
à Igreja viva hoje em dia de sucessos, decisões e ações de épocas passadas, é por si mesmo
um implícito mas patente reconhecimento da efetiva estabilidade da Esposa de Cristo, de sua
intangível identidade que, ao contrário de todos os demais agrupamentos, nunca fica
enrolada pela história; de seu ser quase-pessoa e portanto, só ela, sujeito perpétuo de
responsabilidade. É um estado de ânimo que –precisamente através das atitudes de vingança
e a vivacidade dos rancores– revela quase um initium fidei (começo de fé) no mistério
eclesiástico: o que, possivelmente, provoca a hilaridade dos anjos no Céu".

**

Este capítulo, como pode ver, não desfruta de muita ordem. Consignei nestas páginas mais
que nada algumas reflexões desorganizadas sobre a seriedade na investigação e a aceitação
do que nos ensinam desde muitas cátedras; acredito que podem ser muito úteis, apesar de
sua desordem. Fico satisfeito se ao menos fique claro que não tudo que se recebe é trigo
limpo; que se deve ter uma inteligência inquisitiva e capaz de discernir o que tem na frente;
que não se deve –como estão acostumado a dizer– tragar qualquer rolha... e que a verdade
se conquista ao preço de ser profundos e esforçados. Não seja uma boneco dos
manipuladores de seu passado que não procuram outra coisa que apropriar-se de seu
presente e usufruir para seus próprios interesses seu formoso futuro.

Bibliografia para ampliar e aprofundar

–Luis Suárez Fernández, L. García Moreno, J. Orlandis, A. Martín Duque, et altri, História
universal, Eunsa, volúmenes I-XIII, Bs. Ás. 1984.

–H. Jedin, Manual de história da Igreja, tomos I-VIII, Herder, Barcelona 1978.

–Llorca, Villoslada, Laboa, História da Igreja, tomos I-IV, BAC, Madrid 1980.

–A. Caturelli, O Novo Mundo, Edamax, México 1991.

–Vicente Serra, O sentido misional da conquista da América, Dictio, Bs. Ás. 1980.

–Cayetano Bruno, História da Igreja na Argentina, tomos I-XII, Ed. Dom Bosco, Bs. Ás. 1981.

–Rubén Caldeirão Bouchet, Formação da Cidade cristã, Dictio, Bs. Ás. 1978.

––––––––––––––––––––, Apogeu da Cidade cristã, Dictio, Bs. Ás. 1978.

––––––––––––––––––––, Decadência da Cidade cristã, Dictio, Bs. Ás. 1979.

––––––––––––––––––––, A ruptura do sistema religioso no século XVI, Dictio, Bs. Ás. 1980.

––––––––––––––––––––, Esperança, história e utopia, Dictio, Bs. Ás. 1980.

–Hillaire Belloc, Assim ocorreu a reforma, (há numerosas edições).

––––––––––––, a Europa e a fé, (há numerosas edições).

––––––––––––, A crise de nossa civilização, (há numerosas edições).

––––––––––––, O estado servil, (há numerosas edições).

Conclusão

O prestidigitador
O quadro que pode observar na página anterior é um óleo sobre tábua que se acha no Museu
Municipal de Saint Germain-no Laye. O original (hoje perdido), com o título "O prestidigitador",
foi pintado por Jerônimo Vão Aken, conhecido como "O Bosco", entre 1475 e 1480; esta é
uma cópia fiel que nos chegou dele mesmo.

A cena é muito sugestiva –em sua simplicidade– e refere um episódio habitual dos tempos
do autor (muito semelhantes aos nossos!): a "fraude" do prestidigitador. Permita-me que te
ajude a observá-lo para que nos sirva de reflexão final.

O cenário é muito sóbrio: tem de fundo uma parede ruinosa sobre cujo topo, como evidência
de abandono e desamparo, já cresceram planta e flores, como poderá ver também em
qualquer baldio moderno. No centro da cena uma mesa com alguns elementos usados pelo
prestidigitador para seus truques; a nossa esquerda um grupo de dez pessoas, seis homens,
três mulheres e um menino; do outro lado da mesa o prestidigitador representado com alguns
elementos de seu ofício: uma bola nas mãos que mostra ao público e com a que chama sua
atenção, uma cesta com uma coruja da que provavelmente o extraia como nossos magos
fazem com suas respectivas pombas e coelhos; um chapéu em forma de galera, útil para tirar
dele toda sorte de objetos... por arte de magia; um proeminente nariz que dá ao personagem
um ar de homem de pouca confiança.

O prestidigitador está realizando, a um ancião, um truque que consiste em tirar de sua boca
um sapo. Outros olham assombrados e divertidos. Um menino se aproxima com a boca semi-
aberta para olhar o "fenômeno", enquanto a maioria do grupo reparte seus olhares entre a
mão do prestidigitador e o rosto do ancião. Só dois personagens escapam ao general
encanto: um é o cúmplice do prestidigitador que, atrás do ancião, com míope olhar, fazendo-
se de distraído e de parvo (o pintor o retrata olhando para acima), extrai a bolsa de dinheiro
do bolso do velho que se emprestou para o truque. O outro é um jovem que assiste ao
espetáculo com uma "amiga" sobre cujo ombro jogou uma de suas mãos; este adverte a
manobra do ladrão mas se limita a apontá-lo com um dedo a sua amiga e sussurrando no
ouvido o que está ocorrendo.

Esta é uma apertada pintura de nossa civilização e do que pode ocorrer nela.

Com o fundo de uma sociedade ruinosa como a cambaleante parede sobre a que se eleva
nossa cena (com ruínas de larga data sobre as que já jogam raízes velhas ervas de pecados,
enganos e mentiras) arma-se a grande fraude dos homens. Em nosso tempo os
prestidigitadores (ou seja, os de dedos rápidos, que isso quer dizer a palavra) disfarçam-se
de diversas maneiras centrando nossa atenção sobre realidades acidentais da vida (como o
do quadro atrai a atenção do público sobre uma vulgar bola que sustenta em sua mão) nos
oferecendo prodígios assombrosos (não muito mais sérios que extrair um sapo de nossas
bocas). Enquanto isso seus cúmplices roubam nossos tesouros. Não contemos com o público
que nos rodeia, que está acostumado a repartir-se entre os tolos que ficaram tão bobos como
nós pela habilidade do prestidigitador e os que dando-se conta –como o jovem do quadro–
não moverão um dedo para nos defender (sobre tudo se para nos defender devem tirar a
mão que posam sobre os ombros do prazer).

Vendem-te e nos vendem sofismas por ciência e tiram escorços da inteligência nos roubando
por puro lado a sensatez, o rigor intelectual de que somos capazes e com ele a fé
sobrenatural, porque a graça supõe a natureza, a fé uma inteligência limpa, capaz de deixar-
se transcender pelo mistério mas não humilhar pelo sofisma. Se deixarmos de raciocinar
passaremos primeiro a ter, em lugar de fé, fideísmo; deste iremos ao cepticismo e assim até
o vazio intelectual.

Ao final destas páginas que transitamos juntos, só falta te aconselhar que forme sua
consciência, sua inteligência e sua vontade; para que chegue a ser verdadeiramente um
homem ou uma mulher de ciência. Com a plena certeza de que a ciência verdadeira jamais
porá uma rasteira a sua fé.

Vocabulário

(Pus aqui só algumas das principais palavras empregadas no livro e que podem resultar
dificultosas de entender para alguém não familiarizado com os tema filosóficos)

Agnosticismo / agnóstico: (embora a palavra vem do grego "a = privativo"; "guignósco =


conhecer"; portanto "não conhecer"; o término foi cunhado recém em 1869 por Huxley) é a
atitude filosófica (ou falsamente filosófica) que declara que o entendimento humano não pode
conhecer nada que tenha relação com o divino nem algo que transcenda a experiência.

Alegoria: é uma ficção em virtude da qual algo representa ou significa outra coisa diferente;
também a representação simbólica de idéias abstratas por meio de figuras, grupos destas ou
atributos.

Análogo, analogia: significa que algo é em parte igual e em parte distinto a outra coisa,
também algo que se pode pregar de coisas diversas em sentido verdadeiro e próprio mas
não exatamente igual em todos os casos (por exemplo, "são" é um término análogo pois se
pode dizer do homem são –quer dizer que tem saúde–, de um alimento são –neste sentido
significa que não faz mal–, de um medicamento são ou saudável –que pode devolver a
saúde–, etc.).

Animismo: é a crença que atribui vida anímica e poderes aos objetos da natureza ou a crença
na existência de espíritos que animam todas as coisas.

Antropologia: é a parte da filosofia que estuda ao homem.

Antropomorfismo: é o modo de falar que atribui à divindade a figura ou as qualidades do


homem. Assim, por exemplo, quando se diz no Gênesis que Deus se passeava pelo Jardim
ao ar fresco da tarde, ou quando diz que Deus modelou Adão do barro da terra, etc.

Irreligioso: deve dizer-se propriamente irreligioso; significa a pessoa ou grupo ou doutrina


que não aceita ou não pratica a religião.

Ateu: chama-se assim ao que nega a existência de Deus.

Causa: é aquilo que se considera como fundamento ou origem de algo. A causa eficiente é
o primeiro princípio produtivo do efeito, ou a que faz ou por quem se faz algo; a causa final é
o fim com que ou por que se faz algo; a causa formal, é a que faz que algo seja formalmente
o que é.

Clonagem: é o ato pelo qual se produz um clone, quer dizer um ser geneticamente idêntico
ou quase idêntico a aquele do qual é formado (geneticamente idêntico quer dizer que tem um
patrimônio genético virtualmente idêntico; entretanto, tem uma individualidade diversa, como
pode ver-se nos irmãos que são gêmeos provenientes de um mesmo zigoto).

Consenso: é o acordo produzido por consentimento entre todos os membros de um grupo


ou entre vários grupos.
Cosmogonia: significa "relato sobre a origem do cosmos".

Cosmologia: é a parte da filosofia que estuda as leis gerais que regem o mundo físico.

Determinismo / determinista: é a teoria que supõe que a evolução dos fenômenos naturais
está completamente determinada pelas condições iniciais; também se diz do sistema
filosófico que subordina as determinações da vontade humana à vontade divina.

Determinismo, determinista: é a expressão da antiguidade latina, tirada do teatro; tratava-


se de um personagem que representava uma divindade e que descendia ao cenário mediante
um mecanismo e intervinha na trama resolvendo situações muito complicadas ou trágicas.
Daí que se diga quando se busca uma solução que caia de cima.

Dogma: denomina-se assim às verdades de fé. Ao princípio a palavra significou o mesmo


que "opinião" (em grego doxein = opinar, parecer); os primeiros Padres da Igreja (ver)
usaram-no para indicar um princípio de doutrina moral; no século IV começa a prevalecer o
sentido de dogma como verdade de fé.

Efeito: é aquilo que segue por virtude de uma causa.

Epigênese: é a doutrina segundo a qual os rasgos que caracterizam a um ser vivo se


configuram no curso do desenvolvimento, sem estar pre-formados no ovo fecundado.

Epitélio: é a malha animal formada por células em estreito contato, que reveste a superfície,
cavidades e condutos do organismo.

Cético (quem professa o cepticismo) é o que diz ou aparenta não acreditar ou quem afirma
que a verdade (inclusive a verdade sobre Deus) não existe ou se existir não se pode
conhecer; ateu é quem afirma que Deus não existe.

Essência: é aquilo que constitui a natureza das coisas, o permanente e invariável delas;
também se está acostumado a chamar "essência" ao mais importante e característico de uma
coisa.

Etnólogo / etnologia: A etnologia é a ciência que estuda as causas, razões e origens dos
costumes e tradições dos povos.

Exponencial: diz-se de um crescimento cujo ritmo aumenta cada vez mais rapidamente.

Fideísmo: é a doutrina que aceita tudo por fé sem argumentação racional; às vezes inclusive
por desprezo explícito da razão.

Genoma: é o conjunto dos gens de um indivíduo ou de uma espécie, contido em um jogo


haplóide de cromossomos.

Homínido: usa-se, sobre tudo nas teorias evolucionistas, para designar aos indivíduos
pertencente à ordem dos Personagens superiores, cuja espécie super-vivente é a humana.

Implantação: (significa "plantar-se em") usamo-lo aqui para designar o ato pelo qual um
embrião se fixa na mucosa do útero de sua mãe.

Imanente: significa etimologicamente "permanecer dentro de" (permanecer em).

Imanentismo: Designa o sistema filosófico-religioso que em sua forma mais rígida reduz toda
a realidade ao sujeito, fonte, princípio e término de toda sua atividade criadora; também todas
as doutrinas que negam que haja algo superior à natureza (ou seja, algo sobre-natural).
Inato: (do lat. part. ps. de innâtus, innasci), significa inato e como nascido com a mesma
pessoa.

Laxismo: é a doutrina moral que aceita qualquer lei relaxada.

Magia: designa o conhecimento oculto com que se pretende produzir, valendo-se de certos
atos ou palavras, ou com a intervenção de seres imagináveis, resultados contrários às leis
naturais.

Magistério: significa "ensino" ou "ato de ensino"; nós o usamos normalmente para indicar a
doutrina oficial e autoritária da Igreja católica (a doutrina de seus Papas e Concílios).

Metafórico / metáfora: a metáfora é o emprego das palavras de tal modo que se translada
o sentido reto das vozes a outro figurado, em virtude de uma comparação tácita; assim se
fala, em sentido metafórico, do "rugido do vento", da "primavera da vida".

Mistério: Do latim (e a sua vez do grego mysterium); diz-se de uma coisa oculta ou muito
recôndita, que não se pode compreender ou explicar. Também se usa para indicar o oculto
ou coisa secreta em qualquer religião. Na religião cristã, coisa inacessível à razão e que deve
ser objeto de fé.

Mito: é uma narração maravilhosa situada fora do tempo histórico e protagonizada por
personagens de caráter divino ou heróico. Com freqüência interpreta a origem do mundo ou
grandes acontecimentos da humanidade. Também se diz de uma história fictícia ou
personagem literário ou artístico que condensa alguma realidade humana de significação
universal.

Monogenismo: é a teoria segundo a qual todos os homens provêm de um sozinho casal


humano (Adão e Eva). Opõe-se a poligenismo (ver).

Natureza: é a essência e propriedade característica de cada ser. Também se usa a palavra


para referir-se ao conjunto, ordem e disposição de tudo o que compõe o universo (a
Natureza). O término também se usa em outros sentidos, para referir-se ao princípio universal
de todas as operações naturais e independentes do artifício; à virtude, qualidade ou
propriedade das coisas; também ao instinto, propensão ou inclinação das coisas, com que
pretendem sua conservação e aumento.

Ortodoxia: quer dizer "reta doutrina"; também se usa para designar à Igreja "ortodoxa", que
é uma Igreja cismática, quer dizer, separada da Igreja católica; aqui a usamos sempre no
sentido de doutrina correta ou conforme ao magistério da Igreja católica.

Pai (ou Padre) da Igreja: são aqueles autores eclesiásticos que, segundo a definição de
Mabillon, reúnem quatro qualidades: doutrina eminente, santidade de vida, antiguidade,
reconhecimento explícito ou tácito da Igreja. Há alguns autores da antiguidade cristã que não
foram reconhecidos como Santos, ou sua doutrina foi eminente em alguns pontos mas não
em outros; estes são designados não como Pais da Igreja mas sim como autores
eclesiásticos.

Paleontólogo, paleontologia: a paleontologia é a ciência que trata dos seres orgânicos


desaparecidos a partir de seus restos fósseis. "Paleo" vem do grego e significa em geral
'antigo' ou 'primitivo', referido freqüentemente a eras geológicas anteriores à atual. Daqui se
derivam palavras como paleo-cristão (antigo cristianismo), paleolítico.

Poligenismo: é a teoria segundo a qual todos os seres humanos atuais provêm de muitos
casais humanos.

Relativismo: é a doutrina que considera que não há uma verdade universal que todos podem
aceitar como válida; mas sim cada um tem sua verdade. Relativo também quer dizer que
guarda relação com alguém ou com algo.
Rigorismo: é a doutrina moral que se caracteriza pelo excesso de severidade nas leis. É a
doutrina contraposta ao laxismo (ver).

Sindérese: é o hábito dos primeiros princípios morais

Singâmia: é um término que designa a união das duas gametas (espermatozóide e óvulo).

Sociologia: ciência que é parte da filosofia e estuda à sociedade e seus comportamentos.

Solução de continuidade: significa "interrupção"; "sem solução de continuidade" quer dizer


sem interrupção ou corte.

Sofista o sofisma : se diz de um argumento aparente com que quer defender ou persuadir
o que em realidade é falso.

Subjetivismo: é a doutrina que faz depender tudo (os julgamentos, as impressões, etc.) do
sujeito (ou seja de cada um); contrapõe-se ao que é objetivo.

Totem, totemismo: o totem é um objeto da natureza, geralmente um animal, que na mitologia


de algumas sociedades se toma como emblema protetor da tribo ou do indivíduo, e às vezes
como ascendente ou progenitor. Daqui o nome se deriva ao emblema esculpido ou pintado,
que representa o totem.

Venéreo: o término vem do latim venéreus que indica algo relativo a Vênus (deusa do prazer)
e faz referência ao prazer sexual ou às coisas que se relacionam com o sexo (por exemplo,
as enfermidades de "transmissão venérea", ou seja por via sexual).
EDIVILU

terminou-se de imprimir

em 19 de julho de 2004

em Vila Finca de Luján

São Rafael (Mendoza)

Argentina

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