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1ª EDIÇÃO

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Autor
Jonas Kazmirczak

Co-autora
Joana Gayardi Magnabosco

Capa
Estúdio Ponta do Lápis

Projeto Gráfico e Diagramação


Fernando Gustavo Zilch

Revisão
Janice Ap. de S. Salvador

Revisão Final
Bruno Marcos Radunz

Classificação
Narrativa

Páginas
148 páginas

Tipografia
ITC Franklin Gothic Std (10,0)

Impressão 1º Edição
Midiograf Todos os direitos sobre a obra são
reservados à família de Jonas Kazmirczak
Site Site: www.jonaskaz.com
Ícone Agência Digital E-mail: jonas@jonaskaz.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito do autor.

Kazmirczak, Jonas
Agora é a tua vez: A jornada de um voluntário na África.
Toledo, Paraná
148p.

ISBN 978-85- 922098-1- 0

Índice para catálogo sistemático


Serviços e problemas sociais; associações - 360

jonas@jonaskaz.com

www.jonaskaz.com

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Viva uma aventura lendo este livro. Ele contém todos os elementos para
aguçá-lo em sua vida diária. Passei 18 meses junto com Jonas e vivenciamos as
mais adversas situações. Senti todos os tipos de emoções através desta jornada.
Meu nome é Mai Sugaya e sou do Japão, um dos países mais desenvolvidos
do mundo. Parece que lá tem tudo e as pessoas devem estar satisfeitas com a
vida. Mas acabei percebendo que não.
Descobri que a riqueza da mente e a felicidade não se relacionam com a
riqueza material. Eu aprendi muito com as pessoas no Malawi. Seus sorrisos,
suas felicidades, suas energias e sua maneira de pensar mudaram meu jeito
e a minha vida. Jonas colocou todas as nossas experiências neste livro para
compartilhar com você.
Você não se arrependerá desta leitura!
Mai Sugaya

APRE
SEN
TA
ÇÃO
Eu tenho boas memórias dos Estados Unidos e da África, mas também me
recordo de muitos momentos difíceis. Estávamos em um time, onde bons e maus
momentos aconteceram e entre os nove membros da equipe, nós montamos um
trio, eu, Jonas e Mai. E, juntamente com eles, vivenciei coisas maravilhosas que eu
nunca poderia ter experimentado na Coreia do Sul, meu país de origem. Com eles,
consegui fazer o projeto de forma mais eficiente para que mais aldeias pudessem
se beneficiar de nossos projetos. Eu espero que você aprecie nossa jornada com
este livro! Nahyun Nana Kim

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NOTA DO AUTOR
Deixo para vocês meus amigos, uma mensagem. Para que ela
possa contribuir em sua jornada:

NÃO ESPERE SER MARTIN LUTHER KING


PARA DAR O TEU MELHOR DISCURSO,
“I HAVE A DREAM”.

NÃO ESPERE SER PRESO COMO


NELSON MANDELA PARA LUTAR
PELA IGUALDADE ENTRE OS POVOS.

NÃO ESPERE SER ELEITO O PAPA


PARA COMPARTILHAR O AMOR.

NÃO ESPERE TER A SABEDORIA DE


MAHATMA GANDHI PARA
COMPARTILHAR A PAZ.

O TEU AMOR É SENTIDO


E A TUA PAZ É VIVIDA.

CONSTRUA A HISTÓRIA QUE DESEJAS VIVER,


POIS AGORA É A TUA VEZ!
Jonas Kaz

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DEDI
CA

Para todos que cruzaram o meu
caminho nesta jornada.

Para Deus, minha família e aos

RIA
sorrisos dos leitores deste livro.

Por um despertar de vida e de


realização de sonhos.

Jonas Kaz

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SU

PARTE I - Brasil
21 Formatura
25 Vida vazia

RIO
31 Ruptura
PARTE II - Estados Unidos
41 Uma nova casa
47 Arrecadação de fundos
51 Um lugar seguro para dormir
57 54 mil dólares em 45 dias
61 O desafio só aumentava
65 O inesperado
PARTE III - Malawi
71 Uma descoberta em cada passo
75 Uma nova família
79 Mudança de planos
83 Trabalho sem ferramentas
87 Todos os dias serão assim?
91 Páscoa de barro
95 Clube das agricultoras
101 O mundo de Francisco
107 A fé através das obras
109 Educação, o futuro de um país
115 A notícia se espalhou
119 Surpresas acontecem
123 Inauguração da última pré-escola
127 Viver eternamente
131 Julgamos uns aos outros
135 Fundo da justiça
139 A tempestade
143 You = Me

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PRE

CIO
“Quando cada cidadão fizer sua parte para compor um
mundo melhor, muitas pessoas serão ajudadas e muitas
ficarão melhores.”

Quando eu era jovem, isso na década de oitenta, por muitas


vezes imaginava poder mudar o mundo ou parte dele. Pensei até em
me alistar na Legião Estrangeira.
O tempo passou, as pessoas mudaram, o mundo mudou... Eu
também acabei mudando e percebo que nem sempre conseguimos
fazer aquilo que imaginamos.
Vivemos atualmente num período marcado pelo individualismo
e por injustiças. Nessa época, qualquer iniciativa diferente pode
mudar a vida ou o destino de uma ou mais pessoas. Uma solução
que possa resgatar a autoestima e a esperança, levando a felici-
dade para as pessoas mais necessitadas, é nós fazermos “aconte-
cer para alguém”, é nos tornarmos um verdadeiro presente para o
mundo através de pequenos gestos ou atitudes.
Quando fui apresentado ao autor e sua obra, não imaginava
encontrar um jovem com tanto brilho no olhar, o brilho que somente
os vencedores possuem, o brilho que me dá a certeza de que nem
tudo está perdido no mundo em que vivemos.
Já na obra, bem, na obra encontrei uma história maravilhosa,
incrustada de emoções, de temores, de desafios, relatos únicos de

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superação num dos lugares mais pobres do mundo, no extremo da África.
No livro, Jonas Kaz relata todo o aprendizado de vida que obteve no
período em que serviu de voluntário, em que enfronhado no coração da
África, abdicou do conforto e de todas as benesses do mundo moderno,
para vivenciar o dia a dia de uma população carente de tudo, especialmente
de atenção.
Jonas abriu seu coração generoso para aquelas pessoas que certa-
mente jamais esquecerão da sua passagem por lá.
Seu ensinamento ficou!
Seu carisma e entusiasmo contagiou!
Sua mensagem marcou!
Escreveu milhares de palavras nos quadros negros improvisados em
paredes de palafitas, que certamente ficarão gravadas para sempre na alma
daquelas pessoas, na mente daquele sofrido povo.
Trata-se de uma obra que me apaixonei e não consegui parar de ler até
terminar, tamanho contágio que ela me provocou. Nela encontrei talvez a
coragem que me faltou quando jovem em tentar mudar o mundo.
Agora é a tua vez!
Agora é a nossa vez!
Agora é a minha vez!
Para o Jonas, tenho a dizer que, grande talento possui quem, sem dar
por isso, sabe tornar os outros alegres, e assim, felizes...
Para os leitores, uma mensagem: “Quando sonhamos sozinhos, é só
um sonho. Quando sonhamos juntos, é o começo de uma nova realidade.”
Parabéns, Jonas, pela belíssima obra que você deixa de legado ao
mundo.

Bruno Marcos Radunz


Escritor, palestrante e administrador de empresas

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AGRA
DECI
MEN
TO

À Joana Magnabosco, minha


gratidão por todo o seu empenho
e devoção para com a qualidade
deste livro.

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formatura

A fotografia registrou a união e a mais


sincera alegria da família Kazmirczak.
Entre meus pais e seus sorrisos orgulho-
sos, ao centro da imagem, sou eu, Jonas,
o magrelo, alto, do cabelo espetado, ao
lado de uma bela namorada e minhas
duas irmãs.
Para um bom festeiro, celebrar a
conquista do meu título de farmacêutico
era o que eu mais queria. No início das
comemorações, antes do jantar, tive meu
primeiro contato com o microfone. Fui o
orador da turma e falei para um público de
500 pessoas: meus professores, amigos,
colegas e seus familiares. Em meio a
muitas bebidas e danças, comemorei até
a banda parar de tocar.
Em um único final de semana festivo,
encerrei meus quatro anos de estudo, um
autêntico e efusivo ritual de despedida.
Naquele domingo, me dei conta de que
nem sequer havia passado pelo primeiro

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emprego na área e que, na segunda-feira, precisaria recomeçar a


minha vida.
Sozinho, na minha kitnet, lembrei dos meus pais. Confesso que
eles não acreditavam que eu me formaria dentro do prazo correto.
Por ser o único filho homem, foi depositada em mim a esperança
para dar continuidade ao sobrenome da família. Comecei a pensar
em minhas necessidades de um jovem em início de carreira e senti
que a responsabilidade batia nas minhas costas. Precisava escolher
qual rumo seguir a partir daquele momento.
Eu poderia continuar em Cascavel, uma cidade em constante
desenvolvimento e de porte médio. Ali, ficaria próximo da minha
namorada, mas, em contrapartida, continuaria com muitas despe-
sas para me manter. Por outro lado, há 120 km de distância, poderia
retornar para Itaipulândia, município com 12 mil habitantes, cujos
gastos seriam reduzidos ao voltar a morar com meus pais. Voltei
para casa, consciente das dificuldades que sentiria após morar
quatro anos sozinho e do desafio em conciliar a distância no relacio-
namento, construído na base do convívio diário.
Naquela mesma segunda-feira saí de casa decidido a arrumar
um emprego. Em menos de duas horas entreguei meu currículo em
todas as três farmácias de Itaipulândia. Me dirigi até Missal, cidade
colonizada por alemães. Foi lá onde nasci, em 1987, pois era a
cidade mais próxima a ter um hospital.
Durante o trajeto, recebi a ligação de um amigo enfermeiro.
Cleiton me convidou para participar de uma entrevista de emprego,
pois o hospital particular de Medianeira precisava de um farmacêu-
tico. No mesmo instante, acelerei meu carro e fui ao encontro da
diretora geral.
Fui recebido por uma senhora de semblante calmo, tranquilo e
aconchegante, ela parecia uma verdadeira mãezona. Tivemos uma
agradável conversa ao longo de uma hora e fui convidado para iniciar

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os meus serviços dentro de sete dias.


Ganhar um bom salário era minha ambição de recém-formado.
Reestruturar a farmácia do hospital era um excelente meio para
obter essa remuneração. Não demoraram muitas semanas para
me deparar com os desafios e dificuldades do primeiro emprego,
mediante um curto orçamento para a compra de medicamentos. O
hospital precisava também de uma pintura urgente na cozinha, na
farmácia e no almoxarifado. A pequena verba disponível só poderia
contemplar um ou outro. A diretoria teria que optar entre realizar a
pintura ou atender a verdadeira necessidade dos pacientes.
A medida que os dias passavam, me aborrecia ver impasses
como este. Questionava-me quais habilidades, além da profissão
de farmacêutico, eu deveria desenvolver. Aos poucos, percebi que
deveria aprender técnicas de negociação para obter melhores prazos
de entrega e de pagamento dos medicamentos adquiridos. Por se
tratar da pintura, eu e mais dois colegas resolvemos fazer com as
próprias mãos, assim reduzimos a despesa e cumprimos com este
outro dever.
Na área profissional, estava feliz com o trabalho em si e a
remuneração. Em contrapartida, as inseguranças decorrentes
da distância começaram a afetar o relacionamento amoroso. As
desagradáveis brigas se intensificaram, me vi diante de duas
variáveis: batalhar para mantê-lo ou romper de vez. Não lutar por
um amor parecia fraqueza, mas, de qualquer forma, decidimos
romper e então priorizei o desenvolvimento da minha carreira.
Recuperar a fase de curtição foi minha primeira atitude após o
final do relacionamento de dois anos. Como morava com meus pais,
sobrava mais dinheiro para gastar a toa e assim as festas se torna-
vam cada vez mais frequentes.
Nas sextas, eu gostava de frequentar bares, enquanto reservava
os sábados para as baladas, com direito a camarote e champagne -

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a “bebida que pisca”. Já os


domingos eram de fartura
com o churrasco do meu
Última pai e a maionese da minha
tentativa do mãe. Em alguns finais de
indivíduo tarde eu me empolgava e
ia até a UTI. Para trabalhar?
Não! Eu e meus amigos
apelidamos de UTI um clube
de dança frequentado por pessoas com mais idade. Estes eram
casos de situação extrema, “Última Tentativa do Indivíduo”, caso
não tivesse me envolvido com ninguém no final de semana.

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vida vazia

Comecei a me sentir insatisfeito,


estava construindo um vazio em torno
de mim com essa rotina. Toda vez que
chegava do trabalho, ia direto para o
banho, mas antes disso, aproveitava esse
momento de plenitude e solidão para
fazer minhas necessidades. Imagino que,
nesse momento, muitas pessoas gostam
de mexer no celular ou ler uma revista. Eu
aproveitava esse instante de introspecção
para fazer minhas reflexões.
Pensar no vazio em que minha vida
estava se tornando ganhava mais inten-
sidade nesses momentos de reflexão.
Diante do trono, minhas análises do que
poderia fazer para mudar se tornaram
mais frequentes. Apesar disso, não via
mal algum em festar, pois não estava
prejudicando ninguém.
Com o passar dos dias, sentia cada vez
mais aflição por não ter mudado absoluta-
mente nada. Até que, em meio aos meus

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devaneios pré-banho, cheguei a uma conclusão: Decidi que precisava


fazer algo diferente, caso contrário, teria sempre os mesmos resulta-
dos. Então, não me pergunte o porquê (não sei dessa resposta até
hoje), resolvi ficar em casa em uma sexta-feira à noite.
Ficar em casa me colocou na dura tarefa de recusar todos os
convites dos meus amigos e dos meus amores. Dizer não para essas
pessoas me obrigou a dizer sim para alguma distração. No entanto,
a única coisa que tinha para
fazer era assistir televisão.
Dentre todos os canais,
apenas um me interessou. No
como é a vida dos Globo Repórter daquela noite,
africanos? O que comem, iria descobrir sobre a vida na
África (leia com a voz do Sérgio
onde dormem e o que
Chapelin): “como é a vida dos
fazem? africanos? O que comem, onde
dormem e o que fazem?”.
Na medida em que a
matéria se desenrolava, era
crescente um sentimento de esperança preenchendo o meu coração.
Percebi que, com a África, de alguma forma, eu poderia transformar
aquela minha vida vazia em algo significativo. Foi assim que recebi
o primeiro sinal de Deus. Eu não sabia quando, nem como e nem
onde, mas, após terminar o programa, fui deitar convicto de que um
dia iria para lá.
Em uma das manhãs, ao percorrer os 30 km de distância da
minha casa para o trabalho, me surgiu um flash e me perguntei como
seria viver na África. Já fazia um tempo que essas dúvidas apare-
ciam na minha cabeça despretensiosamente, nada forte o suficiente
para que eu tivesse uma iniciativa. Mas, naquele dia, ao dirigir na
estrada ouvindo minha “sonzeira” no meu Montana rebaixado, fiquei

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curioso para saber como era o transporte na África. Ao chegar no


hospital, pesquisei no Google e me deparei com uma lamentável
imagem, em que várias crianças eram transportadas em cima de
caminhões extremamente precários.
Durante o almoço de família no domingo, ao me deliciar com o
churrasco do meu pai e a maionese da minha mãe, me perguntei
como era a alimentação na África. Encontrei resultados que mostra-
vam fotos de crianças comendo arroz com arroz e nada mais. Em
uma dessas pesquisas, li o relato de Navi Pillay, Alta Comissária das
Nações Unidas para Direitos Humanos. Segundo ela, diariamente
300 crianças no mundo morrem em consequência da desnutrição.
O fogo que acendia em meu coração para ir à África, aparecia e
sumia. Eu não gostaria de abrir mão do conforto do meu carro para
encarar a dura realidade de um transporte lamentável. Desejava ir
para lá, mas não gostaria de ficar sem o churrasco do meu pai e a
maionese da minha mãe. Ao comparar com as pequenas regalias
da minha realidade, o sonho de ir para este precário continente se
extinguia.
Eu treinava na academia durante a semana para me desfazer
da imagem de magrelo. Ao sentir sede, me dirigia ao bebedouro
e, sempre que notava a falta de água ou de copos descartáveis,
reclamava prontamente. Em uma das minhas reclamações ao
educador físico, parei para pensar como seria o acesso à água na
África. Quando cheguei em casa, pesquisei na internet e encontrei
um fato que me deixou abalado: As mulheres chegavam a perder um
terço da sua vida pelo fato de irem e virem para buscar água de um
poço. Ou seja, se a mulher tem 30 anos, 10 anos são perdidos ao
caminhar da sua casa até o local onde teria água, sem a certeza de
que a água estaria limpa. Na maioria das vezes, a água encontrada
é insalubre, imprópria para beber, comer ou para realizar a higiene
pessoal, sem falar das doenças que pode acarretar.

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A vontade de ir para a África estava cada vez mais distante.


Gostaria de ir para lá, mas sem perder meu carro, o churrasco do
meu pai, a maionese da minha mãe ou algo tão simples e necessário
como a água límpida, devidamente tratada e encanada.
Como era comum em todas as manhãs, eu estava diante do
computador trabalhando e escutando o programa do Valdomiro
Cantini, da rádio CBN de Cascavel. Naquele dia em especial, ele
falou sobre trabalho voluntário. Em seguida, ele “retweetou” uma
mensagem em uma das redes sociais que dizia: “se você quer fazer
a diferença no mundo, este é o lugar”- e colocou o link de uma ONG.
Fui tomado novamente por uma esperança grandiosa: o trabalho
voluntário seria a solução para me conectar com a África. E, assim,
acredito que recebi o segundo sinal de Deus.
No mesmo instante, busquei informações sobre a ONG e me
identifiquei com sua filosofia. Fiquei ansioso para saber todos os
detalhes e entrei em contato. Infelizmente não conseguiria todas
as respostas de prontidão, então agendei uma reunião pelo Skype
com a diretora da instituição. Foram dois dias que demoraram uma
eternidade para passar. Conversei com a diretora, acompanhado da
minha amiga Tanea, que colaborou com o papel de intérprete. Foi
explicado todos os desafios a serem enfrentados, o que me deixou
ainda mais instigado. Ao ouvir o valor a ser investido, senti que já
estava diante do meu primeiro obstáculo.

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RUPTURA

Na manhã seguinte, fui ao hospital,


determinado a pedir demissão. Respirei
fundo e me dirigi à diretoria. Lá estava dona
Carmelita, sentada, calma e com seus
cabelos amarrados, como de costume.
Fui recebido por ela com seu olhar terno e
atencioso. Por trás do seu jeito sereno, ela
carrega uma história de muitos desafios e
conquistas na criação dos seus filhos, hoje
todos adultos. Receoso, cuidei a maneira
de falar e contei para ela os motivos pelos
quais estava pedindo demissão.
Uma conversa sobre todos os meus
receios e sonhos se desenrolou. Dona
Carmelita poderia pensar em todas as
burocracias e incômodos ao se tratar
da minha demissão, da contratação e
treinamento de um novo funcionário. Fui
surpreendido pelas seguintes palavras:
“filho, com o passar do tempo a vida me
ensinou muitas coisas. O que ela mais me
mostrou é que, quando se tem a oportuni-

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dade de dinamizar o sonho de alguém, você deve fazer. Vá com Deus,


te dou todo o apoio necessário”. Ela poderia muito bem encarar pelo
viés dos empecilhos, no entanto, ela teve a oportunidade de dinami-
zar o meu sonho. Ao me apoiar, senti toda a força necessária para
buscar aquilo que meu coração sentia que deveria fazer.
Após dois anos de trabalho no hospital, senti um peso ao me
despedir dos colegas. Ao longo de todo esse tempo, fiz amizades
que renderam boas histórias. Muitos não entenderam o que estava
acontecendo e continuaram normalmente com seus afazeres. Vários
outros me disseram tchau, até breve e boa sorte. As perguntas
que ouvi chamavam a minha atenção: “por que fazer isso com sua
carreira, Jonas?”. “Logo agora que está guardando dinheiro para
construir algo, por que vai largar tudo e ir para longe?”. Minha
resposta era única: “Porquê não agora que tenho saúde, vontade e
essa inquietude dentro de mim?”.
Na volta para casa e na companhia da estrada, fui tomado por
uma enxurrada de dúvidas e receios. As incertezas do que eu estava
fazendo com minha carreira vieram com força. Comecei a pensar em
como meus pais se sentiriam diante da notícia e se este momento
seria adequado ou se deveria avisar alguns dias antes do embarque.
Caso avisasse de última hora, minha mãe e meu pai poderiam ficar
muito apreensivos e preocupados, sem digerir a situação a tempo.
Decidi contar ao chegar em casa.

Logo agora que está guardando dinheiro


para construir algo, por que vai largar
tudo e ir para longe?

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Após a minha reflexão e o meu banho, sentei com meus


pais. Contei minhas dúvidas e os motivos que me moviam a fazer
trabalho voluntário na África, gostaria de ouvir a opinião deles. Minha
mãe, que conhece muito bem seu próprio filho, disse: “se está nos
contando agora, na realidade sua decisão foi tomada há tempo e
você só está nos avisando!”. Ela estava certa. Desde a infância eu
ajo assim.
Meu pai imaginava que eu voltaria da viagem com, pelo menos,
quatro filhos africanos, enquanto minha mãe pensava que eu voltaria
com alguma doença terminal, todo debilitado. Para a angústia dos
meus pais, naquele mesmo ano, um padre da cidade faleceu em
decorrência das complicações de uma doença adquirida em países
subdesenvolvidos, durante seu trabalho missionário. Meus pais
ficaram apreensivos, pois zelavam por minha saúde e pela minha
segurança. Como a decisão já estava tomada e eu já havia pedido
demissão, não havia outra coisa a ser feita por eles, a não ser me
apoiar e me aconselhar.
Diversas vezes sentia o conflito entre abandonar a minha família
e adotar uma família nova pelo período de um ano e meio de trabalho
voluntário. Eu estava entre o dilema de doar a minha vida para esse
sonho ou permanecer sob a proteção dos meus pais. Consciente
de que, para morrer basta estar vivo, precisava tomar essa atitude.
Comecei a me preocupar com a etapa seguinte, em como conse-
guiria verba para arcar com todas as despesas. Sem dúvida, jamais
pediria dinheiro aos meus pais. O sonho era meu e a responsabili-
dade de bancá-lo também deveria ser minha.
Abri o meu guarda-roupa e separei uma pequena quantidade de
roupas que precisaria para a viagem. Sobraram outras duas malas
de roupas e calçados, as quais joguei no porta-malas do meu carro
e saí para vender aos meus amigos. Vários deles não compreendiam
o que estava acontecendo, mas, como o valor estava bom, acabaram

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comprando. Ao finalizar as vendas, constatei que o dinheiro não era


o suficiente para arcar com as despesas de 18 meses de viagem.
No período em que trabalhei no hospital, todo o dinheiro que eu
recebia era convertido em festa e diversão. O meu carro era o meu
único bem material, mas estava receoso se deveria me desfazer
dele. Além dessa opção, a outra alternativa seria pedir ajuda ao meu
pai. Meu orgulho falou mais alto, ele não tinha a mínima obrigação
de sustentar as minhas loucuras.
Comprei o Montana com os lucros que tive ao promover festas
universitárias durante a faculdade, enquanto a entrada do financia-
mento foi realizada pelo meu pai. Na época, a conquista de um carro
zero foi muito significativa para mim, pois era sinônimo de status,
liberdade e estilo e constatei que me desfazer era a única alterna-
tiva. Então, tomei a decisão de vender meu carro. Abrir mão desse
luxo foi doloroso, mas, quando estava com o dinheiro em mãos,
finalmente senti que aquela era a minha vez de viver o meu sonho
de ir para a África!
A cada minuto que se aproximava da minha jornada, mais aflito
e ansioso eu estava. Aproveitava cada momento para me despedir,
não sabia se aquele poderia ser um “até breve” ou um “adeus”
para meus amigos, meus amores e minha família. Eu transparecia
confiança, alegria e segurança para buscar o meu sonho. Mas, no
fundo, minha incerteza era crescente. E se meu colega do hospital
estivesse certo? Se eu pegasse uma doença, assim como o padre?
Todos os desastres possíveis rondavam minha cabeça, desde uma
séria enfermidade até algum possível assassinato. Apenas conse-
guia dizer para que todos ficassem tranquilos, pois iria voltar com
saúde e, para isso, pedia suas orações.
Do momento em que assisti à reportagem no Globo Repórter
até o dia em que ouvi o programa do Cantini, na rádio CBN, eu já
havia recebido dois sinais de Deus. Ainda assim, me sentia confuso,

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mesmo há poucos minutos do embarque. A primeira parte do projeto


consistia em passar os primeiros seis meses nos Estados Unidos.
Ainda no aeroporto, fechei os olhos, pedi a Deus que me enviasse
mais um sinal e me desse a certeza de que aquele era realmente
o caminho a ser seguido. Peguei meu celular e abri o Facebook.
Apareceu, na minha linha do tempo, a imagem de uma latrina. Logo,
associei: latrina é igual a patente; patente é igual a merda. Pronto,
conclui que estava fazendo merda da minha vida. Com a insegu-
rança ainda maior, peguei o avião rumo a Chicago.

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uma nova casa

Percebi que meu domínio do inglês


era inferior ao esperado quando conver-
sei com os responsáveis pela imigração
americana, ainda no aeroporto. Logo após
o apuro e a regularização da minha estadia
de seis meses nos Estados Unidos,
viajei de ônibus de Chicago em direção à
Dowagiac, no estado de Michigan, onde
fui recebido por dois voluntários da ONG.
David iria para a África dentro de uma
semana enquanto Ana acabara de chegar
de lá. Aproveitei o caminho para matar
todas as minhas curiosidades, até que
fui surpreendido ao saber que a alimen-
tação do Instituto era predominantemente
orgânica e vegetariana. Realizei um ritual
de despedida ao comer um hambúrguer
no meio do caminho. Isso serviu também
como uma espécie de boas-vindas para o
que estaria por vir.
Ao chegar ao interior de Dowagiac,
cidade de 10 mil habitantes, reconheci a

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ONG pela placa de identificação: Institute for Internacional Coopera-


tion and Development - IICD. A escola e o dormitório eram rodeados
por um lindo bosque e uma pequena plantação, tornando o ambiente
arejado e agradável. Naquele domingo, boa parte dos alunos saíram
para passear enquanto a outra parte se divertia ou fazia atividades
físicas no pátio. Percorri os corredores em direção ao meu quarto, ao
mesmo tempo em que me perguntava se as paredes eram duplas,
caso contrário, passaria muito frio. Por ser um estado próximo ao
Canadá, a temperatura reduziria consideravelmente e um rigoroso
inverno chegaria em três meses.
Após longas horas de viagem, eu estava louco para tomar um
banho e descansar. Ao chegar em frente do meu quarto, me deparei
com a porta trancada. Inquieto, fiquei receoso de esperar por muito
tempo parado e decidi conhecer as instalações da escola. No meio
do trajeto, encontrei a diretora e, com o intermédio de um colega
traduzindo o que ela dizia, fui extremamente bem recebido, o que me
trouxe um certo alívio.
Continuei perambulando pela instituição e me deparei com um
casal de brasileiras. Elas haviam acabado de chegar da África e
retornariam ao Brasil no dia seguinte, antes mesmo de finalizar o
programa. Aborrecidas com as experiências vividas até então, elas
contaram alguns dos péssimos momentos, além de compartilhar
uma série de descontentamentos e pontos negativos referentes à
ONG.
Me despedi das meninas e continuei caminhando introspectivo.
Comecei a me perguntar se estava entrando numa fria e o que de
ruim poderia acontecer comigo. Logo me dei conta de que o sucesso
de qualquer projeto depende da visão de cada um. Então optei por
manter uma visão flexível e abrangente. Naquele instante, eu prometi
para mim mesmo que, independentemente de qualquer imprevisto
ou apuro que pudesse ocorrer, eu faria com que algo de significativo

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acontecesse.
Ao voltar em direção ao meu quarto, percebi que o dormitório
era composto por uma lavanderia, uma miniacademia e um corredor
estreito com carpete cinza e paredes coloridas. Como já estava com
minha própria chave, não me preocupei se teria alguém para me
receber ou não. Ao abrir a porta, me deparei com meu companheiro
de quarto. O asiático me lançou um olhar de desconfiança, tirou o
cabelo do rosto e me deu um seco e rápido oi, ao mesmo tempo em
que colocava a mochila nas costas para se retirar. Foi um choque
perceber o quanto ele era reservado, afinal, eu esperava dividir os
aposentos com alguém que pudesse ser meu camarada nos próxi-
mos meses.
Coloquei os meus pertences sobre a cama de solteiro. Em
seguida, reparei que o guarda-roupas de duas portas seria mais
que o suficiente para acomodar tudo o que eu trouxera na mala. Ao
abri-la, fui surpreendido ao encontrar bilhetes da minha mãe e das
minhas irmãs. Me emocionei ao ler as palavras carinhosas, com
frases de apoio e incentivo. Essa simples atitude me deu forças
para enfrentar as saudades que sentiria dali em diante. Agradeci a
Deus pela minha família, por minha chegada em segurança e pedi
proteção. Me entreguei ao cansaço e finalmente caí no sono.
Acordei animado e, após tomar banho, me dirigi para o café da
manhã junto aos colegas. Frutas, mel, granola e queijo fizeram parte do
desjejum, junto a uma agradável energia de boas-vindas. Por questões
linguísticas, me aproximei dos brasileiros para puxar assunto. Esta
interação foi breve, o papo foi interrompido pelo soar de um sino para
dar início à reunião com os novos voluntários. Fomos orientados de
que todas as manhãs aconteceria o alinhamento a respeito das ativi-
dades do dia. Para a minha surpresa, depois de trinta minutos, iniciou
o cleaning time, a hora da limpeza. Todos os alunos, professores e até
mesmo a diretora, ajudam a manter a organização do local. Colaborei,

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levemente contrariado.
A nova turma foi encaminhada para uma sala com um teto alto,
grandes janelas e carpete no chão. As mesas de metal formavam
um círculo, composto por colegas brasileiros, colombianos, japone-
ses e sul coreanos, sob a coordenação de uma professora mexicana
com estilo rastafári.
Não foi necessário muito tempo para sentir dificuldades com
o novo idioma. Cheguei a duvidar se eu daria conta de cooperar
com a limpeza e de me comunicar em inglês. Estava aflito por não
compreender algumas conversas e, para contornar a situação, decidi
interagir o máximo possível, a fim de aprender a língua por imersão.
As semanas seguintes foram desafiadoras. Pouco a pouco eu
melhorava meu inglês, em paralelo, aprendia as técnicas que me
ajudariam futuramente na África. Até então eu era só um farmacêu-
tico que mal sabia consertar uma porta, muito menos plantar. Como
parte do projeto, foi necessário passar o dia cultivando o solo e
atuando através do trabalho braçal. Carpir, cavoucar, fazer composto,
construir galinheiro e poço d’água passaram a fazer parte da rotina.
Em meio a todas essas atividades, me perguntava o que eu
estava fazendo ali, se estava sendo explorado ou se realmente
estava aprendendo algo relevante. Analisei minhas habilidades a
fim de atuar por meio de algo com que eu me identificasse. Criei
coragem e propus à diretora se eu poderia contribuir de outra forma.
Pacientemente, ela explicou que não havia outra atividade a ser
desenvolvida senão essas, as quais poderiam fazer parte de um dos
projetos futuros na África. Como não havia outra alternativa, procurei
me dedicar o melhor que pude a esses afazeres para desenvolver
essas habilidades.

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Time formado para arrecadação de fundos.

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arrecadação
de fundos
Uma das mais importantes decisões era
escolher qual tarefa cada aluno gostaria de
liderar naquela primeira fase nos Estados
Unidos. Assumi a responsabilidade de
coordenar a arrecadação de fundos,
capazes de bancar nossa estadia de seis
meses, fosse no Malawi, em Moçambique
ou qualquer outro país próximo dali. Minha
equipe era composta por nove pessoas
e cada uma deveria arrecadar seis mil
dólares. A meta total de 54 mil dólares
deveria ser atingida em 45 dias exclusivos
para esse fim. O pedido de doações seria
alternado com os estudos e afazeres da
escola, onde apenas 10 dias eram dedica-
dos para as arrecadações, pois ainda falta-
vam cinco meses para irmos à África.
Como líder das finanças junto aos
colegas, chegamos a um consenso sobre
a maneira como atingiríamos a meta e
a equipe decidiu pedir doações. Essa
escolha foi um baque para mim. “Eu

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realmente preciso disso?”, me interrogava mentalmente. Meu pai


nunca deixou faltar nada em casa, abandonei uma carreira de dois
anos para pedir dinheiro na rua, no auge da neve? Pensei em todas
as alternativas possíveis para arrecadar fundos, mas me deparava
com um único obstáculo: qual revenda ou produção seria capaz de
gerar um lucro de 54 mil dólares em 45 dias?
Como faltava apenas um mês para iniciar efetivamente essa
batalha, eu e meus colegas optamos pelo simples e pelo básico:
confeccionamos cartazes, caixas de papelão e panfletos. Neles,
incluímos fotos e informações do projeto, pois precisávamos repas-
sar confiança e seriedade em relação ao nosso intuito de ajudar ao
próximo e a ONG envolvida.
Pedir doações em frente ao
mercado foi a estratégia utilizada e por
isso, a autorização dos estabelecimen-
tos era um requisito básico, mas não
tão simples quanto parece. A primeira
EU REALMENTE
missão era encontrar pontos em que a PRECISO DISSO?
equipe poderia pedir liberação e assim
partir para a dura obrigação de enfren-
tar uma jornada de 10 horas pedindo
doações.
Enquanto a sul-coreana Nana e a japonesa Mai estavam
trabalhando em frente a dois supermercados, a inexperiência da
equipe colocou a mim e a outros dois rapazes em apuros, pois
não tínhamos a autorização de estabelecimento algum. Por pedido
deles, estacionamos em um Fast Food para comer e para aproveitar
o sinal de Wifi, assim encontraríamos pontos em que poderíamos
realizar nosso trabalho. A parada curta se estendeu por um longo
período de enrolação. Pressionei os colegas para agilizarmos, pois
não era justo com aqueles que, naquele mesmo instante, estavam

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arrecadando dinheiro.
Após minha reclamação, um dos rapazes ficou irritado e disse
“Jonas, se você quiser ir, vá sozinho. Seu inglês é péssimo e você só
vai gastar combustível. Então se vire para ir a pé”. Senti-me extrema-
mente incomodado com essas palavras, mas ficar tomando refil de
Coca Cola no Burguer King estava fora de cogitação para mim. Era
um verdadeiro desperdício de tempo. Já não eram mais 45 dias que
faltavam para atingir a meta, mas sim 44 dias e meio. Sem nem
pensar duas vezes, peguei a chave do carro e os deixei para trás.
Por meio de mímicas e de arranhadas no inglês, consegui liberação
em três lojas para o dia seguinte. Ao final da tarde, passei para buscar
a Mai e a Nana. Em seguida, voltei ao Burguer King pegar os meninos.
Como eu já esperava, eles aproveitaram até o último instante para
beber de graça os refis de refrigerante.

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um lugar seguro
para dormir
Como os pedidos de doações aconte-
ceriam em cidades distantes, não compen-
saria de forma alguma voltar à ONG. Em
consequência, encontrar um lugar para
dormir era essencial. Não poderíamos
desperdiçar dinheiro, muito menos usar
os fundos das arrecadações para ficar em
um hotel. Hospedagem pelo Couchsurfing
foi algo impossível para a primeira noite.
Ninguém estava disposto a receber cinco
pessoas de última hora.
A única alternativa encontrada foi
dormir em um camping, uma vez que tínha-
mos uma barraca capaz de acomodar três
pessoas. Ajudei a armá-la e, quando voltei
do banho, os meninos e a Mai decidiram
ficar confortáveis dentro dela. Para mim e
a Nana, sobrou dormir no carro. Contra-
riado pela falta de democracia e pela
injustiça nessa escolha, deitei no banco
da frente exausto. Fui contagiado por
um sentimento de saudades da família,

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principalmente da comodidade do meu quarto e da minha casa,


construída e inaugurada quatro meses antes da minha vinda aos
Estados Unidos. Consciente de que o próximo dia seria ainda mais
puxado, caí no sono em meio a esses pensamentos.
No meio da noite fui acordado com os barulhos da chuva
enquanto aqueles que estavam na barraca se assustaram com as
goteiras e precisaram abandoná-la. A atitude egoísta dos colegas
me deixou com vontade de ignorá-los, afinal de contas, dormiram lá
por escolha própria. Mediante a indiferença deles nesse primeiro dia
de arrecadações, eu não estava disposto a colaborar. Apesar disso,
minha consciência não ficou confortável, decidi auxiliar aqueles que
iriam dormir no banheiro e também cedi espaço no carro para que
ficassem bem.
Na manhã seguinte, todos tinham um ponto para arrecadar.
Me instalei em um supermercado, onde coloquei um cartaz e me
posicionei com as caixas e os panfletos, pronto para pedir doação
para qualquer um que passasse por ali. Após observar o comporta-
mento das pessoas por algumas horas, me perguntei quais seriam
os motivos que alguns me ignoravam, outros davam um dólar ou
então vinte dólares. Tive os primeiros insights acerca das melhores
abordagens e fiz alguns testes para analisar o retorno destas
adaptações.
O expediente de dez horas daquele sábado foi encerrado com
uma ótima notícia. A Nana conseguiu uma pessoa para nos hospe-
dar até segunda. Nos deslocamos até Akron, cidade próxima, onde
seríamos recebidos. Chegando ao destino, fui surpreendido por uma
casa com decoração de Halloween, cujos enfeites tenebrosos se
mexiam conforme o vento. O mais estranho de tudo é que ainda era
agosto, não fazia sentido aquela decoração tão precoce. Quando me
aproximei do Fred Kruguer, do Jason, de um palhaço sinistro e de
outros personagens de terror pendurados na varanda, percebi que

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estavam lá desde o ano passado.


Fomos recepcionados pelo anfitrião Javan, um rapaz moreno,
com longos cabelos rastafári e quase dois metros de altura. Junto a
ele, estavam seus três boxers gigantes. Ao entrar, cumprimentamos
seus quatro amigos que fumavam um cachimbo suspeito, ao som de
hip hop. Reparei nas condições e na limpeza do lugar, o desconforto
foi tão grande que fiquei mentalmente planejando uma possível fuga
daquela última casa de uma rua sem saída.
Preparamos a janta em uma cozinha onde o chão estava coberto
de pêlos de cachorro. Havia latas de cerveja vazias espalhadas
pelas mesas e pelos armários, além de bastante sujeira. Senti muita
insegurança, até mesmo medo de ser assaltado. Cogitei a possibili-
dade de voltar ao camping, mas seria muito transtorno aquela altura,
estava longe e muito cansado. Apesar disso, estava em um local
mais quente e mais seco que o da noite anterior. Optei por evitar
julgar pela aparência e acreditar na bondade das pessoas, afinal, ele
foi o primeiro a recepcionar outros cinco em seu lar.
Macarrão com molho de tomate fez a nossa alegria naquela janta.
Embora ainda estivesse receoso, eu e alguns colegas fomos contar o
dinheiro no carro. Ao voltar, Javan me convidou para caminhar com ele
no bosque ao lado. Inseguro por andar na mata, em meio à escuridão,
com um estranho e três cães gigantes, eu topei.
Perguntei ao anfitrião do couchsurfing por que ele concordou
em receber cinco estranhos em sua casa, sendo que não tínhamos
avaliação ou recomendação alguma no site. Fui tocado por uma
inesquecível resposta: “Jonas, a vida é agora e tenho que aproveitar
enquanto estiver vivo. Sempre estarei aqui para ajudar as pessoas
com as minhas próprias mãos”.
Caminhamos por mais alguns minutos e tivemos uma agradável
conversa, a partir da qual me senti seguro para dormir mais duas
noites em Akron. Sua simpatia e carisma me tranquilizaram, até

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mesmo para encarar uma banheira imunda, além dos cachorros que
se recusaram a sair do sofá no qual eu iria dormir, me restando
apenas o chão sujo e empoeirado. Apesar de tudo, me senti grato
por conhecê-lo e por sua hospitalidade.

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A VIDA É AGORA E TENHO QUE


APROVEITAR ENQUANTO ESTIVER VIVO

Casa do Javan, anfitrião do couchsurfing.

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54 mil dólares
em 45 dias
Dia após dia, a equipe trabalhou em
prol da gigantesca meta de atingir 54 mil
dólares. Além de ser inadequado ficar em
um estabelecimento por muito tempo,
logo os clientes começavam a se repetir, o
que inviabilizava a arrecadação no mesmo
ponto. Percorri várias cidades e conheci
várias pessoas gentis. Quando elas perce-
biam que eu estava lá por horas, recebia
refeições dos funcionários do local e da
sua clientela.
Fiquei surpreso ao perceber a quanti-
dade de jovens que se solidarizavam com
o projeto. Muitos deles compartilhavam
comida e palavras de motivação, me
dando forças para conquistar meu sonho
em meio a todos os desafios em que eu
estava enfrentando. Afinal, era uma árdua
tarefa aquecer os pés no ar quente desti-
nado para secar as mãos no banheiro
ou então colocar jornal no sapato para
proteger os pés da neve. Apesar da roupa

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térmica, das luvas e da máscara, precisava revezar 40 minutos na


calçada e 10 minutos dentro em um local fechado para não congelar.
Sem falar da chuva ou do vento que me faziam correr atrás do painel
de identificação do projeto, que voava pelos ares ou pelas adversi-
dades climáticas que impediam qualquer um de parar para nos ouvir.
As pessoas não sabiam se fugiam da gente ou do clima terrível.
Eu sempre procurava observar os argumentos e atitudes mais
convincentes, de acordo com o local em que eu estava. Alguns
supermercados eram movimentados por um público específico
e eu precisava moldar meu comportamento. Alguns bairros eram
frequentados por asiáticos, então adaptava a minha abordagem em
frente ao supermercado. Aprendi algumas palavras em mandarim,
coreano, japonês, espanhol até tagalo, língua dos filipinos, para
chamar atenção dos clientes, além de cuidar com a linguagem corpo-
ral. Curvar o corpo diante
dos asiáticos era sinal de
respeito e atraía atenção.
aS PESSOAS NÃO SABIAM Noventa por cento deles
SE FUGIAM DA GENTE OU negavam a colaboração,
DO CLIMA TERRÍVEL mas absolutamente todos
aqueles que paravam para
ouvir doavam uma quanti-
dade realmente significativa.
O comportamento daqueles que falavam espanhol nos merca-
dos latinos era o oposto. Precisamente todos eles doavam, mesmo
que fossem algumas moedas, junto com a frase: “Diós te bendiga”.
Graças a eles, chegamos a arrecadar mais de 300 dólares em
moedas em um único dia. Já os americanos rebatiam afirmando
que preferiam ajudar os pobres dos Estados Unidos, não aqueles
da África. No entanto, vários outros tinham interesse em ouvir, mas
pediam provas concretas e buscavam veracidade naquilo que era

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dito. Em uma das situações, o homem levou o panfleto para casa


e pesquisou tudo sobre a ONG. Ao constatar que todas as infor-
mações eram verídicas, encaminhou para o Instituto uma carta de
agradecimento endereçada a mim e um cheque de 200 dólares para
o time, o que deixou todos muito contentes.

Um cartaz, uma caixa de papelão e a meta.

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O desafio
só aumentava
Ao passar de 30 dias de arrecadações,
realizamos uma reunião para calcular a
quantia coletada. Para nossa frustração,
constatou-se que, após todo o esforço,
somente 47% da meta fora atingida. O
sonho de ir para a África pareceu distante.
Contaminada pelo desânimo, a equipe
entrou em uma calorosa discussão acerca
dos pontos positivos e negativos da
estratégia utilizada.
No início, todos estavam educados e
ponderados, até que os ânimos começaram
a se alterar em meio a acusações de corpo
mole, desculpas e encrencas. O time,
composto por latinos, asiáticos e ameri-
canos, tornava a discussão ainda mais
confusa e acirrada. Para ajudar, a profes-
sora mexicana incentivava o conflito entre
os alunos com seu espírito guerrilheiro.
Exausto com o clima, finalmente veio o
intervalo e um tempo para tomar uma
água, descansar a cabeça, respirar sozinho

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e em paz por uma hora.


Me dirigi à floresta ao lado da escola, enquanto analisava o
meu papel de líder e responsável pela arrecadação de fundos. Me
senti aborrecido com meu desempenho. Cogitei a possibilidade de
abandonar tudo e deixar que a briga rolasse. Descontente com essa
alternativa, pensei em como todos poderiam conseguir o restante da
verba. Me encorajei para mostrar aos colegas que todos possuíam
um objetivo em comum e que nossa união, respeito e parceria
fariam com que atingíssemos a meta e conquistássemos o sonho
de melhorar a vida de dezenas de famílias africanas.
Uma conversa clara e franca convenceu a maioria de que a
única solução seria manter o mesmo plano, mas com uma atitude
diferente, pois todos deveriam abraçar a causa com dedicação e
garra. Dessa vez, melhoramos as técnicas de negociação, apuramos
melhor a leitura cultural e suas abordagens certeiras, aperfeiçoa-
mos os argumentos e usamos ainda mais da nossa simpatia. “Falta
pouco para conquistar o grande objetivo” foi uma chamada para a
ação estratégica.
Neste meio tempo, imerso nas doações, nos hospedamos em doze
casas diferentes através do couchsurfing. Essa experiência rendeu
muitas amizades e aprendizados valiosos. Era incrível o acolhimento
com o qual as pessoas nos recebiam, cada uma com sua personalidade
e seus hábitos. Conheci desde um adorador do satanás em que todos
os objetos da casa tinham a imagem de caveira e de vários demônios
representados por uma figura
masculina de boa aparência; fui
hospedado por uma simpática falta pouco para
moça e sua mãe que produziam
conquistar o
bonecas artesanais; assim como
um homem que morava sozinho grande objetivo
e tinha dezenas de cópias de

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chave da sua casa, para receber centenas de hóspedes do mundo todo


- eu fui o 327º a ser recebido por ele, bem como depois de um longo
dia de trabalho, uma adorável família me presenteou com um bolo de
aniversário em seis de outubro, com velas reutilizadas, combinadas por
quatro números diferentes que somavam os 25 anos que eu estava
completando.

Uma adorável família me presenteou com um bolo de aniversário.

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O inesperado

Através de um árduo trabalho, muitos


altos e baixos, a meta de coletar 54 mil
dólares foi conquistada. Ao receber abrigo,
carinho e gentileza das pessoas, mais me
sentia preparado e convicto da missão
de ir para a África realizar meu trabalho
voluntário. Ter para quem agradecer o apoio
recebido, fazia com que eu reconhecesse
a luz dessas pessoas a fim de estender o
meu carinho e desejo de fazer o bem para
aqueles que necessitavam muito mais do
que eu.
A escolha pelo Malawi foi um acordo
entre mim, Mai e Nana, equipe formada
para a prática do projeto. Juntos, escolhe-
mos o distrito de Chikwawa para realizar
nosso trabalho, com o objetivo de viver
uma verdadeira imersão. Sempre acreditei
que, para vivenciar os hábitos e tradições
de um país diferente, o melhor é optar pelo
lugar mais distante possível da influência
de outras culturas. As duras experiên-

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cias nos Estados Unidos trouxeram a maturidade necessária para


encarar os percalços que estavam por vir no terceiro país mais pobre
do mundo.

a escolha pelo malawi foi um


acordo entre mim, mai e nana

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Trajeto dos Estados Unidos para o Malawi.

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Uma descoberta
em cada passo
A diferença de temperatura entre
Chicago e Johannesburg era brutal. Saí de
uma temperatura de -20 ºC nos Estados
Unidos e me deparei com 25 ºC positivos na
África do Sul. Fui surpreendido pela alegria
das aeromoças que pouco se importavam
em agir com formalidade ou em fazer silên-
cio. Elas trabalhavam cantando e conver-
sando alegremente, com o inglês carre-
gado no RRR. Comparando com os “rrr” em
português, se assemelha ao sotaque de
algumas pessoas do sul do Brasil, ao falar
“carrro, carrroça”. Elas falavam “house”
com a pronúncia “rrrouse”.
No mesmo avião em que embarquei,
estavam as jogadoras de rugby do time
feminino sul-africano. Conversei com
algumas meninas e, claro, a conversa
só ficou mais interessante porque há
pouco tempo eu havia assistido Invictus.
Baseado na história de Nelson Mandela, o
filme relata a Copa do Mundo de Rugby em

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seu país, no ano de 1995. Naquele período, esse esporte era prati-
cado somente pela elite branca e, em paralelo, a nação se dividia
entre brancos e negros, pela austeridade do Apartheid.
Mandela enxergou nesse evento mundial uma oportunidade de
praticar a tolerância e implantar a política multirracial, instalar a
chamada “rainbow nation”, nação do arco-íris. Sua estratégia parecia
uma grandiosa loucura, mas sua audácia, sob o slogan de “um time,
uma nação”, teve como resultado a vitória da união e da tolerân-
cia. Se há mais de 20 anos essa foi uma imensa conquista para o
time masculino, a participação da seleção feminina no mundial nos
Estados Unidos foi mais um sinal do avanço cultural.
Em 2010, a África do Sul cedeu espaço para a Copa do Mundo.
Esse espetáculo evidenciou que os esforços da população e de
Mandela valeram à pena. O evento integrou ainda mais a população
da África do Sul para que o Apartheid se tornasse uma vergonhosa
cicatriz dos embates humanos, capaz de ser recordada e superada,
tal qual ele fez com o time Springbocks, apelido dado à seleção de
rugby do país, há duas décadas.
Cheguei ao Malawi no dia seguinte. No aeroporto era evidente a
simplicidade e a diferença entre as capitais Johannesburg e Lilongwe.
Na alfândega, o guarda me perguntou se eu havia tomado a vacina
contra a Febre Amarela. Devido ao descuido desse esquecimento,
tentei passar reto, no jeitinho brasileiro. De prontidão, ele me segurou
pelo braço e, como reflexo, falei com uma voz segura e confiante: “me
larga, eu sou farmacêutico”. Ele me olhou sério, no fundo dos meus
olhos, e me soltou. Apesar do nervosismo, percebi que a sorte estava
a meu favor.
Malawi possui um território pequeno, faz fronteira com Moçam-
bique, Zâmbia e Tanzânia, ao sudeste do continente. Por ser um país
estreito, seus 24 distritos são divididos apenas entre sul, centro e
norte. Sua agricultura gira em torno do cultivo de chá, cana-de-açú-

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car, milho e tabaco. Por mais que 80% da população viva em área
rural, o índice de subnutrição chega a 29%, o equivalente a mais de
4 milhões de pessoas, reduzindo consideravelmente a expectativa
de vida. Os homens vivem aproximadamente 37 anos enquanto a
estimativa para as mulheres é de 43 anos.
A moeda oficial chama-se quacha malawiana e sofre constan-
tes desvalorizações. Um real equivale, em média, a 250 kwachas
(cálculo realizado em outubro de 2016). Apesar de ser colonizado
pelos ingleses, somente nas principais cidades, a população fala
inglês. Já na área rural predominam o chichewa e chitumbuca,
línguas locais.
Foi possível reconhecer a ONG de longe, sua arquitetura seguia
os padrões da organização norte-americana. As paredes, a porta e a
pintura deixam claro que, apesar de ser o mesmo padrão, a qualidade
do material era muito inferior. Observei ao redor e reconheci alguns
objetos de decoração, pois eram idênticos com aqueles utilizados lá
nos Estados Unidos. Com o ambiente tão familiar, foi fácil me acomo-
dar e me sentir confortável com a ideia de, que pelos próximos três
dias, ficaria ali hospedado.
Há poucas horas do anoitecer, saí para explorar as redondezas.
Entrelacei os chinelos nos meus dedos e corri sem direção pelos
caminhos abertos, marcados pela lama seca, em meio ao mato e às
moradias de barro. Percebi que algumas crianças gritavam algo como
“bo” ou “bobo”. Ao ouvir, me perguntei se estavam me xingando.
Quando as mãos acenaram um abano de oi ou de tchau, fiquei mais
tranquilo em perceber que era apenas uma forma de cumprimentar.
Mudei a rota no retorno para a ONG e cheguei a um pequeno
campo de futebol. As crianças brincavam com uma bola improvisada
com sacolas plásticas amarradas com barbante. Apreciei essa cena
na medida em que corria pela extensão do campo, até olhar para o
lado e notar vários trabalhadores retornando para casa, com suas

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74

bicicletas, seus trajes sociais e chinelos de dedo, apressados para


abrigarem-se dos pingos da chuva. Apertei meu passo, cansado
e cada vez mais molhado. Assim que cheguei ao alojamento, fui
direto para o chuveiro. Ao abrir a torneira, nada saiu pelos canos. Tal
frustração durou pouco tempo, decidi ir para fora me ensaboar e me
enxaguar na calha, de onde escorria a água da chuva.

Crianças jogam bola e trabalhadores voltam para suas casas.

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Uma nova família

Em meio à ansiedade, após os três


dias na instituição, chegou o momento de
ir para o distrito Chikwawa. Até então, não
fazia ideia da dificuldade que seria para
chegar até a comunidade. Cheguei ao
ponto de saída da van na hora combinada.
O motorista só partiria para o destino
assim que a van estivesse com sua
capacidade máxima ocupada.
Neste meio tempo em que os passa-
geiros tentavam se acomodar dentro do
precário automóvel, começaram a colocar
sacolas, caixas e até mesmo galinhas
entre os bancos. Quando algumas pessoas
desciam em um ponto, várias outras entra-
vam, transformando cada parada em um
tira e coloca de objetos e pertences, que
acabei perdendo meu tênis no meio da
bagunça. O mais intrigante de tudo foi
quando percebi que havia um pernil de
cabrito pendurado no para-brisa, numa
espécie de delivery. Naquele instante,

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percebi que saí das pesquisas do Google para vivenciar, na prática,


a realidade do transporte na África.
Quando chegou ao final do asfalto, após 37 km percorridos em
duas horas e meia, a van parou para que todos descessem. Dali
em diante, para dar continuidade ao percurso, foi necessário pegar
um taxibike para cada um. Já na garupa da bicicleta, na descida do
morro, avistei a devastação da mata nativa. O “motorista” explicou
que devido à necessidade de transformar a madeira em lenha para
cozinhar, os moradores derrubavam as árvores. Passamos por duas
barreiras do exército, onde os soldados vistoriavam algumas merca-
dorias para verificar se estava acontecendo algum contrabando e
passamos sem problema algum.
A vila possuía um mercado local formado por diversas tendas de
madeira e lonas pretas, com um tecido estendido no chão, na frente
de cada uma. A venda de roupas usadas, alimentos colhidos na
região e de comidas preparadas pelos moradores mobilizava um fluxo
considerável de pessoas naquele dia. Não pude perder a oportuni-
dade de experimentar espetinho de rato e grilo frito, iniciando assim
a minha imersão cultural.
Depois de trinta minutos em meio a um trajeto esburacado,
cheguei ao destino final. A jornada foi exaustiva, afinal, percorri três
dias para chegar dos Estados Unidos à capital do Malawi, levei mais
um dia de ônibus para chegar em Blantyre, onde aguardei três dias
na ONG até chegar ao vilarejo e ao local que chamaria de “minha
casa” pelos próximos seis meses.
Abri a porta cinzenta de madeira, que enroscou no piso vermelho
de cera. Como havia apenas dois quartos, Mai e a Nana se instalaram
no maior, enquanto eu fiquei com o menor. Ele media aproximada-
mente 2,5 x 1,5 m, possuía somente uma cama de solteiro e uma
cômoda para minha única mala de roupas, além de um mosquiteiro
repleto de buracos. Devido à grande sujeira, eu e as meninas decidi-

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mos fazer uma faxina antes de qualquer outra coisa.


A casa de alvenaria era produzida com um material frágil. Ao
passar a vassoura na parede, pedaços de reboco se soltavam,
principalmente no banheiro. Haviam insetos mortos aos milhares.
Enquanto limpávamos os cômodos, ficamos sem água. Cada vez
que isso acontecia no Paraná, a água voltava rapidamente. Concluí
que seria melhor arrumar o restante da casa. Com o passar das
horas, minha sede aumentava e eu percebia que aquela água não
era para faxina alguma, mas sim para beber, comer e, se sobrasse,
para tomar banho.
Já estava próximo de anoitecer, não aguentava mais a garganta
seca e a necessidade de tomar banho. Procurei alguma torneira para
o lado de fora da casa, só encontrei uma e ainda assim nada saiu
dela. Frustrado, voltei para dentro. Nesse instante, percebi que era
observado por um menino de aproximadamente dez anos.
Alguns minutos depois, inesperadamente, alguém bateu na porta.
Era um menino careca, de dentes grandes e de sorriso contagiante,
o mesmo que me observara pelo lado de fora. Ele esticou seus
braços, assim como quando se pede um abraço. Sem entender,
cumprimentei a criança e perguntei se estava tudo bem, já com um
inglês muito melhor do que quando cheguei aos Estados Unidos.
Ele disse algumas palavras, mas não compreendi absolutamente
nada. Ele falava a língua local, chechewa. O menino apontou para
o balde que estava em sua frente, com água até o meio. Calculei
que tivesse a metade do peso dele. Através da linguagem de sinais,
compreendi que havia tirado um pouquinho da água da sua família
para compartilhar com minha nova família. Ele poderia simples-
mente estar brincando ou se divertindo com outras coisas, mas
deixou qualquer outra distração de lado para compartilhar do seu
pequeno reservatório. Essa foi, definitivamente, a melhor recepção
da minha vida.

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Continuei me comunicando com o menino por meio de sinais


e, junto às meninas, conseguimos descobrir qual era o seu nome:
Francisco. Depois de alguns minutos, ele foi embora e, contagiados
pelo seu sorriso, fomos acender o carvão para fazer a janta. Todo
atrapalhado e confuso ao acender o fogo, lembrei dos churrascos
feitos pelo meu pai, quando ele sempre era o encarregado de cuidar
do carvão.

ERA TERRÍVEL A SENSAÇÃO DE QUE, A QUALQUER MOMENTO,


ALGUM MOSQUITO pudesse ME PICAR
E ME TRANSMITIR MALÁRIA

Dois colchões para três pessoas - Nana, Mai e eu.


Carne sendo carregada no limpador de para-brisa.
Espetinhos de rato.

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Mudança de
planos
Em meio à escuridão e ao silêncio
da noite, após o jantar, um barulho de
motor e uma forte luz de farol entraram
pela janela. Um homem moreno, de 1,80
metros e de barriga saliente (algo atípico
para a região), se apresentou para nós
como Alex, o diretor do Clube das Agricul-
toras, em que eu realizaria o trabalho
voluntário.
Ao longo dos seis meses em que
estivesse no Malawi, a estimativa desse
projeto era atender aproximadamente
5.250 mulheres. Por meio dos conheci-
mentos adquiridos na ONG, ao cavoucar
a terra, plantar e colher, lhes ensinaria a
tirar o proveito da terra a fim de melhorar a
alimentação de centenas de famílias. Alex
explicou os detalhes de como funcionava
o projeto e, em seguida, deu uma notícia
inesperada. Devido às circunstâncias, ao
atraso da verba e à indisponibilidade dos
colaboradores, o Clube das Agricultoras

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começaria dentro de 30 dias.


O silêncio contagiou o ambiente. Contra-argumentos eram impos-
síveis. Compreendi a situação e fiquei muito chateado. Nesse clima
de tristeza, me despedi de Alex, arrumei o mosquiteiro em volta do
colchão, deitei e agradeci a Deus por ter chegado ao meu destino.
O sono demorou para surgir, o calor estava intenso e o mosquiteiro
enroscava nos meus pés. Era terrível a sensação de que, a qualquer
momento, algum mosquito pudesse me picar e me transmitir malária.
Adormeci em meio a essa insegurança e saudades de casa.
A luz do sol bateu em meu rosto e a temperatura insuportável me
despertou de vez, era mpossível permanecer na cama sob essas
condições e levantei às seis horas da manhã. A maior vantagem
de levantar nesse horário era a grande probabilidade de ter energia
elétrica em casa. Conforme as recomendações de Alex, eram poucas
as horas em que a eletricidade ficava estabilizada. Consegui esquen-
tar a água para o café somente apertando o botão do fogão elétrico
de duas bocas, sem nem precisar usar o carvão neste dia.
Enquanto tomava o café, pensava no que poderia fazer naquele
período de um mês, até começar o projeto com as mulheres. Concluí
que, além das minhas novas habilidades nos afazeres do campo, sou
farmacêutico com experiência em farmácia hospitalar, mas foram
poucas as alternativas de trabalho que surgiram em mente. Dentre
elas, a ideia que mais me agradou foi aplicar meu conhecimento em
algum hospital. Terminei meu café e saí determinado a encontrar
um local para trabalhar. Estava perdido e desorientado, assim como
quando fui distribuir meu currículo pela primeira vez na vida.
Peguei uma das bicicletas que a ONG disponibilizou e saí na rua
em busca de um hospital. Avistei uma espécie de correio local, onde
haviam várias pessoas na fila. Aproveitei o aglomerado de pessoas
e perguntei onde havia um hospital. Uma senhora franzina e de baixa
estatura mostrou a direção sem dizer mais do que três palavras. Ela

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apontou para trás do estabelecimento e falou “siga em frente”.


Montei na bicicleta e segui adiante, até me deparar com um
portão grande de metal, entreaberto. A areia dificultou o pedalar,
desci e comecei a empurrar a bicicleta. Ao passar pelo portão,
reparei que dez pessoas estavam paradas ali. Algumas choravam e
outras cantavam uma canção que aparentemente remetia à tristeza.
Todas tinham igual expressão de aborrecimento. Olhei curioso em
volta para entender o que poderia ser e vi uma placa que identificava
aquele local como um necrotério.
No lado oposto do mortuário, tinha uma construção um pouco
maior, semelhante a uma casa. A pequena placa indicava que aquela
era a “Ala Tuberculose”. As portas e as janelas fechadas não me
permitiram enxergar se o hospital era lá mesmo ou não. Continuei
caminhando e, de longe, enxerguei uma rotatória com uma frase
quase apagada: “Bem Vindo ao Hospital Distrital de Chikwawa”. A
cada passo, meu tênis se enchia de areia. Continuei caminhando
em direção ao local e passei por uma cerca de Brasilit, onde várias
pessoas cozinhavam. Deduzi que aquela área não pertencia ao
hospital.
Há poucos metros de onde eu estava, havia uma ambulância estacio-
nada. Ao me aproximar, fui
recepcionado por um senhor
simpático e ele perguntou o
que eu queria e expliquei a bem vindo ao
ele a minha vontade de ajudar. hospital distrital
Gentilmente ele me convidou
de chikwawa
para entrar e recomendou que
eu aguardasse sentado em
uma cadeira, enquanto ele
chamaria a responsável. Rapidamente uma mulher me convidou para
entrar e abriu um sorriso, ao mesmo tempo em que me perguntava

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como ela poderia ser útil.


Expliquei para ela qual era minha formação e a minha intenção.
Ela informou que era a única médica presente naquele momento.
Contou também que o pequeno hospital deveria atender todo o
distrito de Chikwawa, composto, em média, por 250 mil habitantes.
Preocupado com a realidade daquele lugar, prontamente me dispus
a ajudar. Animada, me levou até os responsáveis pela farmácia e
pediu para que eles me apresentassem o hospital.

Bem-vindo ao hospital distrital de Chikwawa.

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Trabalho sem
ferramentas
Já nos primeiros passos, percebi a
superlotação. Os corredores estavam
abarrotados de pessoas, em uma enorme
fila para atendimento e outra para receber
os medicamentos. Perguntei o que era
aquele local que possui as telhas de
Brasilit e me responderam que é lá onde
ficam alojadas as famílias dos internados.
Devido à distância das casas em relação
ao hospital, era mais cômodo que elas
se hospedassem naquele lugar até que o
familiar se recuperasse. Inclusive, naquele
mesmo ambiente, essas pessoas prepara-
vam a refeição para seus parentes enfer-
mos, pois o hospital não disponibilizava
alimentação alguma.
Ao chegar à farmácia hospitalar, me
deparei com uma área abarrotada de
comprimidos vencidos. Várias instituições
do mundo doavam fármacos sem consultar
qual era a realidade local. A maioria deles
nem sequer era utilizada, não havia serven-

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tia para as doenças mais comuns naquela região. Em contrapartida,


os medicamentos essenciais para atender a população estavam
em constante falta. A ausência de comunicação e de interesse dos
doadores levavam não só a um enorme desperdício de dinheiro,
mas principalmente mais pessoas adoeciam por não terem os reais
problemas de saúde solucionados.
Verifiquei o estoque de medicamentos e percebi que, naquele
momento, só havia um tipo de antibiótico disponível para trata-
mento. Perguntei ao técnico qual era o procedimento quando o
médico receitasse outro. Sua resposta foi pontual: “nesse caso, a
família é obrigada a comprar”. Emendei a pergunta: “e se a família
não tiver dinheiro?”. Ele balançou os ombros como se expressasse
que nada poderia ser feito.
Neste mesmo departamento em que eu estava, os remédios
eram entregues aos pacientes conforme o receituário. A entrega era
realizada por meio de uma grande janela, onde a pessoa colocava
a metade do rosto e estendia a mão para apresentar a receita.
Após alguns minutos, o medicamento era entregue sem repassar
instrução alguma de como seria o uso adequado.
No período vespertino, fui encaminhado para atuar no atendi-
mento aos exames de Tuberculose, Malária e HIV. As análises eram
realizadas através de testes rápidos de detecção. Para o meu susto,
o resultado era dito em voz alta, na frente de todas as pessoas que
estivessem próximas, sem o mínimo de privacidade.
Fiquei ainda mais espantado com a quantidade de resultados
positivos para os exames de HIV realizados por mim naquela tarde.
Assim como os demais exames, resultados como esse também eram
apresentados ao paciente na frente de todos. Desconfortável com a
situação, preferi falar com eles em particular. Expliquei para cada um
a importância do uso da camisinha e do coquetel antirretroviral que
deveriam tomar a partir do momento da confirmação de soro positivo.

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oS resultadoS DOS TESTES DE HIV eraM ditoS


em voz alta, na frente de todas as pessoas

Junto à auxiliar de enfermagem, comuniquei para um jovem de


22 anos que ele contraiu o HIV. Fizemos a mesma recomendação de
método de prevenção que indicamos para as outras pessoas, mas este
rapaz rebateu: “Assim que acabar as cinco camisinhas que vocês me
entregam, como faço para conseguir mais? Não possuo dinheiro para
comprá-las. Caso precise, tenho que pedalar quilômetros até o hospital
para conseguir mais cinco?”. Concluí que o mesmo problema acontecia
com as pílulas anticoncepcionais e, em seguida, ele completou: “estes
comprimidos do coquetel matam mais rápido”.
Foi um verdadeiro choque perceber a cultura do local em relação
aos métodos contraceptivos. O elevado índice de AIDS na África é
decorrente da desinformação, mas, principalmente, é consequência
de uma ineficaz distribuição dos métodos de proteção. A população
não possui condições financeiras para satisfazer o essencial à
sobrevivência, que dirá para a compra de camisinhas.
Observei o sol desaparecer no horizonte ao voltar para casa. A
realidade daquele hospital foi um choque intenso e distante daquilo
que vivi até então. Me senti impotente diante das dificuldades e
de tantos problemas básicos que não eram sanados. Logo a rotina
de acender o carvão para preparar a janta tomou conta dos meus
pensamentos.
A dificuldade de lavar a louça à luz de velas me fez lembrar
do hospital e de como seriam suas condições sem eletricidade.
Terminei a tarefa e retornei lá para conferir a situação pessoalmente.
Fui caminhando, pois teria mais controle do caminho do que com a

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bicicleta na escuridão. Não havia lua no céu e a identificação do


trajeto ficou mais difícil.
O silêncio do caminho aguçava meus sentidos enquanto a areia
entrava no meu calçado. Ao me aproximar do portão do hospital,
avistei algumas fogueiras e presumi que os familiares dos pacientes
cozinhavam a janta para os enfermos. Segui o mesmo trajeto que
percorria ao longo do dia. A Ala Tuberculose era à direita, sabia que na
sequência, à esquerda, estaria o mortuário. A segurança se afastava
de mim à medida que me aproximava.
Depois de passar pelo necrotério, identifiquei que estava há
poucos metros das demais alas. No entanto, um grito de dor muito alto
me paralisou. Congelado pelo susto, concluí que já havia escutado
o suficiente para aquela noite. Retornei para casa, agoniado. Deitei
em meu quarto, protegido pelo mosquiteiro e sufocado pelo calor.
Em seguida, um filme de tudo o que aconteceu se passou por minha
cabeça.

Mãe sentada no chão, devido a falta de colchões.

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Todos os dias
serão assim?
Consciente de que o dia seguinte
seria longo, acordei procurando forças e
motivação para enfrentar aquela dura reali-
dade do hospital. Assim foi ao longo de toda
aquela semana, período em que passei
também a colaborar com as auxiliares de
enfermagem nas consultas de pré-natal
devido à falta de médicos. Minha energia
se consumia cada dia mais, minha vontade
de levantar da cama era nula e me sentia
energeticamente sugado. Sentia que minha
ajuda não tinha poder algum para mudar a
realidade daquelas pessoas.
Exausto e deprimido, aproveitei o
domingo para ficar em casa, descansar
a cabeça e me reequilibrar. Foi um ótimo
dia e passou mais rápido do que gostaria.
Quando chegou a segunda-feira, não tive
ânimo algum para ir até o hospital. Essa
indisposição era extremamente atípica.
Senti necessidade de mudar algo. A minha
atuação não era efetiva e muito menos

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saudável para mim. Era impossível ajudar as pessoas sem energia


e ânimo algum.
Decidido a mudar, conversei com a diretora do hospital para
que me autorizasse a atuar na ala infantil. Concluí que seria mais
alegre e que minha energia poderia ser contagiante e melhor junto
às crianças. Ela concordou e me instruiu para que me dirigisse até o
final do corredor e virasse à direita. Ao caminhar em direção àquela
ala, meu sorriso voltou a aparecer, sabia que lá eu iria me divertir
com as crianças e ajudar aqueles pequenos.
Passei por várias mães à espera de atendimento, ao longo do
corredor. Prestes a virar à direita, um berro interrompeu meus passos.
O grito veio da mesma direção em que eu me dirigia. Acelerei meu
ritmo, preocupado para ver o que aconteceu e como poderia ajudar.
Ao passar pela porta, vi a mãe debruçada sobre seu filho, chorando
e gritando em chechewa. Não compreendia uma palavra, mas a dor
em sua voz era evidente.
O filho dela, uma criança com quase um ano de idade, faleceu em
decorrência de complicações ocasionadas pela desnutrição. A mãe
o trouxe ao hospital já em choque, decorrente da falta de nutrientes,
mas não havia recurso algum para colaborar com sua recuperação.
Nunca vou esquecer: Isso aconteceu no dia 13 de março de 2013. Foi
a primeira vez na vida que vi um ser humano morrer em consequência
da falta de comida. Surpreso com a naturalidade dos funcionários
que estavam em volta, deduzi que mortes como aquela eram comuns
neste local.
O dia encerrou naquele instante, para mim. Retornei para casa
com uma imensa tristeza no coração. Ao chegar, coloquei uma
bermuda, pois precisava correr para amenizar os pensamentos e
gastar aquela energia terrível que ficou presa em mim. Fui tomado
pela sensação de impotência, pelo sentimento de quão pequeno eu
era e do pouco que estava fazendo. Corri até o último instante em

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que o sol iluminava a floresta e percebi que estava muito longe de


casa. Fiz minhas orações, como se conversasse com Deus, e os
porquês da vida apareciam. Eu queria respostas e soluções. Em
meio ao emaranhado de pensamentos, determinei para mim mesmo
que eu deveria lutar para que cenas como aquela nunca mais voltas-
sem a se repetir naquela comunidade, pois finalmente o clube das
agricultoras iria iniciar.

A expressão no rosto mostra a preocupação da mãe com o estado do seu filho.

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Páscoa de Barro

Em um final de tarde, ao voltar do hospi-


tal, cheguei em casa e me deparei com
duas meninas e um menino brincando na
sua entrada. Um pouco cansado, dei um
oi e os deixei brincando por ali mesmo. Ao
andar de um cômodo para outro, percebi
que era espionado por eles. Através da
janela, tentavam enxergar o que eu estava
fazendo na sala, no quarto ou na cozinha.
Em tom de descontração, abri rapida-
mente a porta da sala e os três se assus-
taram. As duas meninas gritavam enquanto
corriam para longe. Na mesma tentativa de
fuga, o menino tropeçou e caiu no chão.
Seu reflexo foi uma gargalhada, não sei se
era pela graça da cena ou pelo nervosismo.
Tirei do bolso a única paçoca que tinha,
estendi a mão para entregar-lhe. Ele me
olhou no rosto, com as duas mãos pegou o
doce e correu em direção às meninas. Ao
alcançá-las, abriu a embalagem, quebrou o
doce em vários pedacinhos e dividiu com

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suas amigas. Foi uma surpresa observar a reação dele, pois não havia
necessidade de dividir a paçoca. Ele poderia ter comido sozinho e
longe delas. Sua atitude foi baseada no instinto de partilha e ele
decidiu compartilhar o seu presente.
Ver a alegria e a criatividade das crianças me reenergizava. Me
impressionei com os brinquedos construídos por elas. O barro servia
para a produção de seus brinquedos, cuja fonte de matéria-prima era
abundante e permitia soltar a imaginação para confeccionar o que
desejassem. Com toda essa quantidade, uma simples casinha tinha
barro suficiente para se tornar um imenso castelo. Uma caixa de
leite, quatro tampas de garrafas e um cabo de madeira transforma-
vam-se em um carro muito bem desenhado, com direito a passageiro.
Para tornar a brincadeira ainda mais divertida, construíam pontes e
incrementavam o cenário conforme a imaginação fluía.
Certo dia, não identifiquei qual era o brinquedo na mão de uma
menina, pois todos eram da mesma cor, de barro misturado com
água. Ela respondeu: “essa sou eu”. Então percebi que tinha duas
pernas, dois braços e uma cabeça. Concluí que era assim a Barbie
do Malawi. Essa mesma simplicidade acompanhou a Páscoa.
Só soube que seria a Páscoa quando recebi a ligação da minha
mãe. Ela contou que comprou os ovos de chocolate para meus sobri-
nhos e então fiquei curioso para saber se também era celebrada no
Malawi. Até então não tinha ouvido ninguém comentar. Descobri que
sim ao ver a procissão na Sexta-Feira Santa, realizada por centenas
de pessoas. Sob o mais forte brilhar do sol, elas caminhavam e
se ajoelhavam em um asfalto escaldante. No domingo de Páscoa,
eu estava na sede da ONG, em Blantyre e encontrei voluntários da
Lituânia, Ucrânia, Espanha, Romênia, Itália, Eslováquia, República
Tcheca e Grécia. Cada um realizou o seu rito conforme sua crença.
Naquela mesma manhã, as ameaças da Coréia do Norte sobre a
Coréia do Sul tiveram grandes repercussões e aborreceram a todos,

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visto que a Nana é sul-coreana. Ficamos preocupados ao escutar


as histórias sobre o terror vivido em seu país. Sua preocupação e
angústia para saber como estavam seus familiares e amigos nos
deixaram chocados.
Cheguei em casa no final daquela tarde e encontrei as crianças
brincando ao lado. Perguntei para o Francisco se teve alguma
refeição especial em sua casa por ser uma data religiosa impor-
tante. Ele respondeu: “somente no natal comemos arroz e frango”.
Provavelmente o dinheiro para
essa refeição era obtido graças
à venda de lenha, na feira.
Comecei a olhar para a simpli- qual foi o recheio do seu
cidade dos brinquedos, daí lhe último ovo de páscoa?
pergunto: qual foi o recheio do
seu último ovo de Páscoa?

Menina montou sua própria Barbie de barro.

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Francisco e seu carrinho de barro.

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Clube das
A g r i c u lt o r a s
As próximas duas semanas demoraram
para passar até que, finalmente, chegou
o dia de iniciar o Clube das Agricultoras.
Esse projeto era composto por 21 líderes,
sendo que cada um era responsável por
trabalhar com 250 mulheres, totalizando
5.250 integrantes. A família de cada uma
era composta em média por 5 membros,
portanto, o impacto desse trabalho atingi-
ria aproximadamente 26 mil pessoas.
Minha missão, junto com a Mai e a
Nana, era ensinar para aquelas mulheres
as maneiras mais simples do cultivo da
terra, além de demonstrar a preparação
de alguns dos alimentos plantados, como
feijão, milho, soja e hortaliças. A soja
poderia virar leite vegetal para alimentar
bebês cujas mães tivessem dificuldade de
amamentar. Já as árvores de Moringa e
de Sorgo oferecem nutrientes riquíssimos
para combater a desnutrição: vitamina A
e C, minerais, aminoácidos, cálcio, ferro,

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potássio e proteínas.
Para afastar o fantasma da subnutrição, somente as mulheres
eram convidadas para essa luta. Essa mesma certeza não seria
possível caso fosse ensinada aos homens. Infelizmente, muitos deles
se perdiam em busca da prostituição e de bebidas. Em consequência,
o benefício obtido pela terra nem sequer seria compartilhado com a
família, dificultando até mesmo as necessidades básicas de alimen-
tação do próprio filho. Nesta cultura, as mulheres não têm voz e nem
vez, são submissas a seus maridos. Como líderes e responsáveis
pela vida de suas crianças, as esposas faziam o possível e o impos-
sível para dar aos pequenos o que comer.
O primeiro dia iniciou com uma reunião com Bamos, líder de
projeto e tradutor. Em sua comunidade, estavam 100 mulheres e,
para chegar até elas, caminhamos mais de uma hora e levamos em
torno de 30 minutos para reuni-las. Divididas em dois grupos, seus
aprendizados de cultivo foram praticados em um jardim comunitário
e em uma pequena fazenda, espaço de terra dividido entre elas.
Foi surpreendente encontrar o projeto já em andamento e ver
os pés de milho com dois metros de altura, sem o uso de fertili-
zantes. Para que crescessem assim, utilizavam o sistema orgânico
de plantio, ensinado através deste projeto, tal qual aprendi nos
Estados Unidos. Ao sentar na sombra, percebi que uma delas contou
a quantidade de pés de milho e carreiras de soja, com a ajuda de
Bamos. Foi emocionante escutar que ela calculou a quantidade
exata, afinal, elas não foram alfabetizadas e plantaram os grãos por
meio de tecnologia artesanal, em que a enxada era feita com galho
de árvore e um metal afiado na ponta.
As sombras das árvores faziam o papel de sala de aula. As
mulheres sentavam-se no chão e assistiam às nossas explicações,
com o auxílio de Bamos. A matéria era escrita em cartolinas, poste-
riormente, presas nas paredes de barro (quando se conseguia

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fixá-las).
Os dias alternavam-se em aulas que orientavam a respeito do
plantio dos alimentos, seus nutrientes, colheita e preparação da
comida. Uma das cenas mais comuns era vê-las plantando com
os seus bebês nas costas, suas crianças sentadas ou brincando
na sombra. As mães dedicavam-se com afinco para dar-lhes os
melhores alimentos, por meio do próprio suor e das próprias mãos,
semeando o futuro de seus filhos.
Estipulávamos metas de plantio e, quando as mulheres
conquistavam, as presenteávamos com almoços regados a salada,
carne de soja e nsima. Esse último é feito com farinha de milho e
água, tal como polenta. A diferença está no sal, o nsima não tinha
muito gosto devido à ausência dele, afinal, o sal custa dinheiro,
coisa escassa na comunidade.
Quando os progressos eram significativos, as recompensas eram
diferentes. Em uma das ocasiões elas aprenderam, no mesmo dia, a
cantar uma música, parte em chechewa e parte em inglês. Presentea-
mos a todas com Fanta Laranja e Coca Cola. Em seguida, perguntei
se elas já haviam tomado e responderam que não conheciam. Apenas
sabiam que era um líquido doce. Após tomar o refrigerante, contagia-
das pela alegria, cantaram a música recém aprendida: “We are happy
to be togheter”/ “somos felizes por estarmos juntos”.
A união e a força dessas mulheres refletiam em uma comuni-
dade inteira. Em meio a um sol insuportável e à escassez em suas
vidas, visto que o básico muitas vezes não era suprido, faziam com

We are happy to be togheter

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que momentos como este se tornassem especiais. O caminho para


o trabalho era feito com alegria, em meio a cantos e danças. No
retorno, elas cantavam: “se tivemos forças para ir para o trabalho
cantando, teremos forças para voltar do trabalho cantando”.
A canção das mulheres dava forças para que elas realizassem
seu simples e árduo trabalho diário. Ouvir o seu canto, me fazia
pensar no quanto elas eram agradecidas por mais um dia. Era
perceptível a tranquilidade de suas consciências. Mesmo com tão
pouco, com toda a precariedade da saúde, da educação, do trans-
porte e da alimentação, suas ações estavam voltadas em fazer o
melhor para sua família.
Para estas mulheres não havia outra escolha senão esta. Em
meio às minhas reflexões no trajeto, me recordava da rotina do
trabalho no Brasil. Muitas pessoas comemoram a chegada da sexta-
feira e desgraçam a segunda, tornando os dias da semana e seus
respectivos trabalhos como algo pesaroso, difícil e sofrido.
Em meio à cantoria, concluí que o trabalho, aquilo que dá o pão
de cada dia, não deveria ser uma tortura, mas sim uma atividade
prazerosa. Não há coisa melhor do que deitar a cabeça no traves-
seiro com a consciência tranquila de que está fazendo o melhor
para si e para seus familiares, com o coração repleto de gratidão
por ter saúde, um lar, estudos, boas refeições, um carro e todos os
confortos conquistados até então.

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O mundo de
Francisco
A rotina se estendia com o trabalho
no Clube das Agricultoras de segunda a
sexta. Ao pôr do sol, eu e minhas amigas
voltávamos para casa de bicicleta, para
cozinhar a nossa janta, antes do anoite-
cer. A curiosidade para saber o que o
homem branco fazia levava as crianças
a rodear nossa casa aos finais da tarde,
principalmente quando ia para o lado
de fora acender o fogo. Geralmente,
não tinha eletricidade nesse horário e
éramos obrigados a acender o carvão no
fogareiro. Eu sentia dificuldade em realizar
essa simples tarefa sem a ajuda de álcool
e, por sorte, quem sempre estava lá para
me ajudar era o pequeno Francisco e seus
amigos.
As crianças ficavam em volta muito
sorridentes, comentando em chechewa
as minhas bizarrices. Elas eram mais
habilidosas do que eu para acender o
fogo. Com maestria, faziam a proeza

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apenas com o auxílio de uma única sacola plástica. Outras vezes,


era rodeado pelas crianças quando estava lavando roupas. Enquanto
suas famílias faziam isso no rio, eu fazia em um balde roxo e uma
torneira.
A dificuldade de comunicação era grande, mas eu gostava muito
de interagir com esses pequenos. Cansado da falta de compreensão,
fui até meus aposentos e peguei uma caneta e um papel A4, o colei
na parede, ao lado do balde. Escrevi algumas frases que aprendi em
chechewa e, ao lado, coloquei sua tradução em inglês. “Mwadzuka
bwanji” tornou-se o “bom-dia”; “zikomo” significa “obrigado” e a
tradução de “ndimakukonda” é “eu te amo”. Eles saíram falando
hello, thank you e I love you incansavelmente.
As crianças mais brincavam do que prestavam atenção, mas
gostaram muito da aula. Esse ritual passou a se tornar diário. Todo
final de tarde fazíamos fogo para o jantar e ensinávamos inglês. Em
uma das vezes que fui para a cidade, encontrei um livro traduzido do
chechewa para o inglês, o que facilitou a minha vida de professor.
Com o passar das semanas, percebi que o Chico aprendia muito
mais rápido que seus colegas, provavelmente por ter recebido
uma melhor nutrição desde que nasceu. Ele pedia para escrever
as frases, mas sua letra era tão feia que dificultava ainda mais o
aprendizado dos demais.
Ao ver essas cenas, eu e minhas amigas decidimos transformar
a ideia do papel A4 em uma parede inteira. Decidimos transformar
a parte de trás da casa em uma parede da educação. Para isso,
recrutei os rapazes que jogavam bola comigo aos domingos para me
auxiliar na pintura da parede branca, coisa que eu já havia apren-
dido no hospital no Brasil. A Mai e a Nana desenharam, pois como
sabiam escrever em japonês e em coreano, eram mais habilidosas
para desenhar as letras e o mapa-múndi.
Enquanto pintava o mapa-múndi, o pai de Francisco aproxi-

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mou-se da gente, curioso para saber o que era aquilo. Mostrei onde
era o Brasil, o Japão, a Coreia do Sul e o Malawi. A princípio, ele
imaginava que o Malawi era o continente africano inteiro, pois ele
conhecia apenas o mapa da África. Fiquei chocado e, ao mesmo
tempo motivado, pois aquelas crianças poderiam aprender o quanto
o mundo é grande. Incrédulo, ele se recusou a acreditar nas expli-
cações e no atlas. Por fim, ele deu de ombros, acreditava que estáva-
mos enganando e foi para casa.
Em três dias, a “Parede do Conhecimento” ganhou vida. Final-
mente tínhamos um lugar melhor para dar continuidade às aulas dos
pequenos. Convidamos toda a turma para a inauguração. O Chico
apareceu com sua melhor roupa, vestia um paletó preto, camiseta
e shorts azul, com o cordão para o lado de fora e descalço. Já os
seus amigos apareceram com calçados, algo realmente atípico,
mostrando a importância do evento.
Pedi ao Chico que se posicionasse em frente à parede para tirar
sua foto. Ele convidou seus dois melhores amigos e ainda trouxe o
cachorro. Ele negou quando pedi para que arrumasse o cordão da
bermuda: “cadarço pro lado de fora”, respondeu ele. Também se
recusou a tirar o cachorro da cena. Disse: “cachorro fica”. Após tirar
a foto, pedi para que eles sentassem para repassar o alfabeto para
todas as crianças e assim filmar aquele momento. Chico balançou
a cabeça e disse “eu”. Perguntei: “o que foi agora, Chico?”. Ele
respondeu: “eu serei o professor”. E assim, nesse clima, aconteceu
a inauguração do mural.
Em uma atípica noite com eletricidade em casa, tive o desafio
de preparar pastel para minhas colegas. Naquela mesma tarde,
comprei ovos e farinha na feira para fazer a massa. Já o recheio
seria de vegetais picados. Enquanto abria a massa com o auxílio
de uma garrafa de refrigerante, para minha surpresa, apareceu o
Chico. Estranhei, pois não era costume receber visitas após anoite-

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cer. Ele estava mais tímido que o normal, mas não conseguia conter
o sorriso ao mesmo tempo em que segurava um papel A4 na mão,
diante da porta.
Continuei focado na minha atividade e expliquei para ele o que
estava fazendo. Depois de contar, ele disse: “então, Jhona” - como
costumava me chamar. “Fala Chico”, respondi prontamente. Ele
emendou com muita empolgação: “quero te convidar para o meu
aniversário”. Nesse instante, ele entrou em casa e me estendeu
a folha A4, onde estava escrito: “Convite para o meu aniversário”,
incrementado com uma figura desenhada.
Aquele convite era especial e inimaginável. Era uma formalidade
trazida em uma folha A4, feita com um carinho muito sincero. Instinti-
vamente o abracei e o ergui no colo, deixando o menino todo sujo de
farinha. A bagunça atraiu a atenção da Mai e da Nana, que ficaram
curiosas para se inteirar do que havia acontecido. Após terminar de
contar, percebi que ele não havia convidado as meninas.
Dois dias depois, chegou a data de comemorar o aniversário do
Chico. Seus amigos estavam com as melhores roupas, acompanha-
dos de suas sacolas plásticas com comida preparada por suas mães.
Todas as crianças estavam sentadas em um tecido próximo da casa
dele. Um pouco mais à frente, na varanda, ele estava sentado em uma
cadeira elevada, como se fosse um rei e seu melhor amigo estava ao
lado, em uma cadeira um pouco mais baixa. Todos eles se deliciavam
com uma bacia de salgadinho de milho e conversavam animados.
Fiquei admirado, olhando aquela cena incrível. Em seguida, um a
um se levantou e começou a dançar, numa espécie de demonstração
de habilidades. Me aproximei e sentei no tecido, como todos os
outros. O Chico me viu e acenou, mas continuou sentado em seu
trono, pois aquele era o dia dele. Fiquei por mais alguns minutos e me
retirei, deixando-os à vontade para curtir a festa.

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Aulas de inglês antes e após a pintura do Muro do Conhecimento.

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Recebendo o convite de aniversário do Francisco.

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A fé através
das obras
Os dias se passavam e, ao longo da
semana, eu permanecia trabalhando
no Clube das Agricultoras. Nos finais de
tarde, dava aulas de inglês; aos sábados
e domingos saía para conhecer a região.
Em uma das minhas idas para a cidade
de Blantyre, fui ao hospital consultar. Lá
conheci um casal de brasileiros, Dr. Gerson
e a enfermeira Arnes de Araújo. O hospital
em que eles eram missionários pertence
a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Gentis e
simpáticos, me convidaram para visitá-los
em um final de semana, a fim de conhecer
mais sobre o projeto e a igreja.
Doutor Gerson tem uma história
fantástica, digna de virar livro. Sua missão
iniciou-se logo após o genocídio em
Ruanda, onde atuou como missionário,
em 1994. Atualmente, ele, sua esposa
e sua filha Alice vivem em missão para
colaborar com a saúde e longevidade dos
moradores do Malawi. Foram inúmeros

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os sábados de estudo e aprendizado, pelos quais sou eternamente


grato a eles e a Deus por me conectar com pessoas tão especiais.
Pude conhecer melhor sua religião e o fantástico benefício que
levam ao mundo. Fiquei impressionado ao ver o quanto a igreja fazia
pela comunidade. Em 1902, a Igreja Adventista construiu o primeiro
hospital do Malawi, o “Malamulo Hospital”, onde atendem uma
população de 129 mil pessoas. Muito mais do que semear a palavra
de Deus, eles também realizam ações.

Primeiro hospital do Malawi, construído pela Igreja Adventista.

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Educação, o
futuro de um país
Após agradáveis finais de semana,
tudo retornava à rotina. Quando as bicicle-
tas não estavam quebradas, pedalava
rumo à vila para dar continuidade ao
Clube das Agricultoras. Os filhos ficavam
aconchegados no colo da mãe ou sobre
um tecido embaixo da sombra, chamado
de chechenja, em chechewa. Assim, as
mulheres poderiam trabalhar, pois não
tinham outro lugar para deixar os filhos.
Ao ver essas crianças brincando o tempo
inteiro, comecei a perceber que, se não
intercedêssemos pelos pequenos, em
pouco tempo o mesmo projeto seria
realizado com eles.
Transformar a ideia da pré-escola em um
projeto concretizado exigia a autorização
do Alex, diretor do Clube das Agricultoras.
A Mai, a Nana e eu explicamos para ele a
necessidade de construí-la, a fim de propor-
cionar às crianças um futuro melhor do que
o de seus pais. Prontamente ele entendeu

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e elogiou nossa iniciativa. Aproveitamos a conversa para solicitar


dinheiro para a execução. Apesar de compreender a importância da
educação na vida daquelas crianças, não havia recursos financeiros
para tal. Como ele mesmo afirmou, era impossível tirar a verba do
Clube das Agricultoras, pois o alimento é questão de sobrevivência.
Compreendemos a prioridade e deduzi que a construção da pré-es-
cola ficaria para outro momento ou para futuros voluntários.
Aborrecido, segui meu caminho para casa. Ao passar por um
pequeno comércio do vilarejo, um menino me avistou e correu instin-
tivamente em minha direção. Ele me ofereceu dois exemplares de
um jornal. Na hora eu quis compreender o porquê alguém venderia
jornal em uma aldeia onde poucos sabiam ler e escrever. Vencido
pela insistência do garoto, comprei as duas únicas unidades do jornal
pelo preço equivalente a cinquenta centavos de real e continuei meu
trajeto.
Faltavam poucas horas para o sol se pôr. Aproveitei os últimos
raios para ler e percebi a esperteza do menino. Ele vendeu os
jornais do natal passado, os quais traziam belas mensagens natali-
nas. Dentre elas, estava um texto doado por Paulo Coelho, com o
intuito de compartilhar a sua mensagem e incentivar as vendas do
periódico. Achei inspirador, tirei uma foto e publiquei no Twitter, uma
rede social, com a seguinte mensagem: “orgulho de ser brasileiro e
encontrar uma doação de Paulo Coelho no jornal local de Chikwawa”.
Por sorte, na manhã seguinte, tinha energia elétrica nos
primeiros minutos do dia. Ao conectar a internet, me surpreendi com
a resposta de Paulo Coelho na rede social: “@jonaskzk Orgulho de
ser brasileiro e encontrar pessoas como você, fazendo um trabalho
tão importante”. Contagiado pela alegria de ler essa mensagem, me
dei conta de que consegui atingir Paulo Coelho. Então seria possível
arrecadar doações no Brasil através da internet. Conversei com a
Mai e a Nana e cada um de nós se comprometeu em pedir doações

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para seus amigos no Brasil, Japão e Coreia do Sul.

@jonaskzk orgulho de ser brasileiro e


encontrar pessoas como você, fazendo
um trabalho tão importante

Ao pedir as doações para minha família e meus amigos, explicava


a real situação do local. O ensino era precário e não recebia atenção
alguma do governo. Era compreensível essa posição, visto que os
moradores daquele país não possuíam nem sequer o essencial da
saúde e da alimentação, deixando, assim, a educação de lado.
Encontramos uma escolinha antiga, construída há 20 anos, e
verificamos sua situação. Era doloroso perceber que as crianças não
recebiam suporte algum. Além da sujeira do ambiente, em muitos
casos, elas precisavam imaginar as letras, pois não havia alfabeto
nem quadro-negro. As armações de madeira eram tomadas pelos
cupins, assim como todas as outras madeiras que poderiam existir
no local. O momento mais esperado por elas era o recreio, quando
recebiam um mingau amarelo e sem gosto. Caso não recebessem
o lanche, possivelmente não teriam forças para retornar ao seu lar.
A pré-escola existente só foi construída graças à mobilização de
alguns integrantes da tribo. Cada uma das vilas possui um “pajé”,
nascido da mesma família, cujo título é repassado de pai para filho.
Esse senhor era encarregado por tomar todas as decisões para a
aldeia, junto a outros homens mais velhos, considerados homens
pensantes. Dessa forma, era necessária a autorização deles para
realizar qualquer atividade no povoado. Eles eram responsáveis por
autorizar a instalação ou reforma de uma pré-escola na comunidade.

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Foram duas semanas de negociação. As reuniões aconteciam


em até três níveis hierárquicos. Inicialmente conversávamos com o
chefe da aldeia; a segunda reunião era com os homens pensantes e,
somente na terceira visita, apresentávamos a proposta às mulheres.
Assim como eles, nós também exigíamos algumas condições. Além
de ajudá-los, era necessário mobilizá-los para que ajudassem nas
reformas. Caso isso não acontecesse, eles poderiam desvalorizar,
depredar e roubar o patrimônio. O comprometimento da aldeia era
extremamente importante nesse processo. Se, pelo contrário, não
houvesse acordo de ambas as partes, não havia nada a fazer se não
partir para outra tribo.
Para nossa felicidade, o acordo com o chefe foi firmado. Foi dada
a palavra de que colaborariam com a mão de obra. Por meio das
arrecadações feitas pela internet, o nosso dever era providenciar o
cimento, pregos, telhas, pintura e demais detalhes.
Era impossível encontrar um saco de cal em Chikwawa. Eles até
possuíam alguns materiais de construção, mas era necessário pegar
uma van para Nshalo, a fim de encontrar cimento e o restante que
faltava. Os materiais eram carregados na cabeça ou nas bicicletas,
em um longo trajeto, sempre com a colaboração da comunidade.
Começar a reforma foi emocionante. Receber o apoio da comuni-
dade e ver a alegria deles dava ainda mais energia para realizar esse
trabalho. Enquanto abriam os primeiros sacos de cimento, as crianças
estudavam embaixo da sombra de uma árvore. Por mais que tivessem
cedido o espaço sob nossos cuidados, nem sequer cogitaram a possi-
bilidade de cancelar a aula. Essa atitude se tornou inesquecível para
mim.
Com a ajuda de Golden, líder do projeto, conseguíamos nos comuni-
car com as pessoas da comunidade. Ele intermediou a conversa com
o primeiro voluntário a chegar, pai de uma das alunas. Ele contou que
abriu mão de ir ao trabalho naquele dia para colaborar com a reforma,

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para fazer o melhor pela sua filha e pelo futuro dela. O agradecimento
dele tocou meu coração. Ouvir as simples palavras me deixou feliz e
convicto de que estava fazendo a coisa certa.
Apesar dos reparos não acontecerem na velocidade em que
gostaríamos, a cada dia mais e mais pessoas vinham cooperar. As
reformas aconteciam no final da tarde e aos finais de semana, após
o expediente do trabalho de todos. Através da união de forças, refor-
mamos a primeira pré-escola.
Os professores eram essenciais para que a escolinha funcio-
nasse. Com essa preocupação, a japonesa Mai confeccionou
materiais didáticos e convidou os pais dos alunos para tornarem-se
educadores voluntários.

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Reforma da primeira pré-escola.

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A notícia se
espalhou
A notícia se espalhou e recebi o
convite para ir com meus colegas em uma
comunidade em que a pré-escola não teve
sua construção concluída. Inclusive, quem
estava responsável por esse serviço era
o casal de brasileiras que encontrei nos
Estados Unidos, no dia em que cheguei à
ONG. Elas pediram para que concluísse-
mos o trabalho e assim decidimos fazer.
Como toda a exigência de uma aldeia,
foi realizado o acordo com o pajé. Combi-
namos de iniciar as atividades após
concluir a reforma de outras três pré-esco-
las, que já haviam sido negociadas com as
outras comunidades. Ao final da conversa,
olhei para frente e vi uma casa com uma
quantia considerável de amendoim, ainda
com casca, exposto ao sol para secar.
Apaixonado por amendoim in natura, me
dirigi até lá para experimentar um.
Fui avistado pela dona da casa. A
senhora veio em minha direção com um

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lindo sorriso no rosto. Encheu suas mãos com a máxima quantidade


de amendoins que pode pegar e estendeu em minha direção. Eu
não tinha sacola alguma para guardar esse agrado, somente uma
mochila com minhas roupas. Apesar desse empecilho, era impossível
recusar uma gentileza dessa. Abri o bolso lateral e ali ela depositou
o amendoim, com toda terra que estava junto, assim como com todo
o sabor do plantio e da colheita realizados por ela. Não há palavras
de gratidão suficiente para descrever a beleza desse gesto. Assim
como todas as outras famílias das comunidades, seus trabalhos são
realizados exclusivamente para que não passem fome. Compartilhar
do seu alimento com o próximo, acompanhado de um largo sorriso
e sem pedir nada em troca, reforçou a imagem que eu já tinha da
generosidade do povo malawiano.
No caminho para chegar à sede da ONG, caiu a ficha de que,
naquele dia, a Lia, minha irmã do meio, celebraria seu casamento no
religioso, junto com o batizado do meu sobrinho Augusto. Senti meu
coração apertar. Não há outra coisa no mundo que eu ame mais do
que minha família. Com todos os meses em que já estava distante
de casa, senti meu coração ficar pequeno.
O sábado seguiu com muitos estudos e relatórios na sede da
instituição. Acompanhados por voluntários do mundo inteiro que
participavam do projeto, discutíamos as dificuldades. A diferença
cultural enriquecia a troca e, ao compartilhar experiências, formulá-
vamos as melhores soluções possíveis para dar continuidade ao
trabalho. Ao encerrar as discussões,
fizemos uma vaquinha para comprar
senti meu carne. Nem me recordo quanto tempo
estava sem essa regalia. Tive a mesma
coração felicidade ao tomar banho, pois tinha
apertar água encanada e quente para mais
esse momento de luxo. Parecia que eu

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estava sonhando.
Devido à diferença de fuso horário, o Malawi está adiantado cinco
horas em relação ao Brasil. A empolgação estava grande naquele
domingo, afinal, era o Dia das Mães. A japonesa Mai foi a primeira
a falar, pois o Japão tem cinco horas a mais. Eu e a Nana não
conseguíamos conter a ansiedade.
Recebi pelo celular uma foto da minha mãe, junto das minhas
irmãs e de um grande amigo. Paulo Junior foi na minha casa dar
um abraço nelas por mim. Foi impossível conter as lágrimas diante
daquela foto carinhosa com as mulheres da minha vida. Conversei
com elas por telefone. As três são mães maravilhosas e a saudade
tomou conta.
Este foi um final de semana marcante. Não gostaria que tivesse
acabado tão rápido. Os dias se passaram e realizou-se a reforma de
duas pré-escolas. Em seguida, surgiu a necessidade da construção
de uma nova pré-escola em uma outra aldeia. Eles procuraram minha
equipe e solicitaram nossa ajuda. Ninguém tinha o conhecimento
para iniciar uma construção do início ao fim. Apesar disso, como
não aceitar o desafio? Foi firmada a parceria com os moradores, os
quais disponibilizaram dois homens que detinham o conhecimento.
Visualizar um pedaço de terra com capins a um metro e meio de
altura e imaginar que ali surgiria uma pré-escola era desafiador.
Compramos cimento, pregos, portas e telhado. Assim como nas
comunidades anteriores, as mulheres se encarregaram dos tijolos
de barro e os homens das madeiras de alicerce. Ao final, pedimos
para que eles desenhassem nas paredes o que acreditavam ser
mais importante para a educação de seus filhos. Eles rabiscaram a
figura de uma criança e seu coração. Ao lado, apontaram as palavras
boné, olho, nariz, boca, braço, perna e, lógico, coração.

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Inauguração de outra pré-escola.

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SURPRESAS
ACONTECEM
A notícia da construção se espalhou
rápido. A novidade estava presente nas
conversas das vans, das tendas do comér-
cio e durante o plantio das agricultoras.
Mais convites para novas construções
surgiram e as aldeias nos procuravam.
Neste ritmo, ao total, reformamos quatro
pré-escolas e construímos outras três.
Para a inauguração da sétima escola,
convidei o diretor do Clube das Agricul-
toras, para mostrar-lhe o trabalho desen-
volvido aos finais de semana.
No dia da inauguração, acordei cedo e
pedalei até a aldeia. Ao chegar, estranhei
o professor já ter começado a aula, pois
sempre se realizava uma oração antes. Tal
celebração realizada nas aldeias anteriores
era muito bonita, sempre acompanhada
de uma dança ao redor da escola. Senti
que o olhar do professor era um pouco
distante, acenei com a mão, mas não
obtive resposta.

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Reparei que ele não utilizou o novo quadro-negro, comprado e


pendurado na parede com tanto carinho. Algo estava errado, mas
não conseguia distinguir o que poderia ser. Me dirigi ao líder da
comunidade, entretanto, ele estava organizando as mulheres da
aldeia. Perguntei a ele o que houve e se já haviam realizado a
inauguração. Por estar visivelmente ocupado, não me deu a menor
bola. Me retirei e fui para o lado, próximo da bicicleta, para aguardar
a chegada do diretor, da Mai e da Nana.
Neste instante fiquei perdido com meus pensamentos, me
perguntando se a comunidade havia me usado. Será que agora que
tinham a pré-escola construída, eles iriam me tratar com desdém,
sem nem ao menos me esperar para a inauguração? Me senti muito
desapontado por não usarem o quadro negro e, ainda mais, por
não corresponder reciprocamente ao aceno e à atenção. Afinal de
contas, aquele dia tinha tudo para ser memorável.
Os minutos de espera foram longos, acompanhados de insegu-
rança e angústia. Finalmente minhas amigas chegaram, junto com
o diretor e mais quatro integrantes da ONG. Alex estava sorridente,
apresentei para ele o líder da aldeia, que o recepcionou com muita
simpatia. Me dirigi até a porta de entrada e convidei o professor para
conhecer o diretor. Quando reparei na dificuldade dele em relação
aos três degraus daquele chão batido, compreendi que ele era cego.
Por esse motivo ele não usou o quadro-negro, nem acenou para mim.
Criar consciência disso foi um choque, pois eu havia me precipitado
em todas as minhas conclusões. Só depois me contaram que ele ficou
cego devido a uma séria desnutrição e falta de vitamina A, encontrada
na cenoura. Essa deficiência fez com que o seu olho secasse e uma
bactéria oportunista acabou com a sua visão.

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Inauguração de uma pré-escola.


Senhor Tambala, o professor cego.
Crianças lanchando Nsima.

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Inauguração da
ú lt i m a p r é - e s c o l a
Em seguida, iniciaram-se as festividades.
Fomos surpreendidos por uma dança organi-
zada pelo líder e pelas mulheres em sinal de
agradecimento. Percebi então ter sido esse
o motivo que o deixara tão ocupado e o
porquê de não ter me dado atenção. Estava
concentrado em fazer uma surpresa e não
queria que fosse vista antes da hora.
Tambala, o professor cego, deu uma
demonstração da sua aula após a dança
das mulheres. O respeito daquelas
crianças com ele era admirável. Todos
respondiam prontamente às suas pergun-
tas feitas em chechewa. Tambala compar-
tilha a importância da educação na vida
do ser humano. A educação mudou a vida
dele e, mesmo sem a visão, ele estava
realizando o seu sonho de ser professor.
Aquela era a sua vez de dinamizar a vida
de todas as crianças daquela comunidade.
O almoço daquele dia teve alguns ingre-
dientes patrocinados. Conforme a tradição,

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as mulheres cozinharam e eu fiz questão de servir o nsima para


todos. Ao terminar de servir aquela farinha misturada com água, uma
das crianças me perguntou se eu também iria almoçar com todos.
Eu já havia comido rato, grilo e outras coisas estranhas, bem como
nsima várias vezes. Respondi que, com certeza, iria comer. Servi duas
porções para mim e comi com a mão, assim como todos ao meu
redor.
Minutos depois de terminar a refeição, senti que algo não caiu
bem. Comecei a suar e minha barriga começou a doer. Tinha a
sensação de que a comida subiria ou desceria a qualquer momento.
Ficou impossível me conter. Perguntei ao líder onde ficava o banheiro.
Ele não escutou direito, cheguei mais perto para perguntar com
discrição. Perguntei novamente onde era o banheiro, com a voz um
pouco mais alta. Ele esticou o braço, apontando a direção de uma
moita. Caminhei até lá e percebi que era essa a maneira pela qual a
comunidade fazia suas necessidades.
Enquanto estava atrás do arbusto, me recordei da visão da latrina
que tive quando estava no aeroporto de Foz do Iguaçu. Inicialmente
interpretei que estava fazendo merda da minha vida, mas naquela
situação que eu estava vivenciando, compreendi que era algo que eu
poderia fazer por aquela comunidade. Deixei minha meia para trás e
voltei para me despedir de todos. Precisava voltar para me reabilitar
em casa.
Passaram-se alguns dias e a ideia de construir as latrinas perma-
neceu. Verifiquei se ainda restava algum dinheiro das doações, mas
não tinha mais nada. Não havia mais tempo de realizar uma nova
campanha de arrecadações de verba. Infelizmente, o tempo de
trabalho voluntário no Malawi estava se encerrando.
Decidi construir a latrina com as próprias mãos. Peguei algumas
ferramentas emprestadas e comecei a cavoucar o buraco. Concen-
trado nesse afazer, por um segundo de descuido, perfurei meu pé

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com um prego escondido em uma madeira. Instintivamente tirei


meu pé, sentei para verificar o tamanho do estrago e constatei que
poderia fazer somente um curativo. A Mai me recomendou ir para
o hospital, mas lembrei que lá haviam pessoas que necessitavam
muito mais do que eu.
Lavei meu pé preocupado com a possibilidade de contrair tétano.
Com o auxílio de um canivete, comecei a alargar o estrago que o
prego havia feito. Assim, pude higienizar o ferimento com água e
sabão. Voltei ao trabalho com a ajuda da Mai. Depois de alguns dias,
a primeira latrina estava pronta. Ela era composta por um buraco no
chão, base de madeira, paredes de barro e teto de palha. Extrema-
mente simples, porém, era um espaço reservado para fazer as
necessidades em paz. Com o intuito de melhorar o sistema sanitário
local, mobilizamos as mulheres para que elas fizessem o mesmo e
as incentivamos a construírem suas próprias latrinas.

Servindo Nsima após a inauguração da última pré-escola.


Em frente a uma latrina.

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Viver
eternamente
A sensação de que viveria eternamente
naquela comunidade foi interrompida
quando chegou o dia de partir. Não existiram
despedidas. Aconteceu tão rápido quanto o
tempo de apertar o interruptor e a lâmpada
acender. De um momento para outro, Alex
avisou que, na manhã seguinte, retornaría-
mos para a sede da ONG em Blantyre e
permaneceríamos por lá até o voo.
Encontrei o Francisco de saída com sua
família. Eles iriam visitar seus parentes em
outro povoado. Na despedida, a sensação
de que estava deixando toda minha
história no Malawi para trás apertou meu
coração. A alegria compartilhada com ele
e seus amigos na convivência diária me
dava forças para encarar os meus dias no
terceiro país mais pobre do mundo.
Encontrei voluntários de todos os
lugares no mundo em Blantyre. Todos
aqueles que estavam espalhados pelo
Malawi retornariam para as sedes iniciais

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das suas ONGs. Passamos a noite conversando sobre os projetos e


as aventuras vividas nessa experiência, até o sol nascer. De manhã,
o motorista chegou para levar todos de ônibus até a capital Lilon-
gwe, onde eu, Mai e Nana pegaríamos o avião com destino aos EUA.
Ao caminho do aeroporto, relembrei as aventuras e os momen-
tos mais marcantes. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas
não queria demonstrar minha fraqueza para ninguém. Na hora de
decolar, na medida em que o avião levantava voo, mais forte era
minha compreensão de que uma parte de mim entrara naquela
terra arenosa, junto às grandes florestas e seus animais selvagens,
misturados com um povo paupérrimo, mas extremamente sorridente.

a alegria compartilhada com ele e seus


amigos na convivência diária me dava
forças para encarar os meus dias no
terceiro país mais pobre do mundo

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Alegria compartilhada.

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Julgamos uns
aos outros
Ao desembarcar nos Estados Unidos,
identifiquei as regalias de uma potência
mundial. Nos primeiros passos, eram
perceptíveis os privilégios de um ambiente
climatizado, escada rolante e um forte
esquema de segurança. Caminhei em
direção ao departamento de imigração
para dar entrada no país, agora seguro do
meu inglês.
Mai e Nana estavam a minha frente
e deram entrada no país. Entretanto, o
agente me convidou para entrar em uma
sala reservada e seguir um caminho dife-
rente. Dentro do recinto, haviam inúmeras
cadeiras e somente um homem barbudo
sentado, vestindo uma túnica branca, traje
tipicamente utilizado no Oriente Médio.
Na mochila, eu carregava apenas
lembranças do Malawi, como pequenos
pedaços de madeira e tecidos. As únicas
roupas que eu tinha estavam no meu
corpo. Minha pele estava queimada do

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sol, os lábios rachados, a barba por fazer há meses e o cabelo


sem cortar desde a última vez em que estive em solo norte-ameri-
cano, me diferenciavam no meio da multidão. Esse desleixo chamou
atenção dos agentes a ponto de reterem meu passaporte.
Os minutos se passaram e minha aflição aumentou, pois o avião
rumo à Chicago partiria em uma hora. Na sequência, minha mochila
foi vistoriada pelo agente. Sem encontrar roupas dentro dela, fui
bombardeado de perguntas. Sua conclusão foi lançada com apenas
uma frase: “você não tem condições de entrar neste país”.
Seu pré-julgamento foi realizado pela minha vestimenta e aparên-
cia, pois eu já havia entrado nos Estados Unidos outras vezes.
Jamais havia sido tratado com tamanha severidade. Ele pediu para
que sacasse minha carteira e lhe entregasse. Revistou-a minuciosa-
mente, me devolveu e pediu para que sentasse. Aguardei por mais
três horas e, neste meio tempo, ninguém mais entrou pela porta.
O senhor de barba e túnica foi levado
para outro lugar.
A certeza e o desespero de que
eu seria deportado começou a trans- você não tem
parecer em meu rosto. Imaginei que condições de
não conseguiria concluir a etapa final entrar neste
do voluntariado. Levantei, atravessei
país
a sala e me dirigi ao agente. Fiquei
parado ao lado de seu púlpito, aguar-
dando sua atenção.
Quando ele virou para mim, finalmente identifiquei seu sobrenome
no crachá, Kim, o mesmo da Nana. Aproveitei a coincidência e, em
desespero, lancei a pergunta: “o senhor é descendente de sul-core-
anos?”. Sem demonstrar interesse, deu de ombros e respondeu:
“não te interessa”. Emendei outra pergunta, com os olhos cheios
de lágrimas, contaminado pelo medo da deportação: “o que você

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acharia se seus pais fossem deportados quando tentaram entrar


nesse país? Você não seria agente federal americano hoje”. Ele me
lançou um olhar fulminante, me mandou calar a boca e sentar.
Com a certeza de que seria banido dos EUA, a tristeza tomou
conta de mim. A esta altura, já tinha perdido a conexão para Chicago.
Antes mesmo de conseguir pensar em outra solução, o agente retor-
nou à sala, me chamou e carimbou meu passaporte. Ao entregar,
disse: “some daqui, antes que eu me arrependa”.
Consegui uma conexão para Chicago e, ao chegar lá, para minha
felicidade, encontrei a Mai e a Nana no aeroporto, tentando reaver
suas malas. Chegamos à ONG e soube que não precisaria mais
dividir o quarto, afinal, agora eu iria auxiliar no treinamento dos
futuros voluntários.

Nana, eu e Mai de volta nos Estados Unidos.

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Fundo da Justiça

Me acostumar com três refeições ao


dia, eletricidade e máquina de lavar foi
fácil. Apesar disso, as novas atividades
continuavam a me desafiar. Desta vez,
estava encarregado de dar treinamento,
divulgar a ONG para encontrar futuros
voluntários e colaborar para o progresso
do instituto.
Em uma das reuniões, fui apresentado
a Edward Pinkney, um ativista social, o
qual convidou todos os membros da ONG
para o jantar de gala de arrecadação de
fundos. Ele defendia a democratização
da cidade de Benton Harbor, onde já não
havia mais prefeito há cinco anos. Tomada
pela centralização do poder, ele lutava para
que o abastecimento de água não fosse
privatizado, assim como aconteceu com o
presídio, bem como o cemitério não fosse
remanejado para dar espaço à construção
de um shopping.
O jantar contou com a presença de

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Danny Glover, embaixador da UNICEF e famoso ator dos filmes Máquina


Mortífera e A Cor Púrpura. Participava também Jill Stein, candidata à
presidência dos Estados Unidos pelo Partido Verde, pleito em que
enfrentava Barack Obama. Os discursos da noite foram calorosos,
abordaram temas sobre a democracia e o empoderamento da socie-
dade.
Para a surpresa de todos, ambos estariam presentes no café da
manhã do dia seguinte, para o qual os voluntários da ONG também
foram convidados. Como um presente que caiu do céu, em seis de
outubro, no meu aniversário, participei deste brunch. Edward organizou
a todos de maneira que jovens sentassem próximos a Jill e Danny
Glover.
Não compreendi o motivo, afinal, éramos os menos capacitados
a discutir o papel da democracia americana com uma possível presi-
dente ou um astro de Hollywood. Então, ele nos explicou que os jovens
devem ser inspirados pelos mais experientes. Sentar ao lado daqueles
exemplos era a oportunidade que ele poderia nos dar, capaz de nos
inspirar a lutar por estas causas.
Ao falar para Danny Glover que sou brasileiro, ele disse algumas
palavras em português e me contou que sua esposa é brasileira. Ele
enfatizou que estava lá voluntariamente, apoiando a luta do Fundo
da Justiça para a democratização de Benton Harbor, fazendo seu
papel de ativista social.
Com saudade de comer carne, pedi ovos, linguiça e bacon.
Sentada a minha frente, Jill Stein pegou em sua bolsa uma marmita
com lentilhas e afirmou que é vegana. Constrangido, percebi o
tamanho da indelicadeza no pedido da minha comida.
Dentre todos os ensinamentos aprendidos com ela, por mais de
duas horas de conversa, ficou clara a sua mensagem de que devemos
compartilhar nossos bons exemplos. Jill afirmou que não importa a
proporção da causa ou o tamanho do resultado, nós devemos inspirar
o próximo a lutar e fazer a diferença por um mundo melhor.

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Protesto em apoio a democratização de Benton Harbor.


Com Jill Stein, Presidente Nacional do Partido Verde Americano e concorreu a
presidência dos Estados Unidos.
Com Danny Glover, ativista social e astro de Hollywood.

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A tempestade

Alguns meses após, o final da jornada


se iniciou com a despedida da Mai, quando
eu e mais outros colegas a levamos até o
aeroporto de Chicago. Seu voo era dois
dias antes do meu e este seria mais um
até breve. Em meio a um rigoroso inverno,
as delongas no aeroporto deixaram a
noite adentrar.
Dirigi rumo a Michigan. No retorno, a
tempestade de neve se iniciou, dificultando
a visibilidade. O caminho com destino ao
interior da pequena cidade onde se locali-
zava a ONG estava cercado de plantações
já colhidas. Assim, abriu espaço para que
a intensa tempestade atingisse o carro. A
estrada larga e de acostamento vasto deu
lugar a uma única passagem, cercada de
neve por todos os cantos.
Reduzi a velocidade, permaneci na
estrada e preguei o olho no asfalto,
tentando identificar o trajeto. Reconheci
o caminho e percebi que estava há 10

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quilômetros da ONG. A escuridão do asfalto começava a desapare-


cer, dando lugar à esbranquiçada neve. Os freios já não funcionavam
muito bem, os pneus deslizavam a qualquer movimento brusco, até
que, de repente, a tempestade se intensificou e o nível de neve
travou as rodas do carro.
Tentei dar ré, mas não havia possibilidade de movimentação
alguma com o carro atolado. Com o veículo parado, tentei abrir a
porta, mas o vento fazia força contrária, nos prendendo dentro dele.
O frio do inverno de Michigan remetia à morte, era assustador. Para
nossa sorte, o carro e o ar quente ainda estavam funcionando.
Liguei do celular para o professor da ONG, com o objetivo de conse-
guir socorro. Ele disse que nada poderia fazer, pois também estava
ilhado e falou para que aguentássemos firme e completou afirmando
que, em qualquer suspeita de perda maior, deveríamos ligar para o
911.
Ficamos preocupados, mas um pouco tranquilos por estar em
um local quente. Em poucos minutos, o celular tocou. Verifiquei que
era o professor e nos informou que deveríamos desligar o motor do
carro, pois como o nível da neve estava aumentando, poderia entupir
o cano de escape e a fumaça emitida não teria por onde sair, de
modo que o Dióxido de Carbono poderia nos sufocar.
Sem outra alternativa, desliguei o motor do carro e todos se
encolheram no banco de trás, o mais próximo possível um do outro.
Passaram-se longos minutos, o frio era insuportável, até que o
silêncio do ambiente foi quebrado por fortes batidas no vidro. Pulei
para o banco da frente e abri o
vidro. Então um senhor pergun-
tou: “vocês precisam de ajuda?”. vocês precisam
Sem titubear, entramos em seu
caminhão, cujos faróis estavam
de ajuda?
cobertos pela altura da neve. Ele

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dirigiu no meio das plantações, pois não era mais possível identificar
onde estava a estrada. Ele nos levou até a ONG, onde pude desfrutar
do banho quente mais gratificante da minha vida.

Tomando chimarrão no inverno de Michigan.

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You = me

Uma das funções era divulgar o trabalho


da ONG e a realizei por meio de um blog.
A mensagem da importância do trabalho
voluntário e minha jornada foram trans-
formadas em uma matéria, escrita pela
jornalista Daiane Staub. Publicada em um
jornal da minha cidade natal, a reportagem
atingiu membros da JCI (Junior Chamber
International) e eles estenderam o convite
para que eu participasse do Prêmio TOYP
(Ten Outstanding Young Persons of the
World). Ganhei esse prêmio em nível
nacional e fiquei entre os 20 finalistas do
TOYP mundial, prêmio que já homenageou
celebridades como Elvis Presley, Jackie
Chan e o presidente dos Estados Unidos,
John F. Kennedy.
Hoje, só tenho a agradecer a Deus pelas
pessoas e pelos desafios que ele colocou
em meu caminho. Tatuei nas minhas costas
“You = Me” para sempre lembrar que nós
todos somos iguais. Você é igual a mim.

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Não espere ser Martin Luther King para dar o teu melhor discurso,
“I have a dream”. Não espere ser preso como Nelson Mandela para
lutar pela igualdade entre os povos. Não espere ser eleito o papa
para compartilhar o amor. Não espere ter a sabedoria de Mahatma
Gandhi para compartilhar a paz. O teu amor é sentido e a tua paz é
vivida. Construa a história que desejas viver, pois agora é a tua vez!

Família reunida no prêmio TOYP.

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Rio Shire em Chikwawa, Malawi.

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