Você está na página 1de 23

HERMENÊUTICA JURÍDICA

Unidade 3: Hermenêutica Jurídica Clássica

SUMÁRIO: EXPOSIÇÃO SINTÉTICA DA UNIDADE (67) TEMA: HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA (67) 1. CONCEITO DE HERMENÊUTICA JURÍDICA (67) 2. OBJETOS DA
HERMENÊUTICA E DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICAS (69) 3. FUNDAMENTOS DA INTERPRETAÇÃO (73) 4. ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO E SISTEMAS INTERPRETATIVOS (74) 5.
APLICAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO (79) 6. APLICAÇÃO DA HERMENÊUTICA NA TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO (82) 6.1. O PROBLEMA DA UNIDADE (83) 6.2.
O PROBLEMA DA ANTINOMIAS (84) 6.3. O PROBLEMA DA COMPLETUDE (85) 6.4. O PROBLEMA DA RELAÇÃO COM OUTROS (87) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (88)

Exposição Sintética da Unidade


A

O
Olá! Começaremos agora a nossa terceira unidade da disciplina de Hermenêutica
Jurídica. Nesta unidade, abordaremos o conceito de hermenêutica jurídica, bem
como o seu objeto e o objeto da interpretação jurídica, distinguindo as concepções
normativista e egológica, subjetivista e objetivista.

Em seguida, trataremos dos fundamentos da interpretação, abordando os seus aspectos


ontológico, axiológico, gnosiológico e lógico. Depois passaremos ao estudo da classificação das
espécies de interpretação e os sistemas interpretativos, considerando as suas fontes (autêntica e
doutrinária), os recursos utilizados (gramatical, histórica, lógica e sistemática) e ainda quanto aos
seus efeitos (declarativa, restritiva e extensiva).
Por fim, trataremos da aplicação e integração do Direito através da atividade interpretativa,
destacando as correntes tradicionalistas, baseadas no normativismo, em confronto com as correntes
contemporâneas, inspiradas no sociologismo. A principal função da interpretação jurídica é a de
fazer a integração entre as diversas normas, realizando a chamada interpretação integradora, que é a
garantia da plenitude do ordenamento jurídico.
Desse modo, para que você compreenda melhor como ocorrerá o nosso estudo, faz-se
importante conhecer o objetivo desta unidade. Acompanhe:

Objetivo

Definir a Hermenêutica Jurídica como método científico, identificando suas


técnicas e procedimentos.

TEMA: HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA


1 Conceito de Hermenêutica Jurídica
Em uma expressão abreviada, a hermenêutica é a teoria da interpretação. No caso do Direito,
a hermenêutica jurídica é a teoria da interpretação das normas, condutas e práticas jurídicas.
Todos os objetos que compõem a ciência do Direito devem, necessariamente, ser interpretados, da

67
Hermenêutica Jurídica

mesma forma que as normas e os conteúdos jurídicos não têm sentido e não alcançam seu objetivo se
permanecerem apenas como documentos escritos, pois o essencial do Direito é a aplicação prática. Toda
aplicação prática de uma norma jurídica implica, obrigatoriamente em uma interpretação, pois o Direito
existe para ser interpretado e é impossível por em prática um comando jurídico sem sua interpretação.

Dada essa inevitabilidade da interpretação, enquanto componente essencial da prática jurídica, a atividade
interpretativa precisa ser regrada, organizada, estabelecida em certos limites, planejada, articulada, discutida,
coordenada, avaliada, referenciada, e essa é a tarefa da hermenêutica jurídica. Ao longo da história, diversas foram
as expressões teóricas da hermenêutica, evoluindo conforme a compreensão do próprio conceito de ciência e das
suas diversas metodologias. Em parte, essa evolução foi apresentada na unidade anterior, a respeito da hermenêutica
antiga. E a evolução das teorias contemporâneas da hermenêutica será estudada na próxima unidade. Isso vem
demonstrar que não existe um conceito de hermenêutica jurídica predeterminado e permanente.

Em cada época, de acordo com as variadas concepções científicas e metodológicas, vão se


construindo também novos conceitos da hermenêutica, sendo este, portanto, um conceito
dinâmico e evolutivo. Por essa razão, evitaremos as definições clássicas dos renomados
mestres do passado, o que não significa deixar de reconhecer o esforço e a contribuição
destes, mas pelo fato de não serem necessárias a memorização e a simples repetição do que
outros já disseram, por mais insignes que eles tenham sido. Quando isso for pertinente,
faremos as devidas menções com os respectivos comentários, porque assim é que se deve
proceder de acordo com a mentalidade científica.

Numa compreensão genérica do termo, podemos afirmar que a hermenêutica é o momento teórico
que antecede a atividade prática, e isso ocorre não apenas no Direito, mas em todas as áreas do trabalho
humano, seja ele muscular ou intelectual, desde que a humanidade passou a se orientar pelo modo científico
de agir no mundo, superando as ações arcaicas realizadas na base do improviso e da necessidade. Toda
atividade prática humana necessita de um momento prévio de reflexão, planejamento, organização, sem o
qual a prática ficará desorientada e muitas vezes infrutífera, com grande desperdício de materiais e energias.
Exemplo
Como exemplo, podemos citar o caso dos professores que se reúnem
previamente para planejarem suas atividades de ensino; os agentes de
vendas se reúnem previamente para discutirem e combinarem estratégias de
abordagem; os jogadores profissionais se reúnem em concentrações com seus
técnicos para traçarem o planejamento do próximo jogo, enfim, se cogitarmos
qualquer atividade humana que pretenda ser bem conduzida, esta deve ser
precedida por um momento teórico onde as metodologias serão discutidas,
avaliadas e planejadas, sob pena de não se alcançarem os objetivos desejados.

68
Hermenêutica Jurídica

Quando se fala em “momento teórico”, não significa dizer que iremos simplesmente conhecer
uma variedade de teorias e conceitos já elaborados por outros, isso ocorre apenas em parte. O fundamental
desse que chamamos “‘momento teórico” é o exercício de mentalização dos procedimentos que serão,
posteriormente, adotados no decorrer da atividade prática. Tal como ocorre nos exemplos referidos acima
dos vendedores, dos jogadores, o planejamento estratégico das ações é indispensável para se alcançar
as metas e os objetivos. Entendida dessa forma, a hermenêutica, enquanto momento teórico prévio da
atividade prática, faz parte do dia a dia de todos os profissionais e não pode ser desconhecida e descartada
pelos operadores do Direito. Na atividade profissional eficiente, qualquer que seja, o improviso é uma opção
descartada pelo seu alto risco de insucesso e elevado custo material e pessoal. O bom êxito profissional está
diretamente ligado ao bom planejamento das ações, e é para isso que estudamos a hermenêutica.

2 Objetos da Hermenêutica e da Interpretação Jurídicas


O objeto da hermenêutica jurídica é a interpretação do Direito. Já explicamos anteriormente a
diferença entre hermenêutica e interpretação. Por sua vez, o objeto da interpretação jurídica é o texto
legal e a norma jurídica, enquanto portadores de significados ou sentidos cuja compreensão se busca
através de procedimentos específicos, que compõem os métodos e sistemas interpretativos. Quando
se fala em texto legal e norma jurídica, esses conceitos devem ser entendidos dentro de uma acepção
bastante ampla, que não se restringe ao conceito restrito de lei, pois na verdade todos os objetos do
Direito são passíveis de interpretação. Essa concepção do direito é a teoria clássica da hermenêutica,
também chamada de concepção normativa.

Assim, a interpretação alcança, além das leis propriamente ditas, os diversos decretos e
regulamentos, os costumes e negócios jurídicos, os tratados e convenções, os acordos e manifestações
de vontade, os atos administrativos e jurisdicionais, os fatos sociais que são relevantes para o direito, a
conduta humana em geral, individual ou coletiva.
Os textos, aqui entendidas como as expressões linguísticas orais ou escritas, são interpretados
tendo em vista os fatos a eles relacionados. Por sua vez, os fatos são interpretados em relação às normas
pertinentes; fatos e normas são interpretados tendo em vista o contexto social em que se concretizam.
Isso significa que os fatos recebem uma valoração na sua relação com a norma, em atendimento aos fins
sociais desta e às exigências do bem comum (art. 5º, LICC). Constitui-se assim a célebre fórmula jurídica
da tridimensionalidade do Direito, criada por Miguel Reale, ou seja, o Direito é fato, norma e valor.

Contudo, no século passado, desenvolveu-se uma nova concepção do objeto da interpretação


jurídica, concentrado não no conjunto de normas, mas na conduta do agente em relação a essas normas.
Tal concepção, que destaca o aspecto humanista das normas jurídicas (as normas são feitas para serem
cumpridas por pessoas e não apenas para constarem escritas num papel), foi desenvolvida por influência
das teorias filosóficas de Heidegger e Gadamer, que enfatizaram o aspecto histórico e existencial da
compreensão, refletindo também na interpretação e aplicação das normas jurídicas.

69
Hermenêutica Jurídica

Conhecida como concepção egológica do Direito, foi defendida pelo jurista argentino Carlos
Cóssio, cuja teoria se fundamenta nos seguintes princípios: a norma jurídica é um meio através do qual
conhecemos o verdadeiro objeto da interpretação, que é a conduta humana regrada pela norma. E o direito
é um produto da evolução humana e tem por substrato uma determinada conduta, sendo assim um objeto
egológico. O Direito não está na norma, e sim na conduta, por isso, não se interpreta a norma em si
mesma, mas a norma enquanto determina a conduta das pessoas, e, assim, a hermenêutica é uma ciência
existencial. O Direito, portanto, para Cóssio, é a conduta humana em interferência subjetiva, ou seja:

• Conduta: porque expressa uma experiência de liberdade.

• Interferência: porque se refere a um conjunto de ações possíveis.

• Intersubjetiva: porque a ação de alguém que está impedida ou permitida por outro resulta
em um ato conjunto de ambos.

Essas duas posições (normativismo e egologismo) continuam a polarizar os doutrinadores,


alinhando-se estes em uma ou outra posição. De qualquer modo, a interpretação é o motor que propulsiona
o ordenamento jurídico, tendo como combustível as energias mentais do intérprete, que se abastece de
conteúdos culturais assimilados na sua vivência social e nos ensinamentos adquiridos nos cursos de
formação. Esta “máquina” interpretativa funciona em todos os níveis da ordem jurídico-social.

Reflexão

Assim, o Constituinte interpreta os anseios da sociedade ao elaborar a


Constituição; o Legislador interpreta a Constituição ao elaborar leis e normas
de caráter geral; os Magistrados e Administradores interpretam essas normas
gerais ao produzirem normas aplicáveis a casos particulares; os responsáveis pela
execução desses instrumentos particulares interpretam as sentenças, os contratos,
os atos administrativos, de modo a produzirem, na prática, os resultados
jurídicos que eles determinam. A sociedade e os cidadãos, que são os clientes
finais deste processo escalonado, fazem a sua parte conduzindo as suas ações
individuais e sociais de acordo com esses parâmetros, em vista do bem-estar
social e da garantia da ordem e da segurança. Todo esse conjunto coordenado
de forças movimenta o dia a dia da sociedade e constrói o ambiente no qual as
pessoas exercem suas profissões e executam suas rotinas individuais. Em tudo
está presente e se manifesta, com maior ou menor evidência, o fenômeno da
interpretação e assim a interpretação funciona como um eficiente instrumento
de renovação e atualização do ordenamento jurídico.

Assim, a interpretação do Direito pode ser entendida como um processo de conhecimento


e captação do sentido das normas, de acordo com os parâmetros recomendados pela hermenêutica
jurídica. No decorrer da história, essas recomendações hermenêuticas se expressaram sob a forma

70
Hermenêutica Jurídica

de metodologias variadas, as quais podem ser agrupadas em duas grandes correntes doutrinárias:
a subjetivista e a objetivista. Essa dupla perspectiva doutrinária não significa que estejam em total
oposição, já que apresentam diversos pontos comuns, distinguindo-se porém na definição daquilo que é
fundamental para a construção do sentido mais adequado da norma.

Corrente Subjetivista Corrente Objetivista

• Defende que o fundamento básico • Defende que a base para a apreensão


para a determinação do sentido da do sentido da norma está na vontade
norma está na vontade do legislador da própria lei (mens legis).
(mens legislatoris).

• A missão do intérprete é descobrir • A missão do intérprete é descobrir


a vontade do legislador contida a vontade da lei em si mesma,
na lei, devendo esta funcionar independente dos processos
como o parâmetro para a busca do psicológicos de criação da norma
seu significado. Sendo a ciência pelo legislador. O intérprete deve
jurídica, por essência, uma ciência procurar o sentido que foi objetivado
hermenêutica, a interpretação da pelo legislador no texto legal, que
norma não pode desviar-se da vontade após aprovado passa a ter uma
ou intenção do legislador, sob pena existência autônoma em relação ao
de desvirtuamento do seu sentido seu autor. A norma positivada tem
original e, portanto, de constituir uma um sentido próprio, determinado
infidelidade com o seu mentor. por fatores objetivos, que não estão
necessariamente ligados ao sentido
original que o legislador pretendeu
colocar no texto.

• Esta corrente defende ainda que a • Esta corrente defende ainda a


interpretação deve seguir a regra ex interpretação do tipo ex nunc, ou seja,
tunc, isto é, desde então, desde a desde agora, tendo em vista a situação
aprovação da norma, com destaque concreta na qual a norma é aplicada,
para a compreensão genética da com destaque para a compreensão dos
norma, ou seja, a compreensão a partir aspectos estruturais da composição
da sua gênese, quando foi positivada do texto, ou seja, a cada vez que a
pela vontade do legislador. norma vai ser aplicada, o intérprete vai
encontrar nela conteúdos específicos,
que vão se revelando de acordo com
o caso concreto, conteúdos esses
que podem nem ter sido cogitados
pelo legislador no momento de sua
elaboração.

71
Hermenêutica Jurídica

Depois de observarmos a diferença entre as correntes subjetivista e objetivista, percebemos


que se trata de uma polêmica deveras insolúvel. Os objetivistas argumentam contra os
subjetivistas que a “vontade do legislador” é uma mera ficção, pois de um modo geral
esse “legislador” não é uma pessoa fisicamente identificável, constituindo de fato um
termo genérico e despersonalizado. Os subjetivistas, por sua vez, contestam os objetivistas
dizendo que estes colocam a vontade do intérprete acima da vontade do legislador e, além
disso, o que fazem é na verdade substituir o legislador pelo intérprete, considerando-o mais
sábio do que a própria norma. Segundo o Prof. Tércio Ferraz (1980), levados ao extremo,
tanto um como outro, podem conduzir a situações indesejáveis. O exagerado subjetivismo
favorece o autoritarismo, ao privilegiar a figura do legislador; por outro lado, o exagerado
objetivismo favorece o anarquismo e a insegurança social.

O Prof. Cristiano José de Andrade (1992) destaca que, nos dias de hoje, essas duas correntes se
associaram a uma terceira, o atualismo, transformando assim no subjetivismo atualista e no objetivismo
atualista. Conforme o atualismo, o sentido da lei deve evoluir de acordo com o dinamismo e a fluidez da
vida humana, na sua evolução histórico-social.

Conforme o subjetivismo atualista, a interpretação jurídica deve procurar descobrir aquilo que a
vontade histórica do legislador projetaria como solução jurídica, nas atuais circunstâncias, caso o legislador
fosse aprovar a lei neste momento. Trata-se, pois, de uma atualização da vontade do legislador, projetando-a
para o caso concreto que está em análise. As considerações de caráter histórico, que ditaram a gênese da
lei, serão levadas em conta para a determinação do seu significado atual. Já de acordo com o objetivismo
atualista, o significado da lei deve ser buscado de acordo com o dinamismo da vida e a evolução da
sociedade e atentando ainda para o fato de que as novas leis introduzidas pelo legislador atual podem colocar
novos fatores capazes de influenciar a compreensão de leis anteriores, de modo a alterar-lhes o sentido
original. E conclui o citado professor (1992, p.23): “[...] Atualmente, a teoria objetivista, com suas diversas
variações, é amplamente dominante; integrada na ordem social, a lei com ela mutua significados”.

No entanto, alerta ele, isso não significa dizer que existe um método de interpretação que
deva ser preferido em relação aos demais na apuração do verdadeiro significado das normas, pois a
melhor interpretação será sempre aquela que atingir uma maior convergência dos aspectos sistemático,
teleológico e sociológico e, para isso, a flexibilidade interpretativa das leis impõe ao intérprete uma postura
de liberdade, de modo que não fique preso a este ou aquele posicionamento doutrinário, sob pena de
comprometer a legitimidade e autenticidade da sua tarefa. É aquilo que o jurista francês Recaséns Siches
(apud ANDRADE, 1992) chama de “lógica do razoável”, a qual, aplicada ao Direito, vem superar a

72
Hermenêutica Jurídica

referida pluralidade de métodos, não deixando que a ciência jurídica se resolva através da preferência por
este ou aquele outro método interpretativo. Manifesta-se aqui um terceiro elemento, que é a liberdade do
intérprete, como outro pressuposto básico da hermenêutica jurídica, evidenciando assim o seu caráter
deontológico, além dos aspectos dogmáticos e metodológicos já mencionados.

3 Fundamentos da Interpretação

Os fundamentos da interpretação, como os fundamentos de qualquer atividade


científica, são provenientes da filosofia e se distinguem em ontológicos,
axiológicos, gnosiológicos e lógicos. Compreenda agora como ocorre cada um
deles mais especificamente.

A ontologia é a divisão da filosofia que estuda as essências mais profundas de todos os seres existentes,
elevando-se até o estudo da própria essência do mundo, algo que na visão clássica da filosofia se identificava
com a divindade e na visão da filosofia contemporânea se denomina simplesmente de “ser”. Quando se fala
em “ser” entende-se aquilo que é, que existe realmente, não é mera suposição. O fundamento ontológico
da interpretação significa que a norma e a conduta por ela determinada são realidades verdadeiras, algo que
acontece no tempo e no espaço, uma ação humana realizada dentro da história e, portanto, sem repetição.
Por isso, os fatos jurídicos precisam ser provados, não podem se fixar em meras hipóteses prováveis. O juiz
não pode julgar uma causa baseado em presunções e indícios, por mais veementes que sejam. A verdade
jurídica deve ser ontológica, isto é, deve fundamentar-se em ocorrências reais.
A axiologia é a divisão da filosofia que estuda os aspectos valorativos dos objetos. Todos os
atos humanos são carregados de valores e junto aos valores está associada a intencionalidade. Dizer
que um fato é valorado significa dizer que a pessoa o faz conscientemente, sabendo do que se trata.
O valor é a força que induz a conduta. O fundamento axiológico da interpretação indica que esta
deve procurar descobrir os valores ocultos nos fatos e atos jurídicos. Dois fatos podem ser muito
semelhantes na sua aparência externa, mas podem ter valorações totalmente diferentes, dependendo
do contexto em que são praticados, por quem e para que são praticados. Toda conduta é valorada e
toda interpretação deve elucidar os valores nela contidos.
A gnosiologia é a divisão da filosofia que estuda o conhecimento humano, suas fontes, seus
métodos, suas condições de veracidade e falsidade. O fundamento gnosiológico da interpretação
diz respeito à necessidade de um máximo aprofundamento cognitivo dos fatos jurídicos, que não
podem ficar apenas em noções superficiais. A instrução processual é o caminho para esta busca mais
profunda da natureza dos fatos em análise. É ela que vai formar o convencimento do juiz. A lei
processual e a ética profissional impõem ao magistrado a obrigação de esgotar todas as possibilidades
envolvidas nos fatos. Daí porque se chama de “processo de conhecimento”, o juiz deve conhecer
plenamente os fatos antes de emitir o seu julgamento.

73
Hermenêutica Jurídica

A lógica é a divisão da filosofia que estuda as regras do pensar correto, a adequação entre os
pensamentos e a realidade, entre a linguagem e os fatos. A lógica procura esclarecer os mecanismos
internos do nosso modo de pensar, de maneira a conduzirmos o nosso pensamento ao máximo grau de
retidão e certeza. O fundamento lógico da interpretação exige que esta guarde a devida coerência entre
os fatos jurídicos, as normas a eles aplicáveis, os pedidos das partes e a decisão proferida pelo julgador.
Tudo deve estar em perfeita harmonia e dentro dos respectivos limites. Não pode o juiz decidir contrário
à prova dos autos; não pode a sentença tratar de matéria diversa do pedido; não pode a decisão ir além
do pedido ou ficar além deste; não pode o juiz agir motivado por sentimentos de simpatia ou antipatia,
preferências ou interesses estranhos ao processo. A lógica é sempre o fio condutor do pensamento
humano e perpassa também os componentes gnosiológico, valorativo e ontológico da interpretação.

4 Espécies de Interpretação e Sistemas Interpretativos


Mesmo sendo a interpretação um ato único, tradicionalmente, adotou-se o costume de distingui-
la ou classificá-la, de acordo com as suas fontes, com os meios utilizados pelo intérprete e ainda com
os seus resultados.
Quanto às suas fontes, a interpretação pode ser autêntica ou doutrinal. Assim, podemos
observar que:
• Denomina-se autêntica a interpretação que procede do próprio poder que produziu a norma,
cujo sentido e alcance ele declara. Assim, só uma Assembleia Constituinte pode fornecer
a autêntica interpretação da Constituição; as Casas Legislativas, das leis que elaboram; o
Executivo, dos diversos decretos, regulamentos, portarias, etc. Vale ressaltar que a interpretação
autêntica vincula-se ao juiz
• Denomina-se doutrinal quando provém da livre reflexão dos estudiosos do Direito em suas
obras de doutrina, sendo que essa interpretação tem o valor apenas opinativo.

Reflexão

Vale ressaltar que a interpretação autêntica foi outrora a mais prestigiada


de todas. Na época do imperador Justiniano, este rejeitava qualquer outra
interpretação, que não fosse emanada dele próprio. Na Idade Média, a
interpretação autêntica era atribuída ao Monarca, ao Príncipe, ao Senhor
Feudal. Generalizou-se assim o princípio antigo de que interpretar compete
a quem compete fazer a lei. Atualmente, esse tipo de interpretação está em
franco desuso. As Assembleias Constituintes são temporárias e as Casas
Legislativas são compostas em sua maioria por políticos profissionais, não por
jurisconsultos. Daí porque não existe mais uma interpretação autêntica nesse
sentido histórico, mas prevalecem, em geral, as interpretações dos diversos
órgãos do Poder Judiciário, em todos os níveis de sua atividade.

74
Hermenêutica Jurídica

Desse modo, a partir do século XX, a interpretação autêntica tradicional passou a ser reconhecida
segundo duas modalidades:
a) a legislativa, quando sobrevém uma lei interpretativa de outra anterior, (caso que muitos
doutrinadores nem consideram assim, mas entendem tratar-se simplesmente de lei nova) ou
por um decreto que vem regulamentar uma lei;
b) a jurisprudencial, que pela reiterada decisão uniforme dos tribunais pode vir a ser
sumulada, ou mesmo não sendo sumulada, costuma ser adotada pelos órgãos judiciais
dos escalões inferiores.

Importante

Importa mencionar ainda que uma interpretação doutrinária pode vir a tornar-
se judicial, no caso do tribunal adotar, em suas decisões, ensinamentos de um
doutrinador, conforme muitas vezes se observa nos acórdãos publicados. Por isso,
atualmente o conceito vasto de ordenamento jurídico inclui, além da própria
legislação, a jurisprudência e a doutrina.

Quanto aos meios adotados pelos intérpretes, a interpretação se divide tradicionalmente em


gramatical, lógica, histórica e sistemática. Esta classificação possui variantes, de acordo com as preferências
doutrinárias, de modo que alguns entendem que o modo gramatical abrange também o filológico, o
lógico abrange também o sociológico e o sistemático se estende para o teleológico. Sem adentrar nessas
variações, abordaremos as quatro modalidades clássicas. Acompanhe:

A interpretação gramatical ou literal concentra-se nas palavras da lei, buscando retirar delas o
seu significado mais profundo, chegando por vezes ao exagero de polemizar por detalhes semânticos, até
desvirtuado o próprio conteúdo linguístico do texto. Esta não realiza propriamente uma interpretação,
mas uma exegese literal, na medida em que se preocupa apenas com o texto do dispositivo legal. Sua
origem vem sobretudo pela influência dos estudos bíblicos e do trabalho dos glosadores medievais. No
passado, a exegese literal foi muito apreciada pelos especialistas, contudo, de acordo com o Prof. Carlos
Maximiliano (2006, p. 92), “[...] fica longe da verdade as mais das vezes, por envolver um só elemento
de certeza, e precisamente o menos seguro.” Cabe ao intérprete ultrapassar esse limite para chegar ao
campo vizinho, mais vasto e rico de aplicações práticas. Atualmente, nenhuma corrente da hermenêutica
recomenda a pura exegese gramatical dos textos, devendo esta ser um ponto de partida para a análise dos
conteúdos normativos neles contidos.

A interpretação lógica procura alcançar a coerência e o espírito da norma, em vista da sua


aplicação social. Trata-se, portanto, de uma interpretação complementar do caráter linguístico do texto
legal, pois a concatenação do raciocínio e a coordenação das ideias contidas na norma devem seguir as
regras do pensamento coerente. É do caráter lógico da interpretação que se deduzem algumas posições

75
Hermenêutica Jurídica

doutrinárias clássicas, como por exemplo, a de que não há palavras supérfluas na lei, todas elas carregam
um sentido que deve ser buscado. Ou ainda a de que as palavras devem ser entendidas no seu sentido da
linguagem comum ou natural, evitando-se exageros tecnicistas ou artificiais. É igualmente lógico que o
legislador, ao elaborar a lei, visava ser entendido pelas pessoas para as quais a lei se destinava, e portanto
serviu-se de elementos culturais comuns, que assim também devem ser entendidos. A lógica deve nos
conduzir ao bom senso de entender a lei dentro da objetividade que o legislador nela colocou, porque
nenhuma lei é feita somente para ficar escrita nos livros, senão para ser cumprida e bem cumprida.

A interpretação histórica consiste em examinar os antecedentes e os preparativos da lei, as


discussões que lhe deram origem, os fatos sociais relevantes que determinaram o seu surgimento, para
que assim possam ser atingidos tanto a mens legislatoris (corrente subjetivista) quanto a mens legis (corrente
objetivista). Antes da aprovação da lei, com certeza muitos debates ocorreram, em vista das necessidades
sociais emergentes, e nessas discussões são encontradas as verdadeiras motivações da lei, que muitas vezes
nem chegaram a ser colocadas no seu texto. Quanto mais polêmico o tema abordado na norma, mais
discussões ela suscita e mais tempo demora para a sua aprovação. O melhor exemplo que se pode dar da
interpretação histórica é o da importância do estudo do Direito Romano para uma melhor compreensão
do nosso Direito Civil contemporâneo. Conhecer a evolução histórica dos diversos institutos jurídicos
confere maior segurança e confiabilidade ao intérprete, quando se trata de aplicá-los aos fatos atuais.

A interpretação sistemática procura compreender o significado das palavras na perspectiva


do texto inteiro da lei, bem como a compreensão da lei na perspectiva do ordenamento como um
todo, evitando-se interpretações de palavras ou frases isoladas do seu contexto. Um artigo de uma lei
tributária deve ser interpretado de acordo com o formalismo próprio das regras referentes ao fisco e à
administração pública; um artigo de uma lei previdenciária deve ser entendido numa perspectiva mais
ampla, sociológica, assistencialista; um artigo da Constituição deve ser sempre interpretado na perspectiva
do contexto sociopolítico, como regra macro jurídica que alcança o todo da sociedade. Vale lembrar aqui
a célebre máxima jurídica do jurista romano Celso: “é contrário ao direito tomar uma palavra da lei e
interpretá-la sem considerar o texto inteiro da mesma lei”1. Em linguagem dos dias atuais, isso equivale a
dizer: é contrário ao Direito interpretar uma palavra da lei sem levar em conta o texto completo da lei, o
conjunto normativo e os dispositivos constitucionais aplicáveis.

Convém atentar para o fato de que não se trata de quatro interpretações, mas de quatro modalidades
ou aspectos de um mesmo ato interpretativo, os quais se comunicam e se completam entre si. Em épocas
históricas diferentes, essas modalidades tiveram diferentes destaques. Durante um considerável decurso
temporal, predominou a interpretação gramatical. A preferência demonstrada inicialmente pelos juristas

1 Expressão na língua original: Incivile est, nisi tota lege perspecta, uma aliqua particula eius
proposita judicare vel respondere. (Digesto 50,17,1)

76
Hermenêutica Jurídica

por essa modalidade se deve ao uso maciço do direito romano entre os povos ocidentais, sobretudo no
âmbito do direito civil. Já esta preferência pelo direito romano, no caso do Brasil, foi influenciada pelos
juristas portugueses, desde o tempo colonial.
Caracteriza-se pelo apego à formalística e pela redução do aplicador do direito a uma espécie de
autômato, interpretando um texto hoje como se vivesse há cem anos, desconhecendo completamente
as mudanças históricas e a evolução da sociedade. Esta concepção de hermenêutica marcou diversas
gerações de estudantes de Direito, baseada no método de exegese literal, o qual consistia em estudar
os Códigos artigo por artigo, metodologia que ainda hoje se observa nas aulas de alguns professores e
nas obras de certos autores da área jurídica. Saber citar de cor os artigos dos códigos era sinônimo de
invejável conhecimento jurídico.

Curiosidade

Conforme o prof. Carlos Maximiliano (2006), até a segunda metade do


século XVIII, não havia em Coimbra, principal centro de estudos jurídicos
de Portugal, um curso específico de Direito Civil pátrio. Este era ensinado
à margem do estudo do Direito Romano. Somente em 1772, foi criada a
cadeira de Direito Civil português.

O citado professor, desde o princípio do século XX, já assumia uma posição


de vanguarda. Dizia ele: mais do que uma interpretação literal, lógica ou
sociológica, prevalece hoje a exposição sistemática da norma, pela qual o
jurista se serve do conjunto das disposições no sentido de construir um todo
orgânico e metódico. Não basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos
para que se atinja o ideal da justiça baseada nos preceitos codificados. É
necessário romper com a tradição formalista e engendrar uma nova lógica
jurídica, baseada na justiça social. Para isso, é preciso compreender bem os
fatos, mas também ser inspirado pelo nobre interesse dos destinos humanos,
compenetrar-se dos sofrimentos e aspirações das partes no processo e, embora
sem se deixar arrastar pelo sentimento, aplicar a lei à vida real e fazer
do Direito o que ele deve ser, uma condição da coexistência humana, um
auxiliar da solidariedade social.

E quanto aos seus resultados ou aos efeitos que provoca, a interpretação pode ser declarativa,
restritiva ou extensiva.

A interpretação declarativa é aquela em que a compreensão da norma se dá apenas pela


literalidade. O texto da lei é tão claro que não demanda maior esforço para o seu entendimento. Outrora,
existia um brocardo latino que dizia: in claris, cessat interpretatio (na clareza da lei, a interpretação é

77
Hermenêutica Jurídica

desnecessária). Atualmente, esse chamado “brocardo da clareza” perdeu sua força em vista dos modernos
estudos da linguística, os quais vieram demonstrar que toda expressão escrita precisa ser interpretada,
para que o seu significado se torne mais claro. A linguagem jurídica é a linguagem natural, comum da
sociedade. A linguagem é por natureza ambígua e polissêmica, devendo-se considerar as nuances regionais
e históricas, que podem influenciar no significado das palavras. Isso é mais exigido quanto maior for a
distância temporal entre a época em que a lei foi escrita e a época da sua interpretação. Assim entendida,
a interpretação literal deve ser somente o início do processo complexo de busca da compreensão de um
texto, não se esgotando nela o trabalho interpretativo.

A interpretação é restritiva quando o intérprete reduz o alcance das palavras da lei, atentando
para o espírito da lei, mais do que para o seu texto. É uma regra convencional da interpretação jurídica a
que determina que onde não distinguiu o legislador, não deve distinguir o intérprete. É dessa modalidade
também o entendimento de que as normas administrativas e fiscais devem ser entendidas restritivamente,
sempre que suscitarem dúvidas. É o caso também quando a lei enumera uma série de situações específicas,
as quais são entendidas como taxativas, se a matéria for penal ou tributária. Da mesma forma, as normas
constitucionais que restringem os direitos e garantias individuais devem ser entendidas restritivamente.
Trata-se, como se pode deduzir, de uma atividade interpretativa extremamente flutuante nas suas
determinações, dando margem a diversos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais.

A interpretação extensiva, ao contrário da restritiva, é aquela que amplia o alcance do texto


legal, dando-lhe maior elasticidade. Nas normas penais, pelo princípio da legalidade, evita-se fazer
interpretações extensivas. Nas normas civis, já é possível aumentar o alcance das normas pelo uso da
analogia. A interpretação analógica seria, portanto, um exemplo da interpretação extensiva, embora
não se confunda com ela. A diferença é tênue e não é bem uniforme na doutrina, nas pode-se dizer
que a interpretação extensiva ocorre quando o texto da lei é imperfeito e compete ao intérprete
explicitar o seu conteúdo; a interpretação analógica ocorre quando o texto da lei é lacunoso e
o intérprete faria uma ampliação do seu conteúdo. De uma forma ou de outra, a interpretação
extensiva se apoia em reflexões de ordem teleológica e axiológica.

Exemplo
Um exemplo dessa interpretação, nos dias atuais, é a aplicação de leis civis
ou penais aos fatos ilícitos ou delituosos que ocorrem no âmbito do mundo
virtual, para os quais a legislação originária não foi orientada, até porque
era impossível prevê-los.

Outro exemplo elucidativo é o do reconhecimento do estado de pobreza,


para fins de isenção de custas judiciais, no caso de pessoa jurídica pequena
ou microempresa, quando a legislação explicitamente só prevê esta isenção
para pessoas físicas.

78
Hermenêutica Jurídica

5 Aplicação e Integração do Direito


A aplicação do Direito é uma continuidade da atividade interpretativa. A interpretação jurídica está
direcionada a um fim, interpreta-se a norma sempre em vista de sua aplicação. Ao realizar a interpretação,
o jurista pode ter em mente duas situações:

• um fato concreto, que é analisado e compreendido em função da norma; ou


• um fato hipotético que é analisado e apresentado como exemplo.

De uma ou de outra forma, a interpretação sempre é realizada em vista da aplicação daquela


norma que está sendo interpretada. A interpretação diante do fato concreto, para que a norma seja a
ele aplicado, é feita pelo juiz, em sentido estrito, e em sentido mais amplo, pelos advogados das partes
no processo. A interpretação diante do fato hipotético, para servir de exemplo aplicativo, é feita pelo
doutrinador, pelo professor, pelo jurista que tem como objetivo uma atividade didático-pedagógica,
acadêmica ou não. Em qualquer situação, portanto, a finalidade da interpretação é a aplicação da
norma, seja no campo fático, seja no campo hipotético.

Este entendimento não é uniforme, contudo, na concepção tradicionalista do Direito, afirma-


se a possibilidade da interpretação por si mesma, sem visar necessariamente a uma aplicação. Nas
concepções mais contemporâneas, por vezes, ocorre o inverso disso, ou seja, juristas que defendem um
modelo sociológico da interpretação jurídica afirmam uma identidade entre interpretação e aplicação.
Essas duas posições opostas correspondem às concepções acima apresentadas sobre o objeto da
hermenêutica: concepção normativista (a primeira) e concepção egológica (a segunda). Por uma
questão de coerência com o modelo jurídico vigente no Brasil, desenvolvido após a Constituição
de 1988, no qual são enfatizadas as dimensões socioculturais do Direito, dizemos que existe uma
implicação necessária entre interpretação e aplicação.

Uma interpretação pura, abstrata, independente dos fatos concretos ou hipotéticos não tem
cabimento dentro dessa visão do Direito. Mesmo numa situação fictícia, como, por exemplo, quando os
alunos participam de um tribunal do júri simulado, a interpretação terá sempre como finalidade a possível
aplicação a um fato inventado. Uma mera interpretação formal, conceitual e literária, como puro exercício
mental do doutrinador, levará a uma desvinculação da norma com a realidade social. Embora isso tenha
sido feito no passado, não é mais compatível com os modelos hermenêuticos hoje recomendados.

Ainda de acordo com o tradicionalismo, a aplicação do Direito seria uma operação lógica básica,
entendida a sentença judicial como um silogismo aristotélico, no qual temos uma premissa maior (a norma),
uma premissa menor (o fato) e uma conclusão (o dispositivo). É a chamada concepção silogística da
interpretação, segundo a qual a aplicação da norma ao fato pelo juiz é uma simples subsunção lógica,
sem qualquer interferência subjetiva. Esta concepção jurídica provém dos ensinamentos de Montesquieu,

79
Hermenêutica Jurídica

na época da Revolução Francesa, quando propôs a divisão dos poderes do Estado em três (legislativo,
executivo e judiciário) e afirmou que o juiz é um mero aplicador da lei, ele apenas executa um comando
que foi dado pelo legislador. É ele o autor da famosa expressão de que o juiz é simplesmente a “boca da
lei”, criando aquela figura do juiz autômato, como um robô que apenas executa os preceitos legais sem
interferir neles com o seu entendimento.

Além do desprestígio que essa teoria traz para a personalidade do juiz, como se ele fosse um
agente comandado pelo legislador, existe ainda uma falha imperdoável nela que é o desconhecimento
de um dos aspectos fundamentais do Direito, que é a dimensão valorativa. O intérprete não avalia
no texto legal apenas o contexto gramatical, mas principalmente o conjunto de significados sociais
implícito nele. Enquanto produção cultural, o Direito terá sempre um componente sociológico
axiológico que não pode ser desconsiderado. A concepção silogística ignora a teoria tridimensional do
Direito, entendido como fato, norma e valor.

De acordo com uma noção mais atual, a aplicação do Direito deve ser sempre um ato
complexo, no qual, além da lógica do raciocínio, devem ser levados em conta os aspectos psicossociais
da conduta humana, o contexto social da ocorrência do fato, os aspectos significativos descobertos
pela interpretação, decorrentes de uma análise valorativa do conteúdo das ações em julgamento,
levando o juiz a uma reflexão ponderada, de acordo com a sua percepção dos fatos e seguindo o seu
convencimento consciente e responsável. Chama-se a esta a concepção dialética da aplicação do
Direito, elaborada de acordo com os novos modelos hermenêuticos que passaram a se desenvolver
a partir do século XIX e têm a sua formulação mais conhecida nas teorias do jurista argentino Carlos
Cóssio (teoria egológica) e do jurista brasileiro Miguel Reale (tridimensionalismo concreto). Uma
aplicação puramente lógica deixa de considerar um dos componentes mais defendidos pelas modernas
teorias jurídicas, que é a dimensão axiológica do Direito, sem a qual é impossível a existência do estado
democrático de Direito, preconizada na Constituição Federal.

Reflexão

Consideremos agora a seguinte situação. De um lado, a Constituição Federal


de 1988 assegura (art. 5.º, XXXV) que a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. De outro lado, o art. 4.º da Lei
n.º 4.657/42 (lei de introdução ao Código Civil de 1916) dispõe que, quando
a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes
e os princípios gerais do direito. O magistrado tem, pois, obrigação de
conhecer e decidir todos os fatos que lhe forem submetidos e se enquadrem no
âmbito de sua jurisdição e competência, não podendo abster-se de julgar

80
Hermenêutica Jurídica

sob o pretexto de ser a lei obscura, omissa, ambígua ou por não ter previsto
as circunstâncias particulares do caso concreto. Este é, com certeza, o
momento mais criativo da utilização da hermenêutica jurídica, quando a
interpretação proporciona a solução de casos não previstos na lei.

Ao fazer isso, não estará o juiz substituindo a função do legislador criando


nova lei, porque cada decisão judicial só tem alcance para as partes
envolvidas. Mas não poderá escusar-se simplesmente de decidir invocando a
ausência de previsão legal. Na verdade, ao apreciar o caso concreto, cabe ao
juiz decidir se o silêncio da lei é proposital, o que tornaria o autor carecedor
da ação, ou se é uma deficiência ocasional, porque o legislador não pode
prever todas as situações possíveis, quando então ele aplicará a analogia,
os costumes e os princípios gerais do direito, ou seja, aplicará o direito
subsidiário e a equidade para aquele caso específico.

A este fenômeno, os doutrinadores chamam de interpretação integradora, inspirada no


princípio da plenitude do ordenamento jurídico. Teoricamente, o conjunto de normas de uma sociedade
deve atender a todas as demandas que são encaminhadas pelos cidadãos ao Poder Judiciário. Se o Direito
não pode deixar nenhum litígio sem solução, por outro lado, o legislador não tem como prever todas
as hipóteses possíveis da conduta humana atuais e futuras. Por isso, a integridade lógica da ordem
jurídica não pode ser fundada apenas nas normas positivadas, mas compreende também a criatividade
interpretativa dos operadores do Direito no sentido de tentar fazer o ordenamento atender, ao máximo
grau possível, às solicitações consideradas legítimas da pessoa humana, em seu esforço também legítimo
de proporcionar a mais saudável convivência na sociedade.

O professor Raimundo Falcão assim conceitua a interpretação integradora: “[...] Entendemos


por interpretação integradora aquela por cujo intermédio procuramos dar à linguagem sob que se
estampa o ordenamento jurídico condições plenas de responder às inquietudes e necessidades do
homem em cada tempo”. (FALCÃO, 2004, p.224).

A interpretação integradora, portanto, ao mesmo tempo que aplica a norma ao caso concreto,
também completa as lacunas do ordenamento, porque o ordenamento jurídico é dotado de plenitude,
implicando o conceito dinâmico e atual de algo em constante fazer-se no acontecer concreto de cada
dia. Dessa forma, a interpretação integradora proporcionará a plenificação teórica do ordenamento
jurídico, conduzindo os interesses individuais em disputa a uma situação de justiça que mantenha a
justeza do sistema e a dignidade das pessoas.

81
Hermenêutica Jurídica

Importante

A interpretação integradora é, portanto, a um só tempo lógica e axiológica.


É lógica enquanto resguarda a coerência das normas e completa as suas
deficiências, de tal modo que nenhum fato social possa escapar ao seu alcance. É
axiológica na medida em que, enquanto interpretação viva e completa, procura
constantemente encontrar a melhor aplicação das normas em vista da verdadeira
justiça social. A interpretação plena, lógica e axiológica desperta no intérprete a
sua responsabilidade perante a sociedade. A interpretação integradora convida o
intérprete a sair da estrita e direta relação norma-fato, vista isoladamente, e partir
para um alargamento da percepção e da sensibilidade, expondo o leque de fatores e
alternativas a serem considerados na interpretação.

Conforme dito anteriormente, a interpretação integradora se fundamenta no princípio


dogmático da plenitude do ordenamento jurídico, entendido como o conjunto normativo formado
pela Constituição, Legislação ordinária, costumes e jurisprudência, dando enfoque ao Direito
como um sistema complexo e dinâmico. Apesar de multifacetado, o ordenamento jurídico é uno e
sistemático e assim deve sempre ser considerado.

Nos últimos tempos, o jurista que tratou de forma exemplar sobre esta matéria foi Norberto
Bobbio, com a sua obra clássica Teoria do Ordenamento Jurídico, da qual abordaremos alguns conceitos
básicos, a seguir. A reflexão de Bobbio ganha destaque no contexto das teorias jurídicas do século XX,
porque foi elaborada após as profundas mudanças ocorridas na Europa e, em geral, no mundo inteiro,
após a segunda grande guerra. Ele entende que se, no início do século XX, foi necessário eliminar qualquer
juízo de valor para construir uma Teoria Científica do Direito, as novas realidades sociais surgidas após
a Segunda Guerra Mundial levaram a concluir que a investigação jurídica deve buscar novas dimensões.
Foi daí que surgiu o conceito de ordenamento jurídico, mais amplo e mais dinâmico do que o conceito
tradicional de norma jurídica, que era o padrão anteriormente adotado. Vejamos os aspectos da teoria de
Bobbio, que têm importante repercussão para a hermenêutica.

6 Aplicação da Hermenêutica na Teoria do Ordenamento Jurídico


Sendo uma realidade complexa, todo ordenamento jurídico enfrenta problemas para
manter sua unidade, integridade e coerência. De início, consideremos que, em todo ordenamento,
é necessário que existam, além das normas de conduta propriamente ditas, as normas de estrutura
ou competência, pois estas indicam os caminhos, os procedimentos e as condições que permitem
a confecção de normas de conduta. Este conjunto de normas não pode ser elaborado por um

82
Hermenêutica Jurídica

único legislador, mas por delegação de competência, e as autoridades de diversos níveis que
serão responsáveis pela elaboração das normas dentro da sua alçada. Disso resulta que todo
ordenamento jurídico deve lidar constantemente com quatro problemas básicos, os quais são
sempre solucionados com a utilização dos procedimentos da hermenêutica.

Os problemas do Ordenamento Jurídico derivam das relações entre as normas. Em primeiro


lugar, formando uma unidade, as normas possuem uma hierarquia dentro deste todo que é o
Ordenamento e por isso, qualquer incoerência deve ser eliminada de imediato. Em segundo lugar,
além do problema relacionado à formação da unidade, o Ordenamento também deve ser um Sistema
no qual não podem haver antinomias. Normas em conflito comprometem a unidade e a coerência
e devem ser ajustadas. O terceiro problema refere-se ao Ordenamento ser ou não completo, isto
é, o dogma da completude, no qual um ordenamento não pode possuir lacunas. Caso estas sejam
detectadas, precisam ser logo resolvidas. Finalmente, um quarto problema é o da influência de
um ordenamento sobre outro(s). A boa convivência social e a paz internacional dependem de um
adequado ajuste dos diversos normativos. Todos os problemas eventualmente encontrados nestes
campos mencionados requerem um trabalho hermenêutico para a sua solução.

6.1 O Problema da Unidade


As normas do ordenamento não estão todas num mesmo plano; há uma hierarquização normativa,
ou seja, há normas inferiores e normas superiores, até chegar a uma norma suprema. Essa norma
suprema ou norma fundamental é o plano unificador das normas num ordenamento jurídico. Todas as
fontes de direito devem remontar a essa norma fundamental. Sem ela, não haveria um “ordenamento”’,
mas um “amontoado”’ de normas. Uma norma superior (Constitucional) conduz a uma norma inferior
(Lei Ordinária) que conduz a um ato (ato executivo); e no caminho inverso, o ato executa uma norma
inferior que executou uma norma superior estabelecendo a hierarquia do ordenamento. O grau executivo
máximo (ato) não é produtor e o grau produtor máximo não é executivo.

A construção do ordenamento tem uma estrutura piramidal, onde a norma fundamental ocupa
o ápice e os atos executivos formam a base. Vista de cima para baixo, essa pirâmide mostra a escala de
produção; vista de baixo para cima, a escala de execução. A produção fica designada como poder e a
execução como dever, sendo estes dois conceitos correlatos dentro da relação jurídica. Uma norma que
pertence a certo ordenamento, para ser válida, é necessário que provenha de um poder legítimo e que
poder, em última instância, é este senão a Norma Fundamental? Logo, uma norma só pode ser declarada
válida se puder ser reinserida na Norma Fundamental.

A Norma Fundamental corresponde a um postulado científico, ou seja, é uma exigência para


fundamentar a validade do ordenamento jurídico, sendo ao mesmo tempo o princípio unificador das
várias normas que compõem este ordenamento. A Norma Fundamental é, portanto, o postulado científico

83
Hermenêutica Jurídica

garantidor da unidade do ordenamento jurídico, devendo todas as demais normas estar alinhadas com ela.
O procedimento hermenêutico competente para a depuração do ordenamento, com o objetivo de manter-
lhe a unidade e eliminar aquelas normas que se contrapõem à Norma Fundamental é o chamado controle
da constitucionalidade das leis, que é realizado de modo concentrado pelo Tribunal Constitucional e,
de modo incidental, pelos magistrados nos julgamentos dos casos concretos.

6.2 O Problema da Antinomias


O Ordenamento Jurídico, além de unitário, também se apresenta como um sistema, ou seja, como
uma totalidade ordenada. Para isso, é preciso que as normas que o integram, além de se relacionarem
com o todo, relacionem-se também entre si, mantendo a coerência nos dois níveis. A antinomia consiste
no conflito entre normas incompatíveis entre si (uma obriga, outra proíbe; uma obriga, outra permite).
Seguindo a tradição romanista, o ordenamento jurídico não tolera antinomias, mas entendido como um
sistema dinâmico, elas podem ocorrer e deve-se usar da interpretação para resolvê-las, eliminando-as.

Essa eliminação se dará pela supressão de uma das normas incompatíveis, mas é necessário
ter critério para essa eliminação e, para isso, a jurisprudência tem elaborado, ao longo da história,
algumas regras que são geralmente aceitas, embora não resolvam todos os casos, pois que nem
todas as antinomias são solúveis. As regras fundamentais de solução de antinomias são: o critério
cronológico, critério hierárquico e critério da especialidade, seguindo a regra fundamental de
dar a cada qual o que é seu por direito.

Os critérios enumerados operam quando as normas são sucessivas ou de níveis


hierárquicos diferenciados. Mas quando encontramos duas normas incompatíveis
e contemporâneas, de mesmo nível hierárquico ou ambas gerais, como proceder
para resolver a antinomia? Para isso, existe um quarto critério, que por ser
razoável é amplamente utilizado, embora não se possa considerar como o mais
justo na solução desta incompatibilidade sui generis. É o critério relativo à
forma da norma. Se uma norma é imperativa ou proibitiva e outra é permissiva,
prevalece a permissiva, dentro do entendimento da interpretação mais favorável
ser preferível à odiosa. Isso, porém, deve ser adotado com parcimónia, porque
sempre o que é favorável a uma parte será odiosa para a outra.

No caso de nenhuma das normas em conflito serem permissivas, mas uma imperativa e outra
proibitiva, a decisão é confiada à liberdade do intérprete, que resolverá conforme a oportunidade e
aplicando o conjunto dos princípios hermenêuticos admitidos. Seja ele o juiz ou o jurista, poderá eliminar
uma norma, eliminar as duas ou conservar as duas (demonstrar a incompatibilidade como aparente -
interpretação corretiva). Esta última hipótese é a mais utilizada pelos intérpretes.

84
Hermenêutica Jurídica

Importante

E se houver conflito entre os critérios? Sendo um conflito entre o Critério


Hierárquico e o Critério Cronológico, prevalece Hierárquico ante o Cronológico,
porque decidir o contrário atentaria contra a organização do sistema. Sendo
um conflito entre o Critério de Especialidade e o Critério Cronológico, deve
prevalecer o de Especialidade, porém com bastante cautela, examinando-se a
fundo a casuística. Sendo um conflito entre o Critério de Especialidade e o Critério
Hierárquico, não há uma resposta padrão, no caso a decisão ficará a critério do
intérprete, diante da análise das circunstâncias, posto que estão em jogo dois
princípios basilares do ordenamento jurídico: a superioridade e a justiça.

6.3 O Problema da Completude


A Completude do Ordenamento Jurídico consiste na existência de normas capazes de
regular qualquer conduta humana. A falta de uma norma geralmente é considerada uma lacuna
no ordenamento. A completude do ordenamento é mais que uma exigência, é uma necessidade, a
condição indispensável para o seu funcionamento.

Nos dias atuais, os juristas entendem a completude do ordenamento jurídico como um


requisito meramente formal, dado que sob o aspecto material, sempre vão existir lacunas. O tipo
clássico da lacuna se dá pela ausência da norma, chamado de lacuna real. Mas há outro tipo, aquele
que se dá não pela falta de uma norma, mas por não haver norma justa a ser aplicada, ou seja, existe
uma solução prevista, mas esta não é satisfatória. Estas lacunas provêm da comparação entre o que
o ordenamento jurídico é e o que ele deveria ser, sendo por isso chamadas de lacunas ideológicas.
Todo ordenamento jurídico positivo tem essas lacunas ideológicas, são inevitáveis. Quando um
jurista afirma que um ordenamento não tem lacunas, refere-se a lacunas reais, não ideológicas. As
lacunas reais são aos que efetivamente interessam aos juristas.

A distinção entre lacuna real e ideológica é frequentemente exposta nos tratados como lacuna
própria e imprópria. A lacuna própria se dá dentro do sistema, enquanto que a imprópria se dá
devido à comparação do sistema com um sistema ideal. As lacunas impróprias só são completadas
pelo legislador e as lacunas próprias podem ser completadas pelo trabalho do intérprete e pela
hermenêutica dos aplicadores.

Para o preenchimento das lacunas, duas regras são comumente adotadas. Seguindo a
terminologia adotada por Carnelutti (apud BOBBIO, 1999), chamaremos a esses métodos de
heterointegração e autointegração.

85
Hermenêutica Jurídica

• A heterointegração consiste na integração através do recurso a ordenamentos diversos e


utilização de fontes diversas da que é dominante.

• Autointegração é feita dentro do mesmo ordenamento, recorrendo às mesmas fontes.

A heterointegração tradicional baseava-se no recurso ao Direito Natural para sanar a


incompletude do Direito Positivo. Aliás, esta era uma função típica reconhecida ao Direito Natural,
por ser este considerado um sistema jurídico perfeito e aquele sempre imperfeito. Essa doutrina,
contudo, foi abandonada nas codificações mais recentes, sendo substituída pelo Costume como
fonte subsidiária integradora (consuetudo praeter legem). Outra alternativa seria o recurso ao “poder
criativo do juiz”, o chamado Direito Judiciário. Esta é uma sugestão polémica, porque nem todos
os países reconhecem esse “poder criativo do juiz”, sendo mais comum nos países anglo-saxões,
tendo seu exemplo antológico no Código Civil Suíço. Poderia ser ainda o recurso à opinião dos
juristas, como fonte alternativa à lei e aos costumes, ou seja, o recurso da autoridade no Direito.
Seria o Direito Científico, na expressão de Savigny.

Curiosidade

O Código Civil Suíço estabelece, no art. 1º, que em caso de lacuna da lei ou
do costume, o juiz pode decidir como se fosse ele o legislador. Na prática,
porém, constata-se que os juízes raramente utilizam essa prerrogativa, o que
demonstra o seu apego à tradição da autointegração.

Uma das bases da autointegração é a analogia; a outra são os princípios gerais do Direito.
Entende-se por “analogia” o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma
disciplina que foi dada a um caso regulamentado semelhante. A analogia é considerada o mais típico e
o mais importante dos procedimentos de interpretação, tendo sido usada largamente desde o Digesto
e em todos os tempos.2 Essa “semelhança” em que se fundamenta a analogia não pode ser uma
semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, que tenha sido a mesma causa que motivou
a decisão do caso análogo regulamentado, ou seja, a razão suficiente pela qual foi atribuída aquela
solução ao caso análogo. Esta razão suficiente é o que comumente se chama de ratio legis, sendo
denominada “analogia legis”. O raciocínio por analogia exige que os dois casos (o regulamentado e o
não-regulamentado) sejam regidos pela mesma ratio legis.

2 Assim preceitua o Digesto (10.1.3): Non possunt omnes articuli singullatim aut legibus aut
senatus consultis comprehendi: sed cum in aliqua causa sententia eorum manifesta est, is qui
jurisdictioni praeest ad similia procedere atque ita ius dicere debet. (Não podem todos os
artigos isoladamente ser abrangidos pelas leis e pelos senatusconsultos: mas quando em alguma
causa a opinião deles é conhecida, aquele que preside a jurisdição deve seguir por semelhança e
do mesmo modo dizer o direito.)

86
Hermenêutica Jurídica

A “analogia legis” difere da “analogia iuris”’, pois a última busca a solução para uma lacuna
em todo o ordenamento e não apenas em parte dele. A expressão “‘princípios gerais do Direito”’
é tradicionalmente denominada de “analogia iuris”’. Para Bobbio (1999), os Princípios Gerais do
Direito equivalem a normas e podem ser expressos ou não expressos. Quando expressos, não se pode
falar em lacunas do sistema. Só se consideraria lacuna se, para um determinado caso, não existisse
uma regra expressa, nem específica, nem geral, nem generalíssima. Mas há ainda os princípios que
podemos considerar não-expressos, isto é, os que podem ser deduzidos por abstração das normas
expressas. São aquelas normas generalíssimas formuladas pelo intérprete, na tentativa de alcançar o
que se entende por “espírito do sistema”. De um modo ou de outro, o intérprete terá sempre uma
solução para as lacunas no Ordenamento Jurídico.

6.4 O Problema da Relação com outros


O ordenamento jurídico padrão é o ordenamento estatal. Porém, além deste, haveria também os
ordenamentos não-estatais, dentre os quais podemos distinguir:
1. Ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento internacional e, segundo algumas
doutrinas, o da Igreja Católica.
2. Ordenamentos abaixo do Estado, como os ordenamentos propriamente sociais, que o Estado
reconhece, limitando-os ou absorvendo-os.
3. Ordenamentos ao lado do Estado, como o da Igreja Católica, segundo outras concepções, ou,
também, o internacional, segundo a concepção chamada dualística.
4. Ordenamentos contra o Estado, como as associações de marginais, as seitas secretas, etc.

A mesma imagem da pirâmide das normas pode ser aplicada para a formação de uma
pirâmide de ordenamentos. Podemos ter, assim, relações de coordenação ou de subordinação entre
os ordenamentos. Relações de coordenação se dão entre ordenamentos estatais posicionados
num mesmo plano, isto é, onde haja regras de autolimitação recíproca; enquanto relações de
subordinação se dão entre ordenamentos posicionados em patamares diferentes, como, por
exemplo, entre o ordenamento estatal e os sociais (sindicatos, partidos, associações), cujos estatutos,
para terem validade, precisam ser reconhecidos pelo Estado.

Importante

No caso, entre o Estado e os Ordenamentos Menores, pode haver uma relação de


recepção, o que dará ao Ordenamento Estatal um caráter de maior complexidade. Às
vezes, porém, pode ocorrer o fenômeno do reenvio, pelo qual o ordenamento estatal se
limita a reconhecer a validade do outro menor, no seu próprio âmbito. Exemplos são as
regras de convivência e de comunicação em certos ambientes ou atividades, como

87
Hermenêutica Jurídica

grupos étnicos. A reação mais frequente do ordenamento estatal frente aos


ordenamentos menores tem sido a de indiferença, não as reconhecendo nem dando
proteção, agindo apenas em caso de violação das normas gerais positivadas (caso de
jogos e atividades esportivas). Mas, às vezes, pode ser também de recusa, como é o caso
do duelo, válido no chamado código cavalheiresco.

Por tratar-se de uma complexa diferenciação, os conflitos gerados nesta área sempre foram
de difícil solução. Os caminhos possíveis são os da negociação, da diplomacia, da mediação. Quando
esses não são viáveis, afastam-se todas as possibilidades jurídicas e a solução será buscada na base
do confronto direto das forças.

Assim, encerramos nossa terceira unidade. Lembre-se de


complementar os seus estudos com a sua web-aula, lá você encontra
o conteúdo de forma reduzida, com um vídeo que trata sobre
o ordenamento jurídico, além de um áudio resumo para fazer
download. Nos encontramos na próxima unidade! Até lá!

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Cristiano. O problema dos métodos na interpretação jurídica. São Paulo:
RT, 1992.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1999.

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Editora Malheiros, 2004.

FERRAZ JR, Tércio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980.

GIORDANI, F. A.M. P. Estudos sobre a interpretação das leis. São Paulo: Ed. Copola, 1997.

MAGALHÃES, Glauco. Hermenêutica jurídica clássica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

MAXIMILIANO, C.. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2006.

88
HERMENÊUTICA JURÍDICA
Créditos

Núcleo de Educação a Distância

O assunto estudado por você nessa disciplina foi planejado pelo

professor conteudista, que é o responsável pela produção de conteúdo

didático, e foi desenvolvido e implementado por uma equipe composta

por profissionais de diversas áreas, com o objetivo de apoiar e facilitar o

processo ensino-aprendizagem.

Coordenação do Núcleo de Educação a Distância: Lana Paula

Crivelaro Monteiro de Almeida Supervisão Administrativa:

Denise de Castro Gomes Produção de Conteúdo Didático:

Antônio Carlos Machado Projeto Instrucional: Andrea Chagas

Alves de Almeida, Jackson de Moura Oliveira, Amália Campos Farias

Roteiro de Áudio e Vídeo: Andrea Chagas Alves de Almeida, José

Glauber Peixoto Rocha Produção de Áudio e Vídeo: Natália

Magalhães Rodrigues, Vaneuda Almeida de Paula, José Moreira de

Sousa Identidade Visual: Viviane Cláudia Paiva, Sávio Félix Mota

Arte: Geraldo Borges Programação: Antônia Suyanne Lopes

Alves Animação: Francisco Kaléo Mendes Liberato Editoração:

Sávio Félix Mota Analista de Mídias: Amália Campos Farias

Revisão Gramatical: Luís Carlos de Oliveira Sousa

89

Você também pode gostar