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SUMÁRIO: EXPOSIÇÃO SINTÉTICA DA UNIDADE (67) TEMA: HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA (67) 1. CONCEITO DE HERMENÊUTICA JURÍDICA (67) 2. OBJETOS DA
HERMENÊUTICA E DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICAS (69) 3. FUNDAMENTOS DA INTERPRETAÇÃO (73) 4. ESPÉCIES DE INTERPRETAÇÃO E SISTEMAS INTERPRETATIVOS (74) 5.
APLICAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO (79) 6. APLICAÇÃO DA HERMENÊUTICA NA TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO (82) 6.1. O PROBLEMA DA UNIDADE (83) 6.2.
O PROBLEMA DA ANTINOMIAS (84) 6.3. O PROBLEMA DA COMPLETUDE (85) 6.4. O PROBLEMA DA RELAÇÃO COM OUTROS (87) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (88)
O
Olá! Começaremos agora a nossa terceira unidade da disciplina de Hermenêutica
Jurídica. Nesta unidade, abordaremos o conceito de hermenêutica jurídica, bem
como o seu objeto e o objeto da interpretação jurídica, distinguindo as concepções
normativista e egológica, subjetivista e objetivista.
Objetivo
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Hermenêutica Jurídica
mesma forma que as normas e os conteúdos jurídicos não têm sentido e não alcançam seu objetivo se
permanecerem apenas como documentos escritos, pois o essencial do Direito é a aplicação prática. Toda
aplicação prática de uma norma jurídica implica, obrigatoriamente em uma interpretação, pois o Direito
existe para ser interpretado e é impossível por em prática um comando jurídico sem sua interpretação.
Dada essa inevitabilidade da interpretação, enquanto componente essencial da prática jurídica, a atividade
interpretativa precisa ser regrada, organizada, estabelecida em certos limites, planejada, articulada, discutida,
coordenada, avaliada, referenciada, e essa é a tarefa da hermenêutica jurídica. Ao longo da história, diversas foram
as expressões teóricas da hermenêutica, evoluindo conforme a compreensão do próprio conceito de ciência e das
suas diversas metodologias. Em parte, essa evolução foi apresentada na unidade anterior, a respeito da hermenêutica
antiga. E a evolução das teorias contemporâneas da hermenêutica será estudada na próxima unidade. Isso vem
demonstrar que não existe um conceito de hermenêutica jurídica predeterminado e permanente.
Numa compreensão genérica do termo, podemos afirmar que a hermenêutica é o momento teórico
que antecede a atividade prática, e isso ocorre não apenas no Direito, mas em todas as áreas do trabalho
humano, seja ele muscular ou intelectual, desde que a humanidade passou a se orientar pelo modo científico
de agir no mundo, superando as ações arcaicas realizadas na base do improviso e da necessidade. Toda
atividade prática humana necessita de um momento prévio de reflexão, planejamento, organização, sem o
qual a prática ficará desorientada e muitas vezes infrutífera, com grande desperdício de materiais e energias.
Exemplo
Como exemplo, podemos citar o caso dos professores que se reúnem
previamente para planejarem suas atividades de ensino; os agentes de
vendas se reúnem previamente para discutirem e combinarem estratégias de
abordagem; os jogadores profissionais se reúnem em concentrações com seus
técnicos para traçarem o planejamento do próximo jogo, enfim, se cogitarmos
qualquer atividade humana que pretenda ser bem conduzida, esta deve ser
precedida por um momento teórico onde as metodologias serão discutidas,
avaliadas e planejadas, sob pena de não se alcançarem os objetivos desejados.
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Hermenêutica Jurídica
Quando se fala em “momento teórico”, não significa dizer que iremos simplesmente conhecer
uma variedade de teorias e conceitos já elaborados por outros, isso ocorre apenas em parte. O fundamental
desse que chamamos “‘momento teórico” é o exercício de mentalização dos procedimentos que serão,
posteriormente, adotados no decorrer da atividade prática. Tal como ocorre nos exemplos referidos acima
dos vendedores, dos jogadores, o planejamento estratégico das ações é indispensável para se alcançar
as metas e os objetivos. Entendida dessa forma, a hermenêutica, enquanto momento teórico prévio da
atividade prática, faz parte do dia a dia de todos os profissionais e não pode ser desconhecida e descartada
pelos operadores do Direito. Na atividade profissional eficiente, qualquer que seja, o improviso é uma opção
descartada pelo seu alto risco de insucesso e elevado custo material e pessoal. O bom êxito profissional está
diretamente ligado ao bom planejamento das ações, e é para isso que estudamos a hermenêutica.
Assim, a interpretação alcança, além das leis propriamente ditas, os diversos decretos e
regulamentos, os costumes e negócios jurídicos, os tratados e convenções, os acordos e manifestações
de vontade, os atos administrativos e jurisdicionais, os fatos sociais que são relevantes para o direito, a
conduta humana em geral, individual ou coletiva.
Os textos, aqui entendidas como as expressões linguísticas orais ou escritas, são interpretados
tendo em vista os fatos a eles relacionados. Por sua vez, os fatos são interpretados em relação às normas
pertinentes; fatos e normas são interpretados tendo em vista o contexto social em que se concretizam.
Isso significa que os fatos recebem uma valoração na sua relação com a norma, em atendimento aos fins
sociais desta e às exigências do bem comum (art. 5º, LICC). Constitui-se assim a célebre fórmula jurídica
da tridimensionalidade do Direito, criada por Miguel Reale, ou seja, o Direito é fato, norma e valor.
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Conhecida como concepção egológica do Direito, foi defendida pelo jurista argentino Carlos
Cóssio, cuja teoria se fundamenta nos seguintes princípios: a norma jurídica é um meio através do qual
conhecemos o verdadeiro objeto da interpretação, que é a conduta humana regrada pela norma. E o direito
é um produto da evolução humana e tem por substrato uma determinada conduta, sendo assim um objeto
egológico. O Direito não está na norma, e sim na conduta, por isso, não se interpreta a norma em si
mesma, mas a norma enquanto determina a conduta das pessoas, e, assim, a hermenêutica é uma ciência
existencial. O Direito, portanto, para Cóssio, é a conduta humana em interferência subjetiva, ou seja:
• Intersubjetiva: porque a ação de alguém que está impedida ou permitida por outro resulta
em um ato conjunto de ambos.
Reflexão
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de metodologias variadas, as quais podem ser agrupadas em duas grandes correntes doutrinárias:
a subjetivista e a objetivista. Essa dupla perspectiva doutrinária não significa que estejam em total
oposição, já que apresentam diversos pontos comuns, distinguindo-se porém na definição daquilo que é
fundamental para a construção do sentido mais adequado da norma.
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O Prof. Cristiano José de Andrade (1992) destaca que, nos dias de hoje, essas duas correntes se
associaram a uma terceira, o atualismo, transformando assim no subjetivismo atualista e no objetivismo
atualista. Conforme o atualismo, o sentido da lei deve evoluir de acordo com o dinamismo e a fluidez da
vida humana, na sua evolução histórico-social.
Conforme o subjetivismo atualista, a interpretação jurídica deve procurar descobrir aquilo que a
vontade histórica do legislador projetaria como solução jurídica, nas atuais circunstâncias, caso o legislador
fosse aprovar a lei neste momento. Trata-se, pois, de uma atualização da vontade do legislador, projetando-a
para o caso concreto que está em análise. As considerações de caráter histórico, que ditaram a gênese da
lei, serão levadas em conta para a determinação do seu significado atual. Já de acordo com o objetivismo
atualista, o significado da lei deve ser buscado de acordo com o dinamismo da vida e a evolução da
sociedade e atentando ainda para o fato de que as novas leis introduzidas pelo legislador atual podem colocar
novos fatores capazes de influenciar a compreensão de leis anteriores, de modo a alterar-lhes o sentido
original. E conclui o citado professor (1992, p.23): “[...] Atualmente, a teoria objetivista, com suas diversas
variações, é amplamente dominante; integrada na ordem social, a lei com ela mutua significados”.
No entanto, alerta ele, isso não significa dizer que existe um método de interpretação que
deva ser preferido em relação aos demais na apuração do verdadeiro significado das normas, pois a
melhor interpretação será sempre aquela que atingir uma maior convergência dos aspectos sistemático,
teleológico e sociológico e, para isso, a flexibilidade interpretativa das leis impõe ao intérprete uma postura
de liberdade, de modo que não fique preso a este ou aquele posicionamento doutrinário, sob pena de
comprometer a legitimidade e autenticidade da sua tarefa. É aquilo que o jurista francês Recaséns Siches
(apud ANDRADE, 1992) chama de “lógica do razoável”, a qual, aplicada ao Direito, vem superar a
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referida pluralidade de métodos, não deixando que a ciência jurídica se resolva através da preferência por
este ou aquele outro método interpretativo. Manifesta-se aqui um terceiro elemento, que é a liberdade do
intérprete, como outro pressuposto básico da hermenêutica jurídica, evidenciando assim o seu caráter
deontológico, além dos aspectos dogmáticos e metodológicos já mencionados.
3 Fundamentos da Interpretação
A ontologia é a divisão da filosofia que estuda as essências mais profundas de todos os seres existentes,
elevando-se até o estudo da própria essência do mundo, algo que na visão clássica da filosofia se identificava
com a divindade e na visão da filosofia contemporânea se denomina simplesmente de “ser”. Quando se fala
em “ser” entende-se aquilo que é, que existe realmente, não é mera suposição. O fundamento ontológico
da interpretação significa que a norma e a conduta por ela determinada são realidades verdadeiras, algo que
acontece no tempo e no espaço, uma ação humana realizada dentro da história e, portanto, sem repetição.
Por isso, os fatos jurídicos precisam ser provados, não podem se fixar em meras hipóteses prováveis. O juiz
não pode julgar uma causa baseado em presunções e indícios, por mais veementes que sejam. A verdade
jurídica deve ser ontológica, isto é, deve fundamentar-se em ocorrências reais.
A axiologia é a divisão da filosofia que estuda os aspectos valorativos dos objetos. Todos os
atos humanos são carregados de valores e junto aos valores está associada a intencionalidade. Dizer
que um fato é valorado significa dizer que a pessoa o faz conscientemente, sabendo do que se trata.
O valor é a força que induz a conduta. O fundamento axiológico da interpretação indica que esta
deve procurar descobrir os valores ocultos nos fatos e atos jurídicos. Dois fatos podem ser muito
semelhantes na sua aparência externa, mas podem ter valorações totalmente diferentes, dependendo
do contexto em que são praticados, por quem e para que são praticados. Toda conduta é valorada e
toda interpretação deve elucidar os valores nela contidos.
A gnosiologia é a divisão da filosofia que estuda o conhecimento humano, suas fontes, seus
métodos, suas condições de veracidade e falsidade. O fundamento gnosiológico da interpretação
diz respeito à necessidade de um máximo aprofundamento cognitivo dos fatos jurídicos, que não
podem ficar apenas em noções superficiais. A instrução processual é o caminho para esta busca mais
profunda da natureza dos fatos em análise. É ela que vai formar o convencimento do juiz. A lei
processual e a ética profissional impõem ao magistrado a obrigação de esgotar todas as possibilidades
envolvidas nos fatos. Daí porque se chama de “processo de conhecimento”, o juiz deve conhecer
plenamente os fatos antes de emitir o seu julgamento.
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A lógica é a divisão da filosofia que estuda as regras do pensar correto, a adequação entre os
pensamentos e a realidade, entre a linguagem e os fatos. A lógica procura esclarecer os mecanismos
internos do nosso modo de pensar, de maneira a conduzirmos o nosso pensamento ao máximo grau de
retidão e certeza. O fundamento lógico da interpretação exige que esta guarde a devida coerência entre
os fatos jurídicos, as normas a eles aplicáveis, os pedidos das partes e a decisão proferida pelo julgador.
Tudo deve estar em perfeita harmonia e dentro dos respectivos limites. Não pode o juiz decidir contrário
à prova dos autos; não pode a sentença tratar de matéria diversa do pedido; não pode a decisão ir além
do pedido ou ficar além deste; não pode o juiz agir motivado por sentimentos de simpatia ou antipatia,
preferências ou interesses estranhos ao processo. A lógica é sempre o fio condutor do pensamento
humano e perpassa também os componentes gnosiológico, valorativo e ontológico da interpretação.
Reflexão
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Desse modo, a partir do século XX, a interpretação autêntica tradicional passou a ser reconhecida
segundo duas modalidades:
a) a legislativa, quando sobrevém uma lei interpretativa de outra anterior, (caso que muitos
doutrinadores nem consideram assim, mas entendem tratar-se simplesmente de lei nova) ou
por um decreto que vem regulamentar uma lei;
b) a jurisprudencial, que pela reiterada decisão uniforme dos tribunais pode vir a ser
sumulada, ou mesmo não sendo sumulada, costuma ser adotada pelos órgãos judiciais
dos escalões inferiores.
Importante
Importa mencionar ainda que uma interpretação doutrinária pode vir a tornar-
se judicial, no caso do tribunal adotar, em suas decisões, ensinamentos de um
doutrinador, conforme muitas vezes se observa nos acórdãos publicados. Por isso,
atualmente o conceito vasto de ordenamento jurídico inclui, além da própria
legislação, a jurisprudência e a doutrina.
A interpretação gramatical ou literal concentra-se nas palavras da lei, buscando retirar delas o
seu significado mais profundo, chegando por vezes ao exagero de polemizar por detalhes semânticos, até
desvirtuado o próprio conteúdo linguístico do texto. Esta não realiza propriamente uma interpretação,
mas uma exegese literal, na medida em que se preocupa apenas com o texto do dispositivo legal. Sua
origem vem sobretudo pela influência dos estudos bíblicos e do trabalho dos glosadores medievais. No
passado, a exegese literal foi muito apreciada pelos especialistas, contudo, de acordo com o Prof. Carlos
Maximiliano (2006, p. 92), “[...] fica longe da verdade as mais das vezes, por envolver um só elemento
de certeza, e precisamente o menos seguro.” Cabe ao intérprete ultrapassar esse limite para chegar ao
campo vizinho, mais vasto e rico de aplicações práticas. Atualmente, nenhuma corrente da hermenêutica
recomenda a pura exegese gramatical dos textos, devendo esta ser um ponto de partida para a análise dos
conteúdos normativos neles contidos.
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doutrinárias clássicas, como por exemplo, a de que não há palavras supérfluas na lei, todas elas carregam
um sentido que deve ser buscado. Ou ainda a de que as palavras devem ser entendidas no seu sentido da
linguagem comum ou natural, evitando-se exageros tecnicistas ou artificiais. É igualmente lógico que o
legislador, ao elaborar a lei, visava ser entendido pelas pessoas para as quais a lei se destinava, e portanto
serviu-se de elementos culturais comuns, que assim também devem ser entendidos. A lógica deve nos
conduzir ao bom senso de entender a lei dentro da objetividade que o legislador nela colocou, porque
nenhuma lei é feita somente para ficar escrita nos livros, senão para ser cumprida e bem cumprida.
Convém atentar para o fato de que não se trata de quatro interpretações, mas de quatro modalidades
ou aspectos de um mesmo ato interpretativo, os quais se comunicam e se completam entre si. Em épocas
históricas diferentes, essas modalidades tiveram diferentes destaques. Durante um considerável decurso
temporal, predominou a interpretação gramatical. A preferência demonstrada inicialmente pelos juristas
1 Expressão na língua original: Incivile est, nisi tota lege perspecta, uma aliqua particula eius
proposita judicare vel respondere. (Digesto 50,17,1)
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por essa modalidade se deve ao uso maciço do direito romano entre os povos ocidentais, sobretudo no
âmbito do direito civil. Já esta preferência pelo direito romano, no caso do Brasil, foi influenciada pelos
juristas portugueses, desde o tempo colonial.
Caracteriza-se pelo apego à formalística e pela redução do aplicador do direito a uma espécie de
autômato, interpretando um texto hoje como se vivesse há cem anos, desconhecendo completamente
as mudanças históricas e a evolução da sociedade. Esta concepção de hermenêutica marcou diversas
gerações de estudantes de Direito, baseada no método de exegese literal, o qual consistia em estudar
os Códigos artigo por artigo, metodologia que ainda hoje se observa nas aulas de alguns professores e
nas obras de certos autores da área jurídica. Saber citar de cor os artigos dos códigos era sinônimo de
invejável conhecimento jurídico.
Curiosidade
E quanto aos seus resultados ou aos efeitos que provoca, a interpretação pode ser declarativa,
restritiva ou extensiva.
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desnecessária). Atualmente, esse chamado “brocardo da clareza” perdeu sua força em vista dos modernos
estudos da linguística, os quais vieram demonstrar que toda expressão escrita precisa ser interpretada,
para que o seu significado se torne mais claro. A linguagem jurídica é a linguagem natural, comum da
sociedade. A linguagem é por natureza ambígua e polissêmica, devendo-se considerar as nuances regionais
e históricas, que podem influenciar no significado das palavras. Isso é mais exigido quanto maior for a
distância temporal entre a época em que a lei foi escrita e a época da sua interpretação. Assim entendida,
a interpretação literal deve ser somente o início do processo complexo de busca da compreensão de um
texto, não se esgotando nela o trabalho interpretativo.
A interpretação é restritiva quando o intérprete reduz o alcance das palavras da lei, atentando
para o espírito da lei, mais do que para o seu texto. É uma regra convencional da interpretação jurídica a
que determina que onde não distinguiu o legislador, não deve distinguir o intérprete. É dessa modalidade
também o entendimento de que as normas administrativas e fiscais devem ser entendidas restritivamente,
sempre que suscitarem dúvidas. É o caso também quando a lei enumera uma série de situações específicas,
as quais são entendidas como taxativas, se a matéria for penal ou tributária. Da mesma forma, as normas
constitucionais que restringem os direitos e garantias individuais devem ser entendidas restritivamente.
Trata-se, como se pode deduzir, de uma atividade interpretativa extremamente flutuante nas suas
determinações, dando margem a diversos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais.
Exemplo
Um exemplo dessa interpretação, nos dias atuais, é a aplicação de leis civis
ou penais aos fatos ilícitos ou delituosos que ocorrem no âmbito do mundo
virtual, para os quais a legislação originária não foi orientada, até porque
era impossível prevê-los.
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Uma interpretação pura, abstrata, independente dos fatos concretos ou hipotéticos não tem
cabimento dentro dessa visão do Direito. Mesmo numa situação fictícia, como, por exemplo, quando os
alunos participam de um tribunal do júri simulado, a interpretação terá sempre como finalidade a possível
aplicação a um fato inventado. Uma mera interpretação formal, conceitual e literária, como puro exercício
mental do doutrinador, levará a uma desvinculação da norma com a realidade social. Embora isso tenha
sido feito no passado, não é mais compatível com os modelos hermenêuticos hoje recomendados.
Ainda de acordo com o tradicionalismo, a aplicação do Direito seria uma operação lógica básica,
entendida a sentença judicial como um silogismo aristotélico, no qual temos uma premissa maior (a norma),
uma premissa menor (o fato) e uma conclusão (o dispositivo). É a chamada concepção silogística da
interpretação, segundo a qual a aplicação da norma ao fato pelo juiz é uma simples subsunção lógica,
sem qualquer interferência subjetiva. Esta concepção jurídica provém dos ensinamentos de Montesquieu,
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na época da Revolução Francesa, quando propôs a divisão dos poderes do Estado em três (legislativo,
executivo e judiciário) e afirmou que o juiz é um mero aplicador da lei, ele apenas executa um comando
que foi dado pelo legislador. É ele o autor da famosa expressão de que o juiz é simplesmente a “boca da
lei”, criando aquela figura do juiz autômato, como um robô que apenas executa os preceitos legais sem
interferir neles com o seu entendimento.
Além do desprestígio que essa teoria traz para a personalidade do juiz, como se ele fosse um
agente comandado pelo legislador, existe ainda uma falha imperdoável nela que é o desconhecimento
de um dos aspectos fundamentais do Direito, que é a dimensão valorativa. O intérprete não avalia
no texto legal apenas o contexto gramatical, mas principalmente o conjunto de significados sociais
implícito nele. Enquanto produção cultural, o Direito terá sempre um componente sociológico
axiológico que não pode ser desconsiderado. A concepção silogística ignora a teoria tridimensional do
Direito, entendido como fato, norma e valor.
De acordo com uma noção mais atual, a aplicação do Direito deve ser sempre um ato
complexo, no qual, além da lógica do raciocínio, devem ser levados em conta os aspectos psicossociais
da conduta humana, o contexto social da ocorrência do fato, os aspectos significativos descobertos
pela interpretação, decorrentes de uma análise valorativa do conteúdo das ações em julgamento,
levando o juiz a uma reflexão ponderada, de acordo com a sua percepção dos fatos e seguindo o seu
convencimento consciente e responsável. Chama-se a esta a concepção dialética da aplicação do
Direito, elaborada de acordo com os novos modelos hermenêuticos que passaram a se desenvolver
a partir do século XIX e têm a sua formulação mais conhecida nas teorias do jurista argentino Carlos
Cóssio (teoria egológica) e do jurista brasileiro Miguel Reale (tridimensionalismo concreto). Uma
aplicação puramente lógica deixa de considerar um dos componentes mais defendidos pelas modernas
teorias jurídicas, que é a dimensão axiológica do Direito, sem a qual é impossível a existência do estado
democrático de Direito, preconizada na Constituição Federal.
Reflexão
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sob o pretexto de ser a lei obscura, omissa, ambígua ou por não ter previsto
as circunstâncias particulares do caso concreto. Este é, com certeza, o
momento mais criativo da utilização da hermenêutica jurídica, quando a
interpretação proporciona a solução de casos não previstos na lei.
A interpretação integradora, portanto, ao mesmo tempo que aplica a norma ao caso concreto,
também completa as lacunas do ordenamento, porque o ordenamento jurídico é dotado de plenitude,
implicando o conceito dinâmico e atual de algo em constante fazer-se no acontecer concreto de cada
dia. Dessa forma, a interpretação integradora proporcionará a plenificação teórica do ordenamento
jurídico, conduzindo os interesses individuais em disputa a uma situação de justiça que mantenha a
justeza do sistema e a dignidade das pessoas.
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Importante
Nos últimos tempos, o jurista que tratou de forma exemplar sobre esta matéria foi Norberto
Bobbio, com a sua obra clássica Teoria do Ordenamento Jurídico, da qual abordaremos alguns conceitos
básicos, a seguir. A reflexão de Bobbio ganha destaque no contexto das teorias jurídicas do século XX,
porque foi elaborada após as profundas mudanças ocorridas na Europa e, em geral, no mundo inteiro,
após a segunda grande guerra. Ele entende que se, no início do século XX, foi necessário eliminar qualquer
juízo de valor para construir uma Teoria Científica do Direito, as novas realidades sociais surgidas após
a Segunda Guerra Mundial levaram a concluir que a investigação jurídica deve buscar novas dimensões.
Foi daí que surgiu o conceito de ordenamento jurídico, mais amplo e mais dinâmico do que o conceito
tradicional de norma jurídica, que era o padrão anteriormente adotado. Vejamos os aspectos da teoria de
Bobbio, que têm importante repercussão para a hermenêutica.
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único legislador, mas por delegação de competência, e as autoridades de diversos níveis que
serão responsáveis pela elaboração das normas dentro da sua alçada. Disso resulta que todo
ordenamento jurídico deve lidar constantemente com quatro problemas básicos, os quais são
sempre solucionados com a utilização dos procedimentos da hermenêutica.
A construção do ordenamento tem uma estrutura piramidal, onde a norma fundamental ocupa
o ápice e os atos executivos formam a base. Vista de cima para baixo, essa pirâmide mostra a escala de
produção; vista de baixo para cima, a escala de execução. A produção fica designada como poder e a
execução como dever, sendo estes dois conceitos correlatos dentro da relação jurídica. Uma norma que
pertence a certo ordenamento, para ser válida, é necessário que provenha de um poder legítimo e que
poder, em última instância, é este senão a Norma Fundamental? Logo, uma norma só pode ser declarada
válida se puder ser reinserida na Norma Fundamental.
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garantidor da unidade do ordenamento jurídico, devendo todas as demais normas estar alinhadas com ela.
O procedimento hermenêutico competente para a depuração do ordenamento, com o objetivo de manter-
lhe a unidade e eliminar aquelas normas que se contrapõem à Norma Fundamental é o chamado controle
da constitucionalidade das leis, que é realizado de modo concentrado pelo Tribunal Constitucional e,
de modo incidental, pelos magistrados nos julgamentos dos casos concretos.
Essa eliminação se dará pela supressão de uma das normas incompatíveis, mas é necessário
ter critério para essa eliminação e, para isso, a jurisprudência tem elaborado, ao longo da história,
algumas regras que são geralmente aceitas, embora não resolvam todos os casos, pois que nem
todas as antinomias são solúveis. As regras fundamentais de solução de antinomias são: o critério
cronológico, critério hierárquico e critério da especialidade, seguindo a regra fundamental de
dar a cada qual o que é seu por direito.
No caso de nenhuma das normas em conflito serem permissivas, mas uma imperativa e outra
proibitiva, a decisão é confiada à liberdade do intérprete, que resolverá conforme a oportunidade e
aplicando o conjunto dos princípios hermenêuticos admitidos. Seja ele o juiz ou o jurista, poderá eliminar
uma norma, eliminar as duas ou conservar as duas (demonstrar a incompatibilidade como aparente -
interpretação corretiva). Esta última hipótese é a mais utilizada pelos intérpretes.
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Importante
A distinção entre lacuna real e ideológica é frequentemente exposta nos tratados como lacuna
própria e imprópria. A lacuna própria se dá dentro do sistema, enquanto que a imprópria se dá
devido à comparação do sistema com um sistema ideal. As lacunas impróprias só são completadas
pelo legislador e as lacunas próprias podem ser completadas pelo trabalho do intérprete e pela
hermenêutica dos aplicadores.
Para o preenchimento das lacunas, duas regras são comumente adotadas. Seguindo a
terminologia adotada por Carnelutti (apud BOBBIO, 1999), chamaremos a esses métodos de
heterointegração e autointegração.
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Hermenêutica Jurídica
Curiosidade
O Código Civil Suíço estabelece, no art. 1º, que em caso de lacuna da lei ou
do costume, o juiz pode decidir como se fosse ele o legislador. Na prática,
porém, constata-se que os juízes raramente utilizam essa prerrogativa, o que
demonstra o seu apego à tradição da autointegração.
Uma das bases da autointegração é a analogia; a outra são os princípios gerais do Direito.
Entende-se por “analogia” o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma
disciplina que foi dada a um caso regulamentado semelhante. A analogia é considerada o mais típico e
o mais importante dos procedimentos de interpretação, tendo sido usada largamente desde o Digesto
e em todos os tempos.2 Essa “semelhança” em que se fundamenta a analogia não pode ser uma
semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, que tenha sido a mesma causa que motivou
a decisão do caso análogo regulamentado, ou seja, a razão suficiente pela qual foi atribuída aquela
solução ao caso análogo. Esta razão suficiente é o que comumente se chama de ratio legis, sendo
denominada “analogia legis”. O raciocínio por analogia exige que os dois casos (o regulamentado e o
não-regulamentado) sejam regidos pela mesma ratio legis.
2 Assim preceitua o Digesto (10.1.3): Non possunt omnes articuli singullatim aut legibus aut
senatus consultis comprehendi: sed cum in aliqua causa sententia eorum manifesta est, is qui
jurisdictioni praeest ad similia procedere atque ita ius dicere debet. (Não podem todos os
artigos isoladamente ser abrangidos pelas leis e pelos senatusconsultos: mas quando em alguma
causa a opinião deles é conhecida, aquele que preside a jurisdição deve seguir por semelhança e
do mesmo modo dizer o direito.)
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Hermenêutica Jurídica
A “analogia legis” difere da “analogia iuris”’, pois a última busca a solução para uma lacuna
em todo o ordenamento e não apenas em parte dele. A expressão “‘princípios gerais do Direito”’
é tradicionalmente denominada de “analogia iuris”’. Para Bobbio (1999), os Princípios Gerais do
Direito equivalem a normas e podem ser expressos ou não expressos. Quando expressos, não se pode
falar em lacunas do sistema. Só se consideraria lacuna se, para um determinado caso, não existisse
uma regra expressa, nem específica, nem geral, nem generalíssima. Mas há ainda os princípios que
podemos considerar não-expressos, isto é, os que podem ser deduzidos por abstração das normas
expressas. São aquelas normas generalíssimas formuladas pelo intérprete, na tentativa de alcançar o
que se entende por “espírito do sistema”. De um modo ou de outro, o intérprete terá sempre uma
solução para as lacunas no Ordenamento Jurídico.
A mesma imagem da pirâmide das normas pode ser aplicada para a formação de uma
pirâmide de ordenamentos. Podemos ter, assim, relações de coordenação ou de subordinação entre
os ordenamentos. Relações de coordenação se dão entre ordenamentos estatais posicionados
num mesmo plano, isto é, onde haja regras de autolimitação recíproca; enquanto relações de
subordinação se dão entre ordenamentos posicionados em patamares diferentes, como, por
exemplo, entre o ordenamento estatal e os sociais (sindicatos, partidos, associações), cujos estatutos,
para terem validade, precisam ser reconhecidos pelo Estado.
Importante
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Hermenêutica Jurídica
Por tratar-se de uma complexa diferenciação, os conflitos gerados nesta área sempre foram
de difícil solução. Os caminhos possíveis são os da negociação, da diplomacia, da mediação. Quando
esses não são viáveis, afastam-se todas as possibilidades jurídicas e a solução será buscada na base
do confronto direto das forças.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Cristiano. O problema dos métodos na interpretação jurídica. São Paulo:
RT, 1992.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1999.
FERRAZ JR, Tércio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980.
GIORDANI, F. A.M. P. Estudos sobre a interpretação das leis. São Paulo: Ed. Copola, 1997.
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HERMENÊUTICA JURÍDICA
Créditos
processo ensino-aprendizagem.
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