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Texto: Arte como um sistema cultural. Clifford Geertz.

Em seu ensaio “A arte como um sistema cultural”, integrante do livro “O Saber Local: novos
ensaios em Antropologia Interpretiva”, 142-181, Editora Vozes, Clifford James Geertz trabalha a
questão da arte ser algo de que o discurso não dá conta de explicar e, ao mesmo tempo, as pessoas
se sentirem atraídas pela idéia de falar sobre arte.

Para o antropólogo estadunidense, considerado o fundador de uma das vertentes da antropologia


contemporânea – a chamada Antropologia Hermenêutica ou Interpretativa – isso acontece porque,
ao nos depararmos com uma obra de arte, percebemos que há ali algo importante e tentamos
expressar o que sentimos, mas as palavras soam vazias e falsas ao falar sobre arte. Como cita Geertz
“quando não somos capazes de falar, devemos ficar em silêncio”,no entanto, os próprios artistas não
conseguem fazê-lo.

Apesar da aparente inutilidade em se falar sobre arte, discutir arte é uma necessidade incessante, diz
Geertz. No entanto, boa parte das pessoas discute arte em termos artesanais, colocando as cores de
uma obra de arte e suas relações acima de temas como harmonia ou composição pictórica. No
ocidente algumas pessoas chegam mesmo a acreditar que isso é suficiente para se entender a arte.

Mas a maioria crê que isso não é suficiente, e que a discussão nesses termos deriva de interesses
culturais que não são a arte em si.

A função do discurso sobre arte é buscar para esta um lugar no contexto das demais expressões dos
objetivos humanos e dos modelos de vida a que essas expressões dão sustentação (p.145).

Geertz faz uma análise dos fatores que fazem com que algo seja definido como uma obra de arte.
Essa definição nunca é puramente estética, mas sim uma forma de anexação a outras formas de
atividade social, com a intenção de incorporar essa apreciação estética a um padrão de vida (p.146).

Essa atribuição de um significado cultural a objetos de arte é sempre um processo local e a


incapacidade de compreender essa variedade é a responsável por fazer com que muitos estudiosos
da arte não-ocidental digam que povos primitivos falam pouco sobre arte. Povos primitivos falam
sim sobre arte, mas não da mesma forma como o fazem os pesquisadores, em termos de
propriedades formais, conteúdo simbólico, valores afetivos e estilísticos.

Os povos primitivos falam sobre arte ao dizer como ela deve ser usada, quem é seu dono, quem o
faz, quando é tocado, quem desempenha papel nessa ou naquela atividade e assim por diante. A
questão é que a atitude dessas sociedades com relação à arte é vista pelos pesquisadores não como
discurso sobre arte, mas como parte de suas atividades sociais, de sua vida cotidiana. A relação que
possuem com arte passa despercebida ao nosso plano de visão.

Como resposta a isto, Geertz cita Matisse, que dizia que os meios através dos quais a arte se
expressa e o sentimento pela vida que os estimula são inseparáveis. Portanto, o diálogo em torno do
objeto de arte, ainda que discutindo sua função ou quem o possuía, era uma forma das sociedades
primitivas exteriorizarem sentimentos que levaram à sua execução, ou seja, uma forma de falar
sobre arte.

Pelo fato de ser impossível separar a arte do sentimento que estimulou sua execução, estudar a arte
é explorar uma sensibilidade que é, essencialmente, uma formação coletiva.

Essa forma de ver a arte nos afasta da visão funcionalista, que vê as obras de arte como mecanismos
elaborados para definir as relações sociais, mantendo suas regras e fortalecendo seus valores (p.
150). Para Geertz, as formas de arte não pregam doutrinas. Elas materializam uma forma de viver,
evidenciando um modelo de pensamento para o mundo dos objetos, tornando-o visível.

Deste ponto de vista, o valor que as diferentes sociedades atribuem a elementos como o traço e a
linha é derivado de significados da sua própria cultura. Por isso, o que se fala sobre arte, inclusive o
que não faz parte reconhecidamente do discurso estético, é importante na reflexão sobre arte, para
tentar apreender a origem dos valores artísticos nas diferentes sociedades.

Os antropólogos reagem a esta união entre a cultura e os valores estéticos replicando que isso pode
ser verdade para os povos primitivos, que fundem os vários domínios de sua experiência em um
todo gigantesco, mas que isso não se aplica a culturas mais desenvolvidas (p. 154).

Para retrucar esse argumento, Geertz analisa dois empreendimentos estéticos desenvolvidos e
muitos diferentes: a pintura do quattrocento e a poesia islâmica.

Para falar sobre a pintura italiana do século XV, Geertz cita a análise de Michael Baxandall, no livro
“Painting and experience in fifteenthcentury italy”, que procura estabelecer “o olhar da época, a
bagagem intelectual que o público de um pintor do século XV, isto é, outros pintores e as ‘classes
patrocinadoras’ trazia no confronto com estímulos visuais complexos, como quadros”.

Isso significa que as pessoas são sensíveis a vários tipos de habilidades interpretativas, e que essas
habilidades não são inatas, mas parte da bagagem cultural de cada homem, que ordena a sua
experiência visual.
A pintura do quattrocento era na sua maior parte de temática religiosa, e a sua intenção era exaltar a
dimensão espiritual da vida, convidando o observador a refletir sobre as verdades do cristianismo.
Não era, portanto, algo que devia ser apenas observado, mas que devia levar a uma reflexão,
interagia com a cultura na qual estava inserida de maneira complementar: era necessário haver uma
compreensão do tema da pintura e uma reflexão a partir disso, e o conhecimento prévio do assunto,
comum aos italianos inseridos neste meio, quer como pintores quer como mecenas, era necessário
para isso.

Havia ainda vários fatores que colaboravam para a formação desta sensibilidade no público. Os
pregadores populares transmitiam conhecimento religioso às suas congregações de forma que as
fisionomias eram caracterizadas e as cores transformadas em símbolos. Isso era essencial para a
resposta à pintura.
O nascimento de Vênus,1483 – Sandro Botticelli
Outro fator que contribuía para a compreensão dos quadros era a dança da época, que utilizava
passos lentos e movimentos geométricos. Essas formas de agrupamento foram utilizadas por
pintores como Botticelli para organizar as figuras em pinturas como Primavera e Nascimento de
Vênus. As pessoas compreendiam a maneira como as pessoas se agrupam como resultado do tipo de
relacionamento que existe entre elas.
Primavera,1478 – Sandro Botticelli
Além disso, as pessoas possuíam uma grande capacidade de avaliação de formas geométricas. Essa
habilidade era muito necessária no comércio, pois existiam embalagens de tamanho padrão, que
eram divididas em outros tipos de embalagens. Aos comerciantes era indispensável a habilidade de
decompor massas irregulares em grupos de massas regulares, cilindros, cones, cubos e assim por
diante. É um mundo intelectual específico, mas era nessa esfera, de lugares como Veneza e
Florença, que viviam as classes cultas.

Geertz cita Baxandall na sua afirmação de que um registro visual é algo que precisamos aprender a
ler, assim como temos que aprender a ler um texto de uma cultura diferente da nossa.

A participação no sistema da arte só se torna possível através da participação no sistema geral de


formas simbólicas que chamamos de cultura (p. 165) e uma teoria da arte é, ao mesmo tempo, uma
teoria da cultura, e não algo autônomo.

O poeta no islã é o homem que faz o tráfico da substância moral da sua cultura.

O Corão é o único milagre do islã. Seu nome significa “recitação”, e ele difere das outras escrituras
porque não contém relatos de profetas falando sobre Deus, mas a própria palavra de Deus, que
escreveu o Corão. Assim como Deus, o Corão é imortal, é um dos atributos de Alá. Então, quando
alguém recita o Corão canta o próprio Deus, exerce um ato de fé.

A língua árabe possui a sua versão clássica, que é a linguagem do Corão, falada por uma parcela
pequena da população, e a sua versão vulgar, que é falada por todos. No entanto, as árabes
consideram que só a língua culta é capaz de exprimir as grandes verdades, e que a língua vulgar é
incapaz de dizer coisas sérias.

A poesia do islã é uma reorganização das palavras do Corão falando sobre temas definidos, usando
fórmulas pré-estabelecidas. Temas como a inevitabilidade da morte, a não-confiabilidade das
mulheres e o orgulho religioso são comuns.
A poesia do islã corre o tempo todo o risco de ser sacrílega, já que usa as palavras do Corão para
tratar de temas mundanos. As apresentações dos poetas são feitas ao ar livre, e as poesias não são
escritas, são feitas na hora. Caso o poeta não atinja as expectativas da platéia será vaiado e obrigado
a parar a recitação.

A definição do que é de bom gosto e o que não é depende da capacidade do artista de atingir as
sensibilidades que a sociedade possui, tanto no caso da pintura do quattrocento como na poesia
islâmica.

Portanto, se existe algo em comum entre todas as artes, certamente não será o fato de afetarem um
sentido universal de beleza presente em todos os homens. Assim como a variedade artística não é
resultado do acaso, mas das várias concepções que as diferentes sociedades têm sobre como
funciona e se organiza o mundo.

Localizando o contexto de surgimento das artes, talvez seja possível começar a localizar as origens
de seu poder.

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